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Italo Calvino O Barao nas Arvores

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FOI EM 15 DE JUNHO DE 1767 que Cosme Chu-vasco de Rondó, meu irmão, sentou-se conoscopela última vez. Lembro como se fosse hoje. Es-távamos na sala de jantar da nossa vila de Penúm-bria, as janelas enquadravam as densas ramagensdo grande carvalho ílex do parque. Era meio-dia e,seguindo antiga tradição, a família ia para a mesanaquele horário, embora já predominasse entre osnobres a moda, importada da pouco madrugadoracorte da França, de almoçar no meio da tarde. Re-cordo que soprava vento do mar e mexiam-se asfolhas. Cosme disse: “Já falei que não quero e nãoquero!”, e afastou o prato de escargots. Nunca tí-nhamos visto desobediência tão grave.

Ocupava a cabeceira o barão Armínio Chuvas-co de Rondó, nosso pai, com a peruca descendo

até as orelhas, à Luís XIV, fora de moda comotantas coisas suas. Entre mim e meu irmãosentava-se o abade Fauchelafleur, dependente dafamília e preceptor dos jovens. Em frente estavaa generala Corradina de Rondó, a mãe, e nossa ir-mã Batista, a freira da casa. Na outra extremida-de da mesa, contrapondo-se ao pai da família, fi-cava, vestido à turca, o cavaleiro advogado Enei-as Sílvio Carrega, administrador e engenheiro daspropriedades familiares e nosso tio natural, en-quanto irmão ilegítimo de papai.

Havia poucos meses, tendo Cosme completa-do doze anos e eu oito, tínhamos sido admitidosna mesma mesa dos genitores; ou seja, fui bene-ficiado antes do tempo pela promoção de meu ir-mão, pois não quiseram deixar-me comendo sozi-nho. Beneficiado é um modo de dizer: na verda-de, tanto para Cosme quanto para mim terminarao tempo feliz e lamentávamos não fazer mais asrefeições na saleta, os dois sozinhos com o aba-de Fauchelafleur. O abade era um velhote seco eencarquilhado, com fama de jansenista e, de fa-to, fugira do Delfinado, onde nascera, para esca-

par de um processo da Inquisição. Mas o caráterrigoroso que em geral nele louvavam, a severida-de interior que impunha a si e aos outros cediamlugar continuamente a uma fundamental vocaçãopara a indiferença e o deixar andar, como se aslongas meditações com os olhos fixos no vazio sótivessem levado a um grande tédio e falta de von-tade, vendo em toda dificuldade, por menor quefosse, o sinal de uma fatalidade à qual não preten-dia opor-se. As refeições em companhia do abadecomeçavam após longas orações, marcadas porcomplicados movimentos de colheres, rituais, si-lenciosos, e coitado de quem levantasse os olhosdo prato ou fizesse o menor barulho tomando ocaldo quente; mas, no final da sopa, o abade já es-tava cansado, chateado, olhando o vazio, enquan-to estalava a língua a cada gole de vinho, como seapenas as sensações mais superficiais e efêmeraspudessem atingi-lo; ao chegar o prato principal jápodíamos comer com as mãos, e terminávamos arefeição fazendo guerra com restos de pera, en-quanto o abade emitia de vez em quando um dosseus molengos: “…Ooo bien!… Ooo alors!”.

Mas agora, estando à mesa com a família,tomavam corpo os rancores familiares, capítulotriste da infância. Pai e mãe sempre pela frente,comer frango com talheres, e fica direito, e tiraos cotovelos da mesa, o tempo todo!, e ainda porcima aquela antipática da Batista. Começou umasérie de berros, de birras, de castigos, de teimosi-as, até o dia em que Cosme recusou os escargotse decidiu separar sua sorte da nossa.

Desse acúmulo de ressentimentos familiaressó me dei conta depois: naquela época eu tinhaoito anos, tudo me parecia um jogo, a guerra dosmeninos contra os adultos era a de sempre, a detodos os moleques, não percebia que a teimosiade meu irmão era algo de mais profundo.

O barão nosso pai era um homem chato, semdúvida, embora não fosse mau: chato porque suavida era dominada por pensamentos desencontra-dos, como tantas vezes acontece nos períodos detransição. A agitação da época transmite a muitosa necessidade de agitar-se também, mas tudo aocontrário, fora de foco: assim era o pai, com o te-ma do momento: tinha pretensões ao título de du-

que de Penúmbria e não pensava em outra coisa anão ser em genealogias e sucessões e rivalidadese alianças com os potentados vizinhos e distantes.

Por isso lá em casa vivíamos sempre como sefosse a véspera de um convite para a corte, nãosei se a da imperatriz da Áustria ou a do rei Luís,ou talvez a dos montanheses de Turim. Servia-seum peru e papai a controlar-nos para ver se con-seguíamos trinchá-lo e despolpá-lo conforme to-das as regras reais, e o abade quase não o sabore-ava para não ser apanhado em flagrante, ele quedevia apoiar o patriarca nos seus vitupérios. Docavaleiro advogado Carrega havíamos descober-to o fundo falso: fazia desaparecer pernis inteirossob a fralda da chimarra turca, para depois comê-los com as mãos como gostava, escondido na vi-nha; e seríamos capazes de jurar (embora nunca otivéssemos apanhado em ação, tão rápidos eramseus movimentos) que já vinha para a mesa comum bolso cheio de ossos limpos, para deixar noprato no lugar dos quartos de peru amoitados in-teirinhos. Mamãe generala não contava, pois as-sumia bruscos gestos militares também ao servir-

se à mesa — So! Noch ein wenig! Gut! —, e nin-guém contestava; mas em relação a nós se preo-cupava, se não com a etiqueta, pelo menos coma disciplina, e dava mão forte ao barão com suasordens de praça de armas — Sitz’ ruhig! E lim-pa o focinho! A única que ficava à vontade eraBatista, a freira da casa, que limpava galetos comuma dedicação minuciosa, fibra por fibra, comumas faquinhas pontiagudas que só ela possuía,espécie de bisturis de cirurgião. O barão, que de-veria apresentála como um exemplo para nós, nãose atrevia a encará-la, pois, com aqueles olhos ar-regalados sob as asas da touca engomada, os den-tes cerrados naquela amarelada focinheira de ra-to, provocava medo até nele. Assim, dava paraentender por que a mesa era o lugar em que vi-nham à luz todos os antagonismos, as incompati-bilidades entre nós e também todas as loucuras ehipocrisias; e por que justamente à mesa se deter-minasse a rebelião de Cosme. Por isso entro emdetalhes no relato, pois de mesas postas não ou-viremos mais falar na vida de meu irmão, isso écerto.

Também era o único lugar em que nos encon-trávamos com os adultos. Durante o resto do dia,mamãe ficava fechada nas suas dependências afazer rendas, bordados e filé, pois a generala sóera capaz de se ocupar dessas tarefas tradicionaisde mulher e apenas nelas desafogava a sua paixãoguerreira. Eram rendas e bordados que, em geral,representavam mapas geográficos; e, estendidosem almofadas ou painéis para tapeçaria, mamãeos enchia de alfinetes e bandeirinhas, assinalandoos planos de batalha das Guerras de Sucessão queconhecia na ponta da língua. Ou então bordavacanhões, com as várias trajetórias que partiam daboca de fogo, e as forquilhas de tiro e os ângulosde projeção, porque era muito competente em ba-lística e além disso tinha à disposição toda a bibli-oteca de seu pai, o general, com tratados de artemilitar, mesas de tiro e atlas. Nossa mãe era umaVon Kurtewitz, Konradine, filha do general Kon-rad von Kurtewitz, que vinte anos antes ocuparaas terras da família sob o comando das tropas deMaria Teresa d’Áustria. Órfã de mãe, ela ia com ogeneral para os campos de batalha; nada de roma-

nesco, viajavam bem equipados, hospedavam-senos melhores castelos, com um bando de criadas,e ela passava os dias fazendo rendas na almofadade bilros; o que se conta, que também ela partici-passe das batalhas, a cavalo, não passava de len-das; sempre fora uma mulherzinha de pele rosadae nariz arrebitado como a recordamos, mas man-tivera a mesma paixão militar do pai, quem sabecomo protesto contra o marido.

Papai era um dos poucos nobres da região quese alinhara contra os imperiais naquela guerra:acolhera de braços abertos o general Von Kur-tewitz em seu feudo, colocara à disposição deleseus homens e, para melhor demonstrar dedica-ção à causa imperial, casara com Konradine, tudosempre na esperança do ducado, no que se deumal, como de hábito, pois os imperiais foram lo-go embora e os genoveses o sobrecarregaram deimpostos. Apesar de tudo, ganhara uma boa es-posa, a generala, como passou a ser chamada de-pois que o pai morreu na expedição da Provençae Maria Teresa mandou-lhe um colar de ouro numcoxim de damasco; uma esposa com a qual qua-

se sempre se deu bem, embora ela, educada nosacampamentos, só pensasse em exércitos e bata-lhas e o reprovasse por não passar de um introme-tido sem sorte.

Mas no fundo ambos haviam parado no tempodas Guerras de Sucessão, ela com a artilharia nacabeça e ele com as árvores genealógicas; ela quesonhava para os filhotes um posto num exército,qualquer um, ele que, ao contrário, nos via casa-dos com alguma grã-duquesa eleitora do Impé-rio… Apesar disso foram pais ótimos, mas tãodistraídos que nós dois podíamos crescer quasepor conta própria. Foi bom ou ruim? E quem serácapaz de dizê-lo? A vida de Cosme foi tão fora docomum, a minha tão regulada e modesta, mesmoassim passamos a infância juntos, ambos indife-rentes às trapalhadas dos adultos, buscando viasdiferentes daquelas percorridas pelas pessoas.

Trepávamos nas árvores (esses primeiros jo-gos inocentes recobrem-se agora na minha lem-brança como de uma luz de iniciação, de pressá-gio; mas então quem pensaria nisso?), subíamosas torrentes saltando de uma pedra para outra,

explorávamos cavernas à beira-mar, escorregáva-mos pelas balaustradas de mármore das escadari-as da vila. Foi numa dessas brincadeiras que te-ve origem para Cosme uma das maiores razões debrigas com os genitores, porque foi punido, injus-tamente, acha ele, e desde então incubou um ran-cor contra a família (ou a sociedade? ou o mundoem geral?) que se expressou depois na sua deci-são de 15 de junho.

Para dizer a verdade, tínhamos sido proibidosde escorregar pela balaustrada de mármore dasescadas, não por medo de que quebrássemos umaperna ou um braço, pois nossos pais nunca se pre-ocuparam com isto e foi justamente por isso —penso eu — que nunca arrebentamos nada; masporque crescendo e aumentando de peso podía-mos derrubar as estátuas dos ancestrais que pa-pai mandara colocar nas últimas pilastras das ba-laustradas em cada lance de escada. De fato, umavez Cosme já havia jogado no chão um trisavôbispo, com mitra e tudo; foi punido e desde en-tão aprendeu a frear um instante antes de atingiro fim da rampa e a saltar exatamente um segundo

antes de bater contra a estátua. Também aprendi,pois o acompanhava em tudo, só que eu, sempremais modesto e prudente, já saltava lá pelo meioda rampa, ou então escorregava aos bocados, comfreadas contínuas. Um dia, ele descia pela balaus-trada como uma flecha, e quem é que subia pelasescadas? O abade Fauchelafleur, que andava àstontas com o breviário aberto no peito mas como olhar fixo no vazio feito uma galinha. Se pelomenos estivesse meio adormecido como de hábi-to! Não, estava num daqueles momentos raros, deextrema atenção e apreensão com todas as coisas.Vê Cosme, pensa: balaustrada, estátua, agora noschocamos, vão dar bronca em mim também (por-que a cada molecagem nossa gritavam com eletambém, que não sabia tomar conta de nós), e selança sobre a balaustrada para conter meu irmão.Cosme choca-se com o abade, arrasta-o para bai-xo (era um velhinho que parecia só ter ossos), nãopode frear, bate com impulso redobrado na está-tua do nosso antepassado Caçaguerra Chuvasco,cruzado na Terra Santa, e tombam todos no péda escadaria: o cruzado em pedaços (era de ges-

so), o abade e ele. Foram repreensões a não aca-bar mais, chicotadas, curativos, castigos a pão esopa fria. E Cosme, que se julgava inocente poisa culpa não fora sua mas do abade, saiu-se comaquela tirada feroz: “Estou me lixando para todosos seus antepassados, senhor meu pai!”, o que jáanunciava sua vocação de rebelde.

No fundo, igual a nossa irmã. Também ela,embora o isolamento em que vivia tivesse sidoimposto por papai, depois da história do marque-zinho da Maçã, fora sempre uma alma rebelde esolitária. O que acontecera com o marquezinhodaquela vez, nunca se soube direito. Filho de umafamília que tinha hostilidade por nós, como haviaconseguido entrar na casa? E por quê? Para se-duzir, ou melhor, para violentar nossa irmã, foidito na briga interminável que se seguiu entre asfamílias. De fato, não dava para imaginar aqueleidiota sardento como um sedutor e menos aindacom Batista, na certa mais forte do que ele e fa-mosa pelas quedas de braço até com os rapazes daestrebaria. E mais: por que foi ele quem gritou?E, ainda, em que condições foi encontrado, pelos

empregados que acorreram junto com papai, ascalças em tiras, como se tivessem sido rasgadaspelas garras de um tigre? Os Da Maçã jamais qui-seram admitir que o filho deles tivesse atentadocontra o pudor de Batista e consentir no matrimô-nio. Assim, nossa irmã acabou enterrada em casa,com trajes de monja, mesmo sem ter feito votosnem de terciária, dada a sua duvidosa vocação.

Seu ânimo triste extravasava sobretudo na co-zinha. Era excelente cozinhando, pois não lhe fal-tava nem a diligência nem a fantasia, dotes ele-mentares para qualquer cozinheira, mas era im-possível imaginar que surpresas surgiriam à me-sa quando ela punha as mãos na massa: certastorradas com patê, que ela havia preparado umavez, finíssimas para dizer a verdade, eram de fí-gado de rato e ela não dissera nada até que as ti-véssemos comido e elogiado; isso para não falardas patas de gafanhoto, as traseiras, duras e serri-lhadas, postas em forma de mosaico numa torta;e os rabinhos de porco assados como se fossemroscas; e daquela vez que cozinhou um porco-es-pinho inteiro, com todos os espinhos, quem sa-

be por que razão, talvez só para nos impressionarquando foi levantado o abafador, pois nem ela,que sempre comia todo tipo de porcaria que hou-vesse preparado, quis prová-lo, embora fosse umfilhote, rosado, certamente macio. De fato, gran-de parte da sua horrorosa cozinha era estudadasó para impressionar, mais do que pelo prazer defazer-nos saborear junto com ela alimentos comsabores extravagantes. Eram, tais pratos de Ba-tista, obras de fina ourivesaria animal ou vegetal:cabeças de couve-flor com orelhas de lebre dis-postas sobre uma gola de pelo de lebre; ou umacabeça de porco de cuja boca saía, como se es-te pusesse a língua para fora, uma lagosta verme-lha, a qual segurava com as tenazes a língua doporco como se a tivesse arrancado. Depois os es-cargots: conseguira decapitar não sei quantos mo-luscos, e as cabeças, aquelas cabeças de cavali-nhos, moles moles, conseguira fixá-las, creio quecom um espetinho, cada uma num bolinho, e pa-reciam, como foram arrumados, um bando de mi-núsculos cisnes. E, mais ainda que a visão daque-las iguarias, impressionava-nos o zelo extremado

que certamente Batista tivera ao prepará-las, ima-ginem suas mãos sutis enquanto desmembravamaqueles corpinhos de animais.

O modo pelo qual os escargots excitavam amacabra fantasia de nossa irmã levou-nos, meuirmão e eu, a uma rebelião, que era ao mesmotempo de solidariedade, para com os pobres ani-mais despedaçados, de desgosto pelo sabor dosescargots cozidos e de impaciência contra tudo etodos, tanto que não há razão para estranhar se foia partir dali que Cosme amadureceu o seu gesto eo que se seguiu.

Havíamos arquitetado um plano. Como o ca-valeiro advogado levasse para casa um cestocheio de escargots comestíveis, eles eram coloca-dos na despensa, em um barril, a fim de permane-cerem em jejum, comendo só farelo, e se purga-rem. Ao deslocar-se a tampa de madeira do barril,aparecia uma espécie de inferno, em que os es-cargots se moviam pelas aduelas acima com umalentidão que já era um presságio de agonia, entrerefugos de farelo, marcas de opaca baba coagula-da e coloridos excrementos de moluscos, memó-

ria do bom tempo com ar livre e ervas. Alguns es-tavam fora da concha, com a cabeça espichada eos chifrinhos separados; outros totalmente enco-lhidos, deixando aparecer só desconfiadas ante-nas; outros em roda como comadres; outros ador-mecidos e fechados; outros mortos com a con-cha virada. Para salvá-los do encontro com aque-la sinistra cozinheira e para proteger-nos das suasguarnições, fizemos um furo no fundo do barrile dali traçamos, com fios de erva triturada e mel,um caminho escondido ao máximo, atrás de to-néis e utensílios da despensa, para induzir os es-cargots à fuga, até uma janelinha que dava paraum canteiro inculto e espinhoso.

No dia seguinte, quando descemos à despensapara verificar os efeitos do plano e, à luz de velas,inspecionamos as paredes e os corredores —“Aqui uma!… E outra lá!”, “…E veja esta ondechegou!” —, já uma fila de escargots arrastava-se, a pequenos intervalos, do barril até a janeli-nha, pelo chão e pelas paredes, seguindo a nossatrilha. “Rápido, lesminhas! Andem logo, fujam!”,não pudemos deixar de dizer-lhes, vendo os bi-

chinhos andar vagarosamente, não sem desviar-seem voltas ociosas pelas rústicas paredes da des-pensa, atraídos por ocasionais depósitos e montesde mofo e borra; mas o lugar era escuro, entulha-do, acidentado: esperávamos que ninguém pudes-se descobri-los e que todos tivessem tempo de es-capar.

Contudo, aquela alma penada que era Batistapercorria a casa inteira de noite, caçando ratos,segurando um candelabro e com a espingarda de-baixo do braço. Passou pela despensa, naquelanoite, e a luz do candelabro desenhou um escar-got errante no teto, com a estria de gosma pra-teada. Ressoou uma fuzilaria. Todos saltamos nacama, mas logo afundamos a cabeça nos traves-seiros, arredios que éramos às caçadas noturnasda freira da casa. Porém, Batista, após destruira lesma e derrubar um pedaço de reboco comaquele tiro irracional, começou a gritar com seufio de voz estridente: “Socorro! Estão fugindo to-dos! Socorro!”. Acorreram os empregados semi-nus, papai armado com uma baioneta, o abadesem peruca e o cavaleiro advogado, que, antes de

entender alguma coisa, com medo de confusõesfugiu para os campos e foi dormir num palheiro.

À luz de tochas, todos começaram a caçar es-cargots despensa afora, embora ninguém os apre-ciasse; mas como tinham acordado não queriam,por causa do habitual amor-próprio, admitir te-rem sido incomodados à toa. Descobriram o bura-co no barril e entenderam logo que tínhamos sidonós. Papai foi nos buscar na cama, chicote de co-cheiro em punho. Acabamos cobertos de marcasroxas nas costas, nas nádegas e nas pernas, tran-cados no quartinho miserável que funcionava co-mo prisão.

Mantiveram-nos ali três dias, a pão, água, sa-lada, couro de boi e sopa fria (de que, felizmente,gostávamos). Depois, primeira refeição em famí-lia, como se nada tivesse acontecido, todos bem-comportados, naquele meio-dia de 15 de junho:e o que havia preparado Batista, responsável pelacozinha? Sopa de escargots e iguarias da mesmaporcaria. Cosme não quis tocar sequer em umaconcha. “Comam ou voltam imediatamente parao quartinho!” Cedi e comecei a engolir os molus-

cos. (Foi uma deslealdade de minha parte e con-tribuiu para que meu irmão se sentisse mais so-zinho, de modo que, ao abandonar-nos, lançavaum protesto contra mim, que o desiludira; mas eutinha apenas oito anos e de que vale comparar aminha força de vontade, ou melhor, a que poderiater como criança, com a obstinação sobre-huma-na que marcou a vida de meu irmão?)

— E então? — disse o pai a Cosme.— Não e não! — insistiu Cosme e afastou o

prato.— Fora da mesa!Mas Cosme já dera as costas a todos e estava

saindo da sala.— Aonde é que você vai?Podíamos vê-lo através da porta de vidro, en-

quanto no vestíbulo pegava o tricórnio e o espa-dim.

— É problema meu! — Correu para o jardim.Logo, pelas janelas, vimos que ele trepava

no carvalho ílex. Estava vestido e penteado commuito esmero, como papai exigia que fosse paraa mesa, apesar de ter só doze anos: cabelos em-

poados com uma fita atando a trança, tricórnio,gravata de renda, calções cor de malva, espadim elongas polainas de couro branco até o meio da co-xa, única concessão a um modo de vestir-se maisde acordo com nossa vida de interior. (Eu, tendosó oito anos, estava isento da fita nos cabelos, anão ser nas ocasiões de gala, e do espadim, quegostaria de poder usar.) Assim ele subia pela ár-vore nodosa, movendo braços e pernas pelos ra-mos com a segurança e rapidez que advinham dalonga prática a que ambos nos havíamos dedica-do.

Já disse que passávamos horas e horas em ci-ma das árvores, e não por motivos utilitários co-mo fazem tantos meninos que sobem nas árvoresapenas para apanhar frutas ou ninhos de pássaros,mas pelo prazer de superar difíceis saliências dotronco e forquilhas, e chegar o mais alto possí-vel, e encontrar bons lugares para ficar olhando omundo lá embaixo e brincando com quem passas-se por ali. Portanto, achei natural que a primeirareação de Cosme àquela injusta ferocidade contraele fosse subir no carvalho ílex, árvore que nos

era familiar e que, lançando os ramos à altura dasjanelas da sala, impunha seu comportamento des-denhoso e ofendido à vista de toda a família.

— Vorsicht! Vorsicht! Vai cair, o pobrezinho!— exclamou ansiosa mamãe, que gostaria de ver-nos em ataques com canhões mas ficava apreen-siva com qualquer brincadeira nossa.

Cosme trepou até a forquilha de um granderamo onde podia ficar à vontade e sentou-se ali,pernas pendentes, braços cruzados com as mãossob as axilas, cabeça enterrada no pescoço, tricór-nio calcado na testa.

Papai debruçou-se na sacada.— Quando você estiver cansado de ficar aí,

vai mudar de ideia — gritou.— Nunca hei de mudar de ideia — respondeu

meu irmão, do ramo.— Você vai ver o que é bom, assim que des-

cer!— Não vou descer nunca. — E manteve a pa-

lavra.

2

COSME ESTAVA NO CARVALHO ÍLEX. Os ramosse multiplicavam, elevadas pontes sobre a terra.Soprava um vento ligeiro; fazia sol. A luz filtrava-se entre as folhas, e para ver Cosme tínhamos deproteger os olhos com as mãos. Cosme observa-va o mundo da árvore: qualquer coisa, vista lá decima, era diferente, e isso já era um divertimento.A alameda ganhava uma outra perspectiva, e tam-bém os canteiros, as hortênsias, as camélias, a me-sinha de ferro para tomar café no jardim. Mais adi-ante, as copas das árvores adensavam-se e a hortaderramava-se em pequenos campos em forma deescada, sustentados por muros de pedra; o outro la-do da encosta era coberto de olivais, e, na parte detrás, o povoado de Penúmbria espetava seus tetosde tijolo lavado de chuva e ardósia, e despontavam

vergas de embarcações, lá pelos baixios do porto.Ao fundo, estendia-se o mar, dominando o hori-zonte, onde um veleiro deslizava.

Então o barão e a generala, depois do café,saíram para o jardim. Observavam uma roseira,fingiam não ligar para Cosme. Andavam de bra-ços dados, e depois se distanciavam para discutire gesticular. Fui para debaixo do carvalho ílex co-mo se brincasse sozinho, mas na realidade tentan-do atrair a atenção de Cosme; ele, porém, guarda-va rancor de mim e continuava lá em cima a olharpara longe. Parei a brincadeira e me agachei atrásde um banco para poder continuar a observá-losem ser visto.

Meu irmão parecia uma sentinela. Controlavatudo, e nada lhe chamava a atenção. Entre os li-moeiros passava uma mulher com um cesto. Su-bia um tropeiro pela encosta, agarrado ao rabo damula. Não se viram entre si; a mulher, com o ru-mor dos cascos ferrados, virou-se e avançou paraa estrada, mas não chegou a tempo. Aí começoua cantar, mas o tropeiro já fazia a curva, apurou oouvido, estalou o chicote e exclamou para a mu-

la: “Aah!”. E tudo acabou ali. Cosme via a um ea outro.

O abade Fauchelafleur cruzou a alameda como breviário aberto. Cosme apanhou alguma coisado ramo e deixou cair na cabeça dele; não entendio que era, talvez uma pequena aranha, ou um pe-daço de casca; o abade não ligou. Com o espadimCosme pôs-se a cutucar num oco do tronco. Apa-receu uma vespa zangada, ele a enxotou sacudin-do o tricórnio e acompanhando o voo dela com oolhar até um pé de abóbora, onde se refugiou. Rá-pido como sempre, o cavaleiro advogado saiu decasa, desceu pelas escadarias do jardim e perdeu-se entre as fileiras da vinha; Cosme, para ver on-de ele ia, trepou noutro ramo. Lá, entre as folha-gens, ouviu-se um adejar, e um melro alçou voo.Cosme ficou mal porque estivera ali tanto tem-po e não se dera conta daquela presença. Contraa luz, começou a procurar outros pássaros. Não,não havia mais nenhum.

O carvalho ílex estava perto de um olmo; asduas copas quase se tocavam. Um ramo do olmopassava meio metro acima de um ramo da outra

árvore; foi fácil para meu irmão dar um salto e as-sim conquistar o topo do olmo, que não havíamosexplorado porque os ramos começavam lá em ci-ma e eram de difícil acesso por terra. Do olmo,sempre buscando um lugar onde um ramo pas-sava lado a lado com os ramos de outra planta,saltava para uma alfarrobeira e depois para umaamoreira. Assim, eu via Cosme avançar de um ra-mo para outro, caminhando suspenso no jardim.

Certos galhos da grande amoreira atingiam esuperavam o muro que circundava nossa vila, edo outro lado ficava o jardim dos Rodamargem.Nós, embora vizinhos, não sabíamos nada sobreos marqueses de Rodamargem e nobres de Pe-númbria, pois eles desfrutavam havia várias gera-ções de determinados direitos feudais pretendidospor papai; uma aversão recíproca dividia as duasfamílias, bem como um muro alto que parecia umtorreão de fortaleza dividia nossas vilas, não seise mandado construir por papai ou pelo marquês.Acrescente-se a isso o ciúme com que os Roda-margem cercavam o jardim deles, repleto, segun-do se dizia, de espécies de plantas nunca vistas.

De fato, já o pai dos atuais marqueses, discípulode Lineu, movimentara toda a enorme parentelade que a família dispunha nas cortes da França eInglaterra para receber as mais preciosas rarida-des botânicas das colônias e, durante anos, os na-vios tinham desembarcado em Penúmbria sacosde sementes, feixes de estacas, arbustos em vasose mesmo árvores inteiras, com enormes envoltó-rios de blocos de terra em torno das raízes; atéque naquele jardim acabara por crescer — dizi-am — uma mistura de florestas das Índias e dasAméricas, e até mesmo da Nova Holanda.

Tudo o que nós conseguíamos ver eram, de-bruçadas sobre a divisa do muro, as folhas es-curas de uma planta recentemente importada dascolônias americanas, a magnólia, que nos ramosnegros exibia uma carnosa flor branca. Da nossaamoreira Cosme alcançou o cimo do muro, deualguns passos equilibrando-se e depois, apoiadonas mãos, atirou-se para o outro lado, onde fica-vam as folhas e a flor da magnólia. Dali sumiu devista; e o que agora contarei, como muitas outrascoisas desta narrativa de sua vida, me foi contado

por ele mais tarde ou fui eu mesmo quem recons-tituiu a partir de testemunhos e induções esparsas.

Cosme estava na magnólia. Embora dotada deramos densos essa planta era bem acessível paraum jovem conhecedor de todas as espécies de ár-vores como meu irmão; e os galhos resistiam aopeso, apesar de não serem muito grossos e de suamadeira doce descascar ao contato da ponta dossapatos de Cosme, abrindo brancas feridas no ne-gro da casca; e a planta envolvia o rapaz num per-fume fresco de folhas, conforme o vento as toca-va, revirando suas páginas num verdejar ora opa-co ora brilhante.

Mas era todo o jardim que exalava perfume e,se Cosme ainda não conseguia percorrê-lo com avista, tão irregularmente denso era, já o explora-va com o olfato e tratava de distinguir os diver-sos aromas, que lhe eram familiares desde quan-do, levados pelo vento, chegavam até o nosso jar-dim e pareciam constituir uma coisa só com ossegredos daquela vila. Depois observava as fron-des e via folhas novas, algumas grandes e lustro-sas como se escorresse sobre elas um fio d’água,

outras minúsculas e recortadas, e troncos bem li-sos ou cheios de lascas.

Reinava um grande silêncio. Só se ergueu umvoo de pequeninas carriças, álacres. E ouviu-seuma vozinha que cantava: “Oh lá lá lá! La ba-la-nçoire…”. Cosme olhou para baixo. Dependu-rado no ramo de uma grande árvore perto deleagitava-se um balanço, no qual se sentava umamenina de uns dez anos.

Era uma criança loura, com um penteado altoum tanto engraçado para uma menina e um ves-tido azul, também de alguém mais velho, de cujasaia agora, erguida no balanço, transbordavamrendas. A menina mantinha os olhos entreabertose o nariz empinado, como por um capricho debancar a dama, e mordiscava uma maçã, cada vezdobrando a cabeça para o lado da mão que deviasegurar a fruta e apoiar-se na corda do balançoao mesmo tempo, e dava impulso batendo com aponta dos sapatinhos no chão sempre que o balan-ço atingia o ponto mais baixo de seu arco, e so-prava dos lábios os fragmentos de casca de maçãmastigada, e cantava: “Oh lá lá lá! La ba-la-nçoi-

re…”, como uma menina a quem não importassemais nada além do brinquedo, da canção e (po-rém um tantinho mais) da maçã, e já tinha outrospensamentos na cabeça.

Cosme, do alto da magnólia, descera ao pata-mar mais baixo e agora estava com os pés plan-tados em duas forquilhas e os cotovelos apoiadosdiante dele como numa sacada. Os voos do balan-ço traziam-lhe a menina para perto do nariz.

Ela estava distraída e não percebera. De re-pente ela o viu, enfiado na árvore, de tricórnio epolainas.

— Oh! — disse.A maçã caiu-lhe da mão e rolou ao pé da

magnólia. Cosme desembainhou o espadim, al-cançou a fruta com a ponta do metal, espetou-a eofereceu-a à menina que, nesse ínterim, fizera umpercurso completo do balanço e estava ali de no-vo.

— Pegue-a, não se sujou, só está meio amas-sada de um lado.

A menina loura já se arrependera por ter de-monstrado tanto estupor diante daquele rapazinho

desconhecido que surgira ali na magnólia e reto-mara seu ar tranquilo com o nariz empinado.

— O senhor é um ladrão? — indagou.— Ladrão? — repetiu Cosme, ofendido; pen-

sou bem: até que a ideia não lhe desagradava. —Sim, sou — disse, enfiando o tricórnio na cabeça.— Algo em contrário?

— E o que veio roubar?Cosme olhou a maçã que enfiara na ponta do

espadim e lhe veio em mente que estava com fo-me, que quase não tocara na comida à mesa.

— Esta maçã — disse e começou a descascá-la com a lâmina do espadim, a qual mantinha, adespeito das proibições familiares, afiadíssima.

— Então é um ladrão de fruta — disse a me-nina.

Meu irmão pensou nos bandos de meninospobres de Penúmbria, que pulavam os muros e assebes e saqueavam os pomares, um tipo de genteque lhe ensinaram a desprezar e evitar, e pela pri-meira vez pensou quanto devia ser livre e invejá-vel aquela vida. Era isso: talvez pudesse tornar-sealguém como eles e viver assim doravante.

— Sim — disse. Cortara a maçã em gomos ecomeçou a mastigá-la.

A menina loura explodiu numa risada que du-rou uma volta completa do balanço.

— Deixe disso! Os rapazes que roubam frutaeu conheço! São todos meus amigos! E aqueles láandam descalços, em mangas de camisa, despen-teados, e não com polainas e peruca!

Meu irmão ficou vermelho como a casca damaçã. Ser gozado não só pelo penteado, do qualnão gostava, mas também pelas polainas, queapreciava muitíssimo, e ser considerado como deaspecto inferior ao de um ladrão de fruta, aquelagentinha desprezada até poucos momentos atrás,e sobretudo descobrir que a jovem dama com aresde proprietária no jardim dos Rodamargem eraamiga de todos os ladrões de fruta mas não suaamiga, tudo isso junto o encheu de despeito, ver-gonha e ciúme.

— Oh lá lá lá… Com polainas e chinó! —cantarolava a menina no balanço.

Ele foi tomado por um sentimento de orgulho.

— Não sou um ladrão daqueles que você co-nhece! — gritou. — Não sou ladrão de jeito ne-nhum! Disse aquilo para assustá-la, porque, sesoubesse quem sou na verdade, havia de morrerde medo: sou um bandido! Um terrível bandolei-ro!

A menina continuava a voar até bem perto donariz dele, dava para pensar que pretendia chegara tocá-lo com as pontas dos pés.

— Deixe disso! E onde está a espingarda? To-dos os bandidos têm uma espingarda! Eu já vialguns! Já nos pararam a carruagem cinco vezesnas viagens do castelo para cá!

— Mas o chefe não! Eu sou o chefe! O chefedos bandidos não anda de espingarda! Só carregaespada! — E empunhou o espadim.

A menina deu de ombros.— O chefe dos bandidos — explicou — é um

tipo que se chama João do Mato e sempre vemnos trazer presentes, no Natal e na Páscoa!

— Ah! — exclamou Cosme de Rondó, golpe-ado por uma onda de sectarismo familiar. — En-tão tem razão meu pai, quando diz que o marquês

de Rodamargem é o protetor de todo o banditis-mo e o contrabando na região!

A menina passou perto do chão, e em vez dedar o impulso freou com um rápido movimentoda perna e saltou fora. O balanço vazio dançou noar regido por suas cordas.

— Desça imediatamente daí! Como se permi-tiu entrar no nosso terreno? — disse, apontandoum dedo contra o menino, maldosa.

— Não entrei e não descerei — disse Cosmeno mesmo tom. — No terreno de vocês jamaispus os pés e não o farei nem por todo o ouro domundo!

A menina então, com grande calma, pegouum leque que estava numa poltrona de vime e,embora não fizesse muito calor, abanou-se passe-ando para a frente e para trás.

— Agora — afirmou com toda a calma —,chamarei os empregados e farei com que lhe apli-quem umas bordoadas! Assim aprenderá a nãopenetrar em nossas terras! — Mudava sempre detom, esta menina, e meu irmão todas as vezes fi-cava perturbado.

— Onde estou não é terra e nem é de vocês!— proclamou Cosme, e já ficava tentado a acres-centar: “E além disso sou o duque de Penúmbria eportanto senhor de todo o território!”, mas se con-teve, pois não lhe agradava repetir as coisas quedizia sempre seu pai, depois de sair da mesa bri-gando com ele; não lhe agradava e não lhe pare-cia justo, mesmo porque aquelas pretensões sobreo ducado sempre lhe pareceram apenas fixações;tinha cabimento agora até ele, Cosme, começar aposar de duque? Mas não queria desmentir-se econtinuou o discurso conforme fluía. — Aqui nãoé de vocês — repetiu —, porque lhes pertence osolo e se eu pusesse um pé então seria um inva-sor. Mas aqui em cima não, e eu ando por ondeme der na veneta.

— Sim, então é seu, lá em cima…— Claro! Território pessoal, tudo aqui por ci-

ma. — E fez um vago gesto em direção aos ra-mos, às folhas e ao céu. — Nos ramos das árvoresé tudo território meu. Diga a eles que venham meapanhar, se é que são capazes!

Agora, após tantas bravatas, esperava que elao gozasse de alguma forma. Para surpresa sua,mostrou-se interessada.

— É mesmo? E até onde chega este seu terri-tório?

— Vai até onde se consegue ir caminhandoem cima das árvores, por aqui, por ali, além domuro, no olival, até o cimo da colina, do outro la-do da colina, no bosque, na torre do bispo…

— Até a França?— Até a Polônia e a Saxônia — disse Cosme,

que de geografia sabia só os nomes que ouvira demamãe quando falava das Guerras de Sucessão.— Mas não sou egoísta como você. Está convi-dada para o meu território. — Já se tratavam commais intimidade, mas fora ela quem começara.

— E o balanço, de quem é? — perguntou ela,acomodando-se no assento, com o leque abertona mão.

— O balanço é seu — definiu Cosme —, mas,como está pendurado neste ramo, depende sem-pre de mim. Assim, ao tocar a terra com os pés,

você está do seu lado; ao levantá-los, já está nosmeus domínios.

Ela deu um impulso e voou, com as mãosapertadas nas cordas. Da magnólia Cosme saltoupara o grande ramo que sustentava o balanço edali agarrou as cordas e começou a balançar amenina. O balanço ia cada vez mais alto.

— Está com medo?— Eu não. Qual é o seu nome?— Cosme… E o seu?— Violante, mas me chamam de Viola.— Costumam me chamar de Mino, mesmo

porque Cosme é nome de velho.— Não gosto.— Cosme?— Não, Mino.— Ah… Então me chama de Cosme.— Nem pensar! Escute aqui, temos que jogar

limpo.— O que você disse? — indagou ele, que não

conseguia manter o mesmo pique.— Eu posso subir no seu território e serei uma

visita sagrada, está bem? Entro e saio quando qui-

ser. Você é sagrado e inviolável enquanto estivernas árvores, no seu território, mas, logo que tocarno chão do meu jardim, tornar-se-á meu escravoe será acorrentado.

— Não, não desço no seu jardim nem no meu.Para mim é igualmente território inimigo. Vocêvem para cima comigo, e virão seus amigos queroubam fruta, talvez também meu irmão Biágio,apesar de ser meio pilantra, e vamos montar umexército em cima das árvores e conduzir à razão aterra e seus habitantes.

— Não, nada disso. Deixa que eu explico co-mo são as coisas. Você tem o domínio das árvo-res, certo? Mas, se tocar uma vez o chão com umpé, perde todo o reino e se torna o último dos es-cravos. Entendeu? Mesmo que se quebre um ra-mo e você caia, tudo perdido!

— Jamais caí de uma árvore na vida!— Sim, mas, se cair, vira cinza e o vento o

carrega.— Quanta história. Não piso no chão porque

não quero.— Mas como você é chato.

— Não, não, vamos brincar. Por exemplo, nobalanço posso ficar?

— Se conseguir sentar no balanço sem tocara terra, pode. Perto do balanço de Viola tinha ou-tro, pendurado no mesmo galho, mas puxado pa-ra cima com um nó nas cordas para que não sechocassem. Do ramo, Cosme escorregou por umadas cordas, exercício no qual era exímio porquemamãe nos obrigava a fazer muita ginástica, che-gou ao nó, desmanchou-o, ficou em pé no balan-ço e para dar o impulso deslocou o peso do corpo,dobrando-se nos joelhos e partindo para a frente.Assim chegava cada vez mais alto. Os dois balan-ços iam em sentido contrário e agora atingiam amesma altura, aproximando-se na metade do per-curso.

— Mas, se você tentar sentar e der um empur-rão com os pés, vai ainda mais alto — insinuouViola.

Cosme fez uma careta.— Vem aqui me dar um empurrão, seja cava-

lheiro — disse ela, sorrindo-lhe, gentil.

— Mas não, eu, o combinado era que não po-dia descer de jeito nenhum… — E Cosme volta-va a não entender.

— Seja gentil.— Não.— Ah, ah! Estava quase caindo. Se pusesse

um pé no chão, perderia tudo! — Viola desceu dobalanço e começou a dar leves empurrões no ba-lanço de Cosme. — Uh! — De repente, agarrou oassento do balanço em que meu irmão mantinhaos pés e o revirou. Sorte que Cosme estava bemfirme nas cordas! Caso contrário teria caído nochão como um presunto.

— Traidora! — gritou e pôs-se a subir,segurando-se nas duas cordas, mas a subida eramuito mais difícil do que a descida, sobretudoporque a menina loura estava num de seus mo-mentos malignos e puxava a corda em todas asdireções.

Finalmente alcançou o grande ramo e nelemontou a cavalo. Com a gravata de renda enxu-gou o suor do rosto.

— Ah! Ah! Não conseguiu!

— Por um fio!— Mas eu pensava que você fosse minha ami-

ga!— Pensava! — E recomeçou a abanar-se.— Violante! — irrompeu naquele momento

uma aguda voz feminina. — Com quem você estáfalando?

Na escadaria branca que conduzia à vila apa-recera uma senhora: alta, magra, com uma enor-me saia; usava monóculo. Cosme retraiu-se entreas folhagens, intimidado.

— Com um jovem, ma tante — disse a meni-na —, que nasceu em cima de uma árvore e porencanto não pode pôr os pés na terra.

Cosme, todo vermelho, interrogando-se se amenina falava daquele jeito para gozá-lo na fren-te da tia ou para gozar a tia na frente dele, ou sópara continuar a brincadeira, ou ainda porque nãolhe interessava nem ele nem a tia nem a brinca-deira, via-se examinado pelo monóculo daqueladama, que se aproximava da árvore como se fos-se contemplar um estranho papagaio.

— Uh, mais c’est un des Piovasques, ce jeunehomme, je crois. Viens, Violante.

Cosme fervia de humilhação: tê-lo reconheci-do com aquele ar natural, sem sequer perguntarpor que ele estava ali, e ter chamado imediata-mente de volta a menina, com firmeza mas semseveridade, e Viola que dócil, sem nem ao menosolhar para trás, atendia ao chamado da tia; tudoparecia indicar que ele não contasse nada, quequase nem existia. Assim, aquela tarde extraordi-nária mergulhava numa nuvem de vergonha.

Mas eis que a menina faz um sinal para a tia,esta abaixa a cabeça, a menina lhe diz algo no ou-vido. A tia torna a apontar o monóculo para Cos-me.

— E então, jovem senhor — diz-lhe —, aceitatomar uma taça de chocolate? Assim poderemosconhecer-nos — e dá uma olhadela de soslaio aViola —, visto que já é amigo da família.

Cosme ficou imóvel, olhando tia e sobrinhacom olhos bem abertos. O coração dele batia for-te. Ei-lo convidado pelos de Rodamargem e dePenúmbria, a família mais pedante daquela re-

gião, e a humilhação de momentos antes se trans-formava em revanche e se vingava do pai, sendoacolhido por adversários que sempre o olharamde cima para baixo, e Viola intercedera por ele, eagora era oficialmente aceito como amigo de Vi-ola e teria brincado com ela naquele jardim dife-rente de todos os jardins. Tudo isso experimentouCosme, porém, ao mesmo tempo, um sentimen-to oposto, embora confuso: um sentimento fei-to de timidez, orgulho, solidão, capricho; e nes-se contraste de sentimentos meu irmão agarrou-seao ramo acima dele, trepou, deslocou-se pela par-te mais frondosa, passou para outra árvore e de-sapareceu.

3

FOI UMA TARDE QUE NÃO ACABAVA NUNCA. Devez em quando se ouvia um baque, um sussurro,como é comum nos jardins, e corriam esperandoque fosse ele, que tivesse decidido descer. Nadadisso, vi oscilar o topo da magnólia de flor brancae Cosme aparecer além do muro e saltá-lo.

Fui ao seu encontro na amoreira. Ao me ver,pareceu contrariado; ainda estava zangado comi-go. Sentou-se num dos ramos da amoreira acimade mim e começou a fazer sinais com o espadim,como se não quisesse me dirigir a palavra.

— Dá para subir fácil na amoreira — disse, fa-lando por falar —, não tínhamos subido antes…

Ele continuou a espetar o ramo com a lâmina,depois disse, ácido:

— E então, gostou dos escargots?

Estendi-lhe um cestinho:— Trouxe-lhe dois figos secos, Mino, e um

pedaço de bolo…— Foram eles que mandaram você? — per-

guntou, sempre arredio, mas já olhava para o ces-to engolindo saliva.

— Não, se você soubesse, tive de sair às es-condidas do abade! — disse rápido. — Queriamque fizesse lições a noite inteira para não me co-municar com você, mas o velho adormeceu. Ma-mãe está preocupada que você possa cair e queriaque o procurassem. Mas papai, desde que o per-deu de vista na amoreira, diz que você desceu e semeteu em algum canto para meditar sobre o mal-feito e que não é preciso preocupar-se.

— Não desci em nenhum momento! —exaltou-se meu irmão.

— Você esteve no jardim dos Rodamargem?— Sim, mas sempre de uma árvore para outra,

sem tocar o chão!— Por quê? — perguntei; era a primeira vez

que o escutava enunciar aquela sua regra, mas fa-lara dela como de uma coisa já combinada entre

nós, como se quisesse garantir-me que não atransgredira; tanto que nem me atrevi a pedirmais explicações.

— Sabe — disse, em vez de me responder —,é um lugar que exige dias inteiros para explorá-lo todo, o parque dos Rodamargem! Com árvoresdas florestas da América, só vendo! — Depois selembrou de que estava brigado comigo e não po-dia ter nenhum prazer em me comunicar suas des-cobertas. Cortou, brusco: — Contudo, não o levolá. Doravante você pode passear com Batista oucom o cavaleiro advogado!

— Não, Mino, me leva junto! — falei —, vo-cê não pode ficar bravo comigo por causa dosescargots, eram nojentos, mas eu não aguentavamais ouvi-los gritar!

Cosme estava se empanturrando de bolo.— Vou fazer um teste — disse —, você deve

me demonstrar que está do meu lado e não do de-les.

— Diga-me tudo o que eu tenho de fazer.— Você tem de me conseguir cordas, compri-

das e fortes, pois preciso me amarrar para com-

pletar certas passagens; e também uma roldana,ganchos e pregos grandes…

— Mas o que você vai fazer? Um guindaste?— Temos de transportar muita coisa para ci-

ma, a gente vê depois: mesas, canos…— Quer construir uma cabana em cima da ár-

vore! E onde?— Se for o caso. O lugar vem depois. Por en-

quanto meu endereço é o carvalho oco. Baixarei ocestinho com a corda e você vai pondo tudo aqui-lo que vou precisar.

— Mas por quê? Até parece que vai ficarescondido muito tempo… Não acha que vãoperdoá-lo?

Virou-se com o rosto vermelho.— Que me importa se me perdoam? E além

do mais não estou escondido: não tenho medo deninguém! E você, está com medo de me ajudar?

Eu bem que tinha entendido que meu irmãopor enquanto se recusava a descer, mas fingia nãoentender para obrigá-lo a manifestar-se, a dizer:“Sim, quero ficar nas árvores até a hora da me-renda, ou até o pôr do sol, a hora do jantar ou en-

quanto não ficar escuro”, algo que afinal estabe-lecesse um limite, uma proporção ao seu ato deprotesto. Contudo, não dizia nada disso e eu sen-tia um certo medo.

Chamaram, de baixo. Era papai que gritava:— Cosme! Cosme! — E a seguir, já conven-

cido de que Cosme não responderia: — Biágio!Biágio! — me chamava.

— Vou ver o que estão querendo. Depois ve-nho contar — falei apressado.

Essa premência de informar meu irmão, ad-mito, combinava-se com uma pressa de escapar,por medo de ser surpreendido confabulando comele em cima da amoreira e ter de partilhar a puni-ção que lhe caberia. Mas Cosme não pareceu lerno meu rosto esta sombra de covardia: deixou-meir, não sem demonstrar com um sacudir de om-bros a sua indiferença pelo que papai pudesse terpara lhe dizer.

Quando voltei estava no mesmo lugar; encon-trara um bom assento, num tronco desgalhado, ti-nha o queixo nos joelhos e os braços apertadosem torno das canelas.

— Mino! Mino! — gritei, trepando, sem fôle-go. — Perdoaram você! Esperam por nós! A me-renda está na mesa, papai e mamãe já estão senta-dos e põem as fatias de bolo no prato! Porque temum bolo de creme e chocolate, mas não foi feitopor Batista, fique sabendo! Ela deve estar tranca-da no quarto, espumando bile verde! Eles me pas-saram a mão na cabeça e me disseram: “Vai dizerao Mino que ficamos de bem e não se fala maisnisso!”. Depressa, vem comigo!

Cosme mordiscava uma folha. Não se mexeu.— Bem — falou —, trata de pegar um cober-

tor, escondido, e me traz. Aqui deve fazer frio ànoite.

— Mas você não está pensando em passar anoite aqui!

Ele não respondia, o queixo nos joelhos, mas-tigava uma folha e olhava para a frente. Acompa-nhei seu olhar, que terminava no muro do jardimdos Rodamargem, onde reinava a branca flor damagnólia, e mais alto voava uma águia.

* * *

Desceu a noite. Os empregados iam e vinhamarrumando a mesa; na sala, os candelabros já es-tavam acesos. Da árvore, Cosme devia ver tudo;e o barão Armínio, dirigindo-se às sombras forada janela, gritou: “Se quiser ficar aí, vai morrerde fome!”.

Naquela noite, pela primeira vez sentamos pa-ra jantar sem Cosme. Ele estava montado num ra-mo alto do carvalho ílex, de lado, de forma que sóvíamos suas pernas pendentes. Quer dizer, vería-mos se nos debruçássemos na sacada e perscru-tássemos na sombra, porque a sala estava ilumi-nada e lá fora, escuro.

Até o cavaleiro advogado sentiu-se na obriga-ção de debruçar-se e dizer alguma coisa, mas co-mo de hábito não conseguiu exprimir uma posi-ção sobre o caso. Disse: “Oooh… Madeira resis-tente… Dura cem anos…”, depois algumas pala-vras turcas, talvez o nome da azinheira; em resu-

mo, como se o problema fosse a árvore e não meuirmão.

Ao contrário, nossa irmã Batista deixavatransparecer uma espécie de inveja em relação aCosme, como se, habituada a manter a famíliacom o fôlego suspenso por suas esquisitices, ago-ra tivesse encontrado alguém que a superasse; econtinuava a roer as unhas (roía sem levantar odedo até a boca, mas abaixando-o, com a mão vi-rada, o cotovelo erguido).

A generala lembrou-se de certos soldados desentinela em árvores num acampamento não seimais se na Eslavônia ou na Pomerânia, e de comolograram, avistando o inimigo, evitar uma em-boscada. Esta recordação, repentina, transportou-a, do abandono em que se achava devido à apre-ensão materna, ao clima militar seu favorito, e,como conseguisse finalmente encontrar uma ra-zão para o comportamento do filho, ficou maistranquila e quase orgulhosa. Ninguém ligou paraela, exceto o abade Fauchelafleur, que assentiucom gravidade no relato guerreiro e na analogiaestabelecida por minha mãe, porque se agarraria a

qualquer argumento para considerar natural o queestava ocorrendo e tirar da cabeça responsabilida-des e preocupações.

Após o jantar, íamos cedo para a cama, e nemnaquela noite mudamos de horário. Já então nos-sos pais tinham decidido não dar mais a Cosmea satisfação de ocupar-se dele, esperando que ocansaço, a falta de conforto e o frio da noite odesalojassem. Cada um subiu para seus aposen-tos e, na fachada da casa, as velas acesas abriamolhos de ouro na moldura dos panejamentos. Quenostalgia, que lembrança de calor devia transmi-tir aquela casa tão conhecida e próxima a meu ir-mão que pernoitava no sereno! Debrucei-me najanela do nosso quarto e adivinhei a sombra deleencolhida num oco do carvalho ílex, entre ramo etronco, enrolado na coberta e — acho — com vá-rias voltas de corda para não cair.

A lua levantou-se tarde e resplandecia sobreos galhos. Nos ninhos dormiam as toutinegras,encolhidas como ele. Na noite, ao ar livre, o si-lêncio do parque era atravessado por centenas derumores distantes e por um farfalhar persistente.

De vez em quando chegava um remoto bramido:o mar. Da janela, eu estendia o ouvido a esse en-trecortado respiro e tentava imaginá-lo sem o al-véolo familiar da casa, alguém que se encontra-va só alguns metros mais adiante, mas totalmenteentregue a si, tendo apenas a noite em volta; úni-co objeto amigo ao qual se abraçar, um tronco deárvore de casca áspera, percorrido por minúscu-las galerias sem fim em que dormiam as larvas.

Fui para a cama, mas não quis apagar a vela.Talvez aquela luz na janela do quarto pudessefazer-lhe companhia. Tínhamos um quarto emcomum, com dois leitos de solteiro. Eu olhava odele, intacto, e a escuridão fora da janela em quese achava, e me agitava entre os lençóis perce-bendo quem sabe pela primeira vez o prazer deestar nu, descalço, numa cama quente e limpa e,como se sentisse o desconforto dele amarrado láno cobertor grosseiro, as pernas presas nas polai-nas, sem poder virar-se, os ossos moídos. É umsentimento que não me abandonou desde aquelanoite, a consciência de que sorte significa ter umacama, lençóis limpos, colchão macio! Nesse sen-

timento os meus pensamentos, por tantas horasprojetados na pessoa que era objeto de todas asnossas ânsias, vieram fechar-se sobre mim e as-sim adormeci.

4

NÃO SEI SE É VERDADE o que se lê nos livros,que em tempos antigos um macaco que saísse deRoma pulando de uma árvore para outra podiachegar até a Espanha sem tocar no chão. No meutempo, lugares assim tão cheios de árvores a gentesó encontrava no golfo de Penúmbria, de uma pon-ta à outra, incluindo o vale até a crista dos montes:e por isso mesmo aquelas terras eram famosasalém das fronteiras.

Agora, esses lugares ficaram irreconhecíveis.Tudo começou quando vieram os franceses, der-rubando bosques como se fossem prados que sãoceifados a cada ano e depois renascem. Não volta-ram a crescer. Parecia uma coisa da guerra, de Na-poleão, daqueles tempos: ao contrário, nunca mais

parou. Os morros ficaram tão pelados que, nósque os conhecemos antes, nem acreditávamos.

Naquela época, onde quer que se andasse, ha-via sempre ramos e frondes entre nós e o céu. Aúnica zona de vegetação mais baixa eram os li-moeiros, porém mesmo entre eles erguiam-se tor-tos os pés de figo, que mais no alto enchiam to-do o céu dos hortos, com as copas de folhagempesada, e se não eram figueiras eram cerejeirasfrondosas e escuras ou mais delicados marmelos,pessegueiros, amendoeiras, pereiras novas, pródi-gas ameixeiras e depois sorveiras, alfarrobeiras,quando não era uma amoreira ou uma nogueirabem antiga. Acabando os pomares, começava oolival, cinza prateado, uma nuvem que explodeno meio da encosta. No fundo, amontoava-se a al-deia, entre o porto na parte baixa e o rochedo noalto; e também ali, entre os telhados, um contí-nuo despontar de penachos de plantas: azinheiras,plátanos, também carvalhos, uma vegetação maisdesinteressada e orgulhosa que se desafogava —um ordenado desafogo — na zona onde os nobres

tinham construído as vilas e cercado de muros osseus parques.

Acima dos olivais começava o bosque. Emoutros tempos, os pinheiros deveriam ter domina-do aquelas plagas, pois ainda se infiltravam emlâminas e tufos de bosque morro abaixo até asareias do mar, e igualmente os lariços. Os carva-lhos eram mais frequentes e grossos do que apa-rentam hoje, porque foram as primeiras e maispreciosas vítimas dos machados. Mais acima, ospinheiros cediam caminho aos castanheiros, obosque subia pela montanha e não se distinguiamos confins. Este era o universo de seiva dentrodo qual vivíamos, habitantes de Penúmbria, qua-se sem nos dar conta disso.

O primeiro que parou para pensar foi Cosme.Percebeu que, a vegetação sendo tão densa, elepodia deslocar-se muitas milhas pulando de umramo para outro, sem nunca descer. Às vezes, umpedaço de terra nua o obrigava a enormes voltas,mas ele logo aprendeu todos os itinerários obri-gatórios e media as distâncias não mais segundonossos parâmetros, mas tendo em mente os traça-

dos sinuosos que devia seguir sobre os ramos. E,onde nem com um salto se atingia o galho maispróximo, passou a usar de astúcia; mas contareiisso mais adiante; por enquanto ainda estamos namadrugada em que, ao acordar, encontrou-se noalto de um carvalho ílex, entre a algazarra dospardais, encharcado de orvalho frio, inteiriçado,ossos moídos, cãibras nos braços e nas pernas, efeliz começou a explorar o novo mundo.

Alcançou a última fronteira dos parques, umplátano. Embaixo estendia-se o vale sob um céude coroas de nuvens e fumaça que subia de algumteto de ardósia, casebres ocultos atrás das riban-ceiras como montes de pedras; um céu de folhasdançantes sopradas das figueiras e cerejeiras; e,mais abaixo, as ameixeiras e os pessegueirosabriam-se em ramos encorpados; tudo era visível,também o capim, lâmina por lâmina, mas não acor da terra, recoberta por preguiçosas folhas deabóbora ou pelo derramar-se de alfaces e couvesnos canteiros; e assim era de um lado a outro doV em que se abria o vale, num elevado funil domar.

E essa paisagem era percorrida como uma on-da, não visível e tampouco, a não ser por interva-los, audível, mas o que se ouvia bastava para pro-pagar a inquietude: uma explosão de gritos agu-dos, e depois uma espécie de concerto de tombose talvez também o estalido de um ramo quebra-do, e mais gritos, diferentes, de vozeirões furio-sos, que iam convergindo nos lugares de onde ti-nham vindo os gritos agudos. A seguir nada, umasensação feita de vazio, como o transcorrer de al-go que se devesse aguardar não ali mas noutro lu-gar, e de fato recomeçava aquele conjunto de vo-zes e barulhos, e aqueles locais de provável pro-veniência eram, de um lado e outro do vale, sem-pre onde se moviam ao vento as pequenas folhasdenteadas das cerejeiras. Por isso Cosme, com aparte de sua mente que velava distraída — outraparte dele conhecia e entendia tudo com antece-dência —, formulou este pensamento: as cerejei-ras falam.

Cosme dirigia-se para a cerejeira mais próxi-ma, ou melhor, para uma fila de altas cerejeirascom lindo verde frondoso e carregado de frutos

negros, mas meu irmão ainda não tinha o olhoeducado para distinguir logo entre os ramos oque havia e o que não havia. Ficou ali: primeiroouvia-se um rumor e agora não. Ele estava nos ra-mos mais baixos e sentia todas as cerejas que es-tavam por cima como se pesassem em suas cos-tas, não saberia explicar como, pareciam conver-gir sobre ele, parecia uma árvore com olhos emvez de cerejas. Cosme ergueu o rosto e uma cere-ja muito madura caiu-lhe na testa com um tchac!Semicerrou as pálpebras para olhar para cima,contra a luz (onde o sol crescia), e viu que aquelaem que estava e as árvores vizinhas encontravam-se cheias de meninos empoleirados.

Ao serem descobertos não ficaram mais qui-etos e, com vozes agudas se bem que abafadas,diziam alguma coisa como: “Olhem como é boni-to!”, e, apartando as folhas que tinham pela fren-te, cada um desceu do ramo em que estava paraaquele mais baixo, em direção ao rapaz com o tri-córnio na cabeça. Traziam as cabeças descober-tas ou usavam esfiapados chapéus de palha, al-guns tinham sacos na cabeça; vestiam molambos

com forma de camisa e calças compridas; quemnão estava descalço usava faixas de pano nos pés,e alguns carregavam os tamancos amarrados nopescoço, retirados para trepar na árvore; eram ogrande bando de ladrões de fruta, de quem Cos-me e eu — nisso obedecendo às imposições fami-liares — nos mantínhamos bem distantes. Naque-la manhã, meu irmão parecia não procurar outracoisa, embora nem para ele estivesse claro o quepoderia esperar.

Ficou parado à espera deles enquanto desciamexaminando-o e lançando-lhe, no seu áspero mur-múrio, frases do tipo: “O que este cara anda pro-curando por aqui?”, e cuspindo-lhe alguns caro-ços de cereja ou jogando-lhe as que estavam bi-chadas ou bicadas por um melro, depois de fazê-las girar no cabinho com movimentos de malaba-ristas.

— Uuuh! — gritaram todos juntos. Tinhamvisto o espadim que lhe pendia da traseira. — Es-tão vendo o que ele carrega? — E tome risadas.— O bate-bunda!

Depois fizeram silêncio e sufocavam o risoporque estava para acontecer uma coisa de estou-rar de rir: dois dos pequenos malandros, caladi-nhos, tinham subido para um ramo bem em cimade Cosme e baixavam a boca de um saco sobre acabeça dele (um daqueles sacos imundos que lhesserviam para enfiar o butim e quando estavam va-zios punham na cabeça como capuzes que desci-am pelas costas). Dentro em pouco meu irmão es-taria ensacado sem sequer entender como e pode-riam amarrá-lo como um salame e carregá-lo co-mo um tapete.

Cosme intuiu o perigo, ou talvez nem de lon-ge percebeu algo: sentiu-se provocado por causado espadim e quis desembainhá-lo por uma ques-tão de honra. Brandiu-o no alto, a lâmina tocouo saco, ele o viu, e com um movimento sobresi mesmo arrancou-o das mãos dos pequenos la-drões e o fez voar.

Foi um belo golpe. Os outros fizeram alguns“Oh!” de desapontamento e espanto e, aos doiscompanheiros que se tinham deixado arrancar o

saco, lançaram insultos dialetais como: “Cuiasse!Belinùi!”.

Cosme não teve tempo de desfrutar do suces-so. Uma fúria oposta desencadeou-se do chão; la-dravam, jogavam pedras, gritavam: “Desta veznão nos escapam, bastardinhos ladrões!”, eerguiam-se pontas de forcados. Entre os peque-nos ladrões nos ramos foi um tal de agachar-se,levantar pernas e cotovelos. Havia sido aquelebarulho em torno de Cosme que dera o alarme aosagricultores que estavam alertas.

O ataque fora preparado para valer. Cansadosde ver roubarem a fruta assim que madurava, vá-rios pequenos proprietários e arrendatários do va-le tinham se unido entre si; porque, à tática dosespertalhões de atacar juntos um pomar, saqueá-lo e fugir para outro lado e ali recomeçar, não ha-via resposta possível a não ser adotar tática seme-lhante: isto é, ficar de guarda numa propriedadeonde apareceriam cedo ou tarde e agarrá-los emgrupo. Agora os cães soltos latiam erguendo-seem duas patas nos pés das cerejeiras com bocasque eram só dentes, e no ar agigantavam-se os

forcados de feno. Três ou quatro dos pequenos la-drões saltaram para o chão bem em tempo de fu-rar as costas nas pontas dos tridentes e os fundi-lhos das calças com mordidas de cães, e fugir ber-rando e rompendo a cabeçadas as fileiras dos vi-nhedos. Assim nenhum outro ousou mais descer:estavam apavorados nos galhos, tanto eles quan-to Cosme. Os agricultores já apoiavam as escadasnas cerejeiras e subiam precedidos pelos dentesafiados dos forcados.

Passaram alguns minutos antes que Cosmepercebesse que ficar também apavorado só por-que aquele bando de vagabundos estava com me-do não tinha sentido, bem como não tinha pé nemcabeça a ideia de que eles fossem legais e ele não.O fato de que ficassem ali como tontos já era umaprova: o que esperavam para fugir pelas árvoresao redor? Meu irmão chegara ali desse modo eassim podia ir embora: enfiou o tricórnio na ca-beça, alcançou o ramo que lhe servira de ponte,passou da última cerejeira para uma alfarrobeira,e desta balançou-se para uma ameixeira, e assimpor diante. A garotada, quando o viu circular pe-

los galhos como se estivesse no meio da praça,entendeu que devia imitá-lo, caso contrário iriapenar um bocado antes de reencontrar seu cami-nho; os moleques seguiram-no silenciosos, aga-chados, durante todo o itinerário tortuoso. Entre-tanto, ele subia por uma figueira, cavalgava a se-be da propriedade, caía num pessegueiro, com ra-mos tão frágeis que era preciso passar um de ca-da vez. O pessegueiro só servia para agarrar-se aotronco torto de uma oliveira que despontava deum muro; da oliveira, com um salto se atingia umcarvalho que alongava um sólido braço além datorrente e se podia passar para as árvores do outrolado.

Os homens com os forcados, crentes que destavez tinham nas mãos os ladrões de fruta, viram-nos escapar pelos ares como pássaros.Perseguiram-nos, correndo junto com os cachor-ros que latiam, mas tiveram de contornar a sebe,depois o muro, e além disso naquele ponto do ri-acho não havia pontes, e para encontrar um vauperderam tempo e os moleques já estavam bemlonge em sua corrida.

Corriam como cristãos, com os pés na terra.Nos ramos só ficara meu irmão.

— Onde foi parar aquele passarinho com po-lainas? — perguntavam, não o vendo mais pelafrente. Ergueram o olhar: estava lá trepando nasoliveiras. — Ei, você, pode descer, pois já nãonos pegam!

Ele não desceu, saltou de tronco em tronco,passou de uma oliveira para outra, desapareceude vista entre as densas folhas prateadas.

O bando de pequenos vagabundos, tendo ossacos como capuzes e caniços nas mãos, agoraassaltava algumas cerejeiras no fundo do vale.Trabalhavam com método, debulhando ramo porramo, quando, sobre a planta mais alta, empo-leirado com as pernas cruzadas, arrancando comdois dedos os cabinhos das cerejas e colocando-as no tricórnio apoiado nos joelhos, quem viram?O menino com polainas!

— Ei, de onde é que você vem? — pergun-taram, arrogantes. Mas tinham ficado desnortea-dos, pois parecia que tivesse chegado ali voando.

Meu irmão agora pegava uma a uma as cere-jas no tricórnio e as levava até a boca como sefossem doces. Depois cuspia os caroços com umsopro, atento para que não lhe manchassem o cin-turão.

— Este fresco — disse um deles —, o quequer de nós? Por que vem encher o saco da gente?Por que não come as cerejas do seu jardim? —Mas estavam um pouco intimidados, porque ha-viam percebido que em cima das árvores ele eramais esperto do que todo o grupo.

— Entre esses frescos — disse o outro —, devez em quando nasce por engano algum mais es-perto: vejam a Sinforosa…

Perante o nome misterioso, Cosme apurou oouvido e, sem saber por que, enrubesceu.

— A Sinforosa nos traiu! — disse outro.— Mas era legal, por ser uma fresca ela tam-

bém, e se tivesse tocado o berrante hoje de manhãnão nos teriam agarrado.

— Até um fresco pode ficar com a gente, sequiser ser um dos nossos!

(Cosme entendeu que fresco queria dizer mo-rador das vilas, ou nobre, ou alguém de alta posi-ção.)

— Ouça aqui — disse-lhe um deles —, jogoaberto: se quiser ficar com a gente, as caçadas sãoem conjunto e você nos ensina todos os truquesque sabe.

— E nos deixa entrar no pomar do seu pai! —disse outro. — Uma vez me deram um tiro comsal!

Cosme continuava a ouvir, mas como absortonum pensamento seu. Depois perguntou:

— Digam uma coisa, quem é a Sinforosa?Então todos aqueles esfarrapados no meio das

árvores estouraram de rir, tanto que alguns porpouco não caíam da cerejeira, e outros jogavam-se para trás com as pernas no ramo, e outros ba-lançavam pendurados pelas mãos, sempre debo-chando e berrando. Com aquele barulho, é claro,voltaram a ter os perseguidores nos calcanhares.Ou melhor, já devia estar ali o batalhão com os

cachorros, porque se levantou um barulho terrívele lá estavam eles com os forcados. Só que des-ta vez, vacinados pela derrota anterior, antes demais nada ocuparam as árvores em redor, subin-do nelas com escadas especiais, e dali com triden-tes e ancinhos os circundavam. No chão, os cães,em meio àquele derrame de homens em cima dasárvores, não entenderam logo para onde deviamlançar-se e ficaram espalhados latindo com o fo-cinho para os ares. Assim, os pequenos ladrõespuderam descer rápido, fugir cada um para o seulado, entre os cães desorientados e, se alguns le-varam uma mordida numa nádega, uma bordoadaou uma pedrada, a maioria escapou ilesa.

Cosme ficou sozinho na árvore.— Desce! — gritavam-lhe os outros enquanto

fugiam. — Qual é? Está dormindo? Pula enquan-to o caminho está livre!

Mas ele, com os joelhos fincados no ramo, de-sembainhou o espadim. Das árvores vizinhas, osagricultores apontavam os forcados com bastõesamarrados na ponta, e Cosme, agitando a lâmina,

os mantinha afastados, até que lhe apontaram umem pleno peito, pregando-o no tronco.

— Pare! — gritou uma voz. — É o baronetede Chuvasco! O que faz por aqui, patrãozinho?Como é que se misturou com aquela pandilha?

Cosme reconheceu Chuá da Banheira, umempregado de papai.

Os forcados se retraíram. Muitos do grupo ti-raram o chapéu. Também meu irmão levantoucom dois dedos o tricórnio da cabeça e inclinou-se.

— Ei, vocês aí embaixo, prendam os cães! —gritaram.

— Façam-no descer! Pode descer, patrãozi-nho, mas cuidado, pois a árvore é alta! Espere,vamos pôr uma escada! Depois eu o levarei paracasa!

— Não, obrigado, muito obrigado — dissemeu irmão. — Não se incomodem, sei o meu ca-minho, isso é comigo!

Desapareceu atrás do tronco e reapareceunum outro ramo, girou outra vez atrás do troncoe reapareceu num ramo mais alto, voltou a apare-

cer atrás do tronco e se viram só os pés num ramomais alto, porque em cima havia grossas frondes,e os pés saltaram, e não se viu mais nada.

— Onde foi parar? — indagavam os homens,e não sabiam para onde olhar, para cima ou parabaixo.

— Ei-lo! — Estava em cima de outra árvore,distante, e reapareceu.

— Lá está! — Estava numa outra, ondulavacomo se fosse levado pelo vento e deu um salto.

— Caiu! Não! Olha ele lá! — Só se distingui-am, sobre os recortes do verde, o tricórnio e o chi-nó.

— Mas que espécie de patrão você tem? —perguntaram os homens a Chuá da Banheira. — Égente ou animal selvagem? Ou é o diabo em pes-soa?

Chuá da Banheira perdera a voz. Benzeu-se.Ouviu-se o canto de Cosme, uma espécie de

grito solfejado.— Ó a Sin-fo-ro-saaa…!

5

A SINFOROSA: POUCO A POUCO, dos discursosdos pequenos ladrões Cosme apreendeu muitascoisas a propósito dessa personagem. Com aquelenome chamavam uma menina das vilas, que pas-seava num cavalinho branco e se tornara amigados esfarrapados, e durante algum tempo os pro-tegera, e também, prepotente como era, comanda-ra. No cavalinho branco, galopava pelas estradase atalhos, e, quando via fruta madura em pomaresnão vigiados, avisava-os, acompanhando os assal-tos deles a cavalo como um oficial. Carregava pre-so ao pescoço um chifre de caça; enquanto elessaqueavam amendoeiras ou pereiras, corria no ca-valinho para cima e para baixo pelas encostas, deonde se dominava o campo, e, assim que via mo-vimentos suspeitos de patrões ou camponeses que

podiam descobrir os ladrões e cair-lhes em cima,soprava o berrante. Ao escutar o alerta, os mole-ques pulavam das árvores e corriam; deste modojamais foram apanhados, enquanto a menina fica-ra junto deles.

O que acontecera depois era mais difícil deentender: aquela “traição” que Sinforosa pratica-ra em detrimento deles parecia ter sido atraí-losà sua vila para comer fruta e depois fazê-los apa-nhar dos empregados; outro problema parecia tersido haver privilegiado um deles, um tal de Boni-tão, que por isso era ainda alvo de provocações,e ao mesmo tempo um outro, um certo Hugão, etê-los jogado um contra o outro; e que justamen-te aquela surra dos empregados não tivesse acon-tecido por ocasião de um roubo de fruta mas deuma expedição dos dois favoritos ciumentos, quefinalmente haviam se aliado contra ela; e se fala-va também de certos bolos que ela prometera vá-rias vezes e afinal lhes dera mas preparados comóleo de rícino, razão pela qual tiveram cólicas du-rante uma semana. Qualquer desses episódios ouno gênero destes ou todos eles juntos haviam pro-

vocado uma ruptura entre Sinforosa e o bando, eagora falavam dela com rancor, mas ao mesmotempo lamentavam a perda.

Cosme ouvia tudo isso muito atento, concor-dando como se cada detalhe se recompusesse nu-ma imagem que lhe fosse familiar, e no finaldecidiu-se a perguntar:

— Mas em que vila mora, esta Sinforosa?— Como, quer dizer que não a conhece? Se

vocês são vizinhos! A Sinforosa da vila de Roda-margem!

Certamente Cosme não precisava daquelaconfirmação para ter certeza de que a amiga dosvagabundos era Viola, a menina do balanço. Era— creio eu — exatamente pelo fato de ela ter-lhe dito que conhecia todos os ladrões de frutados arredores que ele saíra logo à procura dobando. Contudo, a partir daquele momento, a in-quietação que dele se apoderara, embora indeter-minada, tornou-se mais forte. Gostaria de che-fiar o bando para saquear as plantações da vilade Rodamargem, ou então colocar-se a serviçodela contra o grupo, talvez incitando-os antes a

chateá-la para depois poder defendê-la, ou aindapraticar bravatas que chegassem aos ouvidos de-la; e no meio dessas proposições seguia cada vezcom menor interesse o bando e, quando eles des-ciam das árvores, ficava sozinho e um véu de me-lancolia cobria seu rosto, como as nuvens cobremo sol.

Depois saltava de improviso e, ágil feito umgato, pendurava-se nos galhos e passeava pelospomares e jardins, cantarolando qualquer coisaentre os dentes, um cantarolar nervoso, quasemudo, os olhos fixos adiante parecendo não vernada, e se mantendo em equilíbrio por instintopróprio como os gatos.

Assim enlevado pudemos vê-lo passar váriasvezes nos ramos do nosso jardim. “Está ali! Estálá!”, começávamos a gritar, porque então, o quequer que fizéssemos, era sempre ele a nossa pre-ocupação, e contávamos as horas, os dias em queestava nas árvores, e papai dizia: “Está louco!Possuído pelo demônio!”, e brigava com o abadeFauchelafleur: “O único jeito é exorcizá- -lo! Oque está esperando, o senhor, estou falando com o

senhor, l’abbé, por que continua aí parado?! Temo diabo no corpo, meu filho, entendeu, sacré nomde Dieu!”.

O abade parecia despertar de repente, a pa-lavra diabo parecia provocar-lhe na mente umaprecisa concatenação de pensamentos, e começa-va um discurso teológico muito complicado sobrecomo devia ser entendida corretamente a presen-ça do demônio, e não conseguíamos entender sequeria contradizer papai ou falar de forma gené-rica: em resumo, não se pronunciava sobre o fa-to de que uma relação entre o diabo e meu irmãotivesse de ser considerada possível ou estava ex-cluída a priori.

O barão perdia a paciência, o abade perdia ofio, eu já estava chateado. Ao contrário, em ma-mãe, o estado de ansiedade materna, de sentimen-to fluido que domina tudo, se consolidara, comonela costumava ocorrer com qualquer sentimen-to, em decisões práticas e busca de instrumentosadequados, como, aliás, devem ser resolvidas aspreocupações de um general. Retirara do baú umaluneta de campanha, comprida, com tripé; ajus-

tava o olho e assim passava as horas no terraçoda vila, regulando continuamente as lentes paramanter em foco o jovem em meio às folhagens,mesmo quando teríamos jurado que estava forade alcance.

“Dá para vê-lo ainda?”, perguntava papai dojardim, indo para a frente e para trás sob as árvo-res, e não conseguia distinguir Cosme, a não serquando passava em cima da cabeça dele. A ge-nerala fazia sinais afirmativos e ao mesmo tempopara ficarmos calados, que não a perturbássemos,como se acompanhasse movimentos de tropa nu-ma determinada altura. Era evidente que não ovia de jeito nenhum, mas se convencera, quemsabe por quê, de que deveria reaparecer naque-le ponto e em nenhum outro, e mantinha a lunetaapontada. De vez em quando devia admitir parasi própria que havia se enganado, e então tiravao olho da lente e começava a examinar um ma-pa cadastral que conservava aberto sobre os joe-lhos, com uma das mãos na boca em atitude pen-sativa e a outra que acompanhava os hieroglifosdo mapa, até definir o ponto que o filho deveria

ter atingido, e, calculada a angulação, apontava aluneta para qualquer topo de árvore naquele marde folhas, punha lentamente em foco as lentes, equando lhe aparecia nos lábios um trêmulo sorri-so compreendíamos que o vira, que ele estava re-almente ali!

Então, pegava certas bandeirinhas coloridasque tinha ao lado do banquinho e sacudia uma de-pois da outra com movimentos decididos, ritma-dos, como mensagens de uma linguagem conven-cional. (Senti um certo despeito, pois não sabiaque mamãe possuía aquelas bandeirinhas e sou-besse manejá-las, e certamente teria sido bom quenos tivesse ensinado a brincar de bandeirinhascom ela, sobretudo antes, quando éramos meno-res os dois; mas mamãe nunca fazia as coisas debrincadeira, e agora era tarde.)

Devo dizer que, apesar de todo o seu equipa-mento de batalha, continuava a ser mãe do mes-mo modo, com o coração aflito e o lenço amas-sado na mão, porém poder-se-ia dizer que fazero papel de generala a descansasse, ou que viveressa apreensão nos trajes de generala em vez dos

de uma simples mãe a impedisse de desmoronar,justamente por ser uma mulher delicada, que co-mo única defesa tinha aquele estilo militar herda-do dos Von Kurtewitz.

Estava ali agitando uma das suas bandeiri-nhas, observando com a luneta, e eis que se lheilumina todo o rosto e ri. Entendemos que Cosmelhe respondera. Como, não sei, talvez sacudindoo chapéu ou podando um ramo. O certo é que apartir daí mamãe mudou, não ficou mais apreen-siva como antes e mesmo que seu destino de mãefosse tão diferente do de qualquer outra, com umfilho tão estranho e perdido para a vida afetuosanormal, acabou sendo a primeira a aceitar a ex-centricidade de Cosme, como se estivesse gratifi-cada por aquelas saudações que desde então, devez em quando e de forma imprevisível, lhe man-dava, por meio daquelas silenciosas mensagensque trocavam.

O curioso foi que mamãe não teve ilusões deque Cosme, havendo lhe enviado uma saudação,se dispusesse a pôr fim à sua fuga e voltasse aonosso convívio. Pelo contrário, papai vivia per-

petuamente nesse estado de ânimo e toda novida-de que dissesse respeito a Cosme, por menor quefosse, o fazia cismar: “Ah, sim? Vocês o viram?Voltará?”. Mas mamãe, talvez a mais distante de-le, parecia a única que conseguia aceitá-lo comoera, exatamente porque não buscava uma explica-ção.

Mas voltemos àquele dia. Por trás de mamãeassomou por um momento Batista, que não apa-recia nunca, e com expressão suave estendia umprato com alguma papa e levantava uma colherzi-nha: “Cosme… Quer?”. Levou uma bofetada dopai e voltou para casa. Quem sabe que monstru-osa gororoba havia preparado. Nosso irmão desa-parecera.

Eu estava louco para segui-lo, sobretudo ago-ra, sabendo que ele participava das ações daquelebando de pequenos mendigos e parecia ter meaberto as portas de um novo reino, a ser olhadonão mais com medrosa desconfiança mas com so-lidário entusiasmo. Eu me movia entre o terraçoe uma água-furtada alta de onde conseguia pai-rar sobre as copas das árvores e de lá, mais com

o ouvido do que com a vista, acompanhava asexplosões de algazarra do bando pelos pomares,via agitarem-se as extremidades das cerejeiras, devez em quando aflorar certa mão que testava e ar-rancava, uma cabeça despenteada ou encapuzadacom um saco, e entre as vozes distinguia tambéma de Cosme e me perguntava: Mas como é que eleconsegue ficar lá em cima? Agora mesmo estavaaqui no parque! Move-se mais rápido que um es-quilo?

Estavam sobre as rubras ameixeiras acima doReservatório Grande, lembro, quando se ouviu oberrante. Também eu o escutei, mas, não saben-do do que se tratava, não liguei. Eles, não! Meuirmão contou que ficaram mudos, e perante a sur-presa de tornar a ouvir o chifre parecia que não serecordavam que era um sinal de alarme, mas seperguntavam apenas se haviam escutado bem, seera de novo Sinforosa que circulava pelas estra-das no cavalo anão para avisá-los do perigo. Numpiscar de olhos sumiram do pomar, mas não fu-giam por fugir, escapavam para procurá-la, paraalcançá-la.

Somente Cosme ficou ali, o rosto vermelhocomo uma chama. Mal viu correr os moleques eentendeu que iam ao encontro dela, começou adar saltos pelos ramos arriscando o pescoço a ca-da passo.

Viola estava na curva de uma ladeira, parada,uma das mãos com as rédeas pousadas na crinado cavalinho, a outra que brandia o chicote. Olha-va a garotada de cima a baixo e levava a pontado chicote à boca, dando pequenas mordidas. Ovestido era azul, o chifre era dourado, preso aopescoço por uma corrente. Os garotos tinham pa-rado todos juntos e também eles mordiscavam,ameixas ou dedos, ou cicatrizes que tinham nasmãos ou nos braços, ou pontas dos sacos. E poucoa pouco, de suas bocas que mordiscavam, quaseconstrangidos a vencer um mal-estar e não mo-vidos por um verdadeiro sentimento, quem sabedesejosos de ser contrariados, começaram a emi-tir frases quase sem voz, que soavam em cadênciacomo se procurassem cantar:

— O que você… veio fazer… Sinforosa…agora volta… não é mais… nossa companheira…ah, ah, ah… ah, tratante…

Um farfalhar nos ramos e eis: numa alta fi-gueira aparece a cabeça de Cosme, entre folhae folha, ofegante. Ela, de baixo para alto, comaquele chicote na mão, olhava para ele e para ogrupo, achatando todos num mesmo olhar. Cos-me não resistiu; ainda com a língua de fora, desa-bafou:

— Sabe que ainda não desci das árvores desdeaquele dia?

As tarefas que se baseiam numa tenacidadeinterior devem permanecer mudas e obscuras; porpouco que alguém as anuncie ou delas se van-glorie, tudo parece supérfluo, sem sentido ou atémesquinho. Assim, tão logo meu irmão pronunci-ou aquelas palavras, arrependeu-se de tê-las dito,e não lhe importava mais nada, e teve até vontadede descer e acabar com aquilo. Ainda mais quan-do Viola afastou lentamente o chicote da boca edisse, em tom gentil:

— É mesmo?… Que tonto!

Das bocas daqueles piolhentos saiu uma ri-sada em forma de mugido, antes mesmo que seabrissem e explodissem em berros animalescos, eCosme lá na figueira teve um tal sobressalto deraiva que o pé de figo, sendo de madeira traiço-eira, não aguentou, um galho quebrou sob os pésdele. Cosme caiu como uma pedra.

Tombou de braços abertos, não se sustentou.Foi aquela a única vez, para dizer a verdade, du-rante a sua permanência nas árvores, que não teveforça e instinto para manter-se agarrado. Aconte-ce que uma aba do fraque enrolou-se num ramobaixo: a poucos palmos do chão, Cosmeencontrou-se pendurado no ar com a cabeça parabaixo.

O sangue na cabeça lhe parecia pressionadopela mesma força do vermelho da vergonha. Eseu primeiro pensamento ao abrir os olhos aocontrário e vendo de ponta-cabeça os molequesque urravam, agora atingidos por uma febre geralde cambalhotas em que reapareciam um por umna posição normal como se estivessem pendura-dos numa terra à beira do abismo, e a menina lou-

ra esvoaçante no cavalinho empinado, só pensouque aquela fora a primeira e última vez em quehavia falado de sua permanência em cima das ár-vores.

Com um salto dos seus agarrou-se ao galho evoltou a se empoleirar. Viola, mantendo o cava-lo outra vez sob controle, agora parecia não ternotado nada do que acontecera. Cosme esqueceupor um momento seu desconcerto. A menina le-vou o berrante aos lábios e emitiu a densa no-ta de alarme. Com aquele som os moleques (aquem — comentou mais tarde Cosme — a pre-sença de Viola provocava uma estranha excitaçãocomo de lebres à luz do luar) saíram em dispa-rada. Deixaram-se levar assim, como por instin-to; mesmo sabendo que ela estava brincando, elesaceitaram o jogo, e corriam ladeira abaixo imitan-do o som do chifre, atrás dela, que galopava nocavalinho de pernas curtas.

E desciam correndo às cegas, de modo queàs vezes perdiam-na de vista. Afastara-se, saírada estrada, deixando-os espalhados. Por onde se-guir? Galopava morro abaixo pelos olivais que

desciam rumo ao vale num suave degradar deprados e procurava a oliveira na qual naquele mo-mento se agitava Cosme, dava um galope ao re-dor, e tornava a fugir. Depois reaparecia no pé deoutra oliveira, enquanto entre as copas se agarra-va meu irmão. E assim, seguindo linhas tortas co-mo os ramos das oliveiras, desciam juntos para ovale.

Os pequenos ladrões, quando se deram conta,e perceberam o namorico daqueles dois do galhoà sela, começaram a assobiar todos juntos, um sil-var maligno de troça. E, aumentando o volume doassobio, afastavam-se em direção à Porta das Al-caparras.

A menina e meu irmão ficaram sozinhosperseguindo-se no olival, mas com pesar Cosmenotou que, sumindo o bando, a alegria de Violacom aquele jogo tendia a diminuir, como se jáestivesse para ceder ao tédio. E lhe veio a sus-peita de que ela fizesse tudo só para provocá-los,mas ao mesmo tempo também a esperança de queagora fizesse de propósito para enfurecê-lo: o queé certo é que precisava sempre provocar alguém

para fazer-se mais preciosa. ( Todos estes senti-mentos foram entendidos por Cosme mais tarde:na realidade, trepava por aquelas ásperas cascassem perceber nada, como um tonto, imagino.)

Ao contornar um morro, eis que se levantauma pequena mas violenta rajada de bolotas. Amenina protege a cabeça atrás do pescoço do ca-valinho e foge; meu irmão, num cotovelo de ga-lho bem à vista, permanece sob a mira. Mas osseixos chegam lá demasiado oblíquos para fazermal, excetuando-se alguns na testa ou nas ore-lhas. Assobiam e riem, aqueles endiabrados, gri-tam: “Sin-fo-ro-sa é hor-ro-ro-sa…”, e fogem.

Agora os moleques atingiram a Porta das Al-caparras, coberta de cascatas verdes de alcaparrasao longo dos muros. Dos casebres em torno vemuma gritaria de mães. Mas esses são meninos cu-jas mães, à noite, não gritam para fazê-los retor-nar a casa, e sim por terem voltado, porque vêmcomer em casa em vez de ir procurar comida emoutros cantos. Ao redor da Porta das Alcapar-ras, em casinhas e barracas com estacas, carro-ções cambaleantes, tendas, amontoava-se a gente

mais pobre de Penúmbria, tão pobre que era man-tida fora das portas da cidade e afastada dos cam-pos, gente expulsa em bandos de terras e aldei-as distantes, oprimida pela carestia e pela misériaque se expandia em todos os lugares. Era hora dopôr do sol, e mulheres despenteadas com crian-ças no colo abanavam pequenos fornos fumacen-tos, e mendigos espalhavam-se exibindo as feri-das, outros jogando dados com berros ensurdece-dores. Os companheiros do bando da fruta agorase misturavam àquela fumaça de fritura e àquelasbrigas, levavam tabefes das mães, lutavam entresi rolando pela poeira. E seus trapos já tinham as-sumido a cor de todos os outros trapos, e sua ale-gria de pás saros misturada naquele amontoadohumano se desfazia numa densa insipidez. Tan-to que, ante a aparição da menina loura a galo-pe e de Cosme nas árvores em torno, só ergue-ram os olhos intimidados, retiraram-se, trataramde perder-se entre a poeira e a fumaça dos foga-reiros, como se entre eles de repente se tivesse er-guido uma muralha.

Tudo isso para os dois foi um momento, umpiscar de olhos. Agora Viola deixara para trása fumaça das barracas que se misturava com assombras da noite e os gritos de mulheres e crian-ças, e corria entre os pinheiros da praia.

Lá estava o mar. Ouvia-se rolar nas pedras.Tudo escuro. Um escorregar mais metálico: erao cavalinho que corria lançando faíscas contra aspedrinhas. De um baixo pinheiro retorcido, meuirmão observava a sombra clara da menina lou-ra atravessar a praia. Uma onda recém-formadaelevou-se do mar negro, ergueu-se dobrando-sesobre si mesma, caminhava para a frente todabranca, rompia-se, e a sombra do cavalo com amenina a tocara em grande velocidade e, no pi-nheiro, um espirro branco de água salgada mo-lhou o rosto de Cosme.

6

AQUELAS PRIMEIRAS JORNADAS DE COSME nasárvores não tinham objetivos ou programas, maseram dominadas apenas pelo desejo de conhecer eapropriar-se do seu reino. Gostaria de tê-lo explo-rado logo até as fronteiras, estudar todas as pos-sibilidades que ele lhe oferecia, descobri-lo plan-ta por planta e ramo por ramo. Explico: ele gos-taria, mas de fato nós o víamos passar continua-mente sobre nossas cabeças, com aquela expressãoatarefada e apressadíssima dos animais selvagens,que talvez observemos neles mesmo quando aga-chados, mas sempre como se estivessem prestes adar um bote.

Por que voltava ao nosso parque? Ao vê-lo pu-lar de um plátano a uma azinheira no raio da lunetade mamãe, éramos tentados a dizer que a força que

o movia, a sua paixão dominante era sempreaquela polêmica conosco, provocar-nos pena ouraiva. (Digo nós porque ainda não conseguiradescobrir o que ele pensava de mim: quando pre-cisava de algo parecia que a aliança comigo nãopodia ser posta em dúvida; outras vezes, passavapor cima de mim como se não me visse.)

Ao contrário, aqui estava só de passagem. Erao muro da magnólia que o atraía, era lá que o vía-mos desaparecer sempre, mesmo quando a meni-na não se levantara ou quando o enxame de go-vernantas e tias a obrigava a recolher-se. No jar-dim dos Rodamargem, os galhos se lançavam co-mo trombas de extraordinários animais, e no chãoabriam-se estrelas de folhas rendilhadas pela ver-de pele dos répteis, e ondeavam bambus amare-los e leves com barulho de papel. Da árvore maisalta, Cosme, ansioso por aproveitar ao máximoaquele verde diferente e a luz especial que ne-le transparecia e o silêncio particular, lançava-secom a cabeça para baixo, e o jardim de ponta-ca-beça se tornava floresta, uma floresta fora da ter-ra, um mundo novo.

Então surgia Viola. Cosme a descobria de re-pente já no balanço que tomava impulso, ou entãona sela do cavalo anão, ou escutava, vindo dofundo do jardim, o crescendo do berrante.

Os marqueses de Rodamargem jamais se pre-ocuparam com as aventuras da menina. Enquantoandava a pé, tinha todas as tias atrás dela; assimque montava, ficava livre como o ar, pois as tiasnão andavam a cavalo e não podiam ver para on-de ia. E também a intimidade dela com aquelesvagabundos era uma ideia demasiado inconcebí-vel para passar-lhes pela cabeça. Porém, logo sederam conta daquele baronete que se penduravanos galhos, e estavam alertas, embora com aresde superior desdém.

Ao contrário, papai juntava a amargura peladesobediência de Cosme com sua aversão pelosRodamargem, como se quisesse culpá-los,atribuindo-lhes responsabilidades pelas incursõesno jardim, imaginando que o encobrissem e o en-corajassem naquele jogo rebelde. De repente, to-mou a decisão de fazer uma excursão para captu-rar Cosme, não em nossos domínios, mas justa-

mente quando estivesse no jardim dos Rodamar-gem. Como se pretendesse sublinhar tal intençãoagressiva em relação aos vizinhos, não quis serele a conduzir a batida, a apresentar-se em pessoaaos Rodamargem pedindo que lhe restituíssem ofilho — o que, por mais injustificável que fos-se, estaria num nível digno, entre nobres senhores—, mas enviou um grupo de empregados sob asordens do cavaleiro advogado Eneias Sílvio Car-rega.

Chegaram os servidores armados de escadas ecordas aos portões dos Rodamargem. O cavalei-ro advogado, vestindo chimarra e fez, gaguejouse lhe permitiam entrar e muitas desculpas. Numprimeiro momento, os empregados dos Rodamar-gem pensaram que tivessem ido podar algumasplantas do nosso lado que entravam no deles; de-pois, ao ouvir as meias palavras ditas pelo cava-leiro: “Laçam… Laçam…”, olhando entre os ra-mos com o nariz para cima e dando corridinhasdesajeitadas, perguntaram:

— Mas o que deixaram fugir: um papagaio?

— O filho, o primogênito, o rebento — disseo cavaleiro advogado às pressas e, depois deapoiar uma escada num castanheiro-da-índia, co-meçou a subir ele próprio.

Entre os galhos via-se Cosme, que balançavaas pernas como se não fosse com ele. Viola, tam-bém como se não tivesse nada a ver com aquilo,caminhava pelos canteiros brincando com um arode metal. Os empregados estendiam ao cavaleiroadvogado cordas que não dava para imaginar co-mo prenderiam meu irmão. Mas Cosme, antesque o cavaleiro chegasse ao meio da escada, jáestava em cima de outra planta. O cavaleiro des-locou a escada, o que repetiu quatro ou cinco ve-zes, e em cada movimento estragava um cantei-ro, enquanto Cosme com dois pulos passava paraa árvore vizinha. Viola viu-se de repente cercadapor tias e suas ajudantes, levada para dentro a fimde não presenciar aquele alvoroço. Cosme que-brou um galho e, brandindo-o com as duas mãos,deu uma bordoada sibilante no vazio.

— Caros senhores, não poderiam dirigir-se aovosso espaçoso parque para continuar esta caça-

da? — disse o marquês de Rodamargem apare-cendo solenemente na escadaria da vila, de rou-pão e barrete, o que o tornava estranhamente pa-recido com o cavaleiro advogado. — Falo con-vosco, toda a família Chuvasco de Rondó! — efez um amplo gesto circular que abrangia o baro-nete na árvore, o tio natural, os servidores e, alémdo muro, tudo o que era nosso debaixo do sol.

Nessa altura, Eneias Sílvio Carrega mudou detom. Trotou para o lado do marquês e, como senão fosse com ele, gaguejando, começou a falar-lhe dos jogos d’água do tanque situado diante de-les e de como lhe viera a ideia de um esguichobem mais alto e de efeito, que também poderiaservir, trocando-se uma roseta, para aguar os pra-dos. Essa era uma nova prova de quão imprevisí-vel e não confiável era a índole do nosso tio na-tural: fora mandado ali pelo barão com uma tare-fa precisa e com uma intenção de firme polêmi-ca com os vizinhos; que sentido havia em conver-sar amigavelmente com o marquês, como se qui-sesse agradecer-lhe? Ainda mais que tais quali-dades de conversador o cavaleiro advogado só as

demonstrava quando lhe era conveniente e justa-mente quando se confiava em seu caráter teimo-so. E o melhor foi que o marquês lhe deu corda,fez-lhe perguntas e o levou junto para examinartodos os tanques e repuxos, vestidos iguais, am-bos com aqueles longos casacões, imensos, qua-se da mesma altura, o que daria para confundi-los, e atrás o regimento de criados nossos e deles,alguns com escadas nas costas, que não sabiammais o que fazer.

Enquanto isso, Cosme saltava impassível pe-las árvores vizinhas às janelas da vila, tentandodescobrir atrás das cortinas o quarto onde haviamencerrado Viola. Finalmente descobriu-a e lançouuma bolota contra os cortinados.

Abriu-se a janela, surgiu o rosto da meninaloura, que disse:

— Por sua culpa estou trancada aqui — fe-chou de novo, puxou a cortina.

Cosme ficou desesperado.

Quando meu irmão tinha ataques, havia razãopara preocupar-se. Nós o víamos correr (se é quea palavra correr tem sentido fora da superfícieterrestre e referida a um mundo de sustentáculosirregulares em diversas alturas, tendo o vazio nomeio) e parecia que de um momento para o outrolhe faltaria pé e ele cairia, coisa que jamais acon-teceu. Saltava, movia passos rapidíssimos sobreum galho oblíquo, pendurava-se e erguia-se derepente num ramo superior, e em quatro ou cincodesses precários zigue-zagues já desaparecera.

Onde andava? Daquela vez correu a bom cor-rer, das azinheiras às oliveiras e às faias, e chegouao bosque. Parou sem fôlego. Debaixo deleestendia-se um prado. O vento baixo movia umaonda, pelos tufos densos de capim, numa cons-tante alteração de nuances de verde. Esvoaçavamimpalpáveis penugens das esferas daquelas floreschamadas dentes-de-leão. No meio erguia-se umpinheiro isolado, inalcançável, com pinhas oblon-gas. Os pica-paus cinzentos, pássaros rapidíssi-mos, pousavam nas copas cheias de agulhas, emponta, em posições enviesadas, alguns revirados

com as caudas para cima e o bico para baixo, bi-cando lagartas e pinhas.

Aquela necessidade de entrar num elementodifícil de ser possuído, que pressionara meu ir-mão a tornar seus os caminhos das árvores, agoraruminava dentro dele, insatisfeita, e lhe comuni-cava a ânsia de uma penetração menor, de umarelação que o unisse a todas as folhas e lascas epenas e voos. Tratava-se daquele amor que tem ohomem caçador pelo que é vivo e não sabe expri-mir a não ser apontando-lhe o fuzil; Cosme ain-da não sabia reconhecê-lo e tratava de desabafá-lo insistindo na sua exploração.

O bosque era denso, impraticável. Cosme pre-cisava abrir caminho a golpes de espadim, e pou-co a pouco esquecia todas as obsessões, inteira-mente preso pelos problemas que devia enfren-tar e por um medo (que não queria reconhecermas existia) de estar afastando-se muito dos lo-cais familiares. Assim, abrindo espaço no intrin-cado, chegou a um ponto em que viu dois olhosque o fixavam, amarelos, entre as folhas, bem nasua frente. Cosme ergueu o espadim, afastou um

ramo, deixou-o voltar de mansinho ao seu lugar.Respirou aliviado, riu do temor que sentira; tinhavisto de quem eram aqueles olhos amarelos, eramde um gato.

A imagem do gato, entrevista ao deslocar oramo, permanecia nítida em sua mente, e apósum momento Cosme estava de novo tremendo demedo. Porque aquele gato, em tudo igual a umgato, era um gato terrível, espantoso, de fazer me-do só em vê-lo. Não dá para dizer o que tivesse detão espantoso: era uma espécie de gato-do-mato,maior que todos os gatos-do-mato, mas isso nãoqueria dizer nada, era terrível nos bigodes agudoscomo dardos de porco-espinho, no bafo que sesentia quase mais com a vista do que com o ouvi-do sair de uma dupla fila de dentes afiados comoganchos; nas orelhas que eram algo mais do queaguçadas, eram duas chamas de tensão, guarneci-das por uma penugem falsamente tênue; no pelo,todo eriçado, que exibia em volta do pescoço re-traído um colar claro, e dali dividiam-se as estriasque fremiam nos flancos como acariciando-se; nacauda firme, numa pose tão artificial que parecia

insustentável; a tudo isso que Cosme vira num se-gundo atrás do ramo logo abandonado para voltarao próprio lugar acrescentava-se aquilo que nãotivera tempo de ver mas imaginava: o tufo exa-gerado de pelo que em volta das patas ocultavaa força lancinante das garras, prontas a jogar-secontra ele; e o que via ainda: íris amarelas que ofixavam entre as folhas rodando em torno da pu-pila negra; e o que sentia: o rosnar sempre maispesado e intenso; tudo isso o fez entender que seencontrava diante do mais feroz gato selvagemdo bosque.

Silenciavam todos os chilreios e voos. Saltou,o gato-do-mato, mas não contra o rapaz, um saltoquase vertical que mais surpreendeu do que as-sustou Cosme. O susto veio depois, ao ver o feli-no num ramo exatamente em cima de sua cabeça.Estava lá, encolhido, via sua barriga com o longopelo quase branco, as patas tesas com as garras namadeira, enquanto arqueava o dorso e fazia fff…e certamente se preparava para lançar-se sobreele. Cosme, com um movimento perfeito que nãofoi sequer pensado, passou para um galho mais

baixo. Fff… fff… fez o gato selvagem, e a cadafff… dava um pulo, para lá e para cá, e terminouno ramo sobre Cosme. Meu irmão repetiu a ma-nobra, mas acabou montado no ramo mais baixodaquela faia. Embaixo, havia uma certa distânciapara alcançar o chão, mas não tanto que não fossepreferível saltar em vez de esperar o que ia fazero animal, assim que terminasse de emitir aqueledilacerante som entre o sopro e o grunhido.

Cosme ergueu uma perna, como se fosse parapular, mas como nele se combatiam dois impul-sos — o natural de colocar-se a salvo e o da obs-tinação de não descer, ainda que com o risco davida — apertou ao mesmo tempo a coxa e os jo-elhos no galho; pareceu ao gato que aquele era omomento de lançar-se, enquanto o jovem estavaali oscilante; voou em cima dele numa confusãode pelos, garras eretas e bafo; Cosme não soubefazer nada melhor que fechar os olhos e avançaro espadim, um movimento idiota que o gato evi-tou e caiu-lhe na cabeça, seguro de arrastá-lo pa-ra o chão debaixo das garras. Uma unhada atingiuCosme na bochecha, mas em vez de cair, colado

aos galhos como estava com os joelhos, alongou-se deitando sobre o galho. Exatamente o contrá-rio do que esperava o gato, o qual se viu projeta-do de lado, caindo ele. Tentou segurar-se, enfiaras garras no tronco, e naquele salto girou sobresi mesmo no ar; um segundo, o quanto bastou aCosme, num imprevisto impulso de vitória, paradar-lhe uma estocada profunda na barriga e enfiá-lo no espadim.

Estava salvo, imundo de sangue, com a ferametida no espadim como num espeto e um ladodo rosto arranhado dos olhos até o queixo poruma tríplice unhada. Urrava de dor e júbilo e nãoentendia nada, mantendo-se unido ao ramo, à es-pada, ao cadáver do gato, no momento desespe-rado de quem venceu a primeira vez e agora sabeque desgraça é vencer, e sabe que doravante seráobrigado a continuar no caminho que escolheu enão lhe será dada a salvação de quem falha.

Assim o vi chegar pelas plantas, todo ensan-guentado até o cinturão, o chinó desfeito sob otricórnio deformado, e trazia pelo rabo aquele ga-

to selvagem morto que agora parecia um gato enada mais.

Corri até a generala no terraço.— Senhora mãe — gritei —, está ferido!— Was? Ferido como? — E já apontava a lu-

neta.— Tão ferido que parece de fato um ferido!

— disse eu.E a generala pareceu julgar pertinente minha

definição, porque, seguindo-o com a luneta en-quanto saltava mais ágil que nunca, disse:

— Das stimmt.Imediatamente ocupou-se em preparar gaze,

esparadrapo e bálsamos como se tivesse de equi-par a ambulância de um batalhão, e me deu tudo,para que entregasse a ele, sem que nem ao menoslhe despertasse a esperança de que ele, devendomedicar-se, decidisse voltar para casa. Com o pa-cote de curativos, corri para o parque e me colo-quei à espera na última amoreira vizinha ao murodos Rodamargem, pois ele já desaparecera mag-nólia abaixo.

No jardim dos Rodamargem ele surgiu triun-fante com a fera morta nas mãos. E o que viu nolargo em frente à vila? Uma carruagem pronta pa-ra partir, com os empregados que carregavam asbagagens na imperial e, em meio a um enxame degovernantas e tias zangadas e severíssimas, Vio-la vestida para viagem abraçando o marquês e amarquesa.

— Viola! — gritou e ergueu o gato pela cau-da. — Aonde é que você vai?

Todo mundo em volta da carruagem ergueu oolhar para os ramos, e ao vê-lo rasgado, ensan-guentado, com cara de louco, a fera morta nasmãos, sentiram um calafrio.

— De nouveau ici! Et arrangé de quelle fa-çon! — E como tomadas de fúria todas as tiasempurravam a menina para a carruagem.

Viola virou-se de nariz empinado e com arde despeito, um despeito aborrecido e provocantecontra os parentes mas que também poderia sercontra Cosme, escandiu a frase (certamente emresposta à pergunta dele):

— Mandam-me para o colégio interno! — Evirou-se para subir na carruagem. Não se dignaraa dirigir-lhe um olhar, nem a ele nem à sua caça.

A portinhola já estava fechada, o cocheiro noassento, e Cosme, que não podia admitir aquelapartida, tratou de atrair a atenção dela, demons-trar que lhe dedicava aquela vitória cruel, masnão soube explicar-se a não ser gritando-lhe:

— Derrotei um gato!O chicote estalou, a carruagem partiu entre o

sacudir de lenços das tias, e da portinhola ouviu-se um “Viva, bravo!” de Viola, que tanto podiaser de entusiasmo como de provocação.

Essa foi a despedida deles. E em Cosme, atensão, a dor dos arranhões, a desilusão de nãoobter glória em sua empreitada, o desespero poraquela separação imprevista, tudo se engasgou eprorrompeu num pranto feroz, cheio de berros eramos arrancados.

— Hors d’ici! Hors d’ici! Polisson sauvage!Hors de notre jardin! — berravam as tias, e todosos empregados dos Rodamargem acorriam com

longos bastões ou atirando pedras para expulsá-lo.

Cosme jogou o gato morto na cara do que es-tava mais próximo, soluçando e gritando. Os ser-vos pegaram o bicho pela cauda e o jogaram nu-ma estrumeira.

Quando soube que nossa vizinha havia parti-do, por algum tempo esperei que Cosme desces-se. Não sei por quê, relacionava com ela, ou tam-bém com ela, a decisão de meu irmão de ficar nasárvores.

Contudo, nem se tocou no assunto. Subi paralevar-lhe bandagens e esparadrapo, e ele tratousozinho dos arranhões do rosto e dos braços. De-pois pediu uma linha de pesca com um anzol.Utilizou-os para recuperar, do alto de uma olivei-ra que pairava sobre o monturo dos Rodamargem,o gato morto. Arrancou-lhe o couro, ajeitou a peleda melhor maneira e fez um gorro. Foi o primeirogorro de pele que o vimos usar.

7

A ÚLTIMA TENTATIVA DE CAPTURAR COSME foifeita por Batista. Iniciativa sua, naturalmente, exe-cutada em segredo, sem consultar ninguém, comoela costumava fazer as coisas. Saiu de madrugada,com uma vasilha de visgo e uma escada portátil,e lambuzou uma alfarrobeira de cima a baixo. Erauma árvore em que Cosme costumava ficar todasas manhãs.

De manhã, na alfarrobeira encontraram-se gru-dados pintassilgos que batiam as asas, cambaxirrascompletamente empapadas de visgo, mariposas,folhas trazidas pelo vento e também uma aba ar-rancada da casaca de Cosme. Quem sabe se ele sesentara num galho e depois conseguira libertar-seou se, ao contrário — mais provavelmente, umavez que havia alguns dias não o víamos usando

aquela roupa —, colara o pedaço de propósito pa-ra provocar-nos. De qualquer modo, a árvore fi-cou asquerosamente melada de visgo e depois se-cou.

Começamos a convencer-nos de que Cosmenão voltaria, inclusive papai. Desde que meu ir-mão pulava nas árvores de todo o território de Pe-númbria, o barão já não se atrevia a passear, poistemia que a dignidade ducal fosse comprometida.Ficava cada dia mais pálido e com o rosto escava-do, e não sei até que ponto se tratava de ânsia pa-terna ou de preocupação pelas consequências di-násticas: mas as duas coisas já constituíam umasó, pois Cosme era seu primogênito, herdeiro dotítulo, e assim, se é difícil tolerar um barão quesalta de galho em galho feito um francolim, me-nos ainda se pode admitir que o faça um duque,embora sendo uma criança, e o título controver-tido certamente não encontraria naquela condutado herdeiro um argumento favorável.

Preocupações inúteis, é claro, pois os habitan-tes de Penúmbria riam das pretensões de papai;e os nobres que possuíam vilas nos arredores o

consideravam doido. Entre a nobreza já era costu-me morar em vilas, em lugares amenos, deixandoos castelos dos feudos, e isso contribuía para quese tendesse a viver como cidadãos e evitar aborre-cimentos. Quem ainda se preocuparia com o anti-go ducado de Penúmbria? O belo de Penúmbria éque era casa de todos e de ninguém: em relação acertos direitos, dependente dos marqueses de Ro-damargem, senhores de quase todas as terras, mascidade autônoma havia algum tempo, tributáriada República de Gênova; podíamos ficar tranqui-los, com as terras que tínhamos herdado e outrasque havíamos comprado a preço vil da prefeituranum momento em que estava cheia de dívidas. Oque se poderia exigir mais? Havia uma pequenasociedade aristocrática, nas imediações, com vi-las, parques e pomares até o mar; todos viviamalegremente entre visitas e caçadas, a vida custa-va pouco, gozavam-se certas vantagens de quemestá na corte sem as chateações, os compromis-sos e as despesas de quem tem uma família realda qual cuidar, uma capital, uma política. Ao con-trário, papai não apreciava essas coisas, sentia-se

um soberano despojado de poder e acabara rom-pendo todas as relações com os nobres da região(mamãe, estrangeira, jamais tivera tais relações);o que também tinha suas vantagens, pois não fre-quentando ninguém evitávamos muitas despesase disfarçávamos a penúria de nossas finanças.

Com a população de Penúmbria não dá paradizer que tivéssemos as melhores relações; vocêssabem como são os penúmbrios, gente um tantorústica, que cuida dos seus negócios; naquelestempos começavam a vender bem os limões, como hábito das limonadas com açúcar que se difun-dia nas classes ricas: e haviam plantado limoei-ros por toda a parte e recuperado o porto destruí-do pelas incursões de piratas de outros tempos.Estando no meio da República de Gênova, pos-sessão do rei da Sardenha, Reino da França e ter-ritórios episcopais, traficavam com todos e se li-xavam para todos, com exceção daqueles tributosque deviam a Gênova e que faziam suar nos pe-ríodos de pagamento, motivo de tumultos anuaiscontra os cobradores da República.

O barão de Rondó, quando explodiam os tu-multos por causa das taxas, achava sempre queestavam a ponto de vir oferecer-lhe a coroa ducal.Então se apresentava em praça pública,oferecendo-se como protetor dos penúmbrios,mas todas as vezes logo fugia sob uma saraivadade limões podres. Aí, dizia que fora montada umaconspiração contra ele: pelos jesuítas, como dehábito. Porque enfiara na cabeça que entre os je-suítas e ele existia uma guerra mortal, e a com-panhia não pensava em outra coisa a não ser tra-mar contra seus interesses. De fato, tinham ocor-rido alguns choques, por causa de um pomar cujapropriedade era disputada pela nossa família e aCompanhia de Jesus; disso resultara um litígio,e o barão, estando naquela altura em boas rela-ções com o bispo, conseguira fazer com que afas-tassem o padre provincial da diocese. Desde en-tão papai estava convencido de que a companhiamandava agentes para atentar contra a vida delee seus direitos; e por outro lado tentava organizaruma milícia de fiéis que libertassem o bispo, pri-sioneiro dos jesuítas em sua opinião; e dava asi-

lo e proteção a todos os que se declarassem per-seguidos pelos jesuítas, por isso escolhera comonosso pai espiritual aquele meio-jansenista com acabeça nas nuvens.

Papai só confiava numa pessoa, o cavaleiroadvogado. O barão tinha um fraco por aquele ir-mão natural, como por um filho único e desgra-çado; e agora não sei dizer se nos dávamos con-ta disso, mas certamente devia existir, na manei-ra de considerar o Carrega, um pouco de ciúme,pois papai gostava mais daquele irmão cinquen-tão do que de nós, rapazes. De resto, não éramosos únicos a olhá-lo atravessado: a generala e Ba-tista fingiam respeitá-lo, mas não o aturavam; ele,sob aquela aparência submissa, lixava-se para tu-do e para todos, e talvez nos odiasse, inclusive aobarão, a quem tanto devia. O cavaleiro advoga-do falava pouco, às vezes parecia surdo-mudo ouque não entendia a língua: quem sabe como con-seguia trabalhar como advogado, antes, e se já en-tão era tão estranho, anteriormente à chegada dos

turcos. Talvez até tivesse sido uma pessoa inteli-gente, já que aprendera com os turcos todos aque-les cálculos de hidráulica, a única coisa à qualconseguia se dedicar hoje e sobre o que papai fa-zia elogios exagerados. Jamais conheci bem seupassado, nem quem fora sua mãe, nem quais ti-vessem sido, na juventude, as relações dele comvovô (é claro que também devia apreciá-lo, parapermitir que estudasse direito e fazer com que lheatribuíssem o título de cavaleiro), e tampouco sa-bia como acabara na Turquia. Nem ao menos sa-bíamos bem se estivera exatamente na Suíça ouem algum país meio bárbaro, Tunísia, Argélia,enfim, em terras maometanas, e se comentava teraderido ao islamismo também ele. Tantas coisascontavam: que ocupara cargos importantes, gran-de dignitário do sultão, engenheiro hidráulico doDivã ou algo semelhante, e após um complô pa-laciano ou uma ciumada de mulheres ou uma dí-vida de jogo o teria feito cair em desgraça e servendido como escravo. Sabe-se que foi encontra-do a remar entre os escravos numa galera oto-mana aprisionada pelos venezianos, que o liberta-

ram. Em Veneza, vivia em condições pouco me-lhores que as de um mendigo, até que não sei oque aprontou, uma briga (com quem poderia bri-gar um homem tão esquivo é difícil imaginar), efoi parar de novo na masmorra. Papai o resgatou,com os bons meios da República de Gênova, e elevoltou a conviver conosco, um homenzinho ca-reca e de barba preta, todo assustado, meio mu-do (eu era criança, mas a cena daquela noite fi-cou marcada), engolido por roupas que não eramdele. Papai o impôs a todos como uma pessoacompetente, nomeou-o administrador, destinou-lhe um gabinete que se foi enchendo de papéissempre em desordem. O cavaleiro advogado usa-va uma longa chimarra e um barrete em forma defez, como era comum então entre nobres e bur-gueses, nos gabinetes de estudo; só que, para di-zer a verdade, no gabinete ele quase não parava ecomeçou-se a vê-lo andar vestido dessa maneiratambém fora, pelos campos. Acabou por aparecertambém à mesa trajado à turca, e o mais estranhofoi que papai, tão preocupado com as regras, de-monstrou tolerá-lo.

Não obstante suas tarefas de administrador, ocavaleiro advogado não conversava quase nun-ca com feitores, arrendatários ou servos da gleba,dada sua índole tímida e a dificuldade de falar; etodas as questões práticas, dar ordens, supervisi-onar o pessoal, de fato, cabiam sempre a papai.Eneias Sílvio Carrega se ocupava da contabilida-de, e não sei se nossos negócios iam tão mal pelomodo como ele cuidava das contas ou se as con-tas iam tão mal pelo modo como andavam nos-sos negócios. E ainda fazia cálculos e desenhosde instalações para irrigação, e enchia de linhase cifras um grande quadro, com palavras em tur-co. De vez em quando, papai fechava-se com eleno gabinete durante horas (eram as mais longaspermanências do cavaleiro advogado ali), e logo,através da porta fechada, ouvia-se a voz irritadado barão, em tons elevados de discussão, mas avoz do cavaleiro quase não se distinguia. Depoisa porta se abria, o cavaleiro advogado saía comseus passinhos rápidos na fralda da chimarra, ofez empinado na cabeça, atravessava uma porta--janela, e tome parque e campos; “Eneias Sílvio!

Eneias Sílvio!”, gritava papai correndo atrás de-le, mas o meio-irmão já estava entre os carreirosda vinha ou em meio aos limoeiros, e só se via ofez vermelho movendo-se obstinado entre as fo-lhas. Papai o seguia, chamando-o; pouco depois,víamos retornar os dois, o barão sempre discutin-do, alargando os braços, e o cavaleiro diminuídoao lado, encurvado, com os punhos cerrados nosbolsos da chimarra.

8

NAQUELES DIAS, COSME MUITAS VEZES desafi-ava quem estava no chão, desafios de pontaria,de destreza, inclusive para testar suas possibilida-des, até onde conseguia chegar estando lá em ci-ma. Desafiou os moleques para o jogo de malha.Encontravam-se naqueles lugares próximos daPorta das Alcaparras, entre os barracões dos po-bres e dos vagabundos. De uma azinheira meioseca e despojada, Cosme estava jogando malha,quando viu aproximar-se um homem a cavalo, al-to, um tanto curvado, envolto num manto negro.Reconheceu seu pai. O bando se dispersou; das en-tradas das barracas as mulheres ficaram observan-do.

O barão Armínio cavalgou até debaixo da árvo-re. Pôr do sol avermelhando. Cosme estava nos ga-

lhos pelados. Encararam- -se. Era a primeira vez,depois do almoço dos escargots, que se encontra-vam assim, frente a frente. Muitos dias tinham sepassado, as coisas haviam mudado, um e outrosabiam que já não importavam mais nem os es-cargots nem a obediência dos filhos ou a autori-dade paterna; que tantas coisas lógicas e sensatasque podiam ser ditas, todas seriam um despropó-sito; mesmo assim alguma coisa deviam dizer.

— Que belo espetáculo ofereceis! — come-çou o pai, amargamente. — É de fato digno deum gentil-homem! (Tratara-o por vós, como fazianas críticas mais graves, mas então aquele uso te-ve um sentido de distância, de afastamento.)

— Um gentil-homem, senhor pai, merece estacondição tanto na terra como em cima das árvores— respondeu Cosme. E logo acrescentou: — Sese comporta corretamente.

— Uma sentença justa — admitiu gravementeo barão —, contudo, agora mesmo, estáveis aroubar ameixas a um arrendatário.

Era verdade. Meu irmão fora apanhado emflagrante. O que deveria responder? Esboçou um

sorriso, nem orgulhoso nem cínico: um sorriso detimidez, e enrubesceu.

Também o pai sorriu, um sorriso triste, equem sabe por que enrubesceu junto com o filho.

— Agora, fazeis companhia aos piores bastar-dos e mendigos — acrescentou.

— Não, senhor pai, eu estou por minha contae cada um por si — disse Cosme, decidido.

— Convido-vos a descer — disse o barão,com voz pacata, quase apagada — e a retomar osdeveres de vossa condição.

— Não pretendo obedecer, senhor pai — afir-mou Cosme —, e isso me dói.

Ambos estavam sem jeito, aborrecidos. Cadaum sabia o que o outro diria.

— E vossos estudos? E as devoções de cris-tão? — interrogou o pai. — Pretendeis crescercomo um selvagem das Américas?

Cosme calou-se. Eram pensamentos sobre osquais não refletira e não tinha vontade de fazê-lo.A seguir, acrescentou:

— Por estar alguns metros acima do chão,acredita que ficarei alheio aos bons ensinamen-tos?

Também esta era uma resposta hábil, masconstituía quase uma redução da amplitude doseu gesto: portanto, sinal de fraqueza.

O pai percebeu isso e se fez mais duro:— A rebeldia não se mede em metros — dis-

se. — Mesmo quando aparenta ter poucos pal-mos, uma viagem pode não ter retorno.

Nessa altura meu irmão poderia ter dado algu-ma nobre resposta, talvez uma citação latina, queagora não me vem à mente, mas então sabíamosmuitas de cor. Ao contrário, já estava enjoado deficar bancando o solene; pôs a língua para fora egritou:

— Mas de cima das árvores mijo mais longe!— frase sem muito sentido, mas que encerrava aquestão.

Como se tivessem ouvido aquela frase,elevou-se uma gritaria de moleques ao redor daPorta das Alcaparras. O cavalo do barão de Ron-dó agitou-se, o barão puxou as rédeas e envolveu-

se no manto, como prestes a ir embora. Masvirou-se, pôs um braço para fora do manto e, indi-cando o céu que rapidamente se carregara de nu-vens negras, exclamou:

— Cuidado, filho, há Quem possa mijar sobretodos nós! — E arrancou.

A chuva, havia muito esperada nos campos,começou a cair em grossas e esparsas gotas. Portrás das barracas armou-se um corre-corre de mo-leques encapuzados com sacos que cantavam:“Ciêuve! Ciêuve! L’aiga va pe êuve!”. Cosme de-sapareceu pendurando-se nas folhas já gotejantesque despejavam água na cabeça de quem as to-casse.

Eu, logo que percebi a chuva, fiquei com penadele. Imaginava-o ensopado, enquanto se espre-mia contra um tronco sem conseguir escapar doaguaceiro oblíquo. E já estava convencido de quenão bastaria um temporal para fazê-lo voltar. Cor-ri para junto de mamãe:

— Chove! Que fará Cosme, senhora mãe?

A generala afastou a cortina e olhou a águacair. Estava calma.

— O maior inconveniente das chuvas é o ter-reno lamacento. Estando lá em cima, fica protegi-do.

— As plantas serão suficientes pararesguardá-lo?

— Recuará para seu acampamento.— Qual, senhora mãe?— Terá tratado disso com antecedência.— Mas não acha que seria bom procurá-lo pa-

ra dar-lhe um guarda-chuva?Como se a palavra guarda-chuva de repente

a tivesse arrancado de seu posto de observaçãocampal e a lançasse em sua síndrome de mãe, agenerala se apressou em dizer:

— Ja, ganz gewiss! E um frasco de xaropede maçã, bem quente, embrulhado em meia delã! E um encerado, para estender na madeira,que não deixe passar umidade… Mas onde estaráagora, pobrezinho… Tomara que você consigaencontrá-lo…

Saí na chuva carregado de pacotes, sob umenorme guarda-chuva verde, e um outro que man-tinha fechado embaixo do braço para entregar aCosme.

Repetia o nosso assobio, mas só me respondiao estalido sem fim da chuva nas plantas. Estavaescuro; fora do jardim eu não sabia aonde ir,movia-me ao acaso pelas pedras escorregadias,prados amolecidos, poças, e assobiava. A fim demandar o som para cima inclinava o guarda-chu-va e a água me golpeava o rosto e me lavava oassobio dos lábios. Queria caminhar em direçãoa certas partes da propriedade repletas de árvoresaltas, onde imaginava que ele pudesse ter cons-truído seu refúgio, porém me perdi naquele es-curo, e continuava ali apertando entre os braçosguarda-chuvas e pacotes, e apenas o frasco de xa-rope enrolado na meia de lã me dava um poucode calor.

Eis que, no alto, vi um clarão no escuro dasárvores que não podia ser nem de lua nem de es-trelas. Tive a impressão de ouvir o assobio deleque respondia ao meu.

— Cooosme!— Biááágio! — uma voz na chuva, bem lá em

cima.— Onde está você?— Aqui…! Vou ao seu encontro, mas vem lo-

go que estou me molhando!Encontramo-nos. Ele, todo enrolado num co-

bertor, desceu até a forquilha mais baixa de umsalgueiro para mostrar como se subia, através deuma complicada rede de ramificações, até a faiade tronco alto, de onde provinha aquela luz. Dei-lhe logo o guarda-chuva e alguns pacotes, e ten-tamos subir com os guarda-chuvas abertos, masera impossível, e nos molhávamos do mesmo jei-to. Finalmente cheguei aonde ele me guiava; nãovi nada, exceto um clarão como entre os panos deuma tenda.

Cosme levantou um dos panos e me fez entrar.À luz de uma lanterna, encontrei-me numa espé-cie de quartinho, coberto por todos os lados decortinas e tapetes, atravessado no tronco da faia,tendo galhos como eixo, tudo apoiado em gran-des ramos. Ao primeiro olhar, pareceu-me uma

suíte real, mas logo me convenci de quanto erainstável, pois estar ali dentro em dois talvez já lherompesse o equilíbrio, e Cosme teve de fazer con-sertos imediatamente. Coloquei do lado de foraaté os dois guarda-chuvas que trazia, abertos, pa-ra tapar duas goteiras; mas a água escorria de ou-tros pontos e já estávamos os dois molhados. Qu-anto à temperatura, era como estar do lado de fo-ra. Porém, havia uma tal quantidade de coberto-res amontoados que se podia sumir embaixo, dei-xando só a cabeça de fora. A lanterna emitia umaluz incerta, saltitante, e no teto e paredes daque-la estranha construção os ramos e folhas projeta-vam sombras intrincadas. Cosme engolia xaropede maçã em grandes goles, fazendo: “Puah! Pu-ah!”

— É uma linda casa — disse eu.— Oh, ainda é provisória — apressou-se Cos-

me a responder. — Devo estudá-la melhor.— Você a construiu sozinho?— E com quem mais? É secreta.— Posso vir aqui?

— Não, você revelaria o caminho a outraspessoas.

— Papai disse que não mandará mais nin-guém atrás de você.

— De qualquer modo deve continuar secreta.— Por causa daqueles meninos que roubam?

Mas não são seus amigos?— Às vezes sim e às vezes não.— E a menina com o cavalinho?— O que você tem com isso?— Queria saber se é sua amiga, se brincam

juntos.— Às vezes sim e às vezes não.— Por que às vezes não?— Porque às vezes eu não quero ou ela não

quer. — Cosme, com o rosto obscurecido, tentavaajeitar uma esteira acavalada num galho. — …Seaparecesse, eu a deixaria subir — disse grave-mente.

— Ela não quer?Cosme deitou-se.— Viajou.

— Diz pra mim — sussurrei —, estão namo-rando?

— Não — respondeu meu irmão e se fechounum longo silêncio.

No dia seguinte fazia bom tempo e foi deci-dido que Cosme recomeçaria as aulas com o aba-de Fauchelafleur. Ninguém disse como. Simples-mente e de forma meio brusca, o barão convidouo abade (“Em vez de ficar aqui olhando as mos-cas, l’abbé…”) a ir procurar meu irmão onde es-tivesse e fazê-lo traduzir um pouco do seu Virgí-lio. Em seguida, receando ter metido o abade emapuros, tratou de facilitar-lhe a tarefa; disse paramim: “Vai dizer a seu irmão que esteja no jardimdentro de meia hora para a lição de latim”. Fa-lou isso com o tom mais natural que encontrou, otom que gostaria de manter doravante: com Cos-me pelas árvores tudo devia continuar como an-tes.

Assim, houve aula. Meu irmão montado numgalho de olmo, pernas pendentes, e o abade em-

baixo, na grama, sentado num banquinho, repe-tindo hexâmetros em coro. Eu brincava por ali eos perdi de vista durante um tempo; quando vol-tei, também o abade estava em cima da árvore;com suas longas e esguias pernas nas meias ne-gras tentava içar-se numa forquilha, e Cosme oajudava, segurando-o por um cotovelo. Encontra-ram uma posição cômoda para o velho, e juntosenfrentaram uma passagem difícil, inclinados so-bre o livro. Parece que meu irmão demonstravagrande empenho.

Depois não sei o que aconteceu, como o alunofugiu, talvez porque o abade tenha se distraído láem cima e ficado a olhar o vazio como de costu-me, o resultado é que acomodado entre os galhossó restou o velho padre negro, com o livro nos jo-elhos, e olhava uma borboleta branca voando e aacompanhava de boca aberta. Quando a borbole-ta desapareceu, o abade deu-se conta de estar láem cima, e ficou com medo. Agarrou-se ao tron-co, começou a gritar: “Au secours! Au secours!”,até que veio gente com uma escada e devagar elese acalmou e desceu.

9

EM RESUMO, Cosme, com sua famosa fuga, vi-via ao nosso lado quase como antes. Era um solitá-rio que não fugia das pessoas. Poderíamos até di-zer que só as pessoas lhe agradavam. Movia-se so-bre os terrenos em que os camponeses capinavam,espalhavam estrume, colhiam nos prados, e cum-primentava de modo cortês. Eles erguiam a cabeçaassustados e Cosme indicava logo onde se encon-trava, pois lhe passara o hábito, tão repetido quan-do andávamos juntos pelas árvores antes, de imitarpássaros e brincar com as pessoas que passavamembaixo. Nos primeiros tempos, os camponeses,quando o viam superar grandes distâncias usandoapenas os galhos, não entendiam nada, não sabi-am se o cumprimentavam tirando o chapéu comose faz com os senhores ou se vociferavam contra

ele como se fosse um moleque. Depois se acos-tumaram e conversavam com ele sobre os traba-lhos, sobre o tempo, e demonstravam apreciar oseu jogo de ficar lá em cima, nem mais bonitonem mais feio do que tantos outros jogos que ob-servavam entre os senhores.

Da árvore, ele permanecia por períodos demeia hora a olhar os trabalhos e fazia perguntassobre engorda e semeaduras, coisa que jamais lheocorrera ao caminhar pelo chão, impedido poraquela desconfiança que não lhe permitia dirigir apalavra aos aldeões e aos servos. Às vezes, infor-mava se o sulco que estavam cavando saía direitoou torto, ou se no campo do vizinho já estavammaduros os tomates; às vezes se oferecia para fa-zer pequenas tarefas como ir dizer à mulher deum ceifador que lhe desse uma pedra de amolar,ou avisar para que aguassem uma horta. E quandose locomovia com semelhantes encargos de con-fiança para os camponeses, se visse pousar numcampo de trigo um grupo de pássaros, fazia baru-lho e agitava o gorro para afugentá-los.

Em seus passeios solitários pelos bosques, osencontros humanos eram, embora raros, marcan-tes a ponto de ficarem impressos, encontros comgente com que nós não encontramos. Naquelestempos uma quantidade de gente sem rumo fixoacampava nas florestas: carvoeiros, caldeireiros,vidraceiros, famílias expulsas de suas terras pelafome, procurando o que comer com ocupaçõesinstáveis. Estabeleciam seus negócios ao ar livree montavam cabanas de galhos para dormir. Aprincípio, o garoto coberto de pelo que andavapelas árvores metia-lhes medo, especialmente nasmulheres, que o tomavam por um espírito errante;mas depois ele fazia amizade, ficava horas a vê-las trabalhar e de noite quando se sentavam ao re-dor do fogo ele se punha num galho próximo, pa-ra escutar as histórias que contavam.

Os carvoeiros, na clareira acinzentada de terrabatida, eram os mais numerosos. Berravam “Hur-ra! Hota!” porque eram gente da região de Bér-gamo e não se entendia o seu falar. Eram os maisfortes e fechados, muito unidos entre si: uma cor-poração que se propagava em todos os bosques,

com parentelas, ligações e brigas. Cosme às ve-zes servia de ligação entre um grupo e outro, davanotícias, era encarregado de pequenas tarefas.

— Me disseram aqueles que ficam embaixodo carvalho vermelho para dizer a vocês queHanfa la Hapa Hota’l Hoc!

— Responde a eles que Hegn Hobet Hò deHot!

Ele guardava na memória os misteriosos sonsaspirados, e tratava de repeti-los, como tentavareproduzir os pios dos pássaros que o desperta-vam de manhã.

Mesmo já se tendo espalhado a notícia de queum filho do barão de Rondó havia meses não des-cia das árvores, papai ainda tentava manter o se-gredo para quem vinha de fora. Vieram visitar-nos os condes d’Estomac, que se dirigiam para aFrança, onde possuíam terras na baía de Toulon,e, a caminho, quiseram parar em nossa casa. Nãosei que tipo de interesses havia em jogo: para rei-vindicar certos bens, ou confirmar vantagens pa-

ra um filho bispo, necessitavam do consenso dobarão de Rondó; e papai, imaginem, sobre aquelaaliança construía um castelo de projetos para suaspretensões dinásticas com relação a Penúmbria.

Houve um almoço, de matar de tédio, tantossalamaleques fizeram, e os hóspedes viajavamcom um filho peralta, um unha de fome de peru-ca. O barão apresentou os filhos, isto é, eu sozi-nho:

— Pobrezinha — disse —, minha filha Batistavive tão retirada, é muito pia, não sei se poderãovê-la.

E eis que se apresenta aquela idiota, com otoucado de monja, mas toda empetecada com la-ços e adornos, pó de arroz no rosto, luvas. Erapreciso ser tolerante com ela, desde aquela histó-ria do marquesinho da Maçã nunca mais vira umrapaz, a não ser criados ou aldeões. O pequenoconde d’Estomac, rapapés para baixo e para ci-ma; ela, risadinhas histéricas. O barão, que haviafeito uma cruz sobre a filha, pôs o cérebro paramaquinar novos possíveis projetos.

Mas o conde deu mostras de indiferença. Per-guntou:

— Mas o senhor não tinha outro filho homem,monsieur Armínio?

— Sim, o mais velho — disse papai —, mas,veja a coincidência, saiu para caçar.

Não mentira, pois naquele período Cosme es-tava sempre no bosque com o fuzil, tocaiando le-bres e tordilhos. Eu lhe entregara o fuzil, aquele,leve, que Batista usava contra os ratos e que haviaalgum tempo ela — negligenciando suas caçadas— abandonara pendurado num prego.

O conde começou a perguntar pela caça miú-da dos arredores. O barão respondia de maneiragenérica, porque, sem paciência nem atenção pa-ra com o mundo circundante, não sabia caçar.Respondi eu, embora me fosse vetado meter o na-riz nos discursos dos adultos.

— E o que é que você entende disso, tão cri-ança? — comentou o conde.

— Vou buscar os animais abatidos por meu ir-mão e os carrego em cima das… — estava dizen-do. Mas papai me interrompeu:

— Quem convidou você para conversar? Vaibrincar!

Estávamos no jardim, anoitecia, mas restavaum pouco de luz, por ser verão. Eis que, atravésdos plátanos e olmos, Cosme chegava tranquilo,com o gorro de pele de gato na cabeça, fuzil a ti-racolo, um espeto do outro lado, e as pernas enfi-adas nas polainas.

— Ei, ei! — fez o conde erguendo-se e me-xendo a cabeça para ver melhor, divertido. —Quem vem lá? Quem está lá nas árvores?

— Do que se trata? Não sei de nada… Foi im-pressão sua… — dizia papai, e não olhava na di-reção indicada, mas nos olhos do conde como pa-ra assegurar-se de que enxergasse bem.

Entretanto, Cosme chegara exatamente em ci-ma deles, firme com as pernas abertas numa for-quilha.

— Ah, sim, é meu filho Cosme, são jovens,para fazer- -nos uma surpresa, veja, trepou na ár-vore…

— É o mais velho?

— Sim, sim, dos dois homens é o maior, pou-ca coisa, sabe, são crianças ainda, brincam…

— Mas é esperto para conseguir caminhar as-sim pelos galhos. E com aquele arsenal nas cos-tas…

— Eh, brincam… — E com um terrível esfor-ço de má-fé que o fez enrubescer: — O que vocêanda fazendo aí? Hein? Desce ou não desce? Ve-nha cumprimentar o senhor conde!

Cosme tirou o gorro de pele de gato, inclinou-se.

— Eu o reverencio, senhor conde.— Ah, ah, ah! — ria o conde —, bravíssimo,

bravíssimo! Deixe-o estar, deixe-o à vontade,monsieur Armínio! Bravíssimo jovem que cami-nha pelas árvores! — E ria.

E aquele palerma do pequeno conde:— C’est original, ça. C’est très original! —

Só sabia repetir.Cosme sentou-se na forquilha. Papai mudou

de conversa e falava, falava, tentando distrair oconde. Mas de vez em quando o conde erguia oolhar e meu irmão estava sempre lá, na mesma ár-

vore ou em outra, limpando o fuzil, passando ce-ra nas polainas, esfregando a flanela para que bri-lhassem.

— Ah, mas observe! Sabe fazer de tudo, lá emcima, o rapaz! Gosto muito disso! Ah, contarei nacorte, a primeira vez que for lá! Contarei ao meufilho bispo! Vou contar à princesa minha tia!

Papai explodia. Além do mais, pensava noutracoisa: não via mais a filha, e também o pequenoconde desaparecera.

Cosme, que se afastara numa de suas voltasexploratórias, voltou ofegante.

— Provocou-lhe soluço! Provocou-lhe solu-ço!

O conde preocupou-se.— Oh, que desagradável. Meu filho sofre

muito de soluços. Vá, bravo jovem, vá ver o quese passa, Diga para voltarem.

Cosme saiu aos saltos e depois voltou, maisofegante do que antes.

— Estão correndo um atrás do outro. Ela querpôr uma lagartixa viva debaixo da camisa dele

para acabar com o soluço! Ele não quer. — E fu-giu para continuar a ver.

Assim passamos aquela noitada na vila, naverdade não muito diferente de outras, com Cos-me nas árvores que participava como observadorprivilegiado de nossa vida, mas desta vez haviahóspedes, e a fama do estranho comportamentode meu irmão se espalhava pelas cortes da Euro-pa, para vergonha de papai. Vergonha imotivada,tanto é verdade que o conde d’Estomac teve umaimpressão favorável da família, e assim aconte-ceu que nossa irmã Batista ficou noiva do peque-no conde.

10

AS OLIVEIRAS, por caminharem torcidas, sãovias cômodas e planas para Cosme, plantas paci-entes e amigas, na rude casca, para passar e tor-nar a passar em cima e também para se estabelecer,embora os galhos grossos sejam poucos por plantae não exista grande variedade de movimentos. Aocontrário, numa figueira, estando atento para nãovergar ao peso, não se termina nunca de girar; Cos-me acha-se sob o pavilhão das folhas, vê transpa-recer o sol em meio às nervuras, os frutos verdesque encorpam aos poucos, aspira o látex que ru-moreja em torno dos pedúnculos. A figueira domi-na quem nela sobe, impregna com seu humor bor-rachento, com o zumbido dos zangões; em poucotempo Cosme tinha a sensação de estar virando fi-go ele mesmo e, sem jeito, ia embora. Na dura sor-

veira ou na amoreira, as pessoas se sentem bem;é pena que sejam raras. Assim acontecia comas nogueiras: para ser franco, ao ver meu irmãoperder-se numa nogueira interminável, comonum palácio de muitos andares e inumeráveis cô-modos, até eu sentia vontade de imitá-lo, ir lá pa-ra cima; tamanha é a força e a certeza que aquelaárvore dedica para se tornar árvore, a obstinaçãode ser pesada e dura que afirma inclusive nas fo-lhas.

Cosme sentia-se muito bem entre as ondula-das folhas das azinheiras (ou carvalhos ílex, co-mo os chamei enquanto se tratava do parque danossa casa, talvez por influência da linguagem re-buscada de papai) e amava sua casca gretada, cu-jos quadradinhos arrancava com os dedos quan-do estava pensativo, não por instinto de fazer-lhemal, mas como maneira de ajudar a árvore na sualonga fadiga em refazer-se. Ou então tirava as es-camas da alva cortiça dos plátanos, descobrindoestratos de velho ouro mofado. Adorava tambémos troncos encaroçados que tem o olmo, que emseus nós refaz brotos tenros, tufos de folhas den-

teadas e sâmaras assemelhando papel; mas é di-fícil mover-se, pois os ramos estiram-se para oalto, esguios e enfolhados, deixando pouca pas-sagem. Nos bosques, preferia faias e carvalhos:porque no cimo as copas bem próximas, não rígi-das e cheias de agulhas não deixam espaço nempontos de apoio; e o castanheiro, entre folhas es-pinhosas, invólucros ouriçados, casca, galhos al-tos, parece feito de propósito para dele se manterdistância.

Estas amizades e distinções, Cosme as identi-ficou mais tarde, pouco a pouco, ou seja, admitiuconhecê-las; mas já naqueles primeiros dias co-meçavam a fazer parte dele como instinto natural.Agora era o mundo que lhe parecia diferente, fei-to de estreitas e curvas pontes no vazio, de nós oulascas ou rugas que tornam ásperas as cascas, deluzes que variam o seu verde conforme a cober-tura de folhas mais espessas ou ralas, tremulantesao primeiro sopro de vento nos pedúnculos ou le-vadas como velas na vergadura da árvore. Quan-to ao nosso mundinho, achatava-se lá no fundo, enós tínhamos figuras desproporcionadas e decer-

to não entendíamos o que ele sabia lá em cima,ele que passava as noites a escutar como a madei-ra acumula em suas células os círculos que assi-nalam os anos no interior dos troncos, e o mofoalarga a mancha à tramontana, e num arrepio ospássaros adormecidos dentro do ninho encolhema cabeça no canto onde é mais suave a pluma daasa, desperta a lagarta, e eclode o ovo da pega.Chega um momento em que o silêncio do campose compõe no oco da orelha num rumorejar pica-do, um grasnar, um chiado, um farfalhar velocís-simo entre o capim, um baque na água, um baterde patas entre terra e seixos, e o canto agudo dacigarra dominando tudo. Um ruído puxa o outro,o ouvido consegue sempre individuar outros no-vos como dedos que desfazem um novelo de lãrevelam fios entrelaçados por fios cada vez maissutis e impalpáveis. Entretanto, as rãs mantêm ocoaxar que permanece como fundo e não muda ofluxo dos sons, como a luz não varia pelo contí-nuo piscar das estrelas. Ao contrário, a cada lufa-da ou cessar do vento, cada rumor mudava e eranovo. Só restava no ponto mais profundo do ou-

vido a sombra de um bramido ou murmúrio: erao mar.

Chegou o inverno, Cosme fez um casaco depeles. Costurou-o com pedaços de couro de vári-os animais que caçara: lebres, raposas, martas efurões. Na cabeça, trazia sempre aquele gorro degato-do-mato. Fez também calças, de pelo de ca-bra com fundilhos e joelhos de couro. Quanto acalçados, finalmente percebeu que para as árvo-res a melhor coisa eram pantufas, e fez um parnão sei de que pele, talvez de texugo.

Assim se defendia do frio. É preciso dizer quenaquele tempo os invernos eram suaves, não como frio de agora, que dizem ter expulsado Napo-leão da Rússia e que o perseguiu até aqui. Masmesmo então passar as noites de inverno no sere-no não era propriamente acolhedor.

Para a noite Cosme descobrira o sistema doodre de peles; nada de tendas ou cabanas: umodre com peles na parte interna, dependuradonum galho. Escorregava dentro, desaparecia edormia encolhido como uma criança. Se um ruídoinsólito atravessava a noite, da boca do saco saía

o gorro de pele, o cano do fuzil e ele com olhosarregalados. (Diziam que seus olhos tinham setornado luminosos no escuro como os dos gatos ecorujas: não cheguei a perceber isso.)

Ao contrário, de manhã, quando cantava otentilhão, saíam do saco duas mãos cerradas, ospunhos se erguiam e dois braços se abriamespreguiçando-se lentamente, e esse movimentomostrava seu rosto bocejando, o peito com o fuzila tiracolo e o tubinho de pólvora, as pernas ar-queadas (começavam a ficar meio tortas, pelohábito de permanecer e de mover-se sempre dequatro ou de cócoras). As pernas saltavam fora,desenroscavam-se, e assim, depois de sacudir osombros, coçar-se sob o casaco de peles, despertoe fresco como uma rosa, Cosme iniciava a jorna-da.

Ia até a fonte, pois tinha uma fonte pênsil, in-ventada por ele, ou melhor, construída em auxílioà natureza. Havia um riacho que numa ribancei-ra caía em cascata, e lá perto um carvalho erguiaseus altos ramos. Cosme, com um pedaço de cas-ca de álamo, dois metros de largura, fizera uma

espécie de bica, que transportava a água de cas-cata aos galhos do carvalho, e assim podia bebere lavar-se. Posso garantir que se lavava, pois euo vi muitas vezes; não tanto e nem todos os dias,mas tomava banho; usava até sabão. Com o sa-bão, quando lhe dava na veneta, chegava a lavarroupa; levara uma bacia de propósito para o car-valho. Depois estendia a roupa para secar em cor-das presas aos ramos.

Em resumo, fazia de tudo nas árvores. Encon-trara também o modo de assar no espeto o que ca-çava, sem descer. Procedia assim: punha fogo nu-ma pinha com um acendedor e a atirava no chão,num lugar preparado como fogão (aquilo era tra-balho meu, com algumas pedras polidas), depoisjogava em cima gravetos e ramos de fácil com-bustão, regulava a chama com palhetas e tenazesligadas a longos bastões, de modo que chegas-se ao espeto, preso entre dois ramos. Tudo issoexigia atenção, pois é fácil provocar um incêndionos bosques. Não por acaso este fogão ficava de-baixo do carvalho, próximo à cascata da qual se

podia tirar, em caso de perigo, toda a água quefosse necessária.

Assim, em parte comendo o que caçava, emparte trocando com os camponeses caça por frutae verdura, conseguia manter-se, até não precisarque lhe passassem mais nada de casa. Um diadescobrimos que bebia leite fresco todas as ma-nhãs; fizera amizade com uma cabra, que trepavanuma forquilha de oliveira, um lugar fácil, a doispalmos do chão, ela nem precisava subir,apoiava-se com as patas de trás, e assim, descen-do com uma vasilha, ele a ordenhava do galho.Estabelecera o mesmo acordo com uma galinha,uma vermelha, paduana, das boas. Fizera um ni-nho secreto, no oco de um tronco, e dia sim dianão encontrava um ovo, que tomava após ter-lhefeito dois furos com um alfinete.

Outro problema: fazer suas necessidades. Nocomeço, aqui ou ali, não fazia diferença, o mundoé grande, fazia onde calhava. Depois percebeuque não estava certo. Encontrou então, na mar-gem da torrente Merdança, um amieiro que lança-va no ponto mais propício e afastado uma forqui-

lha na qual se podia sentar comodamente. O Mer-dança era uma torrente obscura, escondida entreos caniços, de curso rápido, e as aldeias vizinhasjogavam nela as águas servidas. Assim, o jovemChuvasco de Rondó vivia civilmente, respeitandoo decoro do próximo e o seu próprio.

Mas lhe faltava um complemento humano ne-cessário em sua vida de caçador: um cão. Às ve-zes, eu andava por ali, embrenhando-me nos ma-tos, pelas moitas, para procurar o tordo, a narce-ja, a codorna, caídos ao receber seu disparo empleno céu, ou também as raposas quando, apósuma noite de tocaia, pegava uma com cauda lon-ga deitada à beira dos brejos. Porém, nem sempreeu podia fugir e acompanhá-lo nos bosques: as li-ções com o abade, o estudo, ajudar na missa, asrefeições com os pais me seguravam; os cem de-veres da convivência familiar aos quais me sub-metia, porque no fundo a frase que ouvia repetirsempre: “Numa família, de rebelde basta um”,

não deixava de ter razão e me marcou por toda avida.

Portanto, Cosme ia caçar quase sempre so-zinho e, para recuperar os bichos (quando nãoacontecia o caso favorável do verdilhão que fica-va com as asas amarelas espetadas num galho),usava algo parecido com instrumentos de pesca:linhas com barbantes, ganchos ou anzóis, masnem sempre dava certo, e às vezes uma batuíraacabava preta de formigas no fundo de uma moi-ta.

Até aqui falei das tarefas dos cães recolhedo-res. Porque então Cosme praticamente só faziacaça em posição fixa, passando manhãs ou noitesempoleirado no seu galho, esperando que o tordopousasse no cume de uma árvore ou a lebre apa-recesse numa clareira do prado. Caso contrário,girava ao acaso, seguindo o canto dos pássaros ouadivinhando as pistas mais prováveis dos animaiscom pelo. E, quando ouvia o ladrar dos sabujosatrás da lebre ou da raposa, sabia que precisavapassar ao largo, pois aquele não era bicho seu, de-le caçador solitário e casual. Respeitador das nor-

mas como era, embora de seus infalíveis postosde observação pudesse identificar e mirar a caçaperseguida pelos cães alheios, jamais levantava ofuzil. Aguardava que pelo trilho chegasse o caça-dor ofegante, ouvidos tensos e olhos perdidos, elhe indicava para que lado fora o animal.

Um dia, viu correr uma raposa: uma onda ver-melha em meio ao capim verde, bufando feroz,bigodes eriçados; atravessou o prado e desapare-ceu nas moitas. E atrás: Uauauaaa!, a cachorrada.

Chegaram a galope, medindo a terra com osfocinhos, duas vezes se viram sem cheiro de ra-posa nas narinas e voltaram em ângulo reto.

Já estavam longe quando, com um ganido,ui, ui, cortou o capim um que vinha com pulosmais de peixe do que de cão, uma espécie dedelfim que nadava deixando aflorar um focinhomais pontudo e orelhas mais pendentes que de umsabujo. Atrás, era peixe; parecia nadar agitandobarbatanas ou então patas de palmípede, sem per-nas e muito comprido. Saiu em campo aberto: eraum bassê.

Certamente, juntara-se ao bando de batedorese ficara para trás, jovem como era, quase um fi-lhote. O barulho dos sabujos era agora um buafde despeito, pois haviam perdido a pista e a cor-rida compacta desfazia-se numa rede de ansieda-des nasais em volta de uma clareira de juncos,com excessiva impaciência para encontrar o fiodo cheiro perdido e seguir atrás dele, enquantoo impulso se perdia, e algum já aproveitava paradar uma mijadinha numa pedra.

Assim, o bassê, ofegante, com seu trote defocinho erguido, injustificavelmente triunfal,alcançou-os. Lançava, sempre de modo infunda-do, latidos de esperteza: Uai! Uai!

Logo os sabujos, aurrrch!, rosnaram para ele,abandonaram por um momento a busca do cheiroda raposa e voltaram-se contra ele, arreganhandobocas de mordida: Gggrrr! Depois, rápidos, tor-naram a desinteressar-se e saíram correndo.

Cosme acompanhava o bassê, que se moviaao acaso, e o cachorro, ondulando com focinhodistraído, viu o rapaz na árvore e sacudiu o rabo.Cosme estava convencido de que a raposa ainda

se escondia por ali. Os sabujos tinham se disper-sado mais adiante, podia-se ouvi-los correr pelascolinas próximas com um latido fora de tom edesmotivado, pressionados pelas vozes sufocadase incitadoras dos caçadores. Cosme disse ao bas-sê:

— Vai! Vai! Procura!O jovem cão começou a fuçar, e de vez em

quando se virava para olhar o rapaz no alto.— Vai! Vai!Agora já não o via. Percebeu moitas que se

amassavam e, a seguir, uma explosão: Auauaua-aa! Iai, iai, iai! Surpreendera a raposa!

Cosme viu o bicho correndo pelo prado. Masera possível atirar numa raposa apanhada por umcachorro que não lhe pertencia? Cosme deixou-apassar e não disparou. O bassê levantou o focinhopara ele, com o olhar que assumem os cães quan-do não entendem algo e não sabem que podem terrazão em não entender, e se lançou outra vez como focinho no chão, atrás da raposa.

Iai, iai, iai! Obrigou-a a dar uma volta inteira.Pronto, voltava. Podia ou não podia disparar?

Não disparou. O bassê olhou para o alto com umolhar de dor. Não latia mais, a língua mais pen-dente do que as orelhas, exausto, mas continuavaa correr.

A sua operação desorientara sabujos e caça-dores. Pelo caminho corria um velho com um pe-sado arcabuz.

— Ei — gritou Cosme —, aquele bassê é devocês?

— Vá plantar batatas, você e toda a sua famí-lia! — berrou o velho, que devia estar irritado. —Parecemos tão idiotas a ponto de caçar com umbassê?

— Então, no que ele apanhar, eu é que atiro— insistiu Cosme, que não queria romper as re-gras do jogo.

— E atire também no santo que protege você!— respondeu o desaforado, e saiu correndo.

O bassê voltou a trazer-lhe a raposa. Cosmedisparou e a atingiu. O bassê tornou-se o seu cão;deu-lhe o nome de Ótimo Máximo.

* * *

Ótimo Máximo era um cachorro sem dono,que se juntara ao bando de sabujos por entusias-mo juvenil. Mas de onde viria? Para descobrir,Cosme deixou-se guiar por ele.

O bassê, rente ao solo, atravessava sebes efossos; depois virava a cabeça para ver se o rapazlá de cima podia seguir o caminho. Era tão es-tranho o itinerário, que Cosme demorou a perce-ber onde tinham ido parar. Quando se deu conta,agitou-se-lhe o coração no peito: era o jardim dosmarqueses de Rodamargem.

A vila estava fechada, as venezianas cerradas;uma apenas, numa água-furtada, batia ao vento.O jardim sem cuidados tinha mais que nuncaaquele aspecto de floresta do outro mundo. E pe-las alamedas invadidas pelo capim, e pelos can-teiros cheios de espinhos, Ótimo Máximo corriafeliz e perseguia borboletas.

Desapareceu numa moita. Voltou com uma fi-ta na boca. Bateu mais forte o coração de Cosme.

— O que é, Ótimo Máximo? Hein? De quemé? Diz para mim!

Ótimo Máximo balançava o rabo.— Traz aqui, traz, Ótimo Máximo!Cosme, tendo alcançado um ramo mais baixo,

pegou da boca do cachorro aquele farrapo des-botado que algum dia certamente enfeitara os ca-belos de Viola, bem como aquele cão certamentepertencera a ela, ali esquecido na última mudançada família. E mais, agora Cosme o recuperavana memória, no verão passado, ainda filhote, quesaía de um cesto no braço da menina loura e como qual talvez acabasse de ter sido presenteada.

— Procura, Ótimo Máximo!E o bassê se lançava entre os bambus; e retor-

nava com outras lembranças dela, a corda de pu-lar, um pedaço de pipa, um leque.

No tronco da árvore mais alta do jardim, meuirmão inscreveu com a ponta do espadim os no-mes Viola e Cosme, e depois, mais embaixo, certode que ela ficaria contente embora o chamasse deoutro nome, talhou na madeira: Cão bassê ÓtimoMáximo.

Daí em diante, quando se via o menino nas ár-vores, era certo que, olhando-se mais à frente, oujunto dele, via-se o bassê Ótimo Máximo trotan-do com a barriga pelo chão. Ensinara-lhe a busca,o apresamento, a entrega: as tarefas de todos oscães de caça, e não havia animal do bosque quenão caçassem juntos. Para entregar-lhe a caça,Ótimo Máximo subia com duas patas nos troncosaté onde alcançava; Cosme descia para pegar a le-bre ou alguma ave em sua boca e fazia-lhe um ca-rinho. Resumiam-se a isso suas intimidades, su-as festas. Porém, continuamente, entre a terra eos galhos estabelecia-se um diálogo, uma com-preensão, feitos de latidos, monossílabos e esta-lidos de língua e dedos. Aquela presença neces-sária que para o cão é o homem e para este é ocão não os traía jamais, nem a um nem ao outro;e, por mais diferentes que fossem de todos os ho-mens e cães do mundo, poderiam declarar-se, co-mo homem e cão, felizes.

11

POR MUITO TEMPO, todo um período de suaadolescência, a caça foi o mundo para Cosme.Também a pesca, pois com uma linha esperava en-guias e trutas nos remansos da torrente. Às vezes,chegávamos a pensar que ele tinha adquirido sen-tidos e instintos diferentes dos nossos, e que aque-las peles que havia costurado para cobrir-se cor-respondiam a uma mutação total de sua natureza.Certamente o fato de ter muito contato com as cas-cas de árvores, o olho fixo no movimento das pe-nas, nos pelos, nas escamas, naquela gama de co-res que esta aparência do mundo apresenta, e de-pois a corrente verde que circula como sangue dooutro mundo nas veias das folhas: todas estas for-mas de vida tão distantes da humana como um ta-lo de planta, um bico de tordo, uma guelra de pei-

xe, esses limites da selvageria nos quais tão pro-fundamente penetrara, podiam agora modelar seuânimo, fazê-lo perder toda aparência de homem.Ao contrário, por mais dotes que ele absorvesseda convivência com as plantas e da luta com ani-mais, ficou sempre claro para mim que seu lugarera deste lado, junto conosco.

Contudo, mesmo sem querer, alguns hábitostornavam-se mais raros e se perdiam. Comoacompanhar-nos à missa festiva de Penúmbria.Tentou nos primeiros meses. Todos os domingos,ao sair, a família enfarpelada, ajaezada para ce-rimônia, o encontrávamos nos galhos, tambémele de algum modo com intenções de roupa defesta, por exemplo, recuperada a velha casaca, ouo tricórnio em vez do gorro de pele. Tomávamosnosso rumo, ele nos seguia dos galhos, e assimcaminhávamos com majestade para o espaço sa-cro, observados por todos os penúmbrios (mas lo-go se acostumaram e diminuiu também o mal-es-tar de papai), nós compenetrados, ele que pulava

pelos ares, estranha visão, especialmente no in-verno, com as árvores nuas.

Entrávamos na catedral, sentávamos no bancoda família, ele ficava do lado de fora, acomodava-se numa azinheira ao lado da nave, bem na alturade uma grande janela. Do nosso banco víamosatravés da vidraça a sombra dos ramos e, de per-meio, a de Cosme com o chapéu no peito e a ca-beça inclinada. Segundo uma combinação de meupai com um sacristão, aquela vidraça passou a fi-car entreaberta aos domingos, assim Cosme podiaassistir à missa da sua árvore. Mas com o passardo tempo não tornamos a vê-lo. A vidraça foi fe-chada porque entrava uma corrente de vento.

Tantas coisas que antes teriam sido impor-tantes, para ele não o eram mais. Na primavera,Batista ficou noiva. Quem teria adivinhado, sóum ano antes? Vieram aqueles condes d’Estomaccom o pequeno conde, organizou-se uma grandefesta. Nosso palácio ficou inteirinho iluminado,estava presente toda a nobreza dos arredores,

dançava-se. Quem ainda pensava em Cosme?Bem, não é verdade, todos pensávamos nele. Devez em quando eu olhava fora da janela para verse chegava; e papai estava triste, e naquela fes-tança familiar certamente seu pensamento ia paraele, que se excluíra; e a generala comandava todaa festa como numa praça de armas, queria apenasdesafogar sua ansiedade pelo ausente. Quem sabese até Batista, que fazia piruetas, irreconhecívelsem as roupas monacais, com uma peruca que pa-recia um maçapão, e um grand panier guarnecidode corais que não sei qual costureira tinha feito,também ela aposto que pensava no irmão.

E ele lá estava, invisível — soube depois —,à sombra do cimo de um plátano, no frio, e viaas janelas cheias de luz, os cômodos familiaresadornados para festa, as pessoas usando perucas,dançando. Que pensamentos lhe atravessariam amente? Lamentaria pelo menos um pouco a nossavida? Pensaria em quão breve era a passagem queo separava do retorno ao nosso mundo, quão bre-ve e fácil? Não sei o que pensaria, o que deseja-ria, ali. Sei apenas que ficou até o final da festa

e mais ainda, até que os candelabros, um depoisdo outro, se apagassem e não restasse sequer umajanela iluminada.

Portanto, as relações de Cosme com a família,bem ou mal, continuavam. Ou melhor, com umde seus membros se estreitaram, e só então se pô-de dizer que aprendeu a conhecê-lo: o cavalei-ro advogado Eneias Sílvio Carrega. Esse homemmeio incorpóreo, fugidio, que não se conseguiasaber exatamente onde estava e o que fazia, Cos-me descobriu que era o único de toda a famíliaque tinha um grande número de ocupações, e, nãobastando isso, nada do que fazia era inútil.

Saía, às vezes, na hora mais quente da tarde,com o fez enterrado na cabeça, os passos arrasta-dos na chimarra que ia até o chão, e desapareciacomo se as falhas do terreno o tivessem engoli-do, ou as sebes, ou as pedras das paredes. Tam-bém Cosme, que se divertia em ficar sempre aler-ta (ou melhor, não que se divertisse, isso se torna-ra um estado natural seu, como se os olhos abar-cassem um horizonte tão amplo que englobassetudo), a um certo ponto não o via mais. Às ve-

zes, punha-se a correr de galho em galho rumoao lugar em que desaparecera e jamais conseguiadescobrir que caminho seguira. Mas havia um si-nal sempre recorrente naquelas paragens: abelhasque voavam. Cosme acabou por convencer-se deque a presença do cavaleiro estava ligada às abe-lhas e que para localizá-lo era preciso seguir ovoo delas. De que modo? Ao redor de qualquerplanta florida existia um difuso zunir de abelhas;era preciso não se deixar distrair por percursosisolados e secundários, mas seguir a invisível viaaérea em que o vaivém das abelhas se adensava,até lograr ver uma nuvem espessa erguer-se atrásde uma sebe como fumaça. Lá embaixo ficavamas colmeias, uma ou várias, em fila sobre umamesa, e absorto, em meio ao zum-zum das abe-lhas, encontrava-se o cavaleiro.

De fato, a apicultura era uma das atividadessecretas do nosso tio natural; secreta até certoponto, pois ele próprio, de vez em quando, levavapara a mesa um favo transbordante de mel recém-saído da colmeia; isso acontecia fora do âmbitodas propriedades da família, em lugares que ele

não queria divulgar de jeito nenhum. Devia seruma precaução, para subtrair os proventos dessaindústria pessoal à sacola furada da administra-ção familiar; ou então — já que o homem nãoera avarento e, depois, quanto poderia render-lheaquele pouco de mel e cera? — para ter algo emque o barão seu irmão não metesse o nariz, nãopretendesse conduzi-lo pela mão; ou ainda paranão misturar as poucas coisas que amava, como aapicultura, com as muitas que não amava, como aadministração.

De qualquer modo, restava o fato de que papainão lhe teria jamais permitido manter abelhasperto de casa, pois o barão tinha um medo irracio-nal de ser picado e, quando por acaso topava comuma abelha ou com uma vespa no jardim, voavafeito flecha pelas alamedas, segurando a perucacom toda a força como a proteger-se das bicadasde uma águia. Uma vez, ao fazer isso, soltou-se aperuca, a abelha assustada pelo arranco inespera-do voou sobre ele e cravou-lhe o ferrão na careca.Compressas de vinagre lhe amaciaram a cabeçapor três dias, pois ele era feito assim, orgulhoso e

forte nos casos mais graves, pobre louco peranteum arranhão ou um furúnculo.

Portanto, Eneias Sílvio Carrega disseminarasua criação de abelhas ao longo do vale de Pe-númbria; os proprietários lhe davam permissãopara manter uma ou duas colmeias numa faixa decampo, em troca de um pouco de mel, e ele cor-ria sempre de um lugar para outro, bulindo ao re-dor das colmeias com movimentos de quem tempatas de abelha em vez de mãos, sobretudo pelofato de que, às vezes, para não ser picado, usavameias-luvas negras. No rosto trazia, enrolado nofez com um turbante, um véu preto, que a cadarespiração grudava na boca e se soltava. E mo-via um artefato que espalhava fumaça, para afas-tar os insetos enquanto ele mexia nas colmeias. Etudo, zum-zum de abelhas, véus, nuvens de fuma-ça, parecia a Cosme um encantamento que aque-le homem tentava suscitar para desaparecer dali,ser cancelado, voar, e depois renascer, num ou-tro tempo, ou noutro lugar. Mas era um mágicode poucos recursos, pois reaparecia sempre igual,talvez chupando uma ponta de dedo magoada.

Chegara a primavera. Certa manhã, Cosmesentiu o ar como enlouquecido, vibrando com umsom jamais ouvido, um zumbido que atingia ní-veis de estrondo, e atravessado por um granizoque em vez de cair deslocava-se numa direçãohorizontal, e redemoinhava lentamente espalha-do, mas seguindo uma espécie de coluna maisdensa. Era um mar de abelhas: e ao redor brilha-vam as flores, o verde e o sol; e Cosme, que nãoentendia o que estava acontecendo, sentiu-se do-minado por uma excitação incontrolável.

— As abelhas estão fugindo! Cavaleiro advo-gado! As abelhas estão fugindo! — gritava, en-quanto corria pelas árvores à procura de Carrega.

— Não estão fugindo: enxameiam — disse avoz do cavaleiro.

E Cosme o localizou ao pé da árvore em quese achava, onde surgiu instantâneo como um co-gumelo, a fazer gestos para que ficasse quieto.Logo depois desapareceu. Para onde fora?

Era o período dos enxames. Um bando deabelhas estava seguindo uma delas fora da velhacolmeia. Cosme olhou em volta. Eis que o ca-

valeiro advogado reaparecia na porta da cozinha,tendo nas mãos uma panela e uma frigideira.Agora batia a panela contra a frigideira e saltavaum doing! doing! fortíssimo, que reboava nostímpanos e se apagava numa longa vibração, tãoperturbadora que só dava vontade de tapar os ou-vidos. Batendo os objetos de cobre a cada trêspassos, o cavaleiro advogado caminhava atrás dobando de abelhas. Todo ribombo provocava umaespécie de sacudida no enxame, um rápidoabaixa-levanta, e o zumbido parecia mais baixo,o voo mais incerto. Cosme não via bem, mas lheparecia que agora o enxame inteiro convergia pa-ra um ponto no verde, e não ia mais naquela dire-ção. E Carrega continuava a dar pancadas na pa-nela.

— O que está acontecendo, cavaleiro advo-gado? O que faz? — perguntou meu irmão,alcançando-o.

— Rápido — sussurrou ele —, salte para a ár-vore em que parou o enxame, mas cuidado paranão mexer nele até eu voltar!

As abelhas choviam numa romãzeira. Cosmechegou lá e a princípio não viu nada, mas logo de-pois se apercebeu de uma espécie de grande fru-to, em forma de pinha, que pendia de um ramo, eque era feito de abelhas grudadas uma na outra, esempre surgiam outras para aumentá-lo.

Cosme estava em cima da romãzeira prenden-do a respiração. Embaixo pendia o cacho de abe-lhas, e quanto maior mais leve parecia, como de-pendurado num fio ou, menos ainda, nas minús-culas patas de uma velha rainha e feito de sutiscartilagens, com todas aquelas asas faiscantes queestendiam sua diáfana cor cinzenta sobre as estri-as negras e amarelas dos abdômens.

O cavaleiro advogado chegou saltitando, etrazia na mão uma colmeia. Colocou-a de ponta-cabeça sob o cacho.

— Vai — soprou para Cosme —, uma panca-dinha seca.

Cosme mal tocou a romãzeira. O enxame demilhares de insetos destacou-se como uma folha,caiu na colmeia, e o cavaleiro cobriu-a com umatábua.

— Tudo pronto.

Assim nasceu entre Cosme e o cavaleiro ad-vogado um entendimento, uma colaboração quese poderia chamar de uma espécie de amizade, senão fosse um termo excessivo, tratando-se de du-as pessoas tão pouco sociáveis.

Inclusive no campo da hidráulica, meu irmãoe Eneias Sílvio acabaram por encontrar-se. Issopode parecer estranho, pois quem está em cimadas árvores dificilmente trata de poços e canais;mas já comentei aquele sistema de fonte pênsilque Cosme inventara, com uma casca de álamoque levava água de uma cascata até os galhos deum carvalho. Acontece que, ao cavaleiro advoga-do, mesmo tão distraído, não escapava nada quese mexesse nos canais de água de toda a região.Sobre a cascata, oculto atrás de um alfeneiro, ob-servou Cosme extrair o conduto dos ramos docarvalho (onde o recolocava quando não lhe ser-via, por causa daquele costume dos selvagens, doqual logo se apropriou, de esconder tudo), apoiá-

lo numa forquilha e pelo outro lado em certas pe-dras da ribanceira e, finalmente, beber.

Diante de tal visão, quem sabe o que germi-nou no cérebro do cavaleiro: foi tomado por umde seus raros momentos de euforia. Saiu de trásdo alfeneiro, bateu as mãos, fez dois ou três mo-vimentos parecendo pular corda, espalhou água,por pouco não tropeçou na cascata e não voouprecipício abaixo. E começou a explicar ao rapaza ideia que tivera. A ideia era confusa e a expli-cação mais ainda: o cavaleiro advogado em ge-ral falava dialeto, por modéstia mais do que porignorância da língua, mas naqueles imprevistosmomentos de excitação passava do dialeto direta-mente ao turco, sem perceber, e não se entendiamais nada.

Em resumo: viera-lhe a ideia de um aquedutopênsil, com um conduto sustentado justamentepor galhos de árvores, que permitiria alcançara vertente oposta do vale, seco, e irrigá-lo. Eo aperfeiçoamento que Cosme, logo apoiando oprojeto dele, sugeriu — usar em certos pontos

troncos de canalização furados, para fazer chovernas sementeiras — deixou-o eufórico.

Correu a refugiar-se no gabinete, para preen-cher folhas e mais folhas de projetos. TambémCosme debruçou-se sobre o problema, porque tu-do o que se pudesse fazer nas árvores lhe agrada-va, e lhe parecia contribuir para dar nova impor-tância e autoridade às suas posições lá no alto; eem Eneias Sílvio Carrega pareceu-lhe ter encon-trado um companheiro insuspeito. Marcavam en-contros em árvores baixas; o cavaleiro advogadosubia com a escada triangular, os braços cheiosde rolos de desenho; e discutiam durante horas asmodificações cada vez mais complicadas daqueleaqueduto.

Porém, jamais se passou à fase prática. EneiasSílvio cansou-se, rareou os colóquios com Cos-me, não completou os desenhos, após uma sema-na talvez os tivesse esquecido. Cosme não se la-mentou: logo se dera conta de que para a sua vidatudo aquilo se tornava uma perturbadora compli-cação e nada mais.

* * *

Era evidente que no campo da hidráulica nos-so tio natural poderia ter feito muito mais. Eraum apaixonado por aquilo, o talento específiconecessário para aquele ramo de estudo não lhefaltava; contudo, não sabia concretizar: perdia-se,perdia-se, como água mal encanada que depois decorrer um pouco fosse absorvida por um terrenoporoso. A razão talvez fosse esta: enquanto po-dia dedicar-se à apicultura por conta própria, qua-se em segredo, sem precisar tratar com ninguém,realizando-se de vez em quando numa oferta demel e cera que ninguém lhe pedira, teria de exe-cutar essas obras de canalização considerando va-riados interesses, submetendo-se às opiniões e àsordens do barão ou de qualquer outro que lhe en-comendasse o trabalho. Tímido e irresoluto comoera, não se opunha jamais à vontade dos outros,mas logo se desinteressava do trabalho e o deixa-va de lado.

Era possível vê-lo a qualquer hora, no meio deum terreno, com homens armados de pás e enxa-das, ele com um metro antigo e um mapa enrola-do, dando ordens para escavar um canal e mensu-rar o terreno com seus passos, que, sendo curtíssi-mos, era obrigado a alongar de forma exagerada.Dava início às escavações naquele lugar, depoisnoutro, mandava interromper, e recomeçava a ti-rar medidas. Chegava a noite e tudo parava. Eradifícil que no dia seguinte decidisse retomar o tra-balho naquele ponto. Desaparecia por uma sema-na.

De aspirações, impulsos, desejos era feita suapaixão pela hidráulica. Era uma recordação quetinha no coração, as belíssimas, bem irrigadas ter-ras do sultão, hortas e jardins em que ele deve-ria ter sido feliz, o único período realmente felizde sua vida; e àqueles jardins da Barbaria ou daTurquia comparava continuamente os campos dePenúmbria, e era levado a corrigi-los, a tratar deidentificá-los com sua lembrança e, sendo a hi-dráulica a sua arte, nela concentrava esse dese-jo de mutação, e continuamente chocava-se com

uma realidade diferente, e daí sobrevinha a desi-lusão.

Praticava também a rabdomancia, às ocultas,pois corriam ainda os tempos em que aquelas es-tranhas artes podiam provocar o preconceito dafeitiçaria. Certa vez Cosme o descobriu num pra-do a fazer piruetas agitando uma vara bifurcada.Também aquilo devia ser uma tentativa de repetiralgo que vira outros fazendo e em que não tinhanenhuma prática, pois daí nada resultou.

Compreender o caráter de Eneias Sílvio Car-rega foi vantajoso num sentido: Cosme entendeumuita coisa sobre estar sozinho que lhe serviumais tarde. Diria que conservou sempre a ima-gem esquiva do cavaleiro advogado, como adver-tência de um modo como pode se tornar o homemque separa a sua sorte da dos outros, e conseguiununca se assemelhar a ele.

12

POR VEZES COSME ERA ACORDADO à noite aosgritos de:

— Socorro! Os bandidos! Corram atrás deles!Pelas árvores, dirigia-se rápido ao lugar de on-

de provinham os gritos. Acontecia ser uma cabanade pequenos proprietários, e uma pobre família se-midespida estar do lado de fora com as mãos nacabeça.

— Ai de nós, ai de nós, apareceu João do Matoe roubou toda a colheita!

Juntava gente.— João do Mato? Era ele? Vocês o viram?— Era ele! Era ele mesmo! Usava máscara,

uma pistola assim grande, e vinham mais doismascarados atrás, e quem comandava era ele! EraJoão do Mato!

— E onde está? Onde foi parar?— Ah, sim, é claro, pegar João do Mato! Qu-

em sabe onde andará a esta hora!Ou então quem gritava era um viajante deixa-

do no meio da estrada, sem nada, cavalo, bolsa,manto e bagagem.

— Socorro! Pega ladrão! João do Mato!— Como foi? Conta logo!— Veio daquele lado, escuro, barbudo, de ar-

ma em punho, por pouco não morro!— Rápido! Atrás dele! Pra que lado foi?— Por aqui! Não, talvez por lá! Corria como

o vento!Cosme enfiara na cabeça que ia encontrar

João do Mato. Percorria o bosque de um extremoa outro atrás de lebres ou de pássaros, incitando obassê:

— Fuça, fuça, Ótimo Máximo!Mas o que ele pretendia desentocar era o ban-

dido em pessoa, sem a pretensão de fazer ou dedizer-lhe nada, só para ver de frente uma pes-soa tão comentada. Contudo, jamais conseguiraencontrá-lo, nem quando circulava a noite inteira.

“Quem sabe não terá saído esta noite”, dizia-seCosme; ao contrário, de manhã, em algum pontodo vale, havia um monte de gente na soleira deuma casa ou numa curva da estrada que falava danova rapina. Cosme acorria, e ficava com ouvi-dos escancarados escutando aquelas histórias.

— Mas você, que anda sempre pelas árvoresdo bosque — perguntou alguém certa vez —,nunca viu João do Mato?

Cosme envergonhou-se muito.— Ah… acho que não…— E como é que você quer que ele o tenha

visto? — questionou um outro. — João do Matotem esconderijos que ninguém consegue encon-trar, e caminha por estradas que ninguém conhe-ce!

— Com a recompensa que dão pela sua cabe-ça, quem o agarrar está garantido por toda vida!

— Sim! Mas aqueles que sabem onde ele estátambém têm contas para acertar com a justiça, ese saem da toca vão juntos para a forca!

— João do Mato! João do Mato! Mas serámesmo sempre ele quem comete esses crimes?

— Veja, ele já tem tantas acusações que, seconseguisse isentar-se da punição de dez roubos,nesse meio-tempo acabaria enforcado pelo déci-mo primeiro!

— Já assaltou em todos os bosques da costa!— Quando jovem, matou até um chefe do

bando!— Foi também um bandido dos próprios ban-

didos!— Por isso veio refugiar-se por estes lados!— É que nós somos gente muito boa!A cada notícia nova Cosme ia conversar com

os caldeireiros. Entre o pessoal acampado no bos-que, havia naquele tempo toda uma família deobscuros ambulantes: caldeireiros, empalhadoresde cadeiras, catadores de trapos, gente que circulapelas casas, premeditando de manhã o roubo quepraticará à noite. No bosque, além da oficina,mantinham o refúgio secreto, o esconderijo dobutim.

— Souberam? Esta noite João do Mato assal-tou uma carruagem!

— Verdade? Com ele tudo é possível…

— Travou os cavalos a galope, agarrando-ospelo focinho!

— Bem, ou não era ele ou em vez de cavaloseram grilos…

— O que estão dizendo? Não acreditam quefosse João do Mato?

— Mas é claro que sim, que ideia quer pôr nacabeça dele, você? Era João do Mato, certamen-te!

— E do que não é capaz João do Mato?— Ah, ah, ah!Ao ouvir falar de João do Mato dessa manei-

ra, Cosme não entendia mais nada, ia para o bos-que e ficava à escuta noutro acampamento de am-bulantes.

— Digam-me, segundo vocês, a história dacarruagem desta noite era um golpe de João doMato, não?

— Todos os golpes têm a marca de João doMato quando dão certo. Não sabia?

— Por que quando dão certo?— Porque, quando dão errado, significa que

são de João do Mato realmente!

— Ah, ah! Aquele trapalhão!Cosme não entendia mais nada.— João do Mato é um trapalhão?Então os outros se apressavam em mudar o

tom:— Nada disso, é um bandido que mete medo

em todo mundo!— Mas vocês o viram?— Nós? E quem é que já o viu?— Mas vocês têm certeza de que ele existe?— Boa esta! Claro que existe! E mesmo que

não existisse…— Se não existisse?— …Seria tal e qual. Ah, ah, ah!— Mas todos dizem…— Decerto, assim se deve dizer: é João do

Mato quem rouba e mata por todos os lados,aquele terrível bandido! Gostaríamos de ver al-guém que duvidasse disso!

— Será que você, menino, teria coragem depôr isso em dúvida?

Em resumo, Cosme entendera que o medo deJoão do Mato que dominava a parte baixa do

vale, à medida que se subia rumo ao bosque,transformava-se numa atitude interrogativa emuitas vezes abertamente derrisória.

Passou-lhe a curiosidade de encontrá-lo, poisentendeu que João do Mato pouco importava àspessoas mais espertas. E foi justamente aí queaconteceu de encontrá-lo.

Uma tarde, Cosme estava em cima de umanogueira, e lia. Desde algum tempo, vinha-lhe anostalgia de certos livros: ficar o dia inteiro como fuzil em punho, esperando a chegada de umtentilhão, acaba enjoando.

Assim, lia o Gil Blas, de Lesage, tendo numadas mãos o livro e na outra o fuzil. Ótimo Má-ximo, a quem não agradavam as leituras do pa-trão, andava em círculo, buscando pretextos paradistraí-lo: por exemplo, latindo para uma borbo-leta, para ver se conseguia fazer com que lheapontasse o fuzil.

Eis então que, montanha abaixo, pelo cami-nho, vinha correndo e ofegando um barbudo mal-

vestido, desarmado, tendo atrás dois guardas comsabres desembainhados que gritavam:

— Detenham-no! É João do Mato! Consegui-mos tirá-lo da toca, finalmente!

Agora o bandido se distanciara um pouco dospoliciais, mas, se continuasse a mover-se indeci-so como quem tem medo de errar o rumo ou decair numa armadilha, logo teria os dois de no-vo nos calcanhares. A nogueira de Cosme nãooferecia apoio a quem quisesse subir, mas ele ti-nha num galho uma corda daquelas que carrega-va sempre para superar as passagens difíceis. Jo-gou uma ponta para o chão e amarrou a outra aum ramo. O bandido viu cair-lhe a corda quaseno nariz, torceu as mãos num instante de incer-teza, depois agarrou-se à corda e trepou rapidís-simo, revelando-se um daqueles incertos impul-sivos ou impulsivos incertos que parecem jamaissaber captar o momento exato e, pelo contrário,acertam todas as vezes.

Chegaram os guardas. A corda já fora içada eJoão do Mato estava ao lado de Cosme na copada nogueira. Havia uma encruzilhada. Os guardas

dividiram-se e não sabiam mais para que lado ir.E deram de cara com Ótimo Máximo, que sacu-dia o rabo naquelas paragens.

— Ei — disse um dos policiais —, este nãoé o cachorro do filho do barão, aquele que vivenas árvores? Se o rapaz estiver por aqui, poderádizer-nos alguma coisa.

— Estou aqui em cima! — gritou Cosme.Mas já não estava na nogueira de antes e onde

se escondera o bandido: deslocara-se rapidamen-te para um castanheiro ali em frente, e assim osguardas ergueram logo a cabeça naquela direção,sem olhar as árvores ao redor.

— Bom dia, senhorzinho — disseram. — Poracaso não teria visto o assaltante João do Matopassar correndo?

— Não sei quem seria — respondeu Cosme—, mas, se procuram um homenzinho que corria,tomou o rumo da torrente…

— Um homenzinho? É um colosso de homemque mete medo…

— Bem, aqui de cima todos parecem peque-nos…

— Obrigado, senhorzinho. — E pegaram umatalho para a torrente.

Cosme voltou para a nogueira e recomeçou aler Gil Blas. João do Mato continuava abraçadoao galho, pálido em meio aos cabelos e barba hir-sutos e vermelhos como urzes, com mistura defolhas secas, cascas de castanha e agulhas de pi-nheiro. Examinava Cosme com dois olhos ver-des, redondos e perdidos; feio, era feio.

— Foram embora? — decidiu-se a perguntar.— Sim, sim — disse Cosme, afável. — O se-

nhor é o bandido João do Mato?— Como é que me conhece?— Bem, pela sua fama.— E o senhor é aquele que não desce das ár-

vores?— Sim. Como sabe?— Bem, também eu, pela fama que corre.Olharam-se com cortesia, como duas pessoas

de respeito que se encontram por acaso e ficamcontentes por não serem desconhecidas uma daoutra.

Cosme não sabia mais o que dizer, e recome-çou a ler.

— O que anda lendo de bom?— O Gil Blas, de Lesage.— Vale a pena?— Sim.— Falta muito para acabar?— Por quê? Bem, umas vinte páginas.— Porque, quando terminar, queria saber se

podia me emprestar — sorriu, meio confuso. —Sabe, passo os dias escondido, não sei o que fa-zer. Se tivesse um livro de vez em quando… Cer-ta vez parei uma carruagem, não tinha grande coi-sa, mas havia um livro e eu o apanhei. Levei-ocomigo, escondido no casaco; teria trocado todoo resto do butim em troca daquele livro. De noite,acendo a lanterna, preparo-me para ler… era emlatim! Não entendia uma palavra… — Sacudiu acabeça. — Olhe, latim eu não sei…

— Bem, latim, puxa, é duro — disse Cosme,e sentiu que, a contragosto, assumia um ar prote-tor. — Este aqui é em francês…

— Francês, toscano, provençal, castelhano,entendo tudo — disse João do Mato. — Tambémum pouco de catalão: Bon dia! Bona nit! Està lamar mòlt alborotada.

Em meia hora Cosme terminou o livro eemprestou-o a João do Mato.

Assim estabeleceram relações meu irmão e obandido. Logo que João do Mato terminava umlivro, corria para devolvê-lo a Cosme, pedia outroemprestado, corria para proteger-se em seu refú-gio secreto, e mergulhava na leitura.

Quem conseguia os livros para Cosme era eu,na biblioteca da casa e, ao terminar a leitura, eleme restituía um após outro. Começou então a de-morar mais porque depois de os ler passava-ospara João do Mato, e muitas vezes voltavam coma capa arranhada, manchas de mofo, estrias delesma, pois quem sabe onde o bandido os guarda-va.

Em dias fixos, Cosme e João do Mato mar-cavam encontro numa determinada árvore, troca-

vam o livro e se separavam rapidamente, pois obosque estava sempre vigiado pelos guardas. Es-sa operação tão simples era muito perigosa pa-ra ambos: também para meu irmão, que não teriapodido justificar sua amizade com aquele crimi-noso! Mas João do Mato fora acometido por umatal fúria de leitura, que devorava romances e maisromances e, ficando o dia inteiro escondido a ler,num dia devorava certos tomos aos quais meu ir-mão dedicara uma semana, e então não havia jei-to, exigia outro, e se não era o dia combinadolançava-se pelos campos atrás de Cosme, assus-tando as famílias nas cabanas e arrastando em su-as pegadas toda a força pública de Penúmbria.

Agora, a Cosme, sempre pressionado pelospedidos do assaltante, não lhe bastavam os livrosque eu conseguia e teve de procurar outros forne-cedores. Conheceu um livreiro judeu, um tal deOrbeque, que lhe arranjava também obras em vá-rios tomos. Cosme ia bater na janela dele atravésdos ramos de uma alfarrobeira, levando-lhe lebre,tordos e estarnas recém-caçados em troca dos vo-lumes.

Porém, João do Mato tinha suas preferências,não era possível dar-lhe um livro qualquer, casocontrário voltava no dia seguinte para Cosme otrocar. Meu irmão estava na idade em que se co-meça a tomar gosto pelas leituras mais densas,mas era obrigado a ir devagar, desde quando Joãodo Mato devolveu-lhe As aventuras de Telêmacoadvertindo-o de que, se lhe desse outra vez um li-vro tão chato, ele serraria a árvore em que esti-vesse.

A esta altura, Cosme gostaria de separar os li-vros que desejava ler por conta própria, com todaa calma, daqueles que conseguia só para empres-tar ao bandido. Que nada: pelo menos uma espi-ada devia dar também nestes, pois João do Ma-to tornava-se cada vez mais exigente e desconfi-ado, e antes de pegar um livro queria que ele lhecontasse um pouco da trama, e ai dele se errasse.Meu irmão tentou passar-lhe romances de amor:o bandido aparecia furioso perguntando se o con-fundira com alguma mulherzinha. Não dava paraadivinhar qual era a preferência dele.

Em resumo, com João do Mato sempre noscalcanhares, as leituras de Cosme, de distraçãonas horas vagas, passaram a ocupação principal,objetivo do dia inteiro. E, à força de manejar vo-lumes, de julgá-los e compará-los, de ter de co-nhecer sempre outros e novos, entre leituras paraJoão do Mato e a crescente necessidade de leitu-ras suas, Cosme foi arrastado a tamanha paixãopelas letras e por todo o saber humano que nãolhe bastavam as horas do amanhecer ao pôr do solpara aquilo que gostaria de ler, e continuava tam-bém no escuro à luz de lanterna.

Finalmente, descobriu os romances de Ri-chardson. Agradaram a João do Mato. Terminadoum, logo queria outro. Orbeque conseguiu-lheuma pilha de volumes. O bandido tinha o que lerpor um mês. Cosme, reencontrada a paz, lançou-se sobre as vidas de Plutarco.

João do Mato, entretanto, estendido em seucatre, os hirsutos cabelos vermelhos cheios de fo-lhas secas na testa enrugada, os olhos verdes quese avermelhavam com o esforço, lia sem parar,mexendo a mandíbula num soletrar furioso, man-

tendo no alto um dedo úmido de saliva pronto pa-ra virar a página. Ao descobrir Richardson, foi to-mado por uma predisposição que já vinha incu-bando: um desejo de jornadas rotineiras domés-ticas, de parentes, de sentimentos familiares, devirtude, de aversão pelos maus e pelos viciados.Tudo aquilo que o circundava já não lhe interes-sava, enchia-o de desgosto. Não saía mais do es-conderijo a não ser para ir atrás de Cosme e tro-car de livro, especialmente se fosse um romancecom mais de um volume e tivesse ficado no meioda história. Vivia assim, isolado, sem perceber atempestade de ressentimentos que gerava contraele inclusive entre os moradores do bosque, an-tigamente cúmplices fiéis mas que agora já se ti-nham cansado de aturar um bandido inativo, queatraía todos os policiais.

Tempos atrás, tinham estreitado fileiras comele todos aqueles que, nas redondezas, possuíamcontas a ajustar com a justiça, às vezes pouca coi-sa, pequenos roubos de rotina, como os daque-les vagabundos que consertavam panelas, ou de-litos para valer, como os dos seus companheiros

bandidos. Para cada furto ou rapina aquela gen-te se valia da autoridade e experiência dele, utili-zando como escudo seu nome, que corria de bo-ca em boca e deixava o deles na sombra. E mes-mo quem não participava dos golpes desfruta-va de algum modo dos resultados, pois o bosqueenchia-se de objetos roubados e de contraban-do, que era preciso desfazer ou revender, e todosaqueles que zanzavam por ali encontravam umjeito de traficar com tudo aquilo. E ainda: quemroubava por conta própria, sem avisar João doMato, servia-se desse nome terrível para assustaras vítimas e obter o máximo. As pessoas viviamaterrorizadas, viam em cada malfeitor um João doMato ou alguém do seu bando e apressavam-se adesatar os cordões da bolsa.

Esses bons tempos duraram muito; João doMato descobrira que podia viver de rendas, epouco a pouco se acomodara. Achava que tudocontinuava como antes, mas, ao contrário, os âni-mos haviam mudado e seu nome já não inspiravanenhuma consideração.

Agora, a quem era útil João do Mato? Ficavaescondido com os olhos vermelhos de tanto lerromances, não aplicava mais golpes, no bosqueninguém mais podia cuidar dos próprios negó-cios, vinham os policiais todos os dias paraprocurá-lo e qualquer desgraçado que tivesse umar minimamente suspeito era levado. Se se acres-centar a tentação que significava a recompensapela cabeça dele, ficava claro que os dias de Joãodo Mato estavam contados.

Dois outros bandidos, dois jovens que tinhamsido protegidos por ele e não conseguiamresignar-se a perder aquele grande chefe, quise-ram dar-lhe a chance de reabilitar-se. Chamavam-se Hugão e Bonitão e haviam integrado o bandodos ladrões de fruta. Agora, adolescentes, tinhamse tornado bandidos de respeito.

Assim, foram procurar João do Mato na ca-verna. Estava lá, deitado na palha.

— Sim, quem é? — perguntou, sem tirar osolhos do papel.

— Queríamos propor uma coisa, João do Ma-to.

— Hum… O quê? — E lia.— Sabe onde é a casa de Constâncio, o fiscal

da alfândega?— Sim, sim… Hein? O quê? Quem é o fiscal

da alfândega?Bonitão e Hugão trocaram um olhar contrari-

ado. Se não lhe tirassem aquele maldito livro doalcance da vista, o bandido não entenderia nemuma palavra.

— Fecha o livro um pouco, João do Mato.Ouve o que temos a dizer.

João do Mato agarrou o livro com ambas asmãos, levantou-se de joelhos, deu um jeito paraapertá-lo contra o peito, mantendo-o aberto noponto em que chegara, mas a vontade de continu-ar a ler era tanta que, sempre tendo-o bem próxi-mo, ergueu-o até poder enfiar o nariz dentro dele.

Bonitão teve uma ideia. Por perto havia umateia de aranha com sua dona. Bonitão levantoucom as mãos ágeis a teia com a aranha dentro ejogou-a em cima de João do Mato, entre livro enariz. O desgraçado do João do Mato andava tãomole a ponto de ter medo de aranha. Sentiu no na-

riz aquela mistura de patas de aranha e filamentospegajosos, e, antes de entender o que era, soltouum grito de susto, deixou cair o livro e começoua abanar as mãos na frente do rosto, os olhos ar-regalados e a boca cheia de saliva.

Hugão deu um pulo e conseguiu pegar o livroantes que João do Mato pusesse um pé em cimadele.

— Me dá esse livro de volta! — disse João doMato, tentando livrar-se da aranha e da teia comuma das mãos, e com a outra arrancar o livro dasmãos de Hugão.

— Não, ouve antes! — disse Hugão escon-dendo o livro nas costas.

— Estava lendo Clarisse. Me dá de volta! Es-tava no momento culminante…

— Escute. Nós vamos levar hoje de noite umcarregamento de lenha na casa do fiscal. No saco,em vez de lenha, vai você. De madrugada, sai dosaco…

— Eu quero terminar Clarisse! — Conseguiralivrar as mãos das últimas gosmas da teia e tenta-va lutar contra os dois jovens.

— Ouça… Quando for de madrugada, vocêsai do saco, armado com suas pistolas, arranca dofiscal tudo o que foi arrecadado na semana, queele guarda no cofre que está na cabeceira da ca-ma…

— Deixem ao menos eu terminar o capítulo…Sejam gentis…

Os dois jovens pensavam no tempo em que,ao primeiro que tentasse contrariá-lo, João doMato apontava duas pistolas na barriga. Amarganostalgia.

— Você pega os sacos de dinheiro, está bem?— insistiram, tristemente —, entrega tudo paranós, que devolveremos o livro e você poderá lerquando quiser. Está bem assim? Topa?

— Não. Não está bem. Não vou!— Então não vai… É assim, é… Então olhe!

— E Hugão pegou uma página do final do livro(“Não!”, berrou João do Mato.), arrancou-a(“Não! Para!”), fez uma bolinha, jogou-a no fogo.

— Aaah! Cachorro! Não pode fazer isso! Vouficar sem saber como acaba! — E corria atrás deHugão para arrancar-lhe o livro.

— Agora você vai à casa do fiscal?— Não, não vou!Hugão arrancou mais duas páginas.— Pare com isso! Ainda não cheguei aí! Você

não pode queimá-las!Hugão já tinha mandado as duas para o fogo.— Porco! Clarisse! Não!— Então, vai?— Eu…Hugão arrancou mais três páginas e atirou-as

no fogo! João do Mato sentou-se com o rosto en-tre as mãos.

— Vou — rendeu-se. — Mas vocês me pro-metem que vão esperar com o livro fora da casado fiscal.

O bandido foi fechado num saco, com um fei-xe de lenha na cabeça. Atrás vinha Hugão com olivro. Às vezes, quando João do Mato com um ar-rastar de pés ou com um grunhido dentro do sacomostrava estar a ponto de arrepender-se, Hugãoo fazia ouvir o rumor de uma página arrancada eJoão do Mato logo ficava bonzinho.

Desse jeito o levaram, vestidos de lenhadores,até a casa do fiscal e o deixaram lá. Foramesconder-se por perto, atrás de uma oliveira, es-perando a hora em que, executado o trabalho, de-via alcançá-los.

Mas João do Mato estava com muita pressa,saiu antes de acabar de escurecer, ainda haviamuita gente pela casa.

— Mãos ao alto! — Porém, já não era aquelede antes, era como se olhasse de fora, sentia-semeio ridículo. — Mãos ao alto, eu disse… Todosnesta sala, encostados na parede… — Mas quenada: nem ele acreditava mais naquilo, dizia pordizer. — Estão todos aqui? — Nem notara queuma menina tinha fugido.

De qualquer modo, era coisa para não se per-der um minuto. Ao contrário, a cena rendeu, o fis-cal bancava o tonto, não encontrava a chave, Joãodo Mato percebia que já não o levavam a sério, eno fundo estava contente que fosse assim.

Finalmente, saiu com os braços cheios de bol-sas com moedas. Correu quase às cegas para aoliveira combinada.

— Aqui está tudo o que havia! DevolvamClarisse!

Quatro, sete, dez braços se lançaram sobreele, imobilizaram-no das costas até as canelas. Ti-nha sido preso por um grupo de guardas e amar-rado como um presunto.

— Você há de ver Clarisse quadradinha! — eo levaram para o cárcere.

A prisão era uma pequena torre à beira-mar.Um bosque de pinheiros crescia ao lado. Do altode uma das velhas árvores, Cosme chegava quaseà altura da cela de João do Mato e via o seu rostoatrás das grades.

Ao bandido não interessava nada dos interro-gatórios e do processo; de um jeito ou de outro,terminaria na forca; mas sua preocupação eramaqueles dias vazios ali na cadeia, sem poder ler, eaquele romance deixado pelo meio. Cosme con-seguiu outra cópia de Clarisse e levou-a até o pi-nheiro.

— Aonde você tinha chegado?— Ao ponto em que Clarisse foge da casa de

má fama!

Cosme folheou um pouco e logo:— Ah, sim, aqui está. Portanto… — E come-

çou a ler em voz alta, virado para a janela de gra-des, à qual se agarravam as mãos de João do Ma-to.

O processo foi demorado; o bandido resistiaao cerco da corda; para fazê-lo confessar cada umde seus inúmeros crimes eram necessários dias edias. Todos os dias, antes e depois dos interroga-tórios ficava escutando Cosme, que continuava aleitura. Terminada Clarisse, sentindo-o um tantotriste, Cosme achou que Richardson, para quemestá preso, talvez fosse meio deprimente; e pre-feriu começar a ler para ele um romance de Fiel-ding, cujo enredo movimentado lhe compensariaum pouco da liberdade perdida. Eram os dias doprocesso, e João do Mato só tinha cabeça para oscasos de Jonathan Wild.

Antes que o romance fosse concluído, chegouo dia da execução. Na carroça, acompanhado porum frade, João do Mato fez sua última viagemcomo ser vivo. Os enforcamentos em Penúmbria

eram feitos num alto carvalho no meio da praça.Ao redor, o povo fazia um círculo.

Já com a corda no pescoço, João do Mato ou-viu um assovio entre os galhos. Ergueu o rosto.Descobriu Cosme com o livro fechado.

— Conta como termina — pediu o condena-do.

— Lamento dizer, João — respondeu Cosme—, Jonas acaba pendurado pela garganta.

— Obrigado. O mesmo aconteça comigo!Adeus! — E ele mesmo deu um pontapé na esca-da, enforcando-se.

Quando o corpo parou de se debater, a multi-dão foi embora. Cosme permaneceu até a noite,apoiado no ramo do qual pendia o enforcado. To-das as vezes que um corvo se aproximava para bi-car os olhos ou o nariz do cadáver, Cosme o ex-pulsava agitando o gorro.

13

PORTANTO, CONVIVENDO COM O BANDIDO, Cos-me adquirira uma paixão desmesurada pela leiturae pelo estudo, que lhe ficou pelo resto da vida. Aatitude habitual em que passara a ser encontradoera com um livro aberto na mão, acavalado numgalho cômodo, ou então apoiado numa forquilhacomo num banco de escola, uma folha pousada nu-ma tabuleta, o tinteiro num oco da árvore, escre-vendo com uma longa pena de pato.

Agora era ele quem procurava o abade Fauche-lafleur para as lições, para que lhe explicasse Táci-to e Ovídio, os corpos celestes e as leis da química,mas o velho padre, além de um pouco de gramáti-ca e uma dose de teologia, afogava-se num mar dedúvidas e de lacunas, e perante as questões do alu-no alargava os braços e erguia os olhos para o céu.

— Monsieur l’abbé, quantas mulheres se po-de ter na Pérsia? Monsieur l’abbé, quem é o vigá-rio Savoiardo? Monsieur l’abbé, poderia me ex-plicar o sistema de Lineu?

— Alors… Voyons… Maintenant… — come-çava o abade, depois se perdia, e não ia adiante.

Mas Cosme, que devorava livros de todo tipoe passava metade de seu tempo a ler e a outrametade caçando para pagar as contas do livreiroOrbeque, tinha sempre alguma nova história paracontar. Sobre Rousseau, que passeava colhendoervas pelas florestas da Suíça, sobre BenjaminFranklin, que pegava raios com pipas, sobre o ba-rão de La Hontan, que vivia feliz entre os índiosda América.

O velho Fauchelafleur escutava tais discursoscom maravilhada atenção, não sei se por verda-deiro interesse ou apenas pelo alívio de não ter deser ele a ensinar; e concordava, e intervinha comexpressões do tipo: “Non! Ditesle moi!”, quandoCosme se dirigia a ele perguntando: “E sabe co-mo é que…?”, ou então com: “Tiens! Mais c’estépatant!”, quando Cosme lhe dava a resposta, e

às vezes com: “Mon Dieu!”, que podiam ser tantode exaltação pelas novas grandezas de Deus quenaquele momento lhe eram reveladas, quanto deamargura pela onipotência do mal que sob todasas formas dominava sem freios o mundo.

Eu era muito criança e Cosme só tinha amigosnas classes não letradas, por isso sua necessidadede comentar as descobertas que ia fazendo nos li-vros eram desafogadas enchendo de perguntas eexplicações o velho preceptor. O abade, é sabido,possuía aquela disposição condescendente e con-ciliante que lhe advinha de uma consciência su-perior da vaidade de tudo; e Cosme se aproveita-va disso. Assim, a relação de aprendizagem en-tre os dois inverteu-se: Cosme passava a profes-sor e Fauchelafleur a discípulo. E tanta autorida-de adquirira meu irmão, que conseguia arrastarcom ele o velho trêmulo em suas peregrinaçõespelas árvores. Conseguiu fazê-lo passar uma tar-de inteira com as magras pernas pendentes numgalho de castanheiro-da-índia, no jardim dos Ro-damargem, contemplando as plantas raras e o pôrdo sol que se refletia no tanque dos nenúfares,

discutindo sobre monarquias e repúblicas, o justoe o verdadeiro nas diversas religiões, ritos chine-ses, o terremoto de Lisboa, a garrafa de Leiden, osensacionismo.

Era hora da minha lição de grego e ninguémencontrava o preceptor. Alertou-se toda a família,deu-se uma batida no campo para procurá-lo,chegou-se até a vasculhar a criação de peixes te-mendo que, distraído, pudesse ter caído e se afo-gado. Ao anoitecer voltou para casa, lamentando-se de uma dor lombar, consequência das longashoras que passara sentado em posição tão incô-moda.

Mas não se pode esquecer que, no velho jan-senista, tal estado de passiva aceitação de tudo sealternava com momentos de retomada de sua pai-xão original pelo rigor espiritual. E se, enquan-to ficava distraído e dócil, acolhia sem resistênciaqualquer ideia nova ou libertina, por exemplo, aigualdade dos homens perante a lei, ou a honesti-dade dos povos selvagens, ou a influência nefas-ta das superstições, quinze minutos depois, assal-tado por um acesso de austeridade e de absolu-

tismo, mergulhava naquelas ideias aceitas poucoantes de modo tão leviano e lhes transmitia todasua necessidade de coerência e de severidade mo-ral. Então em seus lábios os deveres dos cidadãoslivres ou as virtudes do homem que segue a reli-gião natural transformavam-se em regras de umadisciplina impiedosa, artigos de uma fé fanática,e fora disso só via um negro quadro de corrup-ção, e todos os novos filósofos eram demasiadofrouxos e superficiais na denúncia do mal, e o ca-minho da perfeição, embora árduo, não permitiacompromissos ou meios-termos.

Perante esses sobressaltos imprevistos do aba-de, Cosme já não ousava dizer nada, com medode ser censurado de incoerente e não rigoroso, e omundo luxuriante que em seus pensamentos ten-tava suscitar tornava-se árido como um cemitériode mármore. Por sorte o abade cansava-se logodessas tensões da vontade, e ficava ali prostrado,como se examinar cada conceito para reduzi-lo apura essência o deixasse presa de sombras dissol-vidas e impalpáveis: piscava os olhos, dava um

suspiro, do suspiro passava ao bocejo, e retorna-va ao nirvana.

Mas, entre uma e outra disposição de ânimo,dedicava então suas jornadas a supervisionar osestudos encetados por Cosme, e fazia a ligaçãoentre as árvores em que ele se encontrava e a lojade Orbeque, para encomendar livros aos negoci-antes de Amsterdam ou Paris, e para retirar osrecém-chegados. E assim preparava a sua desgra-ça. Porque o boato de que em Penúmbria exis-tia um padre que se mantinha a par de todas aspublicações mais excomungadas da Europa logochegou ao tribunal eclesiástico. Certa tarde, osguardas se apresentaram em nossa vila para ins-pecionar a cela do abade. Entre os breviários deleencontraram as obras de Bayle, ainda intocadas,mas foi o que bastou para que o prendessem e olevassem.

Foi uma cena bem triste, naquela tarde nebu-losa, lembro como a segui estarrecido da janelado meu quarto, e parei de estudar a conjugação doaoristo, pois não haveria mais lição. O velho pa-dre Fauchelafleur afastava-se pela alameda entre

aqueles brutamontes armados, e erguia os olhospara as árvores, e num certo ponto deu um saltocomo se quisesse correr em direção a um olmo esubir nele, mas as pernas lhe faltaram. Naqueledia Cosme estava caçando no bosque e não sabiade nada; assim, nem se despediram.

Não pudemos fazer nada para ajudá-lo. Papaifechou-se no quarto e não queria provar a comi-da, pois tinha medo de ser envenenado pelos je-suítas. O abade passou o resto de seus dias entreprisões e convento, em contínuas abjurações, atémorrer, sem ter compreendido, depois de uma vi-da inteira dedicada à fé, em que coisas ainda acre-ditava, porém tentando firmemente acreditar ne-las até o derradeiro momento.

Contudo, a prisão do abade não provocou ne-nhum prejuízo nos progressos da educação deCosme. É daquele período que data a sua corres-pondência com os maiores filósofos e cientistaseuropeus, aos quais ele se dirigia a fim de que lheresolvessem problemas e contestassem objeções,

ou então só pelo prazer de discutir com espíritosmelhores e ao mesmo tempo exercitar-se nas lín-guas estrangeiras. Pena que suas cartas, que guar-dava em cavidades de árvores conhecidas só porele, jamais tenham sido encontradas, e na certaacabaram sendo roídas por esquilos ou mofaram;ali seriam descobertas cartas escritas de punhopróprio pelos mais famosos sábios do século.

Para conservar os livros, Cosme construiu emdiversas ocasiões algo semelhante a bibliotecaspênseis, protegidas da chuva e dos roedores, masmudava-as constantemente de lugar, segundo osestudos e os gostos do momento, pois ele consi-derava os livros um pouco como pássaros e nãoqueria vê-los parados ou engaiolados, senão seentristeciam. Na mais maciça daquelas estantesaéreas alinhava os tomos da Enciclopédia, de Di-derot e D’Alembert, à medida que lhe chegavamde um livreiro de Livorno. E mesmo que, nos úl-timos tempos, à força de estar em meio aos livrosficara com a cabeça meio nas nuvens, cada vezmenos interessado pelo mundo ao redor, agora,a leitura da Enciclopédia, certos belíssimos ver-

betes como Abeille, Arbre, Bois, Jardin faziam-no redescobrir todas as coisas em torno como no-vas. Dentre os livros que encomendava começa-ram a figurar também manuais de artes e ofícios,por exemplo, a arboricultura, e não via a hora deaplicar os novos conhecimentos.

Cosme sempre gostara de observar as pessoasno trabalho, mas até então suas deslocações e ca-çadas haviam sempre correspondido a impulsosisolados e injustificáveis, como se fosse um pas-sarinho. Ao contrário, agora estava tomado pelanecessidade de fazer algo de útil ao próximo. Etambém isso, pensando bem, era uma coisa quetinha aprendido na convivência com o bandido:o prazer de tornar-se útil, de realizar um trabalhoindispensável para os outros.

Aprendeu a arte de podar as árvores, e ofere-cia a sua obra aos cultivadores de pomares, no in-verno, quando as árvores lançam irregulares labi-rintos de ramos secos e parecem não desejar outracoisa além de serem reduzidas a formas mais or-

denadas para cobrir-se de flores e folhas e frutos.Cosme podava bem e pedia pouco: assim não ha-via pequeno proprietário ou arrendatário que nãolhe pedisse ajuda, e era possível vê-lo, no ar cris-talino daquelas manhãs, espigado com as pernaslargas sobre as baixas árvores nuas, o pescoço en-volto numa echarpe até as orelhas, erguer a te-soura e, zac! zac!, com golpes seguros fazer vo-ar ramos secundários e pontas. A mesma técnicausava nos jardins, com as plantas de sombra e or-namentação, armado com uma foice curta, e nosbosques, onde, em vez do machado dos lenhado-res que só servia para golpear a base de um tron-co secular para abatê-lo inteiro, tratou de usar suarápida machadinha que só trabalhava nas ramifi-cações e nos topos.

Em resumo, soube tornar o amor por esseelemento arbóreo, como acontece com todos osamores verdadeiros, também sem piedade e do-loroso, que fere e corta para fazer crescer e darforma. Certamente, ele cuidava sempre, podandoe derrubando árvores, de atender não apenas aointeresse do proprietário da planta mas também

ao seu, de viajante que tem necessidade de tornarmais acessíveis as estradas; por isso, fazia comque os ramos que lhe serviam de ponte entre umaplanta e outra fossem sempre preservados e ga-nhassem força com a supressão dos outros. As-sim, essa natureza de Penúmbria que ele encon-trara tão benigna, com sua arte contribuía paratorná-la pouco a pouco mais favorável a si pró-prio, amigo ao mesmo tempo do próximo, da na-tureza e de si mesmo. E as vantagens desse sábiotrabalho veio a desfrutá-las em idade mais tardia,quando a forma das árvores supria cada vez maisa perda das forças. Depois, bastou o advento degerações desatinadas, com imprevidente avidez,gente sem amizade por nada, nem por si mesma,e tudo então mudou, nenhum Cosme poderá maiscaminhar pelas árvores.

14

SE O NÚMERO DOS AMIGOS DE COSME CRESCIA,ele também fizera inimigos. Os vagabundos dobosque, de fato, após a conversão de João do Matoàs boas leituras, e sua queda posterior, viram-se emmá situação. Uma noite, meu irmão dormia em seuodre pendurado num freixo, no bosque, quando foidespertado por um latido do bassê. Abriu os olhose viu luz; vinha de baixo, havia fogo justamente aopé da árvore e as chamas já atingiam o tronco.

Um incêndio no bosque! Quem o provocara?Cosme tinha certeza de não ter tocado no acende-dor, naquela noite. Portanto, era um golpe dos mal-feitores! Pretendiam queimar o bosque para juntarlenha e ao mesmo tempo jogar a culpa em Cosme;e, de quebra, assá-lo vivo.

De imediato Cosme não pensou no perigo queo ameaçava tão de perto: imaginou que aquele in-terminável reino de caminhos e refúgios só seuspodia ser destruído, e este era todo o seu terror.Ótimo Máximo já fugia para não queimar-se,virando-se de vez em quando para lançar um lati-do desesperado: o fogo estava se propagando pelavegetação rasteira.

Cosme não desanimou. No freixo que entãoconstituía seu refúgio, armazenara, como semprefazia, muitas coisas; dentre elas, uma garrafa comorchata para aplacar a sede no verão. Alcançoua garrafa. Pelos galhos do freixo fugiam os es-quilos e as corujas assustadas e dos ninhos voa-vam os pássaros. Pegou a garrafa e estava a pontode tirar a tampa e molhar o tronco do freixo pa-ra salvá-lo das chamas, quando pensou que o in-cêndio já estava se propagando pelo capim, pe-las folhas secas, pelos arbustos e atingiria todasas árvores ao redor. Decidiu arriscar: “Que se per-ca o freixo! Se com esta bebida consigo molhar ochão em torno, onde as chamas ainda não chega-ram, interrompo o incêndio!”. E, abrindo a garra-

fa, com impulsos ondulantes e circulares dirigiuo jato sobre o terreno, sobre as línguas de fogomais externas, apagando-as. Assim, o fogo na ve-getação rasteira encontrou-se rodeado de capim efolhas molhadas e não pôde mais expandir-se.

Do alto do freixo, Cosme pulou para uma faiapróxima. Escapara por um fio: o tronco, ardendona base, transformou-se de estalo numa fogueira,em meio aos inúteis chiados dos esquilos.

O incêndio teria ficado restrito àquele ponto?Já uma nuvem de centelhas e chamas se propaga-va ao redor; certamente a leve barreira de folhasmolhadas não o impediria de propagar-se.

— Fogo! Fogo! — começou a gritar Cosmecom todas as forças. — Fogooo!

— O quêêê? Quem gritaaa? — ecoavam vo-zes.

Não longe daquele ponto ficava uma carvo-aria, e uma turma de bergamascos amigos deledormia lá numa barraca.

— Fogooo! Socorrooo!Logo toda a montanha era uma gritaria só. Os

carvoeiros dispersos pelo bosque espalhavam a

notícia, em seu dialeto incompreensível. Come-çaram a chegar pessoas de todos os lados. O in-cêndio foi domado.

Essa primeira tentativa de incêndio doloso ede atentado contra sua vida deveria ter alertadoCosme para manter-se longe do bosque. Mas não:começou a preocupar-se em como controlar os in-cêndios. Era o verão de um ano seco e escaldan-te. Nos bosques da costa, nos lados da Proven-ça, ardia havia uma semana um incêndio imen-so. Durante a noite, observavam-se os clarões al-tos na montanha como um resto de pôr do sol.O ar estava seco, plantas e espinhos representa-vam um grande combustível naquela aridez. Pa-recia que os ventos propagavam as chamas emnossa direção, caso não viesse a explodir por aquialgum incêndio casual ou doloso, que se juntariacom aquele numa única fogueira ao longo de todaa costa. O céu parecia não ficar imune a estacarga de fogo: todas as noites, estrelas cadentes

moviam-se em quantidade pelo firmamento e es-perávamos vê-las cair em nossas cabeças.

Naqueles dias de estupor geral, Cosme fez es-toque de pequenos barris e içou-os cheios d’águaaté o cume das plantas mais altas e situadas emlugares dominantes. “Quase nada, mas para algu-ma coisa hão de servir.” Não satisfeito, estudavao regime das torrentes que atravessavam o bos-que, meio secas como estavam, e o das nascentesque soltavam apenas um fio d’água. Foi consultaro cavaleiro advogado.

— Ah, sim! — exclamou Eneias Sílvio Carre-ga, batendo a mão na testa. — Bacias! Diques! Épreciso fazer projetos! — E explodia em peque-nos gritos e saltos de entusiasmo enquanto umamiríade de ideias inundava sua mente.

Cosme obrigou-o a fazer cálculos e desenhos;nesse meio-tempo convocou os proprietários dosbosques particulares, os arrendatários dos bos-ques públicos, os lenhadores, os carvoeiros. To-dos juntos, sob a direção do cavaleiro advogado(ou seja, o cavaleiro advogado submetido a eles,forçado a dirigi-los e a não se distrair) e tendo

Cosme para supervisionar os trabalhos do alto,construíram reservas d’água de modo que em to-do ponto no qual surgisse um incêndio fosse pos-sível sincronizar a ação das bombas.

Mas não bastava, era preciso organizar umgrupo de vigilantes, equipes que em caso de alar-me soubessem logo dispor-se em cadeia para pas-sar baldes d’água de mão em mão e bloquear oincêndio antes que se propagasse. O resultado foiuma espécie de milícia que fazia turnos de guar-da e inspeção noturna. Os homens eram recruta-dos por Cosme entre os camponeses e os artesãosde Penúmbria. De repente, como acontece emqualquer associação, nasceu um espírito corpora-tivo, uma emulação entre as equipes, e sentiam-se prontos para fazer grandes coisas. TambémCosme sentiu uma nova força e contentamento:descobrira uma aptidão para associar pessoas edirigi-las; capacidade da qual, para sorte sua, ja-mais foi levado a abusar, e só a exercitou muitopoucas vezes em sua vida, apenas em função deimportantes resultados a serem conseguidos, eobtendo sempre êxito.

Compreendeu isto: que as associações tornamo homem mais forte e põem em destaque os me-lhores dotes dos indivíduos, e produzem a alegriaque raramente se obtém ficando isolado, ao verquanta gente honesta e séria e capaz existe e pelasquais vale a pena desejar coisas boas (ao passoque vivendo por conta própria é mais frequente ocontrário, acabamos por ver o outro lado das pes-soas, aquele que exige manter sempre a mão naespada).

Portanto, a onda de incêndios trouxe um bomverão: havia um problema comum que todos seempenhavam em resolver, e cada um o colocavana frente de seus interesses pessoais,gratificando-se com a satisfação de ficar em paze harmonia com tantas outras ótimas pessoas.

Mais tarde, Cosme deverá entender que,quando o problema comum não existe mais, asassociações não funcionam bem como antes, evale mais ser um homem só do que um chefe.Mas por enquanto, sendo um chefe, passava asnoites completamente sozinho de sentinela no

bosque, em cima de uma árvore, como sempre vi-vera.

Se por acaso via brilhar um foco de incêndio,instalara no alto de uma árvore uma campainha,que podia ser ouvida de longe e dar o alarme.Com esse sistema, nas três ou quatro vezes emque houve incêndios, conseguiram dominá-losem tempo e salvar os bosques. E, já que existiadolo, descobriram os culpados naqueles dois ban-didos, Hugão e Bonitão, e os expulsaram da re-gião. No final de agosto começaram os aguacei-ros; o perigo dos incêndios havia passado.

Naquele tempo, em Penúmbria, só se ouviafalar bem de meu irmão. Até à nossa casa che-gavam essas opiniões favoráveis, aqueles: “Masé tão esperto”, “Mas certas coisas ele faz muitobem”, com o tom de quem deseja fazer avaliaçõesobjetivas sobre pessoas de diferentes religiões, oude partidos contrários, e quer demonstrar-se demente tão aberta que compreende até as ideiasmais distantes das suas.

As reações da generala a tais notícias erambruscas e sumárias.

— Possuem armas? — perguntava, quandolhe falavam da vigilância contra os incêndios or-ganizada por Cosme. — Fazem exercícios? —Pois ela já pensava na constituição de uma milíciaarmada que pudesse, no caso de uma guerra, to-mar parte em operações militares.

Papai, ao contrário, ouvia em silêncio, sacu-dindo a cabeça de forma que não se entendia secada notícia sobre aquele filho lhe era dolorosaou se, em vez disso, estava de acordo, tocado porum fundo de lisonja, não esperando outra coisaa não ser voltar a ter esperanças nele. Devia serassim, desta última maneira, porque passados al-guns dias montou a cavalo e foi procurá-lo.

Encontraram-se num lugar aberto, com umafila de árvores em volta. O barão conduziu o ca-valo para cima e para baixo duas ou três vezes,sem olhar para o filho, mas já o avistara. Partindoda última planta, de salto em salto, o rapaz veiopara plantas cada vez mais próximas. Quandochegou na frente do pai, tirou o chapéu de palha

(que no verão substituía o boné de gato selvagem)e disse:

— Bom dia, senhor pai.— Bom dia, filho.— O senhor vai bem?— Proporcionalmente aos anos e aos despra-

zeres.— Fico feliz de vê-lo animado.— O mesmo quero dizer de você, Cosme. Ou-

vi contar que você trabalha pelo bem comum.— Sou responsável pela proteção das flores-

tas onde vivo, senhor pai.— Você sabe que uma parte do bosque é pro-

priedade nossa, herança de sua pobre avó Elisa-bete, boa alma?

— Sim, senhor pai. Na localidade de Belrio.Ali crescem trinta castanheiros, vinte e duas fai-as, oito pinheiros e um ácer. Tenho cópia de todosos mapas cadastrais. É justamente como membrode família proprietária de bosques que pretendiassociar todos os interessados em conservá-los.

— Certo — disse o barão, acolhendo favora-velmente a resposta. Mas acrescentou: — Dizem-

me que se trata de uma associação de padeiros,hortelões e cavalariços.

— Também, senhor pai. De todas as profis-sões, desde que honestas.

— Você sabe que poderia comandar a nobrezavassala com o título de duque?

— Sei que, quando tenho mais ideias do queos outros, entrego aos outros tais ideias, se asaceitam; e isto é comandar.

“E para comandar, hoje, é costume ficar emcima das árvores?”, coçava a língua do barão.Mas de que valia trazer à baila aquela história?Suspirou, absorto em seus pensamentos. Depoisdesatou o cinturão em que estava pendurada suaespada.

— Você tem dezoito anos… É hora deconsiderar-se um adulto… Eu já não tenho muitotempo de vida… — E segurava a espada achatadacom as duas mãos. — Você se lembra de que ébarão de Rondó?

— Sim, senhor pai, lembro meu nome.— Pretende ser digno do nome e do título que

carrega?

— Tratarei de ser o mais digno que possa donome de homem, e igualmente de todo atributoseu.

— Receba esta espada, a minha espada. —Ergueu-se sobre os estribos, Cosme abaixou-seno galho e o barão conseguiu cingi-la.

— Obrigado, senhor pai… Prometo que fareibom uso dela.

— Adeus, meu filho. — O barão virou o ca-valo, deu um breve puxão de rédeas, afastou-secavalgando lentamente.

Cosme ficou um momento a pensar se não de-via cumprimentá-lo com a espada, depois refletiuque o pai lhe dera a arma para defender-se e nãopara fazer gestos de parada, e a manteve na bai-nha.

15

FOI NAQUELE PERÍODO QUE, frequentando o ca-valeiro advogado, Cosme apercebeu-se de algo deestranho no comportamento dele, ou melhor, dife-rente do habitual, mais ou menos estranho que fos-se. Como se seu ar absorto não derivasse mais dedistração, mas de um pensamento fixo que o domi-nava. Os momentos em que se mostrava conver-sador eram agora mais frequentes, e se antigamen-te, antissociável como era, jamais punha os pés nacidade, agora ao contrário estava sempre no por-to, nas rodas de conversa ou sentado nos espaldõescom os velhos patrões e marinheiros, comentandoas chegadas e as partidas dos barcos ou as malva-dezas dos piratas.

Ao largo das nossas costas chegavam aindaas falucas dos piratas da Barbaria, perturbando os

nossos tráficos. Hoje era uma pirataria de poucamonta, não mais como nos tempos em que ao en-contrar piratas acabava-se escravo em Túnis ouArgel ou se perdiam nariz e orelhas. Agora, quan-do os maometanos conseguiam alcançar uma tar-tana de Penúmbria, roubavam a carga: barris debacalhau, fôrmas de queijo holandês, rolos de al-godão etc. Às vezes os nossos eram mais ágeis,escapavam, davam um tiro de espingarda contraas velas da faluca; e os bárbaros respondiam cus-pindo, fazendo gestos feios e berrando.

Em suma, era uma pirataria moderada, quecontinuava por causa de certos créditos que os pa-xás daqueles países pretendiam exigir dos nossoscomerciantes e armadores, não tendo sido — se-gundo eles — bem atendidos em algum forneci-mento, ou até lesados. E assim tratavam de saldara conta aos poucos, por meio de roubos, mas aomesmo tempo continuavam as negociações co-merciais, com contínuas contestações e pactos.Portanto, não havia interesse nem de uma partenem de outra em provocar grandes más-criações;e a navegação estava cheia de incertezas e riscos,

os quais, todavia, nunca degeneravam em tragé-dias.

A história que agora contarei foi narrada porCosme em muitas versões diferentes: vou me aterà mais rica em detalhes e menos ilógica. Mesmosendo verdade que meu irmão ao contar suasaventuras acrescentava muito de sua lavra, eu, nafalta de outras fontes, trato sempre de seguir lite-ralmente o que ele dizia.

Certa vez Cosme, que por montar guarda con-tra os incêndios adquirira o hábito de acordar ànoite, viu uma luz que descia pelo vale. Seguiu-aentre os ramos, silencioso com seu passo de gato,e viu Eneias Sílvio Carrega, que caminhava ra-pidinho, com o fez e a chimarra, segurando umalanterna.

O que estaria tramando àquela hora o cavalei-ro advogado, que costumava deitar-se com as ga-linhas? Cosme saiu atrás dele. Estava atento pa-ra não fazer barulho, mesmo sabendo que o tio,quando caminhava tão compenetrado, era igual a

um surdo e só enxergava um palmo diante dospés.

Através de atalhos e veredas o cavaleiro ad-vogado chegou à beira-mar, num trecho de praiapedregosa, e começou a agitar a lanterna. Não ha-via lua, no mar não se conseguia ver nada, ex-ceto um movimento de espuma das ondas maispróximas. Cosme estava num pinheiro, meio dis-tante da margem porque ali rareava a vegetação ejá não era fácil aproximar-se pelos galhos. Con-tudo, distinguia bem o velhote com o alto fez nacosta deserta, que agitava a lanterna voltado paraa escuridão do mar, e daquela escuridão lhe res-pondia uma outra luz de lanterna, de repente, bempróxima, como se tivessem acabado de acendê-la,e emergiu velocíssima uma pequena embarcaçãocom uma vela quadrada escura e remos, diferentedos barcos locais, e aportou.

À ondulante luz das lanternas Cosme viu ho-mens de turbante na cabeça: alguns permanece-ram no barco mantendo-o na margem com pe-quenas pancadas de remos; outros desceram, e ti-nham amplos calções vermelhos bufantes, e tam-

bém brilhantes cimitarras na cintura. O tio eaqueles bárbaros falavam entre si, numa línguaque não se entendia, ainda que frequentemente sepudesse achar o contrário, e certamente era a fa-mosa língua franca. De vez em quando Cosmeentendia uma palavra em nossa língua, sobre aqual Eneias Sílvio insistia, misturando-a com ou-tras palavras incompreensíveis, e as nossas pala-vras eram nomes de navios, conhecidos nomes detartanas ou brigues que pertenciam aos armado-res de Penúmbria ou que faziam a ligação entre onosso porto e outros.

Era fácil entender o que estava dizendo o ca-valeiro! Informava os piratas sobre os dias dechegada e de partida dos navios de Penúmbria,e sobre a carga, a rota, as armas que levavam abordo. Agora o velho devia ter contado tudo oque sabia, pois virou-se e foi embora rapidamen-te, enquanto os piratas subiam na lancha e desa-pareciam no mar de breu. Pelo modo rápido comose deu a conversa entendia-se que devia ser coi-sa habitual. Quem sabe há quanto tempo os aten-

tados bárbaros ocorriam seguindo as informaçõesde nosso tio!

Cosme permanecera no pinheiro, incapaz deafastar-se dali, da praia deserta. Ventava, a ondaroía as pedras, a árvore gemia em todas as suasjuntas e meu irmão batia os dentes, não pelo friodo ar mas pelo frio da triste revelação.

Eis que aquele velhote tímido e misteriosoque nós, quando crianças, sempre consideramosnão confiável e que Cosme pensava ter aprendidoa apreciar e desculpar, revelava-se um traidor im-perdoável, um homem ingrato que desejava o malda terra que o recolhera como um despojo apósuma vida de erros… Por quê? A tal ponto o em-purrava a nostalgia daquelas regiões e daquelagente entre a qual deveria ter se sentido, uma vezna vida, feliz? Ou então incubava um rancor irre-freável contra esta aldeia em que cada bocado de-via saber-lhe à humilhação? Cosme estava dividi-do entre o impulso de correr a denunciar as tra-moias do espião e salvar as cargas de nossos co-merciantes, e o pensamento da dor que isso pro-vocaria em papai, por causa daquele afeto que

inexplicavelmente o ligava àquele irmão natural.Cosme já imaginava a cena: o cavaleiro manieta-do no meio dos policiais, entre duas alas de pe-númbrios que o injuriavam, e assim era conduzi-do até a praça, punham-lhe a corda no pescoço,enforcavam-no… Depois do velório de João doMato, Cosme havia jurado a si mesmo que nun-ca mais assistiria a uma execução capital; e agoraacontecia de caber a ele ser o árbitro da condena-ção à morte de um parente!

Atormentou-se com aquele pensamento a noi-te inteira, e assim continuou por todo o dia se-guinte, passando furiosamente de um galho paraoutro, dando pontapés, erguendo os braços, es-corregando pelos troncos, como sempre faziaquando era dominado por um pensamento. Final-mente, tomou uma decisão: escolheria um meio-termo, assustar os piratas e o tio, a fim de que in-terrompessem suas escusas relações sem necessi-dade da intervenção da justiça. Iria postar-se na-quele pinheiro à noite, com três ou quatro fuziscarregados (conseguira montar um arsenal, paraas várias necessidades da caça): quando o cava-

leiro se encontrasse com os piratas, começaria adisparar uma arma atrás da outra, fazendo zuniras balas por cima da cabeça deles. Ao ouvir umatal fuzilaria, piratas e tio fugiriam, cada um parao seu lado. E o cavaleiro, que não era decerto umhomem audaz, na dúvida de ter sido reconhecidoe na certeza de que agora vigiavam aqueles en-contros na praia, evitaria repetir suas aproxima-ções com os tripulantes maometanos.

De fato, Cosme, com os fuzis apontados, es-perou no pinheiro duas noites. E não aconteceunada. Na terceira noite, eis o velhote de fez a sal-titar tropeçando nos seixos da praia, a fazer sinaiscom a lanterna, e o barco que chega, com os ma-rinheiros de turbante.

Cosme estava pronto com o dedo no gatilho,mas não disparou. Porque dessa vez era tudo di-ferente. Após uma breve conversa, dois dos pira-tas que haviam descido fizeram sinais para a em-barcação, e os outros começaram a descarregarcoisas: barris, caixas, sacos, garrafões, padiolascheias de queijos. Não havia um barco só, erammuitos, todos cheios, e uma fila de carregadores

de turbante espalhou-se pela praia, precedida pornosso tio natural que os conduzia com sua corri-dinha hesitante até uma gruta entre os escolhos.Lá os mouros deixaram todas aquelas mercadori-as, certamente o fruto das últimas piratarias.

Por que descarregavam nessa margem? Emseguida foi fácil reconstruir o caso: devendo a fa-luca bárbara lançar âncora num dos nossos por-tos (para algum negócio legítimo, como sempreocorriam entre eles e nós em meio às ações derapina), e tendo, portanto, de sujeitar-se aos con-troles alfandegários, era preciso que escondessemas mercadorias roubadas em lugar seguro, pararecuperá-las no retorno. Assim a embarcaçãocomprovaria seu não envolvimento nos últimosassaltos e reforçaria as relações comerciais nor-mais com a região.

Tudo isso ficou evidente depois. De momentoCosme não parou para fazer perguntas. Havia umtesouro de piratas escondido numa gruta, os pi-ratas voltavam para o navio e o deixavam ali:era preciso apoderar-se dele o mais rápido pos-sível. Por um momento meu irmão pensou em ir

acordar os comerciantes de Penúmbria, que devi-am ser os legítimos proprietários das mercadori-as. Mas, de repente, lembrou-se de seus amigoscarvoeiros, que passavam fome no bosque coma família. Não hesitou: correu pelos galhos dire-to até os lugares em que, ao redor das cinzentasclareiras de terra batida, os bergamascos dormi-am em simples cabanas.

— Rápido! Venham todos! Descobri o tesourodos piratas!

Sob as tendas e as ramagens das cabanas hou-ve uma agitação só, gente escarrando, xingando,e por fim exclamações maravilhadas, perguntas:

— Ouro? Prata?— Não vi bem… — disse Cosme. — Pelo

cheiro, diria que há uma quantidade de bacalhaue de queijo pecorino!

Diante dessas palavras, levantaram-se todosos homens do bosque. Quem tinha espingardasapanhava espingardas, os outros machadinhas,espetos, escavadeiras ou pás, mas sobretudo pe-garam recipientes para colocar coisas, mesmo ascestas estragadas de carvão e os sacos negros.

Organizou-se uma grande procissão — Hurra!Hota! —, também as mulheres desciam com ascestas vazias na cabeça, e os meninos encapuza-dos com os sacos, segurando as tochas. Cosme osprecedia do pinheiro do bosque à oliveira, da oli-veira ao pinheiro do mar.

Já estavam para virar na ponta do escolho,quando, no alto de uma figueira torta, apareceu abranca sombra de um pirata, levantou a cimitarrae deu o alarme. Com poucos saltos Cosme che-gou a um ramo sobre ele e enfiou-lhe a espadanos rins, até que se jogasse ribanceira abaixo.

Na gruta, havia uma reunião de chefes piratas.(Antes, Cosme não percebera que tinham ficadolá, naquele vaivém do desembarque.) Ouvem ogrito da sentinela, saem e se veem rodeados poraquela horda de homens e mulheres sujos de fuli-gem no rosto, encapuzados com sacos e armadosde pás. Erguem as cimitarras e se lançam à frentepara abrir espaço. “Hurra! Hota!” “Inxalá!” Co-meçou a batalha.

Os carvoeiros eram mais numerosos, mas ospiratas eram superiores em armas. E assim foi:

para lutar contra cimitarras, como se sabe, nãoexiste nada melhor do que pás. Deng! Deng!, eaquelas lâminas de Marrocos retiravam-se todasdenteadas. As espingardas, ao contrário, produzi-am barulho e fumaça e depois mais nada. Tam-bém alguns dos piratas (oficiais, dava para notar)tinham fuzis muito bonitos de se ver, adamasca-dos; mas na gruta as pedras de centelha haviamumedecido e negavam fogo. Os mais espertos doscarvoeiros insistiam em confundir os oficiais pi-ratas com golpes de pá na cabeça para arrancar-lhe os fuzis. Mas, com aqueles turbantes, cadagolpe chegava amaciado como numa almofada;era melhor dar joelhadas no estômago, pois ti-nham o umbigo de fora.

Visto que a única coisa que não faltava erampedras, os carvoeiros começaram a dar pedradas.Os mouros, então, pedradas também eles. Com aspedras, finalmente, a batalha ganhou um aspectomais ordenado, porém como os carvoeiros tendi-am a entrar na gruta, cada vez mais atraídos peloodor de bacalhau que dali saía, e os bárbaros ten-diam a fugir rumo à chalupa que permanecera na

margem, entre as duas partes faltavam razões sig-nificativas de contraste.

Num certo ponto, houve um assalto dos ber-gamascos que lhes deu acesso à gruta. Os ma-ometanos ainda resistiam sob uma chuva de pe-dras, quando perceberam que o caminho do marestava livre. Por que continuavam a resistir? Me-lhor içar velas e sumir.

Alcançada a pequena barca, três piratas, todosnobres oficiais, desenrolaram a vela. Com umsalto de um pinheiro próximo da margem, Cosmelançou-se sobre o mastro, agarrou-se à travessada verga e, lá de cima, firmando-se com os joe-lhos desembainhou a espada. Os três piratas er-gueram as cimitarras. Com golpes à direita e à es-querda, meu irmão mantinha em xeque todos ostrês. O barco ainda parado inclinava-se ora paraum lado ora para outro. Apareceu a lua naque-le momento e relampejaram a espada dada pelobarão ao filho e as lâminas maometanas. Meu ir-mão escorregou mastro abaixo e enterrou a espa-da no peito de um pirata, que caiu n’água. Ágilcomo uma lagartixa, voltou a subir defendendo-

se com duas estocadas dos golpes dos outros, aseguir desceu de novo e perfurou o segundo, su-biu outra vez, esgrimiu rápido com o terceiro ecom outra de suas escorregadelas atravessou-lheo metal.

Os três oficiais maometanos estavam em partedentro d’água e em parte fora, com a barba cheiade algas. Os outros piratas na entrada da grutaviam-se tontos com as pedradas e os golpes de pá.Cosme ainda pendurado no mastro do barco olha-va triunfante em torno, quando pulou fora da gru-ta, desgovernado como um gato com fogo no ra-bo, o cavaleiro advogado, que lá estivera escon-dido até então. Correu pela praia de cabeça baixa,deu um empurrão no barco afastando-o da mar-gem, pulou em cima e firmes os remos começoua mover-se com toda a força, navegando em dire-ção ao mar alto.

— Cavaleiro! O que está fazendo? Ficou lou-co? — dizia Cosme agarrando na verga. — Voltepara a praia! Aonde vamos?

Em vão. Era evidente que Eneias Sílvio Car-rega queria atingir a nave dos piratas para pôr-

se a salvo. Sua vilania estava irremediavelmentedescoberta e se permanecesse na praia acabariano patíbulo. Por isso, remava, remava, e Cosme,embora ainda se achasse com a espada desembai-nhada na mão e o velho estivesse desarmado efraco, não sabia o que fazer. No fundo, ser violen-to contra um tio não lhe agradava, e para alcançá-lo teria de descer da árvore, e a questão se descera um barco equivalia a descer à terra ou se já nãohavia derrogado suas leis interiores saltando deuma árvore com raízes para um mastro de em-barcação era demasiado complicada para ser co-locada naquele momento. Assim, não fazia nada,acomodara-se na verga, uma perna de um lado ea outra do outro lado do mastro, e acompanhavaa onda, enquanto um leve vento inflava a vela, eo velho não parava de remar.

Ouviu um latido. Sentiu um arrepio de ale-gria. O cão Ótimo Máximo, que perdera de vistadurante a batalha, reaparecia agachado no fundodo barco, e sacudia o rabo como se não houvessenada. Afinal de contas, refletiu Cosme, não era ocaso de ficar tão preocupado: estava em família,

com seu tio, com seu cachorro, andava de barco,o que após tantos anos de vida nas árvores era umagradável divertimento.

A lua caminhava pelo mar. O velho já estavacansado. Remava com esforço, e chorava, e co-meçou a dizer:

— Ah, Zaira… Ah, Alá, Alá, Zaira… Ah,Zaira, inxalá… — E assim, inexplicavelmente,falava em turco, e repetia sem parar, entre lágri-mas, este nome de mulher que Cosme jamais ou-vira.

— O que está dizendo, cavaleiro? O que sepassa? Aonde vamos? — perguntava.

— Zaira… Ah, Zaira… Alá, Alá… — repetiao velho.

— Quem é Zaira, cavaleiro? Pensa que chega-rá até Zaira, por este caminho?

E Eneias Sílvio Carrega respondia que simcom a cabeça, e falava turco entre lágrimas, e gri-tava para a lua aquele nome.

Sobre Zaira, a cabeça de Cosme começou lo-go a moer suposições. Talvez estivesse a ponto derevelar-se o segredo mais profundo daquele ho-

mem esquivo e misterioso. Se o cavaleiro, indorumo à nave pirata, pretendia alcançar essa Zaira,deveria tratar-se de uma mulher que estava lá, na-queles países otomanos. Talvez toda a sua vida ti-vesse sido dominada pela nostalgia daquela mu-lher, quem sabe era ela a imagem de felicidadeperdida que ele perseguia criando abelhas ou tra-çando canais. Talvez fosse uma amante, uma es-posa que tivesse em terras distantes, nos jardinsdaqueles países de além-mar, ou quem sabe maisprovavelmente uma filha, uma filha sua que nãovia desde criança. Para procurá-la devia ter ten-tado durante anos estabelecer contatos com al-gumas das embarcações turcas ou mouriscas quechegavam a nossos portos, e finalmente deviamter lhe dado notícias dela. Quem sabe descobriraque se tornara escrava, e para resgatá-la haviamproposto a ele informá-los sobre as viagens dastartanas de Penúmbria? Ou então era um resgateque ele devia pagar para ser readmitido no grupoe embarcar para a terra de Zaira.

Agora, desmascarada a operação, era obriga-do a fugir de Penúmbria, e aqueles bárbaros já

não podiam recusar-se a levá-lo junto e conduzi-lo até ela. Em suas frases ofegantes e fragmentá-rias misturavam-se tons de esperança, de súplica,e também de medo: medo de que ainda não fosseo momento certo, de que alguma desventura ain-da haveria de separá-lo da criatura desejada.

Já não aguentava mais remar, quando se apro-ximou uma sombra, uma outra lancha bárbara.Talvez do barco tivessem escutado o barulho dabatalha na praia, e agora mandavam batedores.

Cosme desceu até o meio do mastro, para fi-car escondido pela vela. O velho, ao contrário,começou a gritar em língua franca que o apa-nhassem, que o levassem à embarcação, e esten-dia os braços. De fato, foi ouvido: dois janíza-ros de turbante, assim que o tiveram ao alcanceda mão, agarraram-no pelos ombros, ergueram-no leve como era, e o atiraram na barca deles.Aquela em que estava Cosme, devido ao contra-golpe foi empurrada, a vela pegou o vento, e meuirmão, que já se via morto, escapou de ser desco-berto.

Afastando-se com o vento, chegavam a Cos-me, da lancha pirata, vozes como uma discussão.Uma palavra, dita pelos mouros, que soou seme-lhante a: “Porco!”, e a voz do velho, que se ou-via repetir como um idiota: “Ah, Zaira!”, não dei-xavam dúvidas sobre o acolhimento que fora dis-pensado ao cavaleiro. Certamente consideravam-no responsável pela emboscada na gruta, pelaperda do butim, pela morte dos seus, acusavam-no de tê-los traído… Ouviu-se um berro, um ba-que, depois silêncio; a Cosme voltou a lembran-ça, nítida como se a ouvisse, da voz do pai quan-do gritava: “Eneias Sílvio! Eneias Sílvio!”, cor-rendo atrás do irmão natural pelo campo; e escon-deu o rosto na vela.

Tornou a subir na verga para ver onde estavaindo o barco. Alguma coisa boiava em meio aomar como transportada por uma corrente, um ob-jeto, uma espécie de boia, mas uma boia com ra-bo… Um raio de lua bateu em cima, e viu que nãoera um objeto mas uma cabeça, uma cabeça comfez e laço, e reconheceu o rosto revirado do ca-valeiro advogado que mantinha o habitual olhar

esgazeado, de boca aberta, e da barba para baixotudo o mais estava na água e não se via, e Cosmegritou:

— Cavaleiro! Cavaleiro! O que está fazendo?Por que não sobe? Segure no barco! Já o ajudo asubir! Cavaleiro!

Mas o tio não respondia: boiava, boiava,olhando para o alto com aquele olhar esgazeadoque parecia não ver nada. E Cosme disse:

— Vai, Ótimo Máximo! Pula na água! Pega ocavaleiro pelo cangote! Salva-o! Salva-o!

O cão obediente mergulhou, tentou agarrarcom os dentes a nuca do velho, não conseguiu,pegou-a pela barba.

— Pelo cangote, Ótimo Máximo, já disse! —insistiu Cosme, mas o cão levantou a cabeça pelabarba e a empurrou para o bordo do barco, e seviu que nuca não havia mais, nem corpo nem na-da, era só uma cabeça, a cabeça de Eneias SílvioCarrega decepada por um golpe de cimitarra.

16

A PRIMEIRA VERSÃO DE COSME sobre o fim docavaleiro advogado foi bem diferente. Quando ovento levou de volta para a terra o barco, trazendoele no mastro e seguido por Ótimo Máximo, quearrastava a cabeça decepada, Cosme contou àspessoas que acorreram ao seu chamado — da plan-ta na qual subira rapidamente ajudado por umacorda — uma história bem mais simples: o cava-leiro fora sequestrado pelos piratas e depois morto.Talvez fosse uma variante ditada pela preocupaçãocom o pai, cuja dor teria sido tão grande perantea notícia da morte do irmão e diante daqueles las-timáveis restos, que Cosme não teve coragem deagredi-lo com a revelação da infâmia do cavalei-ro. Pelo contrário, em seguida, ao ouvir falar domal-estar em que caíra o barão, tentou construir

para nosso tio natural uma glória fictícia, inven-tando uma luta secreta e astuta dele para derro-tar os piratas, à qual ele se dedicava havia tempoe que, descoberta, o teria conduzido ao suplício.Mas era um relato contraditório e lacunoso, mes-mo porque havia algo mais que Cosme pretendiaocultar, isto é, o desembarque do butim dos pira-tas na gruta e a intervenção dos carvoeiros. E defato, se a coisa ficasse conhecida, toda a popula-ção de Penúmbria teria ido ao bosque para recu-perar as mercadorias em poder dos bergamascos,tratando-os como ladrões.

Após algumas semanas, quando tinha certezade que os carvoeiros já haviam consumido tudo,contou o assalto à gruta. E quem chegou a subirpara recuperar algo ficou de mãos vazias. Os car-voeiros tinham dividido tudo em partes exatas, obacalhau filé por filé, os salames, os queijos, ede todo o remanescente haviam feito um grandebanquete no bosque que durou o dia inteiro.

Papai envelhecera muito, e a dor pela perdade Eneias Sílvio teve estranhas consequências so-bre seu caráter. Adquiriu a mania de impedir que

as obras do irmão natural se perdessem. Por isso,queria cuidar ele mesmo das criações de abelhas,e a isso dedicou-se com grande orgulho, emboraantes nunca tivesse visto uma colmeia de perto.Para aconselhar-se, dirigia-se a Cosme, queaprendera algo a respeito; não que lhe fizesse per-guntas, mas conduzia o discurso para a apicultu-ra e escutava o que Cosme dizia, e depois o re-petia como ordem aos camponeses, com tom irri-tado e presunçoso, como se fosse coisa bem co-nhecida. Procurava não se aproximar muito dascolmeias, devido àquele medo de levar uma fer-roada, mas queria mostrar que podia superá-lo, equem sabe quanto lhe custava. Do mesmo modo,dava ordens para escavar certos canais, para exe-cutar um projeto iniciado pelo pobre Eneias Síl-vio: e se conseguisse seria um êxito, aquela boaalma não conseguira levar a cabo nenhum.

Infelizmente, essa tardia paixão do barão pe-las tarefas práticas durou pouco, muito pouco.Um dia andava atarefado e nervoso entre colmei-as e canais, e a um movimento brusco viu umpar de abelhas que vinham contra ele. Ficou com

medo, começou a agitar as mãos, derrubou umacolmeia, fugiu com uma nuvem de abelhas atrás.Correndo às cegas, acabou naquele canal que es-tavam tentando encher d’água, e o retiraram en-sopado.

Foi colocado na cama. Entre a febre pelas pi-cadas e a da gripe pelo banho, parou uma semana;depois poderia dizer-se curado. Porém, foi toma-do por um tal desânimo que não queria mais selevantar.

Estava sempre na cama e perdera todo o in-teresse pela vida. Não conseguira fazer nada doque pretendia, sobre o ducado não falava mais,seu primogênito estava sempre em cima das plan-tas mesmo agora que já era um homem, seu meio-irmão fora assassinado, a filha, longe, se casaracom gente mais antipática do que ela, eu era ain-da muito criança para estar ao seu lado e sua mu-lher demasiado apressada e autoritária. Começoua delirar, a dizer que os jesuítas tinham invadidoa casa e não podia sair do quarto e assim, cheiode amarguras e manias como sempre vivera, veioa morrer.

Também Cosme acompanhou o funeral, pas-sando de uma árvore a outra, mas no cemitérionão conseguiu entrar, porque nos ciprestes, den-sos como são de folhagem, ninguém consegue sependurar de jeito nenhum. Assistiu ao enterro dooutro lado do muro e quando todos nós jogamosum punhado de terra sobre o caixão ele atirou umraminho com folhas. Eu pensava que tínhamos fi-cado todos sempre distantes de papai como Cos-me nas árvores.

Agora, o barão de Rondó era Cosme. A suavida não mudou. Cuidava, é verdade, dos nossosinteresses, mas sempre de forma irregular. Quan-do os feitores e arrendatários o procuravam, nãosabiam nunca onde encontrá-lo; e, quando menosqueriam ser vistos por ele, ei-lo no galho maispróximo.

Inclusive para cuidar dos negócios familiares,Cosme agora aparecia mais na cidade, parava nagrande nogueira da praça ou nas azinheiras vi-zinhas ao porto. As pessoas o reverenciavam,

chamavam-no de “senhor barão”, e ele assumiaposes um pouco de velho, como às vezes agradaaos jovens, e parava ali para contar casos a umgrupo de penúmbrios que se espalhava ao pé daárvore.

Continuava a narrar, sempre de formas dife-rentes, o fim de nosso tio natural, e pouco a pou-co foi revelando a conivência do cavaleiro comos piratas, mas, para refrear a indignação imedi-ata dos cidadãos, acrescentou a história de Zai-ra, quase como se Carrega a tivesse confidencia-do a ele antes de morrer, e assim levou-os até acomover-se com o triste destino do velho.

Partindo de pura invenção, acho eu, Cosmechegara, por sucessivas aproximações, a um rela-to bastante verossímil dos fatos. Aconteceu assimduas ou três vezes; depois, não se cansando os pe-númbrios de ouvir o relato, e sempre juntando-senovos ouvintes e todos exigindo novos detalhes,foi levado a fazer acréscimos, ampliações, hipér-boles, a introduzir novas personagens e episódi-os, e assim a história foi se deformando e acaboumais inventada do que no início.

Já então Cosme possuía um público que fica-va ouvindo de boca aberta tudo aquilo que ele di-zia. Adquiriu o gosto de narrar, e a sua vida nasárvores, as caçadas, o bandido João do Mato, e ocão Ótimo Máximo tornaram-se pretextos de nar-rativas que não tinham mais fim. (Muitos episó-dios destas memórias de sua vida são transcritostal e qual ele os contava a pedido de seu públicoplebeu, e digo isso para me desculpar se nem tu-do o que escrevo parece verdadeiro e compatívelcom uma visão harmoniosa da humanidade e dosfatos.)

Por exemplo, um daqueles desocupados lheperguntava:

— Mas é verdade que jamais tirou os pés dasárvores, senhor barão?

E Cosme começava:— Sim, uma vez, por engano, subi nos chifres

de um cervo. Acreditava estar passando em cimade um ácer, mas era um cervo, fugido da reservade caça real, que estava parado ali. O cervo senteo meu peso nos chifres e corre pelo bosque. Nemlhes conto as batidas! Lá em cima eu me sentia

atingido por todos os lados, entre as pontas afia-das dos chifres, os espinhos, os galhos do bosqueque me acertavam no rosto… O cervo se debatia,procurando livrar-se de mim, eu me mantinha fir-me…

Suspendia o relato, e eles então:— E como escapou dessa, senhorzinho?E ele, todas as vezes, a inventar um final dife-

rente:— O animal correu, correu, alcançou o bando

dos cervos que ao vê-lo com um homem sobre oschifres em parte fugiam, em parte se aproxima-vam curiosos. Apontei o fuzil que trazia sempre atiracolo, e cada cervo que via eu derrubava. Ma-tei cinquenta…

— E onde é que apareceram, por estes lados,cinquenta cervos? — perguntava um daqueles va-dios.

— Agora a raça desapareceu. Pois aquelescinquenta eram todos cervos fêmeas, entende-ram? Todas as vezes que o meu cervo se apro-ximava de uma fêmea, eu disparava, e ela caíamorta. O bicho não conseguia entender, e ficava

desesperado. Então… então decidiu suicidar-se,correu até uma rocha elevada e se jogou de lá.Mas eu me agarrei a um pinheiro do caminho eeis-me aqui!

Ou então era uma batalha que se verificara en-tre dois cervos, a chifradas, e a cada golpe ele sal-tava dos chifres de um para os do outro, até quecom uma pancada mais forte encontrou-se estate-lado num carvalho…

Em resumo, fora dominado por aquela maniade quem conta histórias e nunca sabe se são maisbonitas aquelas que de fato lhe aconteceram e queao serem recordadas trazem consigo todo um marde horas passadas, de sentimentos miúdos, tédi-os, felicidades, incertezas, glórias vãs, náuseas desi próprio, ou então as inventadas, em que se cor-ta grosseiramente, e tudo parece fácil, mas depoisquanto mais variamos mais nos damos conta deque voltamos a falar de coisas obtidas ou enten-didas a partir da realidade.

Cosme ainda estava na idade em que a vonta-de de contar dá vontade de viver, e se acredita nãoter vivido experiências suficientes para contá-las,

e assim partia para a caça, ficava fora durante se-manas, depois voltava para as árvores da praçasegurando pelo rabo fuinhas, texugos e raposas,e contava aos penúmbrios novas histórias que, severdadeiras, narrando-as tornavam-se inventadase, se inventadas, verdadeiras.

Mas em toda aquela ânsia havia uma insatis-fação mais profunda, uma falta, naquela procurade gente que o escutasse existia uma busca dife-rente. Cosme não conhecia ainda o amor, e todaexperiência, sem essa, o que é? De que vale terarriscado a vida, quando dela ainda não se expe-rimentou o sabor?

As moças camponesas ou vendedoras de pei-xe passavam pela praça de Penúmbria, e as jo-vens damas em carruagens, e Cosme da árvorelançava olhares furtivos e ainda não entenderabem por que em todas havia algo que ele procu-rava e que não estava inteiramente em nenhuma.À noite, quando nas casas se acendiam as luzese nos ramos Cosme estava sozinho com os olhos

amarelos das corujas, ocorria-lhe sonhar com oamor. Enchia-se de admiração e inveja dos casaisque marcavam encontro atrás das sebes e entre asfileiras de plantas, e os acompanhava com o olharenquanto se perdiam na escuridão, porém quandose deitavam ao pé da árvore em que estava fugiatodo envergonhado.

Então, para vencer o pudor natural de seusolhos, ficava observando o amor dos animais.Na primavera, o mundo sobre as árvores era ummundo nupcial: os esquilos amavam-se com mo-vimentos e gemidos quase humanos, os pássarosse acasalavam batendo as asas, até as lagartixascorriam juntas, com os rabos enlaçados; e osporcos-espinhos pareciam ter se tornado maciospara fazer mais doces seus abraços. O cão ÓtimoMáximo, nem um pouco intimidado por ser o úni-co bassê de Penúmbria, cortejava grandes cadelasdos pastores, ou cadelas-lobos, com arrogante au-dácia, confiante na simpatia natural que desper-tava. Às vezes voltava desconjuntado pelas mor-didas; mas bastava um amor bem-sucedido paracompensá-lo de todas as derrotas.

Também Cosme, como Ótimo Máximo, erao único exemplar de uma espécie. Em seus so-nhos de olhos abertos, via-se amado por belíssi-mas donzelas; mas como encontraria o amor, es-tando em cima das árvores? Ao fantasiar, conse-guia não imaginar onde aquelas coisas acontece-riam, se no chão ou nas alturas em que andava:um lugar sem lugar, imaginava, como um mun-do ao qual se chega andando para cima, não pa-ra baixo. Isto: talvez existisse uma árvore tão altaque subindo tocasse um outro mundo, a lua.

No entanto, com aquele hábito das conversasna praça, sentia-se cada vez menos satisfeito con-sigo mesmo. E desde quando, num dia de feira,um tipo, vindo da aldeia vizinha de Olivabaixa,disse: “Oh, vocês também possuem o seu espa-nhol!”, e, ante as perguntas sobre o significadodaquilo, respondeu: “Em Olivabaixa existe todoum clã de espanhóis que vivem em cima das ár-vores!”, Cosme não teve mais paz até que nãoempreendeu, através das árvores dos bosques,uma viagem para Olivabaixa.

17

OLIVABAIXA ERA UMA ALDEIA DO INTERIOR.Cosme chegou lá depois de dois dias de caminha-da, superando perigosamente os trechos de vegeta-ção mais escassa. No percurso, próximo aos luga-res habitados, as pessoas que nunca o tinham vistogritavam maravilhadas, e alguns lhe atiravam pe-dras, razão pela qual tratou de passar despercebidoo mais possível. Mas, à medida que se aproximavade Olivabaixa, deu-se conta de que, se algum le-nhador ou lavrador ou colhedor de azeitonas o via,não demonstrava nenhum estupor, ao contrário, oshomens o cumprimentavam tirando o chapéu, co-mo se o conhecessem, e diziam palavras certamen-te não pertencentes ao dialeto local, que na bocadeles soavam estranhas, como:

— Señor! Buenos días, señor!

Era inverno, parte das árvores estava nua. EmOlivabaixa o casario era atravessado por uma du-pla fila de plátanos e de olmos. E meu irmão,aproximando-se, viu que entre os ramos nus ha-via pessoas, uma ou duas ou até três por árvore,sentadas ou em pé, em atitude grave. Em poucossaltos alcançou-as.

Eram homens com vestimentas nobres, tricór-nios emplumados, grandes mantos, e mulherescom expressão igualmente nobre, com véus nacabeça, que estavam sentadas nos galhos em gru-pos de duas ou três, algumas bordando, e olhandode vez em quando para a estrada com um brevemovimento lateral do busto e um apoiar do braçoao longo do ramo, como num parapeito.

Os homens dirigiam-lhe cumprimentos comocheios de amarga compreensão:

— Buenos días, señor! — E Cosme se incli-nava e tirava o chapéu.

Um que parecia o mais autorizado dentre eles,um obeso, encastrado na forquilha de um plátanodo qual parecia não poder mais levantar-se, umapele de doente do fígado, sob a qual a sombra

dos bigodes e da barba raspados transparecia ne-gra apesar da idade avançada, pareceu perguntara um vizinho seu, macilento, magro, vestido depreto e também ele com as bochechas escuras debarba feita, quem seria aquele desconhecido quese movimentava pela fileira de árvores.

Cosme pensou que era chegado o momento deapresentar-se.

Foi até o plátano do senhor obeso, inclinou-see disse:

— Barão Cosme Chuvasco de Rondó, paraservi-lo.

— Rondos? Rondos? — inquiriu o obeso. —Aragonés? Gallego?

— Não, senhor.— Catalán?— Não, senhor. Sou desta região.— Desterrado también?O gentil-homem magro sentiu-se na obriga-

ção de intervir e servir de intérprete, muito pom-posamente.

— Diz Sua Alteza Frederico Alonso Sanchezde Guatamurra y Tobasco se Vossa Senhoria é

também um exilado, uma vez que o vemos deam-bular por estas ramagens.

— Não, senhor. Ou, pelo menos, não exiladopor decreto alheio.

— Viaja usted sobre los árboles por gusto?E o intérprete:— Sua Alteza Frederico Alonso se compraz

em indagar-lhe se é por gosto pessoal que VossaSenhoria percorre este itinerário.

Cosme pensou um pouco, e respondeu:— Porque penso que seja adequado a mim,

embora ninguém me imponha tal trajeto.— Feliz usted! — exclamou Frederico Alonso

Sanchez, suspirando. — Ay de mí, ay de mí!E a personagem de negro, a explicar, cada vez

mais pomposa:— Sua Alteza considera que Vossa Senhoria

deve ser considerada feliz por desfrutar de ta-manha liberdade, a qual não podemos deixar decomparar ao nosso constrangimento, que supor-tamos resignados à vontade de Deus — epersignou-se.

Assim, entre uma lacônica exclamação dopríncipe Sanchez e uma circunstanciada versãodo senhor vestido de negro, Cosme conseguiu re-construir a história da colônia que se hospedavanos plátanos. Eram nobres espanhóis, rebeladoscontra o rei Carlos III por questões de privilégiosfeudais negados, e por isso mandados para o exí-lio com as famílias. Tendo chegado a Olivabaixaforam proibidos de continuar a viagem: de fato,aqueles territórios, com base num antigo tratadocom Sua Majestade Católica, não podiam darabrigo a pessoas exiladas da Espanha e nem mes-mo ser atravessados por elas. A situação daquelasfamílias nobres era bem difícil de ser resolvida,porém os magistrados de Olivabaixa, que nãoqueriam ter problemas com as chancelarias es-trangeiras mas que tampouco tinham razões deaversão por aqueles ricos viajantes, chegaram auma conciliação: a letra do tratado prescrevia queos exilados não deveriam “tocar o solo” daqueleterritório, portanto bastava que ficassem nas ár-vores e tudo estaria em ordem. Assim, os exila-dos haviam subido nos plátamos e olmos, com

escadas cedidas pela prefeitura que depois foramretiradas. Estavam empoleirados lá em cima ha-via alguns meses, confiando no clima ameno,num próximo decreto de anistia de Carlos III e naprovidência divina. Possuíam uma reserva de do-brões espanhóis e compravam mantimentos, in-crementando o comércio da cidade. Para levar ospratos para cima, tinham instalado alguns cestossobe e desce. Noutras árvores havia baldaquinossob os quais dormiam. Em resumo, aprenderama adaptar-se, ou seja, tinham sido os moradoresde Olivabaixa a equipá-los tão bem, pois conse-guiam um bom retorno. Os exilados, por sua vez,não mexiam um dedo durante o dia inteiro.

Era a primeira vez que Cosme encontrava ou-tros seres humanos vivendo sobre as árvores, ecomeçou a fazer perguntas práticas.

— E quando chove, como é que vocês fazem?— Sacramos todo el tiempo, señor!E o intérprete, que era o padre Sulpício de Gu-

adalete, da Companhia de Jesus, exilado desdeque sua ordem fora prescrita da Espanha:

— Protegidos por nossos baldaquinos, dirigi-mos o pensamento ao Senhor, agradecendo-lhepelo pouco que nos basta!…

— Não caçam nunca?— Señor, algunas veces con el visco.— Às vezes um de nós unta de visgo um ga-

lho, para distrair-se.Cosme não se cansava de verificar como ha-

viam resolvido alguns problemas que se tinhamapresentado também a ele.

— E para lavar-se, para lavar-se, como fa-zem?

— Para lavar? Hay lavanderas! — disse domFrederico, com um levantar de ombros.

— Entregamos nossas roupas às lavadeirasda aldeia — traduziu dom Sulpício. — Todas assegundas-feiras, para ser preciso, baixamos o ces-to da roupa suja.

— Não, eu estava falando de lavar o rosto e ocorpo.

Dom Frederico grunhiu e deu de ombros, co-mo se este problema nunca tivesse se apresentadoa ele.

Dom Sulpício sentiu-se no dever de interpre-tar:

— Segundo a opinião de Sua Alteza, estas sãoquestões particulares de cada um.

— E, data venia, onde fazem as necessidades?— Ollas, señor.E dom Sulpício, sempre com seu tom modes-

to:— Usam-se alguns urinóis, na verdade.Despedindo-se de dom Frederico, Cosme foi

conduzido pelo padre Sulpício para visitar os vá-rios membros da colônia, em suas respectivas ár-vores residenciais. Todos aqueles fidalgos e aque-las damas mantinham, mesmo com os inevitáveisincômodos da permanência, atitudes habituais ecomedidas. Certos homens, para ficar acavaladosnos galhos, usavam selas de montar, e isso agra-dou muito a Cosme, que em tantos anos nuncapensara nisso (muito útil por causa dos estribos— notou logo — que eliminam o inconvenientede se dever manter os pés pendurados, coisa queapós algum tempo provoca cãibras). Algunsapontavam binóculos de marinheiro (um deles

possuía o grau de almirante) que talvez só servis-sem para se olharem entre si de uma árvore pa-ra outra, dar largas à curiosidade e fazer fofocas.As senhoras e senhoritas sentavam-se todas emalmofadas bordadas por elas próprias, trançandoagulhas (eram as únicas pessoas de algum mo-do ocupadas) ou então acariciando grandes gatos.Gatos não faltavam naquelas árvores, bem comopássaros, estes em gaiolas (quem sabe eram as ví-timas do visgo), excetuando algumas pombas li-vres que vinham pousar nas mãos das donzelas, eeram tristemente acariciadas.

Nessas espécies de salões arbóreos Cosme erarecebido com hospitaleira austeridade.Ofereciam-lhe café, em seguida punham-se a fa-lar dos palácios que haviam abandonado em Se-vilha, em Granada, e das suas propriedades e ce-leiros e escuderias, e convidavam-no para o diaem que fossem reintegrados em suas honras. Dorei que os havia banido falavam com um tom queera ao mesmo tempo de fanática aversão e dedevota reverência, às vezes conseguindo separarperfeitamente a pessoa contra a qual suas famílias

estavam em luta e o título real de cuja autoridadeemanava também a deles. Às vezes, ao contrário,excitados pelo tema, misturavam os dois modosde consideração opostos num só impulso: e Cos-me, toda vez que o discurso caía sobre o sobera-no, já não sabia mais que expressão adotar.

Pairava sobre todos os gestos e conversas dosexilados uma aura de tristeza e luto, que em partecorrespondia à natureza deles, em parte a uma de-terminação voluntária, como acontece com quemcombate por uma causa da qual não está bem con-vencido e trata de compensar com a importânciada contenda.

Nas moças — que numa primeira olhada pa-receram a Cosme todas um tanto peludas e de pe-les opacas — ondulava uma pontinha de vibra-ção, sempre contida a tempo. Duas delas jogavampeteca, de um plátano a outro. Tique e taque, ti-que e taque, depois um gritinho: a peteca caíra nochão. Era recuperada por um menino de Olivabai-xa que para devolvê-la exigia duas pesetas.

Na última árvore, um olmo, estava um velho,chamado de El Conde, sem peruca, mal trajado.

O padre Sulpício, aproximando-se, baixou a voz,e Cosme foi induzido a imitá-lo. El Conde de vezem quando afastava um galho com um braço eobservava o declive da colina e uma planície oraverde ora amarelada que se perdia na distância.

Sulpício murmurou aos ouvidos de Cosmeuma história de um filho detido nos cárceres dorei Carlos e torturado. Cosme entendeu que aopasso que todos aqueles fidalgos posavam de exi-lados, mas deviam a cada instante relembrar e re-petir por que e como se encontravam ali, só aque-le velho sofria de verdade. Aquele gesto de afas-tar o ramo como esperando ver surgir uma ou-tra terra, aquele inserir pouco a pouco o olharna distância ondulada como esperando jamais en-contrar o horizonte, conseguir identificar uma al-deia tão longínqua, era o primeiro sinal verídicode exílio que Cosme via. E compreendeu o quan-to contava para os demais fidalgos a presença doconde, como se fosse ela que os mantinha unidos,que lhes dava um sentido. Era ele, talvez o maispobre, certamente entre eles o que tinha menos

autoridade na pátria, quem dizia o que deviam so-frer e esperar.

Retornando das visitas, Cosme distinguiunum amieiro uma menina que não notara antes.Com dois pulos chegou lá.

Era uma jovem com olhos de belíssima cor depervinca e pele perfumada. Segurava um balde.

— Como é que quando fui apresentado a to-dos não a vi?

— Andava em busca de água no poço. — Esorriu.

Do balde, meio inclinado, caiu água. Ele aajudou a segurá-lo.

— Então vocês descem das árvores?— Não; há uma cerejeira torta que faz sombra

para o poço. Dali baixamos os baldes. Venha.Caminharam por um ramo, ultrapassando o

muro de um pátio. Ela o conduziu até a passagemacima da cerejeira. Embaixo ficava o poço.

— Viu, barão?— Como sabe que sou um barão?— Sei de tudo. — Sorriu. — Minhas irmãs lo-

go me informaram de sua visita.

— São aquelas da peteca?— Irene e Raimunda, exatamente.— As filhas de dom Frederico?— Sim…— E o seu nome?— Úrsula.— Você anda nas árvores melhor do que qual-

quer outro aqui.— Já andava quando era criança: em Granada

tínhamos grandes árvores no patio.— Seria capaz de colher aquela rosa? — Em

cima de uma árvore florescera uma rosa trepadei-ra.

— Que pena: não.— Bem, vou colhê-la eu para você. —

Movimentou-se, voltou com a flor.Úrsula sorriu e estendeu as mãos.— Quero colocá-la eu mesmo. Diga-me onde.— Na cabeça, obrigada. — E acompanhou a

mão dele.— Agora diga-me: seria capaz — Cosme per-

guntou — de alcançar aquela amendoeira?— Como se faz? — Riu. — Não sei voar.

— Espere. — E Cosme preparou um laço. —Se você se deixar amarrar por esta corda, puxo dooutro lado, como numa roldana.

— Não… Tenho medo. — Mas ria.— É o meu sistema. Viajo assim há anos, fa-

zendo tudo sozinho.— Virgem Maria!Transportou-a para o outro lado. Depois se-

guiu atrás. Era uma amendoeira jovem e não mui-to grande. Estavam perto um do outro. Úrsulaainda estava ofegante e vermelha por causa da-quele voo.

— Assustada?— Não. — Mas seu coração acelerava.— A rosa não caiu — disse ele e a tocou para

arrumá-la.Assim, rentes à árvore, a cada gesto se abra-

çavam.— Uh! — disse ela, e, iniciativa dele, se bei-

jaram.Desse modo começou o amor, o rapaz feliz e

aturdido, ela feliz e nem um pouco surpresa (pa-ra as moças nada acontece por acaso). Era o amor

tão esperado por Cosme e agora inesperadamen-te surgido, e tão belo que não entendia como nãopudera imaginá-lo tão belo antes. E da sua belezaa coisa mais nova era o fato de ser tão simples, eao jovem naquele momento pareceu que deveriaser sempre assim.

18

FLORESCERAM OS PESSEGUEIROS, as amendoei-ras, as cerejeiras. Cosme e Úrsula passavam juntosos dias nas árvores em flor. A primavera coloria dealegrias até a fúnebre vizinhança dos parentes.

Na colônia dos exilados meu irmão logo soubetornar-se útil, ensinando os vários modos de passarde uma árvore para outra e encorajando aquelas fa-mílias nobres a sair da habitual compostura paraexercitar-se um pouco. Lançou até alguns pontosde corda que permitiam aos exilados mais velhosvisitar-se. E assim, em quase um ano de perma-nência entre os espanhóis, dotou a colônia de mui-tos equipamentos por ele inventados: reservatóriosde água, pequenos fornos, sacos forrados com pe-les para dormir. O desejo de fazer novas invençõesconduzia-o a reforçar os costumes daqueles fidal-

gos mesmo quando não coincidiam com as ideiasde seus autores favoritos: assim, verificando o de-sejo daquelas piedosas pessoas de confessar-seregularmente, escavou dentro de um tronco umconfessionário, no qual podia entrar o magro domSulpício e de uma janelinha com cortina e gradeouvir os pecados deles.

A simples paixão pelas inovações técnicas,afinal de contas, não bastava para livrá-lo da su-jeição às normas vigentes; eram necessárias idei-as. Cosme escreveu ao livreiro Orbeque pedindoa ele que de Penúmbria lhe enviasse pelo correioos volumes que tivessem chegado naquele perío-do. Assim pôde emprestar a Úrsula Paulo e Vir-gínia e A nova Heloísa.

Os exilados faziam frequentes reuniões numgrande carvalho, assembleias em que redigiamcartas ao soberano. Essas cartas em princípio de-viam ser sempre de protesto indignado e de ame-aça, quase ultimatos; mas, a um certo ponto, poralgum deles eram propostas fórmulas mais bran-das, mais respeitosas, e assim terminava-se numasúplica em que se prosternavam humildemente

aos pés das Graciosas Majestades implorando-lhes o perdão.

Então levantava-se El Conde. Todos emude-ciam. El Conde, olhando para o alto, começava afalar, em voz baixa e vibrante, e dizia tudo aqui-lo que trazia no coração. Quando se sentava outravez, os outros permaneciam sérios e mudos. Nin-guém se referia mais à súplica.

Cosme já fazia parte da comunidade e partici-pava das sessões. E nelas, com ingênuo fervor ju-venil, explicava as ideias dos filósofos, e os errosdos soberanos, e como os estados podiam ser di-rigidos com razão e justiça. Mas, dentre todos, osúnicos que podiam acompanhá-lo eram El Conde,que, apesar de velho, empenhava-se sempre nabusca de um modo de compreender e reagir, Úr-sula, que lera alguns livros, e uma dupla de mo-ças um pouco mais espertas do que as outras. Orestante da colônia não passava de um bando decabeças ocas.

Em suma, esse conde, vira e mexe, em vezde estar sempre a contemplar a paisagem come-çou a ter vontade de ler alguns livros. Rousseau

pareceu-lhe meio desagradável; de Montesquieu,ao contrário, ele gostava: já era um passo. Os de-mais fidalgos, nada, embora alguns às escondidasde padre Sulpício pedissem emprestada a Pulzel-la para ler as páginas mais picantes. Assim, como conde que maquinava novas ideias, as reuniõesno carvalho adquiriram um outro viés: agora sefalava em ir para a Espanha fazer a revolução.

A princípio, padre Sulpício não percebeu operigo. Ele não era particularmente esperto e,alheio a toda a hierarquia dos superiores, não es-tava mais em dia quanto aos venenos das cons-ciências. Mas assim que pôde reordenar as ideias(ou então, dizem outros, recebeu certas cartascom lacres episcopais) começou a dizer que odemônio penetrara naquela comunidade e que erade esperar uma chuva de raios que incendiaria asárvores com todos eles em cima.

Uma noite Cosme acordou com um lamento.Acorreu com uma lanterna e no olmo do condeviu o velho já amarrado na árvore e o jesuíta queapertava os nós.

— Alto lá, padre! O que é isto?

— O braço da Santa Inquisição, filho! Agoratoca este velho desgraçado, para que confesse aheresia e cuspa o demônio. Depois será a sua vez!

Cosme puxou da espada e cortou as cordas.— Em guarda, padre! Existem também outros

braços, que servem à razão e à justiça!O jesuíta retirou do manto uma espada desem-

bainhada.— Barão de Rondó, sua família desde algum

tempo tem uma conta em suspenso com minhaordem!

— Tinha razão meu pai, que Deus o tenha! —exclamou Cosme cruzando o ferro. — A compa-nhia não perdoa!

Bateram-se equilibrando-se nos galhos. DomSulpício era um excelente esgrimista, e várias ve-zes meu irmão se viu em apuros. Estavam no ter-ceiro assalto quando El Conde, voltando a si, co-meçou a gritar. Os outros exilados despertaram,acorreram, interpuseram-se entre os dois duelis-tas. Sulpício logo fez desaparecer sua espada ecomo se nada houvesse acontecido tratou de re-comendar calma.

Fazer silêncio sobre um fato tão grave seriaimpensável em qualquer outra comunidade, me-nos naquela, com a preocupação de reduzir aomínimo todos os pensamentos que afloravam emsuas cabeças. Assim dom Frederico ofereceu seusbons préstimos e chegou-se a uma espécie deconciliação entre dom Sulpício e El Conde, quedeixaram tudo como antes.

Cosme, certamente, devia se manter alerta, equando andava pelas árvores com Úrsula temiasempre ser espionado pelo jesuíta. Sabia que eleandava pondo pulgas atrás da orelha de dom Fre-derico para que não deixasse mais a moça saircom ele. Aquelas famílias nobres, na verdade,eram educadas segundo costumes muito fecha-dos; mas ali estavam em cima das árvores, no exí-lio, não ligavam mais para muitas coisas. Cos-me parecia-lhes um bom rapaz, titulado, e sabiatornar-se útil, ficava lá com eles sem que nin-guém lhe tivesse imposto isso; e, mesmo se per-cebiam que entre ele e Úrsula devia haver algode terno e os viam afastar-se frequentemente para

procurar flores e frutas, fechavam um olho paranão ter o que criticar.

Porém, agora que dom Sulpício disseminavaveneno, dom Frederico não podia mais fingir quenão sabia de nada. Chamou Cosme para conver-sar no seu plátano. Ao lado estava Sulpício, com-prido e negro.

— Baron, tu és visto com frequência com mi-nha niña, me dizem.

— Ensina-me a hablar vuestro idioma, Alte-za.

— Quantos anos tens?— Vou pelos diez y nueve.— Joven! Demasiado jovem! Minha filha é

uma moça em idade de casar. Por qué fazes com-panhia a ela?

— Úrsula tem dezessete anos…— Já pensas em casarte?— Em quê?— Minha filha te ensina mal el castellano,

hombre. Pergunto se pensas em escolher uma no-via, em construir uma casa.

Sulpício e Cosme, juntos, fizeram um gestocomo se pusessem as mãos para a frente. A con-versa tomava um certo rumo que não era aquelepretendido pelo jesuíta e muito menos por meu ir-mão.

— Minha casa… — disse Cosme e apontouao redor, em direção aos ramos mais altos, as nu-vens —, minha casa está por toda a parte, ondequer que seja possível subir, andando para o al-to…

— No es esto. — E o príncipe Frederico Alon-so sacudiu a cabeça. — Baron, se queres vir paraGranada quando voltarmos, verás o mais rico feu-do da Sierra. Mejor que aquí.

Dom Sulpício já não conseguia ficar calado:— Mas, Alteza, este jovem é um voltairia-

no… Não deve mais frequentar sua filha…— Oh, es joven, es joven, as ideias vão e vem,

que se case, casando isso passa, vem para Grana-da, vem.

— Muchas gracias a usted… Pensarei nis-so… — E Cosme revirando nas mãos o boné depele de gato retirou-se com muitas reverências.

Quando reviu Úrsula estava preocupado.— Sabe, Úrsula, seu pai conversou comigo…

Veio com umas histórias…Úrsula se assustou.— Não quer que a gente se veja mais?— Não é isso… Gostaria que eu, quando ter-

mine o exílio, vá com vocês para Granada…— Ah, sim! Que bom!— Bem, veja, eu gosto de você, mas vivi sem-

pre em cima das árvores, e pretendo continuar…— Oh, Cosme, temos belas árvores também lá

em nossa terra…— Sim, mas para fazer a viagem com vocês

teria de descer, e uma vez tendo descido…— Não se preocupe, Cosme. De qualquer mo-

do, hoje somos exilados e talvez continuemos as-sim por toda a vida.

E meu irmão não se preocupou mais.Mas Úrsula não calculara bem. Depois de

pouco tempo chegou a dom Frederico uma cartacom os lacres reais espanhóis. O exílio, por graci-oso indulto de Sua Majestade Católica, fora revo-gado. Os nobres degredados podiam retornar às

próprias casas e aos próprios bens. Imediatamen-te houve uma grande agitação nos plátanos.

— Vamos voltar! Vamos voltar! Madri! Cá-diz! Sevilha!

A notícia correu pela cidade. Os habitantes deOlivabaixa chegaram com escadas. Entre os exi-lados, alguns desciam, festejados pelo povo, ou-tros juntavam as bagagens.

— Mas não acabou! — exclamava El Conde.— As Cortes vão ouvir-nos! E a Coroa! — E co-mo seus companheiros de exílio naquele momen-to não queriam lhe dar atenção, e as damas já sepreocupavam com os vestidos fora de moda, como guarda-roupa a ser renovado, ele começou a fa-zer grandes discursos para a população de Oli-vabaixa: — Agora vamos para a Espanha e vo-cês verão! Lá ajustaremos as contas! Eu e este jo-vem faremos justiça! — E apontava para Cosme.E Cosme, confuso, fazia sinais negativos.

Dom Frederico, carregado, descera para ochão.

— Baja, joven bizarro! — gritou para Cosme.— Jovem valoroso, desce! Vem conosco paraGranada!

Cosme, encolhido num galho, se defendia.E o príncipe:— Como no? Serás como um filho meu!— O exílio acabou! — dizia El Conde. — Fi-

nalmente podemos pôr em prática aquilo que dis-cutimos por tanto tempo! O que vai ficar fazendoem cima das árvores, barão? Não há mais moti-vo!

Cosme abriu os braços.— Subi aqui antes dos senhores, e aqui hei de

continuar!— Queira descer! — gritou El Conde.— Não: resistirei — respondeu o barão.Úrsula, que fora das primeiras a descer e com

as irmãs se ocupava em arrumar as bagagens nu-ma charrete, precipitou-se na direção da árvore.

— Então fico com você! Fico com você! — Ecorreu para a escada.

Quatro ou cinco a detiveram, arrancaram-nade lá, tiraram a escada das árvores.

— Adiós, Úrsula, seja feliz! — disse Cosme,enquanto transportavam-na à força para a charre-te que partia.

Explodiu um latido festivo. O bassê ÓtimoMáximo, que durante todo tempo em que seupatrão permanecera em Olivabaixa, demonstraraum descontentamento litigioso, talvez exaspera-do pelas contínuas brigas com os gatos dos espa-nhóis, agora parecia voltar a ser feliz. Começou aperseguir, de brincadeira, os poucos gatos rema-nescentes, esquecidos nas árvores, que eriçavamo pelo e bufavam para ele.

Alguns a cavalo, outros de charrete, outrosde berlinda, os exilados partiram. A estradaesvaziou-se. Nas árvores de Olivabaixa restoumeu irmão, sozinho. Presas aos ramos havia ain-da algumas plumas, alguma fita ou renda que seagitava ao vento, e uma luva, uma sombrinhacom espiguilha, um leque, uma bota com espora.

19

ERA UM VERÃO FEITO DE LUAS CHEIAS, coaxarde rãs, cantos de tentilhões, quando o barão rea-pareceu em Penúmbria. Dava a impressão de es-tar dominado por uma inquietude de pássaro: sal-tava de galho em galho, intrometido, assustadiço,inconcludente.

Logo começou a circular o boato de que umacerta Chica, do outro lado do vale, era sua amante.O que havia de certo era que a moça vivia numacasa solitária, com uma tia surda, e um ramo deoliveira passava ali perto da janela. Os desocupa-dos da praça discutiam se era ou não era.

— Vi os dois, ela no parapeito, ele no galho.Ele se agitava como um morcego e ela ria!

— Num determinado momento ele dá um sal-to!

— Que nada: se jurou nunca descer das árvo-res em sua vida…

— Bem, ele estabeleceu as regras, pode esta-belecer também as exceções…

— Hum, se se começa com exceções…— Não, quero dizer: é ela quem salta da jane-

la para a oliveira!— E como se arranjam? Devem ficar sem po-

sição…— Acho que nunca se tocaram. Sim, ele a cor-

teja, ou então é ela quem o provoca. Mas ele nãodesce de lá de cima…

Sim, não, ele, ela, o parapeito, o salto, o ra-mo… as discussões não tinham fim. Os noivos eos maridos, agora, brigavam se suas namoradasou esposas levantavam os olhos para uma árvore.As mulheres, por sua vez, assim que se encontra-vam, “Ti ti ti…”, de quem falavam? Dele.

Chica ou não Chica, meu irmão tinha os seuscasos sem jamais descer das árvores. Encontrei-ocerta vez a correr pelos galhos com um colchão,com a mesma naturalidade com que o víamos car-

regar fuzis, cordas, machadinhas, alforjes, cantis,saquinhos de pólvora.

Uma certa Doroteia, mulher licenciosa,confessou-me ter se encontrado com ele, por ini-ciativa própria, e não por dinheiro, mas para teruma ideia de como era.

— E que tal a experiência?— Ah! Estou bem contente…Uma outra, uma tal de Zobeida, contou-me ter

sonhado com “o homem trepador” (assim o cha-mava) e o sonho era tão rico em detalhes que che-go a pensar que o tivesse realmente vivido.

Bem, não sei como acontecem essas coisas,mas Cosme devia exercer um certo fascínio sobreas mulheres. Desde que convivera com os espa-nhóis passara a cuidar-se mais, e deixara de cir-cular vestido de peles como um urso. Andava decalças e casaca bem cortada e cartola à inglesa,e raspava a barba e penteava a peruca. Para serfranco, agora era difícil dizer, do modo como an-dava vestido, se ia para a caça ou para um encon-tro galante.

O fato é que uma nobre senhora madura cujonome não digo, aqui de Penúmbria (ainda estãovivas as filhas e os netos, e poderiam ofender-se,mas naquele tempo era uma história que se conta-va pelas esquinas), viajava sempre de carruagem,sozinha, com o velho cocheiro em seu assento,e se fazia conduzir pelo trecho da estrada princi-pal que passa pelo bosque. Num certo ponto di-zia ao cocheiro: “Tonico, o bosque está cheio decogumelos. Vai, enche este cesto e depois volta”,e lhe dava um cabaz. O pobre homem, com seusreumatismos, pulava do assento, punha o cabaznas costas, saía da estrada e abria caminho entreas samambaias, inclinando-se a fuçar embaixo decada folha para descobrir cogumelos. Nesse ínte-rim, a nobre senhora desaparecia da carruagem,como se fosse raptada pelos céus, em direção àsdensas frondes que sombreavam a estrada. Nãose sabe de mais nada, exceto que, muitas vezes,quem por ali passava podia ver a carruagem pa-rada e vazia no bosque. Depois, misteriosamen-te como desaparecera, eis a nobre senhora senta-da de novo na carruagem, olhando ao redor, lân-

guida. Voltava Tonico, enlameado, com os pou-cos cogumelos espalhados no cabaz, e partiam.

Histórias desse tipo contavam-se tantas, espe-cialmente na casa de certas damas genovesas quepromoviam reuniões para homens ricos (tambémeu as frequentava quando era solteiro), e assimaquelas cinco senhoras devem ter tido vontade defazer visitas ao barão. De fato, fala-se de um car-valho que se chama ainda o Carvalho das CincoPeruas, e nós, velhos, sabemos o que isso signi-fica. Foi um tal de Zé, comerciante de passas deuva, que contou, homem ao qual se pode dar cré-dito. Era um belo dia de sol, e este Zé ia caçar nobosque; chega àquele carvalho e o que vê? Cos-me distribuíra as cinco pelos galhos, uma aqui eoutra ali, e desfrutavam o bom tempo, todas nuas,com sombrinhas abertas para não se queimaremcom o sol, e o barão estava lá no meio, a ler ver-sos latinos, não conseguiu distinguir se de Ovídioou de Lucrécio.

Tantas histórias se contavam, e o que tinhamde verdadeiro não sei: naquele tempo ele era re-servado e pudico sobre tais coisas; depois de ve-

lho, ao contrário, contava a mais não poder, po-rém, quase sempre, casos sem pé nem cabeça eque nem ele conseguia entender. Acontece quenaquele tempo surgiu o costume de, quando umamoça engravidava e não se sabia quem era o res-ponsável, atribuir-se a culpa a ele, era cômodo.Uma vez, uma moça contou que estava colhendoazeitonas e se sentira transportada por dois braçoslongos como de um macaco… Em pouco tempopariu gêmeos. Penúmbria encheu-se de bastardosdo barão, reais ou fictícios. Agora cresceram e al-guns, de fato, parecem-se com ele: mas tambémpoderia ser mera sugestão, pois as mulheres grá-vidas ao verem Cosme saltar de repente de umgalho para outro certas vezes ficavam perturba-das.

Contudo, em geral não acredito nestas históri-as contadas para explicar os nascimentos. Não seise teve tantas mulheres como afirmam, mas é cer-to que aquelas que o haviam conhecido preferiamficar caladas.

E depois, se tinha tantas mulheres atrás dele,não se explicariam as noites de lua quando ele

circulava como um gato, pelos pés de figo, amei-xeiras e romãzeiras próximos do casario, naquelaregião de pomares que domina a parte externa dascasas de Penúmbria, e se lamentava, emitia umaespécie de suspiros, ou bocejos, ou gemidos, quepor mais que ele pretendesse suportar, controlar,dar-lhes ares de manifestações banais, saíam-lheda garganta como grunhidos ou urros. E os mo-radores de Penúmbria, que já estavam habitua-dos, surpreendidos no sono nem se assustavam,viravam-se na cama e diziam: “Olha o barão pro-curando mulher. Esperemos que encontre, e nosdeixe dormir”.

Às vezes, algum velho, daqueles que sofremde insônia e vão de boa vontade à janela se ou-vem um rumor, aproximava-se para observar en-tre as plantas e via a sombra dele no meio dos ra-mos da figueira, projetada na terra pela lua.

— Não consegue dormir esta noite, senhoria?— Não, há muito tempo que me agito e estou

sempre acordado — dizia Cosme, como se falas-se da cama, com o rosto afundado no travesseiro,não esperando outra coisa a não ser sentir as pál-

pebras baixarem, ao passo que estava lá suspensocomo um acrobata. — Não sei o que acontece ho-je, um calor, um nervoso: talvez o tempo vá mu-dar, não sente também?

— É, sinto, sinto… Mas eu sou velho, senho-ria, e o senhor, ao contrário, tem o sangue que seagita…

— Isso é, agitar agita…— Bem, veja se pode se agitar um pouco mais

longe daqui, senhor barão, pois aqui não há nadaque lhe possa dar sossego: só pobres famílias queacordam ao amanhecer e que agora querem dor-mir…

Cosme não contestava, desaparecia para ou-tros pomares. Soube sempre manter-se nos limi-tes justos e por outro lado os penúmbrios sempresouberam tolerar suas esquisitices; em parte por-que ele era sempre o barão e em parte porque eraum barão diferente dos outros.

Às vezes, aquelas notas lastimosas que lhesaíam do peito encontravam outras janelas, maiscuriosas em escutá-las; bastava o sinal deacender-se uma vela, de um murmúrio de risos

aveludados, de palavras femininas entre a luz e asombra que não se conseguia entender mas cer-tamente eram brincadeiras sobre ele, ou pararesponder-lhe, ou fingir que o chamavam, e já eracoisa séria, já era amor, para aquela abandonadacriatura que saltava pelos ramos como um passa-rinho.

Pronto, agora uma corajosa chegava à janelacomo para ver do que se tratava, ainda quente dacama, o seio descoberto, os cabelos soltos, o risobranco nos fortes lábios abertos, e desenrolavam-se os diálogos.

— Quem é? Um gato?E ele:— É homem, é homem.— Um homem que mia?— Bem, suspiro.— Por quê? O que lhe falta?— Falta-me o que você tem.— O quê?— Vem aqui e eu te conto…Jamais houve desaforos dos homens, ou vin-

ganças, dizia eu, sinal de que — parece-me —

não constituía grande perigo. Só uma vez, miste-riosamente, foi ferido. Espalhou-se a notícia umacerta manhã. O farmacêutico de Penúmbria tevede subir na nogueira onde ele se lamentava. Tinhauma perna cheia de pequenas balas de fuzil, da-quelas para passarinho: foi preciso arrancá-lasuma por uma com a pinça. Doeu-lhe, mas logo fi-cou curado. Jamais se soube direito como aconte-cera: ele disse que tinha levado um tiro inadverti-damente, ao escalar um ramo.

Convalescente, imóvel na nogueira,retemperava-se em seus estudos mais severos.Começou naquela época a escrever um Projeto deconstituição de um Estado ideal fundado em ci-ma das árvores, em que descrevia a imagináriaRepública Arbórea, habitada por homens justos.Iniciou-o como um tratado sobre as leis e os go-vernos, mas, ao redigir, a sua inclinação de inven-tor de histórias complicadas acabou predominan-do e o resultado foi uma miscelânea de aventu-ras, duelos e histórias eróticas, inseridas, estas úl-

timas, num capítulo sobre o direito matrimonial.O epílogo do livro deveria ser este: o autor, fun-dado o Estado perfeito sobre as árvores e conven-cida toda a humanidade a estabelecer-se ali e a vi-ver feliz, descia para habitar na terra deserta. De-veria ter sido, mas a obra permaneceu incomple-ta. Mandou um resumo para Diderot, assinandosimplesmente: Cosme Rondó, leitor da Enciclo-pédia. Diderot agradeceu com um bilhete.

20

SOBRE AQUELA ÉPOCA não posso dizer muito,pois remonta ao mesmo período minha primeiraviagem pela Europa. Completara vinte e um anose podia desfrutar do patrimônio familiar como me-lhor me aprouvesse, porque a meu irmão bastavapouco, e não mais necessitava nossa mãe, que, coi-tada, andava envelhecendo muito nos últimos tem-pos. Meu irmão queria assinar um documento queme tornava usufrutuário de todos os bens, desdeque lhe entregasse uma mesada, pagasse os impos-tos e mantivesse os negócios em ordem. Não merestava alternativa além de assumir a direção daspropriedades, escolher uma esposa e já me via na-quela vida regulada e pacífica que, não obstante osgrandes transtornos da passagem do século, acabeipor viver de fato.

Porém, antes de começar, concedi-me um pe-ríodo de viagens. Fui também a Paris, justo emtempo de ver as triunfais acolhidas tributadas aVoltaire, que para lá retornava após muitos anospara a reapresentação de uma tragédia sua. Masestas não são as memórias da minha vida, quecertamente não mereceriam ser escritas; queriaapenas dizer como durante toda a viagem fui sur-preendido pela fama que se difundira do homemsobre as árvores de Penúmbria, inclusive nas na-ções estrangeiras. Até num almanaque vi umafigura com a legenda: “L’homme sauvaged’Ombreuse (Rép. Génoise). Vit seulement surles arbres”. Haviam-no representado como umser todo recoberto de penugem, com uma longabarba e uma longa cauda, e comia um gafanhoto.Essa figura estava no capítulo dos monstros, entreo hermafrodita e a sereia.

Perante fantasias desse gênero, eu evitava re-velar que o homem selvagem era meu irmão. Maso proclamei bem alto quando, em Paris, fui convi-dado para uma recepção em homenagem a Voltai-re. O velho filósofo estava em sua poltrona, papa-

ricado por um enxame de damas, feliz como umpássaro e maligno como um porco-espinho. Aosaber que vinha de Penúmbria, apostrofou-me:

— C’est chez vous, mon cher chevalier, qu’ily a ce fameux philosophe qui vit sur les arbrescomme un singe?

E eu, lisonjeado, não pude me conter ao lheresponder:

— C’est mon frère, monsieur, le baron deRondeau.

Voltaire ficou muito surpreso, talvez pelo fatode que o irmão daquele fenômeno parecesse umapessoa tão normal, e se pôs a fazer-me perguntas,como:

— Mais c’est pour approcher du ciel, que vo-tre frère reste là- -haut?

— Meu irmão afirma — respondi — queaquele que pretende observar bem a terra devemanter a necessária distância. — E Voltaire apre-ciou muito a resposta.

— Jadis, c’était seulement la Nature quicréait des phénomènes vivants — concluiu —;maintenant c’est la Raison. — E o velho sábio

mergulhou de novo na conversa das suas hipócri-tas teístas.

Logo tive de interromper a viagem e voltar aPenúmbria, chamado por um comunicado urgen-te. A asma de mamãe agravara-se de repente e acoitada não saía mais da cama.

Quando adentrei o portão e ergui os olhos pa-ra a nossa vila estava certo de que o veria ali.Cosme estava montado num alto ramo de amorei-ra, perto da sacada do quarto de mamãe.

— Cosme! — chamei-o, mas com voz abafa-da.

Fez-me um sinal que queria dizer ao mesmotempo que nossa mãe encontrava-se um poucomelhor, embora continuasse em estado grave, eque subisse, mas fizesse silêncio.

A peça achava-se em penumbra. Mamãe nacama com uma pilha de travesseiros que lhe man-tinham as costas levantadas parecia maior do quenunca. À sua volta estavam as poucas mulheresda casa. Batista ainda não chegara, pois o conde,

seu marido, que devia acompanhá-la, fora retidopela colheita. Na sombra do quarto, destacava-sea janela aberta, que enquadrava Cosme parado nogalho da árvore.

Inclinei-me para beijar a mão de mamãe.Reconheceu-me logo e pôs a mão em minha ca-beça.

— Oh, você chegou, Biágio… — Falava comum fio de voz, quando a asma não lhe oprimia opeito, mas correntemente com total coerência.

Porém, o que me impressionou foi que ela sedirigia indiferentemente a mim como a Cosme,quase como se ele também estivesse ali na cabe-ceira. E Cosme da árvore lhe respondia.

— Já faz tempo que tomei o remédio, Cosme?— Não, foi há poucos minutos, mamãe, espe-

re para tomar outra vez, pois agora pode não lhefazer bem.

Num certo ponto ela disse:— Cosme, quero um gomo de laranja. — E eu

me senti excluído.Mas fiquei ainda mais admirado quando vi

que Cosme introduzia no quarto através da janela

uma espécie de arpão de barco e com ele pegavaum gomo de laranja de um móvel e o colocava namão de mamãe.

Observei que, para todas essas pequenas coi-sas, ela preferia dirigir-se a ele.

— Cosme, me dá o xale.E ele com o arpão procurava entre as coisas

jogadas na poltrona, erguia o xale, entregava-o aela.

— Aqui está, mamãe.— Obrigada, meu filho.Sempre lhe falava como se estivesse a um

passo de distância, mas notei que nunca lhe pediacoisas que ele não conseguisse fazer da árvore.Nesses casos, pedia sempre a mim ou às mulhe-res.

Durante a noite mamãe não adormecia. Cos-me tomava conta dela da árvore, com um peque-no candeeiro preso ao galho, a fim de que o vissemesmo no escuro.

A parte da manhã era o pior momento para aasma. O único remédio era tratar de distraí-la, eCosme tocava pequenas árias com um pífaro, ou

imitava o canto dos pássaros, ou então capturavaborboletas e depois soltava-as no quarto, ou ain-da montava festões com cachos de glicínia.

Foi num dia de sol. Cosme, com uma tigelana árvore, começou a fazer bolhas de sabão esoprava-as através da janela, em direção à camada doente. Mamãe via aquelas cores do arco-írisa voar e encher o quarto e dizia: “Que brincadeiravocês fazem!”, como quando éramos crianças edesaprovava sempre nossos jogos, considerando-os demasiado fúteis e infantis. Mas agora, quemsabe pela primeira vez, sentia prazer com umde nossos divertimentos. As bolhas de sabãochegavam-lhe até o rosto, e ela ao respirar faziacom que estourassem, e sorria. Uma bolhachegou-lhe aos lábios e permaneceu intacta. In-clinamo- -nos sobre ela. Cosme deixou cair a ti-gela. Estava morta.

Aos lutos sucedem-se cedo ou tarde eventosalegres, é a lei da vida. Um ano depois da mortede mamãe fiquei noivo de uma donzela da nobre-

za dos arredores. Foi preciso muito esforço pa-ra habituar a minha futura esposa à ideia de quepassaria a viver em Penúmbria: tinha medo demeu irmão. O pensamento de que houvesse umhomem que se movia entre as folhas, que obser-vava cada movimento pelas janelas, que apareciaquando menos se esperava, enchia-a de terror, in-clusive porque jamais vira Cosme e o imaginavacomo uma espécie de índio. Para arrancar-lhe es-se medo da cabeça, programei um almoço ao arlivre, sob as árvores, para o qual Cosme tambémestava convidado. Cosme comia acima de nós,numa faia, com os pratos apoiados numa mesi-nha, e devo admitir que, embora estivesse destrei-nado das refeições em sociedade, comportou-semuito bem. Minha noiva tranquilizou-se um pou-co, dando-se conta de que, exceto pelo fato de vi-ver nas árvores, era um homem em tudo igual aosoutros; mas restou-lhe uma invencível desconfi-ança.

Mesmo quando, já casados, nos estabelece-mos juntos na vila de Penúmbria, fugia o maispossível não só às conversas mas também à sim-

ples visão do cunhado, apesar de ele, coitado,presenteá-la às vezes com maços de flores ou pe-les preciosas. Quando começaram a nascer os fi-lhos e depois a crescer, enfiou na cabeça que aproximidade do tio podia ter má influência naeducação deles. Não se deu por contente até quemandamos reformar o castelo no nosso velho feu-do de Rondó, havia tempos desocupado, e pude-mos ficar mais lá do que em Penúmbria, para queas crianças não tivessem maus exemplos.

E também Cosme começava a dar-se conta dotempo que passava, e a referência era o bassê Óti-mo Máximo, que estava ficando velho e não tinhamais vontade de juntar-se aos turnos dos sabujosatrás de raposas, nem tentava mais amores absur-dos com cadelas alanas ou mastins. Ficava sem-pre deitado, como se, pela pouca distância queseparava sua barriga do chão quando estava empé, não valesse a pena erguer-se. E ali estendidoem todo o seu comprimento, da cauda ao focinho,junto à árvore em que estava Cosme, erguia um

olhar cansado para o patrão e só sacudia o rabo.Cosme ia ficando triste: o sentido do transcorrerdo tempo comunicava-lhe uma espécie de insatis-fação com sua vida, com o eterno vaivém entreaquele monte de gravetos. E nada lhe dava maisalegria plena, nem a caça, nem os amores fuga-zes, nem os livros. Nem ele próprio sabia o quedesejava: dominado por seus ataques, subia rapi-díssimo até os ramos mais tenros e frágeis, comose buscasse outras árvores que crescessem sobreo cume das árvores para trepar também nelas.

Um dia Ótimo Máximo estava inquieto. Pare-cia aspirar um vento de primavera. Levantava ofocinho, cheirava, baixava-o novamente. Duas outrês vezes se levantou, moveu-se ao redor, tornoua deitar. De repente saiu correndo. Agora, só con-seguia trotar lentamente, e de vez em quando pa-rava para tomar fôlego. Cosme o seguia dos ga-lhos.

Ótimo Máximo pegou o rumo do bosque. Pa-recia ter em mente uma direção bem precisa, poisembora parasse de vez em quando, desse uma mi-jadinha, descansasse com a língua de fora olhan-

do o patrão, logo se animava e retomava o ca-minho sem incertezas. Estava assim andando porparagens pouco frequentadas por Cosme, ou me-lhor, quase desconhecidas, porque era para os la-dos da reserva de caça do duque Ptolomeu. O du-que Ptolomeu era um velho decadente e sem dú-vida não caçava havia muito tempo, mas na re-serva dele nenhum caçador furtivo atrevia-se apôr os pés, pois os guardas eram muitos e semprevigilantes, e Cosme, que já tivera problemas ali,preferia manter-se distante. Agora, Ótimo Máxi-mo e Cosme penetravam na reserva do príncipePtolomeu, mas nem um nem outro pensava emdesentocar as preciosas aves: o bassê trotava se-guindo um apelo secreto e o barão estava tomadode impaciente curiosidade para descobrir aonde éque ia o cão.

Assim o bassê chegou a um ponto em que afloresta acabava e havia um prado. Dois leões depedra sentados sobre pilastras apoiavam um bra-são. Desse lado talvez devesse começar um par-que, um jardim, uma parte mais privada da pro-priedade de Ptolomeu: mas não havia nada além

daqueles dois leões de pedra, e, depois do parque,um prado imenso, com capim verde e curto, doqual só à distância se via o fim, um fundo de car-valhos negros. O céu apresentava uma leve pátinade nuvens. Nem sequer um pássaro cantava ali.

Para Cosme, aquele prado era uma visão desa-nimadora. Tendo vivido sempre no meio da den-sa vegetação de Penúmbria, convencido de po-der sempre alcançar qualquer sítio com seus mei-os, ao barão bastava ter pela frente uma extensãosem árvores, impossível de percorrer, nua contrao céu, para experimentar uma sensação de verti-gem.

Ótimo Máximo lançou-se no prado e, comose tivesse rejuvenescido, corria a bom correr. Dofreixo em que estava empoleirado, Cosme come-çou a assobiar, a chamá-lo:

— Aqui, volte aqui, Ótimo Máximo! Aondevai?

Mas o cachorro não o obedecia, nem sequerse virava: corria, corria pelo prado, até não se versenão uma vírgula distante, seu rabo, e tambémela desapareceu.

Cosme no freixo torcia as mãos. Já se habitua-ra a fugas e ausências do bassê, mas agora ÓtimoMáximo desaparecia nesse prado insuperável e asua fuga fundia-se com a angústia experimentadapouco antes, e a carregava de uma espera indefi-nida, de um aguardar algo além daquele prado.

Estava remoendo esses pensamentos quandoouviu passos sob o freixo. Viu um guarda quepassava, as mãos no bolso, assobiando. Para serfranco, tinha uma expressão muito relaxada e dis-traída para ser um daqueles terríveis vigilantes dareserva, contudo as insígnias eram as do corpoducal, e Cosme encolheu-se no tronco. Depois, apreocupação com o cachorro prevaleceu; interro-gou o guarda:

— Ei, sargento, será que não viu um bassê?O guarda ergueu o olhar:— Ah, é o senhor! O caçador que voa com o

cão que se arrasta! Não, não vi o bassê! O que ca-çou, de interessante, hoje de manhã?

Cosme reconhecera um de seus adversáriosmais zelosos, e disse:

— Não é nada disso, o cachorro fugiu e tiveque vir atrás dele até aqui… O fuzil está descar-regado…

O guarda riu:— Oh, pode carregá-lo, e disparar quanto qui-

ser! Agora…— Agora o quê?— Agora que o duque está morto, quem mais

pensa que se interessa pela reserva?— Então morreu, não sabia.— Está morto e sepultado há três meses. E há

uma briga entre os herdeiros do primeiro e do se-gundo matrimônio e a jovem viúva.

— Tinha uma terceira mulher?— Casaram-se quando ele tinha oitenta anos,

um ano antes de morrer, ela é uma moça na faixados vinte, acho uma loucura uma esposa que nãoficou ao lado dele nem um dia, e só agora começaa visitar suas propriedades, e não lhe agradam.

— Como: não lhe agradam?— Só vendo, instala-se num palácio, ou num

feudo, chega com toda a sua corte, pois traz sem-pre uma chusma de galanteadores atrás, e depois

de três dias acha tudo feio, tudo triste, e se põe acaminho. Então os outros herdeiros caem em ci-ma, lançam-se sobre aquela propriedade, reivin-dicam direitos. E ela: “Ah, sim, levem tudo!”.Agora chegou aqui no pavilhão de caça, masquanto tempo ficará? Pouco, acho eu.

— E onde é o pavilhão de caça?— Lá depois do prado, além dos carvalhos.— Então o meu cachorro foi para lá…— Deve estar à procura de ossos… Desculpe,

mas tenho a impressão de que Vossa Senhoria otrata meio mal! — E explodiu numa risada.

Cosme não respondeu, observava o prado in-superável, esperava que o bassê voltasse.

Passou-se o dia e ele não voltou. No dia se-guinte Cosme estava de novo no freixo, contem-plando o prado, como se não pudesse passar semo desânimo que lhe provocava.

Ao anoitecer, o bassê reapareceu, uma peque-na mancha no relvado que só o olho agudo deCosme conseguia perceber, e corria fazendo-semais visível.

— Ótimo Máximo! Venha cá! Onde andou?

O cão havia parado, sacudia o rabo, olhava opatrão, latiu, parecia convidá-lo a vir, a segui-lo,mas se dava conta da distância que ele não podiaultrapassar, voltava-se para trás, dava passos in-certos, e pronto, retrocedia.

— Ótimo Máximo! Venha cá! Ótimo Máxi-mo! — Mas o bassê corria, desaparecia na infini-tude do prado.

Mais tarde passaram dois guardas.— Continua à espera do cachorro, senhoria!

Mas acabo de vê-lo no pavilhão, em boas mãos…— Como?— Isso mesmo, a marquesa, isto é, a duquesa

viúva (nós a chamamos de marquesa porque eramarquesinha quando menina) fazia-lhe tantas fes-tas, como se ele tivesse sido sempre dela. É umcão que merece ser tratado a pão de ló, se me per-mite uma opinião, senhoria. Agora encontrou umjeito de ficar no macio e se deixa ficar…

E os dois valentões se afastavam grunhindo.Ótimo Máximo não voltava mais. Cosme es-

tava todos os dias no freixo observando o pradocomo se nele pudesse ler alguma coisa que havia

muito tempo o consumia por dentro: a própriaideia da distância, da insaciedade, da espera quepode prolongar-se para além da vida.

21

CERTO DIA COSME VIGIAVA NO ALTO DO FREIXO.Brilhou o sol, um raio atravessou o prado que deverde-ervilha se fez verde-esmeralda. Ao longe, nonegrume do bosque de carvalhos algumas folha-gens se moveram e saltou fora um cavalo. O ca-valo trazia na sela um cavaleiro, vestido de preto,com uma capa, não: uma saia; não era um cavalei-ro, era uma amazona, corria de rédeas soltas e eraloura.

Cosme sentiu disparar o coração e foi tomadopela esperança de que aquela amazona se aproxi-maria até poder distinguir-lhe bem o rosto, e deque aquele rosto se revelaria belíssimo. Mas alémda espera de sua aproximação e de sua beleza ha-via uma terceira espera, um terceiro ramo de es-perança que se entrelaçava aos outros dois e era

o desejo de que aquela beleza sempre mais lu-minosa correspondesse a uma necessidade de re-conhecer uma impressão familiar e quase esque-cida, uma lembrança da qual permaneceu apenasuma linha, uma cor e gostaria de fazer emergirnovamente todo o resto, ou melhor, reencontrá-loem algo de presente.

E com tal ânimo não via a hora que ela seaproximasse da parte do prado próxima dele, on-de se impunham as duas pilastras dos leões; masessa espera começou a tornar-se dolorosa, pois sedera conta de que a amazona não cortava o pradoem linha reta rumo aos leões, mas em diagonal, eassim logo desapareceria de novo no bosque.

Já estava a ponto de perdê-la de vista, quandoela virou bruscamente o cavalo e agora cortava oprado numa outra diagonal, que a traria um poucomais perto mas certamente faria com que desapa-recesse na parte oposta do prado.

Entretanto, Cosme percebeu com irritaçãoque do bosque surgiam dois cavalos marrons,montados por cavaleiros, mas tratou de eliminarlogo tal pensamento, decidiu que aqueles cavalei-

ros não contavam, bastava ver como giravam deum lado para outro atrás dela, decerto não mere-ciam nenhuma consideração, contudo, devia ad-mitir, incomodavam-no.

Eis que a amazona, antes de sumir do prado,também desta vez virava o cavalo, mas para trás,afastando-se de Cosme… Não, agora o cavalo gi-rava sobre si mesmo e galopava em sua direção, eo movimento parecia proposital para desorientaros dois cavaleiros batedores que de fato agora sedistanciavam e não haviam ainda entendido queela corria na direção oposta.

Agora as coisas se sincronizavam: a amazonagalopava ao sol, cada vez mais bela e semprecorrespondendo mais àquela sede de lembrançasde Cosme, e a única coisa alarmante era o con-tínuo zigue-zague do percurso, que não deixavaprever nada de suas intenções. Nem mesmo osdois cavaleiros entendiam aonde ia, e tentavamseguir suas evoluções acabando por dar muitasvoltas inúteis, mas sempre com muita boa vonta-de e presteza.

Pronto, como Cosme esperava, a mulher docavalo atingira os limites do prado perto dele,agora passava entre as duas pilastras coroadas porleões como se ali estivessem para reverenciá- -la,e se virava para o prado e para tudo aquilo que fi-cava daquele lado do prado com um amplo gestocomo de adeus, e galopava para a frente, passavasob o freixo, e Cosme conseguira distinguir-lhe orosto e o corpo, ereto na sela, a expressão de mu-lher orgulhosa e ao mesmo tempo de moça, a tes-ta feliz por estar acima daqueles olhos, os olhosfelizes por se encontrarem sobre aquela face, onariz, a boca, o queixo, o colo, cada parte delafeliz com todas as outras partes, e absolutamentetudo relembrava a menina vista aos doze anos nobalanço, no primeiro dia que passou nas árvores:Sofonisba Viola Violante de Rodamargem.

Tal descoberta, ou seja, ter carregado desde oprimeiro momento esta inconfessada descoberta aponto de poder proclamá-la a si próprio, encheuCosme de uma espécie de febre. Teve ganas degritar, para que ela erguesse os olhos até o freixo

e o visse, mas da garganta só lhe escapou o pio danarceja e ela não se virou.

Agora o cavalo branco galopava no bosque decastanheiros, e os cascos batiam nas bolotas espa-lhadas pelo chão abrindo-as e mostrando a cascalígnea e brilhante do fruto. A amazona dirigia ocavalo para um lado e para o outro, e Cosme, orapensava nela já distante e inalcançável, ora sal-tando de árvore em árvore, surpreendia-se ao vê-la reaparecer na perspectiva dos troncos, e aquelemodo de movimentar-se incandescia a lembrançaque flamejava na mente do barão. Queria lhe diri-gir um apelo, dar- -lhe um sinal de sua presença,mas lhe vinha aos lábios apenas o assobio da per-diz cinzenta e ela não ligava.

Os dois cavaleiros que a seguiam pareciamentender menos ainda suas intenções e o percur-so, e continuavam a caminhar em direções erra-das, enrascando-se em sarças ou atolando-se empântanos, enquanto ela voava segura e fugidia.De vez em quando emitia algo como ordens ouincitações aos cavaleiros levantando o braço como chicote ou arrancando a vagem de uma alfar-

robeira e atirando-a, como se dissesse que preci-sava ir por aquele lado. De repente os cavaleirospartiam naquela direção a galope pelos prados emargens, mas ela se virava noutra direção e nãoos olhava mais.

“É ela! É ela!”, pensava Cosme sempre maisinflamado de esperança e queria gritar o seu no-me mas dos lábios não lhe saía senão um lamentolongo e triste como o da tarambola.

Ora, acontecia que todos aqueles jogos e vai-véns e enganos para os cavaleiros se desenrolas-sem em torno de uma linha que mesmo sendo ir-regular e ondulada não excluía uma possível in-tenção. E adivinhando esta intenção, e não resis-tindo mais à tarefa impossível de segui-la, Cosmedisse a si mesmo: “Vou a um lugar que, se é real-mente ela, me acompanhará. Ou melhor, não po-de estar aqui a não ser para ir até lá”. E, saltandopelos seus caminhos, rumou para o velho parqueabandonado dos Rodamargem.

Naquela sombra, naquele ar cheio de aromas,naquele lugar onde as folhas e as madeiras pos-suíam outra cor e outra substância, sentiu-se tão

tomado pelas lembranças da infância que quasese esqueceu da amazona, ou se não a esqueceupensou que bem podia não ser ela, e tanta forçatinham essa espera e esperança que era quase co-mo se ela estivesse ali.

Mas ouviu um rumor. Eram os cascos do ca-valo branco no cascalho. Vinha pelo jardim nãomais às carreiras, como se a amazona quisesseolhar e reconhecer detalhadamente cada coisa.Dos cavaleiros tontos não havia mais sinal: deviatê-los feito perder completamente sua pista.

Viu-a: circulava pelo tanque, pelo quiosque,pelas ânforas. Observava as plantas que se tinhamtornado enormes, com raízes aéreas pendentes,as magnólias transformadas num bosque. Porém,não o via, ele que tentava chamá-la com o arru-lhar da poupa, com o trinado do verdilhão, comsons que se perdiam no denso chilreio dos pássa-ros do jardim.

Desmontara da sela, andava a pé conduzindoo cavalo pelas rédeas. Chegou à vila, deixou o ca-valo, penetrou no pórtico. Começou a gritar:

— Hortência! Caetano! Tarquínio! Aqui épreciso pintar de branco, repintar as persianas,pendurar as tapeçarias! E quero aqui a mesa, lá oconsole, no meio a espineta, e os quadros preci-sam ser todos mudados de lugar.

Cosme percebeu então que aquela casa, quepara o seu olhar distraído estava fechada e desabi-tada como sempre, estava agora aberta, cheia degente, empregados que limpavam, arrumavam,abriam tudo, punham móveis no lugar, batiam ta-petes. Era Viola que retornava, portanto, Violaque se restabelecia em Penúmbria, que tomavaposse da vila da qual partira criança! E a agitaçãode alegria no peito de Cosme não era, porém,muito diferente de uma agitação de medo, porqueela ter voltado, tê-la sob os olhos tão imprevisívele orgulhosa, podia significar não contar mais comela, nem na lembrança, nem mesmo naquele se-creto perfume de folhas e cor da luz através doverde, podia significar que ele teria sido obrigadoa fugir dela e assim deixar fugir também a primei-ra recordação dela criança.

Com essa agitação alternada Cosme a obser-vava mover-se em meio à criadagem, fazendotransportar divãs, cravos, cantoneiras, e depoispassar depressa para o jardim e montar de novo acavalo, perseguida por muitos que ainda aguarda-vam ordens, e agora se dirigia aos jardineiros, in-dicando como deviam arrumar os canteiros aban-donados e reordenar nas alamedas o cascalho car-regado pelas chuvas, e consertar as cadeiras devime, o balanço…

Do balanço apontou, com gestos largos, o ra-mo onde estivera pendurado um dia e tinha deser recolocado agora, e quão longas deviam ser ascordas, e a amplitude do movimento, e assim fa-lando com gestos e olhares caminhou até a mag-nólia na qual Cosme lhe aparecera uma vez. E namagnólia, pronto, reencontrou-o.

Ficou surpresa. Muito. Difícil dizer quanto. Éclaro que se recuperou logo e se fez de autossufi-ciente, à sua maneira, mas por um instante ficoumuito surpresa e lhe sorriram os olhos e a boca eum dente que continuava igual a quando era me-nina.

— Você! — E logo, procurando o tom dequem fala de uma coisa natural, mas sem conse-guir ocultar o interesse e a satisfação: — Ah, comque então conseguiu ficar aí sem descer?

Cosme logrou transformar aquela voz que lhequeria sair como um grito de um pássaro num:

— Sim, sou eu, Viola, lembra?— Sem nunca, nunca mesmo pôr um pé no

chão?— Nunca.E ela, como se já lhe tivesse concedido muito:— Ah, viu como conseguiu? Então não era

tão difícil.— Esperava sua volta…— Ótimo. Ei, vocês, aonde é que estão le-

vando aquela cortina? Deixem tudo aqui para queeu decida! — Voltou a olhar para ele. Nesse dia,Cosme estava vestido para caçar: hirsuto, com ogorro de gato, com a espingarda. — Parece Ro-binson!

— Você leu? — ele disse logo, para demons-trar familiaridade com o livro.

Viola já se virara:

— Caetano! Ampélio! As folhas secas! Estátudo cheio de folhas secas! — E para ele: — Den-tro de uma hora, no fundo do parque. Espere pormim. — E correu para dar ordens, a cavalo.

Cosme lançou-se no mato: tinha vontade deque fosse mil vezes mais denso, uma avalanchede folhas e ramos e espinhos e madressilvas eavencas para mergulhar e desaparecer e só depoisde ter submergido completamente começar acompreender se estava feliz ou louco de medo.

Na grande árvore no fundo do parque, com osjoelhos apertados no galho, olhava agora num re-lógio de bolso que pertencera ao avô materno ge-neral Von Kurtewitz e dizia: não vem. Pelo con-trário, dona Viola chegou quase pontual, a cava-lo; parou-o ao pé da planta, sem olhar para ci-ma; não trazia mais o chapéu nem a capa de ama-zona; a blusa branca bordada de rendas sobre asaia preta era quase monacal. Erguendo-se nosestribos deu uma das mãos a ele no ramo; elea ajudou; subindo na sela, ela alcançou o galho,depois, sempre sem encará-lo, trepou rápido noramo, buscou uma forquilha cômoda, sentou-se.

Cosme aninhou-se aos pés dela, e só podia come-çar assim:

— Você voltou?Viola o examinou irônica. Era loura como

quando menina.— Como sabe? — perguntou.E ele, sem entender a brincadeira:— Vi você naquele prado da reserva do du-

que…— A reserva é minha. Que se encha de urti-

gas! Sabe tudo? Quer dizer, sobre mim?— Não… Só agora soube que você é viúva…— Claro, sou viúva. — Deu uma palmada na

saia negra, alisando-a, e começou a falar rápidoe condensado: — Você nunca sabe de nada. Ficaem cima das árvores metendo o nariz na vida dosoutros, e acaba não sabendo de nada. Casei como velho Ptolomeu porque os meus me obrigaram,me forçaram. Diziam que eu me fazia de difícil eque não podia ficar sem marido. Durante um anofui a duquesa Ptolomeu, e foi o ano mais tedio-so de minha vida, embora com o velho não tenhaficado mais do que uma semana. Não tornarei a

pôr os pés em nenhum daqueles castelos e ruínase ninhos de ratos, que se encham de cobras! Do-ravante permanecerei aqui, onde vivi quando me-nina. Ficarei enquanto tiver vontade, é claro, de-pois irei embora: sou viúva e finalmente posso fa-zer o que me apetece. Para ser franca, sempre fizo que me apetecia: só casei com Ptolomeu porquetinha vontade de fazê-lo, não é verdade que metenham obrigado, queriam que me casasse a todocusto e então escolhi o pretendente mais decrépi-to que havia. “Assim fico viúva mais cedo”, afir-mei, e consegui o que pretendia.

Cosme estava um tanto aturdido sob aquelaavalanche de novidades e de afirmações peremp-tórias, e Viola achava-se mais distante que nunca:mimada, viúva e duquesa, fazia parte de um mun-do inalcançável, e tudo o que ele conseguiu dizerfoi:

— E para quem você se exibia?E ela:— Pronto. Está com ciúmes. Olha que jamais

vou permitir que você seja ciumento.

Cosme teve uma reação característica de ciu-mento provocado para a briga, mas logo reagiu:“Como? Ciumento? Mas como admite que possater ciúmes dela? Por que diz: não vou permitirque? É como se dissesse que nós…”.

Então, ruborizado, comovido, tinha vontadede dizer-lhe, de pedir-lhe, de ouvir, mas foi elaquem perguntou, seca:

— Agora você: o que fez da vida?— Ah, fiz muita coisa — começou a dizer —,

cacei, até javalis, mas sobretudo raposas lebresfuinhas e, é claro, tordos e melros; depois, houveo caso dos piratas, desembarcaram os piratas tur-cos, houve uma grande batalha, meu tio morreu;li muitos livros, leitura para mim e para um ami-go, um bandido enforcado; tenho a Enciclopédia,de Diderot, completa, cheguei a escrever-lhe e eleme respondeu, de Paris; e trabalhei muito, podei,salvei um bosque de um incêndio…

— … E você me amará sempre, absolutamen-te, acima de todas as coisas, e será capaz de fazerqualquer coisa por mim?

Perante tal saída, Cosme, atordoado, disse:

— Sim…— Você é um homem que viveu nas árvores

só por mim, para aprender a amar-me…— Sim… Sim…— Beije-me.Empurrou-a contra o tronco, beijou-a. Er-

guendo o rosto percebeu a beleza dela como senunca a tivesse visto antes.

— Como você é linda…— Para você. — E desabotoou a blusa branca.

O peito era teso e com botões de rosa, Cosmechegou a tocá-lo, Viola voou pelos galhos feitopássaro, ele saltava atrás e tinha aquela saia norosto.

— Mas aonde está me levando? — dizia Violacomo se fosse ele quem a conduzia, não ela que oarrastava.

— Por aqui — disse Cosme e começou a guiá-la, e a cada mudança de galho agarrava-a pelamão ou pela cintura e lhe indicava onde pisar.

— Por aqui.E caminhavam por certas oliveiras, protegidas

por uma ladeira íngreme, e do cume de uma das

árvores o mar que até então só entreviam de frag-mento em fragmento, retalhado por folhas e ra-mos, de repente abriu-se calmo e límpido e vastocomo o céu. O horizonte se descortinava largo ealto e o azul estava denso e limpo sem uma únicavela e se contavam encrespações levemente de-senhadas pelas ondas. Apenas um suave repuxo,como um suspiro, corria pelas pedras da praia.

Com os olhos meio toldados, Cosme e Violadesceram na sombra verde-escura da folhagem.

— Por aqui.Numa nogueira, na sela do tronco, havia uma

cavidade em concha, a ferida de um antigo tra-balho de machado, e aquele era um dos refúgiosde Cosme. Uma pele de javali estava estendida, eem volta espalhavam-se um frasco, alguns instru-mentos, uma tigela.

Viola estendeu-se na pele de javali.— Trouxe outras mulheres aqui?Ele hesitou. E Viola:— Se não trouxe outras mulheres você é um

banana.— Sim… Algumas…

Levou uma bofetada no rosto com a mãocheia.

— Era assim que me esperava?Cosme passava a mão na face vermelha e não

sabia o que dizer; mas ela parecia ter readquiridoo bom humor.

— E como eram? Diga-me: como eram?— Não como você, Viola, não como você…— Como é que você sabe como eu sou, heim,

como é que sabe?Tornara-se doce, e Cosme, diante de tais mu-

danças bruscas, não cansava de se admirar.Aproximou-se. Viola era de ouro e mel.

— Diga…— Diga…Conheceram-se. Ele a conheceu e a si próprio,

pois na verdade jamais soubera quem fosse. E elao conheceu e a si própria, pois, mesmo já se co-nhecendo, nunca pudera se reconhecer assim.

22

A PRIMEIRA PEREGRINAÇÃO DELES foi atéaquela árvore que numa incisão profunda na casca,já tão velha e deformada que nem parecia obra demão humana, trazia escrito em grandes letras: Cos-me, Viola e — mais abaixo — Ótimo Máximo.

— Aqui em cima? Quem foi? Quando?— Eu: naquele tempo.Viola estava emocionada.— E isso o que quer dizer? — E indicava as

palavras: Ótimo Máximo.— Meu cachorro. Isto é, o seu. O bassê.— Turcaret?— Ótimo Máximo, chamei-o assim.— Turcaret! Quanto chorei por ele, quando ao

partir me dei conta de que não o levava na carrua-gem… Oh, nem me importava de não ver mais vo-

cê, mas estava desesperada por não ter mais obassê!

— Se não fosse por ele não teria reencontradovocê! Foi ele quem cheirou no vento que vocêestava próxima, e não teve paz até que a encon-trou…

— Reconheci-o imediatamente, assim que ovi chegar ao pavilhão, todo esbaforido… Os ou-tros diziam: “E este de onde saiu?”. Inclinei-mepara observá-lo, a cor, as manchas. “Mas este éTurcaret! O bassê que tinha quando menina emPenúmbria!”

Cosme ria. Ela torceu o nariz imprevistamen-te.

— Ótimo Máximo… Que nome horrível…Onde você vai procurar nomes tão feios? — ECosme logo se zangou.

Ao contrário, para Ótimo Máximo a felicida-de agora não tinha limites. Seu velho coração decão dividido entre dois patrões enfim encontra-va paz, após ter se esforçado dias inteiros paraatrair a marquesa para os confins da reserva, atéo freixo onde se encontrava Cosme. Puxava-lhe

o vestido, ou lhe escapava carregando um objeto,correndo até o prado a fim de ser seguido, e ela:“Mas o que quer você? Aonde me arrasta? Turca-ret! Pare com isso! Que cachorro atrevido encon-trei!”. Mas a simples vista do bassê havia agita-do em sua memória as recordações da infância, asaudade de Penúmbria. E logo ordenara a mudan-ça do pavilhão ducal para regressar à velha vilade plantas estranhas.

Viola estava de volta. Para Cosme começara aestação mais bela, e também para ela, que batia oscampos em seu cavalo branco e assim que avista-va o barão entre copas e céu erguia- -se na sela,subia pelos troncos oblíquos e pelos galhos, logose tornando quase tão ágil quanto ele, e o alcan-çava aonde quer que fosse!

— Oh, Viola, eu não sei mais, eu trepareiaté…

— Até mim — dizia Viola, baixinho, e ele en-louquecia.

O amor era para ela exercício heroico: o pra-zer se misturava a provas de audácia e generosi-dade e dedicação e tensão de todas as faculdades

do espírito. O mundo deles eram as árvores, asmais intrincadas e tortas e inacessíveis.

— Lá! — exclamava indicando uma alta for-quilha de ramos, e juntos se lançavam para atingi-la e começava entre eles uma competição de acro-bacias que culminava em novos abraços.Amavam-se suspensos no vazio, escorando-senos ramos ou aferrando-se a eles, ela jogando-sesobre ele quase voando.

A obstinação amorosa de Viola combinavacom a de Cosme, e às vezes com esta entrava emchoque. Cosme evitava demoras, molezas, per-versidades refinadas: nada que não fosse o amornatural lhe agradava. As virtudes republicanas es-tavam no ar: preparavam-se épocas severas e aomesmo tempo licenciosas. Cosme, amante insa-ciável, era um estoico, um asceta, um puritano.Sempre em busca da felicidade amorosa, perma-necia inimigo da voluptuosidade. Chegava a des-confiar do beijo, das carícias, dos jogos verbais,de qualquer coisa que ofuscasse ou pretendessesubstituir-se à sanidade da natureza. Fora Violaque lhe revelara a plenitude; e com ela jamais co-

nheceu a tristeza depois do amor, predicada pelosteólogos; e mais, sobre este tema escreveu umacarta filosófica a Rousseau, que, talvez perturba-do, não respondeu.

Mas Viola era também uma mulher refinada,caprichosa, mimada, católica de corpo e alma.O amor de Cosme enchia-lhe os sentidos, masdeixava-lhe insatisfeitas as fantasias. Daí, brigase ressentimentos sombrios. Mas duravam pouco,tão variada era a vida deles e o mundo ao redor.

Cansados, procuravam seus refúgios ocultosnas árvores de copa mais densa: redes que envol-viam seus corpos numa espécie de folha acolcho-ada, ou pavilhões pênseis, com cortinas que voa-vam ao vento, ou leitos de plumas. Nesses arran-jos se explicava o gênio de dona Viola: onde querque se achasse a marquesa possuía o dom de criarem torno de si bem-estar, luxo e uma complica-da comodidade; complicada de se ver mas que elaobtinha com espantosa facilidade, pois qualquercoisa que ela desejava devia ver imediatamenterealizada a todo custo.

Naquelas alcovas aéreas pousavam a cantar ospintarroxos e pelas cortinas entravam borboletasaos pares, perseguindo-se. Nas tardes de verão,quando o sono envolvia os dois amantes um aolado do outro, entrava um esquilo, procurando al-go para roer, e acariciava o rosto deles com a cau-da emplumada, ou aparecia o polegar de algumanimal. Então, fechavam as cortinas com maiorcautela: mas uma família de caxinguelês come-çou a roer o teto do pavilhão e caiu em cima de-les.

Era o período em que estavam se descobrindo,contando as vivências, interrogando-se.

— E você se sentia sozinho?— Faltava você.— Mas sozinho em relação ao resto do mun-

do?— Não. Por quê? Tinha sempre alguma coisa

para fazer com outras pessoas: colhi frutas, podei,estudei filosofia com o abade, lutei contra os pi-ratas. Não é assim com todos?

— Só com você é assim, por isso o amo.

Mas o barão ainda não havia entendido bemo que Viola aceitava dele e o que não aceitava.Às vezes bastava uma coisa à toa, uma palavra ouuma mudança de tom dele para provocar a ira damarquesa.

Ele, por exemplo:— Com João do Mato lia romances, com o ca-

valeiro fazia projetos hidráulicos…— E comigo?— Com você faço o amor. Como a poda, a co-

lheita das frutas…Ela se calava, imóvel. De repente Cosme se

dava conta de ter provocado a sua ira: seus olhostinham gelado imprevistamente.

— Mas o que é, Viola, o que eu disse?Ela ficava distante como se não o visse nem

escutasse, a quilômetros dali, o rosto de pedra.— Mas não, Viola, o que foi, por quê, escu-

te…Viola se erguia e ágil, sem precisar de ajuda,

se punha a descer da árvore.Cosme ainda não entendera qual tinha sido

seu erro, não conseguira ainda pensar nisso, tal-

vez preferisse não pensar no caso, não entendê-lo, para melhor proclamar sua inocência:

— Ah, não, você não entendeu, Viola, ouça…Ele a seguia até o ramo mais baixo.— Viola, não vai embora, não desta maneira,

Viola…Agora ela falava, mas com o cavalo, que al-

cançara e desamarrava; montava na sela e partia.Cosme começava a se desesperar, a pular de

uma árvore para outra.— Não, Viola, diga-me, Viola!Ela galopava. Ele a seguia pelos ramos:— Por favor, Viola, eu a amo! — Mas não a

via mais. Lançava-se sobre galhos incertos, commovimentos arriscados. — Viola! Viola!

Quando estava seguro de tê-la perdido, e nãopodia refrear os soluços, eis que ela reapareciatrotando, sem erguer o olhar.

— Olhe, olhe, Viola, o que sou capaz de fa-zer! — E dava cabeçadas contra um tronco, semnenhuma proteção na cabeça (que, a bem da ver-dade, era duríssima).

Ela nem ligava. Já ia longe.

Cosme esperava que voltasse, em zigue-zaguepor entre as árvores.

— Viola! Estou desesperado! — E lançava-seno vazio, de ponta-cabeça, agarrando-se a um ra-mo com as pernas e golpeando-se com os punhoscabeça e rosto. Ou então se punha a quebrar ga-lhos com fúria destruidora, e um olmo frondosoem poucos instantes estava reduzido a um tronconu e desguarnecido como se tivesse havido umachuva de granizo.

Porém, jamais ameaçou suicidar-se, ou me-lhor, nunca fez nenhuma ameaça, as chantagenssentimentais não eram com ele. Fazia o que tinhavontade e enquanto o fazia o anunciava, não an-tes.

Num certo ponto, dona Viola, imprevisivel-mente como se enfurecera, tornava-se doce. Den-tre todas as loucuras de Cosme que pareciam nãocomovê-la, de repente uma a enchia de emoção eamor.

— Não, Cosme, querido, espere! — E saltavada sela, e se precipitava para agarrar-se num tron-

co, e do alto os braços dele estavam prontos parasuspendê-la.

O amor se reacendia com furor parecido ao dabriga. Na realidade era a mesma coisa, mas Cos-me não entendia nada disso.

— Por que me faz sofrer?— Porque o amo.Agora era ele quem se enfurecia.— Não, não me ama! Quem ama quer a feli-

cidade, não a dor.— Quem ama só quer o amor, mesmo à custa

da dor.— Então me faz sofrer de propósito.— Sim, para ver se me ama.A filosofia do barão se recusava a ir além.— A dor é um estado negativo da alma.— O amor é tudo.— A dor deve ser sempre combatida.— O amor não se furta a nada.— Jamais admitirei certas coisas.— Mas é claro que admitirá, pois me ama e

sofre.

Assim como os desesperos, eram marcantesem Cosme as explosões de alegria incontida. Porvezes, sua felicidade chegava a um ponto que eleera obrigado a afastar-se da amante e andar aossaltos, gritando e proclamando as maravilhas desua dama.

— Yo quiero the most wonderful puellam detodo el mundo!

Aqueles que estavam sentados nos bancos dePenúmbria, desocupados e velhos marinheiros, jáse tinham habituado a essas rápidas aparições. Eisque se fazia ver aos saltos entre as azinheiras adeclamar:

Zu dir, zu dir, gunàikaVo cercando il mio ben,En la isla de Jamaica,Du soir jusqu’au matin!

ou então:

Il y a un pré where the grassgrows toda de oroTake me away, take me away, cheio ci moro!

e desaparecia.Seus estudos de línguas clássicas e modernas,

embora pouco profundos, permitiam-lheentregar-se a essa rumorosa exibição de senti-mentos e, quanto mais seu ânimo era sacudidopor uma intensa emoção, mais sua linguagem sefazia obscura. Todos se lembram de uma vez que,ao festejar o padroeiro, a gente de Penúmbria es-tava reunida na praça e havia um pau de sebo e osfestões e o estandarte. O barão surgiu no alto deum plátano e, com um daqueles pulos de que só asua agilidade acrobática era capaz, saltou no paude sebo, trepou nele até em cima, gritou: “Queviva die schöne Venus posteriòr!”, deixou-se es-corregar pela madeira engordurada até perto dochão, voltou a subir velozmente, arrancou do tro-féu uma fôrma de queijo redonda e rosada e com

outro pulo dos seus voou de volta para o plátanoe fugiu, deixando boquiabertos os penúmbrios.

Nada deixava a marquesa feliz como tais de-monstrações de exuberância; e a estimulavam aretribuí-las com manifestações de amor igual-mente vertiginosas. Os penúmbrios, quando a vi-am cavalgar a rédeas soltas, o rosto quase imersona crina branca do cavalo, sabiam que corria aoencontro do barão. Mesmo no andar a cavalo elaexprimia uma força amorosa, mas aqui Cosmenão podia mais acompanhá-la; e a paixão eques-tre dela, embora muito a admirasse, era para eletambém uma razão secreta de ciúme e rancor,pois a via dominar um mundo mais vasto que oseu e compreendia que jamais poderia tê-la só pa-ra si, encerrá-la nos limites de seu reino. A mar-quesa, por seu lado, talvez sofresse por não poderser ao mesmo tempo amante e amazona: às ve-zes a tomava uma indefinida necessidade de queo amor dela e Cosme fosse amor a cavalo, e cor-

rer sobre as árvores já não lhe bastava, desejariacorrer a galope na sela de seu ginete.

E na realidade o cavalo à força de correr poraquele terreno de subidas e despenhadeirostornara-se rampante como um cabrito, e Violaagora o conduzia a correr contra certas árvores,por exemplo, velhas oliveiras com troncos torci-dos. O cavalo chegava às vezes até a primeiraforquilha de ramos, e ela adquiriu o hábito deamarrá-lo não mais ao chão, mas lá sobre a oli-veira. Desmontava e o deixava a mastigar folhase ramos tenros.

Assim, quando um bisbilhoteiro, passando pe-la oliveira e erguendo os olhos curiosos, viu láem cima o barão e a marquesa abraçados e depoisfoi contar o caso com um acréscimo: “E o cavalobranco também estava em cima de um galho!”,foi considerado lunático e ninguém acreditou ne-le. Ainda daquela vez o segredo dos amantes foimantido.

23

O QUE ACABEI DE NARRAR prova que os penúm-brios, assim como haviam sido pródigos em in-trigas sobre a precedente vida galante de meu ir-mão, agora, perante essa paixão que se desenca-deava, literalmente sobre a cabeça deles, manti-nham uma respeitosa reserva, como se estivessemperante qualquer coisa maior do que eles. Não quea conduta da marquesa não fosse reprovada: po-rém, isso acontecia mais por seus aspectos exterio-res, como aquele galopar desenfreado (“Quem sa-be onde andará, com tanto furor?”, perguntavam,sabendo perfeitamente que ia ao encontro de Cos-me) ou aquela mobília que levava para o alto dasárvores. Já existia uma tendência de considerar tu-do como uma moda dos nobres, uma das tantasextravagâncias (“Agora, todo mundo nas árvores:

mulheres, homens. Não tinham mais nada pa-ra inventar?”); em suma aproximavam-se tempostalvez mais tolerantes, todavia mais hipócritas.

Se o barão aparecia nas azinheiras da praçacom grandes intervalos de tempo, isso era sinalde que ela partira. Porque às vezes Viola ficavaausente durante meses, cuidando de seus bens es-palhados por toda a Europa, mas tais partidas cor-respondiam sempre a momentos em que suas re-lações haviam sofrido choques e a marquesa seofendera com Cosme por ele não compreender oque ela desejava fazê-lo compreender do amor.Não que Viola partisse ofendida com ele: conse-guiam sempre fazer as pazes antes, mas nele res-tava a suspeita de que aquela viagem tivesse sidodecidida por cansaço em relação a ele, pois nãolograva retê-la, talvez estivesse se cansando de-le, quem sabe se uma ocasião da viagem ou umapausa de reflexão a levassem a decidir não vol-tar. Assim meu irmão vivia angustiado. Por umlado, tratava de retomar sua vida habitual anteriorao reencontro, voltar à caça e à pesca, e seguir ostrabalhos agrícolas, os seus estudos, as bravatas

em praça pública, como se nunca houvesse feitooutra coisa (persistia nele o teimoso orgulho ju-venil de quem não quer admitir que sofre influên-cia de outros), e ao mesmo tempo se compraziacom tudo o que aquele amor lhe dava, em ale-gria, em orgulho; mas por outro lado percebia quemuitas coisas já não lhe importavam, que sem Vi-ola a vida não tinha mais sabor, que seus pen-samentos corriam sempre para ela. Quanto maisprocurava, fora da agitação da presença de Viola,reapropriar-se das paixões e prazeres numa sábiaeconomia do espírito, mais sentia o vazio por elaprovocado ou a febre de esperá-la. Em suma, seuenamoramento era exatamente como Viola o que-ria, não como ele pretendia que fosse; era semprea mulher que triunfava, mesmo se distante, e Cos-me, a contragosto, acabava por apreciar isso.

De repente, a marquesa voltava. Nas árvoresrecomeçava a estação dos amores, mas também ados ciúmes. Onde estivera Viola? O que fizera?Cosme ficava ansioso por saber, mas ao mesmotempo tinha medo do modo como ela respondiaàs suas indagações, tudo por meio de alusões,

a cada alusão encontrava modos de insinuar ummotivo de suspeita para Cosme, e ele entendiaque o fazia para atormentá-lo, mas tudo bem po-dia ser verdade, e nesse estado de ânimo incertoora mascarava seu ciúme ora o deixava irromperviolento, e Viola respondia de modo sempre dife-rente e imprevisível às suas reações, ora ela lheparecia mais que nunca ligada a ele, ora não maiscapaz de se excitar com ele.

Qual fosse de fato a vida da marquesa em suasviagens, nós de Penúmbria não podíamos saber,longe como estávamos das capitais e de suas in-trigas. Mas naquele período fiz minha segundaviagem a Paris, por causa de certos contratos (umfornecimento de limões, pois agora muitos nobrespunham-se a comerciar, estando eu entre os pri-meiros).

Uma noite, num dos mais ilustres salões pa-risienses, encontrei dona Viola. Apresentava-secom um penteado tão suntuoso e uma roupa tãoesplêndida que só não tive dificuldades emreconhecê-la, a bem dizer estremeci ao vê-la, foiporque era justamente mulher que não podia ser

confundida com nenhuma. Cumprimentou-mecom indiferença, mas logo encontrou o modo deafastar-se comigo e me perguntar, sem aguardarresposta entre uma pergunta e outra:

— Tem novidades de seu irmão? Volta logopara Penúmbria? Pegue, entregue-lhe como lem-brança minha. — E, tirando do seio um lenço deseda, colocou-o em minha mão.

Em seguida, deixou-se envolver pela corte deadmiradores que se arrastava atrás dela.

— Conhece a marquesa? — perguntou-me emvoz baixa um amigo parisiense.

— Só de passagem — respondi, e era verda-de: em suas estadas em Penúmbria, dona Viola,contagiada pela selvageria de Cosme, não se pre-ocupava em frequentar a nobreza da vizinhança.

— Raramente tanta beleza se faz acompanharde tanta inquietude — disse meu amigo. — Osmexeriqueiros pretendem que em Paris ela passede um amante a outro, num carrossel tão contínuoque não permite a ninguém afirmar que ela é suae dizer-se privilegiado. Mas de vez em quandodesaparece durante meses e meses e dizem que

se retira para um convento, a fim de mortificar-seem penitências.

Com dificuldades contive o riso, ao ver que apermanência da marquesa nas árvores de Penúm-bria era tida pelos parisienses como período depenitência; mas ao mesmo tempo aquelas intrigasme perturbaram, fazendo prever tempos de triste-za para meu irmão.

Para preveni-lo de surpresas desagradáveis,quis avisá-lo, e logo que voltei a Penúmbria fuiprocurá-lo. Interrogou-me longamente sobre a vi-agem, as novidades da França, mas não conseguidar-lhe nenhuma notícia sobre política e literaturada qual já não estivesse ao corrente.

Por último, tirei do bolso o lenço de dona Vi-ola.

— Em Paris num salão encontrei uma damaque o conhece, e me deu isso para você, com seuscumprimentos.

Desceu rapidamente o cestinho preso pelobarbante, levantou o lenço de seda e o levou aorosto como para aspirar-lhe o perfume.

— Ah, você a viu? E como estava? Diga-me:como estava?

— Muito bela e brilhante — respondi lenta-mente —, mas dizem que este perfume é aspiradopor muitos narizes…

Enfiou o lenço no peito como se temesse quelhe fosse arrancado. Voltou-se para mim com orosto vermelho:

— E você não tinha uma espada para empur-rar goela abaixo estas mentiras a quem as difun-dia?

Tive de confessar que isso nem me passarapela cabeça.

Permaneceu um pouco em silêncio. Depoisdeu de ombros.

— Tudo mentira. Só eu sei que é apenas mi-nha. — E fugiu para os galhos semcumprimentar-me.

Reconheci a sua maneira habitual de recusarqualquer coisa que o obrigasse a sair de seu mun-do.

Dali em diante passou a ser visto triste e im-paciente, saltitando aqui e ali, sem fazer nada. Se

às vezes eu o ouvia assobiar, competindo com osmelros, o seu trinado era sempre mais nervoso epesado.

A marquesa chegou. Como sempre, o ciúmedele lhe proporcionou prazer: em parte a incitou,em parte a colocou na berlinda. Assim voltaramos lindos dias de amor e meu irmão estava feliz.

Mas agora a marquesa não perdia oportunida-de de acusar Cosme de ter uma ideia estreita doamor.

— O que quer dizer? Que sou ciumento?— Faz bem em ser ciumento. Mas você pre-

tende submeter o ciúme à razão.— Claro: assim posso torná-lo mais eficaz.— Você argumenta demais. Por que o amor

deve funcionar com raciocínios?— Para amá-la ainda mais. Todas as coisas,

com o uso da razão, aumentam seu poder.— Você vive em cima das árvores e tem a

mentalidade de um tabelião com gota.

— Os empreendimentos mais audaciosos têmde ser vividos com o ânimo mais simples.

Continuava a ditar regras, até o momento emque ela fugia: então, ele se punha a segui-la, adesesperar-se, a arrancar os cabelos.

Naqueles dias, um navio almirante inglês lan-çou âncora em nossa enseada. O almirante deuuma festa para os notáveis de Penúmbria e paraos oficiais de outras embarcações de passagem;a marquesa compareceu; daquele dia em dianteCosme sofreu as penas do ciúme. Dois oficiais denavios diferentes encantaram-se com dona Vio-la e passaram a ser vistos sempre na praia, corte-jando a dama e tentando superar-se em suas aten-ções. Um era tenente da Marinha inglesa; o outrotambém era tenente, mas da frota napolitana. Ten-do alugado dois alazões, os tenentes faziam turnosob os terraços da marquesa, e quando se encon-travam o napolitano dirigia ao inglês um olhar ca-paz de fuzilá-lo, ao passo que das pálpebras semi-

cerradas do inglês saía um olhar como a ponta deuma espada.

E dona Viola? Não começa, a coquete, a ficarhoras e horas em casa, a passear no terraço emmatinée, como se fosse uma viuvinha fresca,recém-saída do luto? Cosme, sem contar com elanas árvores, sem escutar a aproximação do galopedo cavalo branco, ficava louco, e o seu posto deobservação acabou sendo (também ele) em frenteao terraço, a controlá-la e aos dois tenentes.

Estava estudando o modo de pregar uma peçanos rivais que os obrigasse a voltar o mais rápidopossível aos respectivos navios, mas, ao ver queViola demonstrava apreciar de igual modo a cortede um e de outro, veio-lhe a esperança de que elaquisesse apenas jogar com ambos, e com ele pró-prio. Nem por isso diminuiu a vigilância: ao pri-meiro sinal que ela tivesse dado de preferir umdos dois, estava pronto para intervir.

Eis que, certa manhã, passa o inglês. Violaencontra-se na janela. Sorriem. A marquesa deixacair um bilhete. O oficial o apanha no ar, lê,inclina-se, ruborizado, e esporeia o cavalo. Um

encontro! Era o inglês o felizardo! Cosme jurouque não o deixaria tranquilo até a noite.

Nessa altura passa o napolitano. Viola jogaum bilhete também para ele. O oficial o lê, leva-o aos lábios e o beija. Considerava-se, portanto,o eleito? E o outro como ficava? Contra qual dosdois Cosme devia agir? Certamente com um dosdois dona Viola marcara um encontro; e com ooutro devia ter feito apenas uma de suas brinca-deiras. Ou queria blefar com ambos?

Quanto ao local de encontro, Cosme suspei-tava de um dos quiosques do fundo do parque.Pouco tempo antes a marquesa mandara arrumare decorar o lugar, e Cosme se roía de ciúmes, poisnão era mais o tempo em que ela enchia os toposdas árvores de cortinas e divãs: agora se preocu-pava com espaços onde ele jamais entraria. “Vouvigiar o pavilhão”, Cosme disse para si. “Se mar-cou um encontro com um dos dois tenentes, sópode ser lá.” E empoleirou-se no interior da copade um castanheiro-da-índia.

Pouco antes do pôr do sol, ouviu-se um galo-pe. Chega o napolitano. “Agora o desafio!”, pen-

sa Cosme e com uma zarabatana atira-lhe no pes-coço uma bola de esterco de esquilo. O oficial sesobressalta, olha em torno. Cosme sobressai dogalho, e ao mover-se vê além da sebe o tenenteinglês que está descendo da sela, e amarra o cava-lo num tronco. “Agora é a vez dele; talvez o outroestivesse passando aqui por acaso.” E tome umazarabatanada de esquilo no nariz.

— Who’s there? — diz o inglês, e faz mençãode atravessar a sebe.

Mas se encontra cara a cara com o colega na-politano, que, tendo também descido do cavalo,diz igualmente:

— Quem está aí?— I beg your pardon, sir — diz o inglês —,

mas devo convidá-lo a retirar-se imediatamentedeste local.

— Se estou aqui é com todo o direito — diz onapolitano —, convido Vossa Senhoria a retirar-se!

— Nenhum direito pode sobrepor-se ao meu— replica o inglês. — I’m sorry, não lhe permitoficar.

— É uma questão de honra — diz o outro —,e tenha como penhor a minha tradição familiar:Salvatore di San Cataldo di Santa Maria CapuaVenere, da Marinha das Duas Sicílias!

— Sir Osbert Castlefight, terceiro desta linha-gem! — apresenta-se o inglês. — É minha honraque impõe a sua saída de campo.

— Não sem antes tê-lo expulso com esta es-pada! — E a retira da bainha.

— Senhor, queira bater-se — diz sir Osbert,pondo-se em guarda. Duelam.

— Era aqui que eu o desejava, colega, e não éde hoje! — E lhe dá uma estocada.

E sir Osbert, aparando:— Há algum tempo seguia seus movimentos,

tenente, e o esperava justamente para isso!Equilibrando-se em força, os dois tenentes

esgotavam-se em assaltos e fintas. Estavam no li-mite das energias, quando:

— Parem, em nome do céu! — No umbral dopavilhão surgira dona Viola.

— Marquesa, este homem… — disseram osdois militares a uma só voz, baixando a espada eapontando-se reciprocamente.

E dona Viola:— Meus caros amigos! Guardem as armas,

suplico-lhes! É este o modo de assustar uma mu-lher? Preferia este pavilhão por ser o lugar maissilencioso e secreto do parque, e acontece quemal adormeço me desperta o bater de suas espa-das!

— Mas, milady — diz o inglês —, não tinhasido eu convidado aqui pela senhora?

— Estava aqui para me esperar, senhora… —diz o napolitano.

Da garganta de dona Viola elevou-se um risoleve como um bater de asas.

— Ah, sim, sim, tinha convidado o senhor…ou o senhor… Oh, esta minha cabeça tão confu-sa… Bem, o que esperam? Entrem, acomodem-se, por favor…

— Milady, pensei que se tratasse de um con-vite só para mim. Enganei-me. Cumprimento-a epeço licença.

— O mesmo queria dizer eu, senhora, eausentar-me.

A marquesa ria:— Meus bons amigos… Meus caros ami-

gos… Sou tão aérea… Pensava ter convidadosir Osbert a uma certa hora… e dom Salvatorenoutro momento… Não, não, desculpem-me: namesma hora, mas em lugares diferentes… Oh,não, como pode ser?… Bem, visto que estão osdois aqui, por que não podemos sentar-nos e con-versar civilmente?

Os dois tenentes se olharam, depois olharampara ela.

— Devemos entender, marquesa, que de-monstrava aceitar nossas atenções só para jogarcom os dois?

— Por quê, meus bons amigos? Ao contrário,ao contrário… A assiduidade de vocês não podiame deixar indiferente… São ambos tão simpáti-cos… Esta é minha tristeza… Se escolhesse a ele-gância de sir Osbert, eu o perderia, meu apaixo-nado dom Salvatore… E, optando pelo fogo do

tenente de San Cataldo, deveria renunciar a umsir! Oh, por quê… por que não…

— Não o quê? — perguntaram em uníssonoos dois oficiais. E dona Viola, baixando a cabeça:

— Por que não poderia pertencer aos dois aomesmo tempo…?

Do alto do castanheiro-da-índia ouviu-se umestalar de galhos. Era Cosme que já não conse-guia manter-se calmo.

Mas os dois tenentes estavam demasiado so-bressaltados para ouvi-lo. Retrocederam juntosde um passo.

— Isto nunca, senhora.A marquesa ergueu o belo rosto com seu sor-

riso mais radioso:— Bem, eu serei do primeiro que, como prova

de amor, para satisfazer-me em tudo, se declararpronto a dividir-me também com o rival!

— Senhora…— Milady…Os dois tenentes, inclinando-se para Viola nu-

ma seca reverência de despedida, viraram-se um

de frente para o outro, estenderam-se as mãos, eapertaram-nas.

— I was sure you were a gentleman, signorCataldo — disse o inglês.

— Nem eu duvidava de sua honra, mister Os-berto — respondeu o napolitano.

Deram as costas para a marquesa e dirigiram-se para os cavalos.

— Amigos… Por que tão ofendidos… Toli-nhos… — dizia Viola, mas os dois oficiais já ti-nham o pé no estribo.

Era o momento que Cosme aguardava haviaum bom tempo, antecipando o sabor da vingançaque preparara: agora os dois teriam uma dolorosasurpresa. Acontece que, perante a atitude viril de-les ao se despedirem da pouco modesta marque-sa, Cosme se sentiu inesperadamente reconcilia-do com eles. Tarde demais! Já agora o terríveldispositivo de vingança não podia mais ser trava-do! No espaço de um segundo, Cosme generosa-mente decidiu avisá-los:

— Alto lá! — gritou da árvore —, não sesentem na sela! Os dois oficiais levantaram viva-mente a cabeça.

— What are you doing up there? O que faz aíem cima? Como se permite? Come down!

Atrás deles ouviu-se o riso de dona Viola,uma de suas risadas em cascata.

Os dois estavam perplexos. Havia um tercei-ro, que segundo tudo indicava assistira à cena. Asituação se complicava.

— In any way — disseram-se —, nós doispermanecemos solidários!

— Por nossa honra!— Nenhum dos dois consentirá em dividir

milady com quem quer que seja!— Jamais em toda a vida!— Mas se um dos dois decidisse consentir…— Neste caso, sempre solidários! Consentire-

mos juntos!— De acordo! E agora, a caminho!Diante desse novo diálogo, Cosme mordeu

um dedo de raiva por ter tentado evitar a reali-zação da vingança. “Que se cumpra, sem mais!”,

e retraiu-se entre as frondes. Os dois oficiais sal-tavam em arco. “Agora gritam”, pensou Cosme,e teve vontade de tapar os ouvidos. Ressoou umberro duplo. Os dois tenentes tinham se sentadoem cima de dois porcos-espinhos ocultos sob asgualdrapas das selas.

— Traição! — E voaram para o chão, numaexplosão de saltos e gritos e rodopios sobre elesmesmos, e parecia que quisessem zangar-se coma marquesa.

Mas dona Viola, mais indignada do que eles,gritou para cima:

— Macaco maligno e monstruoso! — E tre-pou pelo tronco do castanheiro-da-índia, desapa-recendo tão depressa da vista dos oficiais queimaginaram que tivesse sido engolida pela terra.

Entre os ramos Viola encontrou-se diante deCosme. Olhavam-se com olhos chamejantes, e talira lhes dava uma espécie de pureza, como arcan-jos. Pareciam a ponto de devorar-se, quan do amulher:

— Oh, meu querido! — exclamou. — Assim,é assim mesmo que desejo você: ciumento, im-

placável! — Já lhe atirara os braços no pescoço, ese abraçavam, e Cosme não se lembrava de maisnada.

Ela se desvencilhou, afastou o rosto do dele,como se refletisse, e depois:

— Contudo, também eles dois, como meamam, você viu? Estão prontos a dividir-me entreeles…

Cosme ameaçou lançar-se contra ela, depoisergueu-se entre os ramos, mordeu a folhagem, ba-teu a cabeça contra o tronco:

— São dois vermeees…!Viola se afastara dele com seu rosto de está-

tua.— Você tem muito a aprender com eles. —

Virou-se, desceu rápido da árvore.Os dois cortejadores, esquecidos das disputas,

não haviam encontrado outra solução além de co-meçar com paciência a tirar os espinhos um dooutro. Dona Viola interrompeu-os.

— Rápido! Subam na minha carruagem!

Desapareceram atrás do pavilhão. A carrua-gem partiu. Cosme, no castanheiro-da-índia, es-condia o rosto entre as mãos.

Começou uma fase de tormentos para Cosme,mas também para os dois ex-rivais. E para Viola,talvez se pudesse falar de um tempo de alegrias?Creio que a marquesa atormentava os outros sóporque desejava atormentar-se. Os dois nobresoficiais estavam sempre por perto, inseparáveis,sob as janelas de Viola, ou convidados ao seu sa-lão, ou em longas paradas solitárias na hospeda-ria. Ela lisonjeava ambos e pedia-lhes sempre no-vas provas de amor, para as quais eles se decla-ravam todas as vezes prontos, e já estavam dis-postos a possuí-la pela metade, e não só, mas adividi-la também com terceiros, e tendo chegadoàs concessões não podiam mais parar, levados pe-lo desejo de assim conseguir finalmente comovê-la e obter a manutenção de suas promessas, e aomesmo tempo, empenhados pelo pacto de soli-dariedade com o rival, e devorados pelo ciúme epela esperança de superá-lo, e agora também por

um apelo da obscura degradação em que se senti-am afundar.

A cada nova promessa arrancada dos oficiaisda Marinha, Viola montava a cavalo e ia dizê-lo aCosme.

— Sabe que o inglês está disposto a isso eaquilo… E o napolitano também… — gritava-lhe, apenas o via lugubremente empoleirado nu-ma árvore.

Cosme não respondia.— Isso é amor absoluto — ela insistia.— Patifarias absolutas, dignas de vocês! —

berrava Cosme, e desaparecia.Era este o modo cruel que agora tinham de

amar-se, e não encontravam mais a maneira deescapar disso.

A nau capitânea inglesa ia zarpar.— O senhor fica, não é? — disse Viola a sir

Osbert.Sir Osbert não se apresentou a bordo; foi de-

clarado desertor. Por solidariedade e emulação,dom Salvatore também desertou.

— Eles desertaram! — anunciou triunfalmen-te Viola a Cosme. — Por mim! E você…

— E eu??? — urrou Cosme com um olhar tãoferoz que Viola não disse nem mais uma palavra.

Sir Osbert e Salvatore di San Cataldo, deser-tores da Marinha das respectivas Majestades, pas-savam dias inteiros na hospedaria, jogando da-dos, pálidos, inquietos, tratando de desbancar-sereciprocamente, enquanto Viola estava no augedo descontentamento consigo e com tudo o que acircundava.

Pegou o cavalo, rumou para o bosque. Cosmeestava num carvalho. Ela parou embaixo, numprado.

— Estou cansada.— Daqueles dois?— De todos vocês.— Ah.— Eles me deram as maiores provas de

amor…Cosme cuspiu.— …Mas não me bastam.Cosme ergueu os olhos para ela.

E ela:— Você não acredita que o amor seja dedica-

ção absoluta, renúncia de si mesmo…Estava ali no prado, linda como nunca, e a

frieza que endurecia de leve os seus traços e oseu porte orgulhoso teria bastado um nada parapacificá-los, e voltar a tê-la nos braços… Podiadizer qualquer coisa, Cosme, uma coisa qualquerpara ir ao encontro dela, poderia dizer: “Diga-meo que deseja que eu faça, estou pronto…”, e teriasido outra vez a felicidade para ele, a felicidadejuntos e sem sombras. Ao contrário, disse:

— Não pode haver amor se não somos nósmesmos com as nossas próprias forças.

Viola fez um movimento de contrariedade queera também de cansaço. Contudo, ainda teria po-dido entendê-lo, como de fato o entendia, e mais,tinha nos lábios as palavras para dizer: “Você écomo eu gosto…” e logo subir até ele… Mordeuum lábio. Disse:

— Pois então, seja você mesmo sozinho.“Mas então ser eu mesmo não faz sentido…”,

eis o que desejava dizer Cosme. Porém, falou:

— Se prefere aqueles dois vermes…— Não lhe permito desprezar os meus ami-

gos! — ela gritou, e ainda pensava: “Só você meimporta, é só por você que faço tudo o que faço!”.

— Só eu posso ser desprezado…— O seu modo de pensar!— Sou uma coisa inteira com ele.— Então adeus. Parto esta noite. Não me verá

mais.

Correu para a vila, fez as malas, partiu semdizer nada aos tenentes. Manteve a palavra. Nãoregressou a Penúmbria. Foi para a França, e osacontecimentos históricos sobrepuseram-se à suavontade, quando ela só desejava voltar. Estouroua revolução, depois a guerra; a marquesa, de iní-cio interessada pelo novo curso dos acontecimen-tos (estava na entourage de La Fayette), emigroudepois para a Bélgica e de lá para a Inglaterra.Na névoa de Londres, durante os longos anos dasguerras contra Napoleão, sonhava com as árvoresde Penúmbria. Mais tarde, voltou a casar-se com

um lorde interessado pela Companhia das Índiase se estabeleceu em Calcutá. Do seu terraço olha-va as florestas, as árvores ainda mais estranhasdo que aquelas do jardim da sua infância, e a to-do momento parecia-lhe ver Cosme abrir cami-nho entre as folhas. Mas era a sombra de um ma-caco, ou de um jaguar.

Sir Osbert Castlefight e Salvatore di San Ca-taldo permaneceram ligados para sempre, ededicaram-se à carreira de aventureiros. Foramvistos nas casas de jogo de Veneza, em Göttingen,na faculdade de teologia, em São Petersburgo nacorte de Catarina II, e depois perderam-se suaspistas.

Cosme ficou vagabundeando pelos bosquesdurante muito tempo, chorando, maltrapilho,recusando-se a comer. Chorava alto, como osrecém-nascidos, e os pássaros que antigamentefugiam em bandos ao se aproximarem daqueleinfalível caçador, agora ficavam junto dele, noscumes das árvores ao redor ou voando-lhe sobrea cabeça, e os pássaros gritavam, gorjeavam ospintassilgos, arrulhava a rolinha, cantava o tordo,

chilreava o tentilhão e a carriça; e dos altos es-conderijos saíam os esquilos, os seretazes, os ra-tos do campo, e uniam seus chiados ao coro, e as-sim se movia meu irmão em meio àquela nuvemde lamentos.

Depois veio o tempo da violência destruidora:toda árvore, começava da extremidade e, cortauma folha, corta outra, rapidíssimo tornava-a pe-lada como no inverno, mesmo que não fosse dotipo desfolhante. Depois subia de novo e quebra-va todos os ramos até que só restassem os gran-des galhos, voltava a subir, e com um canivete co-meçava a arrancar a casca, e viam-se as plantasdespojadas exibirem o branco com arrepiante ex-pressão ferida.

E, em toda essa fúria, não havia mais ressen-timento contra Viola, mas apenas o remorso detê-la perdido, de não ter sabido mantê-la ligadaa ele, de tê-la ferido com um orgulho injusto eidiota. Porque, agora o compreendia, ela lhe fo-ra sempre fiel, e se arrastava outros dois homensatrás dela era para dar a entender que consideravaapenas Cosme digno de ser o seu único amante, e

todas as suas insatisfações e birras não passavamda sede insaciável de fazer sua paixão aumentarsem admitir que tocasse um ponto máximo, e ele,só ele, não entendera nada disso e a provocara atéperdê-la.

Durante algumas semanas permaneceu nobosque, sozinho como jamais estivera; não tinhamais nem Ótimo Máximo, pois Viola o levaraembora. Quando meu irmão voltou a aparecer emPenúmbria, estava mudado. Nem eu podia maister ilusões: desta vez Cosme tinha mesmo ficadolouco.

24

QUE COSME ERA LOUCO, em Penúmbria semprese disse, desde quando aos doze anos subira nasárvores recusando-se a descer. Mas em seguida,como costuma acontecer, aquela sua loucura foraaceita por todos, e não falo somente da sua fixaçãode viver lá em cima, mas das várias esquisitices deseu caráter, e todos o consideravam um original,nada mais do que isso. Depois, em plena estaçãode seu amor por Viola houve as manifestações emidiomas incompreensíveis, especialmente aqueladurante a festa do padroeiro, que alguns julgavamsacrílega, interpretando suas palavras como umgrito herético, talvez em cartaginês, língua dos pe-lagianos, ou uma declaração de socinianismo, empolonês. Desde então, começou a circular a versão:“O barão enlouqueceu!”, e os bem pensantes

acrescentavam: “Como pôde enlouquecer alguémque sempre foi louco?”.

Em meio a esses juízos contrastantes, Cosmese tornara louco de verdade. Se antes andava ves-tido com peles da cabeça aos pés, agora começaraa enfeitar a cabeça com penas, como os aborígi-nes da América, penas de poupa ou de verdilhão,com cores vivas, e além de usá-las na cabeça es-palhava algumas pelas roupas. Acabou por fazercasacas totalmente recobertas de penas, e a imitaros hábitos dos diferentes pássaros, como o pica-pau, extraindo dos troncos lombrigas e larvas econsiderando-as como grande riqueza.

Fazia também apologias dos pássaros, para aspessoas que se reuniam para ouvi-lo e zombar de-le sob as árvores: e de caçador se fez advogadodas aves e se proclamava ora abelheiro ora corujaora pintarroxo, com camuflagens adequadas, epronunciava discursos de acusação contra os ho-mens, que não sabiam reconhecer nos pássarosseus verdadeiros amigos, discursos que afinaleram de acusação contra toda a sociedade huma-na, sob a forma de parábolas. Também os pás-

saros tinham se dado conta dessa sua mudançade ideias, e se aproximavam dele, mesmo quandoembaixo havia gente a escutá-lo. Assim ele podiailustrar o seu discurso com exemplos vivos queindicava nos ramos ao redor.

Por essa sua virtude, muito se falou entre oscaçadores de Penúmbria em usá-lo como chama-riz, mas ninguém se atreveu a atirar nos pássarosque pousavam perto dele. Porque o barão, mesmoagora que andava tão fora de esquadro, continu-ava a provocar uma certa sujeição; caçoavam de-le, sim, e muitas vezes havia embaixo da árvoreum bando de moleques e desocupados que zom-bavam dele, mas o barão era também respeitado,e ouvido sempre com atenção.

Suas árvores agora eram enfeitadas com fo-lhas escritas e também com máximas de Sêneca eShaftesbury, e com objetos: cocares de penas, cí-rios de igreja, pequenas foices, coroas, bustos demulher, pistolas, balanças, ligados uns aos outrosnuma certa ordem. A gente de Penúmbria passavahoras tentando adivinhar o que queria dizer aque-le quebra-cabeça: os nobres, o papa, a virtude, a

guerra, e eu acho que às vezes não tinham ne-nhum significado, mas só serviam para aguçar amente e fazer entender que mesmo as ideias maisfora do comum podiam ser justas.

Cosme se pôs também a escrever certos tex-tos, como O verso do Melro, O Pica-Pau que ba-te, Os diálogos das Corujas, e a distribuí-los pu-blicamente. E mais, foi justamente nesse períodoque aprendeu a técnica da imprensa e começoua imprimir espécies de libelos ou gazetas (den-tre as quais A Gazeta das Pegas), todas reunidasmais tarde sob o título: O Monitor dos Bípedes.Transportara para o alto de uma nogueira um ban-co de carpinteiro, um tear, uma prensa, uma cai-xa de tipos, um garrafão de tinta, e passava os di-as a compor suas páginas e a tirar cópias. Às ve-zes entre o tear e o papel apareciam aranhas, bor-boletas, e a sua marca ficava impressa na página;às vezes um caxinguelê saltava na folha fresca detinta e borrava tudo com batidas de cauda; às ve-zes os esquilos pegavam uma letra do alfabeto ea carregavam para suas tocas pensando que fossecomestível, como aconteceu com a letra Q, a qual

devido à forma redonda e pedunculada foi con-fundida com um fruto, e Cosme teve de começaralguns artigos com cuando e cual.

Tudo muito bonito, porém eu tinha a impres-são de que naquele tempo meu irmão não só ha-via enlouquecido completamente, mas estavatambém se imbecilizando um pouco, o que é maisgrave e doloroso, pois a loucura é uma força danatureza, no mal ou no bem, enquanto a cretiniceé uma fraqueza da natureza, sem contrapartida.

De fato, no inverno, ele pareceu reduzir-se auma espécie de letargia. Estava pendurado numtronco embutido em seu saco, só com a cabeça defora, como ave de ninho, e já era muito se, nas ho-ras mais quentes, dava quatro saltos para chegarao amieiro na torrente Merdança para fazer su-as necessidades. Ficava no saco lendo um pouco(acendia, no escuro, uma lanterninha a óleo), res-mungando ou cantarolando. Mas passava a maiorparte do tempo dormindo.

Para comer, tinha suas provisões misteriosas,mas aceitava pratos de sopa e de ravióli, quandoalguma boa alma ia levá-los até lá, com uma es-

cada. De fato, criara-se uma espécie de supersti-ção entre a gente do povo, no sentido de que fazeruma oferta ao barão trazia fortuna; sinal de queele suscitava ou temor ou bem-querer, e eu creioque era o segundo. O fato de que o herdeiro do tí-tulo baronial de Rondó se punha a viver de esmo-las públicas me pareceu degradante; e pensei so-bretudo no falecido papai, se tivesse sabido disso.Quanto a mim, até então estava com a consciên-cia tranquila, pois meu irmão sempre desprezaraas comodidades da família, e assinara uma decla-ração segundo a qual, após lhe destinar uma pe-quena renda (quase toda aplicada na compra de li-vros), não tinha obrigações em relação a ele. Masagora, ao vê-lo incapaz de procurar comida, ten-tei fazer subir até ele, numa escada, um de nos-sos lacaios usando libré e peruca branca, com umquarto de peru e um copo de borgonha numa ban-deja. Pensei que fosse recusar, por uma daquelasmisteriosas questões de princípio, mas aceitou lo-go de boa vontade e, desde então, todas as vezesque nos lembrávamos, mandávamos uma porçãodos nossos alimentos para ele na árvore.

Em resumo, era uma decadência lastimável.Por sorte houve a invasão dos lobos, e Cosmevoltou a dar prova das suas melhores qualidades.Era um inverno gélido, a neve caíra até em nossosbosques. Bandos de lobos, expulsos dos Alpespela fome, chegaram às nossas praias. Alguns le-nhadores os encontraram e trouxeram a notíciaaterrorizados. Os penúmbrios, que desde o tempoda guarda contra os incêndios haviam aprendidoa unir-se nos momentos de perigo, começaram afazer turnos de sentinela nos arredores da cida-de, para impedir a aproximação daquelas feras fa-mintas. Mas ninguém se atrevia a sair do povoa-do, especialmente à noite.

— É uma pena que o barão não seja maisaquele de antigamente! — comentava-se em Pe-númbria.

Aquele inverno violento tivera consequênciaspara a saúde de Cosme. Ficava ali balançando en-rolado em seu odre como uma lagarta no casulo,com o nariz pingando, o ar distante e o rosto in-chado. Houve o alarme por causa dos lobos, e aspessoas passando embaixo o apostrofavam:

— Ah, barão, antes era você quem fazia aguarda para nós de cima das árvores, e agora so-mos nós que fazemos a guarda para você.

Ele permanecia com os olhos semicerrados,como se não entendesse ou não lhe importassenem um pouco. Contudo, de repente levantou acabeça, respirou fundo e disse, rouco:

— As ovelhas. Para caçar os lobos. Devemser colocadas ovelhas nas árvores. Amarradas.

As pessoas já se reuniam embaixo para ouvirque loucuras dizia, e zombar dele. Ele, ao con-trário, bufando e escarrando, ergueu-se do saco edisse:

— Vou mostrar-lhes onde. — E correu pelosgalhos.

Em cima de algumas nogueiras e carvalhos,entre o bosque e a área cultivada, em posições es-colhidas com grande cuidado, Cosme exigiu queconduzissem ovelhas ou carneiros e os amarrouele mesmo nos ramos, vivos, balindo, mas deum jeito que não pudessem despencar. Em ca-da uma das árvores escondeu um fuzil carrega-do. Ele também se vestiu de ovelha: capuz, juba,

calças, tudo de pelagem ovina encaracolada. E sepôs a esperar a noite no sereno em cima das ár-vores. Todos acreditavam que era a maior de suasloucuras.

Ao contrário, naquela noite chegaram os lo-bos. Sentindo o cheiro das ovelhas, ouvindo o ba-lido e vendo-as lá em cima, o bando inteiro pa-rava em volta da árvore, e ululavam, com famin-tas goelas abertas, e arranhavam o tronco com asgarras. Eis que então, balançando-se nos ramos,aproximava-se Cosme, e os lobos vendo aquelaforma entre a ovelha e o homem que saltava láem cima como um pássaro ficavam tontos coma boca escancarada. Até que — bum! bum! —recebiam duas balas bem na goela. Duas: por-que Cosme carregava um fuzil com ele (e voltavaa carregá-lo de cada vez) e um outro estava alipronto com a bala no cano em cada árvore; por-tanto, a cada vez eram dois lobos que ficavam es-tendidos no chão gelado. Exterminou assim umgrande número e a cada disparo os bandos passa-vam a girar desorientados, e os caçadores corren-

do para o local de onde vinham os urros e os dis-paros faziam o resto.

Em seguida, Cosme contava episódios destacaça aos lobos em muitas versões, e não sei dizerqual era a correta. Por exemplo:

— A batalha caminhava bem quando,dirigindo-me para a árvore em que se encontravaa última ovelha, encontrei três lobos que haviamconseguido subir e estavam acabando com ela.Meio cego e aturdido pelo resfriado como estava,cheguei quase ao focinho dos lobos sem me darconta. Os lobos, ao verem aquela outra ovelhaque caminhava em pé entre os ramos, voltaram-secontra ela, escancarando as bocarras ainda rubrasde sangue. Eu tinha descarregado o fuzil, porquedepois do tiroteio ficara sem pólvora; e o fuzilpreparado naquela árvore, não podia alcançá-loporque ali estavam os lobos. Estava num ramo se-cundário e meio frágil, mas acima de mim exis-tia um galho mais forte ao alcance do braço. Co-mecei a recuar no meu ramo, afastando-me lenta-mente do tronco. Um lobo, bem devagar, me se-guiu. Mas eu me pendurava com as mãos no ra-

mo de cima, e fingia mover os pés sobre o galhotenro; na verdade estava suspenso sobre ele. O lo-bo, enganado, confiou em seguir avançando, e oramo se quebrou, enquanto eu pulava para o ga-lho de cima. O lobo caiu esboçando um latido decão, e arrebentou os ossos no chão, morrendo alimesmo.

— E os outros dois lobos?— …Os outros dois estavam me estudando,

imóveis. Então, de um golpe só, tirei a juba e ocapuz de pele de ovelha e joguei em cima deles.Um dos dois lobos, ao ver que lhe voava emcima aquela sombra branca de carneiro, tratou deagarrá-la com os dentes, mas, como tinha se pre-parado para receber um grande peso e sendo aqui-lo um despojo vazio, balançou e perdeu o equilí-brio, acabando ele também por arrebentar patas epescoço no chão.

— Resta um ainda…— …Resta um ainda, mas, como fiquei ines-

peradamente mais leve ao atirar a juba, me veioum daqueles espirros de fazer tremer o céu. O lo-bo, diante daquela irrupção tão inesperada e no-

va, teve um sobressalto tão grande que caiu da ár-vore, quebrando o pescoço como os outros.

Assim meu irmão contava sua noite de bata-lha. O que é certo é que o frio que sentira, doentecomo já estava, quase lhe foi fatal. Esteve algunsdias entre a vida e a morte, e foi tratado à custa daprefeitura de Penúmbria, em sinal de reconheci-mento. Estendido numa rede, foi cercado por umsobe e desce de médicos pelas escadas. Os me-lhores especialistas das vizinhanças foram con-sultados, e havia quem se ocupasse dos peque-nos serviços, quem fizesse sangrias, cataplasmas,massagens com bálsamos. Ninguém mais falavado barão de Rondó como de um louco, mas todoscomo de um dos maiores talentos e fenômenos doséculo.

Isso enquanto ficou doente. Quando se curou,voltaram a considerá-lo sábio como antes, ou lou-co como sempre. O fato é que não fez mais tantasesquisitices. Continuou a publicar um semanário,

não mais intitulado O Monitor dos Bípedes, e simO Vertebrado Racional.

25

NÃO SEI SE NAQUELE TEMPO já tinha sido fun-dada em Penúmbria uma loja de francomaçons: fuiiniciado na maçonaria muito mais tarde, depois daprimeira campanha napoleônica, junto com grandeparte da burguesia abastada e da pequena aristo-cracia da nossa região e por isso não sei dizer quaistenham sido os primeiros contatos de meu irmãocom a loja. A propósito, citarei um episódio ocor-rido mais ou menos no período sobre o qual estounarrando, e que várias testemunhas poderiam con-firmar.

Chegaram um dia a Penúmbria dois espanhóis,viajantes de passagem. Dirigiram-se à casa de umcerto Bartolomeu Cavador, confeiteiro, conhecidocomo maçom. Parece que se teriam apresentadocomo irmãos da loja de Madri, de forma que ele os

levou para assistir a uma sessão da maçonaria pe-númbria, que então se reunia à luz de tochas e cí-rios numa clareira no meio do bosque. Sobre tudoisso só se tem notícias por meio de boatos e su-posições: o que é certo é que no dia seguinte osdois espanhóis, assim que saíram de casa, foramseguidos por Cosme de Rondó, que sem ser vistoos vigiava do alto das árvores.

Os dois viajantes entraram no pátio de umahospedaria fora dos muros da cidade. Cosmeempoleirou-se numa glicínia. Numa das mesas,estava um freguês que esperava por eles; não sedistinguia o seu rosto, protegido por um chapéupreto de abas largas. Aquelas três cabeças, ou me-lhor, aqueles três chapéus, convergiram para oquadrado branco da toalha; e, após ter confabula-do um pouco, as mãos do desconhecido passarama escrever num papel estreito alguma coisa que osdemais lhe ditavam e que, pela ordem em que ali-nhava as palavras uma debaixo da outra, pareciauma lista de nomes.

— Bom dia, meus senhores! — disse Cosme.

Os três chapéus se levantaram deixando apa-recer três rostos com os olhos arregalados em di-reção ao homem em cima da glicínia. Mas umdos três, o das abas largas, abaixou- -se logo, tan-to que tocou a mesa com a ponta do nariz. Meu ir-mão tivera tempo de entrever uma fisionomia quenão lhe parecia estranha.

— Buenos días a usted! — disseram os dois.— Mas é um costume do lugar apresentar-se aosforasteiros caindo do céu como um pombo? Es-pero que pretenda descer logo e explicar-nos isso!

— Quem está no alto acha-se bem à vista dequalquer ângulo — disse o barão —, ao passo queexiste quem se arraste para ocultar o rosto.

— Saiba que nenhum de nós é obrigado amostrar-lhe o rosto, señor, não mais de quanto se-ja obrigado a mostrar as nádegas.

— Sei que para determinados tipos de pessoasé um ponto de honra manter o rosto na sombra.

— Quais, por favor?— Espiões, por exemplo!

Os dois compadres sobressaltaram-se. O queestava inclinado permaneceu imóvel, mas pelaprimeira vez se ouviu a sua voz.

— Ou, para dar outro exemplo, os membrosde sociedades secretas… — escandiu lentamente.

Essa observação poderia ser interpretada devárias formas. Cosme pensou e a seguir disse al-to:

— Esta observação, senhores, pode ser inter-pretada de várias formas. Vocês dizem “membrosde sociedades secretas” insinuando que eu o seja,ou insinuando que vocês o sejam, ou que o seja-mos todos, ou que nós não o sejamos, mas outros,ou porque de todo modo é uma observação quepode servir para verificar o que digo eu depois?

— Como como como? — disse desorientadoo homem com o chapéu de abas largas, e em suadesorientação, esquecendo que devia manter a ca-beça inclinada, ergueu-se até olhar Cosme nosolhos.

Cosme o reconheceu: era dom Sulpício, o je-suíta inimigo seu dos tempos de Olivabaixa!

— Ah! Não estava enganado! Tire a máscara,reverendo padre! — exclamou o barão.

— O senhor! Tinha certeza — fez o espanhole tirou o chapéu, inclinou-se, descobrindo a co-roinha. — Dom Sulpício de Guadalete, superiorde la Compañia de Jesus.

— Cosme de Rondó, francomaçom, membroefetivo!

Também os outros dois espanhóis se apresen-taram com uma breve inclinação.

— Dom Calisto!— Dom Fulgêncio!— Jesuítas os senhores também?— Nosotros también!— Mas a ordem de vocês não foi recentemen-

te dissolvida por ordem do papa?— Não para dar trégua aos libertinos e aos he-

reges de sua laia! — disse dom Sulpício, desem-bainhando a espada.

Eram jesuítas espanhóis que após a dissoluçãoda ordem haviam ido para o campo, tentando for-mar uma milícia armada em todos os povoados, afim de combater as ideias novas e o teísmo.

Também Cosme desembainhara a espada.Muita gente se reunira em volta.

— Faça o favor de descer, se quiser bater-secaballerosamente — disse o espanhol.

Ali perto havia um bosque de nogueiras. Era otempo da colheita e os camponeses haviam esten-dido lençóis de uma árvore a outra, para receberas nozes que derrubavam. Cosme correu até umanogueira, saltou no lençol, e ali se manteve ereto,travando os pés que escorregavam sobre o tecidonaquela espécie de grande rede.

— Suba o senhor dois palmos, dom Sulpício,pois eu já desci mais do que costumo! — E puxouele também a espada.

O espanhol pulou para o lençol estendido. Eradifícil manter-se ereto, porque o lençol tendia afechar-se em forma de saco em volta deles, masos dois contendores estavam tão decididos queconseguiram cruzar os ferros.

— Para maior glória de Deus!— Pela glória do Grande Arquiteto do Uni-

verso!E pelejavam a golpes contínuos.

— Antes que lhe enfie esta lâmina no piloro— disse Cosme —, dê-me notícias da señoritaÚrsula.

— Morreu num convento!Cosme ficou perturbado com a notícia (que

imagino tivesse sido inventada ali mesmo) e o ex-jesuíta aproveitou para dar um golpe com a ca-nhota. Com um movimento atingiu uma das pon-tas que, amarradas aos galhos da nogueira, sus-tentavam o lençol do lado de Cosme, e a cortou.Cosme teria certamente caído se não tivesse si-do ágil em pular para o lado de dom Sulpício eagarrar-se a uma borda. No salto, a sua espadarompeu a guarda do espanhol e penetrou-lhe oventre. Dom Sulpício abandonou-se, escorregoupelo lençol inclinado na parte em que fora corta-do, e caiu no chão. Cosme subiu na nogueira. Osoutros dois ex-jesuítas ergueram o corpo do com-panheiro ferido ou morto (jamais se soube direi-to), fugiram e não apareceram mais.

O povo se reuniu ao redor do lençol ensan-guentado. Daquele dia em diante meu irmão ga-nhou fama de francomaçom.

O segredo da sociedade não me permitiu sa-ber mais. Quando passei a fazer parte dela, con-forme disse, ouvi falar de Cosme como de umantigo irmão cujas relações com a loja não erambem claras, e havia quem o definisse como “ador-mecido”, e quem dissesse ser ele um herético quehavia adotado outro rito; que se tornara um após-tata; mas sempre com grande respeito por sua ati-vidade passada. Não excluo sequer que pudesseter sido ele o lendário mestre “Pica-pau pedrei-ro”, a quem se atribuía a fundação da loja O Les-te de Penúmbria, e que além do mais a descriçãodos primeiros ritos que teriam existido se ressen-tiriam da influência do barão: basta dizer que osneófitos eram vendados, obrigados a subir numaárvore e descer pendurados em cordas.

É certo que entre nós as primeiras reuniõesdos maçons aconteciam à noite no meio dos bos-ques. Portanto, a presença de Cosme seria maisdo que justificada, tanto no caso de que tenha si-do ele a receber de seus correspondentes estran-geiros os opúsculos com os regulamentos maçô-nicos e a fundar aqui a loja, quanto no caso de que

tenha sido algum outro, provavelmente após tersido iniciado na França ou na Inglaterra, a intro-duzir os ritos também em Penúmbria. Talvez sejapossível que a maçonaria já existisse havia tem-pos, sem que Cosme o soubesse, e ele casualmen-te numa noite, movimentando-se pelas árvores dobosque, tenha descoberto numa clareira uma reu-nião de homens com estranhas roupagens e ins-trumentos, à luz de candelabros, tenha parado pa-ra escutar, e depois tenha intervindo provocandodesconcerto com uma de suas saídas, como, porexemplo: “Se levantas uma parede, pensa naquiloque permanece de fora!” (frase que o ouvi repe-tir várias vezes), ou uma outra das suas, e os ma-çons, reconhecida a sua profunda doutrina, o te-nham feito entrar na loja, com incumbências es-peciais, e introduzindo um grande número de no-vos ritos e símbolos.

O fato é que, durante todo o tempo em quemeu irmão dela participou, a maçonaria ao ar li-vre (como a chamarei para distingui-la daquelaque se reunirá depois num edifício fechado) teveum ritual muito mais rico, em que entravam coru-

jas, telescópios, pinhas, bombas hidráulicas, co-gumelos, diabinhos de Descartes, teias de aranha,tabuletas pitagóricas. Havia também uma certaexibição de crânios, não apenas humanos, mastambém de vacas, lobos e águias. Objetos dessegênero e outros ainda, tais como colheres de pe-dreiro, esquadros e compassos da habitual liturgiamaçônica, eram encontrados naquela época pen-durados nos galhos em conjuntos bizarros, e sem-pre atribuídos à loucura do barão. Só poucas pes-soas deixavam entender que agora esse quebra-cabeça tinha um significado mais sério; contudo,nunca se conseguiu estabelecer uma separaçãonítida entre os signos de antes e os posteriores, eexcluir que desde o princípio fossem sinais esoté-ricos de alguma sociedade secreta.

Porque Cosme, bem antes da maçonaria, já sefiliara a várias associações ou confrarias de pro-fissionais, como a de São Crispim ou dos Sapatei-ros, ou à dos Virtuosos Tanoeiros, dos Justos Ar-meiros ou dos Chapeleiros Conscienciosos. Fa-zendo por conta própria todas as coisas de quese utilizava, conhecia as técnicas mais variadas, e

podia declarar-se membro de muitas corporações,que por seu lado ficavam bem contentes de ter en-tre os seus um membro de família nobre, de ta-lento bizarro e de desinteresse comprovado.

Como essa paixão que Cosme sempre de-monstrou pela vida associativa se conciliava coma sua perpétua fuga da convivência civil, nuncaentendi bem, e isso permanece uma das singula-ridades não menores do seu caráter. Dir-se-ia queele, quanto mais decidido estava a ficar escondi-do entre seus galhos, mais sentia necessidade decriar novas relações com o gênero humano. Con-tudo, por mais que às vezes se lançasse, de cor-po e alma, a organizar uma nova associação, es-tabelecendo meticulosamente os estatutos, as fi-nalidades, a escolha dos homens mais adequadospara cada cargo, jamais seus companheiros sabi-am até que ponto podiam contar com ele, quan-do e onde encontrá-lo, e quando ao contrário se-ria inesperadamente absorvido por sua naturezade pássaro e não se deixaria mais apanhar. Tal-vez, se realmente se pretender reconduzir tais ati-tudes contraditórias a um único impulso, seja pre-

ciso pensar que ele era igualmente avesso a todotipo de convivência humana vigente em sua épo-ca, e por isso fugia de todos, e se obstinava emexperimentar novos; mas nenhum deles lhe pare-cia suficientemente justo e diferente dos outros:daí seus contínuos intervalos de selvageria abso-luta.

O que tinha em mente era uma ideia de soci-edade universal. E todas as vezes que se ocupouem associar pessoas, seja para fins bem precisoscomo a vigilância contra incêndios ou a defesacontra os lobos, seja em fraternidades de artesãoscomo os Perfeitos Afiadores ou os IluminadosCurtidores de Couros, como conseguia semprelevá-los a se reunir no bosque, noite adentro, emvolta de uma árvore, da qual ele pregava, daí re-sultava sempre um clima de conjuração, de sei-ta, de heresia, e naquele clima também os dis-cursos passavam facilmente do particular ao gerale das simples regras de uma ocupação artesanalpassava-se com a maior naturalidade para o pro-jeto de instauração de uma república mundial deiguais, de livres e de justos.

Portanto, na maçonaria Cosme apenas repetiao que já fizera nas outras sociedades secretas ousemissecretas de que participara. E, quando umcerto lorde Liverpuck, enviado pela grande lojade Londres para visitar os irmãos do continente,chegou a Penúmbria enquanto era mestre meu ir-mão, ficou tão escandalizado com sua pouca or-todoxia que escreveu a Londres que a de Penúm-bria devia ser uma nova maçonaria de rito esco-cês, financiada pelos Stuart para fazer propagan-da contra o trono dos Hanôver, pela restauraçãojacobita.

Depois disso ocorreu o fato que contei, dosdois viajantes espanhóis que se apresentaram co-mo maçons a Bartolomeu Cavador. Convidadosa uma reunião da loja, eles acharam tudo muitonormal, chegando a dizer que era tal e qual no OLeste de Madri. Foi isso que despertou suspeitasem Cosme, que sabia bem quanto daquele ritualera invenção sua: por isso, seguiu a pista dos es-piões e os desmascarou, triunfando contra seu ve-lho inimigo dom Sulpício.

Contudo, sou de opinião que tais mudanças deliturgia eram uma necessidade pessoal dele, poisde todas as profissões poderia adotar os símbolosa justo título, exceto os de pedreiro, ele que ja-mais quisera construir nem habitar casas de alve-naria.

26

PENÚMBRIA ERA UMA TERRA DE VINHAS, tam-bém. Jamais o destaquei porque ao acompanharCosme tive sempre de me restringir às plantas degrande porte. Mas havia vastas colinas de vinhedo,e em agosto, sob a folhagem das fileiras, a uva ver-melha inchava em cachos de um suco denso já corde vinho. Algumas vinhas estavam dispostas emparreira: digo isso também porque Cosme, ao en-velhecer, se tornara tão miúdo e leve e aprenderatão bem a arte de caminhar sem peso que as travesdos parreirais o aguentavam. Ele podia, portanto,passar sobre as videiras, e assim andando, eajudando-se com as árvores de fruta ao redor, eapoiando-se nas estacas chamadas de scarasse, po-dia realizar muitos trabalhos como a poda, no in-verno, quando as vides são garatujas nuas em torno

do arame, ou reduzir o excesso de folhas no ve-rão, ou caçar insetos, e finalmente em setembro avindima.

Para a vindima toda a gente de Penúmbria vi-nha trabalhar nas vinhas, recebendo por dia, e en-tre o verde das fileiras só se viam saias de co-res vivas e gorros com a borla. Os tropeiros car-regavam cestos cheios ao longo das cercas e osdescarregavam nas tinas; outras eram requisita-das pelos vários exatores que chegavam com tro-pas de guardas para controlar os tributos para osnobres da região, para o governo da República deGênova, para o clero e outros dízimos. Todo anoocorriam algumas brigas.

As questões relativas às partes da colheita aserem entregues à direita e à esquerda foram asque deram origem aos maiores protestos nos “re-gistros de queixas” quando ocorreu a revoluçãona França. Sobre tais registros se puseram a es-crever também em Penúmbria, para ver o queacontecia, embora aqui não levasse a nada. Forauma das ideias de Cosme, que naquele tempo nãoprecisava mais ir às reuniões da loja para discutir

com aqueles maçons esvaziadores de garrafões.Ficava nas árvores da praça e era rodeado pelopessoal do porto e do campo que desejava expli-cações sobre as notícias, pois ele recebia as ga-zetas pelo correio, e além disso alguns amigoslhe escreviam, entre eles o astrônomo Bailly, quedepois foi maire de Paris, e outros membros declubes. A todo momento havia uma novidade: oNecker, e o tênis, e a Bastilha, e La Fayette como cavalo branco, e o rei Luís disfarçado de lacaio.Cosme explicava e recitava tudo saltando de umgalho para outro, e num ramo imitava Mirabeauna tribuna, e noutro Marat entre os jacobinos, e onoutro ainda o rei Luís, em Versalhes, colocandoo gorro vermelho para satisfazer as comadres quevinham a pé de Paris.

Para explicar o que eram os “registros dequeixas”, Cosme disse: “Vamos experimentar fa-zer um”. Pegou um caderno escolar e o pendurounuma árvore com um barbante; cada um ia até alie assinalava o que não andava bem. Apareciamproblemas de todo o tipo: sobre o preço do pei-xe os pescadores, e os vinhateiros sobre os dízi-

mos, e os pastores sobre os limites dos pastos, eos lenhadores sobre os bosques de domínio pú-blico, e ainda todos aqueles que tinham parentespresos, e os que haviam recebido umas pancadaspor algum crime, e os que tinham disputas com osnobres por causa de mulheres: não acabava mais.Cosme pensou que embora fosse um “registro dequeixas” não era bom que fosse tão triste, e lheveio a ideia de pedir a cada um que escrevesse acoisa que mais desejava. E de novo cada um iadar sua contribuição, dessa vez de modo positi-vo: um escrevia sobre bolos, outro falava de so-pas; um queria uma loura, outro duas morenas;um gostaria de dormir o dia inteiro, outro gostariade procurar cogumelos o ano todo; um desejavauma carruagem com quatro cavalos, outro se con-tentava com uma cabra; um gostaria de rever suamãe morta, outro encontrar os deuses do Olimpo:em resumo, tudo quanto existe de bom no mun-do era escrito no caderno, ou então desenhado,pois muitos não sabiam escrever, ou até colorido.Também Cosme escreveu: um nome — Viola. Onome que havia anos escrevia por toda a parte.

Resultou um belo caderno, e Cosme o inti-tulou “Registro das dores e das alegrias”. Masquando ficou pronto não havia nenhuma assem-bleia para a qual mandá-lo, por isso continuou ali,pendurado na árvore com um barbante, e quandochoveu começou a se apagar e ensopar, e aquelavisão oprimia o coração dos penúmbrios pela mi-séria presente e os enchia de desejos de rebelião.

Em suma, também entre nós existiam todas ascausas da Revolução Francesa. Só que não está-vamos na França, e a revolução não se fez. Vive-mos num país onde se verificam sempre as causase não os efeitos.

Em Penúmbria, porém, houve igualmentetempos difíceis. Contra os austro-sardos o exér-cito republicano fazia guerra a dois passos dali.Masséna em Collardente, Laharpe no Nervia,Mouret ao longo da Corniche, com Napoleão queentão era apenas general de artilharia, por isso asexplosões que às vezes chegavam a Penúmbria

com o vento era exatamente ele quem as provo-cava.

Em setembro preparavam-se para a vindima.E parecia que se gestava algo de secreto e de ter-rível.

Os conciliábulos de porta em porta:— A uva está madura!— Está madura! Claro que sim!— Mais do que madura! Está na hora de co-

lher!— Está na hora de amassar!— Vamos todos! Aonde vai você?— Para a vinha do outro lado da ponte. E vo-

cê? E você?— Para a propriedade do conde Pigna.— Eu para a vinha do moinho.— Viu quantos guardas? Parecem melros que

baixaram para roubar os cachos.— Mas este ano não levam!— Se os melros são tantos, aqui somos todos

caçadores!— Contudo, há quem não se queira apresen-

tar. Há quem fuja.

— Como é que este ano a vindima não agradamais a tanta gente?

— Em nossa região queriam adiá-la. Mas auva já está madura!

— Bem madura!No dia seguinte a vindima começou silenci-

osa. As vinhas estavam cheias de gente em ca-deia ao longo das fileiras, mas não nascia nenhumcanto. Algum chamado esparso, gritos; “Vocêstambém por aqui? Está madura!”, uma agitaçãode grupos, algo de tenso, talvez um pouco porcausa do céu, que não estava inteiramente cobertomas um tanto pesado, e se uma voz iniciava umacanção parava logo no meio, não acompanhadapelo coro. Os tropeiros carregavam os cestoscheios de uva para as tinas. Antes costumava-sefazer as partes para os nobres, o bispo e o gover-no; este ano não, parecia que haviam esquecido.

Os exatores, vindos para cobrar os dízimos,estavam nervosos, não sabiam bem que peixeapresar. Mais passava o tempo, menos coisasaconteciam, mais se sentia que algo devia acon-

tecer, mais percebiam os guardas que era precisomover-se, mas menos entendiam o que fazer.

Cosme, com seus passos de gato, começaraa caminhar pelas parreiras. Com uma tesoura namão, cortava um cacho aqui e outro lá, sem or-dem, entregando-o aos vindimadores e às vindi-madoras lá de baixo, sussurrando a cada um algu-ma coisa.

O chefe dos policiais não aguentava mais.Disse:

— Bem, então, vamos acertar estes dízimos?— Acabara de dizê-lo e já se arrependera.

Pelas vinhas ressoou um ruído entre o estron-do e a sibilação: era um vindimador que sopravanuma concha em forma de buzina e difundia umsom de alarme pelos vales. De cada morro res-ponderam sons iguais, os vinhateiros ergueram asconchas como trompas, e também Cosme, do altode uma parreira.

Pelas fileiras se propagou um canto; de inícioquebrado, dissonante, que não se entendia o queera. Depois as vozes encontraram um entendi-mento, sintonizaram, pegaram a ária, e cantaram

como se corressem, num voo, e os homens e asmulheres firmes e meio escondidos ao longo dasfileiras, e as estacas as videiras os cachos, tu-do parecia correr, e a uva vindimar-se sozinha,lançar-se dentro das tinas e pisar-se, e o ar, as nu-vens, o sol, tornar-se tudo mosto, e já se começa-va a entender aquele canto, primeiro as notas damúsica e depois algumas das palavras, que dizi-am: Ça ira! Ça ira! Ça ira!, e os jovens pisavama uva com pés descalços e vermelhos — Ça ira!—, e as moças enterravam as tesouras apontadascomo punhais no verde denso ferindo os torcidoscabos dos cachos — Ça ira! —, e nuvens de mos-quitinhos invadiam o ar acima dos montes de ra-cimos prontos para a prensa — Ça ira! —, e foientão que os guardas perderam o controle e:

— Alto lá! Silêncio! Basta com a putaria! Qu-em cantar leva um tiro! — E começaram a des-carregar os fuzis para cima.

Respondeu-lhes um trovão de fuzilaria queparecia regimentos distribuídos para batalha nascolinas. Todas as espingardas de caça de Penúm-bria explodiam, e Cosme no topo de uma alta fi-

gueira comandava a carga na concha em forma detrompa. Em todos os vinhedos houve movimentode gente. Não se entendia mais o que era vindimae o que era luta: homens uva mulheres varas foi-ces parras scarasse fuzis cestos cavalos aramessocos coices de mula canelas peitos e todos can-tando: Ça ira!

— Aqui estão os dízimos!Terminou com os policiais e exatores atirados

de cabeça nas tinas cheias de uva, com as pernasde fora dando pontapés no vazio. Voltaram semter obtido nada, sujos dos pés à cabeça de suco deuva, de grãos amassados, de vinhaça, de bagaço,de racimos que ficavam agarrados nos fuzis, nascartucheiras, nos bigodes.

A vindima prosseguiu como uma festa, todosconvencidos de terem abolido os privilégios feu-dais. Entretanto, nós, nobreza e pequena nobreza,ficamos barricados nos palácios, armados, pron-tos a vender caro a pele. (Eu na verdade limitei-me a não pôr o nariz fora do esconderijo, sobre-tudo para não escutar dos outros nobres que esta-va de acordo com aquele anticristo do meu irmão,

considerado o pior instigador, jacobino e organi-zador de clubes de toda a região.) Mas durante ajornada, expulsos os exatores e a tropa, não se to-cou num fio de cabelo de ninguém.

Estavam todos muito ocupados em prepararfestas. Montaram uma Árvore da Liberdade paraacompanhar a moda francesa; só que não sabiambem como eram feitas, e como tínhamos tamanhaquantidade de árvores não valia a pena fazer umafalsa. Assim enfeitaram uma árvore de verdade,um olmo, com flores, cachos de uva, festões, es-critas: Vive la Grande Nation! Bem no alto estavameu irmão, com o tricórnio tricolor sobre gorrode pele de gato, e fazia uma conferência sobreRousseau e Voltaire, da qual não se ouvia nemuma palavra, pois todo o povo fazia rodas cantan-do: Ça ira!

A alegria durou pouco. Vieram tropas emgrande quantidade: genovesas, para exigir os dí-zimos e garantir a neutralidade do território, eaustro-sardas, pois já se difundira o boato de queos jacobinos queriam proclamar a anexação à“Grande Nação Universal”, isto é, à República

Francesa. Os rebeldes tentaram resistir, construí-ram algumas barricadas, fecharam as portas da ci-dade… Mas era preciso muito mais! As tropasentraram na cidade por todos os lados, puserampostos de controle em todas as estradas do cam-po, e aqueles que tinham fama de agitadores fo-ram presos, exceto Cosme, pois era preciso al-guém muito esperto para apanhá-lo, e outros pou-cos que ficaram com ele.

O processo contra os revolucionários foi mon-tado às pressas, mas os acusados conseguiram de-monstrar que não tinham nada a ver com aquilo eque os verdadeiros chefes eram justamente aque-les que haviam conseguido fugir. Assim foram to-dos libertados, tanto que com as tropas estaciona-das em Penúmbria não havia o que temer dos ou-tros súditos. Instalou-se também uma guarniçãode austro-sardos, para garantir-se contra possíveisinfiltrações do inimigo, e no comando estava nos-so cunhado D’Estomac, o marido de Batista, emi-grado da França no séquito do conde de Proven-ça.

Portanto, tive de aturar minha irmã Batista,deixo a vocês imaginar com quanto prazer.Instalou-se em minha casa, com o marido oficial,os cavalos, as tropas de ordenanças. Ela passavaas noitadas contando-nos as últimas execuçõescapitais em Paris; possuía inclusive uma miniatu-ra de guilhotina, com uma lâmina autêntica, e pa-ra explicar o final de todos os seus amigos e pa-rentes adquiridos, decapitava lagartixas, lombri-gas e também ratos. Assim passávamos as noites.Eu invejava Cosme, que vivia os seus dias e assuas noites na clandestinidade, escondido quemsabe em que bosques.

27

A PROPÓSITO DAS FAÇANHAS por ele executadasnos bosques durante a guerra, Cosme contou umainfinidade, e tão incríveis, que não tenho coragemde avalizar nenhuma das versões. Deixo a palavraa ele, reportando fielmente alguns de seus relatos:

Aventuravam-se pelo bosque patrulhas de ex-ploradores dos exércitos adversários. Do topo dosgalhos, a cada passo que escutava entre os arbus-tos, apurava o ouvido para distinguir se eram deaustro-sardos ou de franceses.

Um tenentinho austríaco, louro louro, coman-dava uma patrulha de soldados perfeitamente uni-formizados, com rabo de cavalo e fita, tricórnio epolainas, faixas brancas atravessadas, fuzil e baio-

neta, e os fazia marchar em filas de dois, tentandomanter o alinhamento naqueles caminhos íngre-mes. Desconhecendo como era feito o bosque,mas convicto de seguir à risca as ordens recebi-das, o oficialzinho procedia conforme as linhastraçadas no mapa, dando continuamente com onariz nos troncos, fazendo a tropa escorregar comseus calçados ferrados sobre pedras lisas ou furaros olhos nas sarças, mas sempre cônscio da su-premacia das armas imperiais.

Eram soldados magníficos. Eu os esperavanum vau escondido num pinheiro. Tinha nasmãos uma pinha de meio quilo e deixei-a cair nacabeça do abre-alas. O infante abriu os braços,dobrou os joelhos e caiu entre as samambaias davegetação rasteira. Ninguém se deu conta; o gru-po continuou a sua marcha.

Alcancei-os de novo. Dessa vez joguei umporco-espinho enrolado no pescoço de um capo-ral. O caporal inclinou a cabeça e desmaiou. O te-nente percebeu o fato, mandou que dois homensapanhassem uma padiola, e prosseguiu.

A patrulha, como se fizesse de propósito,embrenhava-se nos trechos mais densos do bos-que. E deparava sempre com um novo atentado.Juntei num cartucho certas lagartas peludas,azuis, que ao mais leve toque faziam inchar a pelemais do que urtiga, e derramei uma centena sobreeles. O pelotão passou, desapareceu no mato, rea-pareceu coçando-se, com mãos e rostos transfor-mados em bolinhas vermelhas, e marchou para afrente.

Maravilhosa tropa e magnífico oficial. Tudono bosque lhes era tão estranho, que nem dis-tinguiam o que havia de insólito, e prosseguiamcom os efetivos reduzidos, mas sempre altaneirose indomáveis. Recorri então a uma família de ga-tos selvagens: jogava-os pelo rabo, depois de tê-los agitado um pouco pelo ar, o que os enraive-cia além da conta. Houve muito barulho, especi-almente felino, depois silêncio e trégua. Os aus-tríacos medicavam os feridos. A patrulha, esbran-quiçada de ataduras, retomou a marcha.

Aqui a única solução é fazê-los prisioneiros!,pensei, apressando-me a precedê-los, esperando

encontrar uma patrulha francesa a quem avisar aaproximação do inimigo. Mas há um bom tempoos franceses pareciam não dar sinal de vida na-quele front.

Ao superar certos locais cheios de musgo, vialgo se mover. Parei, apurei o ouvido. Ouvia-se uma espécie de rumor de córrego, que foi seescandindo num gargarejo contínuo e agorapodiam-se distinguir palavras como: Maisalors… Crénom-de… foutez-moi-donc… tum’emmer... quoi… Aguçando os olhos na penum-bra, verifiquei que aquela vegetação suave eracomposta sobretudo de colbaques de pele e gran-des bigodes e barbas. Era um pelotão de hussar-dos franceses. Tendo se impregnado de umida-de durante a campanha invernal, todas as pelesque os protegiam estavam florescendo de mofo emusgo.

Comandava o posto avançado o tenente Agri-pa Borboleta, de Rouen, poeta, voluntário na Ar-mada republicana. Persuadido da bondade da na-tureza em geral, o tenente Borboleta não queriaque seus soldados arrancassem as agulhas de pi-

nheiro, as bolas de castanha, os raminhos, as fo-lhas, as lesmas que grudavam neles ao atravessa-rem o bosque. E a patrulha já se estava fundindode tal maneira com a natureza circundante que eranecessário o meu olho apurado para identificá-la.

Entre seus soldados estacionados, o oficial-poeta, com longos cabelos encaracolados que lheemolduravam o rosto magro sob o chapéu de bi-cos, declamava aos bosques:

— Ó floresta! Ó noite! Eis-me em vosso po-der! Um tenro ramo de avenca, enleado no tor-nozelo destes valorosos soldados, poderá impediro destino da França? Ó Valmy! Quanto estás dis-tante!

Adiantei-me:— Pardon, citoyen.— O quê? Quem está aí?— Um patriota destes bosques, cidadão ofici-

al.— Ah! Aqui? Onde está?— Bem em cima do seu nariz, cidadão oficial.

— Vejo! De que se trata? Um homem-pássa-ro, um filho das harpias? Será talvez uma criaturamitológica?

— Sou o cidadão Rondó, filho de seres hu-manos, asseguro-lhe que tanto por parte de paiquanto de mãe, cidadão oficial. Mais ainda, mi-nha mãe foi um valoroso soldado, nos tempos dasGuerras de Sucessão.

— Entendo. Ó tempos, ó glória. Acredito, ci-dadão, e estou ansioso por ouvir as notícias queparece ter vindo me transmitir.

— Uma patrulha austríaca está penetrando emsuas linhas!

— O que diz? É a batalha! Chegou a hora! Óriacho, suave riacho, pronto, dentro em pouco es-tará tinto de sangue! Vamos! Às armas!

Ao comando do tenente-poeta, os hussardosreuniram armas e objetos, mas se moviam de mo-do tão desencontrado e mole, espreguiçando-se,escarrando, xingando, que comecei a ficar preo-cupado com sua eficiência militar.

— Cidadão oficial, já tem um plano?— Um plano? Marchar sobre o inimigo!

— Sim, mas como?— Como? Em filas cerradas!— Bem, se me permite um conselho, eu man-

teria os soldados parados, em ordenação esparsa,deixando que a patrulha inimiga caia na armadi-lha sozinha.

O tenente Borboleta era um homem concilia-dor e não fez objeções ao meu plano. Os hussar-dos, espalhados pelos bosque, mal se distinguiamdas moitas, e o tenente austríaco era certamen-te o menos indicado para captar tal diferença. Apatrulha imperial marchava seguindo o itineráriotraçado no mapa, com um eventual e brusco “ali-nhar à direita!” ou “alinhar à esquerda!”. Assim,passaram debaixo do nariz dos hussardos france-ses sem se dar conta. Os hussardos, silenciosos,propagando ao redor apenas ruídos naturais comofarfalhar de frondes e bater de asas, dispuseram-se em manobra circular. Do alto das árvores, eulhes indicava com o assobio da codorna ou o gritoda coruja os movimentos das tropas inimigas e osatalhos que deviam tomar. Os austríacos, alheiosa tudo, estavam na armadilha.

— Alto lá! Em nome da liberdade, fraterni-dade e igualdade, declaro-os todos prisioneiros!— ouviram gritar de repente, de uma árvore, eapareceu entre os ramos uma sombra humana quebrandia um fuzil de cano longo.

— Urràh! Vive la Nation! — E todas as moi-tas ao redor se revelaram hussardos franceses,tendo à frente o tenente Borboleta.

Ressoaram pesadas imprecações austro-sar-das, mas antes que tivessem podido reagir já esta-vam desarmados. O tenente austríaco, pálido mascom a cabeça erguida, consignou a espada ao co-lega inimigo.

Tornei-me um precioso colaborador da Arma-da republicana, mas preferia fazer minhas caça-das sozinho, valendo-me da ajuda dos animais dafloresta, como daquela vez em que pus para fugiruma coluna austríaca atirando um ninho de ves-pas contra os soldados.

Minha fama se espalhara no campo austro-sardo, ampliada a tal ponto que se dizia que o

bosque pululava de jacobinos armados ocultosnas árvores. Caminhando, as tropas reais e impe-riais apuravam os ouvidos: ao mais leve baque decastanha saindo da casca ou diante do mais su-til chiado de esquilo, já se viam circundadas porjacobinos, e mudavam de direção. Desse modo,provocando rumores e sussurros quase impercep-tíveis, fazia desviar as colunas piemontesas e aus-tríacas e conseguia conduzi-las para onde preten-dia.

Um dia levei uma para um denso matagal deespinhos, e fiz com que se perdesse. Lá se escon-dia uma família de javalis; arrancados dos mon-tes onde troavam os canhões, os javalis desciamem bandos para refugiar-se nos bosques mais bai-xos. Os austríacos desorientados marchavam semenxergar um palmo diante do nariz, e de repen-te um bando de javalis hirsutos se levantou de-baixo dos pés deles, emitindo grunhidos lanci-nantes. Lançando-se com as garras para a frenteas feras se metiam entre os joelhos dos soldadosjogando-os para o alto, e pisoteavam os caídoscom uma avalanche de cascos afiados, e enfia-

vam presas nas barrigas. O batalhão inteiro foiarrastado. Postado nas árvores junto com meuscompanheiros, nós os perseguimos com golpesde fuzil. Dos que voltaram para o campo, algunscontaram sobre um terremoto que inesperada-mente havia sacudido o terreno espinhoso sob ospés deles; outros falaram de uma batalha con-tra jacobinos que tinham surgido de subterrâneos,pois esses jacobinos não eram outra coisa senãodiabos, metade homens e metade animais, que vi-viam nas árvores ou no fundo das moitas.

Já disse que preferia executar meus golpes so-zinho, ou com aqueles poucos companheiros dePenúmbria que se refugiaram comigo nos bos-ques após a vindima. Com a Armada francesa tra-tava de ter o mínimo de relações possível, porqueos exércitos sabe-se como são, cada vez que semovem provocam desastres. Porém, eu me afei-çoara ao posto avançado do tenente Borboleta, eestava bastante preocupado com sua sorte. De fa-to, a imobilidade do front ameaçava ser fatal aopelotão comandado pelo poeta. Musgos e liquenscresciam sobre as fardas dos soldados, e às ve-

zes até urzes e samambaias; sobre os colbaquesfaziam ninho as cambaxirras, ou despontavam efloresciam plantas liliáceas; as botas soldavam-secom o húmus num bloco compacto: todo o pelo-tão estava a ponto de deitar raízes. A rendição dotenente Agripa Borboleta fazia mergulhar aquelegrupo de valentes num amálgama animal e vege-tal.

Era preciso despertá-los. Mas como? Tiveuma ideia e me apresentei ao tenente para propô-la. O poeta declamava para a lua.

— Ó lua? Redonda como uma boca de fogo,como uma bola de canhão que, exausto o impulsoda pólvora, continua a sua lenta trajetória rolandosilenciosa pelos céus! Quando detonará, lua, er-guendo uma alta nuvem de pó e centelhas, sub-mergindo os exércitos inimigos, e os tronos, eabrindo para mim uma brecha de glória no murocompacto da escassa consideração em que metêm meus concidadãos! Ó Rouen! Ó lua! Ó sorte!Ó Convenção! Ó rãs! Ó donzelas! Ó vida minha!

E eu:— Citoyen…

Borboleta, aborrecido por ser sempre inter-rompido, disse seco:

— E então?— Queria dizer, cidadão oficial, que existe

um sistema para despertar seus homens de umaletargia que se torna perigosa.

— Queira o Céu, cidadão. Eu, como vê, meconsumo com a ação. E qual seria esse sistema?

— As pulgas, cidadão oficial.— Lamento desiludi-lo, cidadão. O Exército

republicano não tem pulgas. Morreram todas deinanição em consequência do bloqueio e da ca-restia.

— Eu posso fornecê-las, cidadão oficial.— Não sei se fala com bom senso ou por brin-

cadeira. Contudo, farei uma exposição aos co-mandos superiores, e veremos. Cidadão, eu lheagradeço por aquilo que faz pela causa republica-na! Ó glória! Ó Rouen! Ó pulgas! Ó lua! — E seafastou delirando.

Compreendi que devia agir por minha inicia-tiva. Providenciei uma grande quantidade de pul-gas, e das árvores, assim que via um hussardo

francês, com a zarabatana lhe atirava uma em ci-ma, tentando com minha mira precisa fazê-la en-trar pela gola. Depois comecei a distribuí-las portodo o regimento, a mancheias. Eram missões pe-rigosas, pois, se fosse apanhado em flagrante, denada me valeria a fama de patriota: teria sido fei-to prisioneiro, levado à França e guilhotinado co-mo um emissário de Pitt. Felizmente, minha in-tervenção foi providencial: o prurido das pulgasreacendeu para valer nos hussardos a humana ecivil necessidade de coçar-se, de esfregar-se, detirar piolhos; jogavam para o alto as indumentá-rias musgosas, as mochilas e os fardos recober-tos de cogumelos e teias de aranha, lavavam-se,barbeavam-se, penteavam-se, em suma, retoma-vam a consciência de sua humanidade individu-al, e reassumiam o sentido da civilidade, da li-bertação da natureza bruta. Além do mais eramtomados por um estímulo de atividade, um zelo,uma combatividade, havia tempos esquecidos. Omomento do ataque encontrou-os dominados poreste afã: as Armadas da República superaram a

resistência inimiga, levaram de roldão o front, eavançaram até as vitórias de Dego e Millésimo…

28

DE PENÚMBRIA, NOSSA IRMÃ E O EMIGRADOD’Estomac fugiram bem a tempo, não tendo sidocapturados pelo Exército republicano. O povo dePenúmbria parecia ter voltado aos dias da vindima.Ergueram a Árvore da Liberdade, dessa vez maissemelhante aos exemplos franceses, isto é, mais oumenos parecida com um pau de sebo. Cosme, nemé preciso dizer, subiu no alto, com o gorro frígio nacabeça; mas se cansou logo e foi embora.

Ao redor dos palácios dos nobres houve umpouco de barulho, de gritos: “Sinhô, sinhô, à lan-terna, ça ira!”. A mim, por ser irmão de quemera e por sermos nobres de pouca importância,deixaram-me em paz; ou melhor, em seguida meconsideraram um patriota (assim, quando as coisasmudaram de novo, tive problemas).

Estabeleceram a municipalité, o maire, tudoà francesa; meu irmão foi nomeado para a juntaprovisória, embora muita gente não estivesse deacordo, por considerá-lo demente. O pessoal dovelho regime ria e afirmava que era tudo um ban-do de loucos.

As sessões da junta tinham lugar no antigo pa-lácio do governador genovês. Cosme se empo-leirava numa alfarrobeira, à altura das janelas, eacompanhava as discussões. Às vezes intervinha,gritando, e dava o seu voto. Sabe-se que os revo-lucionários são mais formalistas do que os con-servadores: encontraram o que criticar, que eraum sistema inconveniente, que reduzia o decoroda assembleia, e assim por diante, e, quando nolugar da República oligárquica de Gênova cria-ram a República Lígure, não elegeram mais meuirmão para a nova administração.

E dizer que Cosme naquele período havia es-crito e difundido um Projeto de Constituição pa-ra cidades republicanas com declaração dos di-reitos dos homens, das mulheres, das crianças,dos animais domésticos e selvagens, incluindo

pássaros, peixes e insetos, e tanto plantas degrande porte quanto hortaliças e ervas. Era umbelíssimo trabalho, que podia servir como orien-tação para todos os governantes; contudo, nin-guém o tomou em consideração e permaneceu le-tra morta.

Porém, Cosme passava a maior parte do tem-po no bosque, onde os sapadores do Gênio da Ar-mada francesa abriram uma estrada para o trans-porte da artilharia. Com as longas barbas quesaíam por baixo dos colbaques e se perdiam nosaventais de couro, os sapadores eram diferentesde todos os outros militares. Talvez isso depen-desse do fato de que atrás de si não carregavamaquela trilha de desastres e de destruição das ou-tras tropas, mas a satisfação pelas coisas que fi-cavam e a ambição de fazê-las o melhor que po-diam. Além do mais tinham tanto para contar: ti-nham atravessado nações, vivido assédios e bata-lhas; alguns deles tinham visto também as gran-des coisas que haviam acontecido em Paris, que-das de bastilhas e guilhotinas; e Cosme passavaas noites a escutá-los. Guardadas as enxadas e as

pás, sentavam-se ao redor do fogo, fumando ca-chimbos e ruminando lembranças.

Durante o dia Cosme ajudava os medidores adelinear o percurso da estrada. Ninguém melhordo que ele estava em condições de fazê-lo: sabiatodas as passagens pelas quais os carros poderiampassar com menos desnível e menos perdas deplantas. E sempre tinha em mente, mais do queas artilharias francesas, as necessidades das po-pulações daquelas regiões sem estradas. Pelo me-nos, de todo o vaivém de soldados ladrões de ga-linhas, resultava uma vantagem: uma estrada fei-ta por conta deles.

Menos mal: porque agora as tropas ocupantes,em especial quando passaram de republicanas aimperiais, pesavam sobre todos. E todo mundo iadesabafar com os patriotas: “Vejam os seus ami-gos o que andam fazendo!”. E os patriotas abri-am os braços, levantavam os olhos para o céu erespondiam: “É fogo! Soldados! Esperemos quepasse logo!”.

Dos estábulos, os napoleônicos requisitavamporcos, vacas, até cabras. Quanto a taxas e a dí-

zimos era pior do que antes. Além disso foi im-posto o serviço militar obrigatório. Essa históriade ser soldado, entre nós, ninguém quis entender:e os jovens convocados se refugiavam nos bos-ques.

Cosme fazia o que podia para aliviar estesmales: controlava o rebanho no bosque quando ospequenos proprietários, com medo de uma rapi-na, soltavam-no na mata; ou fazia a vigilância pa-ra os transportes clandestinos de trigo para o moi-nho ou de azeitonas para o lagar, de modo que osnapoleônicos não tomassem uma parte; ou indi-cava aos jovens convocados as cavernas do bos-que onde poderiam esconder-se. Em suma, tra-tava de defender o povo das prepotências, masataques contra as tropas ocupantes não promoveununca, se bem que naquele período tivessem co-meçado a circular pelos bosques bandos de “bar-budos” armados que tornavam a vida difícil paraos franceses. Cosme, teimoso como era, jamaisqueria ser desmentido e, tendo sido amigo dosfranceses antes, continuava achando que lhes de-via lealdade, embora tantas coisas tivessem mu-

dado e fosse tudo diferente do que imaginava.Depois, é preciso também considerar que come-çava a ficar velho, e não se empenhava muitomais, nem a favor de um lado nem de outro.

Napoleão foi a Milão para ser coroado e a se-guir fez algumas viagens pela Itália. Em cada ci-dade o acolhiam com grandes festas e o levavampara conhecer as raridades e os monumentos. EmPenúmbria incluíram no programa uma visita ao“patriota em cima das árvores”, pois, como costu-ma acontecer, aqui ninguém ligava para Cosme,mas fora era muito comentado, especialmente noexterior.

Não foi um encontro bem-sucedido. Foi umacoisa arranjada pelo comitê municipal dos feste-jos para causar boa impressão. Escolheu-se umabela árvore; queriam um carvalho, porém o queaparecia melhor era uma nogueira, e então dis-farçaram a nogueira com folhagens de carvalho,acrescentaram fitas com as três cores francesase o tricolor lombardo, rosetas, festões. Fizeram

com que meu irmão se empoleirasse lá em cima,vestido de festa mas com o característico boné depele de gato, e um esquilo nas costas.

Tudo estava marcado para as dez, havia umamultidão ao redor, mas naturalmente até as onzee meia Napoleão não apareceu, provocando gran-de incômodo para meu irmão que, envelhecendo,começava a sofrer da bexiga e de vez em quandotinha de se esconder atrás do tronco para urinar.

Chegou o imperador, com o séquito ondulantede chapéus de dois bicos. Já era meio-dia, Napo-leão observava Cosme entre os galhos e recebia osol nos olhos. Começou a dirigir a Cosme algu-mas frases de circunstância:

— Je sais très bien que vous, citoyen… —E tome sol: — …parmi les forêts… — E davaum pulinho de lado para desviar os olhos do sol;…parmi les frondaison de votre luxuriante… —E dava outro pulinho, pois Cosme num movimen-to para elevar-se descobrira de novo o sol.

Percebendo a inquietude de Bonaparte, Cos-me perguntou, cortês:

— Posso fazer algo pelo senhor, mon empe-reur?

— Sim, sim — disse Napoleão —, fique umpouco mais deste lado, por favor, para proteger-me do sol, isso, assim, parado… — Depois se ca-lou, como assaltado por um pensamento, e virou-se para o vice-rei Eugênio: — Tout cela me rap-pelle quelque chose… Quelque chose que j’aidéjà vu…

Cosme correu em seu auxílio:— Não era Vossa Senhoria, Majestade: era

Alexandre Magno.— Ah, certamente! — disse Napoleão. — O

encontro de Alexandre e Diógenes! .— Vous n’oubliez jamais votre Plutarque,

mon empereur — bajulou Beauharnais.— Só que então — acrescentou Cosme —

era Alexandre quem perguntava a Diógenes o quepodia fazer por ele, e Diógenes quem pedia a eleque se deslocasse…

Napoleão estalou os dedos como se tivessefinalmente encontrado a frase que procurava.Assegurou-se com uma olhadela que os dignitá-

rios do séquito o estavam ouvindo, e disse, numitaliano perfeito:

— Se eu não fosse o imperador Napoleão,gostaria de ser o cidadão Cosme Rondó!

E se virou e foi embora. O séquito o acompa-nhou com um grande rumor de esporas.

Tudo se encerrou ali. Daria para imaginar quedentro de uma semana chegaria para Cosme acruz da Legião de Honra. Nada disso. Meu irmãotalvez não ligasse nem um pouco, mas nossa fa-mília teria gostado muito.

29

A JUVENTUDE PASSA RÁPIDO NA TERRA, imagi-nem nas árvores, onde tudo está destinado a cair:folhas, frutos. Cosme envelhecia. Tantos anos,com todas as noites passadas no frio, no vento, naágua, sob frágeis abrigos ou sem nada em torno,cercado de ar, sem jamais ter uma casa, um fogo,um prato quente… Cosme se tornara um velho en-colhido, pernas arqueadas e braços longos comoum macaco, corcunda, enfiado num casaco de peleque terminava num capuz, como um frade peludo.O rosto estava tostado pelo sol, enrugado comouma castanha, com claros olhos redondos entre asrugas.

A armada de Napoleão mandada de volta emBerezina, a esquadra inglesa prestes a desembarcarem Gênova, passávamos os dias esperando as no-

tícias dos acontecimentos. Cosme não apareciaem Penúmbria: estava empoleirado num pinheirodo bosque, à beira do caminho da artilharia, láonde haviam passado os canhões para Marengo,e olhava para leste, na direção do deserto batidoem que agora se encontravam pastores com ca-bras ou mulas carregadas de lenha. O que espe-rava? Encontrara Napoleão, sabia como termina-ra a revolução, só se podia esperar o pior. Mesmoassim estava ali, com os olhos fixos, como se deum momento para outro a Armada imperial fosseaparecer na curva ainda recoberta de gelo russo,com Bonaparte montado, o queixo mal barbeadoinclinado no peito, febril, pálido… Teria paradosob o pinheiro (atrás dele, um confuso amortecerde passos, barulho de mochilas e fuzis no chão,descontrair de soldados exaustos à beira da estra-da, alívio de pés feridos), e haveria de dizer: “Ti-nha razão, cidadão Rondó: entregue-me as cons-tituições redigidas por você, devolva-me o conse-lho que nem o Diretório nem o Consulado nemo Império quiseram escutar: recomecemos tudo,vamos erguer de novo as Árvores da Liberdade,

salvemos a pátria universal!”. Certamente esseseram os sonhos, as esperanças de Cosme.

Pelo contrário, um dia, avançando pelo cami-nho da artilharia, do leste surgiram três figuras.Um, manco, apoiava-se numa muleta, o outro ti-nha a cabeça num turbante de ataduras, e o ter-ceiro era o mais saudável, pois tinha apenas umtapa-olho. Os farrapos desbotados que vestiam,os retalhos de alamares que lhes pendiam do pei-to, o colbaque sem a parte superior mas com o pe-nacho que um deles ainda tinha, as botas desfei-tas ao longo das pernas, pareciam ter pertencidoa uniformes da guarda napoleônica. Armas já nãopossuíam: ou seja, um deles brandia um estojo debaioneta vazio, um outro trazia no ombro um ca-no de fuzil à maneira de bastão, para segurar umatrouxa. E avançavam cantando:

— De mon pays… De mon pays… De monpays… — Como três bêbados.

— Ei, forasteiros — gritou-lhes meu irmão—, quem são vocês?

— Olha que raça de pássaro! O que faz aí emcima? Come pinhas?

E um outro:— Quem nos quer dar pinhas? Com a fome

atrasada que sentimos, quer nos obrigar a comerpinhas?

— E a sede! A sede que temos de tanto comerneve!

— Somos o terceiro regimento dos hussardos!— Completo!— Todos os que restaram!— Três em trezentos: não é pouco!— Para mim, escapei eu e já me basta!— Ah, não é definitivo, ainda não levou a pele

até sua casa!— Que uma peste pegue você!— Somos os vencedores de Austerlitz!— E os fodidos de Vilna! Alegria!— Diga, pássaro falante, explique-nos onde

existe uma cantina, por estes lados!— Esvaziamos barris por meia Europa, mas a

sede não passa!— É porque estamos cravados de balas, e o

vinho escorre.— Você foi baleado naquele lugar!

— Uma cantina que nos ofereça crédito!— Passaremos para pagar noutro dia!— Napoleão paga!— Prrr…— Quem paga é o czar! Está vindo atrás de

nós, apresentem a conta para ele!Cosme disse:— Vinho por estas bandas, nada, mais adiante

há um riacho e podem saciar a sede.— Afogue-se você, no riacho, corujão!— Se não tivesse perdido o fuzil no Vístula já

teria disparado em você e o teria assado no espetocomo um tordo.

— Esperem: eu vou pôr os pés de molho nesteriacho, pois me queimam…

— Não esquece de lavar também o traseiro…Entretanto, foram todos os três para o riacho,

tirar o que restava das botas, pôr os pés de molho,lavar o rosto e os panos. Receberam o sabão deCosme, que era um daqueles que depois de velhotorna-se limpo, porque lhe vem um certo nojo desi mesmo que na juventude não se percebe; assimandava sempre com um sabonete. A frescura da

água aliviou um pouco a bebedeira dos três sobre-viventes. E passada a embriaguez ia-se a alegria,voltava a tristeza por sua condição e suspiravame gemiam; mas naquela tristeza a água límpida setornava um prazer, e aproveitavam, cantando:

— De mon pays… De mon pays…Cosme voltara ao seu posto de observação à

beira da estrada. Ouviu um galope. Eis que che-gava um pelotão de cavalaria ligeira, levantan-do muita poeira. Envergavam uniformes desco-nhecidos; e sob os pesados colbaques mostra-vam certos rostos louros, barbudos, meio amas-sados, com olhos verdes semicerrados. Cosmecumprimentou-os com o chapéu:

— Que bom vento os traz, cavaleiros?Pararam.— Sdrastvuy! Diga, batjuska, quanto falta pa-

ra chegar?— Sdrastvujte, soldados — disse Cosme, que

aprendera um pouco de todas as línguas e tam-bém do russo. — Kudà vam? para chegar onde?

— Para chegar ao final desta estrada…

— Bem, esta estrada leva a tantos lugares…Para onde se dirigem?

— V Pariž.— Bem, para Paris existem outras mais cômo-

das…— Niet, nie Pariž. Vo Frantsiu, za Napoleo-

nom. Kudà vedjòt eta doroga?— Ah, por tantos lugares: Olivabaixa, Pedra-

pequena, Emboscada…— Kak? Aliviaembaixo? Niet, niet.— Bem, se quiserem podem chegar até Mar-

selha…— V Marsel… da, da, Marsel… Frantsia…— E o que vão fazer na França?— Napoleão veio fazer guerra ao nosso czar,

e agora o czar corre atrás de Napoleão.— E por onde andaram?— Iz Charkova. Iz Kieva. Iz Rostova.— Então viram belas terras! E gostam mais

daqui ou da Rússia?— Lugares bonitos, lugares feios, gostamos

mais da Rússia.

Um galope, uma poeirada, e um cavalo parouali, montado por um oficial que gritou aos cossa-cos:

— Von! Marš! Kto vam pozvolil ostanovitsja?— Do svidanja, batjuska! — disseram aque-

les a Cosme. — Nam porà… — E partiram espo-reando os cavalos.

O oficial permaneceu embaixo do pinheiro.Era alto, esguio, o ar nobre e triste; mantinha er-guida a cabeça descoberta em direção ao céu tol-dado de nuvens.

— Bonjour, monsieur — disse a Cosme —,vous connaissez notre langue?

— Da, gospodin ofitsèr — respondeu meu ir-mão —, mais pas mieux que vous le français,quand-même.

— Êtes-vous un habitant de ce pays? Êtiez-vous ici pendant qu’il y avait Napoléon?

— Oui, monsieur l’officier.— Comment ça allait-il?— Vous savez, monsieur, les armées font tou-

jours des dégâts, quelles que soient les idéesqu’elles apportent.

— Oui, nous aussi nous faisons beaucoup dedégâts… mais nous n’apportons pas d’idées…

Estava melancólico e inquieto, contudo eraum vencedor. Cosme simpatizou com ele e queriaconsolá-lo:

— Vous avez vaincu!— Oui. Nous avons bien combattu. Très bien.

Mais peut-être…Ouviu-se uma explosão de berros, um baque,

um tinir de metais.— Kto tam? — perguntou o oficial. Voltaram

os cossacos, e arrastavam pelo chão corpos semi-nus, e na mão seguravam algo, na esquerda (a di-reita empunhava o largo sabre curvo, desembai-nhado e — sim — gotejante de sangue), e a coisaeram as cabeças barbudas dos três hussardos bê-bados. — Frantsuzy! Napoleon! Todos mortos!

O jovem oficial mandou levá-los embora comordens secas. Virou a cabeça. Falou ainda paraCosme:

— Vous voyez… La guerre… Il y a plusieursannées que je fais le mieux que je puis une chose

affreuse: la guerre… et tout cela pour des idéalsque je ne saurais presque expliquer moi même…

— Também eu — respondeu Cosme — vivohá muitos anos por ideais que não saberia expli-car nem a mim mesmo: mais je fais une chosetout à fait bonne: je vis dans les arbres.

O oficial de melancólico se pusera nervoso.— Alors — disse —, je dois m’en aller. —

Saudou militarmente. — Adieu, monsieur… Quelest votre nom?

— Le baron Cosme de Rondeau — gritou-lheCosme, enquanto ele partia. — Proščajte, gospo-din… Et le vôtre?

— Je suis le prince Andrėj… — E o galopedo cavalo carregou o sobrenome.

30

NÃO SEI O QUE NOS TRARÁ este décimo nono sé-culo, que começou mal e continua sempre pior. Pe-sa sobre a Europa a sombra da Restauração; todosos inovadores — jacobinos ou bonapartistas quefossem — derrotados; o absolutismo e os jesuítasretomaram o campo; os ideais de juventude, as Lu-zes, as esperanças do nosso décimo oitavo século,tudo é cinzas.

Confio meus pensamentos a este caderno, nemsaberia exprimi-los de outra maneira: fui sempreum homem tranquilo, sem grandes entusiasmos ouideias fixas, pai de família, de nobre estirpe, ilu-minado em ideias, cumpridor das leis. Os excessosda política jamais me provocaram comoções muitofortes, e espero que continue assim. Mas por den-tro, que tristeza!

Antes era diferente, havia meu irmão; diziapara mim mesmo: “já existe ele que pensa”. E eutratava de viver. O sinal de que as coisas muda-ram para mim não foi nem a chegada dos austro-russos nem a anexação ao Piemonte nem as novastaxas ou sei lá mais o quê, mas não poder maisvê-lo, ao abrir a janela, lá em cima em equilíbrio.Agora que ele não existe, tenho a impressão deque deveria pensar em tantas coisas, a filosofia,a política, a história, acompanho os jornais, leioos livros, quebro a cabeça, mas as coisas que elequeria dizer não estão ali, ele pensava em muitomais, algo que abarcasse tudo, e não podia dizê-lo com palavras, mas apenas vivendo como vi-veu. Somente sendo tão impiedosamente ele mes-mo como foi até a morte, podia dar algo a todosos homens.

Lembro quando ficou doente. Pudemospercebê-lo porque levou seu saco para a grandenogueira no meio da praça. Antes, os lugares on-de dormia foram mantidos sempre ocultos, comseu instinto selvagem. Agora sentia necessidadede estar sempre à vista dos outros. A mim, me

apertava o coração: sempre pensara que não lheagradaria morrer sozinho, e aquilo talvez já fosseum sinal. Mandamos um médico, que chegou atéele com uma escada; quando desceu fez uma ca-reta e abriu os braços.

Subi eu pela escada.— Cosme — comecei a dizer-lhe —, você

passou dos sessenta e cinco anos, como pode con-tinuar aqui em cima? O que você tinha para dizerjá foi dito, entendemos, foi uma grande força deânimo a sua, conseguiu, agora pode descer. Mes-mo para quem passou a vida inteira no mar chegao momento do desembarque.

Que nada. Fez sinal negativo com a mão. Qu-ase não falava mais. Levantava, de vez em quan-do, enrolado numa coberta quase até a cabeça, esentava-se num galho para apanhar um pouco desol. Não ia mais longe. Havia uma velha do povo,uma santa mulher (quem sabe uma antiga aman-te), que ia fazer a faxina, levar pratos quentes.Mantinham a escada apoiada no tronco, porquehavia sempre necessidade de ir ajudá-lo, e tam-bém porque se esperava que se decidisse de um

momento para outro a descer. (Esperavam os ou-tros; eu sabia bem de que massa ele era feito.) Aoredor, na praça, havia sempre um círculo de genteque lhe fazia companhia, conversando entre elese às vezes também lhe dirigindo uma piada, em-bora se soubesse que não tinha mais vontade defalar.

Piorou. Içamos uma cama à árvore, consegui-mos mantê-la em equilíbrio; ele se deitou de boavontade. Tivemos um certo remorso por não terpensado nisso antes; para dizer a verdade ele nãorecusava as comodidades desde que fosse em ci-ma das árvores, tratara sempre de viver o melhorque podia. Então nos apressamos em oferecer-lhe outros confortos: esteiras para protegê-lo dovento, um baldaquim, um braseiro. Melhorou umpouco, e lhe levamos uma poltrona, conseguimosfirmá-la entre dois galhos; passou a ficar ali, en-rolado nas suas cobertas.

Certa manhã não o vimos nem na cama nemna poltrona, erguemos o olhar, atemorizados: su-bira ao topo de uma árvore e estava empoleirado

num galho altíssimo, vestindo apenas um camiso-lão.

— O que faz aí em cima?Não respondeu. Estava meio rígido. Parecia

estar lá em cima por milagre. Preparamos umgrande lençol daqueles que serviam para colherazeitonas, e ficamos num grupo de umas vintepessoas para mantê-lo estendido, pois se receavaque caísse.

Entretanto, subiu um médico; foi uma subidadifícil, foi preciso emendar duas escadas. Desceue disse:

— É a vez do padre.Já tínhamos combinado que um certo dom Pé-

ricles tentasse, amigo dele, padre constitucionalno tempo dos franceses, inscrito na loja quan-do ainda era permitido ao clero, e recentementereadmitido em suas atividades pelo arcebispado,após muitas complicações. Subiu com os para-mentos e o cibório, tendo atrás o coroinha. Ficouum pouco lá em cima, pareciam confabular, de-pois desceu.

— Então, recebeu os sacramentos, dom Péri-cles?

— Não, não, mas diz que está bem, que paraele está tudo certo. — Não se conseguiu sabermais nada.

Os homens que seguravam o lençol estavamcansados. Cosme estava lá no topo e não se mo-via. O vento começou a soprar, era o vento afri-cano, o cume da árvore ondulava, nós estávamosprontos. Naquele momento apareceu um balão nocéu.

Alguns aeronautas ingleses faziam experiên-cias de voo com montgolfières na costa. Era umabela construção, enfeitada de franjas, festões e la-ços, com uma barqueta de vime pendurada: den-tro desta dois oficiais com dragonas douradas epontudos chapéus de dois bicos observavam comtelescópio a paisagem de que fazíamos parte.Apontaram o telescópio para a praça, examinan-do o homem na árvore, o lençol esticado, a multi-dão, aspectos estranhos do mundo. Também Cos-me erguera a cabeça, e olhava atento o balão.

Eis que o balão foi apanhado por uma viradado vento africano; começou a dar voltas comouma piorra, e dirigia-se para o mar. Os aeronau-tas, sem desanimar, trataram de reduzir — creio— a pressão do balão e ao mesmo tempo desen-rolaram a âncora para baixo, tentando fixar-se emalgum ponto. A âncora voava prateada no céu,pendurada numa longa corda, e seguindo oblíquaa corrida do balão agora passava sobre a praça,estava mais ou menos na altura da nogueira, tantoque receamos que atingisse Cosme. Mas não po-díamos supor o que dentro de um instante nossosolhos iriam ver.

O agonizante Cosme, no momento em que acorda da âncora passou perto dele, deu um saltodaqueles que costumava dar em sua juventude,agarrou-se na corda, com os pés na âncora e ocorpo enrolado, e assim o vimos levantar voo, le-vado pelo vento, refreando um pouco a corrida dobalão, até desaparecer no mar…

A montgolfière, superado o golfo, conseguiuaterrizar na outra margem. Pendurada na cordahavia somente a âncora. Os aeronautas, demasia-

do preocupados em manter uma rota, não tinhampercebido nada. Imaginou-se que o velho mori-bundo tivesse desaparecido enquanto voava sobreo golfo.

Assim desapareceu Cosme, e não nos deunem a satisfação de vê-lo voltar para a terra de-pois de morto. No jazigo da família há uma esteiaque o recorda com a escrita: “Cosme Chuvascode Rondó — Viveu nas árvores — Amou semprea terra — Subiu ao céu”.

Enquanto escrevo de vez em quando vou atéa janela. O céu está vazio, e a nós, velhos de Pe-númbria, habituados a viver sempre sob aquelasverdes cúpulas, faz mal aos olhos observá-lo. Dir-se-ia que as árvores não resistiram, depois quemeu irmão se foi, ou que os homens tenham sidodominados pela fúria do machado. Mais tarde, avegetação mudou: não mais as azinheiras, os ol-mos, os carvalhos. Agora a África, a Austrália, asAméricas, as Índias alongam até aqui ramos e raí-zes. As plantas antigas retrocederam para as par-

tes altas: nas colinas, as oliveiras, e nos bosquesdos montes, pinheiros e castanheiros; próximo àcosta existe uma Austrália vermelha de eucalip-tos, elefantesca de ficus, plantas de jardim enor-mes e solitárias, e todo o resto são palmeiras, comseus tufos descarnados, árvores inóspitas do de-serto.

Penúmbria não existe mais. Olhando para océu vazio, pergunto-me se terá existido algumdia. Aquele recorte de galhos e folhas, bifurca-ções, copas, miúdo e sem fim, e o céu apenas emclarões irregulares e retalhos, talvez existisse sóporque ali passava meu irmão com seu leve passode abelheiro, era um bordado feito no nada que seassemelha a este fio de tinta, que deixei escorrerpor páginas e páginas, cheio de riscos, de indeci-sões, de borrões nervosos, de manchas, de lacu-nas, que por vezes se debulha em grandes pevi-des claros, por vezes se adensa em sinais minús-culos como sementes puntiformes, ora se contor-ce sobre si mesmo, ora se bifurca, ora une mon-tes de frases com contornos de folhas ou de nu-vens, e depois se interrompe, e depois recomeça

a contorcer-se, e corre e corre e floresce e envol-ve um último cacho insensato de palavras ideiassonhos e acaba.

ITALO CALVINO (1923-85) nasceu em Santiagode Las Vegas, Cuba, e foi para a Itália logo após onascimento. Participou da resistência ao fascismodurante a guerra e foi membro do PartidoComunista até 1956. Publicou sua primeira obra, Atrilha dos ninhos de aranha, em 1947.

OBRAS PUBLICADAS PELA COMPANHIADAS LETRAS

Os amores difíceisAssunto encerradoO barão nas árvoresO caminho de San GiovanniO castelo dos destinos cruzados

O cavaleiro inexistenteAs cidades invisíveisContos fantásticos do século XIX (org.)As cosmicômicasO dia de um escrutinadorEremita em ParisFábulas italianasUm general na bibliotecaMarcovaldo ou As estações na cidadeOs nossos antepassadosPalomarPerde quem fica zangado primeiroPor que ler os clássicosSe um viajante numa noite de invernoSeis propostas para o próximo milênio — Lições

americanasSob o sol-jaguarA trilha dos ninhos de aranhaO visconde partido ao meio

Copyright © 1990 by Palomar srlProibida a venda em Portugal

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Lín-gua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasilem 2009.

Título originalIl barone rampante

CapaJeff Fisher

PreparaçãoMárcia Copola

RevisãoAdriana MorettoRenato Potenza Rodrigues

ISBN 978-85-8086-306-2

Os personagens e situações desta obra são reais apenasno universo da ficção; não se referem a pessoas e fatosconcretos, e sobre eles não emitem opinião.

Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ LTDA.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 — São Paulo — SPTelefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.br