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ARS NAUTICA Fernando Oliveira e o Seu Tempo Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1 450-1650) Fernando Oliveira and his Era Humanism and the Art of Navigaion in Renaissance Europe (1 450-1 650) Actas da lX Reunido lnternacional de Historia da Ndutica e da Hidrografia Proceedings of the lX lnternational Reunion for the History of Nautical Science and Hydrography Edi96o organizada por lndcio Guerreiro e Francisco Contente Domingues PATRIMONIA oASCAIS 1999

(IX) ALVES, Francisco, RODRIGUES, Paulo, CASTRO, Filipe - Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa

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ARS NAUTICA

Fernando Oliveira e o Seu TempoHumanismo e Arte de Navegar

no Renascimento Europeu (1 450-1650)

Fernando Oliveira and his EraHumanism and the Art of Navigaion in

Renaissance Europe (1 450-1 650)

Actas da lX Reunido lnternacional de Historia da Ndutica e da Hidrografia

Proceedings of the lX lnternational Reunionfor the History of Nautical Science and Hydrography

Edi96o organizada porlndcio Guerreiro e Francisco Contente Domingues

PATRIMONIA

oASCAIS 1999

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Aproximação arqueológica às fontes escritas daarquitectura naval portuguesa

Francisco Alves, Paulo Rodrigues e Filipe CastroCentro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática

Introdução

João da Gama Pimentel Barata, um dos maiores estudiosos contemporâneos das fon-tes escritas da arquitectura naval portuguesa, referia no início dos anos setenta, num dosseus notáveis trabalhos que, graças aos resultados, particularmente no mediterrâneo, das in-vestigações de arqueologia subaquática, essa novíssima sub-disciplina da arqueologia,"Melhor se conhecem os navios egípcios, gregos e romanos que um galeão quinhentista,porque até hoje ainda não houve afortuna de se descobrirem no fundo dos mares e em lo-cais acessíveis os restos de navios do século XVI, ao contrário do que sucede com os na-vios da antiguidade." (1989, I: 155).

De facto, até inícios dos anos noventa, apenas um navio português da época da ex-pansão, integrável naquilo que hoje designamos por tradição 'ibero-atlântica' de constru-ção naval1, e suficientemente íntegro arqueologicamente2, havia sido objecto de um estudoarqueológico e arquitectural preliminar: a fragata Santo António de Tanna, naufragada emMombaça (Quénia), em 16973.

Assim, até data recente, a falta de informação arqueológica em Portugal, referente aesta tradição arquitectural, era apenas colmatada pelas fontes escritas, entre as quais desne-cessário é referir as principais, objecto de publicação sistemática pela Academia de Mari-nha, que muito enriquece e honra o panorama editorial português: O Livro da Fabrica dasNãos, de Fernando Oliveira (1580), O Livro Primeiro da Architectura Naval, de João Bap-tista Lavanha (1608-15) e o Livro de Traças de Carpintaria, de Manoel Fernandez (1616).

1 Esta expressão, surgida no decorrer da colaboração entre os AA e Eric Rieth, no quadro da sua colaboração nas investi-gações de arqueologia náutica e subaquática em curso desde o início da segunda metade dos anos noventa, foi uma directa con-sequência do itinerário de investigação pessoal desenvolvida por este investigador, no quadro da arqueologia e arquitectura na-val europeia e especialmente ibérica das épocas medieval epós-medieval. Este itinerário foi naturalmente marcado pelo enfo-que teórico-comparativo de Thomas Oertling, incidindo sobre os raros destroços de navios espanhóis espalhados pelo mundo,minimamente estudados do ponto de vista arqueológico e que o levaram a adiantar a designação je 'Atlantic vessel' (1989 e1998). Esta expressão foi assumida pela organização do Simpósio Internacional de Lisboa, de 1998, não sendo objecto de con-testação durante os trabalhos. Na realidade, ela refere-se explicitamente a uma tradição de origem claramente mediterrânica emedieval que, em áreas atlânticas de Península Ibérica, tanto em Portugal como no sul e no norte de Espanha, embora filiadanum princípio e numa concepção comuns, se desenvolve e se exprime em pormenores técnicos sui generis, resultando pressu-postamente de uma evolução local que, mais do que um "ar de família", lhes confere uma efectiva identidade. Isto, sem prejuí-zo das respectivas diferenças já descerníveis a partir da amostragem arqueológica efectivamente existente e que, se bem queescassa, ano após ano se tem vindo a enriquecer.

2 Os destroços do navio português dos meados do século XVI descobertos nas Seychelles, apesar de revelarem ainda por-menores de grande interesse não possibilitavam já um estudo arquitectural minimamente aprofundado (Black & Green, 1986).

•> De 1977 a 1980, a convite do Museu Nacional do Quénia, o Institute of Nautical Archaeology levou e efeito várias cam-panhas de escavação arqueológica subaquática no sítio dos destroços deste navio, sob a responsabilidade do arqueólogo RobinPiercy (vide Piercy, 1977 a 1980).

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IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

Esta situação iria mudar drasticamente com as descobertas e investigações de quatrodestroços de navios descobertos nos últimos anos4. Dois deles, descobertos em Lisboa, fo-ram encontrados em meio urbano húmido, na zona ribeirinha, perto do Cais do Sodré e doLargo do Corpo Santo, enquanto que os outros dois o foram em meio subaquático; umdeles em ambiente lagunar, na ria de Aveiro, e o outro na barra norte do rio Tejo, junto àfortaleza de S. Julião da Barra. Este último é, aliás, o único identificado (com forte presun-ção), como sendo a nau da índia Nossa Senhora dos Mártires, naufragada em Setembro de1606, no seu regresso de Cochim.

Merece também ser mencionada a datação dos três primeiros destroços, por ordemde descoberta: meados do século XV (Ria de Aveiro A), finais do século XV/inícios do XVI(Cais do Sodré), e século XIV (Corpo Santo).

Desde logo despontava uma evidência: os destroços dos navios de Aveiro e do CorpoSanto assumiam particular relevância pelas suas recuadas datações, precedendo de mais deum século a época da mais antiga das fontes escritas mencionadas - a década de 60 do sé-culo XVI (uma vez que a Ars Náutica datará de 1570, remetendo para uma época em tornodos meados do século) - do mesmo modo que Lavanha reflecte uma tradição vigente natransição do século XVI para o XVII. De salientar que Ria de Aveiro A apresenta em acrés-cimo uma especial característica: a de ser exemplo de uma tradição construtiva local ou re-gional, logo, pressupostamente menos 'erudita' e, por isso, tanto mais importante do pontode vista histórico-documental. Já os destroços do navio do Corpo Santo, apesar de aindamais antigos, constituem um testemunho muito limitado documentalmente devido ao factode serem de dimensão muito reduzida, interditando por isso uma análise minimamente sa-tisfatória, ao contrário do de Aveiro, que conserva intacta a informação de meio casco donavio.

Os destroços do navio do Cais do Sodré, a meio caminho entre os séculos XV e XVI,possibilitavam por sua vez, dada a sua excepcional extensão, uma excelente base compara-tiva para com as fontes escritas que lhe são ligeiramente mais tardias. Finalmente, a reduzi-da dimensão dos destroços do fundo do casco da nau Nossa Senhora dos Mártires, iriampossibilitar mesmo assim, a sua comparação com as fontes escritas que lhe são praticamentecoevas.

Mas antes de abordar estes dados, numa perspectiva comparativa entre fontes escritase arqueológicas, refiramos sucintamente cada uma destas descobertas.

Os destroços do navio Ria de Aveiro

A ria de Aveiro é uma vasta zona lagunar do litoral da região centro-norte de Portu-gal, separada do oceano por um cordão dunar com mais de 50 km. Sendo o maior e maisbem protegido plano de águas interiores do sul da Europa atlântica, não poderia deixar depossuir uma tradição marítima milenar. Confirmando esta evidência, em 1992 foi desco-berto um compacto tumulus de cerâmicas que, em 1994, se verificou corresponder à cargade um navio, conservando ainda uma parte substancial da carena do casco. Quatro amostras

4 Aos quais obrigatório é juntar, ainda mais recentemente, um quinto, Angra D, descoberto em 1997 e escavado, desmonta-do, reacondicionado e protegido em meio submerso, em 1998, no quadro do acompanhamento arqueológico do projecto deconstrução de uma marína na baía de Angra do Heroísmo por uma equipa do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Suba-quática (CNANS) (Monteiro & Garcia, 1998 and Garcia et ai., 1999a and b). Esta intervenção resultou de um protocolo de co-laboração celebrado entre a Junta Autónoma do Porto de Angre do Heroísmo, dona da obra, a Direcção Regional dos AssuntosCulturais e o Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, protocolo este que foi transferido para o InstitutoPortuguêsde Arqueologia desde a sua criação em 1997. Esta última descoberta e a imperativa necessidade do seu estudo leva-ram em 1999 à criação de uma equipa específica do CNANS na região que beneficia supletivamente do apoio das autoridadesregionais.

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diversas, da estrutura do navio, de um apetrecho de bordo e de um elemento da carga, fo-ram submetidas a análise por radiocarbono e deram resultados perfeitamente coincidentes,apontando para uma datação nos meados do século XV5.

Entre 1996 e 1997 foi feita a escavação completa da carga e a remoção de quase to-das as peças do esqueleto do navio (cavernas e braços), tendo em 1999 sido efectuado oregisto completo e a desmontagem final do casco (Alves, 1998a e 1999a e b). Deste entãoiniciou-se o respectivo tratamento de conservação e o registo arqueográfico, peça a peça,no C.N.A.N.S. O início do seu estudo permitiu comprovar que Ria de Aveiro A era um na-vio de cabotagem de porte pequeno-médio, com um comprimento de quilha de cerca de 8'rumos' (12.32 m).

A quilha tem uma secção com cerca de 12 cm de lado e é uma peça compósita, feitade vários madeiros ligados entre si por escarvas lisas e verticais, semelhantes às presentes naquilha da nau Nossa Senhora dos Mártires (Fig. 1). A quilha faz uma só peça com o ca-daste, terminando num típico couce prolongado por uma patilha (Fig. 2).

Todas as cavernas e braços da metade de ré estão conservadas em proporções diver-sas, sobretudo em toda a parte central e do lado de estibordo (Fig. 3). O tabuado da carenatem cerca de 5 cm de espessura e uma largura máxima em torno dos 30 cm; está conserva-do em cerca de 70% do comprimento original, sobretudo, igualmente do lado de estibordo,o que corresponde a uma parte de vante e a toda a meia parte de ré da estrutura que incluio couce de popa numa altura de pouco menos de um metro.

Verificou-se serem 23 os conjuntos caverna/braço desta metade do navio - a maioriadeles conservados dos dois lados, mas sobretudo do lado de estibordo, o que resultou dofacto de a carena repousar ligeiramente adornada para este lado.

Três cavernas da parte central, que estão apenas conservadas na sua sua zona centrale do lado estibordo, apresentam um rebaixamento na parte central, ladeado por um ressalto(Figs. 4 a e b) em tudo semelhante às secções das cavernas centrais do navio Contarina 1(Bonino, 1978). Este encaixe, observável naquelas três cavernas, destinar-se-ia, tal como emContarina I, ao escoramento da carlinga, de que uma pequena parte subsistiu, embora par-tida e fora do sítio.

As ligações caverna/braço estavam cobertas por escoas e são feitas por emalhetagemem 'rabo de minhoto', reforçadas por cavilhas de madeira e pregos de ferro (Fig. 5) nasprimeiras oito balisas. Nas restantes as ligações são apenas asseguradas por pregos de ferropenetrando obliquamente, sinal de que neste caso os braços foram colocados após a fixa-ção das cavernas sobre a quilha. Os braços estão todos colocados por trás das respectivascavernas, simetricamente em relação à caverna-mestra.

As cavernas nos 5, 12 e 15 contadas a partir da caverna-mestra (contando com esta)apresentam na sua face dianteira (as duas primeiras) e na sua face superior (a última) os al-garismos romanos V, XII e XV (Figs. 6).

A pregadura do tabuado é mista, com pregos de ferro e secção quadrada e cavilhasde madeira de secção circular.

A carga de Ria de Aveiro A parece ter sido fundamentalmente constituída por frutossecos (sobretudo nozes e castanhas), e por cerâmicas comuns de tradição regional. Devidoà grande quantidade de peças recuperadas - cerca de 4 000 fragmentos e algumas centenasde formas completas e de peças absolutamente intactas - foi possível estabelecer uma tipo-

^ Em face da notória importância do achado, em 1995/96 foi iniciado um projecto de investigação arqueológica centradosobre este achado e sobre o estudo comparativo das cerâmicas da carga, com o apoio da Junta Nacional para a InvestigaçãoCientífica e Tecnológica (hoje Fundação para a Ciência) e do programa PRAXIS XXI, sob a égide da Universidade de Aveiro,no âmbito de um protocolo celebrado em 1995 entre esta instituição e I.P.P.A.R, subsequentemente transferido para o InstitutoPortuguês de Arqueologia, em 1997, desde a sua criação, com a implícita assumpção do mesmo pelo C.N.A.N.S.

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logia de 18 formas, representando o mais extenso, completo e íntegro conjunto de cerâmi-cas de fabrico comum da época dos Descobrimentos (Alves et ai., 1998a).

As observações e os estudos de pormenor já feitos e em curso, permitem filiar Ria deAveiro A na tradição construtiva ibérica, típica da faixa atlântica da Península.

Resulta da sua datação, por outro lado, como foi já referido, o facto da sua desco-berta vir permitir recuar de um século aquilo que até à data era conhecido à escala interna-cional no âmbito desta tradição construtiva que, manifestamente, se filia, próxima ou lon-ginquamente, na mediterrânica.

Mas não menos importante também é o facto de se estar perante o primeiro testemu-nho de âmbito náutico, regional e costeiro, típico de um comércio de cabotagem, o que éilustrado pela natureza da carga transportada, que contrasta com todos os casos conhecidosà escala internacional, representando navios vocacionados para a navegação transoceânica.

Assim, ficou pela primeira vez comprovado arqueologicamente que esta tradiçãoconstrutiva de Ria de Aveiro A mergulha as raízes numa arreigada tradição local e regional- o que até então era apenas um pressuposto historicamente inferido mas arqueologica-mente não documentado.

As análises de identificação de espécies arbóreas das quais provêm as madeiras utili-zadas no navio da Ria de Aveiro A, referentes ao tabuado do casco, cavernas, braços, quilha,sobrequilha, escoas e a cavilhas de madeira, permitiram comprovar uma utilização extensivae comum de carvalho roble (quercus robur). No entanto, verificou-se que um madeiro nãoidentificado (RAVA 319, talvez um váu?) e um pé de carneiro eram de madeira de casta-nheiro {castanea sativa). Por sua vez, os numerosos troncos de pequena e variável secção,correspondendo presumivelmente à estiva da carga de cerâmica e/ou a lenha para consumode bordo, eram de pinheiro manso (pinus pinea).

Os destroços do navio Cais do Sodré

Em Abril de 1995 foram descobertos os restos de um grande navio durante as obrasde alargamento da rede do metropolitano de Lisboa6. A desobstrução de um túnel nasimediações do mercado da Ribeira, no Cais do Sodré, na zona ribeirinha da cidade, levou,com efeito, à descoberta de um grande fundo de casco, exactamente seccionado à popa e àproa pelas paredes laterais do túnel, distando 24 m uma da outra. O navio tinha o seu eixoperpendicular à margem do rio, a proa virada a norte, e encontrava-se ligeiramente adorna-do para estibordo (Figs. 1 aeb).

O navio do Cais do Sodré foi datado pelo radiocarbono da 2a metade do século XVou dos inícios do XVI, sendo assim o maior e o mais antigo testemunho de navio portuguêsde grande porte (Rodrigues, 1998).

A sua estrutura (Fig. 8) incluía grande parte do tabuado do fundo da carena, queapresentava espessuras de cerca de 7/8 cm e larguras entre 33 e 50 cm e encontrava-se bas-tante íntegra, sobretudo do lado bombordo. Conservava ainda quarenta cavernas e um nú-mero de braços considerável mas unicamente do lado da proa e do lado da popa - aten-dendo a que, na parte central do casco, pouco antes da ocorrência do achado, todas as pe-ças do esqueleto, em cerca de sete metros, foram arrancadas por uma escavadora.

As cavernas têm de largura entre 19 e 26 cm, mas com maior incidência 22/24 cm;com a altura variando entre 28 e 45 cm - com o espaço entre si de 19 a 25 cm, e portanto

" A intervenção arqueológica, assim como a relativa aos destroços do navio do Corpo Santo, efectou-se ao abrigo de umprotocolo celebrado entre o Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico e o Metropolitano de Lisboa

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FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

um vão de cerca de 40 a 50 cm. Nas extremidades, as cavernas de conta, apresentam na zo-na da ligação caverna/braço as tradicionais escarvas em 'rabo de 'minhoto' (na realidade,de forma trapezoidal) (Fig. 9), tendo 10/12 cm no topo e cerca de 18/22 cm na base.

Como em Ria de Aveiro A e na Nossa Senhora dos Mártires, os braços estão todoscolocados por trás da respectiva caverna, do lado das extremidades.

Pormenor a destacar é a presença de marcas gravadas de numeração em algarismosromanos (Fig. 10), atestada em todas aquelas cavernas, na sua face virada para a caverna-mestra, tal como em três cavernas de Ria de Aveiro A e, como veremos adiante, nas da Nos-sa Senhora dos Mártires. De salientar que esta numeração se desenvolve na metade de popae na direcção desta, a partir da caverna-mestra, desde a marca IIII à XVIII, enquanto que àproa, apenas se encontra patente nas únicas três cavernas de conta encontradas, a XVI, XVIIe XVIII, que são justamente as últimas - presumindo-se daí, e da dimensão da parte conser-vada (24 m) que o navio teria 18 rumos de quilha (27.72 m), de acordo com a regra clássi-ca (Oliveira), segundo a qual o número de cavernas de conta é idêntico ao número de ru-mos de quilha.

O navio do Cais do Sodré apresentava a sobrequilha preservada ao longo de 4 me-tros e que tinha uma secção com uma largura média de 27 cm e uma altura de 26 cm -faltando infelizmente a zona da carlinga. Do mesmo modo, conservavam-se a buçarda, as-sim como diversas tábuas e madeiros das escoas de fundo, que tinham cerca de 19/21 cmde largura e uma altura de 18/20 cm. Conservava-se também a quilha ao longo dos 24 me-tros de largura da sala, peça que tem uma secção média de 25 cm de largura e 27 de altura(com 21/22 na face de topo). Esta compõe-se de quatro troços que apresentam a curiosacaracterística de se unirem topo a topo sem qualquer escarva ou elemento de reforço. Emcontrapartida apresenta apenas nas suas faces de contacto, horizontalmente, a meia altura,uma canelura de secção semi-circular, aparentemente para servir de cama a uma cavilha ci-líndrica que teria a função de aqua-stop (Fig. 11).

As análises de identificação de espécies arbóreas das quais provêm as madeiras utili-zadas no navio do Cais do Sodré, referentes à quilha, sobrequilha, cavernas, braços, tabuadode casco, escoas, bem como ao contraforte e pé de carneiro, permitiram comprovar umautilização extensiva e comum de carvalho Alvarinho (quercus faginea), espécie tipicamenteportuguesa. No entanto, verificou-se que as tábuas de forro interior existentes entre as duasescoas de fundo, em cada um dos bordos eram, a estibordo, de pinheiro manso (pinus pi-nea) e, a bombordo em pinheiro silvestre (pinus sylvestris). Por sua vez, a buçarda é de car-valho roble (quercus robur), sendo o pinção, adiante referido, de pilriteiro (crataegus mo-no gyna).

De referir finalmente a presença, no contexto destes destroços, da extremidade ocu-lada de um pinção, facto muito raro e importante por constituir uma das mais recuadas ba-lizas cronológicas conhecidas, testemunhando uma técnica que a roda de leme apenas des-tronaria alguns séculos mais tarde (Fig. 12).

Os destroços do navio Corpo Santo

Em 1996, pouco mais de um ano após a descoberta dos destroços do navio do Caisdo Sodré, apareceram igualmente nas obras do metropolitano de Lisboa, no largo do Cor-po Santo, a poucas centenas de metros do primeiro local, os restos da extremidade de popade um navio de menor porte, seccionados pelo gigantesco anel de betão de uma chaminéde arejamento (Fig. 13).

Eram de reduzida dimensão: tinham de comprimento cerca de 1.8 m, por cerca de1.6 m de largura, correspondentes à altura conservada da zona de ré. Tal como no casoanterior, o vestígio fora achado do lado de dentro da estrutura de betão, quando se iniciou

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IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

o desentulhamento desta. Ocorria assim, pela segunda vez, em condições idênticas, umadescoberta do mesmo tipo, durante o acompanhamento arqueológico das obras do metro-politano que se desenvolveram a profundidades que intersectaram, nesta zona, o nível damargem antiga do rio Tejo (Alves, 1998è). O resto do navio jazia deitado sobre estibordo,na areia de praia, com a popa virada a sul, para o centro do anel que o seccionara. É depresumir portanto que a restante parte do navio se encontrará do lado de fora da estruturade betão.

O vestígio apresenta do ponto de vista formal uma notória semelhança com o equi-valente segmento de popa de Ria de Aveiro A. Os destroços do navio do Corpo Santo sãocompostos por dez peças (Fig. 14): o couce da quilha, o coral, três picas, e cinco tábuas deforro de casco, duas de bombordo e três de estibordo.

As particularidades atestadas no seu modo de construção, muito semelhante ao deRia de Aveiro A, não deixavam qualquer margem para dúvidas: estava-se perante mais umexemplo da já referida tradição construtiva.

Nos dois casos verificava-se o uso de elementos compósitos de fixação do tabuadoao couce, ao coral e às picas - as cavilhas, de secção aparentemente circular mas, na reali-dade octogonal, eram de madeira, e os pregos, de secção quadrada e cabeça de secção cir-cular, eram de ferro. O tabuado apresentava espessuras entre 4 e 5 cm e larguras entre 30 e44 cm. Apresentava também como característica comum com Ria de Aveiro A, uma pode-rosa e longa cavilha de ferro que atravessava longitudinalmente a parte do cadaste do coucee do coral, unindo-os à primeira pica (em falta).

Curiosa também era a presença, nesta parte do couce, de dois sistemas de entalhebem característicos: um, vertical, para o emalhetamento com o cadaste (Fig. 15), de acordocom uma técnica que, com as devidas diferenças de pormenor, não deixa de ser idêntica àdo Santo Esteban ( Rosloff & Arnold, 1984: 290-291); e um outro entalhe, horizontal, emtorno de toda a sua superfície externa, destinado ao encastramento da fêmea do leme (Fig.16).

Este último aspecto não seria muito importante se não fosse a datação recuada dovestígio. Com efeito, a análise pelo radiocarbono de uma amostra de madeira da estruturaforneceu uma datação do século XIV.

Os resultados das análises das madeiras utilizadas no navio do Corpo Santo aindanão estão disponíveis, muito embora, em resultado de observações preliminares, se tenhaobtido a confirmação de que todas as peças da estrutura são de carvalho roble (querem ro-bur).

Pode assim afirmar-se que o navio do Corpo Santo, apesar da inexpressividade di-mensional dos destroços que até nós chegaram, é o mais antigo testemunho arqueológicoconhecido de um navio de tradição ibero-atlântica dotado de leme de cadaste. Constituipois um marco muito importante para o conhecimento das origens e do desenvolvimentodesta tradição construtiva e da sua expressão em Portugal.

Os destroços da nau Nossa Senhora dos Mártires

Em 1996, o Comissariado do Pavilhão Português na exposição Mundial (Expo98)decidiu adoptar o tema da Rota do Cabo para o seu programa museográfico. Foi assim de-senvolvido, em colaboração com o Ministério da Cultura, um projecto de investigação ar-queológica subaquática na zona de São Julião da Barra, já prospectada em 1994 pelo Mu-seu Nacional de Arqueologia em colaboração com a associação Arqueonáutica, que deralugar à descoberta dos restos de um poderoso casco e de numerosos fragmentos de cerâmi-ca oriental. Justamente neste sitio, o mais importante cemitério de navios na costa portugue-

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sa, tinha-se perdido em Setembro de 1606 a nau Nossa Senhora dos Mártires, no regressode Cochim.

O projecto desenvolveu-se entre Outubro de 1996 e Outubro de 19977. Desde início,os trabalhos permitiram identificar uma significativa parte de um fundo de casco de umanau de grande tonelagem que conservava ainda o respectivo forro exterior e onze pares ca-verna/braço parcialmente preservados (Fig. 17). Estes restos revelarariam rapidamente a suaimportância para o estudo dos navios de tradição construtiva Ibero-Atlântica (Alves et ai.,19986; Castro, 1998).

Além de um grande número de singularidades e detalhes arquitecturais/estruturaisregistados, foi escavada à volta do casco uma pequena área com cerca de 100 m2, que pro-porcionou a descoberta de uma interessante colecção de artefactos. Entre estes contam-secerâmicas da China e de outras regiões do extremo-oriente, entre as quais se distinguempratos inteiros de porcelana do período Wan-Li da dinastia Ming e potes assiomiláveis aotipo martaban. Do mesmo modo, foram encontrados canhões, diversos tipos de projécteis,e numerosos utensílios de bordo. Foram também recuperados três astrolábios, dois compas-sos e mais de dez sondas em chumbo. Um dos astrolábios ostentava a data '1605' - justa-mente a da partida da armada de Brás Telles Meneses, de que a Nossa Senhora dos Mártiresfizera parte - e a marca 'G', da oficina de Francisco Gois.

A estrutura em questão corresponde à parte mediana do fundo do casco situada ime-diatamente após a caverna mestra (ou mestras), encontrando-se mais bem preservada a leste,correspondendo presumivelmente ao lado de bombordo, devido à morfologia do fundo domar. A estrutura é composta pela quilha, onze cavernas e vinte seis tábuas de forro exterior.

A quilha é constituída por uma série de troços de cerca de 3 m ligados por escarvassimples similares às da quilha dos destroços do navio Ria de Aveiro A (Fig. 18). Apresentauma secção trapezoidal com cerca de 25 cm de largura na face superior e uma altura esti-mada de apenas 11 a 12 cm. A face inferior tem cerca de 16 cm de largura devido a umsotamento das faces laterais, para aí formar o alefriz. A sua fraca espessura deixa supor aeventual existência de uma contra-quilha, de secção quadrada ou rectangular - como seobservou no caso do San Diego (l'Hour, 1994: 118-153).

As onze balizas conservadas, estavam solidamente pregadas à quilha com pregos deferro de secção quadrada de 1,8 a 2 cm. Aberturas redondas com 4 cm de diâmetro eramvisíveis em algumas das cavernas, perto da pregadura, provavelmente correspondendo a ca-vilhas que uniam a quilha e a contra-quilha através das cavernas, não tendo ainda sido en-contrado um padrão para a colocação destas cavilhas. A união dos braços com as cavernasera assegurada simultaneamente por escarvas em 'rabo de minhoto' e por quatro cavilhasde ferro (Fig. 19). Tal como os pregos usados na conexão das cavernas/quilha, estas tinhamuma secção de 1,8 a 2 cm. As cabeças dos pregos eram quadradas, de cantos arredondadose deixaram buracos circulares nas faces dos braços, com um ou dois cm de profundidade e5 a 6 cm de diâmetro. Nas extremidades as cavilhas eram dobradas e encaixadas em ranhu-ras.

As dimensões laterais dos braços, cavernas e espaço entre elas, medidos in situ, varia-vam em resultado do processo natural de acamamento de cada um dos lados do casco, paratal contribuindo a irregularidade natural das madeiras e as possíveis distorções daquele, queterão ocorrido na sequência do naufrágio.

Inicialmente através do IPPAR e subsequentemente do IPA, no quadro do CNANS, desde a sua criação em 1997.

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IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

Algumas das cavernas apresentavam marcas gravadas na face norte, de frente paraa(s) caverna(s)- mestra(s), do lado oeste do eixo. Estas marcas, de dois tipos, consistem emlinhas verticais e em algarismos romanos . As primeiras marcam o eixo e/ou, pelo menos,um dos bordos da quilha. O segundo tipo de marcas foi encontrado em cinco das onze ca-vernas e corresponde a uma numeração romana sequencial. O número 'III' é visível na C9,o ' IIIF na C8, o 'V na Cl, o que poderá ser o 'VIIII' na C3, e o 'X' na Cl. Apresentaassim uma ordem crescente, de norte para sul, em que o número T corresponderia à ca-verna C l l . Assim, as cavernas C12, C13 e C14, não conservadas, mas localizadas a nortesem qualquer espaço entre elas, deveriam representar as cavernas-mestras do navio.

O tabuado tinha 11 cm de espessura, um dos mais altos valores encontrados em na-vios de tradição ibero-atlântica. Todos os pregos eram de ferro e todas as tábuas apresenta-vam buracos de pregos de variadas dimensões, a maioria de secção quadrada.

Como já foi mencionado, algumas das cavernas apresentavam aberturas redondas emadição às quadradas, presumivelmente correspondendo às cavilhas que ligavam a quilha àsobrequilha. Também aqui não foi ainda encontrado um padrão para a colocação destascavilhas - que não eram colocadas nas cavernas que assentam sobre as escarvas da quilha, eque estão sempre presentes à frente e atrás de cada escarva.

Da análise dos buracos da pregadura decorre que, por um lado, estes parecem ter si-do previamente abertos com um trado e, por outro lado, os pregos apresentam sempre umasecção maior perto da cabeça.

A calafetagem foi feita com grande cuidado. Rolos de tiras de chumbo de 5 a 9 mmde diâmetro foram colocados entre cada tábua, incluindo nas respectivas faces de topo, du-rante a fase de construção. As juntas, preenchidas pelo calafate, eram então protegidas comlongas e estreitas tiras de chumbo, pregadas com pequenos pregos de ferro de secção qua-drada de 4 mm, intervalados de 4 a 8 cm.

As diversas mas menos numerosas placas de chumbo de forma rectangular e quadra-da, furadas ao longo do seu perímetro, apresentando buracos de prego, igualmente de sec-ção quadrada de 4 mm e espaçados de 4 a 8 cm, corresponderão ao revestimento de zonasde juntas de tábuas múltiplas, e/ou, eventualmente também, a reparações.

A quilha, roda de popa e as balizas foram feitas de sobreiro (quercus suber) e o ta-buado de Pinheiro manso [pinus pinea).

As fontes escritas revisitadas

Podem-se decompor e hierarquizar os vários aspectos decorrentes do estudo compa-rativo dos vestígios arqueológicos dos quatro navios precedentemente mencionados à luzdas principais fontes escritas da arquitectura naval portuguesa. Destas, destacam-se muitoespecialmente duas: a primeira, de índole mais teórica (Oliveira) e a segunda, mais teórico-prática (Lavanha).

Sobre os princípios e os processos de construção

O princípio de construção em que se baseia a arquitectura naval de tradição ibero-atlântica e, neste caso, a portuguesa, assenta na função primordial do 'esqueleto', no qualassumem um papel essencial a quilha e os seus prolongamentos terminais - a roda de proae o cadaste - e o cavername. Por sua vez, a concepção do casco dos navios portuguesesdeste tipo inspira-se claramente num modelo mediterrânico que recorre a processos e ainstrumentos específicos que permitem definir a respectiva forma a partir do desenho indi-vidual de cada uma das peças do cavername central. Entende-se por este, o conjunto de to-dos os elementos transversais da estrutura, situados entre a caverna mestra e as chamadas

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FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

almogamas - de proa e de popa (Fig. 20). Este conjunto de balizas que define a forma docasco é pois objecto de um tratamento formal específico, visando definir a forma evolutivade cada uma delas a partir da forma-padrão da caverna-mestra, para cada um dos lados, daproa e da popa. É esta operação que, ao permitir assegurar a necessária harmonia arqui-tectural e funcional, confere o 'ar de família' próprio desta tradição arquitectural. Trata-se,como se pode compreender, de um procedimento baseado num princípio de predetermina-ção formal, obedecendo a padrões geométricos que têm directamente a ver com uma tradi-ção técnico-cultural específica. Como não poderia deixar de ser, este princípio é interacti-vamente integrador da experiência adquirida e de tentativas empíricas de melhoramentoformal e funcional. Por sua vez, ele é servido por técnicas de desenho e de controle de es-taleiro herdadas do Mediterrâneo, de que o graminho e o molde são expressões chegadasaté hoje entre nós e em diversas partes do mundo em que perdurou a tradição do saberportuguês neste domínio (Sarsfield, 1996; McGrail, 1998).

Quanto aos processos de construção, que importa diferenciar dos princípios de cons-trução, merece ser igualmente referido que a análise comparativa das fontes arqueológicase escritas demonstra eloquentemente a sua íntima relação - através de pormenores técnicosque, se bem que isoladamente, caso a caso, se encontrem em outras tradições construtivas,ilustram, nos casos portugueses agora conhecidos, pela sua simultaniedade, o padrão cultu-ral cultural dos navios de tradição ibero-atlântica (Oertling, 1989, 1998).

Passemos pois em revista os vários aspectos e que exprime a referida relação entre asfontes escritas e as arqueológicas, atestadas nos quatro navios em questão.

A numeração gravada nas cavernas de conta

O mais claro exemplo da predeterminação conceptual inicialmente referida é a ne-cessidade de no estaleiro as diversas peças compósitas deste cavername central (entre almo-gamas) serem, por um lado, individualizadas e, por outro, referenciadas de acordo com arespectiva posição no seio de cada sequência arquitectural - de cada lado da caverna-mestra e a partir dela, uma vez que ela é a geradora formal e estrutural do conjunto arqui-tectural.

Diz Lavanha que " (...) e se asinalem com o escopro, como se fez na mestra e a cadaCauerna, se lhe ponha com o mesmo escopro o seu numero; primeira, segunda ou terceiraetc, qual ella for para que se saiba onde se há de assentar e qual he o seu lugar / " (1996, fl.69: 53).

Neste sentido, a presença de algarismos romanos gravados em cavernas de três dosquatro destroços de navios acima referidos (Figs. 7, 12 e 23 b), é elucidativa deste facto,mas é ao mesmo tempo uma novidade em termos científico-documentais. Com efeito, até àdata, este pormenor apenas se encontrara presente em alguns raros casos de navios tardo-medievais do Mediterrâneo ocidental, como no caso dos destroços do navio Culip VI, dolitoral da Catalunha (Nieto et ai, 1989; Rieth, 1996).

De referir, no entanto, a propósito deste tipo de numeração gravada, que, no caso deRia de Aveiro A, justamente o mais antigo e simultaneamente de cariz mais 'arcaico-provinciano', esta numeração não segue o padrão 'teórico', verificado no navio do Cais doSodré e na Nossa Senhora dos Mártires: padrão este que seria suposto aplicar-se exclusi-vamente às chamadas cavernas "de conta", isto é, às predeterminadas. Com efeito, em Riade Aveiro A a presença desta marcação nas cavernas 12 e 15 deixa-nos perplexos por seafastar do postulado teórico. Aqui, de acordo com este, só as cavernas de 1 (a mestra) a 8deveriam apresentar marcas (de acordo, aliás, também, com um outro atributo destas caver-nas centrais que adiante se refere).

Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa ...233

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

O sistema de fixação caverna-braço nas balisas predeterminadas

Com efeito, estas cavernas possuem também, como característica específica, ligaçõesaos braços especialmente reforçadas, pois além da pregadura (mista, isto é, com cavilhas demadeira e pregos de ferro, no caso de Ria de Aveiro A, ou simples, isto é, só de ferro, noscasos mais tardios do Cais do Sodré e da Nossa Senhora dos Mártires), possuem malhetesmacho/fêmea, em forma de 'rabo de minhoto' (Figs. 21).

Manoel Fernandez refere que: " (...) terá o braço d'emcolamento polia Caverna trêspalmos, e da Caverna pollo braço os mesmos três palmos, e malhetarão a Caverna no bra-ço um dedo (...) (, 1995, fl. 17: 48).

Lavanha, não explicita, no entanto, o termo malhete ou emalhetar. " (...) os Couadosasinalados nas Cauernas. E nos Braços, porque estes se hão de ajuntar, com muito res-guardo e hão de uir ums sobre os outros muy ao Justo e so com estas linhas dos couadosse ha de ter conta, no embraçar os Braços com as Cauernas. E em umas e em outros se fa-zem umas emmoçaduras com que se aJuntão; (...) " (1996, fl. 70: 55).

Mais uma vez cumpre referir que Ria de Aveiro A se afasta também aqui, emboramais ligeiramente, do 'padrão teórico' ao apresentar a referida característica na caverna 9,quando, como veremos adiante, a caverna 8, que em princípio é a almogama de popa, deve-ria ser a última a apresentar tal característica.

De referir também, a título de clarificação, que as restantes cavernas para fora das al-mogamas apresentam nas suas ligações com os braços simples pregadura de ferro inseridaobliquamente (Fig. 22), o que corresponde ao facto desta ligação apenas ser estabelecidaapós a fixação destas cavernas à quilha e, talvez também, depois do seu 'entalamento embolacha' pela sobrequilha, regularmente fixada à quilha através de longos pregos e/ou ca-vilhas de ferro. Quer isto dizer que os braços destas cavernas só são colocados posterior-mente, talvez mesmo depois do tabuado aí ser posto - o que levanta a interessante questão,nesta zona e nesta fase, de uma inversão do princípio construtivo que passaria aí a ser mistoou alternado.

Aliás, a este propósito, Lavanha refere que: " (...) Para se encher o mais espaço daQuilha com Cauernas, se põem uma cinta de pao (de meyo palmo de Largo e quatro dedosde groso, laurado por todas as quatro faces à esquadria a qual se chama Armadura) desde odelgado de Popa que he do ponto D. té o delgado de Proa, que he o ponto E, (...) e quepase por todos os Couados das Cauernas de Conta que estão asentadas ficando os traçosdelias, pella face de cima da Armadoura (...) Pella qual e por outra, que se põem da outraparte, pellos mesmos lugares, se uay enchendo todo o mais espaço da Quilha com Cauernaschamadas enchimentos. Dos quaes ums são abertos por serem largos e semelhantes àsCauernas, e outros Cerrados porque se uão estreitando, e formando o delgado da Nao. (...)" (1996, 72v°: 57 e 58).

A norma da equivalência do número de cavernas de conta com o número de 'ru-mos de quilha'

Um preceito taxativo em Fernando Oliveira é o de que o número de cavernas prede-terminadas (sempre idêntico dos dois lados da caverna-mestra) é igual ao comprimento daquilha expresso em rumos (1 rumo= 1.54 m).

Diz este autor que: " (...) E hão de ser tantas cauernas de cada parte destas, quãtosrumos tem a quilha toda. Se a quilha toda teuer dezoyto rumos, cada grãminho destes teraadezoyto cauernas, e não mays, mas antes menos, se parecer bem ao mestre, para bêde acre-cêtar o delgado. & desabafar o enchimêto (...) (1991: 95).

Este preceito só pôde ser verificado no caso do Cais do Sodré. Com efeito, a sequên-cia numérica patente nas cavernas de conta deste navio estende-se até ao n° 18, o que, se-gundo a norma teórica, equivaleria a uma quilha de 18 rumos, com 27.72 m (18 x 1.54 m)

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FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

- dimensão perfeitamente aceitável embora não tenha podido ser verificada arqueológica-mente, visto distarem entre si de 24 m as paredes de betão que seccionaram o navio pelaproa e pela popa.

De referir que no caso da Ria de Aveiro A, embora as cavernas não estejam todasnumeradas, pôde constatar-se o mesmo princípio através do número de balisas com os seussegmentos emalhetados - em número de oito, exactamente o mesmo de 'rumos' de quilha.

A norma de posicionamento da caverna-mestra

Diz Oliveira que: " (...) Despoys da lançada a quilha, & armados os lançamentosda proa & da popa, com seu gio, começa a nossa fabrica assentar o fundo da nao sobre aquilha. O qual fundo ha de ser assentado, ou ordenado de modo, q o seu meyo uaaauante do meyo da quilha, em nauios grades mays, & nos pequenos menos. Tanto menosnos pequenos, que se forem munto pequenos, pode ficar no meyo da quilha, mas nunca aree delle, Nos mayores, quando munto a oytaua parte da quilha, que em dezoyto rumos,são dous rumos & hum palmo & meyo: mas isto seja o mays, & não passe daqui, por quefaraa o nauio munto emproado. (...) " (1991: 94).

Relativamente a este assunto refere Lavanha que: " (...) he pois o Lugar da CauernaMestra segundo as regras dadas no terço da quilha contado do Couce da Proa pello quese do ditto Couce para a Popa tomarmos 35 palmos que he o terço de 105 palmos que temtoda a Quilha; no termo dos dittos 35 palmos será o lugar do meyo da Cauerna Mestra easi asinalado; nelle a poremos; asentando a sua Astilha com a ditta Quilha e o traço doseu meyo, com o meyo da mesma Quilha com a qual estará à esquadria e por este modoasentada (...) " (1996, fl. 71v°: 56 e 57).

Ria de Aveiro A é o único caso em que este pressuposto pode ser verificado por ra-zões de conservação. Por sua vez, o preceito de que a caverna-mestra se deve situar um ru-mo para diante de meia-nau, isto é, para o lado da proa a contar do ponto mediano daquilha, veio a verificar-se muito rigorosamente rigor, ao ponto de permitir considerar que onavio da Ria de Aveiro A é efectivamente um navio de 8 rumos de quilha (Fig. 23).

A norma respeitante à posição dos braços relativamente às cavernas

Lavanha refere-se à presença de quatro braços na caverna-mestra, tal como se viria averificar em a Ria de Aveiro A: "(...) na cauerna Mestra se põem no chão quatro braçosdous de cada parte (porque quando se põem a ditta cauerna em seu lugar e se uão pondoas cauernas de uma e outra parte ficão nellas os braços pella parte de fora para se pode-rem pregar com comodidade) (...)" (1996, fl. 70v°:55). Dito de outro modo, neste es-quemq as cavernas 'olham' para a caverna-mestra e os braços para as extremidades.

A norma relativa ao número de cavernas mestras em função das dimensões do na-vio

Este preceito acabou por ser verificado nos destroços da Nossa Senhora dos Márti-res.

Com efeito, atendendo simultaneamente à numeração gravada nas cavernas graças eaos buracos de pregos patentes no tabuado, foi possível localizar a posição da caverna-mestra, ou melhor, a posição de três cavernas-mestras. Aliás, apesar de as cavernas não esta-rem preservadas, os referidos buracos de pregos comprovam não corresponder a balisassimétricas das preservadas (do lado oposto do navio).

Esta constatação não surpreende, sobretudo por se tratar de uma nau de forte tonela-gem, aliás a amior até à data descoberta e arqueologicamente estudada à escala inteernacio-nal.

Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa ...235

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTORIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

Oliveira, a este propósito, refere: "(...) As que estão no pião antes que se os grami-nhos comecem aleuantar, se chamão cauernas mestras. Estas em nauios pequenos de quin-ze rumos pêra bayxo não devem ser mays q húa soo: & de quinze atee dezoyto duas: & dahy para cima três, & não mays por grndes que sejão: (...)" (1991: 94).

Os critérios de escolha de peças inteiras ou compósitos para a quilha

As quilhas de Ria de Aveiro A, do Cais do Sodré, e da Nossa Senhora dos Mártiressão peças compósitas, contando-se nos dois primeiros, entre os seus componentes, as maislongas peças dos respectivos liames. Na Nossa Senhora dos Mártires, em contrapartida, aquilha é uma peça duplamente compósita, isto é, além de ser formada, no comprimento,por vários troços, em altura ela era seguramente composta por duas peças sobrepostas, ape-sar de a de baixo, a contraquilha não ter sido encontrada.

Por sua vez, no navio do Cais do Sodré, a quilha, embora igualmente compósita,apresenta características invulgares na forma de ligação dos seus troços, como adiante seexplana.

Enquanto Oliveira refere que deverá preferencialmente ser uma peça inteira, "(...) Aqual parece que os nossos chamarão assy corrompendo o nome de quina em quilha: por-que he ella como quina do fundo da não. Está ha de ser de pao rijo, & forte, como soua-ro, ou semelhante: & ha de ser, quanto demanda o tamanho do nauio: por que nella as-senta, & ajfirma o liame, & força de tudo. E se for possiuel, seja tuda de hum pao: & se-não, sejão bê liados, & pregados os que fore necessareos pêra a fortificarem: (...)" (1991:90).

Em contrapartida, Lavanha defende que a quilha deve ser feita em vários troços, poisficará mais sólida: "(...) quando se achara Pao com todas as condições de que se poderáfazer Quilha enteira e couces não conuinha ser senão de pedaços porque como as madei-ras tirão por ella como se fosse enteira, estalaria e de pedaços dá de sy quanto he necessá-rio, e não quebra. (...)

E como a Quilha não possa ser enteira e aJa de ser de pedaços estes se aJuntão umscom os outros com umas escaruas (...) e se pregão com pregos que atrauessão toda a lar-gura da madeira e reuitão da outra sobre umas chapas de ferro a qual maneira de pregosse chamão Aneilados; e se ajuntara com as dittas escaruas. (...)" (1996, fl. 62v°: 44).

Os processos de ligação de segmentos de uma peça compósita

Tanto na parte preservada da quilha de Ria de Aveiro A como no troço subsistente daquilha da Nossa Senhora dos Mártires, verifica-se um idêntico sistema de junção de peçascontíguas através de escravas lisas ou lavadas, verticais e oblíquas (Figs. 2 a e b).

Lavanha ilustra este modo específico de ligação, de reforço e prolongamento (Fig.24). A peça a que esta ilustração se reporta apresenta uma notável semelhança com as dosdois casos acima referidos: "(...) E como a Quilha não possa ser enteira e aJa de ser depedaços estes se aJuntão ums com os outros com umas escrauas (como mostra a figura se-guinte) e se pregão com pregos que atrauesão toda a largura da madeira e reuitão daoutra parte sobre se fará toda a Quilha e se ajuntara com as dittas escaruas. (...)" (1996,fl. 62v°: 44).

De mencionar neste passo que o modo de ligação dos quatro troços do navio do Caisdo Sodré apresenta uma curiosa característica. Com efeito, estes troços unem-se topo a toposem qualquer escarva ou elemento de reforço, apenas apresentando horizontalmente nassuas faces de contacto, a meia altura, uma canelura de secção semi-circular, aparentementepara servir de cama a uma cavilha cilíndrica que teria a função de aqua-stop (Fig. 11).

Um tal sistema de ligação não pode deixar de ser considerado insólito num navio devocação transoceânica, como seria de supor a partir do seu porte (18 rumos de quilha). Por

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FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

esse facto, é de admitir que o navio do Cais do Sodré tivesse uma vocação estuarina ou flu-vial. Aliás, após uma persistente dificuldade em encontrar paralelos deste modo de ligaçãodos troços da quilha, é de assinalar o facto - curioso e talvez significativo - de os primeirosparalelos conhecidos nas fontes escritas quanto a este pormenor da quilha serem referentesà construção de galés francesas nos finais do século XVII; e no plano arqueológico, cons-tituindo uma rara referência paralela, seja também referido o modo de encosto da roda deproa com a quilha, observada nos destroços do navio CulipVI, da Catalunha, do séculoXIII/XIV8.

Os preceitos relativos ao couce

Como já foi referido, os couces patentes na Ria de Aveiro A e no Corpo Santo sãomuito semelhantes - para não dizer quase absolutamente idênticos (Figs. 2 e 15).

Lavanha ilustra este componente específico de remate posterior da estrutura axial donavio (Fig. 25). Esta ilustração patenteia uma notável semelhança com os dos dois casosacima referidos: " (...) O couce de Popa que he o canto que faz o Codaste com a Quilhase faz de um pão que tenha a sua feição (...) Este pao se laure de ambas as faces muy bemda mesma largura da Quilha (...) tanto o pao será milhor e toda a que tiuer se deixe comoa ditta figura mostra, na qual se uee também a maneira de escarua DE que se ha de fazerno pedaço do Codaste, onde o outro ha de uir ajuntar.

Alem de todos estes particulares apontados, he necesario que lhe sobeje a este Paopara a parte do canto B. três ou quatro palmos de alto e outros tantos de comprido, comohe o pedaço HJG. O qual se laure como amostra a figura, e se chama Patilha sobre quedescansa o Leme. (...) " (1996, fl. 63: 44 e 45).

As madeiras de que eram feitos os navios portugueses

Apesar de este questão específica merecer um merecido desenvolvimento - o queestá em curso, promovido por um dos AA (PR) - seja referido que os dados adiantados nasdescrições de cada um dos quatro destroços de navios portugueses aqui em questão, per-mitem sinteticamente emitir o reparo de que os três mais antigos são estruturados (quanto àquilha e cavername) e forrados exteriormente a carvalho (de diferentes espécies) e que aNossa Senhora dos Mártires, em contrapartida, segue rigorosamente o preceituado em Oli-veira e Lavanha - sobro para o cavername e pinheiro manso para o tabuado de forro exte-rior do casco..

Oliveira refere, com efeito, que: " (...) Nesta terra temos dous géneros de madeyramuy appropriados pêra estas duas partes das nãos, cadahum peraa sua: os quaes sãosouaro, & pinho. O souaro pêra liame, & o pinho pêra o tauoado. E são, a meu parecer,os mays accõmodados pêra isto, que todos os que eu uy (...)" (1991: 63).

Lavanha refere, por sua vez, que: " (...) Vma delias he o Souaro para / o Liame, eoutra o Pinho manso para o taboado. O souaro he muy duro, enxuto, não entra nelle hu-mor exterior por sua densidade não cria caruncho, nem apodrece na Agoa, antes nellacom a humidade se conserua e reuerdece, E alem de todas estas qualidades tão conformesao que se ha mister, tem outra não menos importante, que he a tortura de seus Ramos detal maneira curuos, que parece farão criados so para esta Arte. E porque desta Aruore senão pode fazer taboado, serue para isto o Pinho manso, cuJa madeira he branda, e como

8 Traité de Ia Construction des Galères, 1691, SH 134, 2e partie, f° 10. Service Historique de Ia Marine, Vincennes, France;uma outra referência a este tipo de junção encontra-se no f 20 do mesmo manuscrito. Devemos a Eric Rieth o fornecimentodesta referência.

Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa ...237

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

tal se pode dobrar e accomodar por todas as voltas do Costado da Não, que o Liame vayfazendo. (...) " (1996, fl. 48 e 48v°: 26 e 27).

Conclusões

A identificação e o estudo preliminar de uma pequena amostragem de quatro destro-ços de navios num recente e curto lapso de tempo de quatro anos (1994-1997), mais doque elucidar questões veio permitir formular novas e importantes perguntas interessando ahistória e a genealogia dos navios portugueses construídos segundo o princípio do 'esque-leto em primeiro lugar'.

Entre as questões esclarecidas conta-se uma, de primordial importância e significado,que é a de se ter pela primeira vez podido verificar uma sistemática validação dos preceitu-ados nas fontes escritas pelos testemunhos factuais proporcionados pelas fontes arqueoló-gicas.

Mas não menos importante é o facto de, igualmente pela primeira vez e, neste caso,comparativamente aos exemplos já conhecidos de navios de tradição ibero-atlântica espa-lhados por diversos continentes, mas quase todos eles de origem espanhola, aparecerem emPortugal exemplares, alguns dos quais bem mais antigos do que aqueles até então conheci-dos. O que veio permitir comprovar o facto de a tradição erudita expressa nas referidasfontes escritas mergulhar as suas raízes num passado bem mais remoto do que até então erapossível documentar - e muito bem enraizado técnico-culturalmente, como o atesta a pe-quena embarcação de cabotagem da ria de Aveiro. Aliás, dentro da própria tradição técnicaibero-atlântica, a particularidade do fácies português é notória.

O que, por sua vez, levanta a questão, de suprema importância, mas ainda sem res-posta, de se saber a origem, a génese e a genealogia de uma tal tradição construtiva. Comonum outro trabalho oportunamente se referiu "(...) Com efeito, na ausência de comprova-ção arqueológica, a hipótese de esta tradição importada [do Mediterrâneo]se ter difundi-do subsequentemente na construção naval do noroeste peninsular (...) tem tanta legitimi-dade como a da existência de influências mediterrânicas anteriores, enraizadas na tradi-ção de construção naval da costa hoje portuguesa, durante mais de meio milénio de do-mínio árabe" (Alves, 1998c: ). Com efeito, está hoje demonstrada "(...) inequivocamenteuma intensa e ininterrupta tradição árabe de navegação atlântica, que só declinaria apartir do século XIII, legitimando a consideração de que até esta época o oceano, do al-Andalus ao Magrebe, foi um espaço culturalmente afim do mediterrânico (Ibid.). No en-tanto, como referido, esta evidência está ainda por comprovar arqueologicamente, tal co-mo o está para o subsequente domínio cristão da Península, carecendo pois de prova terou não havido ruptura nas tradições de construção naval nesta época de transição políti-co-cultural. Certo é, como aspecto mais saliente, o ter saído reforçado o relacionamentocom o Mediterrâneo europeu" {Ibid.).

Mas, se está "(...) ainda longe de poder documentar no Atlântico peninsular, à ima-gem do que hoje se começa a poder esboçar no Mediterrâneo, os momentos da revoluçãoda tecnologia náutica que marcam o desaparecimento da excepcional herança do MundoAntigo nesse domínio" (Ibid.), não é menos verdade que os destroços dos quatro naviosdescobertos e começados a estudar nos últimos anos em Portugal representam uma notávele insubstituível contribuição, simultaneamente para a história do país, para a da Europa, epara a história mundial das técnicas.

238 Francisco Alves, Paulo Rodrigues e Filipe Castro

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

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240 Francisco Alves, Paulo Rodrigues e Filipe Castro

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

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Fig. 1 - a) Escarva vertical presente na quilha de Ria de Aveiro A;

b) na quilha de Nossa Senhora dos Mártires.

Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa ...241

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

Fig. 2 - Típico couce com a patilha de Ria de Aveiro A.

Fig. 3 - Planta dos destroços do navio da Ria de Aveiro A.

242 Francisco Alves, Paulo Rodrigues e Filipe Castro

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Fig. 4 - a) As três cavernas centrais de Ria de Aveiro A;

b) os contrafortes das cavernas centrais de Contarina /, em tudo semelhantes.

Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa ...243

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Fig. 5 - As escarvas em forma de "rabo de minhoto", típicas da junção

cavernas-braço nas balisas de conta.

Fig. 6 - Números romanos incisos presentes em três cavernas.

244 Francisco Alves, Paulo Rodrigues e Filipe Castro

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Cais do Sodré • Plano Garal

Fig. 7 - a) Plano do restos do navio do Cais do Sodré. b) Corte transversal do sítio arqueológico

do navio do Cais do Sodré.

Cai* do Sodré - Corta traravaraal do aWo

Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa ...245

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Fig. 8 - Planta dos destroços do navio do Cais do Sodré.

Fig. 9 - Escarvas em forma de "rabo de minhoto", presentes nas cavernas de conta

do navio do Cais do Sodré.

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FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Fig. 10 - Números romanos gravados existentes em todas as cavernas de conta.

Fig. 11 - Planta do tabuado de casco do navio do Cais do Sodré, com destaque para os topos

dos vários troços da quilha.

Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa .. .247

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Fig. 12 - Fragmento do pinção do navio do Cais do Sodré.

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FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Fig. 13 - Restos do navio do Corpo Santo, encontrado dentro de um poço de ventilação

do metropolitano em Lisboa.

Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa ...249

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Fig. 14 - Vista axionométrica dos restos do navio do Corpo Santo.

Fig. 15 - Couce do navio do Corpo Santo, onde é visível o pormenor da escarva de ligação ao cadaste.

250 Francisco Alves, Paulo Rodrigues e Filipe Castro

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Fig. 16 - Couce do navio do Corpo Santo, onde é visível o pormenor do entalhe feito para receber umadas fêmeas de leme.

Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa ...251

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Fig. 17 - Planta dos destroços da presumível nau Nossa Senhora dos Mártires.

Fig. 18 - Representação das escarvas dos diversos troços da quilha.

252 Francisco Alves, Paulo Rodrigues e Filipe Castro

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Fig. 19 - Pormenor das escarvas de união caverna-braço

das balisas de conta da nau Nossa Senhora dos Mártires.

Fig. 20 - Gravura retirada do Livro da Fabrica das Naus de F. Oliveira (1991: 100),

onde se pode observar todas as balizas existentes entre a quilha e as almogamas, ou seja. As de conta.

Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa ...253

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Fig. 21 - Sistema de fixação caverna-braço no navio do Cais do Sodré e na

Nossa Senhora dos Mártires, apenas com pregadura de ferro.

RAVA C15 PROA

Fig. 22 - Pormenor do sistema de fixação caverna/braço,

nas cavernas de enchimento de Ria de Aveiro A.

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FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Total length of the kael = 8 wmos = 12.32 m

Realmaster-frame

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RIA DE AVEIRO AHlpotfwtlcal dlmentlon

Fig. 23 - Planta geral do navio Ria de Aveiro A,

com a proposta de reconstituição dimensional.

Aproximação arqueológica às fontes escritas da arquitectura naval portuguesa ...255

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Fig. 24 — Gravura representando uma escrava vertical ou lisa,

extaída de O livro primeiro da Architectura Naval de J. B. Lavanha.

Fig. 25- Gravura do couce da quilha retirado de

O //vro primeiro da Architectura Naval de J. B. Lavanha.

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