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1 Leuzo de Siqueira Estações Utopias Bipolares em Prosa e Verso - um depoimento São Paulo 2ª Edição - 2012

Leuzo de Siqueira Estações Utopias Bipolares em Prosa e Verso -um depoimento

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Leuzo de Siqueira

Estações

Utopias Bipolares em Prosa e Verso - um depoimento

São Paulo

2ª Edição - 2012

Leuzo de Siqueira

Copyright ©2011 – Todos os direitos reservados a:

Leuzo de Siqueira

ISBN: 978-85-7893-000-0

Capa:

Ilustração do Autor, nanquim, giz de cera, lápis de cor sobre

cartolina, 1998

2ª Edição

Maio de 2012

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte do conteúdo deste livro poderá ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja ele impresso, digital, áudio ou visual sem a expressa autorização por escrito da Editora sob penas criminais e ações civis.

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Dedico este livro à Fátima, em breve psicóloga.

“Poetas e romancistas são nossos

preciosos aliados, e seu testemunho deve ser altamente estimado, pois conhecem

muitas coisas entre o céu e a terra com que nossa sabedoria escolar não poderia ainda sonhar. Nossos mestres conhecem a psique porque se abeberaram em fontes que nós, homens comuns, ainda não tornamos acessíveis à ciência.”

Sigmund Freud

Leuzo de Siqueira

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Também dedico esta obra:

à Dona Maria, por ter me dado à luz; à Madrinha Judite, uma verdadeira co-mãe;

à meu irmão e minhas irmãs; à meus primos-irmãos e primas-irmãs

e aos amigos preciosos e raros.

Todos foram meu socorro quando mais estive frágil.

É inestimável a minha gratidão à Prof. Ms. Mayra Marques da Silva Gualtieri, psicóloga, mestre e doutoranda em Educação pela Unesp, pelo incentivo fundamental para

que eu não desistisse, e concluísse este livro.

Não poderia esquecer da minha grande estima pelo Dr. José Roberto Ottoboni, psiquiatra responsável pela implantação do

CAPES AD em Garça SP, pela sua eloquente paciência e profissionalismo com que se dedica a mim e aos meus

companheiros de infortúnio.

Deixo também meus agradecimentos aos profissionais da área de Saúde Pública que me assistiram e me assistem com

muita competência e humanidade, a despeito de todas as barreiras do sistema.

Leuzo de Siqueira

A praga rogada:

Àqueles que traem o juramento de Hipócrates, que um dia sejam eles cobrados e expostos à execração pública pelos

malefícios que causaram e causam aos pacientes.

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Sumário

Breve nota critica .......................................... pg. 7

Prefácio à segunda edição .............................. “ 9

Escrever um livro, sendo bipolar.................... “ 11

Eu, Labirinto ................................................. “ 23

Ato I .............................................. “ 25

Ato II ............................................. “ 49

Ato III ........................................... “ 61

Uma nota explicativa ................................... “ 91

Decifro-me ou devoro-me ............................. “ 107

O Suicida Explicativo ................................... “ 150

Pesadelo em Vega-9 ...................................... “ 163

Alguns documentos pertinentes ................... “ 164

Em defesa do CAPS Álcool e Drogas ad priori

e da internação psiquiátrica ad posteriori .. “ 166

Sobre o Autor............................................... “ 171

Leuzo de Siqueira

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Breve Nota Crítica

Como poucas obras literárias da nossa atualidade, este livro me parece de eterna ajuda a estudantes, familiares, pacientes e, sobretudo, aos médicos, psicólogos e assistentes sociais que, quer tenham em si mesmos, em suas casas ou entre amigos algum tipo de transtorno mental, quer dediquem sua vida a cuidar de pessoas que deles sofrem, podem aproveitar a rara oportunidade que este livro nos propicia de penetrar no íntimo do sentimento e do funcionamento mental e social de alguém que sofre de Transtorno Afetivo Bipolar, não somente como meros espectadores, ou como alguém que lê sobre um doente ou sobre a descrição de um quadro clínico, como muitos outros livros brilhantemente já o fazem, mas tendo a chance de fazer com ele sua viagem à loucura e à realidade, conversando internamente com alguém que padece deste transtorno e que percorre com o leitor as mais diversas fases de sua vida, sua busca, seu sofrimento, seus delírios e, que, ao mesmo tempo, nos convida a uma viagem própria de retorno aos nossos velhos conceitos do que é social, histórica e culturalmente considerado normal ou patológico através dos tempos, nos mostrando a realidade dos hospitais psiquiátricos do Brasil, do curso do transtorno, suas fases, suas crises, suas lutas, do desconhecimento sobre o profundo sofrimento por que passam paciente, família, amigos e profissionais de saúde em

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busca de mais respostas e de encontro às muitas dúvidas que cercam o sofrimento mental, feito através do olhar sensível, delicado e extremamente lúcido do autor, que tanto nos mostra sua realidade, como nos apresenta a nossa própria, uma vez que bipolares podemos ser eu, eu, você ou qualquer um de nossos familiares ou amigos.

Deste modo, ao mostra-nos sua própria viagem através do que ainda hoje muitos consideram loucura, o autor também nos mostra a loucura de que ainda hoje muitos manicômios e tratamentos comungam, o descaso público para com os doentes mentais e o intenso sofrimento físico, psíquico e social de pacientes e familiares em busca de tratamento, dignidade e respeito, enfim de seus direitos de cidadãos comuns.

De fato uma leitura muito propícia aos tempos que hoje chamamos de pós-modernos!

Mayra Marques da Silva Gualtieri, Psicóloga pela Universidade Presbiteriana Mackenzie Mestre e Doutoranda em Educação pela Universidade

Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Professora Universitária, pesquisadora da saúde

mental, psicoterapeuta de orientação psicanalítica e ativista na luta pelos direitos humanos

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Prefácio à Segunda Edição Michel Foucault (1927/1984), em seu livro

“História da Loucura” (tradução de José Teixeira Coelho Neto, Ed. Perspectiva, São Paulo, 8ª. Edição, 2009), tece um pequeno prefácio à reedição daquela obra ,a pedido de seu editor.

O grande pensador considera um tanto desonesto, por parte do escritor, colocar amarras que reduzam a liberdade do leitor em julgar de e per si mesmo a obra já editada até então. Seria algo como ao tolher o leitor de sua capacidade crítica, o induzíssemos com nossa falsa modéstia a que somos, nós autores, monarcas déspotas e que determinássemos os cânones pelos quais nossa obra deveria ser lida, quais leituras válidas e, pior, sofrêssemos a tentação de reinscrevermos a obra já datada num tempo que já não lhe pertence mais.

O paradoxo é que, ao negar-se criar um prefácio, Michel Foucault o cria. Mesmo que seja um irônico prefácio curto.

Outros autores também tem ojeriza a prefaciar seus próprios livros. Eu também. Mas como não colocar um prefácio a mais numa reedição de um livro que é ele mesmo, em grande parte, uma coletânea de prefácios?

Embora bastante cabotino, este prefácio torna-se necessário, bem como as notas de rodapé, para que se

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compreenda melhor esta colcha de retalhos que teci acerca de minha história e não por incompetência do nobre leitor, mas pela grande deficiência que padeço como escritor, penso eu.

Por exemplo: para facilitar a compreensão pelo leitor não acostumado com o jargão inerente à grupos específicos (drogados, loucos, executivos de empresas, etc.) pensei necessário esclarecer certos termos; outro jargão ainda mais difícil, o psicanalítico, carece a meu ver de notas próprias e, finalmente, como compreender um delírio, se mesmo para o delirante curado ele já não tem mais sentido? Busquei, e tenho certeza de que estive longe de atingir um pleno objetivo, debulhar o delírio descrito em “Pesadelo em Vega-9”, pois para se ter uma dimensão exata do que revela aquele escrito realizado em 24 horas durante um surto psicótico, considero que seria necessário não apenas notas, mas talvez outro livro inteiro e isto , além e me faltar “engenho e arte”, é uma tarefa para um psicanalista e peso e foge ao singelo objeto deste livro e à minha capacidade e por obvio não sou psicanalista nem pesado.

Deletei (eis um verbo morto ressuscitado pelos jovens, através da internet...os jovens! ah, os jovens...) poemas inteiros da seção “Eu, Labirinto” com o intuito de dar maior movimento à leitura e reconstruí outros tantos – o que observo em notas próprias – donde concluo que M. Foucault discordaria totalmente acaso tivesse tido a oportunidade de se dar ao trabalho de ler este obscuro opúsculo e autor.

Assim sendo e dando vazão a Abelardo Barbosa Chacrinha, o fantástico animador de televisão do século passado, e a Lavoisier, em quem ele talvez se tenha inspirado na criação de seu famoso bordão “em tevê, nada se cria, tudo se copia”, digo eu: na literatura pouco eu crio e copio muito. Inclusive este curto prefacio à moda de Foucault.

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Abril/2012

Escrever um livro, sendo bipolar e alcoólatra

Foi uma tarefa árdua concluir este livro por diversas razões mas duas foram de fato barreiras que a mim pareceram intransponíveis: manter controlados o meu TAB-Transtorno Afetivo Bipolar, e o Alcoolismo já bastante crônico, que o agrava. Sem controlá-los, poucas chances eu teria de atingir o meu propósito de realizar uma obra que não fosse bêbada ou psicótica-delirante.

Aliás, todo bêbado tem sempre longas historias e bravatas heroicas; o portador do TAB em seus surtos de delírio psicótico anseia por escrever aquele livro que mudará o curso da história humana a partir, é claro, de sua historia de vida.

Não foi diferente comigo.

Talvez a única diferença seja o fato de eu pertencer a uma pequena minoria (deduzo pelas minhas internações psiquiátricas) que carrega pelos pátios e corredores dos

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hospícios, um caderno e uma caneta, escrevendo e anotando coisas que geralmente são inteligíveis, à primeira vista, para o leigo.

Estou certo que esta produção escrita e artística – porque o doente mental às vezes desenha e pinta bastante, nas salas de Terapia Ocupacional, quando as há – interessa aos psicólogos e psiquiatras, pois estes sabem estas manifestações um retrato do que passa no inconsciente do doente mental.

Comecei a escrever este livro em 1983, com o relato “Pesadelo em Veja 9”. O título sugere uma ficção científica, mas trata-se da manifestação concreta de um delírio psicótico. Antes, após abril de 1980, quando eu saindo de um profundo surto de mania delirante que me custou cerca de três meses para voltar à realidade, comecei a escrever poemas.

Assim, foram inúmeras tentativas de escrever minha própria Bíblia ou meu Alcorão. Tantas quantas foram as internações. Mas às vezes, meu “espírito escritor” refluía e baixava em mim meu “espírito artista-plástico”: nas oficinas de T.O. – Terapia Ocupacional, eu incorporava meu Van Gogh e produzia minha arte demente de louco contido.

Como escritor polarizado na mania, assim que chegava a depressão toda a inspiração cessava. Eu desincorporava o escritor que revolucionaria a arte da escrita e assumia o poeta medíocre que sempre me considerei.

Hoje ainda não sei dizer o quanto de minhas manifestações artísticas esteve inteiramente vinculado, de certa forma, ao TBP, ao alcoolismo e à maconha, que usei por cerca de dez anos.

Assim sendo costurei este livro sob o título “Estações - Utopias Bipolares em Prosa e Verso - Depoimento” juntando diversos fragmentos: uma peça teatral - ou um livro de poemas (?); prefácios antigos de possíveis edições de livros, que só existiram na minha fantasia delirante e um texto que estimo muito: “O Suicida Explicativo”, pois nele, e não sei como, se eu estava psicótico e delirante, consegui escrever um ciclo inteiro

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de psicose de maneira que somente em alguns trechos é entrevista minha confusão mental.

Estes textos eu os torno público sem nenhuma alteração ou edição, inclusive ortográfica, a não ser onde se fizeram realmente necessárias para a clara compreensão do leitor.

Creio que desta forma o leitor terá uma visão ao pé-da-letra dum camarada alucinado. Inclusive pode o leitor rir à vontade daquilo que for cômico.

Mesmo na tragédia o riso é necessário, porque, a despeito de tudo, de toda dor que acarreta ao transtornado e alcoólatra, sua família e seus amigos, o transtorno de afeto bipolar associado ao alcoolismo crônico podem ser estancados - é possível - com os tratamentos adequados hoje disponíveis, e assim o paciente amenizar a dor que o afeta, bem como a grande parcela da população mundial.

Aprendi a duras penas que depois de aproximar-me duma cirrose hepática; depois de anos de internações manicomiais; depois de conhecer o fundo dum poço medonho de fundo; que, inclusive antes do psiquiatra, do psicólogo, das drogas de ultima geração e da criação de leis que tratam da Reforma Psiquiátrica e de todo o progresso na gestão da Saúde Publica Mental, se eu não quiser me curar – ou seja: estabilizar meu quadro clínico com os meios à minha disposição para que possa levar uma vida quase normal, (embora não creio ser normal necessitar de drogas para manter-me lúcido, mesmo entendendo a necessidade delas), tudo isto será em vão. Difícil além da conta é encontrar forças que mantenham a vontade da cura. Mas é possível encontra-las.

Durante muitos anos, antes de conhecer melhor o que era o TBP – a antiga Psicose Maníaca Depressiva, eu pensava que a causa deste mal fosse apenas minha ”fraqueza moral” em encher a cara de destilados ou fermentados alcoólicos.

Hoje percebo que antes do álcool dominar minha vida, já se manifestara em mim o transtorno, provavelmente desde a

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primeira infância, ou seja: sempre fui bipolar e alcoólatra. Ambos os males carrego de nascença, acredito. Nada a ver com moralidade.

Na internação de 1986 (são tantas que servem para marcar meu tempo) o doutor que me assistia, ao saber que eu consumia também a Cannabis Sativa, vulgo maconha, afirmou que todo aquele malefício mental que até então eu vivera seria fruto da “cachaça-quase-de-graça” e dos baseados que eu usava como feijão-com-arroz. Decerto que ele, professor e médico psiquiatra, sabia do que diagnosticava.

Mas, durante todo o período que durou meu “repouso” naquela casa de saúde (?!?), ele não disse uma palavra do seria o TBP. Talvez o doutor considerasse que eu não era digno ou não entenderia seu linguajar. Enfim, eu era pobre,como ainda continuo sendo e mesmo que eu demonstrasse capacidade em compreender suas palavras, jamais eu seria um potencial cliente para o seu asséptico divã, e esta foi a impressão que ele me deixou.

Um ano antes eu vivera um pesadelo surreal mas significativo das razões do por que hoje me coloco como militante na luta antimanicomial: o surto psicótico daquele ano de 1985, comparo-o com o surto de 1980 sob todos os aspectos.

No meu ranking particular de pior entre os piores manicômios, o extinto Instituto Morumbi de Psiquiatria era par-a-par pela primeira posição disputada com o Hospital Coração de Jesus, este sem dúvida a quintessência da definição de hospício.

Graças à minha mãe e por sua mania sábia de guardar tudo o que considerava importante, ainda hoje tenho documentada a minha estada naquela masmorra dirigida pelo Dr. Carlos Frederico Schwantes, Diretor Clinico e que era, por mera coincidência talvez, o médico que cuidava de meu caso.

Dei entrada no Instituto do Dr. Schwantes no dia 21 de agosto de 1985 após ter sido expulso da Casa de Saúde Santana uma semana antes. O motivo da expulsão foi por eu ter

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participado de uma revolta de pacientes contrariados com o atendimento da enfermagem.

Nós pacientes, quase todos surtados ainda, assistimos a agonia e morte de um senhor idoso e alcoólatra sem que os auxiliares de enfermagem o socorressem. Já assistira antes a este filme macabro duas vezes no Hospital Coração de Jesus e dali para a rebelião não faltou nada. No dia seguinte todos nós tivemos alta, como se um milagre coletivo de cura tivesse ocorrido. Sequer nos comunicaram. Apenas telefonaram para nossos familiares responsáveis pelas internações e informaram que tivéramos alta hospitalar. Simples assim, cuidar de loucos rebelados.

O Instituto do Dr. Schwantes estava instalado numa antiga mansão no bairro de Vila Sônia, em São Paulo e quem o visse da rua ou mesmo da recepção, seria levado a um tremendo engano.

A enorme área arborizada; a piscina que se podia ver a partir da recepção; a própria recepção bem cuidada, com bons móveis e quadros na parede davam aos parentes de pacientes e, talvez, aos responsáveis pela fiscalização das condições sanitárias dos hospitais vinculados ao antigo INPS- Instituto Nacional de Previdência Social, a impressão de finalmente ter encontrado um hospital psiquiátrico decente.

Mas se até hoje hospital psiquiátrico honesto e decente é muito raro, no meio dos anos oitenta era delírio. Do lado dos fiscais do INPS não sei dizer o motivo da complacência e cegueira para o descalabro, apenas suspeito, mas nas diversas visitas que minha mãe e minha tia Judite me fizeram esta imagem asséptica foi se contaminando com a realidade estonteante contada por outros pacientes e seus visitantes, normalmente parentes e na maior parte, mães.

Se alguma vez eu visitei o inferno e saí vivo, o inferno era lá, certamente. De vez em quando conversando com minha tia Judite sobre aquela internação, ela ainda se lembra de quando

Leuzo de Siqueira

um paciente-criança nu surgiu de repente por uma porta e desatou numa carreira doida que deu um baita cansaço nos “enfermeiros”. Depois de muito custo, a criança foi levada por aquela porta.

Dias depois, impressionado com aquela cena, e curioso do que esconderia aquela entrada protegida pelos guarda-pátios, num vacilo dos vigias consegui penetrá-la.

Desci uma longa escada e dei-me num porão fedorento, com fezes pelo chão e cheiro de urina no ar pestilento. Mas mais horrenda ainda é a imagem que guardo daquela viagem ao Hades1 do Morumbi : cerca de quinze ou vinte crianças débeis mentais, quase todas nuas, estavam ali escondidas.

Fiquei atônito e nem percebi quando o troglodita que “cuidava” daquelas crianças me deu uma gravata e saiu me arrastando escada acima até minha ala.

Não careço dizer o efeito do sossega-leão que me aplicaram. Aplicaram sim mas não conseguiram deletar de minha memória este fato.

Se o cito é também como parâmetro de o quanto, nestes vinte e cinco anos que se passaram, ocorreram avanços na luta pelos direitos dos doentes em geral e dos doentes mentais, em particular.

Se até o episódio que relatei acima ainda não ocorrera avanços significativos na melhoria e humanização dos tratamentos psiquiátricos, pleiteadas pelos pioneiros da Luta Antimanicomial desde as greves dos trabalhadores do setor de saúde no final dos anos setenta do século passado, hoje o Estado Brasileiro põe à disposição dos pacientes e seus familiares uma política de enfrentamento do problema que

1 Hades, o Invisível – O inferno os gregos, lugar subterrâneo fechado

pelo rio Estinge, onde as almas dos mortos, privadas da luz do sol, passam uma estada melancólica. É o Hel escandinavo, situado no centro da Terra, ou a “casa das sombras” dos germânicos. (Dicionário Rideel de Mitologia,Nadia Julien, 1ª ed., São Paulo, 2005).

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parece-me é bastante positiva e razoável, embora a Saúde Publica como um todo esteja muito aquém do ideal, conforme pode ser confirmado no dia a dia de seus usuários.

Com a Constituição de 1988 definindo que a saúde é um direito do cidadão e um dever do estado – coisas que muito irritam a direita esclarecida, conforme li outro dia numa revista, vejam só, de circulação nacional - e, com a Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2002, promulgada por Fernando Henrique Cardoso e que instituiu a Reforma Psiquiátrica2, algumas condições objetivas para a criação dos CAPS- Centros de Atenção Psicossocial e CAPS- AD (Álcool e Drogas) foram dadas.

É um avanço, de fato, a favor dos loucos e suas famílias, a maioria das vezes doentes também, por cuidar deles e por sofrerem descriminações e preconceitos, como se ainda estivéssemos no tempo do Imperador Pedro II, que, aliás, foi patrono e nomeou um dos mais antigos manicômios do país, no Rio de Janeiro.

Com estes avanços ao longo do tempo em que vigora a atual Constituição foram eliminados país afora centenas ou talvez milhares de manicômios e seus congêneres, tendo sido muito significativo o desmonte do Manicômio do Juquerí3 e do Manicômio Judicial da cidade de Franco da Rocha, em SP, entre outros manicômios-cidades.

Todavia, as conquistas até agora obtidas pelos movimentos pró-doentes mentais vão contra interesses capitalistas bem claros: os de donos de hospitais e clínicas psiquiátricos aliados aos dos laboratórios farmacêuticos.

2 Note-se que a Constituição foi promulgada em 1988 e somente

quatorze anos após o Congresso Nacional chegou a um consenso que permitiu a regulamentação da matéria.

3 Fundado como Colônia Agrícola e Asilo de Alienados do Juquery em 1895 passa, em 1929, a denominar-se Hospital Psiquiátrico do Juquery, então dirigido pelo Dr. Francisco Franco da Rocha, tendo em alguns anos atingido uma população de mais de onze mil internos.

Leuzo de Siqueira

Caso a luta pelos direitos dos doentes, familiares e profissionais da área da saúde engajados na humanização dos tratamentos psiquiátricos não seja aprofundada e radicalizada, poderá haver até um retrocesso.

Isto ficou bem nítido para mim em agosto passado, quando um grupo de representantes da ABP- Associação Brasileira de Psiquiatria e da Indústria Farmacêutica foi fazer lobby junto ao Ministro da Saúde, o Sr. Alexandre Padilha, pleiteando aberturas de mais “vagas hospitalares” – acreditam ser necessárias algo como cem mil ou mais. Também reivindicaram na ocasião a universalização no sistema manicomial a ser expandido, segundo as propostas por eles apresentadas, da distribuição de medicação dita de “última geração”.

O argumento destes representantes da ABP é que devido à explosão no consumo de drogas pesadas, principalmente o crack, “o Estado deveria se prevenir, pois haverá, certamente, uma onda de internações que serão necessárias”, segundo alegou um dos que foram recebidos pelo ministro.

Pelo lado dos fabricantes de drogas psicotrópicas, o argumento é óbvio: estas drogas “aperfeiçoadas” teriam o condão de um melhor resultado na profilaxia dos transtornos mentais.

São argumentos fortes, porém passíveis de muito questionamento pela sociedade do quanto de fundamento tem as propostas destes dois setores da indústria da loucura. Fundamentos decerto que eles apresentam mas são válidos?A quem interessaram?

Na revista mensal “Piauí”, de São Paulo, em seu número 59, de agosto de 2011, há um artigo assinado pela Dra. Marcia Angell, psiquiatra americana, intitulado “A Epidemia de Doença Mental” no qual ela levanta questões graves acerca do uso de psicotrópicos e seus efeitos colaterais.

A mesma pesquisadora também publicou um livro, (A Verdade Sobre os Laboratórios Farmacêuticos – como somos

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enganados e o que podemos fazer a respeito, 2010, 5ª ed., Rio de Janeiro: Record), no qual ela relata suas pesquisas acerca dos interesses comerciais da Indústria Farmacêutica nos Estados Unidos, aliada natural de certo setor um tanto aético da psiquiatria, demonstrando com base em dados sólidos o quanto a indústria da loucura fatura nos Estados Unidos e o que fazem – o capeta se espantaria! – para atingir seus objetivos: os cofres públicos americanos.

Não vejo porque seria muito diferente aqui no Brasil, mesmo porque são aquelas mesmas indústrias citadas pela Dra. Angell que dominam o fornecimento de psicotrópicos no mercado nacional da loucura.

Todos estes dados são facilmente verificáveis via Internet e, penso, deveriam ser continuamente pesquisados e fiscalizados pela população, maior interessada nestas deliberações e resoluções tanto como cidadãos como por ser usuária destas drogas.

Como não poderia deixar de ser, abordo o tema da loucura e seus transtornos na condição de leigo cujo único conhecimento de psiquiatria, psicologia e farmacologia dos transtornos mentais se dão ao nível de paciente, portanto muito passível de erros e contradições para as quais clamo pela indulgência do leitor.

Resta-me ainda esclarecer o porquê da palavra “utopia” no subtítulo da obra ao invés de “transtorno” que seria mais referente ao assunto abordado.

A razão desta escolha dá-se por eu acreditar que no imaginário popular a palavra utopia tenha conotação de sonho irrealizável e porque considero o controle do alcoolismo e do transtorno bipolar algo muito difícil, que geralmente o paciente não consegue sozinho.

Livrar-se do abismo do alcoolismo e gerir as consequências do transtorno bipolar no cotidiano do portador e sua família é ainda algo bastante utópico para a maioria dos

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que carregam o estigma. Quanto aos poemas, os apresento como uma peça teatral;

um monólogo que não sei se funcionária no palco, já que muito pouco, mais para quase nada, entendo de teatro4.

Com os outros textos corridos, peço que o leitor tenha em mente que todos, exceto este texto inicial, foram produtos de estados hipomaníacos, maníacos ou depressivos, ambos com delírios ou alucinações (caso de “Pesadelo em Vega 9”), e creio também que fica patente a dimensão do problema quando faço de mim personagem e cito-me em terceira pessoa em boa parte dos textos.

Este é, portanto, o meu breve relato de minhas viagens pelos manicômios da vida e espero que ele seja útil para a reflexão do que significa a loucura e os modos com que a Saúde Pública Mental atualmente lida com a questão.

Garça, SP, setembro de 2011

4 Neste momento em que trabalho na revisão do livro para a segunda

edição e sete meses após o lançamento do livro, estamos reunidos um grupo de graduandos em filosofia pela Unesp-Marilia, na criação de uma peça teatral baseada neste texto. Esperamos montá-lo ainda este ano e com o mesmo título.

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Eu, Labirinto5

Monólogo

Personagem:

O Sr. Eupoésio B. Polar, antigo psicótico maníaco-depressivo, conta suas desventuras a partir de crises de mania ou

depressão e de sua atribulada vida vagando de manicômio em manicômio entre períodos de pacato cidadão comum, espantado

com o non-sense de um mundo muito louco.

5 Este conjunto de poemas foi reunido aleatoriamente dentre uma

produção de mais de 30 anos. Boa parte deles foi escrita durante o processo de internação e em pleno surto psicótico maníaco delirante e são apresentados em ordem distinta da que foram escritos. Neles o uso de neologismo e termos estrangeiros é abundante e optei por não traduzi-los confiando que o leitor saiba o significado ou que o busque nos dicionários. Ou os compreenda por dedução.

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Leuzo de Siqueira

ATO I

α

delírios, manias ,depressões e cia. “ nihil a me alienam puto”(*)

Alucinado, habitei a morada dos Loucos Lá tudo era delírio, poesia. Grandiosidades Supus-me a mente de deus e criei o mundo

No mundo pus todas as possibilidades no Homem O Homem, em mim, transfigurou-se imortal

A imortalidade anulou-me. Já não havia mais O porquê das coisas, só meu ser disperso

Confinado em seu Labirinto

(*) Nada do que é humano me é estranho

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

AMOR LOUCO AGALOPADO

? andale!... ? andale!... andam luzias e/namoradas

buscam no éter o fogo d’amor bem bom bem bom bem bom e tal qual quixote, eu pivete pixote sem canis et Ivete

canivete busco te pesco te

pisco a ti como te comesse de olhar amo-te

QUIXOTESCA

Alucinado cavandante eu sou Andante Quixote sem moinhos por que lutar

Vou pelas plagas na cauda dum cometa E principio tudo pelo fim. Alucinante rocinante, eu próprio meu cavalo,

Leio o destino bem na palma de mi mão

Ensolarada. Sonho sonhos antigos de lindos madrigais

Com matutinas donzelas zelosas E jorra em meus dedos sêmen. A cada rosto que miro Vejo meu único olho

Também.

Leuzo de Siqueira

CRIPTOGRAFIA BÁSICA I love you for ever Everymente falando Tô te gamando + do que nunca O sol nascente - nuestro – Me mostra, tal qual maestro Q’el tempero da vida Éz el sal de tu ojos, Tatá Yaci And I love you for never Tô tonto com tanto tantãs por cá... Há noites de insônias insanas Tanto que sinto o tempo parado Equidistantemente Por nuestros corazóns... Ah, rudá, rudá! Protege meu amor das tramas Do anhangá VESGO Meu olho míope vê Em sua cegueira de graus A degradância do mundo A babilônia cidade grande E sofro. Meu olho são, não enxerga Em sua lucidez estrábica Sequer uma nesga de paraíso Neste duro solo

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E grito.

Meus olhos desiguais

Sábios anormais Suplicam aos homens:

Paz!

PINDORAMA

esta cocacola/ina não combina com meu jeito . Latinamente

prefiro guaraná amazônico

em vez desta cachaça queira cauim...

ai de mim...

morar com a namorada numa oca tosca mesmo que na periferia desta taba

imensa

que ela me dissesse em guarani: te amo!...te amo!...

e eu a ela: - cunhã!

Ah, como queria.

VAMPIRO

Leuzo de Siqueira

Ah, menina Foi doido! Depois daquele artane6 Na fatia de torta; Depois do bolo recheado de capim, De mim não sobrou nada Varei! Fui andar pelas ruas no escuro Procurando algumas verdades Que faltavam em meus arquivos Mas na primeira esquina; No meio da Meia-Noite Sob a Lua louca e cor-de-prata Encontrei o Conde Drácula perdido Ah menina, foi doido! Até hoje Não encontro o rumo De minha sepultura... MANIA SEVERA Ontem quando acordei O sol brilhava mais que o costume A rua mais tranquila que o normal Estranhamente silenciosa

6 Marca registrada do cloridrato de triexifenidil e indicado para o

tratamento d mal de Parkinson e usado como anfetamina nos anos 1970/1980 por grupo de jovens usuários de outras drogas.

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Apesar de meus vizinhos não se derem por conta

Havia novos cheiros no ar:

Havia alecrim

Havia manjericão

Havia cheiros de melancias maduras

Havia também um sutil cheiro de maconha

- alguém decerto precisa fica louco

*quem largou esta ponta em meu cinzeiro?*

E,

Na casa à direita alguém reclamou

Um pouco de vinho:

- Mulher, o que tens com isto? – ouvi.

Mas isso mesmo eu disse há dois mil anos!

Hoje é sábado de aleluia

(talvez isto explique a cidade vazia ontem

(talvez isto explique a ausência das pessoas

(talvez, isto explique ser eu o cristo vingador,

(talvez isto justifique a malhação do judas, naquele poste...

*aposto que um judas me traiu!*

Já me vesti de general comandante

Com a velha verde farda puída

E o coturno gasto de quando servi

A pátria amada: vou ao desfile em minha honra...

A estrelinha de cinco pontas

Ganhei na campanha do partido.

Leuzo de Siqueira

A boina romanticamente à la guevara É também daquela época: Hay que ser com mucho cariño Mucho cariño mismo pero no perder jamás La lucidad o el Culo *Quien és que arde herba? -no-lo conosco, señor!* Por estas e outras o mundo Precisa de mim: Sou o cordeiro pascal e amanhã prometo Paz na Palestina, Lá na Rocinha, os traficantes reconhecerão minha senha/sina: Eleé... Minha senha é meu pai: Elohim E todos os tráficos cessarão Toda injusteza será redimida pelo meu verbo Toda e qualquer infâmia se desvanecerá Pois Hoje acordei e o sol me diz Com todos seus sete raios Que é sábado de aleluia Hallelluya! Vou salvar o mundo Vou decifrar Nostradamus Vou enfim decifrar-me *ou devoro-me* Hallelluya!

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Amanhã será minha pessach Minha pascoa especial A travessia *quem fumou este baseado?* Libertarei o povo do deus meu pai! *(pôrra!..quebrou a estrelinha...)* O SALMISTA LOUCO7 Meu Pai é o cara Me dá tudo que quero Me dá guarida E água fresca e me guia seguro Por entre estradas tortas esburacadas Embora me borre de medo pelas vielas da vida, Quando meu Pai está por perto – ele sempre está Viro leão Fico maneiro Sou capoeira valente, senhor Sou mais eu, eu + eu ainda Meu Pai é o cara que não me deixa na mão Que me sacia a fissura Que me sustenta nos prazeres

7 Os poemas que se seguem são uma releitura e trans-criação de

Salmos a partir da tradução para o português das Edições Paulinas da Biblia Sagrada, edição pastoral.

Leuzo de Siqueira

Meu Pai é o cara É meu guarda- costas É quem me livra as barras Meu Pai é o cara! Sim é meu Pai, o cara.

***

Não ‘to nem aí Com aquele cara foda Com aquele cara crocô São filhos de putas! Um dia perderão ‘Tarão fudidos Boto fé em meu Pai Sigo seu ditado ‘Tô na minha Ele é de palavra Digo e está cumprido E meu Pai é quem banca Não ’tou nem aí Com as maria-vai-com-as-outras Com os otários que intrigam Não levo raiva Não guardo mágoas Elimino. Mas caminho na boa

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Já que boto fé em meu Pai Já que ele me tanta força Sigo meu caminho numa boa Diz meu Pai Que botará ordem na casa E nenhuma marijuana será queimada Fora da ordem Diz meu Pai Que tombará os crocodilos Dará um grau na pobreza dos pobres Dará um jeito na riqueza podre dos magnatas Dará um basta nas injustiças dos tribunais Porque meu Pai se chama Deus Porque meu pai é Deus mais

***

Pai, meu Pai. Por que me largas À própria sina? Por que grito E tu és mouco, Pai, meu Pai? No profundo do dia Na grandeza da noite Eu grito: Pai, mas sois mudo... Pai, meu Pai!

Leuzo de Siqueira

Meu pai daqui, meu avô, o bisavô Todos em ti creram E Tu ouvias E Tu falavas E Tu acudias Quanto a mim, Pai, meu Pai, Que sou tal verme não homem Que sou a zomba do povaréu Que sou tal um palhaço triste Do qual ninguém se alegra? Pai, meu Pai, Não foi teu Santo Espirito Que me fecundou em mamãe Que deu a ela belas tetas meu manjar? Pai meu Pai, Por que te afastas de mim Por que me arrenegas assim? Estou no mato sem cachorro É hora de a onça beber água E Tu nem se mexe, Pai, meu Pai! Cago-me de tanto medo e terror E tremo tanto que me desconjunto Meu coração sai pela boca, Pai, E Tu nem aí? Estou fraco num corpo sadio Estou calado e ouço vozes Falo em línguas usando braile Mas Pai, meu Pai, Por que me pões morto?

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Um bando de cachorros loucos late, e eu nem passei;

Uma quadrilha me assalta em cada esquina

a cada instante;

Todo-mundo me encara me desafia e enfio o rabo

entre as pernas

Jogam sujo comigo que jogo limpo, Pai,Meu Pai!

Tirai esta forca de meu pescoço

Tirai meu pescoço desta espada

Arranca-me das garras deste morcego

Ó Pai, meu Pai!

Se me deres uma força

Faço um samba pra ti

Faço um carnaval danado

Gritarei teu santo nome nas arquibancadas

Como fosse um gol do Mengo

Como fosse o Timão vencendo

(sei-te Corinthians em Sampa, né não?)

Mas por que o teu silêncio

Pai, meu Pai?

Ouvi dizer

Que socorres ao morro

Que cuidas dos caídos

Que dás uma mão a quem te pede

Pai, Meu Pai! Porque me injurias

Por que a míngua?

A galera toda te faz salamaleques

A molecada da rua te algazarra

Todo mundo te zoa, te elogia...

Só pra mim não tens alegrias

Só a mim me largas nas amarguras das ruas

Leuzo de Siqueira

Pai, meu Pai!

Todos dizem que te pagam reverências

Todos batem no peito chamando-te de amigo

Todos gritam aos quatro ventos

Que és Tu quem manda, Pai.

Meu Pai!

Mas te sinto ausente, Pai

Diante da justiça esperta

Diante dos tribunais comprados

Diante da força da grana dos ricos

Diante dos gemidos quase-berro de mim teu filho

Que clamo a ti desde as profundas do inferno

Desde meu primeiro choro

Desde todo o sempre

Pai, meu Pai...

***

Judith Mata Hari de Holofernes

Secreta agente primeira espiã

Protetora das arapongas e concubinas

Judith Mata Hari de Holofernes

Que não vacila na degola

Que não tem pena nem dó de matar

Judith Joana D’Arc de Holofernes

Que trouxe à mesa o quengo sem corpo

Que cumpre com êxito a missão fatal

Judith Heroina

Judith LSD

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Judith Valente Judith Letal Holofernes que o diga Mas um bom cabrito não berra Na hora de cepar-lhe o grito

UM DEMENTE CÂNTICO DOS CÂNTICOS8 (Os enamorados)

O AMADO Minha amada é tiquitita. Dois morrinhos miúdos seus seios Como pedi-la? Como afaga-los? Eu a rapto a sequestro de seus sonhos Já que ela pede insistente a olhar-me De espreita, pela janela de seu quarto. Pela fresta da porta entreaberta Ela espreita-me. Sorri malícias e não mais criança Diz-se mulher, a Pequetita Diz-se femina, a mulhezita. Sabe-se querida por mim

8 O conjunto a seguir é uma recriação dos Cânticos dos Cânticos a

partir da tradução para o português da Bíblia Sagrada, Edições Paulinas, edição pastoral.

Leuzo de Siqueira

- Eu sempre calei sobre isto Mas não posso mais calar Pois cala em mim e fundo seu olhar pedinte. Eu a rapto eu a sequestro Cometo a loucura dos amantes alucinados Eu a rapto eu a sequestro. A AMADA Rapte-me meu quixote dantesco e viril Tenho- te olhado meu olhar mais ferino e mulher Sigo- te aos cinco infernos Persigo-te ao sétimo-céu Persigno-me em teu nobre nome Provoco-te, pois não forte, só aparentas Nada sabes ainda de meus segredos Exilo-te no mais fundo de mim Rapte-me, meu andante romeu alucinado Que Shakespeare foi mau bardo de nosso amor Que Wagner mal sabia de nós em sua ópera prima Que Camões apenas suspeitou nossa romança bela Que nem Eva nem Lilith foram mais felizes Que eu Raptada Sequestrada Violada Degredada Sob o fio de tua espada valente Que subjugo e domo e brinco e delicio Como fosse criança enfeitiçada por bruxas bondosas

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

O AMADO

Amada minha, és égua faraônica

Atrelada em meu cavalo.

Cavalgo-te

Cavalgas em mim

Domas-me.

Teus beijos tua boca

Meus beijos minha boca

Teu pescoço teus seios

Não sei me perdido

Em palavras ou verbos,

Sem rodeios os reverbero berro

Que teus beijos tua boca

São pingentes de minha língua

Toda molhada saliva

Salivas

Amada atrelada égua faraônica

CORO

Se não sabes, saiba

Linda morena mulher multicor

Cabrita no cio ovelha prenhe

Teus beijos tua boca

Meu beijo minha boca

Jade amor diamante delírios

Jasmim deliciar-te em mim

Teus beijos tua boca

DUETO

Como és bela!

Como és bela!

Teu perfume tantos cheiros

Leuzo de Siqueira

Cardamomo alfazemas alecrins Como és bela! Como és belo! Como sois! Duas bocas A mão forte pastando seios-colinas A mão delicada carícias em riste Como sois belos Tantos beijos Duas bocas... CORO Por que teu amado o mais belo Ó mais bela mulher orgulhosa? Por que te dizes perdida de amor Ó mais divina que todas as deusas? Por que conjuras forças Conjuras gênios para tê-lo aqui a teus pés Ó bela e cruel amante? A AMADA Porque este é o meu eleito Entre mil Entre miríades de astros e narcisos Porque ele tem a altura do buriti E sua seiva me arde suave Quando trepo a colher seu fruto Porque sua face me acalma acalenta Sua voz soa como sino de aldeia pequenina Blém-blém ave-marias vespertinas Porque seus braços são tenazes as quais me agarro

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Suas coxas são rochedos quais descansos

Como se às margens dum pacato riacho amigo

CORO

Por que o amor?

A MADA

Por tudo isso!

O AMADO

Teus beijos tua boca

Sabor a champanhe

Sabor tutti-frutti

Grapettes

Teus beijos tua boca

Tua saliva que rescende anis

Odores de meu tesão

Tua língua emana aromas

Teus beijos tua boca

Teu nome meu nome pronuncias

Anunciam teus beijos tua boca

Minha boca em teus beijos vagueia

Delícias

Teus beijos tua boca

Mais que vinho inebria

Embriaga teus beijos tua boca

Minha boca em teus beijos

Teus beijos minha boca

Louca grota doce serpente

Tua língua contorce

Leuzo de Siqueira

Distorce Qualquer palavra em amor Teus beijos A AMADA Sou jambo, se me quiseres Sou da cor do sol, se desejares Sou ainda a rainha de Sabah, sei lá Sou o que pretenderes Pois Teus beijos tua boca Deixam-me cega e surda sem fala Teu falo meus beijos tua boca Espada de meu guerreiro que domo maestra Sou dona de tanto amar Teus beijos tua boca Calo Grito: Amor! O AMADO Sou agreste arbusto chama Salsa ardente entre teus beijos tua boca Sou Cão Maior sou Cisne Sou opaco sol ante teus beijos tua boca Eu-universo de estrelas vadias Cadentes Candentes Incandescidas Que queimam destroem meu eu-mundo Teus beijos tua boca! A AMADA Macieira do bosque sou rude açucena

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Salsa ardente femínea em fendas gretas Tua espada teu corte não sangra Sou Alfa da Lira sou Beta da Vega Sou vesga de gozo Sou feita vulcão Sou fato sou feto sou foda De fato teus beijos tua boca Insanos me troçam quimeras Menina que sou Que sina de maravilhas Teus beijos tua boca Duas bocas quantos beijos! HOSPÍCIO Cá neste recanto o jasmim emana Seu cheiro e suas flores são belas ou frágeis Assim como a jabuticabeira que flore dois palmos adiante Zelosas enfermeiras parecem alheias Mas atentam a tudo e o caminhar dos dementes Não combina com o que penso Cá fora a luz do dia na essência que perfuma A tudo, contrasta com as masmorras Nossos quartos O jasmim é alheio às pulgas que vivem conosco Uma borboleta voa louca e com leve sabedoria Cumpre-se a si mesma Delírio.

Leuzo de Siqueira

MAR BREVE Vai navegante pelo mundo sem destino Em desalinho com, a estrela que orienta Que porto estranho a oriente te alenta Se não há porto senão sonho cristalino? Envolta em brumas duma noite inesperada, Como criança brinca solta aos quatro ventos A nau perdida entre o mar e o firmamento Tomando a rota que lhe era ignorada Qual praia perdida há neste rumo Onde sequer o horizonte existe Como certeza? IMITANÇA Confesso que imitei o Pessoa Mas, creiam, não foi à-toa. É que minha vida incerta Tem sido um longo poema em linha torta E um trem insistente me atropela A cada instante Tenho, ainda, imitado o Sá-Carneiro E no banheiro às escondidas Tenho tido suicidas recaídas Frustradas De Drumond a Shakespeare de Bandeira a Púshkin de Camões a Maiakówski...

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

A nenhum os tenho poupado Sequer ao J. de Paulo Paes Confesso que morri. ODE AO CIDADÃO COMUM Teu salgado suor cobrindo-te a face A oculta face do poder te salgando o amaro da vida Mas tua vida, nada mais que vinténs... Teu berro – simples gemido na multidão Tua atitude – um pranto talvez Calado “ Passado “ Entalando “ um nó cego na garganta Que por vezes brota passivo Por vezes vinga-se contra toda Ordem/caos vigentes Que por vezes teu punhado de amor latente Transmuta-se cruelmente em ódio calado e cego E Já não há mais deuses igrejas ou politicas Místicas ou magias Pois tua única mágoa latente Tua (im)possível lucidez É veres uns terem tanto além E aquém, você matando, morrendo Por migalhas JORNAL NACIONAL

Leuzo de Siqueira

Líbano em guerra! Treme a terra em todos os cardeais! Lamentos, lamúrias, ais... Garoa na serra: colisão (sete mortos) Em todos os portos do país, contrabandos Correrias, estivas paredistas... Os comunistas sempre o eterno perigo Reagan versus Gadaffi 0x0 Engulo minha tristeza, tanto mais Baixas salariais goela abaixo impostas Porém, um rio de néctar promete-me O próximo capitulo da novela em cena E acena-me (dolorosa ironia) O lacônico locutor solenemente: “Boa Noite!” PRIMAVERIL Estive doente de outono. Os ventos gelados vindos do sul Outra vez glaciaram meu ser habitual Mas o analista me trouxe de alfa Com sua parafernália química e verbal. Mesmo belos, os gélidos e ensolarados dias Neles já não pressentia esperanças E, feito criança, busquei aconchego Na estranha fuga dum suicídio mal Sucedido. O inverno acabou anteontem e estou (ou penso estar) curado daquele glaucoma sutil

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Que cega me daquilo que é o simples

E nada mais simples que viver.

Ou partir.

O cotidiano frugal leva-me de tempos em tempos

A não lucidez e, como que por milagre, desta vez

Os pensamentos já não me ocorrem

Como cataratas desordenadas e ansiosas.

Já consigo conciliar o descanso justo com sonhares

Oníricos e ponderar possíveis futuros de primaveras

Nas quais a felicidade seja uma possibilidade

Mais presente.

Percebo que meu olhar já enxerga os meus caminhos

Nos seus detalhes, nos seus odores,

Em suas cores plenas e primárias

E caminho por eles como fosse da primeira vez

Que ousei caminhar.

Minh’ alma inda pouco reclusa em seus porões secretos

Recusa-se à prisão de meu id, de meu ota, de meu ego

Rodopiante e axial,

Exata carrapeta irritante em meu ser desconexo.

Pressinto-me ressuscitado de meus próprios cacos

Mas sei da próxima queda.

Leuzo de Siqueira

ATO II

β

manias, depressões, delirious & cia.

“Wirf dein Shweres in die Tiefe!

Mensh, vergiss! Mensh, vergiss!

Göettlich ist des Vergessens Kunt!” (*)

F.Nietzsche Mesmo imortal, restou-me um fio de Ariadne Que me conduziria por entre meu Labirinto. Por vezes, muitas vezes, o fio se rompia E era difícil amarrar suas pontas na profunda Escuridão do meu Ser. Mas meu desespero era tanto Que criei um mito: Minha Lucidez e clamei por Pandora Clamei por Palas, mas minha voz era mouca em Verbo. Na mudez do Verbo, qual deus me criaria?

(*) “Atira tuas tristezas no Abismo! Homem, esquece! Homem, esquece!

Divina é a arte do esquecer”

Frederich Nietzsche

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

AO FINAL DAS CONTAS

No abismo do tempo

A abcissa das dores consome-se

Numa simples equação primária

Onde o abcesso dorido e pútrido

Formará o conjunto-solidão “n”

Que não redimirá os excessos/omissões

Ou mesmo lamúrias de nulo valor,

O que – se falso – resgatará tua anima

Da abissal escuridão na qual

Tentas variáveis imponderáveis

Cuja fórmula hás de criar...

Quando “x” finalmente for ≥ que tu,

Pelo exposto demonstrado,

Conclui-se que o espaço (você ∆ você)

- distância sumária entre a carrapeta e o Sol

Na equação dada - terás como singular produto real

O complemento final (360°), ou seja:

Tua ‘n’ resolução imbricada na √ tosca

Do teu ypisilônico túmulo de ouro,

Cuja única certeza é: (−1)π 3,1416 ∞

CHAMADA GERAL

Levanta, ó Grito dos Terreiros

E desce o morro com teus Orixás e teu Povo

E toma a Cidade!

Ó Rezas Sussurradas das Igrejas,

Leuzo de Siqueira

Faze-te berros até que teu deus escute E toma posição! Ó Lamento Hebreu, derrubai estas Muralhas! Sarracena Dor, suba ao Minarete, Que esta Palestina Sina; Este Desatinado Destino Nordeste Este Africano e Secular Sofrimento; Esta Judia Teimosia de Milênios Exigem: Que deste chão brote pão Que deste céu, maná Que nesta mata, leão Que p’r’esta sede, água Que p’r’este exilio, fim... Revolução! POEMA REBELDE Meu vagabundo poema não quer sutilezas Amenidades Um transviado! Meu vagabundo poema quer falar de apitos Parafusos máquinas ordens chefes Contra chefes macacões sujos de graxa Da graça das operárias ao fim do dia Da efêmera alegria do pagamento... Meu vagabundo poema quer pregar rebeldia Exige-me presente aos piquetes

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Que esclareça o mísero salário

A sumária exploração capitalista

Quer que eu grite aos quatro cantos:

“Operários de todo o mundo, uni-vos”

Mesmo sabendo que este verso não é seu

Quer que minha caneta se faça em fuzil

Quer as fábricas ocupadas e coletivas

Quer guerra civil, o sanguinário!

Meu vagabundo poema quer justiça, sargento,

Prenda-o!

SÓ SE FOR POR MÚSICA

Tem dia que estou Hendrix

Purple Haze

Noutro, estou Roberto

Detalhes tão pequenos...

Noutros dias estou eu mesmo:

Jesus, alegria dos homens

A 9ª de Beethoven

- que vozinha! a do Beethoven...

Outros dias ainda

Sou como o bem-te-vi:

Simples assim

Mas há dias em que nada muda

Na ‘quilo que concebo melodia

meloday

melodor

Leuzo de Siqueira

Nada parece ser Ou ter sido Ou será Apenas um único Dó ou ré ou mi Satisfaria Mi. OLÁ COMO VAI? Como vou? Vou por aí feito caramujo filosófico Largando gosmentos passos/traços pelo mundo: Sem pressa Sem precisão (disso não preciso) Já que a coisa é certa. Hei de chegar, pois todos chegam Todos se cumprem Como deus manda (ou desmanda) Ora acelero o passo meu rastro Mas logo me vem o juízo: Pra que, se está lá? Sempr’esteve... Não sou eu que vou mudar isto Apenas burilo o meu quinhão. E você?

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

MÁSCARA Qual das dores hoje escolherei? Aquela vestida em carmim Que faz de mim O sujeito mais perdoável? Aquela outra anil Com traços de dramalhão Com a qual me pareço palhaço? Qual dor melhor cabe em mim? Talvez a rosa romanticamente démodée E pueril... Talvez a lilás assaz sutil E fúnebre demais Ah! Aquela... Sim! Aquela oitava cor do arco-íris: A exata dor de hoje! O JOGO Vieste trazendo nos bolsos ventanias Ao abrigo dado Resolveste que amarelo Combinava melhor a mobília.

Leuzo de Siqueira

Noite pós noite pós janta Sempre um bule de café, um passatempo (fosse dama, fosse pôquer, xadrez). As tempestades vindas contigo As aplaquei com forças Em mim inertes. Insolente como só tu ousas ser Foste à cama bebericando Xerez. Quando colori de rosa o ultimo rodapé Achei por bem Xeque matar-te. SEXTA À NOITE A noite ecoa solidão. O vazio dos meus sonhos reclama prenhes: A surdez com a qual me abstraio Posta me longe da melodia do cantor E o sorriso que percebem meus olhos Não foi para mim. O garçom pensa que darei calote: Minhas vestes contrastam o ambiente E na pequena pista, aos pares, dança-se Como fosse cada acorde um fio. Marionetes. A aguardente arde-me a garganta:

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Minto a mim mesmo tanta felicidade Que chego a crê-la possível. Na manhã que está se abrindo O sol por certo brilhará Tristezas. CASTANHOLAS EM AGOSTO

lembrando Federico Garcia Lorca (sem olvidar Maiakowski)

e o quanto ser poeta pode ser perigoso. Nalguma aldeia espanhola Nalgum rincão que suspeito Lembranças afloram andaluzas e ciganas: Recordações de Garcia Já não há mais Espanhas por que lutar Nem temores em Granada Nem nunca mais ouvi castanholas: crotálo! (meus relógios nunca badalam a las cinco em punto - só teus versos guardo alguns de memória- neles ainda retinem a fuzilaria com a qual os covardes calam aos poetas) Nalguma aldeia espanhola

Leuzo de Siqueira

VISITA AO PRIMO DE RONDÔNIA

Coaxam rãs

Breu de noite estrelado

Todas as janelas brilham lamparinas

Candeeiros

Lampiões

Velas velam vespertinos cansaços

Ao canto (ao lado) espigas, enxadas, repousam

As penumbras brincam de balançar as sombras

Meu primo tem tez de matuto

A pequenita Patí, seu rebento, brinca

Com a mãe

No terreiro cai atenuada aragem:

Já os morcegos voam

Serpentes sibilam

Galinhas dormem

Uma fatia tímida de lua impõe-se sobre a mata

Para além da porta

A roça germina lenta

O fruto de nossa faina

O sereno rega a terra prenhe

Mas o tempo escoa como se não houvesse

Tempo

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Vez sim, vez não, nos trazem as brisas

O ruído das vozes dos cazebrins distantes

E tudo simula paz

Marte, avermelhado, já subiu do nascente

E nossas conversas rodopiam no passado

O sono nos chega pedindo rede

Nossos cansaços enfim repousam

Nas Malvinas, ingleses e argentinos devoram-se.

(Rondônia, maio de 1982)

SEMENTES

Trago a certeza da estrada

Que mostrarei a meu filho.

Todo o brilho da caminhada

Fica por conta do sol de hoje

Pois onde andei era inverno

E no verão, eu dormia.

Nos outonos o sol se punha

Para nascer em primaveras mortas

Cujas flores eu trouxe na mala.

Os frutos eu os comi

Na ultima noite de fome

Mas as sementes, as colhi

Com um punhado de terra boa

E estão naquela latinha escura

No fundo do meu bornal.

Leuzo de Siqueira

(Rondonia, agosto de 1982) INSÔNIA Os fantasmas que acalento, descubro - pasmo Serem eu mesmo. A noite é longa e lenta E latem cães horas a fio. Como um rio, teço memórias nos meandros Já passados e, repentino, despenco Na catarata desta hora que flui lerda. A solidão, eu descubro ainda, pesa-me concreta. O mar de gentes meus conhecidos É literalmente isso: um mar. Sequer sinto-me ilha Sequer sei-me horizonte Sequer navegante Estou naufrago a deriva E o tique-taque das horas torna ainda mais moroso O passar da noite Através da janela anseio a luz do sol Que não estou certo mais Se existe de fato. NA CLÍNICA DE REPOUSO Estou feliz: Por estar sobrevivente, talvez Enquanto miro o nascente, espero

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Por um sol que não brilhará hoje: está nublado.

Porém, mesmo este intercurso sombrio (o Sol

Ocluso) não fez calar ao pintassilgo contumaz

Que toda manhã (quando assim lhe apraz)

Vem à minha janela cantar

Talvez por estar feliz

Pois, contrariando o que prega a biologia e o bom senso,

Pressinto que este pássaro tem alma:

Cantando por instinto, o pequerrucho me acalma

Tal como fosse um diazepan de penas

A ponto de, embora nublado o céu,

Provocar o parto deste poema simplório

E ridículo por demais.

Mas é certo que estamos felizes

E isto é deveras evidente.

Leuzo de Siqueira

ATO III

Ω

mania, hipomanias, grandiloquências etç.

“sem forma revolucionaria não há arte revolucionária” Maiakowski

Aos poucos descri na Lucidez Mas meu Pensar era tudo que restara

Quando, ao acaso, encontrei a Arca de Midas. Roubei trinta moedas e subornei um deus menor

Que corrompeu outros deuses diminutos. Eis que então vim à Luz

Mas condenado inexoravelmente Ao Labirinto.

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

BABYLONYA TRANSVYADA

Sou poeta amador

Que ama flores sóis/estrelas

-Belos astros cintilantes- que ao vê-las

São feridos de cegueira meus castanhos

Estranhos olhos claros

Sou poeta amador

Que brinca com as palavras nos mais diversos sentidos

Belos sentimentos -os diversos sentidos- de fugaz

Felicidade por morar nesta São Paulo City

Xerox autenticada de babilônias

Bíblicas de futuros incertos

Sou poeta amador

Que beberica vinhos de Verona

Mesmo sabendo-se alcoólatra e excluso

Do círculo de pessoas sabiamente corretas

Sou poeta amador

Que ama notívagas criaturas

Desde vegetais inofensivos a morcego comedor

De frutinhas e bebericador de sangues

Sou poeta amador

Fingidor/imitador vil de Fernandos e pessoas

Naquilo sobre a dor alheia

Naquilo sobre a dor que minto

Naquilo que alegremente

Escondo

Leuzo de Siqueira

AQUÉM-MODERNO Como necessito dum poema sutil Tal e qual e útil como os de jornais dominiqueiros Que a muito não leio. Dado o ultimo suplemento literário lido Creio que se sofisticaram aos poetas: Quão belas são suas criptografias! Se ao contrário for, perdi o bonde dos poemas. Ou péssimo bardo sou – admito-o – pois que Careço do ser-literato (literalmente escrevendo) vigente Tais gentes de bem e bardas boas tão literatas são Clamo por um poema sutil inocente-útil Pelo qual sublime se meu bastardo não ser-bardo Em vão garimpo versos curtos rimados ritmados e incertos Quase perto de poesia, quase próximos do texto raso: Meros arremedos de antigos modos de poessentir Só poessinto coisas banais, cotidiurnas (vez ou outra, cotinoturnas) mas nunca aquelas outras Musas prenhes de filosofias criptopoéticas Que às vezes leio nas ditas-cujas dominicais poessessões GRAMÁTICAS Penso como qualquer um que pensa e Pensa-se a si mesmo um cara legal

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

Às vezes

Sou tão anormal

Que pendo pelo inglório: vomito

O que penso e falo – magoo

Aos outros poetas por não compreender lhes

O verso canônico

Penso sobre o mar de ritos

Os ditos

Os contraditos

Contra formas

Contrarrimas alexandrinas

Cezarianas

(Quem será o pai da criança?)

Foi Alexandre

O grande moleque que nunca escreveu

Um verso sequer?

Foi Julio Cezar quem determinou

Ao galope de doze pés

Terminar com doze primas?

(a rima primeira, casada e faceira

com o primo pobre de segundo grau;

dois palmos abaixo, quando a figura permite

não permita-se que o tio insira

uma rima rara, pois tudo

virará farinha dum mesmo...)

Saco!

Nessas consonâncias

Não estranhe as rimas velhas:

São, pois, a alegria das rimas pobres

Leuzo de Siqueira

Tristes Desvalidas Sem alexandrinos Ou cesarianas Ou meros neros lero-leros Sem um Pessoa que as regateie No mercado das gramáticas Onde, talvez, asmáticas Fizessem poemas. GEOGRAFIAS Desde menino, na escola Fascinou-me a geografia. Soube de cor, em pouco tempo Qual pico mais alto Qual rio mais caudaloso Qual mar nos banhava melhor. A professora encantadora Cantarolava aulas Falando de florestas imensas, Das cordilheiras depois daquelas serras. Ela nos levava pelas mãos a passear no Saara A nos perdermos temerosos em Áfricas de tarzans E nos divertia muito, iluminada pelas luzes de Paris. Porém Das geografias, a que mais me encantou Foi a colina do primeiro seio A seiva da grota do primeiro beijo A relva do púbis da primeira amada As colunas de Hercules da primeira puta

Estações – Utopias Bipolares em Prosa e Verso – um depoimento

A cachoeira leitosa e quente do primeiro gozo.

POEMA FINGIDO

Quero um poema que finja alegrias.

Que transborde o mais belo dia ensolarado

transpondo as copas multicolores

de primaveras acopladas ao mais

anil céu de brigadeiro na mais calma

alameda retilineamente dividida

em quarteirões cujos quintais não

sejam separados por muros

e as pessoas, cordiais, ao cruzarem

meu caminho, respondam ao meu ancho

bom dia, senhor! bom dia, senhora!

Quero um poema que minta alegrias.

Que o mesmo dia esteticamente perfeito

entre favela adentro aquecendo por dentro

os barracos e deixando em claras cores

a pobreza da mobília, a ausência

da dispensa, o canto dos alimentos

com os potes do essencial pela metade

as crianças barulhando pelos becos

brincando de mocinho e bandido

e os bandidos cuidando dos arsenais;

os traficantes, emocionados e ensolarados

distribuindo o pó-dos-sonhos

gratuitamente ao alegre viciado;

o viciado, viajando à velocidade compatível

com esta lua, cumprimentando ao guardião

da lei que – neste dia excepcionalmente

será um bob tupiniquim: de cassetetes apenas

Leuzo de Siqueira

como em Londres, Londonderry ou Yorkshire Quero um poema cinicamente alegre. Que em todas as primeiras capas de jornais a manchete seja em caixa alta: FOI DECRETADA A FELICIDADE GERAL DA NAÇÃO! por votação esmagadora da maioria pela bancada governamental da oposição e mais: decreta-se feriado nacional pois o mais brilhante dia do ano comoveu ao rico que enxergou ao pobre e não o atropelou com seu BMW e o pobre, agradecido, diz polido e contentado -adesculpa aí doutor, o meu discuido que eu tava na faixa dos pedestres e..... Que um extraterrestre aproveitando o brigadeiro céu desça sua nave em plena Sé e diga aos meninos menores e abandonados : larguem já esta cola! Vamos a alfa de Lira que lá realmente delira-se muito sem precisar ao menos de cola ou pedra ou coca: lá tem escolas ideais com merendas especiais toda criança tem um único pai que se chama Mãe Natureza e todas as mesas são fartas e todos os quereres realizáveis que em Lira, a milênios deus recriou outra raça humana após o ultimo terráqueo peita-lo, a conselho de Nietzsche. Meu poema tem que ser alegre de

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fantasias lúdicas

publicas declarações oficiais de alegria mesmo:

bom dia, senhora!

bom dia, senhor!

que sol maravilhoso, senhora!

que luz estupenda, senhor!

quanta riqueza, senhora!

quanta miséria, senhor!

quanta felicidade no ar, pois não, senhora?

quanta tristeza no chão, pois não senhor?

ah, não, senhora! Os jornais...

mentem, senhor, os jornais pois

tudo não passa do delírio dum poeta

louco que pulou do Chá a pouco, não sabia?

e foi, senhora?...mas com um sol destes?

que coragem, pois não senhor?

ou covardia, pois não sinhá?

TIPOGRAFIA

Tipo arial

Tipo ariano puro

Tipo lucida lúcida

Tipo comic sans chance

Tipo alucinado

Que na primeira esquina não hesitará

Em acender e apertar

O gatilho

Porque

Outra voz qualquer incomoda

E seu jornal é a voz do partido

Leuzo de Siqueira

Que prega arrebentar as pregas Dos tipos old times Nem que pra isso Seu tipo corrompa a linguagem E torne outra vez suave a palavra Ditadura -Goebbels foi grande mestre nisto. OS PODERES Aquele poeta lamentou em versos O seu país que cantei em prosa E falava das tardes cinzentas e frias Do vazio da cidadania Da inutilidade do grito Dos muros inarredáveis da prisão siberiana Do seu desespero quanto ao futuro Do antegozo de ver a Lua pela pequena janela Além do muro, além da Terra Livre ainda da mão humana... Aquele poeta chorou clamando justiça! Desde então meu canto está calado Desolou-se Assustou-se incrédulo pelo poeta aprisionado Pelas semelhanças de dores Pelo xeque mate em suas crenças Pela bizarrice humana. Qual o poema permitido? Qual?

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NA PRAÇA DA SÉ As madres vexadas As putas sorrindo barulhando As putas defronte a catedral Por poucas patacas oferecidas Aquelas, Esposas de deus As outras, Amigas apenas Os homens reverentes com as madres As madres piedosas com as putas E deus dando risadas pra caralho

TORVELINHOS Minh ’alma Momentos atlânticos Momentos pacíficos Momentos índicos de tormentas vãs Maremotos tornados tempestades Minh ‘alma Por vezes serena como a calmaria de Cabral A levar meus sonhos a costas bravias desconhecidas; Por vezes louca navegante a ignorar constelações Sequer ciente do que orienta aquela mais bela estrela Num rumo que não traçou

Leuzo de Siqueira

Minh ‘alma alucinada e interrogativa dos segredos De serem as dores duns as mesmas dores alheias Com vestimentas várias - sempre várias... Minh ‘alma acabrunhada por não saber políticas; Medrosa em praticar o bem, Covarde em abraçar o mal Esta alma em torvelinhos de memórias remotas Que nada revelam, pressente, contudo Deuses bonachões e alheios ao fado humano Esta alma, ora ímpia ora crédula naquilo pressentido Não ser sabe criatura ou criadora: Explode em viagens siderais ou anula-se por tempos Ressurgindo fênix quando menos a espero Esta alma habitante em mim É meu equidistante equador na sua lucidez possível Ou exatamente o contrário. VÍCIOS E VIRTUDES Pleno pássaro Voo meus sonhos ( os mais malucos quão possam ser) No Ser que se acostumou habitar em mim A quem digo “eu” E as pessoas o chamam por outros nomes Alheios e vagos. Pleno pássaro em voo Feliz (o pássaro) por sentir-se narciso descido Ao quinto inferno (hades) das agonias amaras Porém belas, pois que vida, pois que fado.

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Pássaro feliz e pleno em voo (vertigem)

Por aperceber-se prenhe de lucidezes várias

Que o bando jamais alçará senão como focos dispersos

À maneira de como enxerga o mundo os mosquitos:

Mil facetas a formarem única imagem ilusória do real

Pleno pássaro feliz em voo (vertigem):

as possibilidades dos rumos

São variáveis infinitas e mal compensa

Orientar-se apenas pelo sol

- orienta-se pelo que supõe o norte, naquilo que

suspeita sul-

Pois tudo são orientes e voar é premência

Pássaro feliz por plenos desejos sentidos em voo rasante

Sobre olhares de outros pássaros felizes

E plenos de orientes outros:

Um sonhar dos deuses talvez seja o bando em realidade

Pássaro fulguroso em voo estratosférico

Que mal concatena sua própria rota

E roto e cansado pelo trajeto

Pousa magoado consigo mesmo

Pois compreende ser belo voar: há possibilidades

De o voo ser substantivo

Porem, narciso e moderno

Sonha o pássaro penetrar o oceano das formas

Fecundando-o com o próprio cadáver

Transformando-se no pão-sustento de outros seres

(talvez marinhos talvez silvestres talvez humanos)

Cumprindo, virtuoso, a sina viciosa de pássaro em voo.

Leuzo de Siqueira

Qual modo pássaros e voos serão libertos? HOSPÍCIO REVISITADO Choro Porque preso Porque leso Porque louco Choro Porque clamo Porque bramo Porque fremo Choro Por incapaz de traduzir meu próprio pranto Por amigos idos em torturas prisões sumiços sumários Por amores não retribuídos por mea-culpa Choro Porque alucinado sonho redimir o mundo; Hipocritamente eu que nem cristão Islamita ou semelhanças... Ateu, a nada me ato, pendido em crenças que pouco Vingaram (vingarão!) Choro porque inda a pouco mirei o céu E vi o Sol além do Sol, sonhei galáxias. Concebi

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O universo e o efeito, inversamente, fizeram-me Átomo de átomo Choro Porque esta paz aparente é mentira, Por esta (in) felicidade fugaz, Por saber a paz o fim. ALVORADA O pipilar começa às quatro da manhã! Vem o sanhaço Vem o sabiá Vem a corruíra Vem a saracura Vem passarinho que sequer nomeio: Desconheço-os. Mas ‘t’ão’í os tico-ticos Os tizius Os pardais As maritacas arruaceiras Os bem-te-vis escandalosos As pombinhas e os raios-que-as-parta ! Quero dormir...! Que passei a noite em claro Filosofando. APOCALIPSE Na madrugada, na mais inesperada delas; Não cônscio se sonho ou pesadelo profundo;

Leuzo de Siqueira

Súbito como um desmantelo de milagre ou morte, No teu mais profundo ser brota uma aparente verdade... Atordoado com a cascata de si mesmo revelada Tão despudoramente e com traços tão finos mas Brutos a um só tempo, refletindo-te tal espelho mágico Que já em nada te reconheces (Sabes bem que teu apocalipse é fiel ao que és.) Saltas da cama sem rumo e com nós na garganta Levantas e chora feito menino ou adulto desesperado Na vã tentativa de lavardes tua alma Que não supunhas tão tisnada. DELÍRIO À MODA DE GODOT

Lembrando Samuel Beckett Eu passo Tu passas Deus? – está passando Passas tu Passo eu seguindo teu passar e Dia após dia, a nos perseguir os passos Por nós passa deus e tão humanamente Como fosse tu ou eu passando A cada sol erguido ou posto Deus mostra nossos mesmos rostos rotos Tão indeléveis e indolores Feito um cristo medieval Dum santo sudário qualquer: A face aparentemente tristonha

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Por sua morte não morte, pois

Ressurreto e fúnebre demais;

Com face de quem cumpriu-se a si mesmo

A despeito da humana cobardia

- Pai, porque me abandonastes?

Meu passo lento

Como me é dado caminhar

Segue à risca teu ritmo moroso

Já não sabendo nós

Quem se está a seguir:

A cada obstáculo posto

Paramos como se esperássemos

Pelas passadas de Deus.

NA BLITZ

Pelas porradas que me dás

(desnecessárias)

Truculentamente esclarecedoras

(estarreces, terrorizas)

Impõe-se tua Ordem!

“não sabes ser proibido por que

usas?...” – Gosto, respondo

E dás tanta pancada

Como se o pocochito de cânhamo

Que trago comigo fosse a mais abjeta

Ignomínia

Quando vês meu livro ( que rebuscas)

Apodera-te a ira.

Pergunto-te tua patente

Leuzo de Siqueira

Espancas-me. Ris quando sangrando berro Que não sou o que acusas: “vagabundo!” Cuspo sangue e saliva. Grito: ”sou poeta! - “poeta de porra”, bramas aos céus Com teu tresoitão na minha cara. Abusas à toa, Covardemente crias o poema. O LOUCO O louco sonhava. Em delírio Proclamava: Paz na Terra! Final das Guerras, Da fome, também Amém! Os lúcidos riam-se. E era como se vissem um palhaço; Como fosse um circo, a rua. Era noite, e a lua um disco distante – Inspirava ao maluco. Maloqueiro! Conforme diziam: maconheiro! Que embebido em fantasias, Cantou uma ária.

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Romântico, o louco.

Escandalosamente suicida:

Subiu na torre da igreja

Pediu cerveja

Afirmou-se Cristo,

Século vinte – bobagens-.

Escarcéu.

Alguém chamou aos bombeiros.

Camisa-de-força;

Hospício.

Normalidades.

ANTROPOFAGIADO

Nasci no sertão do Pernambuco.

Por contingências áridas fui migrado inda de colo

Para esta terra de delicias (minha alter-babilônia)

Na qual cresci ouvindo e sentindo cheiros

e sabores peculiares:

Jabá buchada de bode mungunzá

Xótis xaxado baião

-a palavra pelo fio do bigode: cabra macho não geme;

A família (entes parentes aderentes agregados) reunida;

O sotaque motivo de zomba;

-Mangaram de mim quando fui à escola!

Mas sobrevivi.

Leuzo de Siqueira

Como os antigos sábios de Sião às margens do Eufrates Olhei o fétido Tietê e sonhei minha Jerusalém perdida nas caatingas. Meu pai contou que nossa casa Tinha cercas de mandacarus; Que meu avô viera do Alto Sertão Voando num Pavão Misterioso E caçava cangaceiros com pitombas. Dizia também que minha avó era mulher valente Mas tudo isto eram sonhos de meu pai. Sua sina foi ser carpinteiro até demolir-se nordestino No destino comum a nossa gente: Paulicéia rumo de povos e sonhos felizes: estranho sertão De estanho chumbo e cimento. Quanto a mim, adotei todos os deuses desta terra E tornei-me fábula, Rábula de meus Antigos. Sobrevivo. MÃE NILA Minha vozinha tinha A pele esturricada num corpo franzino Que varou tempos de cangaços Lavrando aceiros inclementes Sob um sol incréu Da força da mulher. Minha vozinha tinha O olhar opaco e miúdo das carpideiras Que choravam os seus e os mortos alheios

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Pois que mulher, antes de tudo

Provê a vida, apesar do sertão.

Minha vozinha tão miúda

Em seu caixão

Parecia

Nossa Senhora. Seu padim padi ciço

Bem poderia ressuscitá-la!

MARIA E JOSÉ

Na noite seca e serena

Cortando a caatinga

José em seu cavalo, em outro

Maria comigo ao colo

Negavam-me à morte.

A fome vingara nordestina

Levando crianças

Aos coros angelicais

Às pencas aos montes milhares

Tantas artimanhas as da fome

Que cai de sarampo e sapinho

Mas José não se deu por achado:

Vendeu as poucas galinhas a quem pôde;

Maria, seus bordados de casamento.

Com os dois cavalos emprestados e um doutor

Escaparam-me de Herodes

José, o visionário, ao ver-me salvo

Previu ser longa a seca e medonha:

C’os trastes que tinha mais Maria e eu

Leuzo de Siqueira

Atravessamos o São Francisco em Petrolina Rumo ao sul. Maravilha! O CURA A VILA na vila tinha uma igreja a igreja tinha fiéis o padre que dizia missas juan, su nombre e quando dos sétimos-dias da morte dum cristão qualquer seu sermão era latim: resquiecat in pace consolando aos defuntos e os vivos respondiam num longo cantochão gregoriano: aaaaaaammméeeeeeeeeeiiiiimmmmm depois, na sacristia dom juan comia os coroinhas mais bobinhos os espertos – todos viraram ou ateus ou malucos de hospício quando não, tarados mas o bom juan virou nome de rua, com placa grudada

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bem no muro da escola infantil

estadual

PASSEIO POR SÃO PAULO

Há tanto tempo eu não via

Tua concretude aço-mutante.

Há muito eu não reparava

Na singeleza de tuas meninas

Na belezura moleca de teus rapazes

No teu povo ligeiro, embora arisco

E arrisco um dito: por vez inamistoso, quando

Visto de longe, mas de pacatez urbana

O teu povo sui-generis quando de perto.

A muito te larguei para trás

Em busca de buenos aires outros

Que espairecessem minhas ideias

Já um tanto tortas por tua causa;

Um recanto no qual esquecesse teus cabarés

Tua folia, teu carnaval mais cinzas que são-joões

Tua desajeitada grandeza espalhafatosa e multilíngue:

Nada de ti levei na bagagem exceto as lembranças úteis.

Mutei-me em pacato caipira pitador de fumo de rolo

E uso às vezes a paia do mi’o pra escrever versos rudes

Enquanto cuspo a saliva nicotizada sem pudor algum

Pigarreando o sarro amargo sem medo do enfisema.

Tanto tempo faz

Que meu sotaque arredondou os erres

E meu modo carioquês-pernambucano de falar

Leuzo de Siqueira

Não combina muito bem com o prosear sem pressa No calor das noites estreladas espalhadas pelas calçadas. Já não me visto de terno nem gravata E na lojinha do turco Ahmed compro minhas calças E meu sapato de xópingue, troquei-os por botinas de sete léguas Que quando fura a sola de tanto que flano pra e pra cá O Seu Quinzim Sapateiro dá um jeito bem arremendado. Minha casa não tem grades e meu cão É meu guarda noturno: Se latir não é sinal de perigo, mas uma cadela no cio. Se rosnar, é gato. Mesmo assim tenho a plaquinha: Cão Valente. Valente é como ele atende. Mas nada deste "sonho lindo de cidade" Apaga a saudade de "tuas vielas, vilas, filas, favelas" Nas quais perambulei quando jovenzito com os amigos Buscando nosso baseadinho, Pagodeando sambas incríveis E tentando por o povo contra os generais e conseguindo. Tenho até saudades dos corrós de quando a ROTA9 Indignada com nosso perfume, nos levava ao delegado Certa do flagrante delito e da lei cumprida, Da ordem em ordem Mas o doutor delegado sempre nos empurrava o bagulho Garganta abaixo dizendo que tinha mais o que fazer: Caçar bandidos!

9 Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, ROTA, tropa de elite da polícia

militar paulista notória no passado por se envolver em execuções sumárias ao abordar suspeitos.

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Sonho ainda em alta velocidade pelas Marginais;

Capoto legal no túnel da Paulista;

Obedeço aos sinais na Consolação;

Paquero nos inferninhos da Augusta

E amanheço o dia na Boca do Lixo

Bebericando cachaça vagabunda

Parolando com putas baratas, operários bêbados

Travestis convictos de suas frescuras clown

E acordo com o passaredo estridente deste meu interior.

"Por mais distante

Teu errante poeta e navegante”

DOM MOLINOS DE LA SAMPA

De volta a minha pequerrucha e pacata vila-cidade

Levo, na bagagem, feridas que não trouxe quando vim

Quando sai estrada afora, mundo adentro

Sei que sonhava buscando minha babilônia perfeita

Nesta metropolessampa endoidecida/endoidecidos

Meus quixotes se libertaram tornando-se

Napoleões enfurecidos

Lutei batalhas já perdidas a muito (eu não sabia)

E todas as dulcinéias sorriam desdenhosas para mim

Piscavam, as dulcinéias, maliciosas para meus napoleões

Enquanto d’outro lado da rua

Eu contava aviões (ora, direis!)

Por fim medraram todos os dragões que plantei

Leuzo de Siqueira

Sem o saber E suas labaredas arderam-me tanto na alma Que resolvi deletá-la, a alma Homem de pedra, mudo, cegado, fizeram-me estátua nua E expuseram-me no Parque da Água Branca Para alegria da molecada ruidosa E regozijo dos homens de bem e seus espíritos (Que porcos!) Amanhã me espera o caminho da volta sucinta E minha bagagem já guarda os cacos das dores Que consegui juntar a muito custo Por entre os passantes apressados e alheios Não direi adeus a ninguém, pois ninguém me conheceu. E foi bom assim: Eu lá caipira e matuto Por cá estas gentes em suas alturas melindrosas A cidade é boa e é feita de cimento e pedra. Já seu povo tem mil faces e é feito de solidão e ermos Mesmo que nas periferias a alegria contagie ao estrangeiro Parto feliz sim E conto aos quatro ventos aos quatro cantos Que minha amada já telegrafou em MSN Dizendo que me ama E a mim, só isto já me basta!

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METAMORFOSE

mas

quando dei-me conta

eu já sorria teu sorriso

sonhava os teus sonhos

andava os teus passos

eram meus teus amores e teus mortos

visitavam-me noturnos.

eu já não tinha mais meus próprios

cantos

gestos

gostos

falas

e certamente era tuia a certeza dos meus

desesperos...

ainda assim não era minha a tua voz mansa

que me roubava a essência

a esperança que tudo jamais findasse.

e não era a minha a voz que disse

adeus!

DIVÓRCIO – CENA FINAL

Tá, e pega tuas coisas...

Tá,

Não se fala mais nisso!

Leuzo de Siqueira

Deixa meus óculos em cima da mesa -não mexe nelas!..- Minhas playboys são inocentes! Você não quis isso? Não!? Tá Aconteceu... Eu que fiz você perder Todo esse tempo...!!!?...tá... Querias o que? Theresa de Calcutah!!!? Ora, vai...! Tá Não Esse aí não ! Esse aí é meu. Lembra não? Foi lá naquela exposição... É Naquela sim! Isto aí também não! É meu. O teu é aquele ali, ó...

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Vai...

Vai com deus!

Que?!!...

Enfiar onde?... Tá vendo!!!?

TESTAMENTO

Dentre as coisas que prezo

Uma é ver o sol raiar.

As outras são os pequenos prazeres

Que disto decorrem

Assim como a visita amiga inesperada:

Um beija-flor que, entrando pela casa

Não acha a saída.

Dentre as coisas que me espantam, uma é ser humano.

Porem, entre todas, fascina-me a companheira

A zangar-se pelas besteirinhas e pecadilhos meus

Mas dormindo com meus sonhos

Minhas dores

Meus humores

Por vezes pedindo um coçar-lhe as costas

Por vezes, a coçar as minhas.

Dentre os jogos que joguei e jogo

Leuzo de Siqueira

Um está certo que perderei em dado instante: Isto carece dum sumário testamento. Os bens materiais que por fortuna amealhei Resumem-se no conjunto essencial ao homem comum. Os de grande valor, os larguei por inapetência: Todo meu tesouro, inconversível em moeda de troca Não passa dum calhamaço male-male garatujado Com poemas da vida toda. Escritos jamais lidos À viúva deixo toda poesia possível de meu passamento E a chatice de receber pêsames E aturar a monotonia do velório: - dirão belas coisas, elogios ao defunto- Como fossem verdades sagradas. Aos amigos O lamento (deles) De a turma ficar cada vez mais reduzida. CINZAS E POMBAS Amanhã, Calado (será fato) Sequer farei poemas. Espero apenas (por ora) que pombas pacíficas pousem Por sobre onde me morrerei. Sobre onde, voltado ao que fui ( aquilo que possa pensar

ter sido) Fluirei pelos tempos dos tempos – ou como queiras: Pela equação obrigatória e matemática, ao nada. Do universo que contemplei por um lapso (isto a que dizes vida) Só terei guardado coisas boas: Promessas do paraíso possível e pagado Conquistado com pungente humildade cristã;

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Alegrias dum inferno medonho e tão simples

Que pecado seria não tê-lo provado,

E tristezas também.

Amanhã

Quando calado e cinzas apenas

As pombas e meus poemas

Vingarão a dor.

Leuzo de Siqueira

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UMA NOTA EXPLICATIVA

Apresento aqui poemas escrevinhados e burilados durante um longo período de três décadas, em momentos diversos, entre um surto e outro do transtorno afetivo bipolar que me acomete desde a infância.

Ser portador do TAB-Transtorno de Afeto Bipolar é como ser um pai-de-santo leigo que nunca sabe qual a entidade que incorporará: quando pensa que “agora faço e aconteço, pois sou o todo poderoso” logo em alguns dias ou poucos meses a entidade Depressão se impõe, tornando tudo cinza e o mundo sem sentido.

Desta forma, talvez meu livro seja mais apreciado pelos psicólogos do que pelos amantes da poesia: uso e abuso da linguagem um tanto incoerente dos estados psicóticos que de tempos em tempos vivencio, pois muitos dos escritos surgiram durante os ciclos de depressão ou mania.

Ao bem da verdade, já tive um patrão que dizia preferir ver-me acelerado na hipomania porque eu ficava eloquente demais e vendia como se fosse o maior vendedor do mundo. Só que em meu estado normal, até sou retraído, o que me leva a uma timidez espantosa.

As pessoas que convivem ou conviveram comigo percebem facilmente que não sou um sujeito “padrão”.

Por não ser um sujeito “padrão, cara legal, centrado, etc. e tal”, percebo o preconceito, velado ou manifesto, em relação aos “disturbados mentais”. Por estas e outras, pretendo este livro um grito contra a miséria do preconceito e também um berro raivoso de denuncia de um status-qüo que hipocritamente esconde seus “loucos” como se ainda

Leuzo de Siqueira

estivéssemos na Idade Média. Somos nós, os portadores de distúrbios mentais que

vivemos nestes tempos modernos, sujeitos de “muita sorte” de estarmos “loucos” do século XXI, mesmo que sob descasos e preconceitos sociais, pois que na Idade Média já teríamos sido, muitos de nós, ou queimados na fogueira ou simplesmente empalado em praça pública com um espeto entrando-nos pelo reto, numa sentença de morte cuja acusação seria talvez “praticâncias de bruxarias”.

Não há na loucura nenhum brilho, nenhum conhecimento esotérico, nenhuma inocência. Só há sofrimentos e muita dor quando se perde a lucidez e o camarada encontra-se num hospício suplicando desesperadamente a ajuda do psiquiatra para que lhe tire aquela agonia indescritível e desesperadora.

Tive conhecimento do que era uma “clinica” ou “casa de saúde”, eufemismos bestas para manicômio (quase sempre acompanhados de um nome de um santo qualquer) já no inicio da década de setenta quando se iniciava minha adolescência.

Lembro-me de certa “Clinica de Repouso Congonhas” na qual fui apresentado pela primeira vez, aos treze anos de idade, a um QF, outro eufemismo que nas penitenciárias significa cela de isolamento e que é usada quando o preso não é um bom menino.

O QF (Quarto Forte) desta clinica era um cubículo mal cheiroso e escuro, com uma pequena entrada para o ar e sem banheiro, onde os “pacientes” traquinas ficavam um ou dois dias inteiros de castigo. Como eu saquei logo o lance, procurei ser o mais comportado e puxa saco possível de enfermeiros e serventes. Desta forma conheci o tal QF por dentro quando, na condição de “ajudante do enfermeiro”, eu levava o prato de lavagem para o infeliz transgressor que estava ali sendo corrigido.

No inicio dos anos oitenta tive o privilégio duvidoso

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de ser hóspede várias vezes destes QF’s, portanto eu já não era mais um bom mocinho e sim um “maluco” a ser contido.

A minha ladainha pelas “casas de saúde” até os dias atuais permitiu que eu conhecesse com desprazer, por óbvio, uma dezena dessas casas, nas quais repetidamente reencontrava meus “colegas” de infortúnio. E fui um dos menos “apenados”. Conheço vários “colegas” cuja somatória de internações supera a minha com louvores.

Porém, isto não quer dizer que eu considere o desmanche da “indústria dos manicômios” uma coisa simples assim. Deve-se de fato extingui-los, e é positivo tal desmanche, porém não se criou uma alternativa com leitos hospitalares psiquiátricos necessários, a meu ver, em casos críticos.

Um bipolar, quando no surto maníaco e com nítida nuance psicótica, faz coisas que o cão duvida, pondo em risco sua vida e a vida de outras pessoas.

E isto carece de uma reflexão maior quanto aos cuidados hospitalares e a disponibilidade de leitos. Friso: leitos hospitalares e não vagas em manicômios.

Acho passível de discussão a concepção, que creio antipsiquiátrica, que professa a liberdade do “louco vivenciar plenamente sua loucura”.

Creio haver aí uma confusão entre loucura filosófica e romântica e uma afecção mental que talvez tenha origem numa patologia do cérebro. Talvez algo como uma hiperglicemia para um diabético.

Que ocorreram avanços na abordagem da questão, é fato.

Até o nome do mal mudou de Psicose Maníaco Depressiva, altamente pejorativo, para a atual nomenclatura do Código Internacional de Doenças Mentais: Transtorno Afetivo Bipolar o que é mais palatável e científico.

Com a lei federal de nº 10.126, de 6 de abril de 2002,

Leuzo de Siqueira

que instituiu a Reforma Psiquiátrica, ocorreu um avanço na questão dos direitos dos portadores de distúrbios psiquiátricos, mas acredito que o debate ainda é necessário para sanar diversas lacunas na aplicação efetiva da legislação pertinente.

Em 1994, após um longo período sem internações, surtei seriamente. Na emergência, fui atendido no Pronto Socorro de Pirituba, na Capital paulista.

Na ocasião, um breve dialogo entre minha mulher e o psiquiatra que me atendia, deixou patente o quanto o “poder de compra” de um paciente é a medida dum tratamento decente.

“Ah, quando entra dinheiro na jogada a coisa muda de figura. Por que a senhora não falou antes?”, perguntou à minha companheira o psiquiatra que me atendeu quando soube que a empresa que eu trabalhava pagaria pelo tratamento. Até aquele momento eu já estava havia quatro dias naquele P.S. sem que houvesse no sistema público uma vaga para mim.

O psiquiatra nos indicou um hospital de uma categoria que até então eu não conhecia. Havia um tratamento mais humanizado, poucos pacientes, quartos com quatro camas, chuveiros e armários. As refeições eram fartas. Coisas que até ali eu não vira em hospitais do SUS.

Não era um hotel cinco estrelas, mas em relação aos tratamentos que eu recebera até aquele momento, posso dizer que usufrui dum paraíso menos amaldiçoado.

Foi nestas condições que fui internado no hospital da Ordem Hospitaleira São João de Deus, no bairro do Jaraguá, na capital de São Paulo, dirigido por religiosos católicos. Lá conheci a Dra. S., com quem fiz psicanálise durante seis anos.

A última vez que estive neste hospital como paciente foi em 1999. Infelizmente tive que retornar ao hospital agora em 2011 como visitante de um parente amado lá internado

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pelo SUS, e a realidade pareceu-me outra quando conversei com vários pacientes e seus familiares. Não estou mais certo que seja um hospital diferente dos outros do SUS.

Quanto aos poemas, comecei a escrevê-los logo após minha saída do Hospital Coração de Jesus, em maio de 1980, - os internos, com toda razão, chamavam aquele lugar de Coração do Diabo. Eu estivera psicótico e interno neste e em outro hospital (Casa de Saúde São Bernardo, em frente à Scania Saab, em São Bernardo do Campo) durante três meses e quinze dias.

Com o surto maníaco, minha vida pessoal se desorganizara tremendamente e talvez como uma tábua-de-salvação passei a escrever poesias, já que desde criança achava bonita e romântica a palavra poeta. Escrevia e os guardava.

Todo o material que reuni de 1980 a 2003 só não se perdeu por que minha companheira o resgatou do lixo no qual eu jogara minhas coisas que tivessem qualquer vinculo com o passado.

Eu (surtado, obviamente) acreditava na ocasião que, os poemas, principalmente, eram coisas de adolescente romântico que vivenciou a época braba da ditadura militar, militou em movimentos populares de resistência, que não entendera patavina do que Marx ou Lenine teorizaram e que se doou com uma fé religiosa e sectária a uma utópica revolução que até hoje ainda não aconteceu. Eu guardara panfletos, filipetas, broches do partido, jornais nos quais aparecia meu nome (Marx não explica, mas Freud parece-me que sim); já não possuía mais minha bibliotecazinha de “livros de esquerda”, que vendi a quilo.

O mérito de eu estar apresentando este livro é todo de minha companheira que, ao longo dos últimos 23 anos tem sido amorosamente mulher e amiga.

Já não havendo méritos literários ou artísticos nesta

Leuzo de Siqueira

obra, assumo toda culpa dada minha limitação com a língua portuguesa escrita.

Acredito que a discussão política sobre os programas oficiais de saúde pública mental, com a participação militante de pacientes e familiares, seja o melhor caminho para garantir que se dê voz e direitos a um imenso contingente que ainda permanece estigmatizado e à margem da sociedade, apesar de tantas leis e mobilizações dos envolvidos no tema.

No que toca à vida privada, o maior empecilho ainda é o preconceito, inclusive o que provém da parte “normal” da família.

Abril de 2011

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“DECIFRO-ME, OU DEVORO-ME”

Dentre os sintomas que alguém com Transtorno Bipolar manifesta em sua fase de mania, um deles é o imenso desejo de contar sua história através de um livro. O grande problema é que geralmente o sujeito já perdeu toda a capacidade de comunicação objetiva e tudo o que lê (quando lê), escreve (quando escreve) ou fala (fala muito) é como se fosse uma linguagem cifrada, a que só ele próprio tem a chave, e que, além de louco, ele é seu próprio enigma.

Quando a mania chega às raias das alucinações persecutórias, auditivas ou visuais, o camarada já entrou num processo de total ausência-de-si; sente-se um deus (senão o Próprio) ou um simples marciano. Todo o seu discurso é em prol de suas razões; suas verdades são incontestes, pois onisciente, onipresente e onipotente qualquer mensagem que lhe chame a atenção é a resposta pra seu grande enigma: ele, agora Deus, revolucionará o mundo à sua imagem e semelhança! Só que sua imagem e semelhança estão um tanto borradas para os padrões normais de qualidade divina.

O comercial de refrigerante que passa na televisão, no rádio ou estampado nos outdoors, nas placas das lojas e mesmo o noticiário dos jornais, tudo foi criado especialmente para ele, só para ele, e os bordões das mensagens “seja feliz bebendo isso ou aquilo”; ou no rádio, “esta música é para você”, mandado pela Fulaninha - ele conhece Fulaninhas,

Leuzo de Siqueira

Fulaninha lembrou-se dele pela rádio, o que confirma sua suspeita de que a felicidade (?) que sente é plena e divina: ele está no caminho certo, já que há poucos minutos atrás ele “bebeu aquilo”; até anteontem ele era um militante do Hamas – a noticia do jornal confirma que Abel Nassif e alguns de seus companheiros morreram num ataque israelense e que ele e Camal eram de fato muito amigos.

Até anteontem ele alucinava-se em revoluções grandiosas que trariam a paz final à humanidade.

Ele certo que é o Messias retornado, o Buda reencarnado, o deus cor-de-ouro das profecias indígenas pré-colombianas. E, por que não, ele também é Cristóvão Colombo, ou Pedro Alvares Cabra, ora essa!

De posse de tanta divindade, ele já não mais morrerá, pois esteve morto e agora ressurreto, existirá para todo o sempre.

Neste instante, já não há mais a noção do passar-do-tempo: o tempo tem outra dinâmica estranha. Ora é estático, ora veloz (tanto quanto seus próprios pensamentos). A contradição: chega ele à conclusão de que a verdadeira morte é a eternidade e, (ele é um sábio, sabiam?), pela lógica, já não há mais por que ter tesão, fome, pressa, planos futuros.

Agora, ele é o único ser que importa e o resto da humanidade, apenas emanação dadivosa de sua divindade. Ele, até ontem, também era apenas um alguém no rebanho humano. Hoje, sem o saber, ele é apenas o que é: um ser afetado pela loucura.

Diagnosticar um paciente como Bipolar ainda hoje é uma tarefa complicada, segundo alguns psiquiatras. Imaginemos então como era em meados da década de setenta do século passado quando, aos quatorze anos, uma criança é internada em um hospício sob a fachada de uma “clínica de repouso para menores” e conhece o que representa, pela primeira vez, um QF – quarto forte,

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apertado, com uma pequena passagem para o ar e onde eram trancados os mais “agitados” ou “desobedientes” ; fica sabendo o que é um eletrochoque e ciente de que o eletrochoque poderá ser usado “em seu favor” e por fim, é diagnosticado como tendo um “comportamento antissocial”.

Obvio que, por instinto, aquela criança tentará de todas as formas a fuga daquela “prisão” travestida em hospital e alguns até conseguirão fugir, burlando a vigilância de zelosos “enfermeiros” guarda-pátios, valendo-se de sua molequice em pular muros e cercas altas.

Continuemos então a imaginar esta criança tendo “crises periódicas” e os psiquiatras da época internando-a já em outros “hospitais” que recebiam jovens adolescentes e adultos num mesmo balaio, como por exemplo, no extinto INSA- Instituto de Neuropsiquiatria de São Paulo, no nobre bairro do Morumbi (Real Parque, defronte onde funcionava a Kodak do Brasil), em São Paulo.

Sobre esta instituição já extinta, pairam suspeitas de ter mantido prisioneiros da ditadura sob a rubrica de “doentes mentais”. Poucos são os profissionais da área que gostam de tocar no assunto, mas posso afirmar, sob juramento, que pelo menos um “comunista”, na linguagem do enfermeiro que nos assistia, foi ”pacificado” à base de eletrochoques.

Tratava-se, segundo este enfermeiro que realizava plantões noturnos entre julho e agosto de 1974, de um jornalista gaúcho, a quem chamavam de Geraldo. Ele era magro, alto, cabelo bem negro e rosto afilado e aparentava cerca de 40 anos. Quando saía da sessão de eletroterapia apresentava ser senil, com o olhar perdido e babando, mal conseguindo pronunciar as palavras ou alimentar-se sozinho. Convivi com a presença do Geraldo, longos sessenta dias.

Voltando à nossa criança que agora já é um

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adolescente beirando os dezessete anos, ela continuará seus ciclos de internações nos quais conheceu as horríveis sensações de quase morte ao aplicarem-lhe um “sossega-leão”, um coquetel de drogas pesadas das primeiras gerações de psicotrópicos dos anos 50, que deixava o garoto por três ou quatro dias vegetando numa insanidade cruel, babando-se, se cagando e mijando nas roupas, com uma agonia que deve muito se assemelhar à dos moribundos à beira da morte.

Por esta ocasião, sem muita certeza, dado terem sido contraditórios, alguns psiquiatras informam à família do rapaz que ele sofria de uma “depressão leve, talvez pelo fato de a namoradinha tê-lo abandonado”. Outros, talvez mais especialistas e mais conceituados em seu ofício, informam à família sobre “uma possível esquizofrenia”, mas nada definitivo.

Consideremos agora que este jovem tenta viver toda a juventude possível naquele fim de década.

Ele, um romântico incorrigível desde criança quando escrevia ridículas quadrinhas jurando eterno amor a cada namorada do momento, sente-se agora, em plena adolescência, um “filósofo” (dos mais sábios, pois aos jovens, o superlativo).

Viciou-se também em leituras: de gibis do Tio Patinhas a Schoppenhauer; de Aghata Christie a Freud, e mesmo que nada entendesse claramente, as leituras lhe davam imenso prazer.

Não era ele o menino da mamãe, lavadeira de roupas e diarista, que o apresentava orgulhosa às patroas como “o meu menino muito inteligente... sempre tira nota dez na escola... já não faz xixi na cama...”? E não eram as patroas que, incertas quanto à sapiência do moleque, sempre preferiram elogiar a sua “beleza michelangela”, mesmo que a pobre faxineira nem desconfiasse quem era esse tal Miguel Ângelo – talvez um ator de radionovelas, quem saberia?

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E ainda queria ser músico, o danado, e já tinha aprendido com os amigos um parco repertório de três acordes, o suficiente para que pudesse encantar qualquer pequena plateia, principalmente a feminina e já tem em mente uma magnífica trajetória sob as luzes dos holofotes de palcos e auditórios de TV.

Sequer Narciso seria páreo para ele não fosse o baque de ter levado “buzinada” quando tentou se candidatar a calouro cantando ”Ouro de Tolo”, do Raul Seixas, no programa do Silvio Santos, na Rede Globo dos anos 70.

Por meses se envergonhou da experiência de não ter sido aprovado pelo Maestro Zezinho, o responsável pela seleção dos calouros dominicais, porque na hora do teste, simplesmente emudeceu de insegurança. Um pesadelo.

Vejamos agora: no aniversário de sua maioridade, achou nosso jovem dar-se um presente.

Já que o pai vivia azucrinando-o, chamando- o de veado porque ele usava cabelo tão grande quanto o do Caetano Veloso e vestia-se como os odiados “hippies”, xingava-o de maconheiro sem perceber que o filho já se tornara alcoólatra ( no primeiro porre, aos treze anos, o pai dissera-lhe: “ Cabra besta, encher a cara por causa de mulher?!!).

Agora que era “de maior”, dono de seu nariz; agora que já largara os estudos para dedicar-se em tempo integral à suas amadas; agora que começara a compreender que havia uma ditadura medonha no ar, (na verdade, quando abandonara a Igreja Católica, alguns anos antes, ganhara um amigo comunista), agora era a hora de libertar-se de todos os medos, tomar coragem e sair pelo bairro buscando um presente especial: seu primeiro baseado.

Inesquecíveis o primeiro baseado, a primeira louca paixão, a primeira mulher a amar-lhe e ensinar-lhe na cama coisas as quais as putas cobrariam caríssimo. Ou sequer

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ofereceriam. E todos lhe avisavam: “você está no caminho errado,

rapaz”. Mas ele cheio de si, cheio de amigos, cheio de amor pra dar e receber, cheio de fumaça nos miolos, simplesmente rosava: “Fodam-se!”.

Convém esclarecer que durante três anos o nosso jovem petulante realizou várias façanhas sem necessidade de voltar ao hospital: casou-se com uma grande paixão, tornou-se militante de esquerda, participou de movimentos populares de cunho socialista mesmo considerando-se sábio, nunca entendeu direito o que Marx ou Lenin escreveram: leu bastante dos dois, mas de tudo, só adquirira uma fé religiosa numa revolução premente e sangrenta.

Considerando as paixões serem doenças corrigíveis e curáveis, quando sarou do casamento ficou desiludido e perdido. Procurou adoecer de novo. Adoeceu sim, mas duma paixão tipo resfriado, que não deixa de cama nem mata. Nem deixa muitas lembranças, também.

O enredo está ficando longo demais, encurtemo-lo. Quando se viu sem paixão alguma, o jovem

simplesmente enlouqueceu. Literalmente. Já era início de 1980, e a Psiquiatria decerto que

avançara em seus conhecimentos, e, após seu ciclo maior de internação psiquiátrica (três meses e meio em duas “clínicas” diferentes), finalmente um brilhante doutor especialista informou à mãe do rapaz o terrível “diagnóstico”: esquizofrenia.

Veremos que ocorreu um erro médico neste “diagnóstico”. E este erro perdurou por longos quatorze anos e mais seis meses, nos quais ocorreram nove internações em cinco “instituições” diferentes. O diagnóstico definitivo e agora validado por peritos oficiais do Estado, só ocorreu na sétima internação desta série, iniciada em abril de 1980.

Pulemos para 1994.

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Nosso rapaz, por incrível que possa parecer, tornara-se executivo de uma empresa na área de prestação de serviços. Ao invés de contrair uma nova paixão, encontrou algo mais estável e menos ruinoso. Estava casado havia cinco anos, levando uma vidinha quase que de pequeno-burguês, ganhando rios de dinheiro, carro do ano, ternos da moda, torrando dinheiro como qualquer novo rico.

Mas alguma coisa não batia. Talvez por faltar-lhe o parafuso essencial, o hardware dos bem nascidos, que já vem com antivírus contra “culpas tolas” por ser rico e burguês e gozar a vida feliz-feliz, nosso pobre rapaz bateu pino mais uma vez e queimou o motor, melhor dizendo, fundiu a mente.

“A força da grana que destrói e ergue coisas belas”, (Ah. Caetano, Caetano!), também produz diagnósticos corretos: nosso homem foi internado numa clínica particular e, por obra da Dra. S., psiquiatra e psicanalista, ficaram definidos, além dos diagnósticos corretos, as terapias que consideradas as mais adequadas a um portador de Transtorno Bipolar, a antiga Psicose Maníaca Depressiva: medicação ultramoderna, e psicanálise.

Após seis longos anos de psicanálise, e mais dois períodos de descanso no “hospital psiquiátrico particular”, sempre com picos de mania (na depressão nosso rapaz é bonzinho: não incomoda ninguém; não fala com ninguém; não tem tesão para nada e sequer toma banho; chora assistindo a novela das oito e tenta sempre sem sucesso (felizmente) o suicídio e não gasta seu dinheirinho à toa), ele resolveu chutar o pau da barraca e demitiu patrão e analista

Ninguém poderá acusá-lo de não ter tentado o sucesso: tornou-se microempresário no mesmo ramo que atuara: a terceirização de mão-de-obra desqualificada.

Um negócio da China!

Bem, digamos que o negócio não seja tão da China

Leuzo de Siqueira

assim, mas que é do mais canalha capitalismo, lá isto é, com toda certeza. É, no mínimo, um ramo do capitalismo que espreme do lúmpen proletariado todo e qualquer traço de dignidade humana que lhes reste na condição de lixo humano, que o Capital Esclarecido descartou como refugo.

A ironia é que este lixo é apresentado reciclado trabalhando como porteiros, e faxineiros e um “n” número de funções em quase todos os setores da economia. Assim quebra-se a voz dessa massa: o “y” número de sindicatos que a representa são quase que fraudes e sem poder algum, são inúteis.

Isso não “batia de jeito com a consciência socialista” que nosso jovem adquiriu.

Não poderia este episódio ter dado em outra coisa senão na falência geral (a ética não, porém a financeira) que chegou a galope em seis meses.

Louco, e sem um puto no bolso, nosso ex-homem-de-negócios-da-china, em acentuada crise de hipomania, recorreu à Previdência Social, mesmo contra seus princípios.

Exilou-se no interior do estado para viver com o parco auxílio-doença, distanciar-se de seus credores (não que seus credores passassem apertos com seu calote) e tentar viver pacatamente, o que não impediu muitas recidivas.

Mais internações psiquiátricas. Por sorte, encontrou, dentro do Sistema Público de

Saúde Mental, mesmo longe da Capital, bons profissionais que o assistiram e, aos trancos e barranco, ora em alfa, ora em beta, foi levando a vida possível a um bipolar alcoólatra.

Em dezembro de 2005, por medida de macro economia, o Seguro Social pôs no olho-da-rua, indiscriminadamente, quase todos os aleijados em acidentes de trabalho, os cardíacos, os alcoólatras e, ora bolas, principalmente estes espertos e preguiçosos sujeitos que mamam mensalmente as tetas do Estado, alegando serem portadores de um mal que o povo (vox populi vox dei ?)

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insiste em dizer que é coisa de “frescos”. Este pacato e louco cidadão decidiu recorrer à Justiça

e, nos conformes da lei, provar nos Tribunais que os Médicos Peritos do INSS, o povo e até mesmo alguns amigos, estavam errados.

Trata-se mesmo de um caso sério. Ganhou a causa em primeira instancia a despeito de certa torcida em contrário. Está atualmente aguardando o segundo turno

Como o ócio é mãe das artes e objeto de inveja dos pobres de espirito, nosso homem resolveu assumir-se como ele é por inteiro: alcoólatra e portador de um distúrbio e, aos cinquenta, já “velho e cansado”, resolveu, no último surto de mania, assumir-se como escritor, poeta, musico amador e artista plástico que às vezes pensa que é.

Talvez todas estas qualificações não passem de delírios, mas quanto aos juízos de valores sobre o que consegue concretizar de “artes”, pouco ou quase nada se melindrará se não for compreendido.

Mas por outro lado, também acredita que há mais merda no ar do que sua vã vaidade e seu nariz detectam, portanto um flato ou um fátuo a mais não fará diferença.

Além de tudo, assume-se no muito louco que é. Ao termo deste longo prólogo, digo apenas que nosso

neoescriba aderiu a um tratamento custoso com um psiquiatra particular, profissional eficiente, que solicitou medicação de última geração e pelo qual foi informado que o Estado não fornece gratuitamente tal medicamento a bipolares. Tem-se que ter um grau mais complexo de moléstia: esquizofrenia. Para um bipolar consegui-la só dois caminhos: o falso diagnóstico ou a Justiça Federal. Um seria antiético. O outro não?

Fevereiro/2009

Leuzo de Siqueira

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O Suicida Explicativo

Páginas de um diário

HOJE, 1994, QUALQUER HORA.

Meu nome é B. Basta.

Profissão das mais rentáveis num cargo exponente duma empresa do ramo de serviços. - Basta. Explicações de fundo personalítico, que creio necessárias ao bom entendimento do que ora escrevo: sou alcoólatra, ex-viciado na divina erva que nos provém da Índia, cujo nome cientifico é Cannabis Sativa. Simplesmente, e basta.

Agora volto ao tempo e transcrevo literalmente um texto que produzi na primeira noite de insônia, causada pelo SAA – Síndrome de Abstinência Alcoólica:

“O dia de 45 horas.

Eu, representante comercial; ex-alcoólatra há quinze dias; e ex-potencial suicida, não sei se terminarei este relato amanhã ou nunca, dado que há minutos tomei consciência de que, desde a última tentativa de pular do viaduto do Chá,

Leuzo de Siqueira

fracassada obviamente, mudei meu modus operandi : passei a beber desbragadamente e a colaborar com o ICMS10 fumando até 120 cigarros de boa marca diariamente, o que, das duas uma, ou leva-me à PMD- Psicose Maníaco Depressiva crítica, ou a uma boa garrafa de brandi ou outro destilado compatível com meu tal nível socioeconômico. Narrar o jogo da lucidez estarrecedora contra a loucura dormente que é o cotidiano de um cidadão normal como eu, levo mais que horas, dias, anos talvez pois por causa da abstinência alcoólica que me conduz a um interminável diálogo interior (monologo ininterrupto para si mesmo), tudo leva-me à acuidade de todos os sentidos; à percepção intensa e confusa de todo o meu id e ego em flashes, as vezes sem nexo, as vezes como estado onírico no qual nunca sou Teseu ou seu fio, mas sempre o labirinto. Espero superar a SAA vivenciando-a, mesmo sabendo que experimentar sua inusitada lucidez poderá valer-me o emprego (a família, agora, hoje tenho certeza que não), dado o estado psicótico que me tornaria um maluco apenas passível de pena manicomial por ter tentado desvendar seu próprio labirinto e buscado a sua rara essência. Caso isso ocorra, terei reassumido meu caráter potencialmente suicida, desta vez mudando de “modus, generus et gradus operandi”: terei cometido um suicídio social com sequelas familiares e econômicas, obrigando-me, aí sim, parar de vez de beber ou fumar e torcer por saúde, por um editor louco e por um possível leitor maluco que se interessem pelo título besta que me brotou agora mesmo: ” O suicida explicativo”. Por enquanto, vou para a cama onde dorme minha mulher, pois parece que conseguirei dormir depois de um dia de 45

10 ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços

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horas. HOJE, ainda, madrugada do hoje anterior. Local: Quarto no Hospital da Ordem Hospitaleira São João de Deus. - 4h45min - 08.02.1994 Penso nas razões que me levam a quadros de psicose maníaco-depressiva e descubro-me todo, em razões claras, que tal arte (como Dante) não possuo para descrever meu próprio inferno. Em questões de segundo perco o fio da meada dos pensamentos e, a um só tempo, sou escravo e senhor das sensações; sou o ying e o yang; o sul e o norte, o vento, a vela , o barco e o mar. Navego nas sensações brumosas de ter-sempre-sido e de ter-que- sempre- serei. HOJE, 1994, após aquela qualquer hora e após ainda, a madrugada do dia HOJE anterior.

Eu B. (B ponto e basta), relendo as páginas já escritas, resolvi reescrevê-las outra vez, pois não vejo alinhavo entre o já dito e o que pretendera contar incialmente, portanto voltemos ao ponto. Sou um potencial suicida fracassado. Alcoólatra. Esqueçamos o ex. Exatamente escrevo, neste instante, num cantinho sossegado do prédio da Ordem Hospitaleira de São João de Deus. Neste instante já nem me preocupa mais quase, se tenho ou não emprego garantido. Tenho certeza de que minha esposa Z. me ama e muito. Também me gusta ou gosta-me minha família.

Leuzo de Siqueira

E alguns amigos, tais como WY, H.H., ZO, SW. E outros que tem telefonado cá para solidariedade a mim. Desde que escrevi “Titulo: ‘O dia de 45 Horas’” tenho tido terríveis alucinações constantes, tais quais me ocorreram nas outras onze vezes que pirei. Uso o verbo vulgar “pirar”, pois é o que mais se aproxima de perder a lucidez: pira (urna), logo sacrifício, logo fogo e logo cinzas. Enlouquecer é isso: voltar ao pó, queimar, arder (staccato!) no flash-lampejo de lucidez; postar-se estátua qual fênix renascida. Cheguei aqui ontem. Estive preso/amarrado por quatro ou cinco dias num cubículo do Pronto Socorro de Pirituba, nos fundos de uma sala de UTI. Comigo estavam cinco outras pessoas, além de um jovem aidético a quem ninguém assistia (encolhia-se, nu e cagado, na cama). De vez em quando, dizia palavras incompreensíveis. Os outros mentecaptos faziam enorme alarido quando o pobre diabo tentava se levantar da cama e o mau cheiro empesteava a cela. Apenas uma janela de vidro blindex nos separava dos outros doentes da UTI e era como fosse nosso aparelho de tevê, no qual só um único filme: enfermeiros e médicos, que nunca eram os mesmos, operavam seus milagres, mantendo em mínimas condições de vida os mutilados que eram, quase sempre, removidos ao necrotério. E não estamos em guerra.

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A cena que mais me doeu foi o curativo realizado por um grupo de jovens enfermeiras na perna de um velho que, pela aparência, era indigente. A enorme ferida, na medida em que as gazes eram removidas, brotava sangue. Quando totalmente retirado o curativo, vi a perna decepada logo abaixo do joelho direito, inchada, mais parecendo um pedaço de carne de vaca que o açougueiro prepara para expor na vitrine.

Nesse instante encarei o velho e, nos seus olhos de um verde melancólico, não vingou sinal de dor nem um ai. Admirei-o.

Bem como admirei a coragem daquelas meninas que cuidavam da ferida como cozessem panos, bordassem enxovais, fizessem janta ou simplesmente sexo.

Era tudo cruelmente natural dentro do inferno que nos apresentam como Saúde Pública.

Como disse antes, cheguei questão de horas neste hospital para drogados de todos os tipos.

A grande maioria é alcoólatra. 98%, eu diria. Outros, coca, e outros crack. Outros, também, a inocente C. sativa. Outros ainda, AIDS.

Absurdo, penso, largarem um jovem aidético de não mais que vinte anos, internado num antidrogódromo. Ele esta isolado num quarto particular, pelo que suponho sua origem na classe média abastada. Move-se em uma cadeira de rodas bonita e moderna. Fala conscientemente. E tomo consciência que, em menos de uma semana, encontro nos hospitais impróprios dois aidéticos jogados à própria sorte. Preocupa-me.

Leuzo de Siqueira

OUTRO HOJE: 09.02.1994 – mesmo local – outro assunto.

Estou aqui na condição de paciente particular, embora não possua privilégio que não seja estendido a outros pacientes provenientes, em grande parte, do convênio mantido entre a Prefeitura e esta Ordem Hospitaleira para doentes mentais. Nunca suspeitei a existência de um João de Deus canonizado há mais de quatrocentos e cinquenta anos pela igreja católica (duvida: as outras igrejas, credos, cismas, seitas, ritos, canonizam alguém?). Segundo disse frei Diogo, um português de Portugal (gratia deum), o tal João de Deus nasceu em território português e, por esperteza, segundo ainda Frei Diogo, fingia-se de doido para ser sustentado nos hospitais da época e poder exercer sua maior vocação: ajudar aos enfermos. E assim indo, chegou a fundar esta Ordem que hoje se espalha pelos cinco cantos do mundo (no mapa de isopor que vi na entrada da recepção, não há um só alfinete no território que compreendia a URSS), até ser ter encontrado o Criador num lindo dia em Granada, na Espanha, passando então a cuidar exclusivamente dos ferimentos celestiais.

Tirando a inevitável ironia quase sacrílega que acima cometi, devo declarar que, pela desprazeirosa experiência de onze internações psiquiátricas, sob o signo da Psicose Maníaco-depressiva, às quais sobrevivi, este é, na minha impressão, um hospital de primeiro mundo. Decerto que já li sobre métodos psiquiátricos em países como Itália (Dr. Basaglia) e EUA – ( um certo hospital, na Pensilvânia, do qual não lembro o nome) e sei que lá nesses países, por fatores vários, o doente mental é tratado com objetivo de regatá-lo ao convívio dos seus, à sua dignidade

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humana. Pelo menos foi isso que compreendi.

Na grande maioria dos hospitais psiquiátricos nos quais estive internado a sensação predominante é a de que somos todos prisioneiros num campo de concentração. A palavra de ordem da Direção é: louco bom é louco impregnado (de remédios). Ou seja, resgata-se o doente à ordem comum da razão através de um choque psicotrópico.

Entope-se o paciente a um ponto de muitos chegarem a catatonias constantes, sem a mínima condição de sequer conseguir alimentar-se com as próprias mãos.

PAUSA.

“Teu olhar pede-me trocar pronomes.

Jura-te minha eterna e sempre companheira e

Compassivo compreendo

Que

Quando eu te ensinava inglês

Trocavas tu os pronomes:

Quando querias dizer ‘eu’, dizias ‘you.”

Chove.

Obliquamente como no poema do Pessoa. Apenas sei-me outro ser que diferente presencia esta obliqua chuva única, pois decerto não haverá duas iguais.

Minha alma tocada alergicamente pelo psicotrópico imposto pela doutora que cuida do meu caso não tão raro, como eu o imaginara, compreende conhecimento a livros antigos que li profundamente ou apenas sobrevoei com o olhar. Algo bole fundo no meu ser, algo como que gerado ao longo de milênios e que não me é dado tê-lo conscientemente.

Leuzo de Siqueira

Procuro nas aventuras de Aníbal, o Cartaginês, algo de que possa apropriar-me. Alguma relíquia que durante sua travessia pelos Alpes os historiadores deixaram nas entrelinhas por pensarem sem valor. Nada encontro, a não ser o prazer em si de ler e visualizar como lutaram Aníbal e seus guerreiros. Por vezes ponho-me apensar que o tempo de Aníbal foi logo antes dos tempos de meus avós, e que dois milênios nada são que duas décadas, caso o observador assim o deseje. Navego perdido em sensações forçadas. O que sinto realmente agora é vontade de dormir, não escrever, porém o burburinho provocado pelos outros pacientes me deixa inquieto. E mesmo não havendo burburinho, o Neozine que tomo não me deixa ficar quieto um só instante. SÁBADO – 12.02.1994

Durante a madrugada devo ter vomitado o jantar de ontem. Não me lembro. Só poderá ter sido meu próprio vomito, pois sujou o lençol à altura do travesseiro e fez uma poça no chão. Hoje é um dia ensolarado. Aos sábados, nos hospitais psiquiátricos, costuma-se não ter muitas atividades, o que torna o ambiente tenso, com muitas brigas entre os pacientes. Neste hospital, é o primeiro fim-de-semana meu. Algo positivo na evolução do meu estado: consegui mudar a rotina da T.O. (terapia ocupacional). Frei Diogo confiou-me e a outros doentes, a chave para continuarmos os trabalhos que interrompemos ontem, por causa da festa de carnaval e a missa em memória dos enfermos, que assistimos de manhã.

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Cheguei aqui com P.A. 14x9. Mediram-na ainda a pouco e a mesma está em 13x8. Menomale, embora o meu normal seja 12x8. DOMINGO 13.02.1994

Ontem foi um dia especial para mim. Pelo ocorrido, percebi o quanto é importante a solidariedade dos amigos e parentes, para que eu supere a SAA. Recebi a visita de onze adultos e duas crianças. As crianças decerto foram visitantes involuntárias, mas a sua presença me deixou feliz. Além da Fátima, que tem vindo diariamente, veio minha mãe; irmã, sobrinho, primo, prima, pastor que eu não conhecia, a Silenê, o Carlos, o Caíque, o Mailer, o Jair e o Valter. Todos decerto perceberam que meu estado mental está evoluindo positivamente. Exceto as crianças, que preferiram brincar, o que, aliás, denota sabedoria. Como disse o Jair: “Cutucaste a onça com vara curta, camarada”, pois puxei uma polemica com o pastor que nunca vi mais magro – que foi trazido de intruso por minha prima protestante xiita, aliás, uma pessoa peçonhenta e irritante e hipócrita: ela sabe que tenho ojeriza por ela e vem me visitar!?! Foi sobre o conceito de “Deus” que embatoquei o pastor. Comecei por ler uma parte do Eclesiastes. O pastor admirou-se. Porem, este pastor tem aquele vicio que me é bastante irritante: querer salvar a alma dos outros, mergulhando-as nas abobrinhas de uma teologia burra. Pombas, o cara

Leuzo de Siqueira

sequer sabia falar corretamente o português!?! como interpretaria a palavra de Deus, que suponho muito mais difícil e em hebraico ( não é o deus dele um deus judeu?). Eu me recuso terminantemente a fazer parte da sopa de religiões. Sou ateu? Hoje não sei responder. Sei que emana em mim uma religiosidade difusa a qual ainda não organizei em sistema filosófico particular, com base na lógica que conheço. É nisso que acredito neste momento: haverá um dia uma religião sem abobrinhas ou pepinos; sem sementes ou frutos; sem que seja necessário negar a dualidade comum a tudo; uma religião que seja ela mesma uma não religião. Após o breakfast (dejejum, café) fui à fila dos cigarros e comprei o necessário para passar o domingo; dei uma volta no pátio, porém como ainda estava um pouco nublado, voltei para o meu quarto e, surpreso, vejo que a bíblia que sempre esteve na enfermaria foi parar sobre meu criado-mudo, aberta em Romanos. Alguém a colocou ali. Bíblias, mesmo sagradas para alguns, não voam ou andam sozinhas, a despeito de dizerem que o Espirito Santo é uma pomba. Como o domingo é de poucas atividades por aqui, resolvi pegar meus apetrechos (violão e pasta de quinquilharias), e me trancar no quarto para ler o Eclesiastes. Logo no inicio da leitura do Eclesiastes ou Cohelet, em hebraico, descubro velhas frases e sentenças que supunha novas e de outros autores. Nunca sabemos nada, mesmo. Eis umas frases, que pensei ser do Chico Buarque, ou do

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Shakespeare: ”Não há nada de novo debaixo do sol”(*). Bem, agora veja as analogias: “Não existe pecado rasgado do lado debaixo do equador”, Chico. E Shakespeare escreveu: “Há algo de podre no Reino da Dinamarca...” e La Fontaine (?) disse: “Nada se cria, tudo se copia”. Ou foi o Abelardo Chacrinha Barbosa? Bem, isto tudo está confuso... Pois bem, eu considero o Eclesiastes um dos únicos livros bíblicos que realmente contem um fundo de womanidade. Leia-se: uh-uó- mãn-nidade e acho que assim melhor se expressa na nossa ascendência, o quanto a força da mulher nos transformou em homens. Tempos atrás, numa edição do Folhetim, suplemento da Folha de São Paulo, o poeta Haroldo ou Augusto de Campos, ou ambos, não lembro bem, publicaram sua tradução/recriação poética do Cohélet (o- que- tudo-sabe / aquele- que- ensina (a torá) e desde então, este livro não esqueço. Com o dom de poeta inteiro dos Campos, o capítulo 3º do Eclesiastes deu-me uma nova dimensão quanto à concepção do tempo filosófico-biológico. Tento aqui, com minhas limitações analfopoéticas recriar o que o Haroldo (ou o Augusto) já recriou dos originais:

“O SABEDOR DE SÁBIOS” Um tempo há para que todas as coisas haja. A seu tempo, sábias coisas e tempos. Um tempo há para que o sábio cale, E grite seu próprio silêncio aos que são Moucos, pois só loucos, ao tempo Não se entregam. Há uma ordem das coisas. Há o tempo: Se for de plantar, o tempo é trabalho;

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Se for de chorar, o tempo é inverno; Se for de perdão, decerto houve guerras. O sábio cala aquilo que a todos, o tempo mostra: A dor do corpo ante o peso do viver; A queda lenta da árvore milenar, Corroída pela própria seiva – o tempo. O sábio suspeita o tempo unguento Que alivia toda cicatriz aberta em viva carne; Ao mesmo tempo cala e não faz vaticínios, Pois sabe da arte de navegar pelo mar das Verdades E algumas Verdades precisam não ser ditas, Para que não sucumba o Sábio. Conhece o Sábio a arte e rotas da grande noite a navegar: Observa que a planta brota flor que se brota semente Que se lança ao chão gravidando a terra-mãe que germina Que se germinam em outras plantas, outras flores, outros Frutos. Observa, ainda, o Sábio: Pássaros, árvores e outras plantas, apenas são A messe dum só ventretempo; Dum só sonho vago e vão Entre um tempo E outro tempo. Neste instante o dia clareou totalmente com o sol penetrando todas possíveis frestas, trazendo claridade doída à visão, avivando os verdes, redefinindo as coisas, redesenhando nítida a montanha do Jaraguá que tenho à direita de minha janela. Ouço o barulho da sala de televisão (desenhos animados, assistem os loucos) e lá fora pássaros trinam, e ainda não parou a goteira que ouço lá fora, além da janela, desde quando chovia de madrugada. O domingo parece-me calmo. Até um bem-te-vi confirmar: Bem-te-vi-Bem-te-vi-Bem-te-vi, e voar dum arbusto que suspeito bem próximo daqui.

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12h00min

Pela primeira vez durmo durante o dia e acordei sobressaltado quanto frei Luciano, procurando-me, avisou que o almoço estava terminando. Quase fico sem almoçar. O Flávio, paciente, 48 anos aparentando 32, está aqui ao meu lado contando-me sua historia: é quase semelhante à minha, com a diferença que é antialcoólico, abstêmio total, porém potencial suicida. Em sua 13ª internação, agora me conta, já bebeu, porém percebo que carrega um trauma que remonta à sua infância: o pai era um boêmio incorrigível, chegando sempre de madrugada em casa e brigando sempre, batendo no menino Flávio quando este tentava defender a mãe. Ainda bem que o Flávio calou-se e saiu do quarto. Quero mesmo ficar sozinho. Pesar minha situação. Há quase sete anos trabalho como formiga. Espantado, constato que nunca levei a mulher, com quem sou casado há cinco anos, à praia. A exceção de um par de viagens à casa de minha sogra, Dona Isabel, nunca vou aos cinemas, ao teatro, aos bares. Talvez eu tenha tornado a Fátima uma prisioneira de meu próprio ego. Sonho ser diferente sendo eu mesmo, sem álcool, daqui por diante. Sei que posso ser e fazer, os que me rodeiam, felizes. Sou capaz, eu sei que sou. Vou tentar. Tem sido para mim uma experiência espiritual profunda, este estágio de loucura pelo qual passo. Cheguei a acreditar-me capaz de vencer a morte por ter descoberto a passagem para a vida. Na minha louca concepção delirante, quando morriam as pessoas elas

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tornavam-se máquinas. Uns, por méritos, tornavam-se automóveis de luxo, outros menos afortunados, tornavam-se máquinas de costura, bombas de gasolina, parafusos.

DIA 14.02.1994 -

7º de Internação - Segunda-feira, 05h30min

Sinto-me como se o mar minh ‘alma entrasse todo de vez por um rio pequeno e desconhecido; subisse as cataratas e corredeiras e se aprumasse por sobre a cordilheira onde nasço.

Acima falei da profunda experiência espiritual que vivi desde que abandonei o vício do álcool abruptamente.

Houve um momento singelo em que descobri todo o significado da existência; vi claramente o tênue fio que separa vida de morte e ainda assim compreendi que é necessário ao ser humano agarrar-se a um objetivo, a um credo, mesmo que na concepção cristã de vida após a morte.

O eterno, para mim, é o não existir. Supondo-se completado o ciclo vida-morte-vida, deparei-me com um vazio: estaria morto eternamente? Ou estaria vivo eternamente? As duas possibilidades me apavoraram. Nada é uno, compreendi.

Diante da possibilidade de ser eterno, meu organismo perdeu seus referenciais: não tinha mais fome; não tinha mais desejos e nem tinha mais por quês.

O que me toca, às vezes, é perceber certas religiões obtusas que confirmam a existência do maligno; fogem do maligno; pautam-se por regras políticas que são a visão de mundo da extrema-direita; creem-se detentoras da sabedoria toda possível no universo, pois dizem ter o dom de decifrarem seus livros escritos (juram que assim é) por seu deus iracundo, inimigo da vida. Tão obtusos me parecem que

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chegam a ser cegos: leem, leem e, quanto mais leem, mais se afastam do sentido simples das palavras. Esta contradição pendurou-se em minha mente por longos anos a fio, uma vez que pertenço a uma família católica romana e fui criado sob os preceitos desta religião, preceitos estes ultra tradicionalistas. Mas tudo se rompeu quando, como coroinha e sacristão, menino de onze, doze anos, conheci uma faceta humana dos dogmas; de como romper os dogmas. O Pe Johannes, chileno que dizia ter participado da guerra contra a Bolívia, era dado como pederasta e entre nós coroinhas, era sabido o risco de permanecer sozinhos com el gordón, qualquer que fosse o momento e lugar, dentro da igreja. Era, no mínimo, um neurótico, o Pe. Juan. Mas acredito que era um sumário tarado tolerado pela comunidade e pela santa madre igreja. Duvido que tais fatos não fossem percebidos pelos adultos. In Hades pro Excelsior Satanás requiest cat in pace11. Sim, que Satã o tenha no seu inferno, com o qual nos ameaçava pelos nossos pecadilhos infantis. Esses episódios jamais soube meu pai, mesmo porque, tirando as encoxadas das quais eu me esquivava, ficou-se apenas nas investidas do porco e respeitável sacerdote. O meu velho pai era um homem rude, que levava o antigo testamento ao pé-da-letra e, como bom católico que foi, obriga-se a ir à missa todos os domingos. E éramos, eu e meus irmãos, obrigados a este sacrifício dominical, a assistência da missa das crianças. Eram quatro as missas que El Ratón falava aos domingos. Como eu diria isso a meu pai? Apesar da rudeza de sertanejo nordestino, era de um caráter

11 “Que descanse em paz no inferno para glória de Satanás”

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afável e honesto a toda prova. Para ele, quando dada a sua palavra, o compromisso estava selado e escriturado apenas na palavra dita e dada, e nada o demovia de cumpri-la, mesmo que esta o desfavorecesse. Já minha mãe era a doçura. Toda mãe capaz de amar o filho é doce. E isto diz tudo de minha mãe. Um tanto depressiva, mas docemente uma mulher forte.

Aquele padre safado havia realizado o casamento religioso de meus pais, em 1957 e meus pais o tinha na conta de um reverendo sacerdote, representante de Pedro ou Jesus. Mas era um crápula. Jamais contei algo disto a meus pais, mas lembro-me de um dia, após uma missa vespertina num dia de semana, el cochón mandou-me buscar malzebier e queijo de minas na padaria próxima a casa paroquial. Fui, mas já esperto, recusei o convite de experimentar a malzebier e o queijo. O rato era ele, que dava umas de gato. Porém, quando eu me preparava para sair, meu pai chegou. O velho Padre João avermelhou-se, reconheceu que “me segurara” além do tempo combinado para os serviços religiosos e disse a meu pai que isto não se repetiria. Não sei o que se passou pela cabeça de meu pio pai. Mas que foi alguma nuvem acerca deste assunto, creio que foi.

Minha memória da infância é longínqua. Lembro bem de cores, lugares e fatos de quando eu tinha cerca de dois anos e pouco de idade. A mais antiga é a memória que tenho de meu pai caminhando comigo; ladeávamos um brejo que havia perto da casa de um tio, pai daquela prima imbecil que veio aqui ontem com seu pastor. Hoje ao invés dum brejo, há no lugar, uma creche e uma escola.

HOJE. 7h00min

Pulsar meu coração não basta.

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Nem basta uma reza aflita; não basta para calar A dor candente desta lucidez atônita. Pulsar meu sonho de mim, não basta. Por crer-me eterno, mas transitório; Por saber-me pó que outra vez pó será, Meu verbo é sem nexo; meu verbo é de nulo vagar Na palavra frouxa: sou. Serei? DA JANELA DO HOSPÍCIO Cá desta janela, vejo um homem capinar A grama, o mato que rodeia este quintal. Capina há horas, desde pouco após clarear o dia E não para, como se fosse a enxada Dum mesmo peso desta pena que não me cansa. De chapéu-de-palha roto como as próprias roupas Capina cadenciadamente em silêncio de si: Não assovia; não cantarola nem olha Para os lados nem cospe o chão. Tac tac taacc tac bate sua enxada E me parece que nada o fará mudar seu propósito Senão o fim do dia. Tac tac , em ritmo quase binário Lavora o homenzinho por poucas moedas, talvez Cumprindo a maldição bíblica que lhe toca: É do suor de teu rosto, homenzinho talvez fadigado, Que brotará teu pão deste dia amaldiçoado por teu deus, Se cristão fores. 11h45min.

Não sei o porquê do café da manhã ter atrasado em duas horas. Estou com uma dor de cabeça incomodante. Daqui a

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quinze minutos almoçaremos. Talvez a dor desapareça. 16h45min. Chove. Aproveito para reler e transcrever fielmente tudo quanto produzi desde o inicio dessa crise mental. Remexendo os papéis que sempre trouxe comigo, percebo que meu stress começou bem antes da decisão de parar de beber. Suspender meus conhaques de certa forma foi uma atitude consciente, a qual eu não poderia prever a magnitude. Algo como o Big One californiano: todos sabem que o terremoto virá com seu primo maremoto, mas os estragos, incógnitas. Pois bem, no final de novembro, inicio de dezembro, houve uma cizânia entre os sócios da empresa na qual trabalho. Eu não estava presente à quase tragédia, pois descera ao Guarujá a negócios. Fiquei sabendo do ocorrido no final do dia, através duma amiga da Diretoria. Fiquei apreensivo com o que ela me contou. Senti que, de certa forma, eu havia conduzido os fatos (tanto consciente como inconscientemente) para aquele desfecho, desvantajoso para todos nós empregados, e principalmente negativos para os rumos da empresa. Naquela noite fui dormir por volta das quatro horas da madrugada. Já era quarta-feira e escrevi dois textos que abaixo transcrevo como nos originais: “A EMPRESA TERMINAL” Os problemas, tanto gerenciais quanto operacionais, crescem à medida que a empresa vai se expandindo e se solidificando

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no mercado e, em determinado ponto, se não houver amadurecimento gerencial, profissional e pessoal de seus dirigentes, a tendência natural é a empresa sucumbir num lapso de tempo menor do que aquele que a levou ao crescimento. Perde-se, em cinco ou seis meses, clientes, fornecedores, credito e estrutura que foram construídos em anos e anos de trabalho e sacrifício.

Pior ainda, quanto maior for o estagio de crescimento da empresa, mais remota é a chance de se recuperar o que foi para o lixo: a sua imagem perante os clientes e, junto com a imagem da empresa, vai pro limbo também a imagem profissional de seus principais dirigentes.

São inúmeras as causas que levam empresas aparentemente sadias a, de um dia para outro, começarem a mostrar sinais de que algo em suas engrenagens está errado: crises econômicas, retração de mercado, dificuldades de financiamento de suas atividades, metas de crescimento mal gerenciadas, etc., mas nenhuma afeta tanto e empurra a empresa ladeira abaixo do que a cisão entre os sócios-gerentes, no caso das sociedades- civis.

Toda semana publica-se na imprensa pelo menos meia dúzia de caso de disputas entre sócios de grandes empresas, muitas delas de caráter familiar; disputas estas que objetivam o poder de comando por este ou aquele grupo.

O que não sai na imprensa, via de regra, é que divisões e cisões em maior número ocorrem entre as micro, pequenas e medias empresas, normalmente sociedades civis limitadas, não raro representando para estas sociedades o fim-da-linha, ao contrário das grandes corporações anônimas de capital aberto que, quando o lucro mostra-se no vermelho ao fim do ano fiscal, basta uma assembleia para destituir presidência e diretoria e eleger-se uma administração executiva às vezes imparcial e competente, para colocar a organização de novo nos trilhos.

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À falta de uma visão global da empresa por parte dos seus dirigentes, e do que ela representa em seu nicho de mercado, alia-se comumente ao esgotamento da capacidade intelectual dos gerentes; o discernimento de qual o rumo que a empresa deve seguir para atingir o próximo patamar e, aí sim, crescer efetivamente.

Quando os detentores da empresa passam a digladiarem-se em mesquinharias, que por vezes beiram infantilidades torna-se a sociedade comercial tal qual o casamento entre pessoas civis. Caso o senso não prevaleça sobre as querelas inerentes a qualquer associação humana, é chegado fatalmente o divórcio, às vezes ou na maioria das vezes, não tão amigável quanto o ideal.

Mas não é o fim da empresa ainda. Ou famílias, como figuraram acima. As crianças ficam sob a guarda de quem? Do pai? Da mãe? De estranhos? E, aí chegado, é fácil prever o futuro de uma empresa quando a partir deste ponto.

Após a partilha, caso o sócio e/ou os sócios remanescentes não compreendam e aceitem em todos os seus pormenores e filigranas as razões que trouxeram a falência à sociedade, ou enchem-se de confiança de que só ele ou eles são a empresa, ou a tocarão como se nada houvesse ocorrido, sem mudar uma vírgula dos comportamentos contraditórios anteriores.; sem que, ainda, de si para si mesmos identifiquem suas limitações profissionais e pessoais, todo negócio ou sociedade que tentarem reconstituir e levar a cabo, fadará em falência, mais cedo ou mais tarde, acarretando prejuízos não mais para si ou pra o grupo remanescente apenas, mas para quantos sejam aqueles que, com a empresa, tenham vinculo ou comercial ou meramente empregatício. Em resumo: após a crise de direção, se não houver mudanças radicais no modo de gerenciar a empresa; se não houver a mínima boa vontade pra reconhecer erros e acertos, tanto da parte diretora remanescente, quanto auxiliar; se se recusar a

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busca de novos caminhos para a expansão dos negócios; se se teimar em atitudes retrógradas no trato e no relacionamento interpessoal diretoria/grupo administrativo/ produção ou operacional, é o começo do fim desta empresa em crise, dure um ano ou dois ou mais, esta é, de fato, uma empresa terminal. - Nov/93.”

14.02.1994 18h10min

Posteriormente ao que escrevi às 16h45minh, escrevi um texto de caráter pessoal que eu pretendia levar à diretoria da empresa. Como já era alta madrugada, no ultimo parágrafo percebi que era um texto inútil para ser levado ao conhecimento de meus superiores. Nele, perdendo o raciocino original, comecei a devanear sobre o tema felicidade e, pelo meu passado politico que não escondo dos chefes, poderia parecer de cunho reivindicatório e sindicalista. Ei-lo: “UMA CARTA PESSOAL À DIRETORIA” Nunca passei da sexta série do primeiro grau, todos sabem. Mas deus me deu um pouco de umas coisas que aprecio muito nas pessoas e que ninguém me tirará: um grãozinho de inteligência, uma pitada de raciocínio logico, um talinho de perspicácia e, sem falsa modéstia, uma que talvez não valha muito hoje em dia: honestidade.

Deus deu-me incontáveis defeitos, inclusive para compensação de meu fado. Deixa-me chateado que algumas pessoas às vezes, talvez se julgando sábias, abusem dum defeito que o criador, infelizmente, me privou: esperteza. E, não sendo esperto, por vezes deixo-me levar pela esperteza alheia, o que, financeiramente me te tem sido muito prejudicial. E, com certeza, pela falta de querer usar meu grãozinho de inteligência (sempre me dão uma chance) vou convencer-me

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que tenho mais defeitos ainda dos que, ciente, confesso acima: não cumpro minhas jornadas de exatas 44 hora semanais de trabalho; que não sei conversar com os clientes; que aqui na empresa tenho sido mais desperdício que receita; que, ao longo destes anos todos, fechar ou participar ativamente do fechamento de cerca de 56% dos atuais contratos da empresa, foi apenas um “sonho meu”. Vou ainda me convencer também de que, ter minhas comissões reduzidas de solapada em beneficio de outrem, não faz diferença alguma? Fez e faz. Tenho ainda outra qualidade: sou teimoso quando tenho um objetivo no qual acredito: E, se quero usar meu grão de inteligência, não é meramente para provar às pessoas que o possuo. É por pura satisfação e realização pessoal que pretendo o meu grãozinho. A única coisa que almejo é algo que, dentro de qualquer empresa, quando se toca no assunto, soa estranho: “felicidade”. Estranho, não? Falar de felicidade dentro de uma empresa? Não tão estranho assim, eu penso. Para alguns, felicidade é media em dólares acumulados nota-sobre-nota (nada contra?) mesmo que junto a cada dólar guardado, guarde-se a lembrança de que este dólar representa e é a apropriação do labor de alguém (que importa, afinal? Esta não é a essência do capitalismo, pois não?). Para outros, felicidade é um lampejo fugaz, por volta do quinto dia útil, quando se abre o envelope de pagamento; descontam-se os cruzeiros-reais já devidos e sobra poucas patacas e algumas merrecas para um ou dois dias de sensação de poder.” Aqui parei abruptamente a carta, pois compreendi que antes de findassem de ler o primeiro paragrafo, a mesma seria provavelmente amassada e jogada no lixo e talvez eu fosse demitido sumariamente, acusado de enlouquecimento.

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14.02.1994 19h20min

15.02.1994 06h30min

Acordei bem disposto, dormi bem e o dia é nublado. Li o capítulo 4 do Eclesiastes, que fala da prudência com as mulheres. Livro sábio, aquele. Eu, B. (e basta!) começo a compreender que esta crise efetivamente começou bem antes que imaginava. Talvez ela remonte à minha ultima internação em 1986. Entre novembro e dezembro, para ser exato. Nessa época passei, por vontade própria, 45 dias internado numa clinica vizinha ao Presidio do Barro Branco no bairro do Tremembé, Capital Paulista, presidio este destinado aos prisioneiros políticos da ditadura e atualmente aos presos policiais militares. A clinica era tão vizinha do presidio que dividiam a mesma entrada e quase que a mesma portaria. Hoje no local funciona uma unidade do Colégio Objetivo. Esta clinica deve ter a ver com milicos, pois era destinada quase que exclusivamente os doidos da Aeronáutica. Quando obtive alta, em 18 de dezembro daquele ano, no dia seguinte consegui emprego na rede de lanchonetes Bob’s, na qual trabalhei de 19 de dezembro a 22 de fevereiro de 1987.

O trabalho era cansativo e monótono, e o salario baixo. Eu fazia desde sanduiches a faxina. Passou se o carnaval e decidi pedir as contas. Passei então alguns meses flanando, até que em agosto comecei a trabalhar com Z., um dos meus dois atuais patrões. E conheci o W. , do qual me tornei amigo, mesmo sendo patrão. Creio então que, cada uma das doze crises que tive desde 1980, começaram exatamente no dia em que, tendo alta

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hospitalar, voltava todo “normal” para casa. Nesses tempos, sempre procurei escrever acerca do que se passava comigo. Abaixo transcrevo o que escrevi sobre o que sentia dia 29 de janeiro passado. “Estou escrevendo. Tive um ciclo de vigília seguido sempre de calma, euforia, angustia. Estou praticamente acordado desde quarta-feira (26); me falha a memória... é dispersiva a minha memória, porém ao me fixar nos conjuntos de samba que tocam nas vizinhanças, consigo, ao mesmo tempo, identificar o ritmo de cada uma das duas baterias que ouço. Penso em inglês enquanto penso nas visitas de amanhã. As baterias de samba tocam em ritmos diferentes... (tomo consciência de meus olhos ardem. Near by here, I ear a neiborough’s child to cry loudly. (Perto daqui, ouço o choro baixo de uma criança minha vizinha) (INTUITO: Antes da explicação do que ocorre, estou tomando um copo de malzebier com cerveja branca para sentir qual o efeito produzirá, sobre meu estado psicótico, enquanto me preocupa a situação, já que sem dormir, como trabalharei na segunda-feira?) PERGUNTO-ME: Por que não paro de fazer livres associações de ideias? RESPONDO-ME: Fadiga? (Estou com todos os meus sentidos – exceto a narina esquerda – percebendo em minúcias as duas baterias de samba, os gritos dos componentes e o eco dos alto-falantes...). Superando com sucesso este período que, tenho certeza, o ultimo de uma série de doze internações psiquiátricas, certamente terei condições de, pelo menos para algumas das doutas mentes que me barbarizaram e que se lembrarão dos meus casos (pois foram complicados e meu nome é de fácil memorização) decerto abandonarão seus falidos métodos psiquiátricos... Outros condenarão ao limbo esta disciplina

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que, perigosamente, foi usada como poder de polícia em vários países do mundo atual... A PSIQUIATRIA FALIU... (Lapso de memória.)... (Sono.)... Muitos me diziam: seu problema é a maconha: largue-a... Hoje tenho certeza que meu problema foi a pobreza, a falta de perspectiva e, principalmente, a falta de identidade social... VOU TENTAR GANHAR EM UM TRIBUNAL TODOS OS ERROS COMETIDOS COMIGO: FIQUEI PRESO POR MAIS DE QUATRO ANOS POR SER POBRE!...”(sic)”. Obviamente, tudo o que escrevi imediatamente acima foi fruto de psicose maníaco-depressiva. Respeito todos os profissionais que me trataram, mesmo percebendo em alguns deles, erros hediondos no trato diário e nos diagnósticos, que muitos foram apressados. 15.02.1994 17h30min

Hoje estou um pouco agitado. Percebo que há algo errado comigo, pois, quando acordo, levo pelo menos dez segundos para discernir o sonho do real. Hoje é terça de carnaval, portanto feriado, portanto um dia difícil de passar num sanatório psiquiátrico: não há outra atividade que não tomar sol no pátio. Enquanto aguardo o jantar, resolvi vir tomar sol no pátio, admirando a linda vista que temos do Pico do Jaraguá. Estou lendo um livro em inglês: “The boys from Brazil”, |”Os meninos do Brasil”. A ação inicial se passa em São Paulo, num restaurante japonês e logo após certo Sr. Aspiazú, que fala com acentuado sotaque germano, ter chegado de Congonhas e prepara-se para uma festa ou zorra, segundo entendi, pois terá no mínimo, oito garotas na parada.

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15.02.1994 19h00min

Sinto-me apático. Tenho vontade de escrever, mas não sei sobre o quê e como.

Neste surto psicótico, desenvolvi um mito baseado no seguinte mote: Nostradamus só previu até o ano 2.000 / Há um terceiro segredo de Fátima que, ao ser revelado a um Papa, o mesmo desmaiou/ Para que a História continuasse alguém deveria dar um salto atrás no tempo? Eu era o portador/feitor do segredo não revelado/ Fiz, crendo piamente o correto, todo um ritual que durou de terça-feira dia 26 a sábado, dia 29, transformando assim meu relógio biológico. Quando amanheceu domingo, eu estava convicto que amanhecia um sábado; que o norte havia mudado; a estação havia mudado e o todo-poderoso aqui, salvo a humanidade!

Trocando em miúdos: observo que em todas as outras psicoses, sempre houve este histórico de que eu precisava salvar alguém ou proteger algo que era extremamente valioso para o bem-estar humano.

Quando, no dia 4 de abril de 1980, tive meu primeiro ciclo psicótico, comecei a, inconscientemente creio, montar um sistema lógico que “explicaria” (ou justificaria, para mim mesmo) todas as crises posteriores. Tanto que os delírios de grandeza sempre se repetiram posteriormente, com as mesmas características.

16.02.1994 - 06h05min

Acordei disposto a escrever sobre outras coisas que não a psicose.

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“Primeira pessoa do singular: Você. Quando tudo começou, decerto um pouco de brincadeira, dei ao sentimento que ela me nutria o nome de paixão. E os apaixonados comentem loucuras; são bravos guerreiros que a nada perdem à coragem dos samurais, ou ao ímpeto dum legionário romano. Lendo Camões dia destes, descobri que o grande escritor português também ardeu de paixões que lhe renderam belos sonetos. Não só Camões, mas o Zé-da-esquina, com certeza, já teve sua paixão desconcertante. Pois desconcertado era o termo exato do meu estado de espirito por tê-la conhecido. A minha tigresa tem um nome que soa mourisco: Fátima. Este nome, outra Fátima, uma amiga, explicou-me a origem e significado: a predileta (?), a preferida, a escolhida, que teria sido a esposa do profeta Maomé. Alah sabe o que faz. E tece caminhos. E teria ele tecido tal rede com cujo fio encontrei minha predileta?.............” Os surtos de psicose maníaca depressiva estão se tornando cada vez mais raros. Hoje é o 9º dia de internação e o 21º da crise aguda. Daqui pra diante é só esperar a alta. Já me falta assunto que escrever e falta-me por que escrever. Penso no meu trabalho. Eu já devia ter retornado às minhas atividades, mas pelas perspectivas, a alta só ocorre dentro dos próximos dez ou mais dias.

16.02.1994 05h23min

Estou começando a char tudo monótono por aqui. Parece que faz um ano que me internei .Vou tentar escrever uma “crônica” pra ver se o tempo passa. “DONA SEBASTIANA Dona Sebastiana é dessas pessoas caladas, carrancudas, vestidas sempre (ou chova ou faça sol) de roupas em tons

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sombrios. Cria gatos e cães quase às centenas, supõe-se nas vizinhanças, já que quando coincidem os cios dos animais, os vizinhos adotam a rotina de discarem 190, pedindo socorro à Zoonose Publica para poderem dormir. Da ultima vez, a carrocinha levou vinte e três caninos e 19 felinos por considera-los epidêmicos, endêmicos e cheios de moléstias várias.

Dona Sebastiana quase morre, a coitada. Ela andou se queixando ao Seu Manoel da Adega dizendo que ficara apenas com oito gatinhos e três cães. Os cães: Nino, Pinto e Santa Maria.

“Dona Sebastiana de fato sente-se solitária.”, disse o Seu Manoel da Adega. E completou: “Ora, pois, pois! Que tem a prefeitura com cães e gatos alheios? Já não fazem suas cachorradas suficientes e, ao contrário dos gatos, não mostram publicamente suas cagadas?”, indagou o taberneiro indignado.

Sabia-se, pela boca do povo, que era viúva, a Dona Sebastiana; que era viúva de um militar que morrera em combate em Monte Castelo, contra os alemães e fascistas. E isto era seu único orgulho. Por isso, remediava-se religiosamente todo mês recebendo o soldo do velho abatido pelos nazis.

O herói brasileiro e Dona Sebastiana não tiveram filhos. Conta-se, à boca miúda, que o soldado mal tivera tempo de concluir a lua-de-mel e fora despachado para liberar a Itália. Azar deles.

Pela sua boca, o povo ficava na ignorância. E atônito: ela só expelia esconjuros, pragas e maldições quase inaudíveis e ninguém tinha ao certo o motivo. Uns diziam ser a falta do falecido. Outros, menos complacentes, diziam na uma bruxa- pelo menos isto era útil para amedrontar crianças levadas.” 17.02.1994 - 05h23min

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“A casa na qual vivia D. Sebastiana era de um aspecto assombrado. Situada bem no meio do quintal, mais parecia com aqueles castelos medievos dos contos de fada. A casa era cercada por um pequeno pomar nos fundos e uma horta à direita de quem olhava da rua. Do lado esquerdo havia um jardim que mostrava descaso, embora os moradores mais antigos garantissem que já fora um exemplo de paisagem de fazer inveja a Burle Max.” PAUSA: - 7h40min

Estou inspirado. Penso em compor uma canção. PAUSA: - 17h42min

Estou calmo. No sábado terei licença. E poderei passar o fim de semana em casa. Cada vez me distancio do pico da crise. Quando tive surtos psicóticos misturado com algo que suponho ser a esquizofrenia, mais aprendi sobre o existir. Hoje conversando com a Fátima, tive outro lampejo dos sentimentos confusos que me assaltavam. Por outro lado, cada vez mais admiro a forma com que minha mulher conduziu todo o processo até aqui. Ela mesma afirma, também, que aprendeu muito. Mas o que me salvou do suicídio social a que me referi no inicio destas notas, foi justamente o sentimento de Amor o qual sou objeto. Indo ao encontro da visão prática de minha família, ela (a Fátima) teve o despojamento de abrir mão de vários planos

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que fizera há meses e recusou-se a me internar num manicômio do Estado. Fez-me esperar três ou quatro dias até conseguir vaga nesta Clínica que atende em convênio, a funcionários da Prefeitura ligados às administrações regionais. Esta atitude só fez aumentar o respeito e amor que dedico aminha mulher, uma pessoa simples, porém singela; forte na hora da tormenta e bastante segura de si, o que de fato me faz muito bem. Aprendi também que a aceleração do ritmo biológico altera a visão que o ser humano tem das coisas que olha sem enxergar. Na ânsia de ter e querer viver contra o relógio; na busca do ganha-pão diário ou na execução de planos, raramente observamos a realidade à nossa volta. A figura que uso para explicar acima exposto é justamente o sistema binário cibernético e o que ocorre com as pastilhas de silício: a um determinado código, deflagra-se todo um processo de informações selecionadas, entre outros milhares, na memória do computador, sem que haja mistura entre ela, senão um resultado lógico e matemático. “A gente vê o quer”, diz um adágio popular.

Com a aceleração do ritmo biológico da vida humana, quem tem planos pra o futuro e luta convictamente para realiza-los, supera toda barreira que se entreponha entre o já obtido e seus objetivos pré-estabelecidos e, na muitas vezes, “não enxerga” à sua volta nada mais além do que for útil ao seu mundo projetado. Se há injustiças – há injustiças – justifico-me por vezes crendo que não tenho responsabilidades perante as injustiças e calo. Esta atitude perigosa, pois omissa, pressupõe que, caso eu sofra na pele “injustiças”,

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terei os meios pecuniários para comprar a justiça que careço. Caso contrário; caso eu não tenha como comprar a “minha justiça” aí verei a realidade nua e crua: fui omisso o tempo todo e hipócrita, pois sim. Outros delírios: a empresa na qual trabalho cedeu “gentilmente” à minha família um velho fusquinha 68 para meu transporte a vários hospitais e psiquiatras. Eu, no meu estado psicótico crítico, sentia todo o peso da gravidade e estava cônscio do quanto pesava o tal fusquinha; o que significava, em termos de física, andar a 40, 60, 80 km/h; o esforço do motor ao subir uma rampa. Eu acreditava que, se “mentalizasse positivamente” naquele momento, eu poderia transferir minha energia ao fusquinha. Também me percebia eterno, ao lado de meu irmão, e capaz de voar com aquele fusquinha, que honestamente eu pensava ser um avião terrestre. Obvio que eu era o comandante e não meu irmão. Pela janela, a medida que procurávamos o setor de psiquiatria do Hospital Presidente, em Santana, SP, eu observava a realidade em volta: eram carros velhos, desbotados e caindo aos pedaços; as pessoas nunca eretas totalmente, mas cada uma com seu diferencial em relação ao eixo de gravidade de seus corpos; o cinzento do ar poluído e enfim, compreendi em todos os detalhes o significado palavra grega caos.

PAUSA – agora: 19h04min

Anulando meu ritmo biológico normal pela auto-hipnose, acreditei, deu-se que penetrei num ritmo totalmente

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estranho àquilo que eu vivera até aquele momento. Durante catorze anos, tirando-se os períodos de internações psiquiátricas, nunca dormi sem ser pelo efeito do álcool ou da maconha. Portanto, o meu estado natural era ou movido a álcool ou a canabis. O alcoolismo trouxe-me (e traz) sérios problemas. Creio que até maior que os vividos na minha fase de maconheiro. Ao contrário do álcool, cuja descoberta perco na memória, a erva entrou na minha vida pela porta da frente: eu estava consciente de que estava usando uma droga forte e realmente eu queria curtir seus efeitos. Foi uma opção, e não um acidente. O primeiro baseado é inesquecível. E a mim pareceu como uma revelação, um apocalipse quando me vi num mundo sem eixo – eu tive a impressão que o mundo, e não eu, estava um tanto torto multifacetado e multicolor.

Quinze minutos depois trombei com a polícia e comecei a marcar, achando que “eles já sabiam que eu fumara um”. Mas só o cheiro, descobri depois, poderia me denunciar. Mas não fui denunciado. Sequer pelos olhos, vermelhos carmins.

Já o álcool, o primeiro porre, não menos inesquecível, se deu num momento de fraqueza, segundo meu sábio pai. Eu havia enchido a cara por causa de uma namoradinha que me metera o pé-na-bunda.

Mal tinha completado 13 anos e já bebia regularmente desde uns tempos antes. Desde então tomei gosto pelo álcool.

18.02.1994 06h30min

Voltei a dormir por volta das 03:30h.

Foi um sono de sonhos ruins e confusos. Continuo

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misturando sonhos com realidade. Gradativamente já não sou mais B. (B ponto e basta). Já me aos poucos identifico. Vou retomando minha identidade tranquilamente. Agora sou A e isto me faz lembrar um poema dum amigo meu cujo verso diz: “Agora sou Zé”. Agora sou A multimídia. A autoaquilo, autoaquiloutro, enfim, autonada, além de ser A e o Leuzo juntos. Por vezes me pergunto se foi o álcool que me fez parar no tempo e tenho lá minhas dúvidas quanto às respostas possíveis. Ao abandonar o primeiro grau do ensino na sétima série e pela metade, causei uma grande decepção a meus pais e certo estrago à minha formação. Mas o que foi, foi, está fido. Ou também não existe um “Fi-lo porque qui-lo?” 06h43min Outro momento: 12h25min Estou bastante calmo. O tratamento está evoluindo satisfatoriamente, embora ainda tenha rompantes de raiva, o que é natural. 18h47min

19.02.1994 04h05min

A Dra. Soraya concedeu-me licença de dois dias para que

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fique em casa. Durante a semana, pintei dez pequenos quadros de vários motivos. Pintar tornou-se a minha principal atividade enquanto aguardo a alta. 20.02.1994 18h28min

Retornei da licença a cerca de uma hora e meia.

Em todas as internações anteriores, nunca obtive licenças médicas, pois, ou meu estado de ansiedades não permitia, ou era regra do manicômio não dar licenças ao paciente. Espantou-me, porém, o estado crítico a que cheguei em razão de a Fátima se atrasar ao vir me buscar. Surtei feio. Percebo, então, que ainda não é hora da alta hospitalar. Sei que devo permanecer alguns dias ainda, já que meu estado psicológico é de inquietação. Tenho a impressão de que cada hora junta outras tantas horas em si. Uma hora são 60 horas e não minutos. Fui ver no sábado mesmo, um filme com a Fátima, o “Uma babá quase perfeita”, mas não tive paciência de assistir até o fim. Espero amanhã voltar à rotina do tratamento. E o mais breve possível, às minhas atividades normais. 21.02.1994 03h53min

No auge dos delírios senti que nascia de novo. Só que na pele dum gato. Senti-me como que sendo parido por uma gata-mãe. Suei bastante, senti calafrios e a Fátima percebia que havia algo errado comigo. Isso foi na terça-feira, dia 31 de janeiro.

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A minha crença na justiça, na igualdade humana, talvez seja o mote de todos os meus delírios. Dessa vez delirei também que, completando o meu ciclo vital, eu era o condutor duma nave que atravessa o espaço sideral em busca da recriação de mim mesmo. Valores como honra, justiça, bondade, família, tomam outros significados para mim. Quebrar as palavras foi um jogo que não usei desta vez. Na internação de 80, eu fiz muita livre-associação pela quebra de palavras, p.ex: QUEBRA DA PALAVRA QUEBRADA PALAVRA QUE BRADA A PALAVRA QUEBRADA PÁ, LAVRA O QUE BRADA A PÁ, LAVRA Não sei nas outras línguas, mas no português as possibilidades da quebra de palavras são infinitas. Isto é legal. Tenho a sensação de ser nosso idioma muito poético.

21.021994 06h20min

Ontem voltei ao médico. A Dra. S. estava apenas cobrindo as férias o Dr. Marcos, meu psiquiatra. Estou longe de ir-me embora. Os pensamentos continuam brotando em enxurradas. Velozes, não consigo acompanhar com a fala tudo o que penso. Continuo a ter sonhos confusos e aos acordar, misturo-os com a realidade. O Neozine que tomo deixa-me

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inquieto. Pelo argumento do psiquiatra, talvez o correto, só deverei ter alta quando estiver realmente curado desta crise. Devo me esforçar para não pensar no trabalho ou no futuro, coisas que me deixam agitado. Cada dia que passa estou tendo outro ângulo com que analiso o porquê de eu ter chegado à este estado. O alcoolismo decerto não é o único e maior problema. Por que afinal, bebo? Esta pergunta me faço mil vezes e mil vezes não tenho respostas. Hoje em dia eu consegui ter certa posição social, dinheiro e o carinho de minha mulher. Decerto estes fatores me ajudarão a sair desta. Descobri-me também com a capacidade de pintura e artesanato que devo usar como hobby, que talvez substitua a bebida. Estou com noção distorcida do passar do tempo. É demorado. Sinto que preciso escrever, mas não sei exatamente sobre o que escrever. Estou lentamente voltando à normalidade. O que é que é minha normalidade? Não sei. Sou, talvez, uma pessoa confusa. POEMA NA LÍNGUA PRIMICIA-PRIMATA Tu eu homem woman me és que sou te Assim como ato-me eat me eat te Por esta corda/corazón que razón não há De lumiá bright light luarmoon Sem ti bay (bai) side mio lado. Querer queres um grito expelir d’alma soul Soul o fuego, a lucia, o calor somos Sem a mim non-sense ou non sei se sinto

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Non sei de nada Nada somo sequer uno S´o duo O’tri O’tetra O’five Eu tu woman male female me nino Que cremos criarmos meninas e ninos E ninhos e leite deleite amores Nós que sonhamos Nossa louca promessa comprida; Nosso sonho teu eu meu malucos No qual sabemos knowemos Criadores de nós mesmos Reses rebanhos Tamanho foi o susto De brincar de God, my Deus!!! 22.02.21994

Não sei o sexo dos anjos, mas decerto o sexo de Deus é duo, com preponderância fêmea. Todas as religiões ancestrais tem sua deusa-mãe. E, de fato, é mais fácil crer numa deusa e mãe e terra, do que num deus pai etéreo e vingativo e injusto. Nessa crise pela qual passei tive diversas alucinações variando sobre este tema: Terra-deusa-mãe. Por mais que eu negue, é de fato bastante tedioso ficar aqui. Já

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estou enfastiado. A cada minuto percebo-me voltando ao meu normal. Estive, aliás, pensando na volta ao trabalho. Sei que nada será como deixei. Nestes sete anos sem picos de psicose me acostumei com a imagem de inquebrantável, infatigável que me propus. Como andarão os negócios que deixei pela metade? O que pensarão os meus clientes quando souberem que “enlouqueci”? Ou “fiquei estressado” – acho que é este segundo termo que dirão meus auxiliares. Acho que voltar ao meu ritmo normal, não será tão simples como imaginei no começo desta historia. A questão é que, mesmo tendo escapado do suicídio físico ou social, restou-me as sequelas do suicídio psíquico: por veze acho que rompi com a realidade pura e simplesmente por necessidade de mudar o registro que tenho da vida que levo como participante ativo da máquina capitalista de moer gentes. Meu problema agora não é como escrever um livro ( não sei porque se escreve um livro). Nem tampouco procurar as raízes das contradições a que me levei. Meu problema agora é curar-me e tentar, na medida do possível, voltar ao meu trabalho, à minha vidinha cotidiana sem grandes pretensões a não ser a pretensão de ser feliz. Disto não abro mão. Nesses anos todos, poucas vezes tive tempo para analisar friamente o meu ritmo de vida. Imitando o Fernando Pessoa, tantas vezes fui tão reles e tão vil; “tantas vezes abaixei-me para fora da possibilidade do soco”. À medida que era

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mordido, mordia. Houve vezes que pensei ter chegado ao fim da linha; que nada do que tinha vivido até ali valera a pena e nestas horas eu era frágil e o choro vinha lavar-me a alma, trazendo forças com que continuar.

Uma das coisas que terei que decidir, tão logo saia daqui, é o grau de dano que causa à minha saúde mental, o vinculo empregatício que mantenho com a Slavescleaners Prestadora de Serviços. Se for o vinculo realmente saudável, deverei continuar. Caso contrário, definitivamente me demito.

24.02.1994 8h42min

Estou na Terapia Ocupacional. Recebi visitas e receber visitas ajuda bastante no tratamento. Escuto agora uma canção do Raul Seixas: “Medo da Chuva”. Viajo no meu tempo de maconheiro. As musicas do Raul são profundamente singelas e de uma sabedoria que extrapola o tempo em que surgiram.

25.02.1994 10h30min

Estou pouco a pouco chegando ao final do período de internação. O pior já passou e estou voltando à razão a cada segundo que passa.

O meu psiquiatra concedeu-me licença do sábado à segunda-feira e disse-me que, após eu voltar da licença, terei três ou quatro dias a mais de internação. Só fiquei chateado com a possibilidade de ter que me afastar temporariamente do trabalho, conforme ele me disse.

01.03.1994 8h42min

Hoje completa vinte e um dias que estou internado. Tive outra licença médica. Aproveitei pra fazer um exame das vistas.

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Logo ainda a pouco, passamos nós um grupo, por psicoterapia. A grande maioria pertencia ao grupo dos alcoólatras. Havia apenas um caso ligado ao crack. É terrível como os viciados em crack tornam-se visceralmente dependentes. Tenho conversado com alguns que usam coca, e todos, em exceção, dizem ter “cheirado” algo de valor: um carro, uma casa, os apetrechos domésticos da mãe, roupas e pertences pessoais. De fato o crack é uma droga perigosa. Tem um garoto de dezesseis anos, negro e de família classe média abastada, que nos contou o seu drama: é viciado em maconha desde os doze anos e há apenas um começou a fumar crack. Conseguiu fazer um curso profissionalizante e foi contratado pelo banco Bamerindus, para o cargo de contínuo. Por causa da droga foi demitido ainda dentro do período de experiência. Jura o garoto que quer parar com o crack, mas acho que, pelas histórias que ouço de outros viciados, será um tanto difícil ele conseguir se recuperar. 02.03.1994 Amanheceu nublado e frio. Estou na expectativa de receber alta e deixar este hospital. Passo o tempo pensando em como reorganizar a minha vida, pois de fato esta psicose a transtornou. Há muitas coisas que devo fazer: consertar a casa, realizar uma poupança, retomar meu trabalho e acima de tudo, dedicar-me em tempo integral à minha mulher, que me mostrou o caminho das pedras.

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No dia-a-dia é muito fácil nos perdermos nos emaranhados dos problemas, tanto que coisas simples e que nos fazem bem, são relegadas a segundos planos.

Deixando o alcoolismo de lado (a bebida) com certeza terei todo aquele tempo que eu achava que não tinha. Com o álcool eu não vivia; eu era como uma espécie vegetal, eternamente com éter na mente. Agora é hora de encarar a vida sem subterfúgios. Tenho certeza que encontrarei saídas dignas que não o suicídio, pois a vida, mesmo com todas as mazelas inerentes, é o milagre único que vivenciamos.

A partir da decisão de riscar o álcool da minha vida, comecei a desfiar uma das meadas do novelo de Teseu. Tornou-se um problema a menos, a despeito de ter desorganizado planos meus e da Fátima que, estoicamente, antecipou suas férias nos Correios para bancar os custos desta internação.

Preciso de tempo para decodificar a profunda experiência espiritual que as alucinações me proporcionaram. No inicio eu até consegui transmitir oralmente para a Fátima o que ocorria comigo. Conforme meu estado crítico se acirrava, fui perdendo a capacidade de comunicação bem como toda a noção de espaço/tempo. Criei um historia que, dentro duma certa lógica, era plausível de ser real, pois busquei referências num fato real: Eu.

De repente me vi decifrando enigmas de culturas milenares e toda cultura era uma e todo enigma sempre era o mesmo enigma.

Propus à minha própria efígie: decifra-me ou devoro-me e descobri que toda chave de qualquer enigma está com quem o propõe.

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Nesta curta viagem, havia um enigma que não consegui decifrar: Eu. A única forma que achei viável para conseguir a chave do Eu foi mudar a posição do pronome: ao invés de primeira pessoa do singular, o Eu passaria a ser a segunda. Portanto a chave do Eu começaria por Você. Em todas as crises de PMD fui sempre um navegante. E acho mesmo que, com a navalha da lucidez riscando-me a carne, sou mesmo um navegante que busca um porto qualquer inesperado e comum a todos os mortais; um navegante que sabe um porto coincidente onde tudo será calmaria e onde resgatarei a vida pagando-a com minha própria morte. Neste porto decerto não encontrarei pessoas à minha espera, nem haverá lágrimas de alegria ou dor pela minha chegada, nem terei endereço certo onde pousar e ainda tudo, talvez, não passe apenas do reverso desta medalha e continue eu a sonhar que sou um navegante num mar eterno. Sinto, às vezes, que haverá sempre um novo mar a ser descoberto. Sei que a realidade é formada por perspectivas a partir do ponto de quem a vivencia. E as perspectivas são múltiplas como múltiplos são os mundos existentes em cada cabeça, como no ditado popular. Mas eu digo: em cada loucura, um gesto de razão.

03.03.1994

Estou em casa. Os sintomas psicóticos cessaram do mesmo modo confuso com que vieram. Agora a psicose toma forma e começo a perceber todo o labirinto. Eu tenho o fio – parodio o ator de “Philadelfia”, o filme, que diz no comercial de tv e que estreia

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amanhã: “I have a key” ( eu tenho a chave/eu tenho uma solução). Se o autor ou atores colocaram na boca da personagem que ela mesma tem a solução do enredo da trama, eu também tenho o fio da trama que invento. A única questão é me convencer que não sou uma “per sonna gen” criada por mim mesmo. Eu sou de carne osso e sou o primeiro e único gens que vingou naquele ato extremo de meu pai amar minha mãe. “Per sono gente”. Eis minha tradução para personagem. Ouço o Jornal Nacional e o mundo ao meu redor não é muito diferente do que aquele que eu teria caso fosse palestino, judeu, chinês ou bósnio. O mundo que me cerca, cerca ao cão do vizinho, as galinhas, os campos e toda impressão que temos dele são só fragmentos de luz ou som que transformamos em pensamentos. 19.03.1994

Há dias não escrevo nada. Muitas coisas ocorreram desde que deixei o hospital. Vou fazer psicanálise com a Dra. Soraya. Ontem, pela primeira vez, admiti que a psiquiatria possa me ajudar. A Dra. Soraya é bastante profissional e está oferecendo condições para que eu banque os custos de uma terapia. Em uma hora e meia de conversa, percebi o quanto de contradições trago comigo.

Fim

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Pesadelo em Vega 912 (Ocorrido no Hospital Coração de Jesus no verão de 82/83)

AS CENOBIAS13:- Foram os primeiros agrupamentos cristãos. Foi uma experiência de socialização dos meios de produção. Todos eram obrigados (como dever), a/o trabalho (ar). Basta ler as Epístolas (não se entenda pistolas – entenda- se cartas) dos Apóstolos às Igrejas de Éfeso, Corinto, e aos de Tessalônia. Essa experiência já remota de socialismo fracassou quando o poder, que era coletivo, passou às mãos de um Epískopus, palavra da qual se originou a atual denominação BISPO.

12 Tentarei aqui explicar a estrutura deste delírio a partir do que me

lembro que ocorria na minha ida pessoal. A ideia geral, quando fui internado, era escrever “o livro definitivo”, coisa bem típica do quadro de mania grandiosa do surto psicótico.

13 Neste instante eu pensava em escrever um tratado sobre o socialismo!!!

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CERTO DIA O PORRALOUCA MAIOR14 pensou: “vá reclamar com o episkopus, tá legal, ô meu?” .OK... Você venceu... desce dez/ desce vinte / desce trinta moedas da traição de Iscariotes/ sobre trinta e três anos de amor aos céus/ Ó Jesus ó XTO... AS CENTOPEIAS:- Era uma vez uma centopeia que tinha um pé a mais. Andou atrás de um sapateiro que fizesse o calçado que faltava ( as centopeias comuns nascem com cem pés apenas e já calçados) e nada. Andara e nada. Até que a coitada, desesperada em prantos, em franco desespero, jogou-se do Viaduto do Chá e teve morte instantânea quando foi “abalroada” “esmagada” por um ônibus da

TVSA15 – Transporte Urbanos de Vacas S/A. O PORRALOUCA QUASE PIRA. A GUERRA DO VIETNAME:- Os computadores de primeira geração deram como informação que o Cristo nasceria no Sudeste Asiático. Vamos por pontos: 1º Computador de Primeira Geração tem válvulas, 2º Computador de primeira geração não tem coração. MORAL DA HISTÓRIA: Culpados são os cientistas que permitiram o uso de napalm em todo o território vietnamita.

14 Por livre associação, cenóbias/centopeias /epíscopos/bispo. Há aqui

um referência à musica de Evandro Mesquita cantada no inicio dos anos 1908 pela Banda Blitz, “Você Não Soube Me Amar”.

15 Referencia à uma extinta empresa de transportes coletivos que operava na Zona Noroeste de São Paulo, na qual trabalhei como cobrador de ônibus: TUSA – Transportes Urbanos S/A uma das maiores da Capital.O itinerário citado corresponde ao que eu realizava a partir da casa de minha mãe para ir de encontro a uma companheira com quem tive um curto caso e que provocou o rompimento de meu primeiro casamento.

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E por outro lado, são burros de orelhas grandes: o cristo nasceu no nordeste do Brasil e agora anda em algum sanatório de doentes mentais por aí mundo afora. CARÁTER DO PORRALOUCA16:- Barbudo, cara de bode (expiatório); cachaceiro (esquerdinha festiva); Maria-vai-com-as-outras; mandíbulas batráquias; caninos excepcionalmente longos (chupa sangue das operárias menstruadas na clássica posição 69); mal caráter; sabe do futuro por que Marx disse; define-se e sente-se ( ou senta-se) no colo de Trotsky; passa trote de mal gosto nos calouros nas Universidades; é o centro do Universo; teme morrer enforcado; quer ter a honra d .; e glória de ser metralhado num “paredón” tendo como ultimo desejo que sejam balas de calibre 9mm de estanho (cara estranho, não?) e além de tudo façam “ dum-dum” QUANDO MARIA CHEGOU em casa, estava cabisbaixa. Pionga. Tinha subido aos céus com a genitália do Zé. “Isso foi pecado! Virge Santa Mãe de Deus... Ave, Meu Padim Padre Ciço... Santa Quitéria das Flexeiras... se pego fio? Que será de mim... pai me mata...pió, mata zé também ...desgrama daquela vaca...eu tava quase in’o... pió mais, que Zé espantou a bixinha....que vou dizer a pai? A MÃE DE MARIA:17 “ por que tu demoraste assim?... cadê a bezerra que Quim te mandou catar, Maria? – “Não achei, mãe... não consegui achar...” – “ Tu estás mentindo, Maria. Vais entrar na cinta quando teu pai chegar.” OS OLHOS DE MARIA a traem... ela chora...cora copiosamente ( não havia

16 Clara referencia à minha militância política. Note-se a baixa

autoestima. 17 Tentativa de usar como modelo de meu “romance” a história de

meus pais.

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xerox nesta época, portanto era choro verdadeiro). –“Por que tu choras, Maria? Andaste fazendo arte?” MARIA CORRE DESESPERADA e entra em seu quarto e cai na rede.... soluça ...”e a solução?”...minha genitália está ardendo, ó meu Santo Antonio, que Zé venha logo falar cum pai... O SONHO DE MARIA: “hhhuummmmmmmmmmmm...” DE COMO O PORRALOUCA QUIS FUNDAR ( ou afundar) PORRALOUCÓPOLIS:- Projeto : 1 tijolo, 1 telha, 1 pá,1 ciencia,1 sanatório para loucos que contenha: 3 mil baratas, 4 mil piolhos, 1 rato do tamanho dum gato... ou um gato do tamanho dum rato. CONSULTA-RELATÓRIO DO PORRALOUCA :- Sr. José Inácio Dias, sente fraqueza, 4 dias sem álcool. Taquicardia. Fuma pouco. Disritmia vascular. Aurícula direita. Soro no homem!...Colocaram o paciente num quarto o qual para se chegar nele é preciso subir/descer 24 degraus. É phoda ,né... 31/01/83 DE COMO O PORRALOUCA COROINHA ESCAPOU DE SER ENRRABADO PELO PADRE18:- Era quinta-feira, aproximadamente duas horas da tarde, a igreja estava fechada (portanto nenhum cachorro entrava) : havia o vinho da celebração e o padre bebeu. O PADRE pergunta: “ Qué se hacer hoy, chico? (estava bêbado?) (era neurótico de guerra! Morreu de arteriosclerose...) O COROINHA: “nadie. Nadie. Nadie.). e o padre foi

18 Vide nota 21.

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encostando sua piroca ( não se entenda paróquia, mas piroca mesmo) no PORRALOUCA COROINHA :”será que dói mesmo? É pecado...cruz credo...logo com o padre...eu hein...” e assim desesperado, o COROINHA

PORRALOUCA saiu pela porta dos fundos e foi chorar. TENDO HERODES19 banhado de sangue a Galileia, lavou as mãos na água benta que vinha de Roma e encheu a cara com vinho da melhor videira romana: aquela que nunca foi plantada e trepou a noite toda com uma dona que viera de Sabá e se dizia Rainha... Enquanto esse lance acontecia, três pessoas, duas assentadas num jumento e outro a pé, desciam rumo ao Egito. VOLTA ATRÁS NO HISTORICO DE HERODES, O BÁRBARO20:- No Brasil, foi Tiradentes, Na Galileia foi João Batista, que dizia que batizava o povo em nome de Deus, o que deixou Herodes, o Bárbaro, furioso. Numa determinada festa, Herodes queria dar uma com certa prostituta e essa não queria trabalhar de graça.: então Herodes perguntou: “Que queres tu de mim?”.- “A cabeça do João, o Baptista.”- “ Ora, minha neguinha, por que não dissestes antes?!!! Garçom, ó garçom..!..”-“Pois não, senhor Herodes?...”- “Traga-me a cabeça do João, só que escorra o sangue para não causar má impressão...”- “Algo para beber, senhor?”- “Champagne Bourdon 1936ª.C.!”

19 Mais uma referencia autobiográfica. Creio que fica evidente o

carácter megalomaníaco e messiânico o delírio, pois me considero a reencarnação do Cristo.

20 Idem.

Leuzo de Siqueira

UM NOVO PERSONAGEM: CHE GUARÁ (AMIGO LOBO):21- Enquanto o padre tentava phoder o coroinha, Che Guará lutava nas selvas amazônicas, aproximadamente na região do Vale do Araguaia ( E o Médici não se media, fingia que era cego, usava óculos escuros) : Pausa para o RAUL SEIXAS: “quem não tem colírio usa óculos escuros”. PLANO DE GUERRILHA NA SELVA:- Pelotão Zero, plano B; Pelotão 1, plano A; Pelotão Z, Plano C. COMANDO GERAL: Artilharia: pipocas à noite toda, bota lenha na fogueira, solta fogos de São João. Dia “D”:.../.../... TAKOKU NAMAO22:- candidato à vereador pela ARENA, tava na missa e na hora da eucaristia, pensando em dar uma

21 Recordo-me que inseri esta referencia a Raul Seixas porque um de

meus colegas cantava músicas dele incessantemente. Está também referido o ataque pedófilo que sofri quando fui coroinha e sacristão na Igreja de Santo Antônio, na Vila Brasilândia, entre os anos de 1968 e 1971,por parte do Padre Juan Reynaldo Catalán Cáceres. Um amigo meu, o jornalista Célio Pires, do Jornal Freguesia News, recentemente cogitou reabrirmos o caso, já que ele tem conhecimento de outro relato de pedofilia semelhante envolvendo tal reverendo. Estou aguardando o desenrolar dos fatos e a minha proposta é que seja retirada a homenagem que dá nome a uma rua do bairro e que me refiro no poema “O Cura da vila”.

22 Referencia ao ex-vereador e ex-secretário do abastecimento da prefeitura de São Paulo num dos governos de Paulo Salim Maluf, Celso Matsuda, na época (1971) candidato a primeira vereança e que se aproximou do Movimento Jovem Católico da Paróquia de Santo Antônio de Vila Brasilândia .Na época fomos cooptados em esmagadora maioria, o que resultou na eleição do dito político que após o inicio do mandato esqueceu totalmente da construção do salão paroquial a nós prometido. Para não ficarmos totalmente a ver navios, um tal de Sr. Castelo, seu chefe de campanha, ofereceu a um pequeno grupo uma semana de viagem numa Kombi pelo litoral norte. Hoje compreendo que tive mesmo muitas razões para “enlouquecer”.

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trepada com sua linda mulherzinha, se esqueceu do que prometeu: o salão piroquial (leia-se paroquial, de paróquia, não de piroca...). QUANDO MARIA VIU Zé de novo, contou que levara um piza daquelas por não ter levado a bezerra de volta. Zé ficou muito zangado com tudo isso. Enzambuou-se . Decidiu de vez falar com o pai de Maria. HISTÓRICO DOS PAIS DE MARIA: LINHAGEM PATERNA: Chegados ao Brasil por volta de 1764, eram judeus, logo convertidos ao cristianismo, pelo que ficaram conhecidos como cristãos novos. LINHAGEM MATERNA:- IBDEM IBDEM IBDEM C/ PONTOS A + descendentes de grande família burguesa de Rotterdam. HISTÓRICO DOS PAIS DE JOSÉ: LINHAGEM PATERNA: ? LINHAGEM MATERNA:

?. (José quase chegou a conclusão de ser um João Ninguém, afe!) BREVE COMENTÁRIO SOBRE A SITUAÇÃO POLITICO-INTITUCIONAL DO BRASIL EM 1983:- Ponto 1º - Crise; Ponto 2º idem; p. Ponto 3º Guerra Civil? , Ponto 4º: estão cutucando a onça com vara curta. Ponto aos 5º’s dos infernos com a guerra / a fome, queremos terra/ nóis soméôme (someone)/queremos trabalhar/ não baralho/não caralho/seu cara de pau/seu cara de cavalo/ seu mão-branca duma figa/ duma figueira/ dum figueiredo/ florido com cinco mil ´pétalas/ de rosas rosadas/ jogadas do céu/ pelo cu do mundo.

Leuzo de Siqueira

HISTORIA GERAL DO BRASIL:- aí vieram os portugueses, franceses, ingleses, holandeses e outros esses por aí afora, e levaram o pau (entenda-se pica) do Brasil a que chamaram primeiro de terra de santa cruz...depois que viram que era muita a terra, chamaram de Cruz Verdadeira ( Vera Cruz) até que um tal de Souza Cruz aportou no Recife e como as bucetas de aquém-mar estavam vazias, achou por bem fundar uma fábrica de fumo de corda que mais tarde foi adquirida pela British-American Tobbaco Co., e hoje enforca o país inteiro pelos pulmões... Isto que é categoria, ô gente boa! O PORRALOUCA INDO PARA O SEMINÁRIO23: Quase foi. Havia um padre que viu a vocação do menino e queria inicia-lo nos segredos dos céus. Aí a MÃE DO PORRALOUCA, de muito chorar, convenceu ao PAI DO

PORRALOUCA que não conseguiria viver sem seu PORRALOUQUINHA... ”Como o meu PORRALOUQUINHA vai ficar longe da mamãe?, como? ...não pode! Meu PORRALOUQUINHA tem que ter o carinho da mamãe, viu?” e assim o mundo se livrou dum PADRE PORRALOUCA. O PORRALOUCA NA EXTREMA DIREITA24:- Naqueles tempos, logo após aparecer Takuku Namao e sua concubina, algo começa a mudar na MISSA. A muito não se latia (do verbo falar latim), a muito já havia a OPÇÃO PELOS POBRES, e a nova mudança era no plano musical. (Havia o velho órgão de fole, depois um moderno eletrônico, agora instrumentos de cordas - violões). E mais, todos os sábados, às 7 da noite, a EXTREMA-DIREITA fazia com que os jovens andassem direito, extremamente direito, lendo

23 Referencia ao fato verídico que ocorreu comigo. 24 Vide nota 21.

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enfadonhamente o SANTO EVANGELHO e interpretando-o. Isto aconteceu no ano da graça de N.S.J.C. de 1972, quando a repressão descia o pau no Brasil. APARTE PARA A MORTE25:- e morreu assim / dum modo assim indigente/ indiferente enquanto gente/ morreu assim por descuido/ de quem cuidava dos outros.../ seria Pedro, seria João ou Joaquim?/ só sei que morreu assim/ indigente/indigesto/com o gesto de morder ao lábio superior/como se comesse a si próprio/ morreu enfim/ num hospital chamado/ por pura gozação/ de Cristo, o Coração! – 31.01.83-... Seis horas: HORA SAGRADA/ por quem /derrama salgadas lágrimas/ por quem /si / ama/ a esmo / mesmo / que / seja / a / esmo. PROUST E OS RATOS26:- Dom Casmurro deu um murro num burro/ que deu um coice na foice / que deu um corte na corte / da dinastia dos SANGUE-DE-BARATAS baratos/ desses que a gente acha em qualquer RATO por aí... (com licença, Sr. Antonio Callado, no lance da sacada, (ISTOÉ, 04/07/79). – Vejamos se conseguimos unir a DOUTRINA PROUSTIANA à doutrina do PDPL –

PARTIDO DO PORRALOUQUISMO: 1º ponto:- MORAL: rato não tem moral; 2º ponto:- AMORAL: rato não é amoral, não plantou nenhuma Moreira; 3º ponto:- IMORAL-: rato só é imoral quanto transmite a PESTE NEGRA/BUBONICA; 4º ponto:- imortal:- rato só é imortal quando serve de cobaias nos limpíssimos laboratórios de análises cientificas... se morre é porque era um RATO BURRO, ora essa!.

25 Vide nota 28 26 Mais uma interferência sem nexo com o delírio. Por acaso encontrei

um exemplar da revista Istoé na sala de Terapia Ocupacional e isto interferiu na “produção” de meu livro.

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INICIAÇÃO POLITICA DO PORRALOUCA:- fica pra depois,/pois neste exato momento/ outro colega do PORRALOUCA está de pés juntos, mãos amarradas/esperando/a devoração/ da/terra em pão. O VELÓRIO27: E estava ele, o COLEGA DO

PORRALOUCA morto. Pés juntos, sem vela, sem choro, sem rosas, somente samambaias. E seu paletó era carmim – cor de chocolate-fraco e continuava a morder o LÁBIO

SUPERIOR... O rapaz da funerária, furioso, dispensou ao PORRALOUCA r seus colegas da ajuda final ao recém-nascido... (queríamos leva-lo à sepultura) mas “a cova em que estás com palmas batidas” é glória que querias tê-la em vida.... (licença ô Buarque)... Um dos cinco que velaram por 4 minutos ao cadáver, duvidou que estivesse morto. Mas o homem era duro como pedra e não era Pedro. Era um JOÃO-GRANDÃO. Coração bom. Morreu por descuido; (Morte acidental dum Anarquista) Morreu no HOSPICIO CORAÇÃO DE JESUS. DUVIDAS DO PORRALOUCA: 1º O cadáver estava com uma cabeleira deste tamanho... PERGUNTA: entrará no ceu? PERGUNTA: Terá que fazer a barba? PERGUNTA: Descerá aos infernos? PERGUNTA: São Pedro irá com a cara dele? 2º- o Cadaver estava duro. RESPOSTA: porque morrera. RESPOSTA: porque não precisava + de dinheiro. RESPOSTA- PORQUE PORQUE. Resposta: estava liso (não botaram o homem no formol) Por falar em formol, falemos em FORMALIDADES: 1º. - O cadáver esteve no IML? 2º:- QUID CAUSIS MORTIS? 3º. - Quem garante? NOVISSIMOS PRINCIPIOS DO PORRALOUQUISMO: 1º. - Amar a Deus; 2º. - Amar a ti mesmo a esmo; 3º. - Amar ao mar; 4º. - amar de amor; 5º amar de dor;6º.- dar tempo ao

27 Vide nota 28

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tempo;7º.- dar o pão;.- 8º dar o sangue;9º.- pelo irmão; 10º andar: o elevador só chega até aqui porque acima disto só tem a casa do ZELADOR do edifício.... DE QUANDO O PORRALOUCA PIROU PELA 7ª VEZ:- ai, ele andou pensando que foi Jesus, depois pensou que foi Bhuda (O iluminado); depois voltou ao passado e pensou que foi VOLTAIRE; buscou e rebuscou a consciência e creu que foi ISCARIOTES; daí pensou a maior merda: pensou que foi MAO (Foi mal); se confundiu pensando em ser CONFUCIO; não feliz ainda pelo estrago causado pela explosão de POMPEIA em sua cabeça, passou pente fino e tirou os PIOLHOS, olho por olho, dente por dente (Che Guaraberaba) O PORRALOUCA NO PARAISO28:- Seguindo pela Avenida Paulista, no ônibus da Viação Tupy, linha AEROPORTO, o PORRALOUCA desceu no Paraiso e lá procurou, na Rua Pires da Moita, sua amada namorada. (Che Guaraberaba) O PORALOUCA NA LIBERDADE:- Pegou o Minhocão, entrou à esquerda, e estava feito... SOBRE O NUMERO DA BESTA FERA E O ANTICRISTO:- No Apocalipse houve um erro MATEMATICO na temática numérica da BESTA-

FERA:666. Acontece que quando o apóstolo sonhou isso, ele

28 No espaço de pouco dias ocorreram duas mortes neste Hospital, a

de um senhor alcoólatra já idoso e a de um jovem grandalhão que suponho portador de esquizofrenia, dado as características que lembro de seus delírios. Ele era muito agressivo eu era o único paciente que conseguia se aproximar e vivenciar uma “folie a deux”, ou seja , uma loucura a dois com ele. Nós o apelidáramos de Hulk.

Leuzo de Siqueira

estava na famosa posição 69, portanto o NUMERO DA

BESTA-FERA É 999. O SANTO SUDÁRIO revelado a um espelho mágico comprado na loja de magos já cita, MOSTRA claramente às CLARAS MENTES quem é o ANTICRISTO: 1º. - a fome; 2º. - a ignorância; 3º. - a estupidez; 4º a suruba; 5º. a PORRALOUCURA.

CHEGADA AO EGITO:- Era tardezinha. O sol a pino parecia do tamanho do deserto. Ao longe avistou José a primeira das pirâmides. Logo após, outra. Logo mais, a ultima. Era o começo da PROMESSA feita a Abraão dias atrás... “O ESPIRITO SANTO...” ora, que espirito? Que santo?...Se minha PIROCA sequer levanta? pensou Zé. “mas o menino taí... vieram os MAGOS... tenho que batalhar pra protegê-lo... quinze dias de viagem foi phoda..ái...c’ralho...que saco!...e o menino chora que só vendo...aliás, não sei por que não O VENDO como ESCRAVO...bem que me pagariam uns bons 30 DINARIOS

por ele...é forte...olhos lindos...ó, raios, qu’stou a pensaire?...ó puta quel pariu...”.E quatro figuras alongavam suas sombras sobre a fina areia do SAHARA ...rumo a Tebas....rumo à cruz de prata a ser colocada no pescoço de ISCARIOTES no ANO 2000.

AMANHÃ:- 01/02/83 É DIA DE LEVANTAR E MUDAR O MUNDO LIMPANDO A CABEÇA NUMA BOA.

AGNUS DEI:- fiat lux et pace...

REQUIEST CAT IN PACE. Amém.

POIM POIM POIM

RAT-TA-ATA-TATATATATATATAAAA…..

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CIRCENS ET PANIS Devido A PRESSÕES ATMOSFERICAS (24milibares + ou – cerca de 10000 pingas) o PORRALOUCA deixou para trás alguns trechos importantes: Aviso aos Navegantes:/que naveguem o quanto antes que o mar/transborde/ pelas bordas/ dos campos/ campinas / e Capões Redondos! O DIA EM QUE BOTARAM FOGO NO CU DO MUNDO:- a historia foice assim: / de mil passará / de dois mil, não passará... Tendo então o PORRALOUCA lançado as bases de sua doutrina (2+2+4: 2= 2:1+ ½ etç etç e tal) achou que estava sendo manipulado pela PRAGA COMUNISTA que grassava no mundo. Pensou que o cigarro Roliúde fosse um míssil (supositóriamente) e enfiou o dedo no cu, ou seja: comeu o próprio rabo pensando que sangrava a mãe, vejam só!...1ºVERBO.só/lidão/só/mente/lá/crimas/dó/minantes/mi/mente .2º VERBO.- A BUNDA/ TEM/ DUAS BANDAS/ E UM/ CU DE ANTA. 3º VERBO:- Ama/mam/ama/mmm/or.r. O PESADELO chega al fine e o papel tá caro prá chuchu/ já nem como vou fazer pra limpar o KUWEIT / jingle bells sino bells acabou o papel/ não faz mal/ limpa com o jornal das 8/ não faz mal, não faz mal... THE END do começo. Não percam a nova novela das 8:“EL PIROCÓN DEL CHE GUARABERABA EM LA FREQUEZIA DEL Ó!29” Jan/1983

29 Na internação seguinte retomei o delírio, porém não encontro mais

os originais em meus papeis. Creio que os perdi.

Leuzo de Siqueira

EM DEFESA DO CAPS-AD AD PRIORI

E DA INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA AD POSTERIORI

Há quem possa achar que minha posição, quanto ao Movimento Antimanicomial, seja dúbia, por isso pretende com este breve relato colocar alguns pingos nos iis.

Eu e mais três irmãos somos portadores de “distúrbios” mentais e um neste momento está internado já quase há um ano, intermitentemente, com diagnóstico de esquizofrenia hebefrênica.

Todos nós em algum momento de nossas vidas já passamos pelo processo de internamento psiquiátrico.

No que me toca, coleciono quatro anos e alguns poucos meses de internação, caso fosse contínua. Meu amado parente já coleciona cerca de quatorze meses.

Ele está revoltado pelo fato de o mantermos interno mas se algum dia ele voltar à luz da razão, considerará com seus próprios julgamentos a sinuca de bico em que nos

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encontrávamos. Eu conheço e amo muito meu parente e estou acostumado com jeito dele pensar sobre a vida.

Minha mãe tem 85 anos completados em outubro passado e padece do mal de Altzheimer e era ela quem cuidou de meu querido parente durante os últimos dezoito anos. Tivemos que separá-los e colocar minha mãe aos cuidados de uma irmã que, a despeito de ser bipolar como eu, ainda reúne condições de afeto que permitem dar carinho à nossa mãe, única coisa que podemos neste estágio oferecer-lhe.

Internar meu parente foi uma decisão dolorosa – ele repete com razão a toda hora que não temos o direito de encarcera-lo- mas foi a única opção que se nos mostrou viável a partir do momento em que ele, decerto que tentando se livrar da grande dor da não-lucidez que o atinge e querendo colocar um fim no sofrimento causado pelo Altzheimer à minha mãe, tentou colocar fogo na casa onde ambos viviam.

Só não o conseguiu porque minha irmã mais nova havia tirado todo o álcool da casa com medo que minha mãe o confundisse com cândida E foi uma confusão exatamente como essa que evitou o pior. Meu irmão não percebeu que jogava alvejante nas camas, sequer quando tentou atear fogo com fósforos à candida. No quintal onde eles moravam, há três habitações e as habitações vizinhas são parede-e-meia. Estaria dada a bagaça, como se diria cruelmente nos botequins que frequento.

Creiam-me os xiitas – em todos os movimentos os há, assim como os dogmáticos, os radicais etç. etç. – que não somos monstros insensíveis. Apenas o ocorrido nos dá convicção da necessidade de internação psiquiátrica, num ambiente decente e humano.

Isto: num ambiente decente e humano. Justamente o que está sendo negado pelo Estado a meu parente neste

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exato instante. Ele está que como jogado à própria sorte e sequer há lavanderia para a higiene de suas roupas. Ele se recusa a receber visitas, o que é um direito, e também a ser medicado, outro direito.

Em breve ele ganhará “a liberdade”. É um direito primordial dele. Ele provavelmente tentará outra vez se matar, outro direito. E tentará por outra vez um fim ao sofrimento de nossa Mãe. E isto será um homicídio, culposo, mas homicídio e será ainda mais agravado se alguém do quintal vier a morrer também. Ele tem o direito de cometer um matricídio seguido de suicídio? E teremos nós parentes que responder perante a Justiça e nossas consciências por abandono de incapazes. Como o grande Lenin, eu pergunto “O que fazer?” e como resposta, obtenho: o que certo ou erradamente estamos fazendo agora.

Cabe notar que durante anos meu parente foi cliente do CAPS-Centro de Atenção Psicossocial de Vila Brasilândia e a mais moderna medicação que tomou foi Haldol e seus correlatos. Percebemos que o problema vinha se agravando desde o ano de 2000. O CAPS de Vila Brasilândia falhou na profilaxia de meu parente, é evidente. Mas isto não condena os outros CAPS ao extermínio. Longe disto.

Agora falarei com conhecimento de causa do CAPS AD Garça SP.

Anteriormente, antes da criação do seguimento AD, que cuida exclusivamente de drogados e alcoólatras, eu tentei aderir ao tratamento no CAPS convencional, aquele que cuida das moléstias mentais em geral. Não deu certo. Talvez porque eu mesmo tivesse uma visão cética e preconceituosa sobre este tipo de tratamento, talvez a mesma visão que hoje combato. Já naquela é época, no CAPS “normal” de Garça, a doutora me receitou medicamento de alto custo. Mas enfim, recusei-me ao tratamento. A recidiva foi fatal.

Porém, quando foi inaugurado o equipamento do

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CAPS AD eu aderi de imediato, pois estava muito debilitado pelo álcool e pela depressão.

Quando lá cheguei, ainda na primeira semana, éramos apenas 30 pacientes internos-dia. Quatro meses depois, quando abandonei temporariamente o projeto devido a uma recaída, já havia uma superlotação e hoje, abril de 2012, com oito meses de funcionamento, são 53 pacientes internos-dia e cerca de 80 ambulatoriais. Eu me incluindo nestes números.

A equipe é formada por um psiquiatra, uma enfermeira chefe, um técnico de enfermagem, três psicólogos, dois terapeutas ocupacionais, um atendente de enfermagem e um auxiliar de serviços gerais que trabalham de segunda a sexta-feira das 07,00h as 17,00h. São servidas três refeições diárias: café da manhã, almoço e lanche da tarde. Trata-se de um CAPS I, segundo a classificação do SUS e este aparelho é destinado a cidades com mais de 50000 habitantes. A minha tem 44.000 e só conseguiu o convenio porque se uniu a prefeituras vizinhas.

Alguns pacientes são medicados lá mesmo, outros levam a medicação pra se medicarem em casa. Alguns pacientes, ainda, só fazem refeições no CAPS AD por não terem recursos ou por gastarem tudo o que ganham nas biqueiras.

No meu caso específico, faço uso de medicações de alto custo, a única que até aqui mantém meus transtorno sob controle, e a aposentadoria me garante os almoços e um padrão de vida senão o que tinha antes de me aposentar, pelo menos digno.

Correndo o risco de ser processado por falsidade ideológica ou ter meu tratamento suspenso e como sou excelente ator; com a cumplicidade de minha mulher e documentos forjados convenci ao Dr. Ottoboni que sou portador de esquizofrenia e, portanto, faço jus ao

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medicamento. Caso contrário eu não teria condições financeiras de

adquiri-los. Já meu parente nada entende de teatro, mas sua tragédia é mais pungente que a minha.

Ele tem medicamentos de ultima geração, recusa-se a toma-la e está internado num manicômio pior que aqueles que frequentei nos anos setenta do século passado e não vejo outra alternativa à família que não seja abandoná-lo à sua sina ou optar por interditá-lo judicialmente.

Eis algumas das razões pelas quais defendo o CAPS AD e sou a favor de hospitais psiquiátricos bem equipados que possam receber os casos extremos de esquizofrenia ou mania delirante.

Abril/2012

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ALGUNS DOCUMENTOS PERTINENTES

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL

Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido

mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de

doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e

serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Lei nº 8.080/90 –

Art. 2º. A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o

Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e

execução e políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos

de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que

assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua

promoção, proteção e recuperação.

§ 4º. O conjunto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e

instituições públicas, federais, estaduais e municipais, da Administração

direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o

Sistema Único de Saúde (SUS)

Lei nº 10216, de 06 de abril de 2001.

Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de

transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

Lei nº 10.424, de 15 de abril de 2002.

Regulamenta o SUS.

Legislação em Saúde Mental: 1990 - 2004 / Ministério da Saúde,

Secretaria Executiva, Secretaria de Atenção à Saúde - 5. ed. ampl. -

Brasília: Ministério da Saúde, 2004

Saúde Mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial /

Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de

Ações Programáticas Estratégicas - Brasília: Ministério da Saúde,

2004.

Leuzo de Siqueira

Sobre o Autor

Leuzo de Siqueira, 53 anos, é poeta, musico e escritor. É graduando em Filosofia pela Unesp-Universidade Estadual Paulista, campus de Marilia. Pernambucano, foi criado na Vila Brasilândia, bairro operário de São Paulo, SP,. desde seu segundo ano de vida, onde foi militante em movimentos populares e partidário contra a ditadura militar. Há dez anos reside em Garça, no interior do Estado, região de Marília.

Há 23 anos é casado com Fátima J. da S. Siqueira, estudante do quarto ano de Psicologia na FASU-FAEF- Faculdades de Ciências da Saúde, Agronomia e Engenharia Florestal, campus Rosa Dourada, Garça SP.

Está aposentado atualmente por incapacidade, devido ao Transtorno Afetivo Bipolar e Alcoolismo, tendo trabalhado no Setor Privado de Serviços. Sua ultima função foi gerente comercial de uma empresa limpadora de grande porte na Capital Paulista, na qual atuou por quatorze anos, tendo se desligado de suas funções em março de 2000.

É usuário do SUS – Sistema Único de Saúde e cliente do Capes AD Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas, na cidade onde mora.

Contato com o autor: [email protected]