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LEITE, Fábio Carvalho. Liberdade de Expressão e Direito à honra: novas diretrizes para um velho problema. In: Clèmerson Merlin Clève; Alexandre Freire. (Org.). Direitos fundamentais e jurisdição constitucional: análise, crítica e contribuições. 1ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, v. , p. 395- 408. Liberdade de Expressão e direito à honra: novas diretrizes para um velho problema Fábio Carvalho Leite 1 1. Introdução O problema da liberdade de expressão no Brasil talvez seja a ideia de que não há propriamente um problema a ser resolvido. Afinal, trata-se de um direito (essencial à democracia) que foi restabelecido pela Constituição de 1988, que, de forma categórica, baniu a censura do ordenamento jurídico do País (arts. 5º, IX, e 220, § 2º). Esta garantia, contudo, limita-se a proibir restrições (a priori ou a posteriori) impostas pelos órgãos de governo sem dúvida um grande passo, se considerarmos a experiência vivenciada sob o regime constitucional anterior, mas que nada (ou muito pouco) diz a respeito do conteúdoprotegido pela liberdade de expressão, livre de qualquer espécie de condenação pelo poder público. Em outras palavras: há uma garantia de que um discurso não será proibido pelo governo, mas nenhuma garantia de que não será condenado pelo Poder Judiciário. A restrição imposta pelo Poder Judiciário, no entanto, não é compreendida como um problema sequer semelhante ao que decorre da censura. E isso, por uma série de razões: (i) nestes casos é assegurada a liberdade de expressão, na medida em que não há censura prévia; (ii) a liberdade de expressão não é nem poderia ser um direito absoluto; (iii) a Constituição protege outros valores, como a honra, a imagem, a vida privada e a intimidade (art. 5º, X); (iv) cabe ao Poder Judiciário a função justamente de dirimir uma lide, dizendo o direito num caso concreto; (v) a própria Constituição, após estabelecer que “é livre a manifestação do pensamento”, assegurou, como contrapartida, não apenas 1 Doutor em Direito Público (UERJ), Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado (PUC-Rio). Bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq. Professor de Direito Constitucional dos cursos de graduação, mestrado e doutorado da PUC-Rio. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB- RJ (2016- ). Assessor Jurídico da Reitoria da PUC-Rio.

Liberdade de Expressão e direito à honra: novas diretrizes para um velho problema

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LEITE, Fábio Carvalho. Liberdade de Expressão e Direito à honra: novas diretrizes para um velho

problema. In: Clèmerson Merlin Clève; Alexandre Freire. (Org.). Direitos fundamentais e jurisdição

constitucional: análise, crítica e contribuições. 1ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, v. , p. 395-

408.

Liberdade de Expressão e direito à honra: novas diretrizes para um

velho problema

Fábio Carvalho Leite1

1. Introdução

O problema da liberdade de expressão no Brasil talvez seja a ideia de que não há

propriamente um problema a ser resolvido. Afinal, trata-se de um direito (essencial à

democracia) que foi restabelecido pela Constituição de 1988, que, de forma categórica,

baniu a censura do ordenamento jurídico do País (arts. 5º, IX, e 220, § 2º). Esta garantia,

contudo, limita-se a proibir restrições (a priori ou a posteriori) impostas pelos órgãos

de governo – sem dúvida um grande passo, se considerarmos a experiência vivenciada

sob o regime constitucional anterior, mas que nada (ou muito pouco) diz a respeito do

“conteúdo” protegido pela liberdade de expressão, livre de qualquer espécie de

condenação pelo poder público. Em outras palavras: há uma garantia de que um

discurso não será proibido pelo governo, mas nenhuma garantia de que não será

condenado pelo Poder Judiciário.

A restrição imposta pelo Poder Judiciário, no entanto, não é compreendida como um

problema sequer semelhante ao que decorre da censura. E isso, por uma série de razões:

(i) nestes casos é assegurada a liberdade de expressão, na medida em que não há

censura prévia; (ii) a liberdade de expressão não é nem poderia ser um direito absoluto;

(iii) a Constituição protege outros valores, como a honra, a imagem, a vida privada e a

intimidade (art. 5º, X); (iv) cabe ao Poder Judiciário a função justamente de dirimir uma

lide, dizendo o direito num caso concreto; (v) a própria Constituição, após estabelecer

que “é livre a manifestação do pensamento”, assegurou, como contrapartida, não apenas

1 Doutor em Direito Público (UERJ), Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado (PUC-Rio).

Bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq. Professor de Direito Constitucional dos cursos de

graduação, mestrado e doutorado da PUC-Rio. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB-

RJ (2016- ). Assessor Jurídico da Reitoria da PUC-Rio.

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o “direito de resposta, proporcional ao agravo”, como a possibilidade de indenização

por dano material, moral ou à imagem.

Entende-se que há uma diferença entre proibir alguém de se expressar (censura ou

restrição judicial a priori) e condenar alguém por haver se expressado de determinada

forma (restrição judicial a posteriori), mas qual é real extensão desta diferença?

Há alguns anos, um pequeno jornal da cidade de Santa Cruz do Rio Pardo, interior de

São Paulo, foi condenado a pagar o valor de R$ 593 mil de indenização a um juiz por

conta de uma reportagem em que se afirmava que a Prefeitura custeava os gastos do

magistrado com o aluguel de sua residência e sua conta telefônica2. O valor da

indenização correspondia a 2,5 anos de faturamento bruto da empresa, o que sugere que

a consequência desta condenação seria o fechamento definitivo do jornal. Deixando de

lado o mérito deste caso, não seria razoável supor que, se o dono do jornal soubesse que

a publicação da reportagem geraria uma condenação no valor de 593 mil reais, ele

preferiria não ter divulgado a matéria e assim mantido o seu jornal em funcionamento?

Em outras palavras, será que o próprio dono do jornal não preferiria uma proibição

prévia (a uma reportagem) do que uma condenação posterior (que implicaria, na prática,

o fim do jornal)? Se correta a suposição, então haveria uma vantagem em submeter-se a

um procedimento semelhante ao da censura do regime autoritário em lugar de desfrutar

de uma liberdade de expressão assegurada pela Constituição democrática.

Este quadro, embora resulte da efetiva aplicação da liberdade de expressão – em sua

visão mais corrente (a saber, uma garantia contra censura prévia) –, contraria justamente

uma das razões por trás desta concepção: o argumento de que seria preferível penalizar

os poucos que cometem eventual abuso do que penalizar a todos, suprimindo de

antemão o exercício da liberdade de expressão.

Como ignorar que este é um quadro problemático, muito embora esteja de acordo com

as ideias em voga no Brasil sobre harmonização de direitos fundamentais em caso de

2 http://www.conjur.com.br/2009-jun-26/jornal-interior-sp-condenado-indenizar-juiz-593-mil. Acesso em

27/06/2009.

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conflito entre liberdade de expressão e direito à honra? O caso citado é extremo, sem

dúvida, mas o problema se repete em qualquer situação onde aquele que se manifestou,

no exercício da liberdade de expressão, preferiria não tê-lo feito se soubesse que seria

condenado a pagar uma indenização por isso.

As ideias aqui apresentadas como meras diretrizes – mais apresentadas do que

propriamente desenvolvidas (o que iria requerer maior espaço) – não são

necessariamente originais. Qualifico como “novas” as diretrizes apenas porque os

aspectos que as sustentam têm sido negligenciados pela doutrina e pela jurisprudência –

isso quando são considerados.

É chegado o momento de reconhecermos há um problema a ser resolvido. Não se trata

de uma idiossincrasia ou de mera preferencia pessoal ou ideológica pela liberdade de

expressão. Contra este argumento, lembro que em 29 de outubro de 2013 o Brasil foi

denunciado junto à Corte Interamericana de Direitos justamente pelo fato de sua

legislação (ao menos da forma como tem sido aplicada) condenar críticas e denúncias

contra ocupantes de cargos públicos3

– o que revela a que ponto extremo este

entendimento chegou.

Diante deste quadro, apresento quatro breves diretrizes apenas para dar início a uma

reflexão sobre a necessidade de uma alteração talvez radical na forma como estes

conflitos têm sido resolvidos pelo Poder Judiciário no Brasil: 1. compreender que a

censura judicial é ou pode ser semelhante à censura governamental em seus efeitos; 2.

reconhecer uma posição preferencial da Liberdade de expressão em conflito com o

direito à honra; 3. decidir estes conflitos com eficácia inter partes, mas com uma

perspectiva erga omnes; 4. considerar o direito de resposta como sanção preferencial.

2. Compreender que a sanção judicial é ou pode ser semelhante à censura

governamental em seus efeitos

3 http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,brasil-e-denunciado-por-punir-criticas-a-

politicos,1091279,0.htm Acesso em 29/10/2013.

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O primeiro ponto a ser considerado na análise de qualquer caso envolvendo liberdade de

expressão é que a diferença entre restrição prévia (judicial ou mesmo governamental) e

sanção judicial posterior não apenas é pequena – certamente menor do que se imagina –

como, do ponto de visa de quem se expressa, a segunda pode ser pior do que a primeira,

ou tão ruim quanto. Se a assertiva estiver correta, devemos indagar por que

absolutamente todas as razões que justificam a vedação à censura prévia simplesmente

desaparecem quando se trata de impor sanção posterior.

Consideremos o caso de um livro biográfico, escrito por A, onde, em determinado

capítulo, é narrado um episódio que viola a honra de B, por conta da forma como é

retratado por A. Suponhamos que A tenha tomado ciência dos trechos da obra que

considera ofensivos à sua honra. Muitos certamente entenderiam que violaria a

liberdade de expressão de A uma decisão judicial que vedasse a distribuição da obra,

ainda na gráfica. Por outro lado, uma decisão judicial que determinasse a retirada de

circulação deste mesmo livro, já à venda nas livrarias há alguns meses, não causaria

tanto ou ao menos o mesmo espanto. Afinal, não teria havido restrição prévia. Mas se

esta é a compreensão acerca da liberdade de expressão, o que dizer da situação onde o

livro acabou de chegar às livrarias e imediatamente em seguida foi proibido? Neste

cenário, a restrição à obra teria ocorrido a posteriori, mas o conteúdo não teria

alcançado o público (a razão que justifica a vedação a priori). Seria então a liberdade de

expressão uma garantia meramente formal, que não resolve e apenas adia a questão que

deveria ser central, qual seja: saber se o conteúdo está ou não protegido pela ordem

jurídica? Do ponto de vista do autor do livro, o fato de a restrição judicial ter sido

posterior e não anterior seria indiferente neste caso. E a ideia de que o conteúdo ao

menos foi divulgado também não teria sentido aqui, pois o público sequer teve a

oportunidade de ter acesso à obra. E se, além da determinação de recolhimento da obra,

o autor A for também condenado ao pagamento de indenização, a sanção posterior pode

se tornar ainda pior do que a restrição prévia.

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É curioso constatar que, em geral, há uma defesa apaixonada a favor da liberdade de

expressão, compreendida esta apenas como uma garantia contra a censura prévia, mas

que é abandonada logo na primeira esquina quando o conteúdo em questão é divulgado.

Fernando Toller (2010) identificou a raiz deste reducionismo sobre a liberdade de

expressão na doutrina das restrições prévias (prior restraint doctrine) de William

Blackstone, que exerceu forte influência no constitucionalismo contemporâneo. De

acordo com Toller, o núcleo da doutrina blackstoniana pode ser identificado num

simples parágrafo de sua prestigiada obra Comentários sobre as Leis da Inglaterra

(1765), quando trata dos atos ilícitos do Direito Público e discorre sobre a situação do

Direito de imprensa inglês de sua época:

A liberdade de imprensa é, na verdade, essencial à natureza de um estado livre; mas ela

consiste em não impor restrições prévias às publicações, e não na liberdade relativa à

sanção por impressos criminais quando estes forem publicados. Todo homem livre tem

um direito indubitável a pôr diante do público as opiniões que lhe aprazerem: proibir

isto é destruir a liberdade de imprensa: mas, se ele publica o que é impróprio, malicioso

ou ilegal, deve assumir a consequência de sua própria temeridade. (apud. Toller, 2010,

p. 25)

Toller assume uma posição crítica em relação ao que chama de “formalismo da

liberdade de expressão”, que decorre desta doutrina das restrições prévias, e que associa

a liberdade de expressão a uma absoluta proibição de censura prévia, mas que admite a

possibilidade de uma responsabilização posterior (prior restraints and subsequent

punishments). A distinção entre restrições prévias e punições posteriores, contudo, é

mais frágil do que parece (Bertoni, 2007; Toller, 2010) – embora o entendimento

consolidado no Brasil continue ignorando este fato.

Mas, além deste ponto, há ainda outra crítica a ser feita a esta concepção formalista da

liberdade de expressão. As razões que sustentam a doutrina das restrições prévias, de

acordo com Toller, podem ser resumidas basicamente às seguintes ideias: (i) que toda

expressão seja exposta ao menos uma vez e (ii) que é melhor penalizar os poucos que

abusam do que sufocar de antemão a todos. São boas razões, sem dúvida, que ressaltam

uma nítida preocupação com o regime democrático e a construção de um espaço público

de debate ou, para usar a consagrada pela jurisprudência da Suprema Corte norte-

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americana, a partir do pensamento de Stuart Mill, um livre mercado de ideias (free

marketplace of ideas)4. No entanto, se o bônus é compartilhado com o público, o ônus é

suportado exclusivamente por quem se expressa, e esse preço parece estar ocultado nas

reflexões sobre a doutrina das restrições prévias. Assim, se um cidadão, em seu blog,

faz duras e pesadas críticas ao modo como um juiz se comportou ao longo de um

processo ou como determinado jornal atuou na cobertura de uma campanha eleitoral, o

público terá se beneficiado das críticas feitas, mas, em caso de condenação (em valor de

50 mil reais, por exemplo), esta será suportada exclusivamente pelo autor das críticas.

Ou seja, na medida em que não se admite restrição prévia, não houve obstáculo ao livre

mercado de ideias e as críticas (duras e pesadas) contribuíram para o debate público. Do

ponto de vista da coletividade, a liberdade de expressão, na sua concepção formalista,

garantiu a livre circulação de ideias, de que tanto depende a democracia. Do ponto de

vista do autor das críticas, a difusão de seu pensamento custou-lhe uma quantia

considerável, que poderá fazer com que nunca mais manifeste suas opiniões –

justamente aquelas que foram importantes para o debate público.

A visão formalista da liberdade de expressão ataca a censura visível – a restrição prévia

–, mas abre as portas, sem qualquer receio ou reflexão, a uma censura invisível – a

autocensura –, que pode gerar o mesmo problema que a primeira: a ausência de um

debate público livre e aberto, ou, para usar expressão adotada pela doutrina norte-

americana, um chilling effect – efeito de resfriamento no debate público.

A atenção conferida a este aspecto explica, ao menos em parte, a postura da Suprema

Corte dos EUA nos casos envolvendo liberdade de expressão, que resulta numa

4 As expressões “free market place of ideas” ou apenas “market place of ideas” não são encontradas nas

obras de Stuart Mill, mas foram construídas a partir das ideias desenvolvidas pelo autor em seu livro “On

Liberty” (1859). O Justice Holmes utiliza a expressão “free trade in ideas” e recorre à analogia do

mercado (econômico) em seu voto divergente no caso Abrams v. US, julgado em 1919 pela Suprema

Corte: “But when men have realized that time has upset many fighting faiths, they may come to believe

even more than they believe the very foundations of their own conduct that the ultimate good desired is

better reached by free trade in ideas -- that the best test of truth is the power of the thought to get itself

accepted in the competition of the market, and that truth is the only ground upon which their wishes

safely can be carried out.” A expressão “market place of ideas” é citada pela primeira vez na

jurisprudência da Suprema Corte no voto concorrente do Justice Douglas, em US v. Rumely (1953):

“Like the publishers of newspapers, magazines, or books, this publisher bids for the minds of men in the

market place of ideas.”

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“posição preferencial da liberdade de expressão” (preferred position doctrine) diante de

outros direitos como o direito à honra e/ou à imagem.

3. Reconhecer uma posição preferencial da liberdade de expressão em conflito com

o direito à honra

A ideia de posição preferencial da liberdade de expressão é ainda pouco conhecida e

difundida no Brasil5. Uma explicação possível talvez seja o fato de se compreender que

os conflitos entre liberdade de expressão e direito à honra (ou mesmo direitos da

personalidade em geral) podem e devem ser resolvidos numa harmonização de direitos,

a partir da leitura dos incisos IV e V do art. 5º da Constituição. Não haveria assim um

“problema” a demandar uma solução aparentemente tão controversa e radical como a de

reconhecer a priori uma posição preferencial de um direito fundamental sobre outro (de

mesma hierarquia e importância).

Contudo, e a partir do exposto até aqui, deve-se indagar se é realmente válido falar-se

em harmonização nestes casos. Se a diferença entre restrição prévia e condenação

posterior não é tão simples como se imagina, podendo a segunda ser ainda pior, ao

agente, do que a primeira, como poderíamos reconhecer que num caso de condenação a

pagamento de indenização ou recolhimento de uma obra, a liberdade de expressão foi

realmente garantida? A doutrina brasileira, mesmo na seara constitucionalista,

negligencia este ponto, talvez por considerar que a aplicação do postulado da

proporcionalidade como método de solução ao conflito asseguraria a liberdade de

expressão na sua devida proporção. Mas a parte que cabe à liberdade de expressão,

nesta aparente harmonização de direitos fundamentais, continua limitada ao aspecto

formalista, sem qualquer consideração sobre a proteção do conteúdo daquilo que é

divulgado.

5

Este quadro talvez sofra uma alteração com o julgamento da ADI 4815, onde se discute a

constitucionalidade das biografias não autorizadas, já que o parecer emitido pela Procuradoria Geral da

República, pela inconstitucionalidade da exigência de autorização dos biografados nestes casos, recorre

ao argumento da posição preferencial da liberdade de expressão.

Trabalhos recentes, como os de Schreiber (2007), Chequer (2011) e Mello (2012), também contribuem

para que a discussão no Brasil incorpore estas reflexões.

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Algum avanço sobre este ponto pode ser notado na abordagem de Paulo Gustavo Gonet

Branco (Mendes e Branco, 2013, p. 315), como se verifica no seguinte trecho:

Se um individuo se defronta com iminente publicação de noticia que viola

indevidamente a sua privacidade ou a honra, há de se lhe reconhecer o direito de exigir,

pela via judiciária, que a matéria não seja divulgada. Não há por que cobrar que aguarde

a consumação do prejuízo ao seu direito fundamental, para, somente então, vir a buscar

uma compensação econômica. Veja-se que, quando se tem por assentado o bom

fundamento do pedido de indenização, isso significa que a matéria não tinha o abono do

Direito para ser publicada, antes mesmo de consumado o dano. (grifei)

Se entendermos, portanto, que não há em regra6 harmonização de valores nestes casos, e

que apenas um dos diretos em tensão poderá ser efetivamente tutelado, decidir em favor

dos direitos da personalidade torna-se uma tarefa mais difícil, pois implica afirmar que

determinado conteúdo não está protegido pelo ordenamento jurídico.

É compreensível a resistência à ideia de restrição prévia – sobretudo no Brasil, onde o

fim do regime autoritário é recente, contando pouco mais de duas décadas. Mas

devemos fazer o certo pelas razões certas, ou seja, impedir a restrição prévia para trazer

a garantia a quem se expressa de que seu discurso não será condenado, e não para

simplesmente procrastinar este juízo. Do ponto de vista de quem se manifesta (e,

indiretamente, para a própria democracia), é essencial a segurança jurídica a respeito da

licitude do conteúdo: ou o discurso está protegido ou não está!

Esta proposta não torna o caso difícil; antes, devolve a ele a dificuldade que já lhe é (e

sempre foi) inerente e retira o julgador de uma imaginária zona de conforto

proporcionada pela ideia de harmonização de direitos. O caso é difícil justamente

porque uma das partes não terá o seu interesse atendido: ou aquele que se manifesta

estará impedido de fazê-lo ou aquele que sofreu o dano terá que suportá-lo. Em

princípio, não há meio termo (à exceção do direito de resposta, como será exposto

adiante).

6 Pode-se falar em harmonização nas situações em que aquele que foi ofendido em sua honra tem

assegurado o seu direito de resposta. Este ponto será abordado adiante.

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É por esta razão que se justifica uma tomada de posição a priori em favor de um destes

direitos, cabendo esclarecer apenas por que o direito privilegiado deve ser a liberdade

de expressão. A simples importação da doutrina norte-americana aqui esbarraria em

alguns problemas, já que a Suprema Corte confere uma posição preferencial aos direitos

previstos na Primeira Emenda (entre os quais se inclui a liberdade de expressão) quando

em confronto com outros direitos. No caso do Brasil, a Constituição não confere

nenhum destaque formal à liberdade de expressão. Encontrando-se no mesmo nível dos

demais direitos fundamentais, poder-se-ia entender que a preferência por um ou outro

seria decorrência da perspectiva do intérprete. Nesse sentido, a posição da Suprema

Corte seria apenas fruto de uma tradição histórica e cultural do direito norte-americano

– mas apenas uma dentre outras possíveis. No entanto, há também uma razão de ordem

material que justifica a posição preferencial da liberdade de expressão, que relaciona

este direito com a democracia, e que explica a adoção desta posição de destaque por

outras Cortes Constitucionais, como demonstra Claudio Chequer (2011, pp. 124-137),

deixando de ser uma peculiaridade norte-americana. Já o Brasil parece simplesmente

ignorar a própria expressão “posição preferencial da liberdade de expressão”, o que nos

afasta do nível deste debate em outros países.

De todo modo, diante dos limites estreitos deste trabalho, pretendo oferecer dois

argumentos (muito próximos) em favor da posição preferencial da liberdade de

expressão voltado exclusivamente para o confronto com o direito à honra, e que

portanto independeriam da adoção da doutrina norte-americana. Em primeiro lugar,

devemos considerar que a importância da liberdade de expressão, compreendida aqui

como a efetiva proteção do conteúdo, é diretamente proporcional ao tom crítico daquilo

que é divulgado. Quanto mais contundente e forte for o comentário, a opinião, a crítica,

podendo inclusive ser ofensivos (Dimoulis e Christopoulos, 2009), maior será a

importância da garantia da liberdade de expressão. Entender de outra forma significaria

reconhecer que a liberdade de expressão protege apenas o conteúdo que a ninguém

interessaria censurar. Portanto, a liberdade de expressão, nas situações em que se revela

importante, necessariamente ou provavelmente afeta a honra de alguém.

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O segundo ponto, e que se relaciona com o primeiro, é que a honra de uma pessoa

(física ou jurídica) só pode ser atingida pela manifestação de quem esteja exercendo sua

liberdade de expressão. É dizer, o direito à honra está diretamente relacionado à

liberdade de expressão – embora a recíproca não seja verdadeira. A liberdade de

expressão pode limitar e ser limitada por outros direitos (privacidade, intimidade,

direitos da criança e do adolescente, saúde pública), enquanto a honra só pode ser

limitada pela liberdade de expressão. Assim, entender que sempre que a honra de uma

pessoa é atingida deveria haver condenação ao pagamento de indenização por danos

morais seria tornar este um direito absoluto, e, na prática, reduzir a importância da

liberdade de expressão a pouco ou quase nada. Afinal, do ponto de vista do ofendido,

seria fácil demonstrar que qualquer manifestação contrária à sua honra lhe causaria um

dano.

Portanto, defender a posição preferencial da liberdade de expressão significa reconhecer

que esta deve prevalecer, em princípio, apesar de eventual dano sofrido por alguém em

sua honra. Deve-se reconhecer que não é tarefa fácil, sobretudo quando estamos todos

sujeitos à empatia7, que nestes casos parece favorecer mais a vítima do que o autor da

expressão. Mas os conflitos relevantes no Direito não são fáceis (aliás, fácil parece ser a

solução a partir de uma suposta harmonização de direitos, aqui tão criticada). Contudo,

como evitar que, diante de casos concretos onde há conflito entre liberdade de

expressão e direito à honra, o julgador adote a perspectiva daquele que sofre o dano, se

não controlamos a empatia? Esta indagação nos conduz ao terceiro ponto.

4. Decidir estes conflitos com eficácia inter partes, mas com uma perspectiva erga

omnes

Uma pesquisa realizada junto ao Superior Tribunal de Justiça, levantando decisões (em

Recursos Especiais e apenas na esfera cível) sobre os conflitos entre liberdade de

7 Os problemas que decorrem de um julgamento onde há empatia foram apontados por Noel Struchiner

em seu trabalho “No Empathy Towards Empathy: Making the Case for Autistic Decision-Making”,

disponível em http://tnl.mcmaster.ca/conference/papers/Struchiner%20-

%20No%20Empathy%20Towards%20Empathy.pdf . Acesso em 20/11/2013.

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expressão e direitos da personalidade em geral, no período de 2002-2010, revelou que,

num universo de 57 acórdãos, somente em 12 o tribunal entendeu que deveria

prevalecer o direito à liberdade de expressão8. Os números revelam uma prevalência da

tutela dos direitos da personalidade. Curiosamente, não há uma constância nos

processos se considerarmos as decisões das instâncias inferiores. É dizer, um caso

decidido pelo STJ em favor do direito à honra pode ter sido decidido pelo juiz e/ou pelo

tribunal em favor da liberdade de expressão, e vice-versa. Ainda assim, prevalecem

(com folga) as decisões em favor dos direitos da personalidade.

Este quadro sugere – recorrendo à dicotomia apresentada pelo argentino Nestor Pedro

Sagues – que a nossa jurisprudência é nitidamente mais civilista do que

constitucionalista9. Defendo, contudo, que isto não seria causa para explicar a nossa

jurisprudência, mas antes uma consequência de um modo de decidir.

Analisemos detidamente um desses casos (REsp 801249). Trata-se de uma ação de

indenização por danos morais ajuizada por um deputado estadual (de Santa Catarina)

por conta de uma nota veiculada numa rádio da cidade de Caibi-SC e depois distribuída

na própria cidade, onde se afirmava que o deputado “tem uma facilidade incrível de

mentir”. A nota havia sido divulgada por representantes partidários de oposição ao

deputado. O juiz de primeira instância havia julgado improcedente o pedido (decidiu,

8 Os relatórios desta pesquisa, por mim coordenada, estão disponíveis em:

http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2013/relatorios_pdf/ccs/DIR/DIR-

Luisa%20Soares%20Ferreira%20Lobo.pdf

http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2012/relatorios_pdf/ccs/DIR/JUR-

Paula%20Chueke%20Rabacov.pdf. 9 Em suas palavras: “Como observación general, puede sostenerse que los autores provenientes de

derecho civil son proclives a admitir hipótesis de censura judicial previa para proteger derechos

personalísimos concernientes a la privacidad, la dignidad personal, el honor, y también la propiedad, la

propia imagen y otros conexos. En este caso la censura judicial es una herramienta para reprimir

agresiones a tales derechos y un medio para defender las personas de ataques provenientes de

particulares o de los medios de difusión. Cuando hay una controversia entre aquellos derechos y la

libertad de expresión, consciente o subconscientemente se valora más a los primeros, subrayándose que

el concepto de dignidad de la persona es un valor jurídico relevante. Esto ha llevado a sostener por

ejemplo, que es valida la censura de toda biografía no autorizada por el sujeto descrito en ella.

Para los constitucionalistas, en cambio, la libertad de expresión cuenta con una cotización prevaleciente,

quizá con el máximo puntaje. (…)

El doble discurso (civilista y constitucionalista) que reina en el área provoca, además de cierta

esquizofrenia jurídica, un serio obstáculo para encontrar una respuesta uniforme y consensuada.”

(Sagués, 2006, pp. 966-967)

LEITE, Fábio Carvalho. Liberdade de Expressão e Direito à honra: novas diretrizes para um velho

problema. In: Clèmerson Merlin Clève; Alexandre Freire. (Org.). Direitos fundamentais e jurisdição

constitucional: análise, crítica e contribuições. 1ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, v. , p. 395-

408.

portanto, em favor da liberdade de expressão). O Tribunal de Justiça de Santa Catarina

manteve este entendimento, ressaltando que:

Embora tenham os réus edificado, em tal documento, uma frase afirmando que 'o

deputado Herneus tem uma facilidade incrível de mentir', tal construção, repita-se, não

possui em seu bojo, a meu sentir, o propósito de ofender a honra do requerente. Estas

expressões, por sinal, fazem parte do cotidiano das pessoas deste país e, ao se admitir

que sejam aforadas ações com vista à percepção de indenização por terem sido

chamadas de 'mentirosas', certamente os fóruns e tribunais estariam absolutamente

inviabilizados diante dos incontáveis pleitos nesse sentido. Aliás, não se pode perder de

vista que, via de regra, tais expressões são proferidas em momentos de defesa, de

insatisfação e de instabilidade emocional.

O argumento de que não haveria “propósito de ofender” é de difícil sustentação, mas

certamente facilita a decisão em favor da liberdade de expressão – o que seria aqui fazer

o certo pelas razões erradas. Mas deixo de lado este aspecto, que demanda um estudo a

parte. Interessa aqui a afirmação de que “ao se admitir que sejam aforadas ações com

vista à percepção de indenização por terem sido chamadas de 'mentirosas', certamente

os fóruns e tribunais estariam absolutamente inviabilizados diante dos incontáveis

pleitos nesse sentido.” Isso demonstra uma perspectiva universalista, necessária para

lidar com estes casos. Não se trata – e é importante esclarecer este ponto – de considerar

o número de processos a serem julgados, mas a quantidade de situações de conflito que

seriam consideradas ilícitas!

O STJ, contudo, em decisão unanime, deu provimento ao Recurso Especial e condenou

os réus (recorrentes) a pagar a quantia de R$ 20.000,00 a título de compensação pelos

danos morais. O curioso neste caso é que o STJ é um tribunal que, ao menos quando

exerce sua competência recursal especial, tem o propósito de uniformizar a

interpretação da legislação federal, ou seja, deveria adotar justamente a perspectiva

universalizante aqui defendida, ou, como se diz, olhar a floresta e não a árvore. E este

ponto foi até de certo modo reconhecido no voto da relatora, Min. Nancy Andrighi, ao

afirmar que “cinge-se a controvérsia, portanto, em saber se afirmar que alguém ‘tem

uma facilidade incrível de mentir’, em documento escrito e em público causa ou não

dano moral”. Isso poderia justamente contestar o que aqui se defende. Por outro lado, a

decisão tem eficácia inter partes, ainda que a Ministra reconheça que está considerando

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a questão em abstrato. E não há um meio seguro de avaliar em que medida o tribunal

efetivamente pensou com eficácia erga omnes, ainda que decidindo com eficácia inter

partes. A pergunta que deixo para reflexão é: seria o tribunal capaz de editar uma

súmula nestes termos? Teria a Corte adotado este entendimento se, tal como ocorre nos

EUA, sua decisão tivesse caráter vinculante às demais instâncias do Poder Judiciário? O

STJ considerou o impacto deste entendimento sobre os debates políticos, inclusive em

períodos eleitorais? Segurança jurídica a parir da previsibilidade das decisões judicias

não é um ônus imposto somente aos sistemas de common law, mas uma exigência de

qualquer Estado de Direito (Fuller, 1964; Tamanaha, 2004).

5. Direito de resposta como sanção preferencial

O direito de resposta poderia ser considerado um grande trunfo previsto na Constituição

para uma boa composição de danos em casos de conflito entre liberdade de expressão e

direito à honra. E até a forma como este direito encontra-se disposto no texto

constitucional poderia sugerir que esta seria a reparação mais imediata: é assegurado

direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material,

moral ou à imagem (art. 5º, V). Curiosamente, são raríssimos os casos em que a

condenação por ofensa à honra sequer “inclui” o direito de resposta. Considerando-se,

por exemplo, os 45 casos em que o STJ decidiu em favor dos direitos da personalidade

(no universo de 57 acórdãos citados acima), em absolutamente nenhum houve

condenação para assegurar o direito de resposta. O resultado poderia ser explicado pelo

fato de o direito de resposta não ser adequado em determinadas situações ou por não

terem os próprios autores requerido este direito. No universo em questão, no entanto, o

direito de resposta seria cabível em 33 dos 57 casos, mas só houve pedido em 7 deles (e

sempre de forma subsidiária).

Trata-se, na verdade, de um círculo vicioso. Os juízes não concedem porque os autores

não requerem. E os autores não requerem porque, pela ótica hegemônica, podem optar

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pelo pedido de indenização – cujos valores nunca são desprezíveis

10. Ou seja, o direito

de resposta, na prática, não é considerado um direito autônomo, nem, em geral, é

“acompanhado” pelo pedido de indenização. Quando muito, aquele é que acompanha

este, numa certa inversão da leitura sugerida pelo art. 5º, V da Constituição.

De acordo com o que foi exposto nos tópicos anteriores, a lógica deveria ser outra. Em

regra, o dano à honra decorrente da liberdade de expressão deve ser suportado, já que a

possibilidade de a honra ser atingida é intrínseca à liberdade de expressão. Como

exceção, aquele que se expressa deve ser condenado a reparar o dano. Mas a

condenação deve, em regra, se limitar ao direito de resposta. E, em caráter excepcional,

incluir o direito à indenização (ou se limitar a este, quando aquele não couber ou não for

requerido)11

. Em outras palavras, deve ser reconhecido o caráter de sanção preferencial

ao direito de resposta. E isso por ao menos três motivos.

O direito de resposta é a forma mais justa de o Estado assegurar o direito à honra, sem

se comprometer com o conteúdo que gerou o dano ou, mais especificamente, com a

reputação do ofendido diante de si próprio ou do meio social. Se o político A, num

debate público, diz que o político B “tem uma facilidade incrível de mentir”, não cabe

ao Estado tomar posição a respeito desta opinião de A a respeito de B, limitando-se,

quando muito (pois neste caso seria discutível), a assegurar um direito de resposta a B.

Afinal, das três, uma: ou o Estado reconhece que sequer um político (qualquer político)

pode afirmar que qualquer outro político “tem uma facilidade incrível de mentir” (como

parece ter feito o STJ no caso citado anteriormente), ou o Estado reconhece que

qualquer político pode afirmar que qualquer outro político “tem uma incrível facilidade

de mentir” (como entenderam o juiz e o Tribunal de Justiça-SC), ou o Estado vai

analisar caso a caso, avaliando se de fato o político em questão tem realmente uma

10

De acordo com relatório apresentado pela ONG Artigo 19, “em 2003, a média das indenizações

encontrava-se em trono de R$ 20.000. Em 2007 o valor médio das indenizações pulou para R$ 80.000.”

http://www.article19.org/data/files/pdfs/publications/brazil-mission-statement-port.pdf

Acesso em 20/10/2009.

11 Esta parece ser a ordem também defendida por Barroso, quando escreve que “[n]as questões

envolvendo honra e imagem, por exemplo, como regra geral será possível obter reparação satisfatória

após a divulgação, pelo desmentido – por retificação, retratação ou direito de resposta – e por eventual

reparação do dano, quando seja o caso.” (Barroso, 2004)

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incrível facilidade de mentir (o que, a propósito, não poderia ser feito em Recurso

Especial). A primeira hipótese gera um risco à democracia; a última, um risco à

segurança jurídica, deixando a avaliação casuística sujeita a uma série de arbitrariedades

e subjetivismos.12

E se a honra de B foi violada pelas acusações feitas por A, quem melhor para contestá-

las do que o próprio B? O que o Estado pode e deve assegurar é a possibilidade de B

contestar as acusações – se este for o seu interesse. E de forma “proporcional ao

agravo” sofrido, como previsto no art. 5º, V da Constituição.

Ainda: o direito de resposta informa, ao contrário da indenização, que não somente nada

acrescenta ao debate público (nem tutela a honra do ofendido publicamente), como

ainda deixa o público ciente apenas das acusações lançadas pelo ofensor. Se A expõe

numa coluna de jornal sua opinião crítica sobre a conduta do juiz B no curso de um

processo judicial, sugerindo que este foi parcial no julgamento, e B move um processo

contra A, onde este é condenado a pagar uma indenização por danos morais no valor de

R$80.000,00 (oitenta mil reais) o resultado será: B terá um aumento considerável de sua

renda, A provavelmente deixará de tecer críticas aos membros de um dos Poderes da

República e o público terá razões para ao menos suspeitar que B realmente foi parcial

no processo que conduziu (já que nenhuma informação em sentido contrário foi

oferecida ao público). O direito de resposta, portanto, fomenta o debate público,

enquanto a indenização o reprime, gerando um sensível chilling effect a partir da

autocensura dos próprios cidadãos.

Além disso, o direito de resposta é um poderoso inibidor dos “abusos da liberdade de

expressão” (para usar uma expressão corrente). Afinal, uma resposta pode (dependendo

do caso, é claro) gerar um considerável descrédito para o ofensor. As indenizações

podem ser suportáveis financeiramente para um grande jornal, ou podem significar o

seu fim (como no caso do jornal da cidade de Santa Cruz do Rio Pardo, ou um simples

12

Para um estudo sobre arbitrariedades e subjetivismos a que estão sujeitos os juízes, v. Brando (2013) e

Tavares (2013).

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blog), gerando de todo modo um chilling effect, em diferentes níveis; já o direito de

resposta, efetivamente proporcional ao agravo, mantém o veículo informativo, mas

permite que o público leitor questione a sua credibilidade.

6. Conclusão

Nem mesmo a mais civilista das abordagens ignora que a liberdade de expressão é

essencial à democracia. Mas defender a liberdade de expressão é aceitar as suas

consequências, e é neste ponto que o pensamento jurídico brasileiro parece vacilar. De

nada adianta enaltecer o valor da liberdade de expressão (como em geral fazem os

magistrados de forma preambular em suas decisões) se qualquer dano à honra, que já

deveria ser esperado, é logo reconhecido como um limite àquele direito. A facilidade

com a qual um dano sofrido por conta de ofensas é considerado um limite à liberdade de

expressão coloca em dúvida a importância da liberdade de expressão e, por fim, a

concepção que se tem de democracia.

Democracia pressupõe conflito – de opiniões, de visão de mundo, de ideologia – e este

deve ser enfrentado no meio social e não simplesmente anulado pelo Poder Público. A

suposta harmonização, a partir de uma ideia de máxima efetividade dos direitos em

conflito, não funciona neste caso. Apenas camufla uma realidade que vai sendo

construída aos poucos, onde os cidadãos, por receio ou insegurança, sentem-se

impedidos de manifestar publicamente a sua opinião.

As diretrizes aqui propostas foram apresentadas numa sequência que considerei a mais

adequada para o argumento pretendido, e não numa ordem de importância. Mas, em

sede de conclusão, destaco a proposta de “decidir estes conflitos com eficácia inter

partes, mas com uma perspectiva erga omnes” como a mais relevante (e talvez a mais

urgente), por entender que as demais surgiriam como decorrência. Adotar uma

perspectiva universalista, onde o direito aplicado num caso deveria valer para todas as

situações semelhantes, impõe ao julgador um ônus (desagradável, mas necessário) de

considerar aspectos que num caso concreto e isolado têm sua relevância diminuída.

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408.

Defendo que a perspectiva universalista altera radicalmente o valor atribuído aos

direitos em conflito porque obriga o julgador a avaliar (ou avaliar melhor) em que

medida um conteúdo efetivamente deve ser totalmente excluído do debate público (o

que é uma responsabilidade considerável a ser assumida) e em que medida certos danos

devem ser compreendidos como inevitáveis em qualquer sociedade que se pretenda

pluralista.

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