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LITERATURA E ABJEÇÃO: UM ESTUDO DA IMAGEM DAS FEZES NA OBRA DE RUBEM FONSECA
Vinícius Carvalho Pereira
Rio de Janeiro
Outubro de 2009
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LITERATURA E ABJEÇÃO: UM ESTUDO DA IMAGEM DAS FEZES NA OBRA DE RUBEM FONSECA
Vinícius Carvalho Pereira
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientadora: Professora Doutora Ana Maria de Amorim Alencar
Rio de Janeiro
Outubro de 2009
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Literatura e abjeção: um estudo da imagem das fezes na obra de Rubem Fonseca Vinícius Carvalho Pereira
Orientadora: Professora Doutora Ana Maria de Amorim Alencar
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Examinada por: _________________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Ana Maria de Amorim Alencar – UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes – UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Adauri Silva Bastos – UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor João Camillo Barros de Oliveira Penna – UFRJ, Suplente _________________________________________________ Profa. Doutora Ângela Maria Dias – UFF, Suplente
Rio de Janeiro Outubro de 2009
4
FICHA CATALOGRÁFICA
Pereira, Vinícius Carvalho. F676pe Literatura e abjeção: um estudo da imagem das
fezes na obra de Rubem Fonseca / Vinícius Carvalho Pereira. - Rio de Janeiro : UFRJ, 2009.
131 f.: il.; 30cm. Orientadora: Ana Maria Amorim de Alencar. Dissertação (Mestrado) UFRJ, Faculdade de
Letras, Departamento de Ciência da Literatura, 2009.
Bibliografia: f. 125-131.
1. Fonseca, Rubem, 1925 - - Crítica e interpretação 2. Fonseca, Rubem, 1925 - - Personagens 3. Abjeção na literatura. 4. Fezes na literatura. 5. Pós-modernismo. I. Alencar, Ana Maria Amorim de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.
CDD B869.35
5
AGRADECIMENTOS
Se a jornada foi longa e árdua, ter chegado até aqui não é mérito só meu, mas de
todos os que estiveram comigo de corpo, alma ou intenção durante o percurso.
Agradeço, pois, a Deus, por ter sido sempre um companheiro tão presente, um
confidente tão fiel e um amigo tão próximo.
A minha orientadora, professora Ana Alencar, por ter me ensinado a ter menos
certezas, condição básica para ser um bom pesquisador. Além disso, agradeço-lhe todos
os bons conselhos, os insights brilhantes, as leituras atentas e a confiança no meu
trabalho.
A minha mãe, que me ensinou a juntar as primeiras letrinhas, segurar o lápis e ser
uma criatura cada vez mais linguageira. Sem as historinhas que ela me contava para
dormir, as brincadeiras para conhecer as sílabas e os trava-línguas e cantigas, eu não
seria hoje um homem encantado pela linguagem, suas manhas e artimanhas. Aliás, sem
essa melhor amiga eu não seria nada, sendo-lhe eternamente grato pelo dom da vida e
por muito do colorido que ela tem.
A meu avô e minha avó, que sempre encorajaram minhas conquistas escolares e
acadêmicas, desde meus desenhos canhestros do jardim de infância a esta dissertação.
Esses fãs, além do carinho incondicional, sempre estiveram ao meu lado, de tudo
fazendo para amparar minha caminhada.
Ao Cristiano, companheiro de todas as horas de alegria e tristeza que embalaram
este trabalho. Obrigado por estar ao meu lado, trazendo-me de volta ao rumo quando eu
me perdia e me ensinando a me perder um pouco quando a obsessão por seguir em
frente me tolhia os movimentos.
Aos amigos, que sempre me apoiaram e incentivaram a correr atrás de meus
sonhos. Na escola, na faculdade, no trabalho ou na vizinhança, esses entes queridos
sempre me disseram que valia a pena e continuam dizendo que eu ainda posso mais.
Obrigado por esse mais, que ainda nem aconteceu, mas já se instalou como desejo meu.
Aos primos e tios que me disseram a vida toda: “você pode”. Acabo de poder mais
um pouco, como este trabalho atesta, e quero poder cada vez mais.
Aos professores que me mostraram os poderes encantatórios das Linguagens e das
Artes, em cuja confluência se situa este trabalho. Obrigado por me apresentarem esse
grande amor que é a Literatura, da qual resolvi fazer uma forma de ler o mundo ao meu
redor.
6
A Rubem Fonseca, que deixou uma impressionante produção literária sobre a qual
tento produzir um pouco de saber (e muito de sabor, por que não?) neste trabalho.
7
RESUMO
LITERATURA E ABJEÇÃO: UM ESTUDO DA IMAGEM
DAS FEZES NA OBRA DE RUBEM FONSECA
Vinícius Carvalho Pereira
Orientadora: Ana Maria de Amorim Alencar
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Teoria Literária.
A obra de Rubem Fonseca é notória pela temática do baixo e do maldito,
envolvendo as esferas da violência, do erotismo e da abjeção. As duas primeiras
instâncias têm sido muito estudadas no meio acadêmico, havendo ampla discussão de
seu rendimento literário. A esfera do abjeto, no entanto, tem sido tratada com repulsa
pelos próprios críticos, que, na maioria das vezes, a ignoram ou a subestimam. Este
trabalho propõe, pois, uma análise do hórrido corporal na ficção fonsequiana, tomando
como objeto principal de estudo uma recorrente imagem dos contos e romances do
autor: as fezes. Discutindo suas dimensões literária, psicanalítica, filosófica e cultural,
esta pesquisa contribui para a compreensão de como o discurso do corpo torna-se
matéria artística no corpo do discurso fonsequiano, especialmente no que tange ao
secret(ad)o bolo fecal.
Palavras-chave: Rubem Fonseca, fezes, abjeção
Rio de Janeiro
Julho de 2009
8
ABSTRACT
LITERATURE AND ABJECTION: A STUDY ON THE IMAGE
OF FAECES IN RUBEM FONSECA’S WRITINGS
Vinícius Carvalho Pereira
Orientadora: Ana Maria de Amorim Alencar
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Teoria Literária.
Rubem Fonseca’s writings are famous for narrating and describing low and
accursed matters, involving the spheres of violence, eroticism and abjection. The first
two areas have been being studied by scholars, so that there is much discussion on their
literariness. The abject sphere, however, has been being observed with disgust by
critics, who usually neglect or look down on it. Thus this research poses an analysis of
the bodily horrid in Rubem Fonseca’s fiction, focusing on a recurring image of his
novels and short stories: faeces. Discussing their literary, psychoanalytic, philosophical
and cultural dimensions, this research contributes to understanding how body discourse
becomes an artistic matter in the body of Rubem Fonseca’s discourse, specially when it
comes to the secret(ed) faecal matter.
Key-words: Rubem Fonseca, faeces, abjection
Rio de Janeiro
Julho de 2009
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................11
CAPÍTULO I: O HORROR DA AMBIVALÊNCIA: AMBIGUIDADES, POLISSEMIAS E
RUÍDOS FECAIS...............................................................................................................................14
O HORROR DA DÚVIDA ......................................................................................................................14
EXPURGOS INTESTINAIS AMBIVALENTES............................................................................................21
PAIXÃO FECAL..................................................................................................................................29
NÚPCIAS ABJETAS.............................................................................................................................36
CAPÍTULO II: OS TEXTOS DO CORPO E O CORPO DO TEXTO: UMA LITERATURA
FECAL................................................................................................................................................46
A LITERATURA NÃO MORREU ............................................................................................................46
O CORPO TEXTUAL ...........................................................................................................................54
UMA ESCRITA VISCERAL ...................................................................................................................62
JONAS, O PLAGIÁRIO PLAGIADO .........................................................................................................74
CAPÍTULO III: O LEVANTE EXCREMENTÍCIO CONTRA A INDÚSTRIA CULTURAL.......88
A INDÚSTRIA CULTURAL: A COMERCIALIZAÇÃO DA CATARSE E A PERVERSÃO DA MIMESE....................88
O EXCREMENTÍCIO QUE BORRA A CULTURA DE MASSAS......................................................................94
LITERATURA EXCRETADA ...............................................................................................................100
NATUREZA PODRE ..........................................................................................................................104
O FECALOMA DE MAMÃE ................................................................................................................109
MUSEU CLOACAL ...........................................................................................................................112
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................................130
10
“Tu m’as donné de la boue et j’en ai fait de l’or”. Charles Baudelaire. Oeuvres complètes, 1968.
“Pour moi, tout a la même valeur, le diamant et la merde”.
Émile Zola, em célebre diálogo com Mallarmé
11
INTRODUÇÃO
“Apportez-moi un orinal Et si verrai dedans le mal”.
Le Roman de Renart, 1985.
“Tout ce qui pue ne tue pas, tout ce qui tue ne pue pas”. Paul Brouardel. L’évacuation des vidanges, 1882.
O ato de escrever está associado a um contínuo processo de feituras e refeituras,
jamais se chegando a um objeto final estático ou perfeito. No que tange à composição
literária, tal elaboração torna-se muito mais intensa, visto ser a estética um valor que lhe
é inerente de forma primordial. Assim, o ofício de um escritor requer não apenas a
inspiração demiúrgica louvada pelos românticos, mas também técnica, precisão e
meticulosidade, passando a limpo o tempo todo o que se escreve, em versões cada vez
mais aprimoradas.
Todavia, passar a limpo também envolve, por vezes, passar o texto a sujo. Rubem
Fonseca, autor brasileiro da contemporaneidade, é notório pela urdidura de textos
eivados de brutalidade, sexo e escatologia, geralmente combinados em uma profusão
caleidoscópica de cenas chocantes ao status quo. Em sua obra, o que causa repugnância
e horror é tornado matéria literária de alta qualidade, rompendo convencionalismos
artísticos. A contemporaneidade assiste, assim, a uma potencialização das rupturas com
o que se considera matéria digna da literatura, a qual passa a incorporar temas antes
restritos à esfera do marginal.
Nesse contexto, a presente pesquisa adota como objeto de estudo a ficção
fonsequiana voltada para o baixo somático, mais especificamente para as fezes, dada a
exiguidade de trabalhos sobre o tema, acreditando que tal escassez se deva a
preconceitos intelectuais e à falta de bibliografia especializada acerca da estetização
fecal. A opção pela temática das fezes se justifica pelo caráter múltiplo desse excreta,
ora associado ao sagrado, ora ao profano; ora vinculado à arte, ora ao brutalismo; ora
marcado pela repulsa, ora pelo desejo; ora preso ao sujeito, ora ao objeto; ora prazeroso,
ora infeccioso. Desse modo, a literatura fecal questiona o posicionamento do leitor
frente à excreção e, por conseguinte, frente aos rejeitos – inclusive humanos – da
sociedade em que vivemos, questão fulcral em uma pós-modernidade de pessoas e
mercadorias descartáveis.
12
A despeito da escassez de estudos sobre o expurgo intestinal como imagem
literária, esse é um viés de extrema importância na compreensão não só do estatuto
humano, como também do artístico, visto que a escatologia está presente no trabalho
estético desde a origem da humanidade, sendo tão inescapável como a necessidade de
evacuar periodicamente. Do ponto de vista literário, há ainda outro fator que justifica a
realização desta dissertação: a necessidade de compreender como um texto defecado
pelo corpo, por meio das palavras-fezes, pode devolver materialidade, densidade – e
talvez cheiro – à linguagem, tornada incolor, inodora e insípida na comunicação
cotidiana. Ao falar literariamente sobre fezes, latrinas ou algo que o valha, a linguagem
acaba por falar sobre si mesma, em um debruçar-se metalinguístico semelhante ao que
fazem as pessoas que se dobram sobre a latrina para observar seu bolo fecal. Assim,
analisando a estetização do aparentemente desprovido de beleza, esta dissertação visa a
compreender de que maneira a literatura interroga a si mesma e ao homem, seu começo
e fim, por meio da imagem do abjeto intestinal, que, causando repulsa e angústia,
convida à incerteza e à reflexão.
Passar o texto a sujo, no caso dos contos de Rubem Fonseca, implica borrá-lo:
tornar imprecisas e relativas as balizas que norteiam o pensamento do senso comum.
Diferente de outros autores contemporâneos, que se valem da imagem das fezes apenas
de forma fácil e apelativa, com a escatologia como um chamariz para vender mais, as
obras do ficcionista mineiro, ao embaralharem as fronteiras entre o hórrido e o belo,
entram na esfera da ambivalência. Tal fenômeno de liminaridade entre duas instâncias é
tema do Capítulo I desta dissertação, que interroga de que modo o autor emprega, na
composição de seus textos, a duplicidade como estratagema estético, capaz de chocar e
embevecer ao mesmo tempo.
Dando prosseguimento à discussão da ambivalência excrementícia, que questiona
os arbitrários sistemas de ordenação do real e promove ambiguidades e polissemias
caras à arte, o Capítulo II versa sobre o expurgo intestinal como linguagem artística do
corpo, opção temática e estética da pós-modernidade. Tal dicção do sujo, por alguns
compreendida como uma corrupção do suposto papel da arte, é na verdade um
manifesto pelas múltiplas possibilidades que a contemporaneidade enseja, indicando
renovação no campo do literário, e não crise ou morte do trabalho estético, alardeados
improcedentemente à guisa de apocalipse.
Em oposição a teorias alarmistas de que a pós-modernidade assistiria ao derradeiro
fim da produção artística, suplantada pelo audiovisual e pela técnica, a literatura
13
contemporânea revela apenas haver mudanças no que se entende por arte da palavra,
mesmo que se trate de escritos sobre fezes. Nesse sentido, destaca-se a obra de Rubem
Fonseca, promovendo uma discursividade somática que, de acordo com o recorte desta
dissertação, se configura não só como literatura sobre o excreta, mas como uma
verdadeira escrita fecal. Assim, no Capítulo II desta dissertação, investiga-se de que
modo o protagonista do conto “Copromancia”, um analista de fezes que nelas percebe
poesia e literariedade, indaga as múltiplas e inesgotáveis possibilidades literárias, seja
no suporte audiovisual, temido por tantos críticos conservadores, ou mesmo no vaso
sanitário.
Para fins de análise, julgou-se produtivo o cotejo do escritor ex-policial com outra
autora contemporânea, Patrícia Melo, que produziu um romance em diálogo direto com
o conto fonsequiano: Jonas, o copromanta. Versando também sobre um analista de
fezes, que as trata como fino texto literário, a narrativa da autora tangencia ainda outros
pontos caros à estética do abjeto, como a ambivalência que lhe é cara e sua relação com
a renovação não só de temas e técnicas, mas também de suportes do literário, seja no
papel, na tela ou mesmo na latrina.
No Capítulo III, em continuidade aos dois anteriores, situa-se a discussão acerca
das fezes no panorama da produção cultural contemporânea, marcada pela indelével
mancha da cultura de massas. Desse modo, investiga-se como a estética do abjeto pode
configurar um levante contra a indústria cultural e suas fórmulas fáceis, condenando o
quão fecal e merecedora de uma descarga é a pseudoarte que embota a reflexão humana.
Massa informe muitas vezes flutuante – e por que não fluvial? –, o bolo fecal pode, na
tela, na página ou no museu, instalar silêncios, ritmos e multiplicidades, os quais
obstruem a leitura fluviante e flutual (NETO, 2008), frequente prática em tempos de
indústria cultural.
Por fim, na conclusão, traçam-se as considerações finais acerca deste trabalho e de
seus percursos intelectuais, que, como a imagem das fezes, convidam a ler e cheirar a
literatura do abjeto com bons olhos e narizes. Espera-se, pois, que a mancha negra da
tinta, que fecunda o papel ao macular sua brancura, seja na arte, na crítica, na teoria, ou
mesmo nesta pesquisa, deixe indelével escrita de saberes e sabores sobre o homem e a
linguagem, como a escura massa fecal, ao chocar-se contra a alva latrina.
14
CAPÍTULO I: O HORROR DA AMBIVALÊNCIA: AMBIGUIDADES, POLISSEMIAS E RUÍDOS FECAIS
“Que sont pour la nature notre laid et notre beau, notre propre et notre sordide? Avec l’immondice, elle crée la fleur; d’un peu de fumier, elle nous extrait le grain béni
du froment”. Jean-Henri Fabre. Souvenirs entomologiques, 1989.
“Le déchet est un peut-être”.
Jean Gouhier. Géographie des déchets : l’art d’accomoder les restes, 1984.
O horror da dúvida
O ser humano, a fim de sentir-se confortável e de fato pertencente ao mundo que
habita, esforça-se o tempo todo para atribuir-lhe significado lógico. Para isso, sua mente
opera como uma máquina de fazer sentido, tentando explicar, de acordo com preceitos
racionais, o que se passa consigo mesmo e em torno de si. Dessa forma, o aparelho
psíquico concentra suas funções conscientes na introjeção de representações e na sua
decodificação em uma sintaxe coerente, o que nos torna muito vulneráveis ao nonsense,
que não se permite traduzir em categorias pré-existentes.
Para tanto, as sociedades criaram e criam, até hoje, narrativas mitológicas,
entremeadas à religião, para justificar o surgimento de tudo, inclusive do próprio
universo. Seja o espírito do Deus cristão, que separou os céus e a terra por ação do
Verbo, ou o enlace grego entre Urano e Geia, que deu origem aos primeiros deuses, o
mito
relata como, graças às façanhas dos seres sobrenaturais, uma realidade chega à existência, seja a realidade total, o Cosmo, ou somente um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. Portanto, é sempre a narrativa de uma “criação”: conta-se como alguma coisa foi produzida, como começou a ser (BRUNEL, 2000, p.15).
Narrativa sem autor, produzida no seio da tradição, o mito é uma prática
extremamente ligada à poesia e à literatura, voltada a dar sentido coletivo a um
acontecimento, que pode ser de cunho geral ou mesmo particular. No seio do mito,
poiesis e práxis são palavras ressignificadas, perdendo a antinomia que lhes é
frequentemente atribuída, polarização que ora pendeu para um lado ora para o outro ao
longo da história da filosofia e da literatura.
15
De acordo com sua raiz grega, poiesis geralmente é associada ao fazer estético e à
criação poética, estando relacionada a uma produção singular, de caráter não rotineiro.
Além disso, tal confecção pode estar ligada a processos orgânicos, como revelam as
formas “galactopoese” (produção de leite), “hematopoese” (produção de hemácias) e
“leucopoese” (produção de leucócitos). Assim, fruto gerado de maneira singular nos
meandros do corpo, a poiesis se oporia à práxis, entendida como uma ação de caráter
rotineiro, o que caracteriza a vida em grupo, como a política (ARISTÓTELES, 1997).
Assim, de práxis se originam termos como “pragmatismo”, “prática” e “praxe”, todos
ligados muito mais à esfera do coletivo do que à do indivíduo.
Unindo ambas as esferas, o mito seria capaz de dar dimensão particular e geral a
uma explicação, de modo a reconciliar o sujeito com o todo. No entanto, o pensamento
mítico foi, ao longo da história, desvalorizado frente ao pensamento científico,
supostamente mais preciso e condutor à verdade. Apesar de expor boa parte de seus
pensamentos na forma de alegorias e narrativas, como a Alegoria da caverna (1999) e O
banquete (1945), Platão, ao afirmar haver uma verdade única a ser descoberta por trás
das ilusões, lançou bases para o racionalismo que enfraqueceria a instância mítica na
vida humana.
Assim, a procura desenfreada pela razão, conduzida com veemência pelo mestre
de Aristóteles e reeditada ao longo das épocas na forma de Renascimento, Iluminismo,
Positivismo e tantos outros movimentos intelectuais, potencializou a busca humana de
entendimento. Entretanto, não mais narrando em torno da fogueira, o homem tomado
pelo racionalismo passou a nomear de ciência sua prática intelectual, desprezando tudo
aquilo que não se encaixasse nesse arbitrário modelo de saber. Nas palavras de Adorno,
no sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber (ADORNO, 1985, p.17).
Angustiado pela consciência obsessivamente significadora, que não aceita a
contingência e a fortuitidade, querendo a tudo imputar uma causa e uma consequência,
o homem moderno faz da ciência seu fio de Ariadne no labirinto da vida, chamando de
obscuro ou infantil todo ato ou pensamento que não se guie por pressupostos da lógica
formal ou métodos sistemáticos. Porém, o que não percebe o homem é que
os mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram produto do próprio esclarecimento. No cálculo científico dos acontecimentos anula-se a conta
16
que outrora o pensamento dera, nos mitos, dos acontecimentos. O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar. Com o registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato, para se tornarem uma doutrina. Todo ritual inclui uma representação dos acontecimentos bem como do processo a ser influenciado pela magia. Esse elemento teórico do ritual tornou-se autônomo nas primeiras epopeias dos povos. Os mitos, como os encontraram os poetas trágicos, já se encontram sob o signo daquela disciplina que Bacon enaltece como o objetivo a se alcançar (ADORNO, 1985, p.20).
Tanto o pensamento mítico quanto o científico são tentativas de apreender o real
de forma mediada pela razão, em uma eterna busca por controle. Para o ser humano,
conhecer é a forma mais pura e completa de dominar. Assim, à medida que o homem
avançou no desenvolvimento dos mitos e, posteriormente, da ciência, aprimorou a
taxonomia do real, categorizando coisas e pessoas em classes estanques e inflexíveis.
No fundo, toda revolução na história é uma tentativa de se livrar de um rótulo
aprisionador, oriundo da obsessão humana por dividir e etiquetar. Lutou-se contra a
segregação dos rótulos de “judeu”, “herege”, “colônia”, “negro”, “índio”, “mulher”,
“gay”, em busca de restaurar a dignidade de outrora, uma vez perdida quando se deu
nome à diferença. Afinal, já havia não-cristãos, não-heterossexuais e não-brancos no
passado, mas apenas quando o homem se deu conta da diferença – e passou a nomeá-la
– foi preciso segregar. A intolerância, mesmo que disfarçada sob a máscara da
tolerância ao exótico, termo por si só discriminador, está sempre associada àquilo que
não se encaixou na ordenação fechada do mundo.
No entanto, o fervor classificatório humano, em vez de aproximar o sujeito do
real, em oposição à fantasia, afasta-o dele. A crença de que é preciso explicar o mundo
gera nos homens “o pensamento de uma insuficiência do real”, ou o sentimento de que a decifração da realidade só se dará com o apoio de instâncias exteriores a ela (...) porque passa a ser tratada, ao mesmo tempo, como inesgotável e escassa. Esta desvalorização do real imediato é, então, considerada por Rosset como sintoma do “princípio de realidade insuficiente” que constitui o credo comum a toda denegação filosófica do real. Por extensão, esta atitude negadora e suspeitosa diante da realidade encontra-se na base de todo o pensamento tecnocientífico, de todas as teorias-mães dos aparelhos tecnológicos e da espectralidade que eles produzem (DIAS, 2007, p.19).
Ao explicar o real de acordo com os pressupostos científicos, o homem tem de se
afastar dele, de modo que possa operar com distanciamento crítico e objetividade
analítica. Tal prática, porém, acarreta uma perda, tornada sistemática no mundo de hoje,
em que só se olha o entorno pelas lentes da ciência ou pelas telas do computador ou da
televisão.
17
Distanciado do real por uma mediação racionalista, o sujeito tenta subjugá-lo, por
meio da classificação e da ordenação, valores máximos na visão positivista. Nesse
sentido, a própria linguagem desempenha papel preponderante, visto que toda língua
funciona sob uma lógica classificatória, de sorte que nomear é, por si só, um ato de
rotular um objeto em determinada classe, fechando-lhe as múltiplas possibilidades em
um nome arbitrário. Em tal contexto, destaca-se o caráter iluminador da citação de
Chesterton, escritor inglês do final do século XIX, presente na conclusão do célebre
conto “O idioma analítico de John Wilkins”, de Borges:
O homem sabe que há na alma matizes mais desconcertantes, mais inumeráveis e mais anônimos que as cores de um bosque outonal... Crê, no entanto, que esses matizes, em todas suas fusões e conversões, podem ser representados com precisão por meio de um mecanismo arbitrário de grunhidos e chiados. Crê que mesmo de dentro de um corretor da Bolsa realmente saem ruídos que significam todos os mistérios da memória e todas as agonias do desejo (BORGES, 1984, p.117).
A linguagem humana, meio por excelência da organização do pensamento, é a
ferramenta mais antiga e taxativa utilizada na empreitada de ordenação e catalogação do
real. Sua eficiência se deve ao fato de que é impossível escapar à linguagem, pois ela é
ubíqua, um sempre-já do qual não há fora. Assim, toda língua é opressora e fascista
(BARTHES, 1994) por ser um sistema arbitrário de classificação, limitando as
possibilidades de expressão e obrigando o falante a determinadas construções. O
linguista russo Jakobson, por exemplo, disse que um idioma se define mais por aquilo
que obriga a dizer do que pelo que permite expressar.
A própria Antropologia, influenciada pela corrente saussuriana de pensamento, vê
hoje a vida social como um “sistema no qual a razão de ser dos elementos que o
constituem é significar; da mesma forma, considera-se que as relações entre esses
elementos significantes são sempre produtoras de significação” (RODRIGUES, 2006,
p.17), catalogadas em categorias linguísticas. Assim, a operação mental e social de
classificar está intimamente ligada à faculdade humana de nomear. “Classificar consiste
nos atos de incluir e excluir. Cada ato nomeador divide o mundo em dois: entidades que
respondem ao nome e todo o resto que não” (BAUMAN, 1999, p.11). No entanto, tal
violência contra o mundo nunca é totalmente bem-sucedida, havendo um refugo que
escapa ao afã ordenador e causa horror ao homem: a ambivalência.
Rubem Fonseca, autor cuja produção se analisa na presente dissertação, torna tais
arbitrariedades da língua – e os problemas das classificações do real em categorias
estanques – matéria literária em sua ficção. No conto “A opção”, por exemplo,
18
publicado pela primeira vez em 1965, no livro A coleira do cão, a problemática das
limitações impostas pelo idioma vem à baila.
O conto narra uma breve reunião entre especialistas da área de cirurgia plástica
genital, discutindo sobre a necessidade de definir um único sexo e um único gênero para
uma criança nascida hermafrodita, compatibilizando ambas as instâncias de sua
identidade. Todavia, o próprio ato de se referir à criança já se revela, de certa forma,
uma classificação do pequeno ser dentro das categorias pré-estabelecidas de masculino
e feminino.
“Mas você concorda que fizeram uma coisa inteligente registrando o garoto como Nair; caso se chamasse Marlene, teria problemas quando foi para o colégio, de calças. Ele exigiu calças, e os pais concordaram. Talvez não fossem tão imbecis”. “Ele inventava coisas. Ajudou a nossa, a sua...” “A nossa...” “A nossa decisão”, disse Fernando. “Este caso é diferente”, Danilo. “Ela não”. “Ela?”, Duarte. “Isso significa –“ “Sei onde você quer chegar. Não significa coisa alguma. Não posso dizer it ou das, a língua não deixa. E se deixasse, também não usaria” (FONSECA, 1991, p.98).
Ao se referir à criança como “ela”, o personagem Danilo a enquadra
gramaticalmente no gênero feminino, o que implica determinada estrutura morfológica
não só para o pronome, mas também para uma genitália que corresponda a esse gênero.
Contudo, para enfatizar que a decisão final não é sua, mas do grupo, apesar de ser ele o
chefe da equipe, defende-se afirmando que não foi ele, mas a própria língua portuguesa
que atribuiu gênero ao pequeno ser, concordando o pronome “ela” com o substantivo
“criança”.
Como argumento, Danilo afirma que seu idioma não lhe permite se referir à
criança utilizando o gênero neutro, presente em outras línguas, como o inglês e o
alemão. Assim, a atitude dos médicos que decidem arbitrariamente o sexo de um
indivíduo que não pode optar por si mesmo se assemelha à dos indivíduos que se
submetem aos ditames da língua, como no português, sendo obrigados a classificar cada
substantivo dentro de categorias autocráticas e inflexíveis, como masculino e feminino.
Gênero, seja categoria gramatical seja social, é tradicionalmente uma classificação
arbitrária, que enquadra o ser em um dos polos de uma antinomia autoritária.
Os pais da primeira criança mencionada, no entanto, foram mais sagazes do que os
médicos, sendo capazes de trapacear com a língua. Se, como visto anteriormente, é
impossível escapar às arbitrariedades da linguagem fugindo dela, é no próprio seio da
19
língua, paradoxalmente, que se deve lutar contra seu fascismo (BARTHES, 1994). Para
tal, o homem se vale da literatura, capaz de instalar ambivalências no coração da língua,
embaralhando as cartas e subvertendo a ordem racionalista no jogo de significantes e
significados. Assim, a literatura, fugindo à opressão ordenadora da língua, instaura “no
próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas” (BARTHES,
1994).
Dessa forma, como os pais da criança que lhe chamaram Nair, em um batismo
profano que define o pequeno ser por um nome indefinido, operam os artistas,
trabalhando com o refugo da ordenação asséptica dos cientistas. Não obedecendo à
catalogação positivista do real, a arte não pode servir à reafirmação do statu quo,
desencaminhando a rota da razão reificadora desenfreada. Assim, o encantamento que a
arte exerce sobre o sujeito, fruto de suas ambivalências e ambiguidades, serve para
emperrar a engrenagem iluminista. Quanto a isso, tanto o título quanto o conteúdo do
aforismo “Exibicionismo” de Minima Moralia são reveladores:
Nenhuma obra artística pode evitar, na organização social, a sua pertença à cultura, mas também não há nenhuma, que seja mais do que arte industrial, que não tenha feito à cultura um gesto de repúdio – pelo que se tornou obra de arte. A arte é tão antiartística como os artistas. Na renúncia à meta do instinto preserva para este a fidelidade desmascaradora do socialmente desejado, que Freud com ingenuidade exalta como a sublimação que, provavelmente, não existe (ADORNO, 2001, p.222).
Ao fazer um gesto de repúdio à cultura, a arte se volta contra o afã ordenador
humano, condição única para que se possa criar o próprio rótulo de “cultura”. Dando as
costas à classificação e à segregação, o artista trabalha no desconforto que a
ambivalência perpetra, pondo em crise todos os valores criados pelo homem para reger
sua passagem pela vida.
No entanto, tal desrespeito à ordenação racional do mundo, prerrogativa da arte
contemporânea por excelência, subverte os limites das categorias que nos permitem, em
tese, calcular probabilidades e traçar planos supostamente seguros de ação. Na
ambivalência, o homem é lançado no turbilhão da dúvida, sendo tomado pela angústia
do não-saber.
É por causa da ansiedade que a acompanha e da consequente indecisão que experimentamos a ambivalência como desordem – ou culpamos a língua pela falta de precisão ou a nós mesmos por seu emprego incorreto. E no entanto a ambivalência não é produto da patologia da linguagem ou do discurso. É, antes, um aspecto normal da prática linguística. Decorre de uma das principais funções da linguagem: a de nomear e classificar. Seu volume aumenta dependendo da eficiência com que essa função é desempenhada. A
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ambivalência é, portanto, o alter ego da linguagem e sua companheira permanente – com efeito, sua condição normal (BAUMAN, 1999, p.9).
Uma situação fronteiriça, que turva os limites pré-estabelecidos entre as
categorias, causa desassossego, pois não permite que se façam cálculos probabilísticos
antes de agir. É por isso que “ninguém aprecia as situações confusas e que temos em
geral pressa de pôr um fim às ambiguidades, submetendo-as a uma análise que as
determine” (DAGOGNET, 1994).
De modo perspicaz, Dagognet chama a essas situações liminares de troubles,
palavra de sentidos também imprecisos em francês, a qual pode designar desde um
problema ou uma desordem, como o substantivo trouble, em inglês, até a noção de
“turvo”, aplicando-se a fenômenos fronteiriços e de difícil categorização. Assim,
perturbado (termo cognato de “turvo”) pelo caráter turvo daquilo que é impreciso, o
homem se defronta com a angústia e a malograda empreitada de catalogar o
ambivalente segundo seus insuficientes critérios de compreensão do real.
No entanto, o temor é muito maior do que o simples fato de não conseguir
identificar uma situação específica. Se, em determinado contexto, sua ordenação
racionalista falha, indutivamente o homem conclui que pode ter se enganado em outras
classificações. A ambivalência revela assim a fragilidade das certezas humanas,
convidando o sujeito a abandonar-se à vertigem da dúvida.
Todavia, tal queda-livre apavora o homem a ponto de fazê-lo criar entidades
suprassensíveis que ordenem o mundo, malgrado as constrições que elas acarretam em
seu estilo de vida: pecado, higiene, profilaxia e ascese são apenas alguns dos exemplos
de sofrimentos que o homem prefere se imputar a abandonar-se à incerteza. Assim,
embora nascida do impulso de nomear/classificar, a ambivalência só pode ser combatida com uma nomeação ainda mais exata e classes definidas de modo mais preciso ainda: isto é, com operações tais que farão demandas ainda mais exigentes (contrafactuais) à descontinuidade e transparência do mundo e assim darão ainda mais lugar à ambiguidade. A luta contra a ambivalência é, portanto, tanto autodestrutiva quanto autopropulsora. Ela prossegue com força incessante porque cria seus próprios problemas enquanto os resolve (BAUMAN, 1999, p.11).
Trabalho de Sísifo, a luta contra a ambivalência é pedra de mármore que jamais
deixa de rolar montanha abaixo, visto que uma nova classificação apenas gera mais
ambivalências. Se a modernidade teve como seu projeto máximo a ordenação do mundo
por meio da razão e da ciência, a pós-modernidade tem como tarefa o desaprendizado
da certeza, lidando com os refugos deixados para trás pelo esclarecimento ordenador.
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Tais refugos são sempre motivo de reações de repulsa, visto que causam ao
homem o desconforto do inclassificável e, por conseguinte, do incontrolável. Assim, o
homem jamais está tranquilo na presença do ambíguo, sendo necessário buscar
mecanismos para escondê-lo.
As ervas daninhas são o refugo da jardinagem, ruas feias o refugo do planejamento urbano, a dissidência o refugo da unidade ideológica, a heresia o refugo da ortodoxia, a intrusão o refugo da construção do Estado-nação. São refugos porque desafiam a classificação e a arrumação da grade. São a mistura desautorizada de categorias que não devem se misturar. Receberam a pena de morte por resistir à separação. O fato de que não ficariam em cima do muro se, antes de mais nada, o muro não tivesse sido construído não seria considerado pelo tribunal moderno uma defesa válida. O tribunal está aí para preservar a nitidez do muro (BAUMAN, 1999, p.23).
Defrontando-se com a queda da razão como diretriz, o homem contemporâneo se
depara com a falência das metáforas ligadas à racionalidade, todas vinculadas à noção
de alto, luz e mente. Em vez disso, a pós-modernidade, na crise do esclarecimento,
elege metáforas da dúvida, próximas dos campos da escuridão, do baixo e do somático.
Nesse contexto, destaca-se o tema do presente estudo – as fezes como forma de saber o
mundo –, preso na escuridão do baixo ventre. O homem de hoje tem, pois, a
necessidade de se defrontar com o abjeto e aprender a lidar com o que sai de seus
intestinos.
Assim, na próxima seção, pretende-se analisar como o expurgo intestinal pode
contribuir de maneira literalmente visceral para a compreensão do expurgo racional – a
ambivalência.
Expurgos intestinais ambivalentes
A grande maioria das dicotomias que norteiam o pensamento racionalista são
derivações de uma antinomia primeira, entre interior e exterior. Assim, o exterior é o
duplo negativo do interior, apontando para o que o interior não é, de modo que toda
classificação parte da operação básica de incluir/excluir, adotar/segregar. Tal oposição
se deriva de uma projeção da dicotomia básica da metafísica platônica, isto é, a
distinção entre sujeito e objeto. Logo, interior é tudo aquilo que se relaciona ao sujeito
cognoscente, enquanto exterior é o objeto a ser conhecido, na definição platônica de
filosofia. Seria, pois, nessa relação entre dentro e fora que se dariam o conhecimento e a
possibilidade racionalista de compreender e dominar o real.
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No entanto, tal binarismo é borrado pelo abjeto, que se opõe às noções de sujeito e
objeto (KRISTEVA, 1982). Expulso do corpo do sujeito, o abjeto não é, todavia, objeto,
pois, enquanto o objeto carrega em si uma significação cognoscível, o abjeto equivale a
uma fissura na trama de significantes e significados, marcando o ponto exato em que
essa cadeia se rompe. Paradoxal por excelência, o abjeto viola até no plano linguístico
fronteiras de significação: no latim, o verbo jacio era um significante multifacetado,
vinculando-se às noções de lançar, deitar, jogar, exalar, produzir, dizer. Logo, seus
limites semânticos eram já marcados pela imprecisão.
Na língua portuguesa, sujeito, objeto e abjeto, por exemplo, são todos vocábulos
derivados dessa mesma raiz, apresentando, contudo, significados muito distintos.
Enquanto os dois primeiros fundam o par opositivo que norteia a metafísica, o último
dissolve tal dicotomia, levando o indivíduo simbolicamente de volta à união primordial
uterina, abandonada quando de sua definição como sujeito.
Durante a gestação, o feto não se reconhece como um eu completo, em oposição à
alteridade placentária. Envolto no líquido amniótico e preso à mãe pelo cordão
umbilical, há apenas completude no período que antecede a individuação, na fusão entre
sujeito e o objeto materno. Porém, tal situação paradisíaca tem fim no primeiro trauma
da vida humana, o corte do cordão umbilical, cisão que funda o limite inicial do
homem: a fronteira corpórea. Ao longo da vida, o sujeito experimenta, pois, a nostalgia
da comunhão com o ambiente, revivendo esse prazer na experiência da abjeção.
A abjeção preserva o que havia no arcaísmo do relacionamento pré-objetal, antes da violência imemorial com que um corpo é separado do outro para ser – preservando a noite em que o limite da coisa significada desaparece e onde se completa o afeto imponderável (KRISTEVA, 1982, p.10).
A imprecisão do abjeto acarreta seu caráter inefável e aviltante, mas é essa própria
vagueza que oferece a promessa secreta e indecorosa de devolver o indivíduo à fusão
original. O abjeto é aquilo que tentamos ejetar, pois não o podemos adjetivar (verbos
também derivados da raiz jacio), visto que não se encaixa nos paradigmas racionalistas
de classificação. Nesse contexto, as fezes revelam-se o abjeto por excelência, dada sua
condição de eterna ambiguidade.
Nem sólido nem líquido, o excremento fecal revela-se o inclassificável da forma,
assumindo formatos aleatórios e imprevisíveis, que fogem às possibilidades linguísticas
de nomeação. Os exames laboratoriais, tentativa de decodificação da semiótica fecal,
revelam a insuficiência do jargão médico para traduzir a sintaxe do pastoso para o laudo
médico: cego para nuances, texturas e geometrias, o patologista não reconhece mais do
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que claro e escuro, contínuo e descontínuo, presença e ausência. Na miopia da técnica, o
racionalismo deixa de apreender as fezes como fala corporal ambígua que se assemelha,
pois, à arte. Rubem Fonseca, no entanto, devolve o estatuto de obra de arte às fezes, em
contos como “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo” (2004), “Luíza” (2006),
“Intestino grosso” (1975), “Copromancia” (2001), entre muitos outros que permeiam
sua ficção escatológica.
Nessa ambivalência entre o artístico e o escatológico, o expurgo fecal revela-se
um artístico escatológico, de modo a constituir uma obra genuinamente orgânica,
brotada das entranhas autorais. Arte literalmente visceral, o abjeto turva todos os limites
entre esses campos, causando repulsa e embevecimento em leigos e críticos. Precursor
dessa lógica excrementícia, Duchamp revolucionou a arte de seu tempo com sua Fonte,
urinol de porcelana em que grafou “Mr. Mutt”.
O urinol inverte de um só golpe a significação do museu. Se o museu, segundo as teses de Walter Benjamin, é essa instituição que transforma o cultual em cultural – o objeto do culto arcaico tornado arte –, apresentar em contrapartida um urinol nas salas de um museu é se valer do poder profanador da instituição para, de um objeto de alívio, fazer uma obra de arte. E desse lugar há muito consagrado às musas, fazer um espaço vizinho dos banheiros públicos, do prostíbulo ou do bordel, enfim o local turvo que se tornou o museu de arte moderna (CLAIR, 2004, p.40).
Perdida a aura (BENJAMIN, 1985) em meio às fezes, a obra se aproxima daquele
que a contempla, visto que defecar é um traço comum entre o artista e o leigo.
Humanizado o artista, “artistiza-se” o contemplador, imprecisando-se os limites entre
essas instâncias. Assim, mais surpreendente do que a fabricação é a recepção dessas
obras: diretores de museus, curadores, críticos e apreciadores têm aplaudido e se
encantado com a arte do abjeto (CLAIR, 2004). Talvez, no gozo do corpo humano com
seus rejeitos feitos arte, um outro corpo – o corpo social – reafirme sua coesão. Na
admiração do inclassificável e do destoante somático, a comunidade fortalece seus elos,
aprendendo a lidar com os sujeitos que não se encaixam nos padrões arbitrários, rejeitos
da ordenação reificadora. Ao mesmo tempo em que repudia o intersticial, a sociedade
dele depende para reafirmar sua ordem por oposição ao caos, “numa expressão em que
seus conteúdos adquirem sentido através do que repelem – e através da qual ela faz-se
significar a si própria” (RODRIGUES, 2006, p.25).
Desauratizada, a obra perde seu valor de culto, o aqui e agora beirando o religioso,
que, segundo Benjamin (1985), lhe garante historicidade. Se o museu é uma tentativa de
preservar tal característica, pendurando a tela na parede da galeria, à guisa da parede de
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Lascaux, o abjeto dessacraliza museu e obra, lançando a arte na ambivalência entre o
profano e o religioso. Na imundície sórdida do excreta, a arte do abjeto remete à baixeza
do profano, mas, ao permitir a catarse (evacuação dos intestinos, no jargão médico),
permite a purificação preconizada por Aristóteles (2006) em sua Arte Poética. Sendo a
coletiva catarse – purificação no culto de entidades suprassensíveis – prerrogativa da
prática religiosa, a arte do abjeto oscila na ambiguidade profano/sagrado, pois “os vários
meios de purificação do abjeto – as várias catarses – constituem a história das religiões
e culminam nesta forma de catarse por excelência, chamada arte, ao mesmo tempo
próxima e distante da religião” (KRISTEVA, 1982, p.17).
Nessa impossibilidade de classificação entre pecaminoso e divino, o homem,
necessitando de definições para pensar o abjeto, funda nova categoria, o tabu,
substantivo que designa algo a ser excluído e segregado do convívio humano por portar
um poder corruptor inimaginável.
O significado de “tabu”, como vemos, diverge em dois sentidos contrários. Para nós significa, por um lado, “sagrado”, “consagrado” e, por outro, “misterioso”, “perigoso”, “proibido”, “impuro”. O inverso de “tabu” em polinésio é “noa”, que significa “comum” ou “geralmente acessível”. Assim, “tabu” traz em si um sentido de algo inabordável, sendo principalmente expresso em proibições e restrições. Nossa acepção de “temor sagrado” muitas vezes pode coincidir em significado com “tabu” (FREUD, 1996d, p.37).
Código não escrito, o tabu é a forma de legislação mais antiga que existe,
remontando a um período anterior às religiões (WUNDT, 1906). Servindo à
manutenção da ordem, tabus prescrevem e proscrevem comportamentos, pessoas,
instituições e substâncias, de modo a banir ambivalências e decretar parâmetros de
ordenação. Nesse sentido, a própria criação do conceito de tabu é fruto da prática
racionalista classificatória, cunhando-se essa categoria para designar aquilo que foge à
dicotomia entre sagrado e profano.
A distinção entre “sagrado” e “impuro” não existia nos primórdios do tabu. Por esse mesmo motivo, esses conceitos eram, nesse período, destituídos da significação peculiar que só poderiam adquirir quando se tornassem opostos um ao outro. Animais, seres humanos ou localidades sobre os quais se impunha um tabu eram “demoníacos”, não “sagrados”, nem, por conseguinte, “impuros”, no sentido que foi posteriormente adquirido. É precisamente esse significado neutro e intermediário – “demoníaco” ou “o que não pode ser tocado” – que é com propriedade expresso pela palavra “tabu”, desde que ela ressalta uma característica que permanece comum todo o tempo, tanto para o que é sagrado como para o que é impuro: o temor do contato com ele (FREUD, 1996d, p.43).
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O temor da reprimenda – social e divina – à transgressão do tabu faz com que o
homem tome atitudes aparentemente irracionais e não questione certas práticas do grupo
em que se insere, naturalizando-as. Diante das fezes, por exemplo, feitas tabus por seu
caráter ambíguo, algumas sociedades, como a ocidental, elegem locais e momentos
próprios para a evacuação, tornando absolutamente cultural uma função que, a priori,
deveria estar sob domínio exclusivo do biológico. Nesse sentido, vê-se a importância de
normatizar o tratamento dado às fezes, presente inclusive na própria Bíblia. Segundo o
livro do Deuteronômio,
terás fora do arraial um lugar, onde vás satisfazer as necessidades da natureza, levando um pauzinho no cinto: e tendo satisfeito a tua necessidade, cavarás ao redor e cobrirás com a terra que tiraste aquilo de que te aliviaste (porque o Senhor teu Deus anda no meio do campo, para te livrar de todo o perigo, e para te entregar os teus inimigos) e o teu campo seja santo, e não apareça nele coisa de fealdade, para que não te desampare (Bíblia Sagrada, cap. 23, vv 12-14).
Todavia, enquanto destinamos um local específico em nossas casas à eliminação
dos resíduos metabólicos – o banheiro –, tal nem sempre se dá em sociedades não-
ocidentais: “para os arapesh, a excreção não é uma função em relação à qual se exija
recato, indo os adultos até o limite da aldeia para resolverem os seus problemas”
(RODRIGUES, 2006, p.101). Esse tipo de diferença apenas vem a corroborar o caráter
não-natural, mas cultural, que damos ao excremento: o que justificamos como sendo
exigência higiênica no fundo não passa de um construto da vida em sociedade.
Geralmente cremos que nossas práticas de limpeza são fruto natural da ciência,
enquanto as dos outros povos, julgados primitivos, estariam permeadas pela fantasia.
No entanto, a maioria das pessoas que lavam as mãos após terem defecado fazem-no
por crença em categorias abstratas, como “bactérias”, “vírus”, “micróbios” e outras
entidades supra-sensíveis que têm de ser evitadas mesmo sem serem vistas, como
demônios ou espíritos míticos. Não se pretende aqui criticar a limpeza das mãos após o
uso da latrina, mas sim chamar atenção para o fato de esse ritual estar muito mais
atrelado à necessidade simbólica de expurgar a perigosa matéria ambivalente do que à
premência da higiene. Afinal, a maior parte das práticas higienistas é muito mais antiga
do que a descoberta dos microorganismos patogênicos pela ciência.
Também no plano topológico, o excremento revela-se um tabu, por ser violador de
limites. Posicionado no orifício de saída do tubo digestivo, encontra-se o bolo fecal na
fronteira entre o eu e o entorno, constituindo para a criança a primeira forma simbólica
de agir ativamente sobre o mundo. Gozo pleno da fase anal, a possibilidade de controlar
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o esfíncter que se abre para o real permite que a criança estabeleça uma barreira entre si
mesma e o outro, guardando a integridade de seus contornos e fronteiras como
indivíduo. Para configurar-se como um eu, o bebê deve entender os limites de seu
corpo, identificando a partir de onde não se trata mais de si mesma, mas sim de algo a
ser descartado, que vive no limite impreciso do sujeito e do objeto (FREUD, 1996e).
Contudo, nem sempre é fácil para a criança desprender-se de seu excremento, haja vista
o grande número de bebês que brincam com suas fezes, modelando-as como sua
primeira chance de plasmar e reconfigurar o real, tais quais pequenos artistas.
Por sua vez, alguns artistas adultos reeditam, em suas performances e processos de
criação, o gozo da primeira obra – a excreção – da infância. David Nebreda, famoso
artista que se dedica à estética da excreção, é conhecido por notória fala acerca de
experiências escatológicas:
Como tornar compreensíveis as sensações que me produzem meu sangue e meus excrementos? Sentimentos primários de reconhecimento, de plenitude, de gozo, de ternura, de identificação longínqua, de amor. Recolhi-os e guardei-os; toquei-os, manipulei-os, cobri meu rosto e meu corpo com eles. Pu-los em minha boca e eles foram secretamente conservados até o dia de meu sacrifício (CLAIR, 2004, p.20).
Defrontado com esse depoimento, cabe apenas ao sujeito interrogar-se o que está
por trás dessa aberrante relação com o abjeto. De volta à fase anal, o artista busca, na
interação com um produto de seu trabalho – estético e intestinal – o proibido retorno à
indiferenciação intrauterina. Compensando a perda anal mediante a incorporação oral
(FÉRENCZI, 1990), busca o sujeito, na efemeridade do instante, a completude do
paraíso perdido.
“Reconhecimento”, “gozo”, “ternura”, “identificação”: estamos aqui no registro do amor materno e no tempo dos primeiros instantes da vida, quando tocar, sentir, provar os excrementos, era colocar os primeiros limites entre o corpo e o que não é meu corpo. Porém, aqui, a separação e a doação não têm lugar. Nada é dado à mãe. Tudo é mantido. “Até o dia de meu sacrifício”. Que sacrifício? Para que deus terrível e longínquo? Narcisismo primário. Retenção. Regressão. Que importam as palavras (CLAIR, 2004, p.20).
No entanto, se há uma promessa de gozo no contato com o abjeto, é preciso
lembrar que as fezes estão em uma situação liminar entre o prazeroso e o infeccioso.
Apesar da possibilidade de reencontro com a situação de indiferenciação primeira,
característica do que a psicanálise chamou de pulsão de morte (FREUD, 1996a),
identificar-se como sujeito é um processo essencial à sobrevivência, como nos límpidos
e refulgentes espelhos de Lacan, segundo o qual “a função do estádio do espelho revela-
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se (...) como um caso particular da função da imago, que é estabelecer uma relação do
organismo com sua realidade” (LACAN, 1998, p.100). Assim, o excremento assusta e
repugna o homem, que teme, ao mesmo tempo em que deseja, perder-se na
indiferenciação: se retornar ao útero materno, dissolvendo-se no âmnio, é uma promessa
de gozo proibido, esta está situada no paradoxo do prazer destrutivo, pois ameaça o
amor narcísico pelo eu íntegro, fortalecido na luta pela sobrevivência ao longo da vida.
Essa combinação de temor e desejo diante da ambivalência torna-a o que a
psicanálise chama de “estranho” (FREUD, 1996c), categoria do assustador que funde o
velho e o novo, de modo que algo conhecido e desejado, mas recalcado, retorna como
algo estranho, a ser repelido. Desse modo, a indiferenciação, de volta ao seio do
intersticial, experimentada no corpo materno, é recalcada no inconsciente após o trauma
do parto, sendo depois receada como ameaça de morte. Cobiçado e temido, o
ambivalente é sempre um poderoso tabu, a ser literalmente limpado da vida humana.
Como se pode perceber a partir dos fatores mencionados ao longo desta seção, o
horror da ambivalência é, mesmo do ponto de vista epistemológico, uma questão
ambígua, visto que transgride os tênues limites entre Psicologia e Antropologia, pois
todo fenômeno psicológico é em certo sentido um fenômeno sociológico, na medida em que o mental, por discrepância ou por conformismo, se identifica com o social, e já que, em última instância, o sentido dos fenômenos sociais só pode ser apreendido em intelectos individuais com que o pesquisador entra em contato, pois os símbolos são puras convenções abstratas que os indivíduos observam para tornar possível a vida social no nível humano de organização (RODRIGUES, 2006, p.13).
Assim, ainda no que tange à ambivalência peculiar ao excremento, vale ressaltar
que, na antinomia cultura versus natureza, fundada pelo antropólogo Lévi-Strauss, a
ordem instaurada pelo homem é fruto da cultura, sendo toda a ambiguidade pertencente
à natureza ainda não domada. Nesse contexto, a imagem das fezes e da ambivalência,
ambas tais quais rejeitos de processos complexos, é potencializada. Em O cru e o
cozido, Lévi-Strauss (2004) toma o par de antônimos do título, entre outros possíveis
pares de significação oposta, para mostrar como a sociedade humana sobrevive de
transformar as coisas em seus reversos, em binarismos caros ao pensamento
estruturalista. Sendo assim, ao se alimentar, o homem cozinha os alimentos,
transformando o cru, estado natural, em cozido, produto cultural próprio à alimentação.
É preciso perceber, porém, o juízo de valores que está por trás dessa oposição, levado ao
paroxismo na modernidade:
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A existência pura, livre de intervenção, a existência não ordenada, ou à margem da existência ordenada, torna-se agora natureza: algo singularmente inadequado para a vida humana, algo em que não se deve confiar e que não deve ser deixado por sua própria conta – algo a ser dominado, subordinado, remodelado de forma a se reajustar às necessidades humanas. Algo a ser reprimido, refreado e contido, a resgatar do estado informe e a dar forma através do esforço e à força (BAUMAN, 1999, p.15).
O homem moderno, apesar de defender a preservação do ambiente, busca fazer da
natureza um jardim – construção humana com feições naturais, mas altamente
normatizada, conhecida e calculada. O mesmo vale para formas de alimentação
contemporâneas que buscam se reaproximar de hábitos de nossos antepassados,
buscando por vezes o cru e o in natura, mas sempre com embasamento em pesquisas
científicas, testes com cobaias e técnicas agrícolas modernosas.
Levando adiante o pensamento do antropólogo francês, o cozido é processado na
digestão orgânica, que o fragmenta em diversos nutrientes e os distribui pelo organismo.
Contudo, como em toda segregação que visa à classificação, há um refugo, que não se
encaixa em nenhuma categoria pré-estabelecida. Sobra do cozido não aproveitado, as
fezes funcionam, então, como rejeito do processo da cultura, ambivalência que restou
como inclassificável na empreitada ordenadora do homem. Temidas por seu caráter
ambíguo, as fezes têm por destino a excreção, sendo expulsas e afastadas do sistema
ordenado e devolvidas à também ambivalente natureza, seja pela descarga, pela fossa ou
mesmo por aterramento.
Todas essas formas de expurgo funcionam como tentativas da cultura de garantir o
retorno à ordem, enquadrando em um destino predeterminado pela técnica o que lhe
escapa ao cálculo. De maneira semelhante, muitos indivíduos acrescentam ao ritual de
exorcismo das fezes o uso de aromatizantes, afirmando ser aviltante o cheiro exalado
pelo expurgo intestinal. Tal prática, no entanto, em nada difere dos rituais de sociedades
ditas primitivas para expulsar o tabu, visto que a própria noção de bom ou mau odor é
socialmente inculcada. É no seio da família, interpretando as reações dos parentes, que a
criança aprende que perfumes franceses têm essência agradável, mas que a latrina exala
vapores hórridos. Tais substâncias não têm em si nada que as torne melhores ou piores,
mas sim representam, como significantes, significados para que a sociedade estabeleceu
escalas arbitrárias de valores.
“Interpretação”, “significantes”, “significados”, “arbitrariedade”. As fezes aqui
invadem mais um limite: o domínio do linguístico, configurando-se como forma de
significação a permear a comunicação humana. Nesse contexto, confirma-se a
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importância de estudar a escrita de Rubem Fonseca, autor contemporâneo cuja produção
pode ser analisada pelo viés da ambivalência. Principalmente em seus contos, o
ficcionista mineiro vale-se de imagens relacionadas a uma escatologia estética – ou a
uma estética escatológica – para atacar o sistema racionalista de classificações que nos
norteia, abalando noções como as de sujeito e objeto, ejetando-as, abjetando-as e
dejetando-as em um locus impreciso, em que essas fronteiras não mais existem.
Paixão fecal
Autor de uma arte literária fecal, Rubem Fonseca opera em uma escrita do
interdito, revisitando temas proibidos e banidos para a esfera do íntimo, como as
próprias fezes, que ao longo da história da humanidade tiveram de ser transferidas para
o segredo do toalete fechado. A criação do vaso sanitário privado, em oposição a seu
antecedente arquitetônico, a lavatrina (estrutura pública nos célebres banhos romanos),
revela a necessidade de esconder a dejeção dos olhos do outro, conforme a crescente
racionalização da sociedade.
Assim, enquanto a tendência de pensar o fecal aponta para o monólogo interior no
vaso de louça (CORBIN, 1986), Rubem Fonseca investe na divulgação pública do
excreta, reeditando práticas anteriores à histeria asséptica da sociedade atual. Se no
mundo contemporâneo nos deparamos com a crise dos penicos, das fraldas de pano, das
valas a céu aberto e da defecação em público por motivos higienistas, de certa forma
pode-se observar, em paralelo, uma assepsia excessiva nos meios de comunicação. Com
a constante evolução das tecnologias de telecomunicações e da informática, a
possibilidade de ruído é cada vez menor, devendo a comunicação se dar sempre de
forma linear, clara e coerente, banindo-se qualquer possibilidade de dupla interpretação
e de nonsense na informação. Para que isso seja possível, toda chance do aleatório tem
de ser evitada, de modo que a decodificação da mensagem seja pura e controlada e se dê
nos moldes exatos segundo os interesses – nem sempre tão puros – do locutor. Nesse
sentido,
o limite último da guerra contra o ruído é um modo de vida totalmente controlado e a completa heteronomia do indivíduo – um indivíduo localizado sem ambiguidade na ponta receptora do fluxo de informação e tendo suas opções seguramente encerradas numa moldura estritamente definida pela autoridade especializada (BAUMAN, 1999, p.237).
Rubem Fonseca, porém, ao privilegiar o sórdido em seus escritos, tira o leitor do
torpor higienista, lançando-o na dúvida do ambivalente. Assim, além do interdito, o
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autor propõe uma escrita do entredito, em que silêncios, metáforas e ambiguidades
instalam ruídos na leitura, de modo que o leitor seja lançado no torvelinho do não-saber.
Portanto, aproxima-se da descrição que Julia Kristeva faz da literatura pós-moderna, em
sua ruptura com a obsessão ordenadora, superego coletivo – nas palavras da autora –
que assombra o homem moderno.
A literatura contemporânea não assume o lugar delas [Religião, Moral, Lei]. Em vez disso, parece ser escrita para além do alcance perverso do superego. Ela reconhece a impossibilidade da Religião, da Moral e da Lei – seu jogo de forças e sua necessária significação absurda. Como a perversão, a literatura contemporânea tira vantagem dessas instâncias, desviando-as e subvertendo-as. (...). O escritor, fascinado pelo abjeto, imagina sua lógica, projeta-se dentro dele, introjeta-o e, como consequência, perverte a linguagem – estilo e conteúdo (KRISTEVA, 1982, p.16).
No plano do conteúdo, a ambivalência é notória em toda a obra do autor, que
funde a lei e a promiscuidade, em personagens como Mandrake; o masculino e o
feminino, em identidades ficcionais como o travesti Viveca e tantas outras mulheres
fálicas simbolicamente; o humano e o animal, nos célebres assaltantes de “Feliz ano
novo”; entre tantos outros casos. Nas reflexões aqui alinhavadas, porém, é dos intestinos
que provém uma forma de indefinição que permeia grande parte dos escritos
fonsequianos.
No plano da forma, percebe-se, de maneira análoga, uma imprecisão de limites
entre entidades constituintes da narrativa, conforme os preceitos canônicos das Ciências
da Literatura. Assim, segundo a crítica sobre o autor, destaca-se
o deslizamento constante que a ficção do escritor realiza entre o dentro e o fora, entre o próprio e o alheio, e entre autor e leitor. Essa oscilação, característica da estética contemporânea, aponta para a dissolução das antíteses entre o que consideramos polos opostos, ou, se quisermos, para a indiscernibilidade dos contrários, em consonância com o acirramento do impulso crítico que coloca em questão as certezas canônicas da metafísica ocidental. A arte tende, então, cada vez mais, a afastar-se dos procedimentos de ruptura, das negações radicais que supunham afirmações também radicais. Em vez da revolução, a transgressão. Isto é, não se trata de fundar um novo lugar, mas de trabalhar com a violação permanente de fronteiras – misturando tempos, espaços e remodelando continuamente identidades (FIGUEIREDO, 2003, p.12).
Nessa mistura de indefinições, borrando-se preceitos da dita “boa literatura”,
segundo padrões clássicos, um dos textos fundacionais da crítica literária é subvertido: a
Arte Poética de Aristóteles (2006), que divide os gêneros literários e prescreve ser
necessário separá-los bem, sem que um gênero macule outro na composição de um
texto.
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Rubem Fonseca, por sua vez, comporta-se diante dessas prescrições como quem
dá descarga no expurgo intestinal. Em suas narrativas que versam sobre as fezes e sua
ambivalência, também se tornam imprecisas as fronteiras entre os gêneros textuais.
Não se trata mais de coexistência pacífica das diversas modalidades de romance e conto, mas do desdobramento destes gêneros, que na verdade deixam de ser gêneros, incorporando técnicas e linguagens nunca dantes imaginadas dentro de suas fronteiras. Resultam textos indefiníveis: romances que mais parecem reportagens; contos que não se distinguem de poemas ou crônicas, semeados de sinais e fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica de romance; narrativas que são cenas de teatro; textos feitos com a justaposição de recortes, documentos, lembranças, reflexões de toda a sorte. A ficção recebe na carne mais sensível o impacto do boom jornalístico moderno, do espantoso incremento de revistas e pequenos semanários, da propaganda, da televisão, das vanguardas poéticas que atuam desde o fim dos anos 50, sobretudo o concretismo, storm-center que abalou hábitos mentais, inclusive porque se apoiou em reflexão teórica exigente (CANDIDO, 2000, p.209).
Publicado pela primeira vez em 2002 no livro Pequenas criaturas, agraciado com
o Prêmio Jabuti, o conto “Paixão” está em plena consonância com tais transgressões de
fronteiras, operando, por meio da imagem das fezes, um turvamento de limites impostos
pelo racionalismo classificador.
Como os demais textos do livro, “Paixão” apresenta personagens abandonadas aos
dilemas da vida, geralmente confrontadas com o fato de que optar por um dos lados
implica a perda do outro. Assim, no plano do conteúdo, homens e mulheres revelam-se
na obra pequenas criaturas, revivendo a versão moderna da noção do trágico
aristotélico. Analogamente, o plano da forma ratifica essa pequenez, visto que
praticamente todos os contos são bem curtos, como se poucas linhas bastassem para
narrar o dilema humano, logo apagado para dar lugar ao drama de outrem na narrativa
que se sucede.
No conto ora analisado, José sofre após discussão séria com a namorada Sylvia,
tentando os dois, embora sem sucesso, reatar o relacionamento malogrado. A ênfase
lançada pelo narrador, no entanto, não recai sobre esses fatos, mas sim sobre os
descaminhos linguísticos, repletos de praguejamentos, duplos sentidos e ruídos, na
comunicação do casal.
Embora narrado em terceira pessoa, o conto tem como perspectiva central a dor de
José, que amarga a ausência da amada, marcando seu sofrimento com uma única
interjeição, que se repete ao longo do texto como estribilho: “merda”.
Merda, merda, agora está tudo uma merda, José pensa, sentindo calor, sem disposição para tirar os sapatos que esquentam seus pés.
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Não sabe há quanto tempo está arriado na cadeira, mas não pode ficar sentado sem fazer nada, se lamentando como um choramingas. Levanta-se, vai até a geladeira, pega uma garrafa de champanhe. Merda, merda. Procura, em torno, um lugar adequado. Quebra a garrafa na borda da pia. Os cacos da garrafa se espalham pelo recinto, uma parte do líquido molha sua roupa (FONSECA, 2002, p.72).
Tal vocábulo, comum na fala cotidiana, é tornado recurso estilístico no conto,
formando um refrão fecal que garante unidade ao texto, iniciado e terminado pelo par
“merda, merda”. Sendo as fezes o protótipo do ambíguo, desfazendo separações claras
entre categorias de pensamento, é preciso observar tal imprecisão de fronteiras na
própria construção do texto, em que, por meio do discurso indireto livre, as interjeições
do personagem central se fundem ao discurso do narrador.
Na turva alternância entre as vozes da narrativa, destaca-se a coprolalia, termo que
tem sua significação potencializada no conto. De acordo com o Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa (2001), “coprolalia” é um termo da psicopatologia que designa uma
“tendência incontrolável a usar palavras obscenas”, sendo formado pelos radicais
“copro” (“fezes”, em grego) e “lalia” (“palavra”, em grego). Assim, no discurso
coprolálico de José, as excreções anais são trazidas à baila, ainda que pela boca, e não
pelo ânus, para manifestar seu profundo sentimento de indignação.
Tal associação entre as fezes e ideias de negatividade tem origem ainda na tenra
infância. A criança começa a aprender que há uma legislação sobre seu excreta quando
recebe a primeira palmada ou vê a primeira cara feia quando seu comportamento
perante as fezes está em desacordo com o que pensa seu círculo social primeiro: a
família. Mais tarde, observa que as palavras que nomeiam seu excremento têm valor
adjetival e interjetivo, sendo aplicadas em situações desagradáveis, para desqualificar e
expressar desaprovação. Dessa forma, o falante reedita, a cada palavrão proferido, todas
as angústias diante do sentimento de desaprovação familiar oriundo do ato de defecar.
José, no entanto, faz mais do que simplesmente praguejar ao exclamar “merda”.
Como se pode perceber na passagem anteriormente destacada, que descreve a
linguagem corporal do personagem, “merda” tem valor vocativo, não só interjetivo no
conto. Se José continua “arriado”, derrubando algo que, ao cair no chão, “molha sua
roupa”, revive metaforicamente a experiência da latrina, quando o líquido, graças à ação
do empuxo, espirra na pele daquele que defeca. Desse modo, o grito de “merda”,
oscilando entre a exclamação e a interpelação, pode ser lido como uma voz que invoca
uma força primeva e fecal, capaz de, com seus obscuros poderes, acabar com o
sofrimento do amante.
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Outra imagem ligada às fezes é revisitada metaforicamente no conto quando,
na cozinha, José esmigalha com a sola do sapato cacos da garrafa, que ruído agradável, odeio champanhe, pisar nos cacos da garrafa dá uma boa sensação. Vou deixar os cacos, no chão, vou ficar com a roupa molhada, para ela ver. Eu amo essa mulher, sem ela fica tudo uma merda (FONSECA, 2002, p.74).
Pisar, por acidente, em excremento, quando se anda distraidamente na rua, é
infortúnio comum na vida cotidiana, dada a presença de animais que defecam nas vias
públicas. Como as superstições populares afirmam que pisar em dejetos é sinal de bom
augúrio, José decide pisar na matéria que, ao cair, molhou-lhe a roupa, à guisa de fezes.
Assim, esmigalhando com prazer os cacos, que mantêm semelhança fonética com o
popular termo “cocô”, o personagem continua seu ritual profano de invocação simbólica
das fezes, de modo que elas possam salvar seu relacionamento, mesmo que no plano do
inconsciente.
Além disso, o primeiro sinal de que alguém pisou em rejeitos orgânicos é o cheiro,
sintoma inescapável da presença do abjeto. Assim, na invocação simbólica do ambíguo
fecal, o narrador cria um correspondente sensitivo ao olfato: a audição. Turvando os
limites entre as percepções sensoriais, o texto embaralha, por extensão, os cinco
sentidos, as mais frequentes ferramentas usadas na captação e na ordenação do real.
Sinestesia entredita, a mistura sensorial de “Paixão” traz um “ruído agradável”, o que
sugere ser também agradável o cheiro dos “cacos-cocôs”. Vale salientar também que, se
o signo das fezes no conto é expelido pela boca, não pode ser recebido senão pelo
ouvido, em vez da tradicional captação pela visão e pelo olfato, a que estamos
acostumados na vida cotidiana.
Também o título do conto se localiza em uma situação de liminaridade,
transitando entre campos semânticos aparentemente díspares. Se o senso comum
convencionou dar à palavra “paixão” apenas o significado de amor e volúpia
arrebatadora, como o que une os sujeitos José e Sylvia, a origem do vocábulo remete a
outra ideia: a de passividade, papel semântico mais ligado ao objeto do que o sujeito,
geralmente preso à noção de agente. Assim, em algum lugar entre a dicotomia
fundadora da metafísica – o par sujeito/objeto – a paixão está associada ao sofrimento,
como no sintagma “paixão de Cristo”.
Sofrendo de amor, José é sujeito e objeto na relação com Sylvia, ora repelindo-a
ora clamando por seu retorno, em um peristaltismo de emoções que remete ao
funcionamento dos intestinos, além do fort-da psicanalítico (FREUD, 1996a). Embora
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absurda à primeira vista, tal aproximação entre o somático e o psíquico é comum nos
escritos de Sandor Férenczi, que cunha o termo anfimixia (FÉRENCZI, 1990) para dar
conta de fenômenos em que uma forma de erotismo se confunde com outra, como a
coprofagia (fusão entre erotismo anal e oral) ou outras não tão aparentes. Como
exemplo menos evidente do fenômeno da anfimixia, semelhante ao “peristaltismo
emocional” entre José e Sylvia, pode-se citar que o psicanalista húngaro acreditava que
a uretra ensinava ao ânus “generosidade”, para livrar-se das fezes, enquanto o ânus
ensinaria à uretra “parcimônia”, de modo a não esbanjar o sêmen e evitar a ejaculação
precoce. Tal equilíbrio entre a generosidade uretral e a parcimônia anal teria, inclusive,
reflexos emocionais, na forma de lidar com o dinheiro e o sentimento de posse nas
relações humanas.
Refém de seu peristáltico amor no apartamento de José, o casal põe-se a conversar
sobre a relação, tentando reatar o relacionamento, mas se detém em aspectos
linguísticos, não conjugais.
“Vamos conversar, José. Senta aqui. Agora você vive falando merda a toda hora, merda isso, merda aquilo. Eu não gosto, acho vulgar”. “Não falo mais, nunca mais. Vamos tomar champanhe, tem outra garrafa na geladeira. Você adora champanhe” (FONSECA, 2002, p.74).
Nesse contexto, além da ambiguidade da estrutura “falar merda”, que também
pode ser interpretada como “falar bobagem”, destaca-se o caráter gregário das fezes.
Enquanto a tradição ocidental moderna aponta para uma privatização do excremento, a
ser secretado na solidão do banheiro trancado, o narrador transgride essa máxima,
lançando o vocábulo “merda” como a palavra de reaproximação do casal. Sendo, pois,
as fezes um pretexto para a união, restaura-se o valor etimológico de “vulgar”, adjetivo
usado por Sylvia para caracterizar a fala de José. Derivado da palavra vulgus (“povo”,
em latim), “vulgar” expressa bem o que seja o expurgo intestinal em “Paixão”. Além do
significado atual de “obsceno”, atribuído às intersticiais secreções corpóreas, a “merda”
é vulgar por ser formadora do povo, unindo as pessoas, como o casal protagonista do
conto. Afinal, pouca coisa têm em comum todos os integrantes de um grupo humano,
senão seu funcionamento metabólico e o consequente rejeito dessas transformações
físico-químicas.
Ainda centrando a discussão em aspectos linguísticos, quais analistas do discurso,
José e Sylvia pesam as palavras usadas na negociação de significados em seu
relacionamento:
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“Querido, foder é vulgar, mas é uma palavra bonita. Nós falamos sempre”. “Mas foi o jeito que você falou, o som da sua voz”. “E o que você disse, em seguida? Merda, mais uma vez, merda. Aliás, você disse: merda, vamos encerrar o assunto”. “E você brigou comigo por causa de uma palavra? Merda?” “Você sabe que briguei por causa de outra palavra”. “Que palavra foi essa?” “Foi aquele não, definitivo, da sua resposta” (FONSECA, 2002, p.75).
Em suas análises textuais, o casal chega à conclusão de que, mais que o
enunciado, é a enunciação que acarreta determinadas emoções no interlocutor, sendo o
jeito de falar mais importante do que aquilo que se diz. Da mesma forma, a palavra
“merda”, ou outra que o valha, pode ser tornada item de uma obra de arte, contanto que
a forma como foi empregada tenha rendimento estético. Nesse sentido, Rubem Fonseca
advoga pela beleza desse vocábulo em seu conto, visto que sua defesa pode ser
ratificada pelo argumento de Sylvia, o qual pode ser lido como uma defesa ao estribilho:
“mas é uma palavra bonita. Nós falamos sempre”.
Todavia, depois de praguejar e, ao mesmo tempo, invocar “merda” ao longo de
toda a narrativa, José se vê refém da dualidade desejar/temer, peculiar à relação com o
abjeto. Querendo a paz da indiferenciação, mas temendo o fim na desindividuação, José
reflete esse paradoxo psíquico em uma formulação ambígua: “Então na verdade você
não quer morar comigo. Quer ter um filho comigo. E colocar a merda do bebezinho no
meu lugar” (FONSECA, 2002, p.76).
Inseguro do amor de Sylvia, o personagem ataca a amada verbalmente, acusando-a
de substituí-lo “pela merda do bebezinho”, construção que pode indicar valor adjetival,
desclassificando o bebê, ou relação de posse, apontando para o bolo fecal expelido pela
criança. De ambas as formas, percebe-se o bolo fecal como um possível duplo do eu,
gerando uma forte crise de ciúmes em José.
A respeito disso, vale lembrar que, do ponto de vista embriológico, o pênis
desenvolve-se a partir dos intestinos e, nos mamíferos inferiores, da cloaca urogenital.
Assim, a identificação entre fezes e pênis acarreta uma identificação entre fezes e o ego,
sendo o pênis mero elemento de transição nessa equação. De acordo com Férenczi,
“devemos considerar o membro viril como um duplo em miniatura do ego inteiro, a
encarnação do ego-prazer, e nesse desdobramento do ego vemos a condição
fundamental do amor narcísico pelo ego” (FÉRENCZI, 1990, p.22). Temeroso, pois, de
ser trocado por seu duplo fecal, José rompe definitivamente o relacionamento, restando-
lhe, após a partida de Sylvia, apenas exclamar: “merda!”
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Núpcias abjetas
Aproximando também as esferas do amor e da dejeção, o conto “Viagem de
Núpcias”, publicado pela primeira vez no livro Histórias de amor (FONSECA, 1997),
faz do excremento um elemento de união. A obra em que se encontra o texto em
questão tem como fio condutor que une os contos o que se apresenta no título: histórias
de amor. No entanto, diferentes do que a tradição canonizou como protótipo do conto
amoroso, as narrativas do livro não têm finais necessariamente felizes, vilões que se
oponham ao amor de jovens ou casais que tenham de lutar contra imposições sociais
para afirmar seu sentimento. Em vez disso, o desejo nesses contos beira o grotesco,
sendo geralmente associado a matérias pouco românticas, como, no caso de “Viagem de
Núpcias”, as fezes.
O conto narra a história de Maurício e Adriana, dois jovens belos, ricos e bem-
sucedidos que têm apoio intenso das respectivas famílias para o casamento, ao contrário
de Romeu e Julieta, casal emblemático da literatura amorosa. Adriana, seguindo os
moldes tradicionais da heroína romântica, é virgem, guardando sua pureza – e,
consequentemente, os meandros de seu corpo – para a noite de núpcias. Seu namorado,
porém, também de acordo com os machistas preceitos românticos, era um jovem de
vida sexual intensa com diversas mulheres, até o dia do casamento, quando abandona
essa promiscuidade pregressa para viver um amor puro com sua esposa.
O problema para o casal se inicia justamente com essa pureza: sem carnalidade, o
amor dos jovens revela-se puro não só no plano espiritual, em que o suposto nobre
sentimento não se mistura às baixezas do corpo, mas também no plano físico, pois não
há trocas de fluidos ou rejeitos metabólicos entre os jovens, configurando uma relação
absolutamente asséptica e assexuada.
Tal fato é ratificado na própria seleção vocabular empregada pelo narrador, que
afirma, antes da cena do casamento, que “Adriana estava apaixonada por Maurício, mas
ele a amava candidamente, como se ela fosse sua irmã” (FONSECA, 1997, p.35). Nesse
trecho, a polissemia do termo “cândida” é reveladora, pois a transgressão entre limites
de significação operada por essa palavra indica diferentes camadas de leitura para o
trecho em que se encontra. Além de sinônimo de “pura”, “cândida” é também um
substantivo que designa vulgarmente o hipoclorito de sódio (água sanitária), substância
utilizada como desinfetante a fim de exterminar toda a impureza e as consequentes
ameaças que ela perpetra. Assim, “amar candidamente”, ao denotar um amor sem
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carnalidade, conota um amor sem as necessárias impurezas – excreções corpóreas –
borradoras de limites.
Nesse sentido, é importante ressaltar a relação entre a suspensão de limites
intersubjetivos, possivelmente proporcionada pela abjeção, e o erotismo. Se o desejo
pelo outro é sempre uma busca pela fusão, o amor só pode ter plenitude quando se
turvam as fronteiras entre os seres, misturando-se, inclusive, os líquidos que correm em
seus corpos.
Assim, o erotismo é uma busca pela suspensão momentânea da descontinuidade
entre seres. No momento oportuno, a matemática perde o sentido, dois igualam-se à
unidade, e os limites entre os indivíduos são dissolvidos, fundindo-se, portanto, em
apenas um, dissoluto em todas suas acepções.
Sem uma violação do ser constituído – que se constitui na descontinuidade – não podemos imaginar a passagem de um estado a um outro essencialmente distinto. Encontramos nas passagens desordenadas dos animálculos engajados na reprodução não só o fundo de violência que nos sufoca no erotismo dos corpos, mas também a revelação do sentido íntimo dessa violência. O que significa o erotismo dos corpos senão uma violação do ser dos parceiros, uma violação que confina com a morte, que confina com o assassínio? (BATAILLE, 1987, p.16).
O erotismo é, portanto, sempre uma violência, como no texto fonsequiano,
marcado por um realismo feroz (CANDIDO, 2000). No entanto, Maurício, amando
Adriana “candidamente”, não fusionara com ela corpos, líquidos ou excretas antes do
casamento, mantendo-se intactas as barreiras intersubjetivas entre os namorados.
Assim, na noite de núpcias, primeiro momento de conjunção carnal entre os
amantes, todo o ritual de defloramento foi tenso e sofrido, dada a exagerada assepsia
que permeava a relação. Tal qual vítima sacrificial que se prepara para um triste fim,
não uma noite de gozo, Adriana retirou-se para uma câmara à parte, onde se aprontou,
preocupada e insegura, como que para ser sacrificada a algum deus obscuro.
Mesmo a descrição da fusão dos corpos é descrita não como um momento de
prazer, mas de tensão tanto da vítima quanto do algoz no altar da imolação. Em um
longo parágrafo que ocupa duas páginas, tirando o fôlego do leitor, a própria tessitura
do trecho sugere a atmosfera opressora do coito, visto o apego das personagens à
pureza, seja do amor, dos corpos ou dos fluidos.
“Não quero beber”, Adriana disse, com um fio de voz. Maurício esvaziou em longos sorvos as duas taças e deitou-se de barriga para baixo ao lado de Adriana, beijou os bicos enrijecidos do peito dela, depois o lábio e o pescoço. Adriana deu um suspiro de langor e medo. Maurício também suspirou porque o seu pênis permanecia flácido. (...) Novamente pensou
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ansioso em Ludmila e então o seu pênis afinal endureceu e ele deitou-se apressado sobre Adriana, separando abruptamente as suas pernas, temendo que a ereção cessasse. (...) Adriana disse que ele a estava machucando, pediu que parasse, mas Maurício sabia que se não prosseguisse sem trégua seu pênis perderia seu enrijecimento, não endureceria mais naquela noite. E assim investiu com rapidez e brutalidade, sem se importar com os gritos de dor de Adriana (...). Ele atacou ainda mais durante algum tempo para se certificar de que seu dever fora cumprido (...) (FONSECA, 1997, p.38).
Tendo a relação entre os jovens sido sempre permeada pela pureza – em todas as
suas formas – a mistura de líquidos do coito foi um processo sofrido e sufocante, como
a própria estrutura claustrofóbica do parágrafo que o narra. Assim, mais do que em um
ato de prazer e gozo cúmplice, os amantes se portaram como inimigos em luta,
destacando-se na descrição da cópula vocábulos como “medo”, “machucar”,
“brutalidade”, “dor” e “atacar”.
Na dificuldade de se excitar diante da pureza de Adriana, Maurício recorreu à
memória de Ludmila, “uma das parceiras preferidas das suas noites lúbricas no
apartamento da cidade” (FONSECA, 1997, p.38). Momentos lembrados pela abjeção do
sexo e da mistura de secreções corpóreas, tais cenas pretéritas são marcadas pela
polissemia, que turva os limites semânticos em torno do vocábulo “lúbrico”. Em sentido
literal, tal palavra designa algo ligado à luxúria e à sensualidade, como se percebe a uma
primeira leitura do conto. No entanto, em um nível mais profundo de significação,
pode-se compreender tal referência de acordo com outra acepção proposta pelo
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), segundo o qual “lúbrico” seria algo
úmido, mole ou escorregadio, podendo ser associado ao caráter ambivalente e pastoso
das fezes, o que confirmaria a impureza excitante dos encontros com Ludmila.
Além disso, o mesmo dicionário aponta outra possibilidade de conotação para o
termo “lúbrico”, que poderia ser empregado também para designar o ventre que
processa rejeitos com facilidade. Assim, noites lúbricas seriam aquelas em que o abjeto
se assimilaria facilmente, não havendo ojeriza asséptica ao ambivalente, seja do sexo,
da suspensão das barreiras intersubjetivas, ou das próprias fezes. Ademais, a origem
etimológica de “lúbrico” (lubricus, em latim) não poderia ser mais parecida com a
origem de “lombriga” (lumbricus, no mesmo idioma), animal que habita, se alimenta e
copula nos meandros intestinais, retorcendo-se na sensual ambiguidade que o termo
“lubricidade” permite.
Dessa forma, apenas excitado pela lubricidade de Ludmila, Maurício consegue
fazer sexo com a esposa na noite de núpcias. Diferente da outra, porém, Adriana não
admite a impureza, pedindo ao marido que apague a luz antes de irem para cama. Sendo
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necessário esconder a indecente transgressão das fronteiras de seus corpos, o casal se
põe a discutir sobre o destino a ser dado às provas do “crime” de seus fluidos:
“Vou trocar esse lençol, deve ter roupa de cama limpa em algum lugar”, ela disse. “A arrumadeira faz isso amanhã. Vamos dormir no outro quarto”, ele disse. Mas Adriana encontrou lençóis num armário e refez a cama, dobrando cuidadosamente o lençol manchado, de maneira que o sangue não fosse visto. Depois foram dormir no outro quarto (FONSECA, 1997, p.39).
Sendo impossível simplesmente apertar o botão da descarga, como se faz com os
resíduos que vão para a louça sanitária, a jovem esposa se esforça para se afastar dos
ambíguos rejeitos de seu corpo, preocupando-se ainda em escondê-los dos olhos
alheios. Diferente da antiga tradição de exibir orgulhosamente o lençol manchado pelo
hímen virginal rompido na primeira noite de amor marital, a tentativa de Adriana de
ocultar seu abjeto fluido revela que, apesar da perda da virgindade, mantém-se sua
obsessão pela pureza e pela assepsia.
Prova da transgressão, mesmo que momentânea, das barreiras de seu corpo,
formando-se uma zona de liminaridade em que os limites do eu e do outro se perderam,
o sangue era nojento e ignominioso para Adriana. Afinal,
as codificações do corpo e as manifestações afetivas que acompanham as reações de nojo respondem à intolerância do homem à ausência de sentido no mundo em que ele vive. O inconformismo da conduta corporal corresponde ao inconformismo da ordem intelectual: as codificações do corpo são também codificações do mundo, são de ordem intelectual, e as reações afetivas não são senão uma maneira particular de manifestação para a consciência da estruturação intelectual inconsciente do mundo (RODRIGUES, 2006, p.122).
Na ameaça da crise do sujeito e do corpo social, suscitada pela ambivalência do
fluido corpóreo – sangue sagrado da virgem e profano do coito –, o casal decide
abandonar as núpcias e voltar para casa, não mais se envolvendo em conjunções carnais.
Assim, ambos partem juntos em lua-de-mel para fazerem rafting no rio Colorado, em
uma viagem que mudaria suas vidas. A bordo de um bote, têm de deixar a segurança
higiênica de suas casas e do hotel onde passaram a noite de núpcias, abandonando-se ao
selvagem, ao incalculável e ao avesso à classificação ordenadora. Desse modo,
aproximaram-se da imprevisível natureza e afastaram-se da racionalizante cultura ao
embarcarem
[n]o selvagem, remoto e poderoso rio Colorado [que] atravessa o dramático e fascinante red rock country do Canyonlands National Park... Paredões de rocha de arenito vermelho de trezentos metros de altura ladeiam as margens do rio... Nas cem milhas de descida do rio, você atravessa corredeiras famosas como a Satan’s Gut.... (FONSECA, 1997, p.40).
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Para demonstrar a mudança que se opera lentamente no casal, em busca de formas
menos assépticas de viver, entrando em contato com o indômito abjeto, a própria
seleção de palavras feita pelo narrador é reveladora: entre todos os acidentes
geográficos possíveis para se percorrer em um bote, o texto apresenta a queda Satan’s
Gut, que de fato existe nos Estados Unidos e, em português, teria seu nome traduzido
como “Intestino/Tripa do Satanás”. Assim, um casal que se põe a remar em um pequeno
bote à deriva de uma corredeira que sai das tripas do demônio coloca-se simbolicamente
como um diabólico bloco fecal que abandona os intestinos e é lançado na torrente da
descarga.
Embora o símile pareça grotesco, confirma-se essa leitura ao longo do conto,
permeado por referências às fezes. Como exemplo, pode-se citar a principal
preocupação de Maurício no que diz respeito às condições inóspitas em que se poriam
durante a viagem:
“E como é que a gente?...” “A gente o quê?” “Não é nada.” “Você quer perguntar onde são feitas as necessidades fisiológicas, não é isso?”, disse Adriana, que conhecia Maurício havia tempo bastante para conhecer seus tabus. “Isso mesmo.” “Está aqui no folheto. Toda balsa tem um toalete especial, que é diariamente esvaziado num depósito anti-séptico da balsa e depois levado para a sede da empresa de turismo. É proibido urinar ou fazer qualquer coisa no terreno, o solo e cada pedaço de pedra são preservados e protegidos por lei. Mas eu não me preocuparia com isso, a companhia deve ter previsto uma maneira confortável, higiênica e recatada de resolver o problema”, disse Adriana (FONSECA, 1997, p.42).
O silêncio de Maurício, ausência da linguagem diante do impronunciável abjeto, é
compreendido por Adriana, que logo o substitui por um termo pomposo e vago,
“necessidades fisiológicas”, embora essa locução, ao designar demandas corpóreas, seja
pouco elucidativa, pois pode apontar para outras necessidades, como alimento, oxigênio
etc. Essa precariedade do discurso revela o horror ante o inominável, dado o caráter
ambivalente e inclassificável das fezes, turvando o sujeito e o objeto, o sagrado e o
profano, o sólido e o líquido, o prazeroso e o infeccioso.
A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve desempenhar. O principal sintoma de desordem é o agudo desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações alternativas (BAUMAN, 1999, p.9).
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Inefável tabu da dejeção, defecar foi substituído até por uma estrutura vazia de
significação como “fazer qualquer coisa no terreno”, que, por poder indicar tudo, acaba
não indicando nada.
Ao puritanismo discursivo dos jovens, que se recusam a dizer os nomes feios do
excreta, opõem-se os textos de Rubem Fonseca, que, nesta dissertação, são analisados
sob a ótica das metáforas fecais. Assim, ao dizer que a resposta para a dejeção “está
aqui no folheto”, o conto sugere um artifício metalinguístico: se o folheto publicitário
que divulga o rafting no rio Colorado explica como lidar com as fezes, também o faz
Rubem Fonseca, na folha que tem em mãos o leitor – do conto, não do folheto.
Diferente do esdrúxulo “depósito anti-séptico da balsa” a ser “levado para a sede da
empresa de turismo”, o excremento é dito explicitamente na ficção fonsequiana,
promovendo a catarse – no sentido aristotélico, de purificação de humores negativos
diante da obra de arte, e no sentido médico, de evacuação dos intestinos. Portanto,
enquanto a “companhia deve ter previsto uma maneira confortável, higiênica e recatada
de resolver o problema”, o autor de “Viagem de Núpcias” prevê uma maneira séptica e
visceral de compor seus textos.
Como característica predominante na obra de Rubem Fonseca – em paralelo à
notória temática da violência de seus primeiros escritos – a remissão ao papel do autor é
constante no conto, visto que o casal está sempre acompanhado por alguém que escreve,
seja o poeta que com eles faz rafting ou o misterioso homem do notebook.
O aeroporto de Moab consistia numa pista de pouso e decolagem e uma pequena casa pré-fabricada, de madeira, que estava fechada. Ao lado da casa havia dois trailers. Não havia nenhuma pessoa da empresa de viagem esperando por eles. Na verdade, além do piloto do teco-teco e do homem do notebook não se via mais ninguém na casa, nos trailers ou mesmo na imensa planície vazia que os cercava (FONSECA, 1997, p.43).
Além disso, garantindo unidade ao texto e funcionando como um índice
(BARTHES, 1973) que aponta gradualmente para o clímax da narrativa, a presença da
“pequena casa pré-fabricada” – ou “casinhola”, como em menções posteriores no conto
– sugere a popular “casinha”, latrina privada típica de lugares sem sistema de esgoto.
Assim, como augúrio do final em que as fezes unem o casal, com seu poder de
ambivalência poluente, os dois jovens entram juntos na “casinhola”, para dar um
telefonema quando chegam ao aeroporto.
Porém, até que chegassem à situação para que esse índice da narrativa aponta, o
casal ainda teria de se submeter a uma experiência intensa com o abjeto, tão radical
42
quanto a prática do rafting. Afinal, a “casinha”, como índice, apenas indicava o fim do
percurso narrativo. Muito teria o casal de viver – e o narrador a relatar – até que os
jovens vivessem plenamente a dejeção, pois ainda estavam muito presos a convenções
de higiene: “Eles nunca entravam no banheiro juntos, em seu apartamento novo de São
Paulo cada um tinha banheiro próprio” (FONSECA, 1997, p.45).
Tamanha falta de intimidade reflete-se na vida conjugal de Maurício e Adriana,
praticamente assexuada, pois o rapaz não se sentia excitado pela moça, a despeito de sua
beleza. Sendo a volúpia uma força muito mais próxima da natureza do que da cultura, o
casal padecia de uma subserviência muito forte aos ditames da racionalização
ordenadora, repudiando toda a ambivalência e os instintos sexuais. Como que intuindo o
drama dos recém-casados, a guia Suzete “disse que a comunhão com a natureza devia
fazê-los mais felizes, mas que, como dissera Mildred Barbel, ‘happiness is a conscious
choice, not an automatic response’” (FONSECA, 1997, p.46). Dessa forma, faltava ao
casal abandonar-se voluntariamente ao instintivo, não esperar que o desejo os invadisse
automaticamente após o laço matrimonial.
Contudo, o brado da natureza invocando o casal é mais forte que sua obsessão
higienista. Como seres humanos, além de homo sapiens sapiens os jovens são homo
cacans (FONSECA, 1994b), não podendo escapar aos ditames de suas entranhas. No
entanto, para tentar ordenar e controlar essa poderosa força da natureza que se rebela
contra a ordenação racionalista, a sociedade, representada pelas ordens da guia Suzete,
legisla sobre as fezes, promovendo uma gramática das excreções.
[Suzete] pediu que ninguém urinasse no terreno, estavam num parque nacional que devia ser preservado, dentro da água podia, ou então no dispositivo sanitário que Boatman estava instalando naquele momento no meio do mato, num local distante, isolado da vista de todos. Para ir ao vaso sanitário a pessoa teria que passar por um ponto onde havia um rolo grosso de papel higiênico numa caixa com um pé comprido espetado no solo. (...) “Quando alguém for usar o dispositivo, deve apanhar o rolo. E depois colocá-lo no mesmo lugar. Assim, a ausência ou presença do rolo orientará os usuários” (FONSECA, 1997, p.47).
Tal legislação, visando ao máximo de pureza, asseamento e individualidade,
prescreve práticas muito mais simbólicas do que realmente ambientais, como a urina
dentro da água. Do ponto de vista ecológico, é absurdo pensar que a urina, líquido
expelido por todos os animais, seria um poluente para a terra, não para o rio. Logo, a
água desempenha, nesse caso, papel alegórico de ablução e purificação, neutralizando e
dissolvendo a sujidade da excreção. Da mesma forma, a necessidade de banir para
dentro do mato a latrina improvisada e impedir o encontro de pessoas a caminho dela
43
muito se assemelha à tentativa do casal de esconder o sangue quando de sua primeira
conjunção carnal.
Apesar dessas restrições com vistas à manutenção da ordem, o temor do caos e da
ambivalência mantém-se preponderante no casal, que se recusa a usar o vaso instalado
por Boatman. Porém, como têm de se curvar à pressão que o abjeto faz em suas
entranhas, decidem urinar no rio, não obstante a guia lhes ter dito “que eles não podiam
tomar banho no rio pois aquele trecho estava infestado de giárdias, um protozoário (...)
que causava fortes diarreias” (FONSECA, 1997, p.48). Assim, temerosos de usar o
sanitário disponibilizado pela empresa de turismo, os jovens acabam se molhando em
uma falsa promessa de higiene – a água –, que os reconduz, mais tarde, à inescapável
latrina.
Sofrendo os efeitos das giárdias – natureza que devolve o homem à sua
semelhança com os animais, por meio da dejeção –, Maurício encaminha-se para o
sanitário, mas surpreende Adriana nas proximidades do dispositivo provido pela
empresa de turismo. Marcados ainda fortemente pelo impronunciável tabuístico, os
jovens não trocam palavras sobre o que os movera a se aproximar do vaso,
simplesmente calados e constrangidos, como criminosos que refletem sobre a falta
cometida.
Maurício foi até o vaso sanitário e antes de sentar olhou a camada de líquido anti-séptico azul-celeste transparente que enchia o receptáculo. E pôde ver com nítida clareza um enorme bolo fecal marrom-escuro submerso no fundo. Um pedaço de papel higiênico amarfanhado boiava na superfície. (...) Aquela asquerosa, imensa massa excrementícia fora expelida por Adriana, e essa constatação o encheu de horror. Espalhou papel profusamente sobre o líquido, de maneira a esconder aquela visão repugnante. Seus intestinos ficaram ainda mais bloqueados. Vestiu as calças e se afastou, com o pouco que restava do rolo de papel higiênico na mão. Quando chegou na caixa onde deveria colocar o papel, parou sem fôlego (FONSECA, 1997, p.54).
A prova do crime hórrido de Adriana, no entanto, era evidente, a despeito de sua
tentativa de ocultá-la com o papel amarfanhado. Note-se, nesse sentido, a oposição entre
a coloração marrom-escura das fezes da moça e a limpidez do “líquido anti-séptico azul
celeste transparente”. Conclamada por seu instinto de homo cacans, a jovem macula
permanentemente a pureza do vaso, alegoria da racionalidade categorizadora que
sustenta as relações sociais e permite ao ego, em princípio, compreender e ordenar o
real.
Tal visão causa em seu marido o que a Teoria da Literatura convencionou chamar
de “epifania”, termo tomado de empréstimo à religião, que, originalmente, indicava uma
44
manifestação reveladora de Deus, em que se revivia o batismo de Cristo. Ian Reid, em
The Short Story, teoriza sobre a relevância desse fenômeno como um átimo peculiar à
estrutura do conto canônico, servindo não só ao desenrolar da narrativa, mas à estrutura
própria da narração.
Poder-se-ia dizer que o conto tipicamente se centra sobre o significado interior de um evento crucial, sobre grandes intuições súbitas, ‘epifanias’, no sentido que James Joyce confere a essa palavra; em virtude de sua brevidade e delicadeza, ele [o conto] pode, por exemplo, singularizar com especial precisão aquelas ocasiões em que um indivíduo está mais alerta ou mais solitário (REID, 1977, p.28).
Todavia, em “Viagem de Núpcias”, a epifania localiza-se na ambiguidade entre o
sagrado e o profano, pois o aspecto de iluminação espiritual não é desencadeado pelo
divino, mas sim por uma “asquerosa, imensa massa excrementícia”. Após deparar-se
com as fezes da amada, Maurício passa a vê-la de outra forma, desejando carnalmente
seu corpo e buscando-a de forma incessante para o sexo. A visão de algo que habita a
fronteira entre o sujeito e o objeto, o abjeto, convida simbolicamente o rapaz a desejar o
mesmo tipo de fusão com a carne da esposa, não mais a amando da pura e asséptica
forma “cândida”.
No monólogo interior que a solidão da latrina permite, o próprio corpo do rapaz
reage ante a visão do abjeto: além da perda do fôlego, “seus intestinos ficaram ainda
mais bloqueados”, reagindo de forma complementar às entranhas da Adriana. O que um
expele, o outro retém, como no ato sexual. Entretanto, no lugar do sêmen jorrado pelo
homem e retido pela mulher, apresentam-se no conto as fezes expurgadas pela moça e
guardadas por seu marido.
Feito o ato sexual simbólico, posto no papel do livro pelo autor e no papel
higiênico pelo casal, segue-se-lhe a cópula carnal, ocorrida quando ambos se encontram
na barraca.
Adriana entrou na barraca. Maurício tirou a roupa dela delicadamente, depois se desnudou também, feliz com sua virilidade latejante. Deitaram-se e ele beijou Adriana na boca, sorvendo a saliva dela, e pacientemente percorreu com a língua as mais recônditas partes do corpo da mulher que amava (...). Depois possuiu-a com um ardor que nunca tivera, e esperou que os braços e as pernas da sua mulher se enlanguescessem no gozo para fruir aquela comunhão com um deleite que não imaginava pudesse existir (FONSECA, 1997, p.55).
Despido das preocupações de assepsia prática e simbólica, o casal finalmente goza
junto a fusão de suas carnes e a troca de seus líquidos, suspendendo no momento da
cópula a descontinuidade (BATAILLE, 1987) de seus corpos. Depois da visão do abjeto
45
nascido das vísceras de Adriana, Maurício sorve com prazer outras excreções da amada,
como sua saliva.
Mais do que isso, percorre as partes mais recônditas – anteriormente vistas como
sórdidas – do corpo da esposa com a língua, criando-se, no plano do enunciado, uma
cena de forte carga erótica. Contudo, o gozo tem eco no plano da enunciação, graças ao
truque metalinguístico em que uma língua que percorre o que há de recôndito no
organismo pode também ser lida como metonímia da linguagem despudorada.
Na obra de Rubem Fonseca, tal estratégia de composição literária dá materialidade
ao texto, que pode ser percorrido eroticamente com uma língua que toca o
impronunciável. Nesse sentido, a máxima de que a perversão é o regime do prazer
textual (BARTHES, 2006) ganha ressignificação: perverso ao passar a língua no
recôndito do corpo e se excitar coprofilicamente com as fezes, o prazer também é
perverso por deslocar o erotismo do genital para o literário, convidando o leitor ao gozo
ao tocar com a língua literária o inefável ambivalente do corpo do idioma.
46
CAPÍTULO II: OS TEXTOS DO CORPO E O CORPO DO TEXTO: UMA LITERATURA FECAL
“Un arabe qui va chier n’emporte pas une poignée de papiers, mais un peu d’eau dans une vieille boîte de
conserve... L’occidental est tellement entiché de paperasserie qu’il s’en fourre jusque dans le cul”.
Michel Tournier. Les météores, 1975.
“O mundo está dividido entre os que cagam bem e os que cagam mal. Sobre esse dogma
o médico elaborara toda uma teoria do caráter, que considerava mais certeira do que a astrologia”.
Gabriel García Márquez. O amor nos tempos do cólera, 1985.
A literatura não morreu
Tema controverso, “pós-modernidade” é um termo por si só polêmico que designa
um período da história das mentalidades destacado por um grupo de pesquisadores,
enquanto outros dizem que se trata apenas de uma setorização excessiva dos últimos
anos da modernidade. Nesse sentido, vale lembrar que “a própria definição de período
como fase marcada por uma mudança de direção implica, simultaneamente,
continuidade e ruptura” (PANOFSKY, 1981). Porém, a despeito de divergências de
nomenclatura e embates epistemológicos, é consenso que, a partir da década de 50, a
sociedade ocidental passou por drásticas transformações tecnológicas, econômicas,
políticas e culturais, redundando em uma necessidade de estudos especializados acerca
desse período histórico.
Sob os rótulos de pós-modernidade, hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2004) ou
modernidade líquida (BAUMAN, 2001), para citar apenas os mais célebres termos,
encontra-se uma era de fluidez e incertezas, como sugere a terminologia baumaniana.
Enquanto a modernidade foi marcada pela crença racionalista nos poderes da ciência e
da lógica como mecanismo de compreender o mundo, a pós-modernidade depara-se
com a falência desses ideais. A razão, eleita como sólido pilar das ações humanas desde
o fim da Idade Média, esvai-se entre os dedos e se mostra deformável, maleável e
relativa, como só os líquidos sabem ser, visto que facilmente se adaptam ao formato do
recipiente em que são despejados.
Sem balizas fornecidas pelo esclarecimento, as quais paradoxalmente impedem o
sujeito de pensar de forma autônoma, já que pode confiar suas dúvidas ao poder
47
inexorável da razão, o homem pós-moderno vive o impasse da incerteza. Noções de
certo e errado, feio e belo, naturalizadas na vida em sociedade, revelam-se meros
construtos culturais, de modo que o indivíduo contemporâneo deve escolher em que
narrativa quer acreditar. Perdido no labirinto dos relativismos, o sujeito não pode fazer
mais do que se abandonar à vertigem do não-saber.
Denunciadas como parcialidades, as grandes metanarrativas (LYOTARD, 1986)
perdem seu caráter de verdade absoluta, revelando-se apenas versões do insondável
mistério que é o real. Ciência, religião, moral, tradição, norma e desvio assumem, pois,
seu caráter discursivo como meras construções linguísticas que tentam, sempre de forma
muito precária, explicar o universo e a condição humana.
Nesse contexto de fim das grandes metanarrativas, situa-se a polêmica obra de
Após o fim da arte (DANTO, 2006), que, dado seu título, suscitou interpretações
simplistas e deturpadoras de sua tese sobre os limites da história na arte contemporânea.
Leituras apressadas das teorias do autor fomentaram as discussões alarmistas de que a
arte chegava ao fim, profetizando um inverossímil futuro em que não haveria mais
artistas. Tais posicionamentos geralmente foram respaldados por visões de que a técnica
alienante substituiria a arte, pervertida em mero item de consumo na indústria cultural.
Todavia, Danto (2006) esclarece em seu livro que o fim da arte não seria o fim da
produção da arte, ao contrário do que dizem os que alardeiam o declínio da literatura.
Em vez disso, a teoria do fim da arte aponta para o ocaso das definições fechadas do que
seja ou não artístico, ampliando-se ao infinito as possibilidades no trabalho estético.
Trombeteira do apocalipse, a mídia alardeia o fim da literatura, a morte dos livros,
o sepulcro da leitura como a conhecemos, sendo substituída pela apoteose do
audiovisual. A profecia é antiga, tendo surgido com a invenção do cinema e culminado
na segunda metade do século XX, quando da popularização do aparelho televisor e,
posteriormente, quando os personal computers invadiram os lares de todo o mundo,
prometendo acesso fácil e instantâneo a todo tipo de informação.
Contudo, essa falsa predição é fruto do charlatanismo de uma série de
Nostradamus da contemporaneidade, que apelam à doxa e aos impactos das afirmações
cataclísmicas para veicular seus próprios interesses. A literatura, prática inerente à
condição humana, só pode ter seu fim anunciado em profecias irracionais, não baseadas
em critérios científicos, racionalistas ou empíricos, visto que apenas o desaparecimento
do gênero humano acarretaria a morte da arte da palavra. Sintomas do mal-estar na
modernidade (ROUANET, 1993), os prognósticos do óbito da literatura denunciam
48
muito mais a crise dos critérios científicos e da razão – inclusive no meio acadêmico,
que por vezes também anuncia o fim da literatura – que do trabalho estético com a
palavra.
Em sua argumentação sobre o fim das metanarrativas artísticas, Danto (2006)
remete a um tempo em que não havia arte, isto é, em que a elaboração estética da forma
não tinha estatuto artístico. Dos primeiros rabiscos nas paredes de cavernas às imagens
devotas cristãs produzidas até o ano de 1400 d.C., o trabalho estético não era
considerado arte, pois sequer existia tal conceito. Essas obras não eram nem mesmo
atribuídas a seus produtores, sendo a própria noção de autoria cunhada quando do
surgimento da ideia de arte. Assim, a arte anterior à era da arte estava ligada ao
sobrenatural, com poderes encantatórios sobre as caçadas de animais ou como fruto de
intervenções do Espírito Santo, que fazia do gênero humano apenas um veículo das
revelações divinas. Logo, embora já houvesse homens colocando laboriosamente
marcas em superfícies, essa atividade não era considerada inserida em estilos ou
tendências, conceitos criados apenas na Renascença. Até então, o que havia eram
manifestações espirituais que, com o posterior advento do conceito de arte, tornaram-se
também objeto de estudos estéticos.
De maneira semelhante, Após o fim da arte advoga por uma nova era em que são
improcedentes as discussões do que seria artístico ou não. Continuam existindo o
artista, a obra e a recepção; o que desaparece são as narrativas definidoras do estatuto
artístico dos objetos, normatizando técnicas, tendências e materiais. A teoria de Danto
seria, pois,
(...) um meio algo dramático de declarar que as narrativas mestras que primeiro definiram a arte tradicional, e depois a arte modernista, não só chegaram a um fim, mas que a arte contemporânea não mais se permite ser representada por narrativas mestras de modo algum. Aquelas narrativas mestras inevitavelmente excluíam certas tradições e práticas artísticas como “além dos limites da história” – uma frase de Hegel à qual recorri mais de uma vez. É uma das muitas coisas que caracterizam o momento contemporâneo da arte – ou o que denomino o “momento pós-histórico” – em que não há mais limites da história. Nada se encontra interditado (...). O nosso é um momento, pelo menos (e talvez unicamente) na arte, de profundo pluralismo e total tolerância. Nada está excluído (DANTO, 2006, p.XVI).
Sem previsão de morte, a arte em geral e a literatura, mais especificamente neste
trabalho, continuam sendo produzidas após o que Danto anunciou como o fim da arte,
referindo-se ao ocaso das narrativas que a regulam. Desse modo, no presente momento,
em vez de pós-modernismo, talvez seja mais apropriado utilizar uma forma plural, “pós-
49
modernismos”, para tentar dar conta da multiplicidade de facetas que assumiu a
produção cultural após a década de 50.
Ao assumir seu caráter multíplice, a pós-modernidade afasta-se de um dos
preceitos básicos da modernidade: o discurso normativo da pureza de temas, técnicas e
suportes, em que não deveria haver misturas ou criações liminares entre arte e não-arte.
Tal distinção entre moderno e pós-moderno, tomada pela maioria dos especialistas
como um sólido argumento a justificar a necessidade de diferenciar ambas as instâncias,
é parte integrante de um fenômeno maior, que perpassa as subjetividades em ambos os
períodos.
O homem da modernidade racional buscou a pureza em seu raciocínio, instalando
classificações e ordenações lógicas do real, de modo a catalogar os objetos cognoscíveis
em categorias predeterminadas. Os que não se encaixassem em tais divisões arbitrárias
eram considerados um refugo nocivo a ser expelido, como reflexo do processo
civilizatório que impõe os ditames da cultura a tudo o que é natural. Nesse contexto,
limpezas étnicas e culturais foram perpetradas, em busca de uma suposta pureza: o
holocausto judeu, a chacina dos índios, a aculturação das colônias estavam na agenda
moderna como práticas ordenadoras, substituindo o caos pela ordem, o aleatório pela
pureza.
Dada a crise dos valores racionalistas na pós-modernidade, que descobre a
parcialidade da própria ciência, até a pureza da razão é questionada. A defesa do
indômito e do natural ganha corpo nos movimentos ecológicos crescentes e as noções
de centro e periferia são questionadas. O termo excêntrico, empregado geralmente para
designar o diferente, ganha contornos politicamente incorretos, porque indica o que está
fora do centro, sugerindo uma hierarquia de valores.
(...) “Viva às margens!”. O movimento no sentido de repensar as margens e as fronteiras é nitidamente um afastamento em relação à centralização juntamente com seus conceitos associados de origem, unidade e monumentalidade, que atuam no sentido de vincular o conceito de centro aos conceitos de eterno e universal. O local, o regional e o não-totalizante são reafirmados à medida que o centro vai se tornando uma ficção – necessária, desejada, mas apesar disso uma ficção (HUTCHEON, 1991, p.85).
Sem distinção entre centro e periferia, borrados em um locus indiferenciado, o
excêntrico (fora do centro) torna-se “ex-cêntrico” (que não é mais cêntrico). Nesse
contexto, minorias antes expurgadas pelo sistema social ganham voz, como nos
50
movimentos gay, negro, indígena e hippie, militantes pelo fim da proclamada pureza
superior dos padrões impostos pela sociedade.
De maneira análoga, tais concepções acerca de (im)pureza se percebem nas
diferenças entre as produções artísticas da modernidade e da pós-modernidade, visto
que a arte, mais do que reflexo, é parte do processo social em que se insere.
Os impulsos internos do modernismo (...) eram completamente fundacionalistas. Cada uma das artes, tanto a pintura como as outras, tinha de determinar o que era peculiar a si mesma – o que pertencia somente a ela. É claro que a pintura “estreitaria a sua área de competência, mas ao mesmo tempo tornaria a posse daquela área ainda mais certa”. Portanto, a prática de uma arte foi, ao mesmo tempo, uma autocrítica daquela arte, o que significou a eliminação, de cada uma das artes, de “todo e qualquer efeito que pudesse ser concebidamente tomado por empréstimo de ou pelo meio de qualquer outra arte. Com isso, toda arte se tornaria “pura”, e em sua pureza encontraria a garantia de seus padrões, bem como de sua independência. “Pureza” significa “autodefinição”. Note-se a agenda da crítica da arte aqui implícita: é uma crítica a uma obra de arte impura, e isso quer dizer, que contenha uma mistura de qualquer outro meio exceto ela mesma (DANTO, 2006, p.77).
Se a modernidade buscou uma arte pura, sem contaminação de outros fenômenos
estéticos, a pós-modernidade celebra a multimodalidade artística, fundindo linguagens,
técnicas e materiais. Na colagem misturada à pintura; na escultura feita de pessoas
vivas, à guisa de dança; ou no entre-lugar de cinema e teatro, a arte contemporânea
busca fusões e experimentações, negando as categorias estanques propostas pela
ordenação racional moderna.
Assim, de fato há hoje uma mudança nos paradigmas segundo os quais
concebemos o fenômeno literário, tanto no que tange à própria tessitura textual quanto à
sua produção e recepção. Porém, não está morta a arte da palavra, tem apenas uma nova
forma de ser, em paralelo à tradicional impressão em offset sobre papel branco. Nesse
contexto, as potencialidades surpreendentes dos avanços tecnológicos dão ensejo a
inovadoras possibilidades literárias, prescindindo inclusive do suporte físico do papel.
Como consequência, os próprios processos de enunciação mudam, visto que a seleção
do canal influencia a constituição da mensagem, bem como sua recepção (JAKOBSON,
1995). Assim, a literatura pós-moderna, em oposição à moderna, não busca uma pureza
de origens, mas sim uma arte multimodal: estética do fragmento que recomponha, ainda
que precariamente, os estilhaços da crise das tradições e das certezas racionalistas.
No entanto, a influência da tecnologia de ponta sobre a forma de se produzir, fruir
e conceber a literatura não é prerrogativa da pós-modernidade. Muito antes, Gutenberg
já revolucionara a arte da palavra com sua prensa de tipos móveis.
51
Ela substituiu o manuscrito pelas cópias idênticas, introduziu o livro portátil, criou o caderno com páginas numeradas, índices e sumários, para dizer pouco. Tais alterações técnicas revolucionaram o conteúdo da cultura, no que se refere a quem produz e a quem tem acesso aos seus frutos: é quando surge a noção de autor e se amplia o número virtual de leitores (PELLEGRINI, 1999, p.15).
Permitindo narrativas mais longas e densas, facilmente reprodutíveis graças à
nova tecnologia, a invenção alemã trouxe contribuições significativas para o próprio
processo da enunciação, menos preso às antigas restrições de produção e circulação do
livro. De maneira análoga, o atual império do audiovisual, em que as subjetividades
pós-modernas se acostumam a uma série ininterrupta de bombardeios informacionais
que afetam todos os sentidos, especialmente a audição e a visão, traz mudanças
profundas à maneira como concebemos literatura.
“Quantidade, movimento, visibilidade, simultaneidade de tempos e espaços”
(PELLEGRINI, 1999) são categorias inauguradas pela técnica da fotografia, que
suplantou a pintura em sua capacidade mimética. Mais eficiente do que as pinceladas de
qualquer indivíduo, mesmo o obsoleto daguerreótipo reproduz com alta perfeição o real,
captando todos os seus matizes de luminosidade. Assim, desbancada por seu rival
tecnológico de reprodução imagística, a pintura teve de se reinventar, deixando de lado
os academicismos e a obsessão pela cópia do natural, abandonando-se a desvarios de
cores, formas e texturas de que a fotografia não seria capaz.
Na mesma corrente, o cinema e, mais recentemente, a televisão fundem sua
sintaxe à literária, que ganha com truques cinematográficos tanto no plano do conteúdo
como no da forma. Rubem Fonseca, por exemplo, autor estudado no presente trabalho,
põe nas mãos de seus narradores câmeras que vão da panorâmica ao contre-plongée,
com closes da objetiva para captar momentos excruciantes da dicção. Assim, a ficção
contemporânea ganha em visualidade, fazendo-se do abstrato e do conceitual apenas
descaminhos em que se volta à apoteose da imagem. Destaca-se, pois,
a importância atribuída à técnica de narrar na modernidade, tanto no cinema quanto no romance, como se evidencia através da recusa à linearidade, da fragmentação do discurso, da atomização do tempo, da relevância do ponto de vista, da diversidade de vozes narrativas, da falta de homogeneidade semântica, da dissonância de elementos justapostos e da desordem na sequenciação dos episódios (BARBIERI, 2003, p.25).
Os sujeitos fragmentados pós-modernos, que sofrem o colapso da visão
monadológica da identidade, reconhecem-se no narrador e nas personagens com que se
defrontam, cuja linguagem, tomada de empréstimo às recortadas e justapostas cenas da
tevê e do cinema, é marcada pela atomização e pela fragmentação. Analogamente, a
52
tessitura entrecortada da prosa contemporânea, repleta de ruídos e nonsenses,
assemelha-se ao turbilhão informacional pós-moderno, em que se chocam e sobrepõem
dados de todos os lados, por vezes resultando em uma cacofonia incompreensível.
Nessa fusão de letra e imagem, significante e significado, audição e visão, a ficção
pós-moderna transcende o conceito de polifonia (BAKHTIN, 2002), instaurando uma
prosa absurdamente sinestésica. Surge, assim, no intercâmbio semiótico da literatura
contemporânea, a polieidolia, caleidoscópio de imagens fônicas que vêm acopladas a
imagens visuais (BARBIERI, 2003).
De maneira análoga, a era da computação trouxe uma série de mudanças e
contribuições à prática literária, inclusive a leitores e autores que se julgavam infensos à
tecnologia de ponta: processadores de texto, arquivos digitais, impressão a laser e
comercialização na Internet são apenas algumas das inescapáveis influências da ubíqua
informática sobre a literatura.
Porém, como o desenvolvimento tecnológico é ininterrupto e cada vez mais veloz,
mesmo essas contribuições já podem ser consideradas pretéritas, se comparadas com a
tendência cada vez maior de abandonar o papel como suporte do literário. Embora
muito do que se produz hoje no meio digital possa, com custos mais altos e menor
possibilidade de divulgação, ser impresso, como se faz tradicionalmente desde o invento
de Gutenberg, a revolução computacional influenciou sobremaneira o próprio processo
de enunciação, surgindo uma poética exclusivamente virtual. É o caso de obras literárias
interativas e hipertextuais, bem como aquelas que se constroem holograficamente como
realidade virtual e cuja realização não é possível sem o apoio da tecnologia digital.
Nesse sentido, vale chamar atenção para a etimologia da própria palavra tela, interface
em que o leitor pós-moderno tem contato com os textos, sejam de televisão, cinema ou
computador. O vocábulo latino tela é uma contração da forma texela, derivada de
texere, que equivale ao atual verbo “tecer”. Sendo assim, toda tela é um tecido de
informações, um texto em que se entremeiam, como na página de papel, mas de forma
pluridimensional, os fios da linguagem.
Tal forma de literatura, que troca a celulose pelo cristal líquido como superfície de
inscrição, está em plena consonância com o perfil do leitor pós-moderno, moldado pelas
peculiaridades de nosso tempo. Trata-se de
um leitor em estado de prontidão, conectando-se entre nós e nexos, num roteiro multilinear, multi-sequencial e labiríntico que ele próprio ajudou a construir ao interagir com os nós entre palavras, imagens, documentação, músicas, vídeos etc. Trata-se de um leitor implodido cuja subjetividade se
53
mescla na hipersubjetividade de infinitos textos num grande caleidoscópio tridimensional onde cada novo nó e nexo pode conter uma outra grande rede numa outra dimensão. Enfim, trata-se aí de um universo inteiramente novo que parece realizar o sonho ou alucinação borgiana da biblioteca de Babel, uma biblioteca virtual, mas que funciona como promessa eterna de se tornar real a cada click do mouse (SANTANELLA, 1998, s.p.).
Retirando a primazia do papel sobre o literário, a tecnologia digital potencializa ao
infinito as possibilidades do intertexto e do hipertexto, bastando um clique para que as
relações de dentro e fora do texto original sejam transgredidas. Assim, o
desenraizamento espaciotemporal engendrado pela globalização, que desvincula as
clássicas relações newtonianas de tempo e espaço, contamina a esfera do literário. O
cristal líquido da modernidade também líquida (BAUMAN, 2001) fluidifica as margens
textuais, dadas as múltiplas possibilidades de janelas simultâneas na navegação digital.
No entanto, uma das maiores características da pós-modernidade é o pluralismo de
tendências, de modo que muitos autores negam ou ignoram a literatura digital. Outros,
como Rubem Fonseca ou Patrícia Melo, ao criarem personagens que leem textos
escritos por Deus em suas fezes, apontam para o fato de que o corpo é o locus por
excelência da produção artística e a instância de significação primeira de qualquer
semiótica, visto que o somático fala e seu discurso pode ser trabalhado esteticamente.
A propósito de textos fora do papel, redigidos e veiculados em outras superfícies,
Rubem Fonseca propõe, desse modo, uma ruptura absolutamente pós-moderna:
questionar o passado voltando a ele, em um pastiche historiográfico. Assim, seu conto
“Copromancia” (2001) aponta, no plano do conteúdo, para uma tradição textual anterior
ao próprio papiro: a escrita do corpo. Se a pele é milenarmente usada como superfície
textual na tatuagem, o ficcionista mineiro reedita de maneira inusitada o literário
corporal, criando personagens que escrevem e leem fezes, falas somáticas enunciadas
pelos intestinos.
De forma semelhante, Patrícia Melo também se vale da metáfora das fezes para
questionar as certezas que permeiam o estudo literário, como a noção de autoria, a
conceituação dos elementos da narrativa, ou mesmo o fato de que livros devam ser
impressos em papel. Escrevendo um romance sobre um plágio às avessas do conto
“Copromancia”, a autora dialoga diretamente com Rubem Fonseca, que se torna seu
personagem na narrativa de Jonas, o copromanta, texto de papel sobre a textualidade do
excreta.
Escatológica – nas múltiplas significações que esse adjetivo permite –, essa forma
fecal de encarar o texto ora indaga o suposto fim da literatura (eskhátos, em grego,
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designa o fim das coisas), ora chama atenção para o papel das fezes como signos a
serem decodificados (skatós, em grego, indica os excrementos). Mostrando a
impertinência das teorias que advogam a crise da literatura, a hecatombe dos artistas e
demais profecias alarmistas, a escrita do expurgo intestinal, tema a ser investigado neste
capítulo, revela a renovação de antigas possibilidades estéticas como arte
contemporânea.
Assim, se a minissaia já entrou e saiu de moda várias vezes, o mesmo vale para a
literatura sem papel. Antes do papiro, os sumérios já escreviam em tábuas de argila e, ao
longo de toda a história da humanidade, as escritas na superfície do corpo estiveram
sempre presentes, seja como tatuagem, body-art ou mesmo, no caso de “Copromancia”
ou Jonas, o copromanta, como no bolo fecal. Portanto, a aparentemente esdrúxula
metáfora adotada por Rubem Fonseca e Patrícia Melo não é mais do que uma volta
anterior à era da arte (DANTO, 2006) para defender a arte após o fim da arte, valendo-
se da escrita do corpo como forma de protesto contra os falsos Nostradamus.
O corpo textual
Para se inscrever no mundo, o homem sempre escreveu, mesmo quando ainda não
conhecia o papel ou o alfabeto. Adotando outros códigos, não se pode dizer que
desenhos, sintomas e profecias não sejam formas de leitura ou escrita, visto que
envolvem a incisão e a decodificação de marcas gravadas – efêmera ou eternamente –
em alguma superfície. Quando, pois, o som não se provou suficiente para portar uma
mensagem – pictórica, neurótica ou divina – o homem talhou, rabiscou ou manchou o
mundo à sua volta. Assim, como depois da informática o papel parece perder espaço
como superfície textual, houve um tempo em que o papel sequer existia e o corpo da
escrita era realizado, primeiramente, como escrita no corpo.
Se a linguagem é um fenômeno exclusivo do homem e a escrita uma invenção que
nos humaniza ainda mais, permitindo uma mais profunda perscrutação do que seja a
condição humana, não é de se estranhar que um dos primeiros suportes da garatuja
tenha sido o próprio corpo. Como é nos limites da carne que o indivíduo experimenta
pela primeira vez a noção das fronteiras entre sujeito e objeto, nada mais justo que nessa
mesma carne ele inscreva – e escreva – marcas culturais da sua humanidade.
As inscrições da natureza sobre o corpo são nítidas: feridas, rugas e manchas
contam, na superfície do homem, sua história – onde esteve, por quanto tempo o fez, se
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riu ou chorou. Muitas sociedades valorizam tais marcas como sinais da maturidade e
índices de uma narrativa que asseguram ao sujeito status no grupo, como alguém capaz
de reconhecer os próximos traços que o narrador suprassensível imprimirá em seus
personagens.
A sociedade ocidental, no entanto, na voracidade pós-moderna pelo descartável e
pelo efêmero, cria técnicas que apaguem, mesmo que de forma precária, os traços da
narrativa natural. Botox, lasers e academias de ginástica fazem da vida um eterno
flashback, em que as cenas parecem não se suceder de forma cronológica. As marcas
impressas pelo tempo devem ser escondidas tais quais avisos profanos da decadência,
como se fosse possível reeditar uma narrativa sem fim no mundo real. Sherazzades
frustradas, aqueles que não aceitam o clímax e o desfecho de suas histórias passam o
tempo todo empreendendo uma luta entre natureza e cultura, esta tentando dominar
aquela, mas sem sucesso. O sultão tem de matar Sherazzade ao fim das mil e uma
noites, mesmo que ela tenha escondido de seu rosto as marcas da narrativa que se
desenrolou ao longo dos anos.
Em paralelo a essa tentativa de apagar o texto que o tempo escreve no corpo, as
sociedades paradoxalmente têm gosto por chamar atenção para o caráter antinatural do
somático, revelando-o como um construto cultural, permeado, pois, pela linguagem. Por
um lado, a multiplicação de células e a formação de estruturas biológicas se dão na
esfera da natureza. Por outro,
que o corpo porta em si marcas da vida social, expressa-o a preocupação de toda sociedade em fazer imprimir nele, fisicamente, determinadas transformações que escolhe de um repertório cujos limites virtuais não se podem definir. Se considerarmos todas as modelações que sofre, constataremos que o corpo é pouco mais que uma massa de modelagem à qual a sociedade imprime formas segundo suas próprias disposições: formas nas quais a sociedade projeta a fisionomia do seu próprio espírito (RODRIGUES, 2006, p.62).
Nesse contexto, revelam-se ainda mais infundadas as alarmistas previsões de que a
sociedade do audiovisual, em detrimento da validade do papel como registro da
informação, assiste à morte da literatura. Desde que se concebeu como um ser da
cultura, diferente dos demais, em oposição à natureza, o homem percebeu sua
necessidade de relatar. Assim, metalinguisticamente, adotou seu próprio corpo como
suporte de textos que invariavelmente remetem de volta à experiência corporal. Na
relevância do somático para o ato de narrar em todas as épocas, destaca-se o papel da
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mão, não só como órgão que conduz a pena, a caneta ou a tecla, mas que medeia, por
excelência, a relação com o real.
O papel da mão no trabalho produtivo se tornou mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, apreendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito.) A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão, típica das obras de Valéry, é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada (BENJAMIN, 1985, p.220).
Associadas ao trabalho e ao manuseio das ferramentas, as mãos são sempre
propulsoras do fazer, seja este de ordem prática ou artística. Tal possibilidade de
fabricar instrumentos que facilitam a sobrevivência, um dos marcos adotados pela
Antropologia clássica para distinguir a passagem do homem da natureza à cultura, foi
engendrada pela morfologia das mãos humanas, dizem os especialistas. Dotado de um
polegar opositor que pode ser girado contra os dedos, o que permite pegar objetos de
diferentes tamanhos com a mesma eficiência e manipulá-los com maior destreza, o
homem tanto tem força para agarrar quanto precisão para desenvolver movimentos
sutis. As atividades executadas pelas mãos humanas são bastante diversificadas e
possibilitaram não somente a utilização de ferramentas pesadas, como a lança e o
machado, mas também utensílios escreventes, como o pincel, a caneta, a pena.
Relacionado por Benjamin (1985) à narrativa, o fazer da mão humana – e do corpo
todo, por extensão – ganha ordem literária. Nesse sentido, vale ressaltar que “fazer” tem
a mesma etimologia de “fezes”, metáfora eleita por Rubem Fonseca e Patrícia Melo
como designadora dos textos do corpo. Enquanto alguns analistas da pós-modernidade,
temerosos do fim da literatura, proclamam uma futura inexistência de artistas, os autores
de “Copromancia” e Jonas, o copromanta mostram que a arte da palavra pode se dar em
qualquer superfície, mesmo que lida contra a louça do vaso sanitário.
Quaisquer práticas de escrita/leitura do corpo fazem, portanto, com que nos
apropriemos dele cada vez mais, imprimindo assinaturas na carne. Dessa forma,
aproximamo-nos do corpo, reafirmando sua pertença ao sujeito, mas fazemos dele
superfície textual, avizinhando-o da noção de objeto cognoscível e interpretável.
Oscilando na fronteira inicial que funda a metafísica, o corpo se revela suporte de
signos que (de)codificam os mistérios da existência.
Nossos corpos não são tão nossos assim, e o trabalho de apropriar-se, habitar, incorporar, tornar nosso o corpo próprio, trabalho iniciado na primeira infância, desdobra-se nas infinitas vicissitudes de um processo que
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só termina na morte. Nossos corpos são sempre alheios, sempre demasiados, sempre insuficientes. Isso não é curável, não é um problema a ser lamentado ou sanado, é a própria marca constitutiva de nossa corporalidade (PORTINARI, 2002, p.141).
No que tange a essa aproximação entre corpo e linguagem, é fulcral a contribuição
da Psicanálise, que funda uma verdadeira hermenêutica da linguagem do inconsciente,
articulada por todos os poros do sujeito. Tal visão revela-se divisora de águas no
pensamento ocidental, que, desde Platão, opunha corpo e alma como esferas imiscíveis.
Desse modo, Freud, ao revelar que o corpo comporta também uma anatomia de
símbolos, retoma a fusão entre somático e psíquico, desfazendo uma cisão impensável
na filosofia pré-socrática. A respeito da relação entre esses dois polos, na qual se
instaura a linguagem, é relevante o que diz a Semiologia, como ciência que estuda o
corpo dos signos (e, por consequência, os signos do corpo): “Aquilo que nega a
oposição teológica entre o corpo e alma: é o corpo sem oposição, e, logo, privado de
sentido: é o dentro aplicado, como uma bofetada, ao íntimo” (BARTHES, 1990, p.189).
Se o inconsciente funciona como um texto em que se inscrevem os traços
mnêmicos, o homem, a todo o tempo, opera uma tradução intersemiótica dessa
linguagem caótica, por meio de signos do corpo. A própria aquisição da palavra seria
um aprendizado corpóreo, não mentalista, visto que a primeira forma de símbolo que a
criança reconhece são as partes do próprio organismo. Mesmo na ausência da palavra
para dizer o impronunciável, tal qual na experiência da angústia ou na necessidade da
metáfora, a sintaxe corpórea é a única forma de comunicar, pois “faltando significante,
não há distância entre o gozo e o corpo” (LACAN, 1991, p.169).
A respeito da linguagem do corpo como manifestação do inconsciente, destacam-
se os escritos iniciais freudianos acerca da histeria, patologia em que há a conversão de
afetos psíquicos em corpóreos (FREUD, 1996b), de modo que o doente não “pense”
suas representações angustiantes. Em lugar de elucubrações mentais ou verbais acerca
do trauma, o histérico adoece fisicamente, mas sem uma causa orgânica. Assim, o
sintoma, fala do corpo, remeteria
a outra cena em que está em jogo uma satisfação substitutiva de uma fantasia de conteúdo sexual. Essa outra cena fala do sujeito através do corpo, possibilitando sua aparição como sujeito barrado. A conversão histérica, portanto, é uma formação do inconsciente, onde o que se observa são efeitos de corpo da linguagem inconsciente, fundada por uma operação simbólica irredutível, onde aparecem os sinais da mensagem do Outro (NICOLAU, 2008, p.1).
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“Fantasia”, “cena”, “fala”, “linguagem”, “simbólica”, “mensagem”: mais do que à
esfera da saúde mental, esses termos são caros à ficção e, portanto, à literatura. Fora do
papel ou da tela de cristal líquido, o inconsciente como linguagem fala por todo o corpo.
Não havendo verdade ou mentira, fato ou ficção para a psicanálise, aos leitores do texto
inconsciente na carne impõe-se um pacto de leitura, como na apreciação dos romances:
impera ali a verdade do sujeito, infensa à lógica do mundo exterior, sendo preciso
substituir o verdadeiro pelo verossímil para se acompanharem as narrativas de qualquer
sintoma.
Linguagem somática, o sintoma, a despeito do sofrimento, traz sempre um gozo,
permitindo, literalmente na calada do corpo, a realização de impronunciáveis fantasias.
Como texto que faz gozar no deslocamento de uma pulsão sexual, o sintoma aproxima-
se da asserção de que a perversão é o regime textual (BARTHES, 2006). (Per)vertendo
para o corpo o simbólico que opera no inconsciente, o sintoma é signo de uma
linguagem cifrada, cuja leitura pode-se dar no próprio divã da experiência analítica. Ao
promover tamanha revisão do conceito de corpo, Freud opõe ao corpo biológico, objeto
de estudo da Medicina, o corpo pulsional, que seria atravessado pela linguagem e pelo
desejo do sujeito. Afinal,
é na e pela linguagem que se faz essa ultrapassagem no homem de um corpo natural para um corpo dito pulsional. Pensar o corpo como efeito de linguagem equivale a pensá-lo como capturado pelo funcionamento da linguagem. Captura que o coloca numa estrutura que surge mesmo no corpo-máquina para conduzi-lo através dessa lógica incongruente aos caminhos da eficácia simbólica (LIMA, 2005, p.2).
Tal ambivalência entre físico e psíquico lembra as teorias clássicas de que a alma
seria governada por humores benignos e malignos, devendo estes ser expurgados do
corpo para que se reouvesse a saúde. Assim, a dor física seria ao mesmo tempo um
clamor por ajuda e um grito de alívio, devolvendo ao vocábulo pathos, do qual se deriva
“patologia”, a dimensão catártica presente nos escritos aristotélicos sobre literatura. Sem
saber, ao registrar suas impressões relativas ao trágico no gênero dramático, o filósofo
grego elaborava rudimentos de uma teoria da recepção que transcendia o universo dos
tradicionais gêneros literários, aplicando-se inclusive à poética do inconsciente, muito
anterior a qualquer teoria psicanalítica ou literária.
Porém, além de uma linguagem inconsciente, o corpo também é canal de
veiculação consciente de mensagens, por meio do que se convencionou chamar de
linguagem gestual. Em vez de uma leitura ao pé da letra, a leitura da “letra do pé”:
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mãos, face e todo o corpo combinam-se, em uma escrita que desaparece a cada novo
signo que se escreve, como o que as crianças escrevem na areia e o mar apaga.
Mais antiga do que a linguagem verbal, a corporal acabou marginalizada na
sociedade ocidental após o advento da escrita, visto que esta tem caráter de permanente,
sobrevivendo à passagem do tempo. O gráfico, ao desenvolver-se em uma conjunção de
tempo e espaço no papel, permite sempre um avanço ou um recuo na leitura, dado que
um novo instante para os olhos pode apontar para qualquer outro ponto no texto, sempre
presente. O papel ganhou, assim, caráter documental, de modo que ao escrito se atribui
maior grau de fidedignidade.
O gestual, por outro lado, depende sempre da confiança entre os que se
comunicam, visto que o enunciado se perde no próprio átimo da enunciação. Como
garantir que o gesto foi mesmo efetuado pelo outro? Sem câmeras, cabe apenas o
registro da memória, único papel capaz de reter o graphos gestual. Efêmero, o corpo se
comunica ao longo do tempo, mas em um mesmo espaço, mudando apenas sua
conformação. Isso faz dele o primeiro e mais eficiente palimpsesto da história da
humanidade: não é preciso jamais raspá-lo para abrir espaço para um novo signo, visto
que o próprio instante se encarrega de realizá-lo. Sua mensagem, no entanto, inscreve-se
apenas na retina e na memória, não deixando para trás qualquer prova do crime da
linguagem.
Se ao apreender o real o sujeito incorpora seus sentidos, ao produzir significantes
o sujeito “excorpora” significados, neologismo que aponta para as mensagens enviadas
para fora do corpo, produzidas nas entranhas da carne. O corpo, assim, jamais se
permite calar: mesmo sem pronunciar ou ouvir, o homem não deixa nunca de causar ou
sofrer impressão, quando em companhia do semelhante. Nesse contexto, cabe dizer que,
se comunicar é deixar impressões, são reveladoras as acepções desta palavra:
“impressão”, segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986), corresponde
a um "encontro ou contato de um corpo sobre outro", ou "marca ou sinal deixado pela
pressão de um corpo sobre outro”. Remetendo diretamente ao corpóreo, ressignifica-se
o termo empregado para designar o efeito da invenção de Gutenberg, que une texto e
corpo, papel e marca.
Ao falar das relações entre o corpóreo e o textual, não se pode deixar de lado um
dos maiores documentos da formação da cultura judaico-cristã em que nos inserimos: a
Bíblia. Se do verbo se fez carne, quando da encarnação da figura de Deus em Jesus
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Cristo, da carne se faz verbo na era da engenharia genética, contrariando-se muitos dos
preceitos bíblicos.
Com a inimaginável evolução tecnológica dos últimos anos, a ciência foi capaz de
decodificar a cifra em que nossa carne foi escrita, lendo nas fitas – não de papel, mas de
cromossomos – os segredos encerrados nos núcleos celulares. De posse desse saber,
como o pecaminoso casal que comeu o fruto da Árvore da Sabedoria, o homem tem
hoje um conhecimento que não está nas Sagradas Escrituras, mas nas “Profanas
Escrituras” do corpo. Assim, de leitor a autor foi um pulo: não mais criatura,
personagem do texto divino, o homem se tornou criador, escrevendo a apocrifia
genética, subversão da noção de autoria perpetrada na intertextualidade entre Jonas, o
copromanta (2008) e “Copromancia” (2001), como se verá nas próximas seções.
Enquanto a engenharia genética, modalidade de escrita da carne, é prerrogativa da
pós-modernidade, a escrita na carne antecede o papel: a tatuagem, que faz da pele uma
escrivaninha (COUY, 2007), eterniza sentidos no corpo humano desde a Idade da Pedra.
Antes mesmo de grafar imagens da caça, como pedido de fartura a entidades supra-
sensíveis, nas paredes de Lascaux, o homem já garatujava sobre si mesmo.
Se é película (pelezinha) o nome técnico dado ao filme, a tatuagem se revela uma
narrativa cinematográfica no corpo, marcando, nas sociedades antigas, os pontos
principais do enredo que envolvem o protagonista-papel: nascimento, puberdade,
casamento, reprodução e morte. Digno de profundas análises discursivas, o texto
tatuado tem uma sintaxe própria, de cores, formas e símbolos compartilhados por cada
comunidade, tal qual os idiomas modernos.
Além disso, toda tatuagem é assinatura, garantindo identidade ao sujeito que a
incorpora. Enquanto sinais de nascença transmitem mensagens divinas,
individualizando o portador das mesmas, a tatuagem é uma marca incrustada pelo
próprio homem em si, identificando-se como também um mensageiro: “O nome é o
tempo do objeto. A nominação constitui um pacto através do qual dois sujeitos
concordam em reconhecer o mesmo objeto” (LACAN, 1987, p.215). Tal axioma revela
o quanto a letra na pele, que nomeia e individualiza o sujeito, é também seu tempo na
memória. Em oposição ao nome dito, que mata o objeto ao permitir a relação com ele in
absentia, a tatuagem é sempre relação in presentia. Diferente do papel, porém, que
sobrevive à passagem do tempo, a tatuagem tem sua finitude decretada tão logo se
inscreve no corpo: por registrar a história do sujeito, garante-lhe eternidade; por
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alimentar os vermes, com sua morte, garante finitude à sua história. Texto na pele, a
tatuagem se revela, pois, uma narrativa de temporalidade paradoxal.
Também à flor da pele, como a tatuagem, a quiromancia lê nas mãos do homem o
que escreveram as mãos divinas sobre aquele sujeito. Para os praticantes dessa arte
adivinhatória, a palma das mãos seria uma metáfora do universo, em que se veriam as
relações entre os astros e os quatro elementos, cuja conjuntura narraria de forma críptica
o futuro do homem.
Nesse sentido, conta antiga lenda asiática que existe no Himalaia uma caverna
onde vive um iogue de mais de quatrocentos anos de idade, que se encontra em estado
de meditação e que é portador de um antigo livro, feito com peles das palmas de mãos
humanas mumificadas no qual se podem observar perfeitamente suas linhas. Fato ou
ficção, o que importa é a presença da literatura, da escrita e da leitura a despeito da
ausência de papel. Mais uma prova, pois, que a literatura não está morrendo com a crise
do livro: nem que para isso precise arrancar a pele de seu semelhante e encaderná-la, o
homem é sempre um ser de linguagem e exegese. Tal lenda revela, assim, um manual
(literalmente) de Teoria Literária, ensinando as técnicas da hermenêutica quiromante
àqueles que desejarem sua iniciação nos mistérios da análise literária das mãos.
Se são as mãos as estruturas corporais que conduzem a gravação da letra no papel,
assírios, egípcios, chineses e indianos há mais de quatro mil anos leem diretamente as
garatujas na mão, rabiscadas pelo destino. Hoje tomada por muitos como charlatanice,
tal modalidade de leitura – e por que não de literatura? – já foi usada pelas medicinas
chinesa e iogue, tal qual outras leituras do corpo que se fazem em laboratórios da
contemporaneidade, como exames de fezes e urinas.
Aliás, é nesse ponto de convergência de tradições milenares e contemporâneas de
leitura e exegese do corpo que se situam o conto e o romance a serem analisados nas
próximas seções “Copromancia” (FONSECA, 2001) e Jonas, o copromanta (MELO,
2008). Embora a mídia, trombeteira do Apocalipse, anuncie incessantemente o fim da
literatura, a morte dos livros, o sepulcro da leitura como a conhecemos, sendo
substituída pela apoteose do audiovisual, os narradores dos textos supracitados
apresentam ao leitor uma nova possibilidade corpórea de literatura: a escrita fecal, cujos
símbolos se leem nos formatos, cores e cheiros do expurgo intestinal. Bem ao gosto da
pós-modernidade, tal metáfora reedita uma prática anterior a Cristo – a escrita no corpo
– para questionar um recente axioma: o fim da arte da palavra. Enigmáticas – como o
futuro que pretendem elucidar nos textos analisados a seguir, que versam sobre a
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adivinhação baseada na leitura do excreta –, as fezes lançam ao leitor uma série de
dúvidas, como possíveis profecias também do mundo real. Seriam vaticínios sobre o
futuro da literatura, como os que anunciaram, sem sucesso, o seu fim? Será, depois do
papel e da tela de cristal líquido, que voltaremos à primazia da escrita corpórea, agora
no suporte do vaso sanitário e usando a descarga como borracha?
Uma escrita visceral
Em 2001, Rubem Fonseca, autor famoso por seus escritos marcados pelo
erotismo, pelo brutalismo e pela abjeção, publicou Secreções, excreções e desatinos,
título que explicita desde a capa o conteúdo da obra: trata-se de catorze contos que
narram, um a um, experiências assustadoras e fascinantes envolvendo as excreções
humanas. No livro, há textos sobre urina, catarro, sangue, bafo, saliva, flatulências,
espermatozoides, tumores, menstruação e fezes, sendo este último produto do
metabolismo o tema da presente pesquisa. Ademais, vale ressaltar o caráter
metalinguístico do próprio título, que aponta para a textualidade inerente a essas falas
corporais: secreções e excreções, dizeres somáticos inescapáveis, são também desatinos,
ou seja, algo que não se pode controlar, como um texto que se produz a despeito da
vontade do sujeito. O corpo fala, pois, por si só. O próprio vocábulo “desatino” provém
da raiz tin-, que remete ao verbo “tinir”, ligado às noções de falar, murmurar e tagarelar,
segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001).
Ainda no que diz respeito à capa do livro, é importante perceber a relação que seu
título estabelece com o texto não-verbal que o acompanha: a Vênus de Botticelli,
pintada no auge da Renascença, quando o corpo humano era apreendido artisticamente
sob a ótica da proporção, do equilíbrio e da higidez. Tal imagem, aparentemente oposta
à visão de corpo postulada no título “Secreções, excreções e desatinos”, revela, no
entanto, que é do corpo galante e harmonioso da Vênus que nascem os horrores
excrementícios, tais como as fezes, entrelaçando-se de maneira arguta o belo e o
hórrido. Além disso, sendo Vênus a representação da beleza e da sedução, seu cotejo
com o título afirma o caráter encantatório das secreções e excreções, como desatinos a
que não podemos nos furtar. Assim, artísticas como a tela de Botticelli, as excreções e
secreções do título anunciam-se, desde a capa, como um possível objeto de desejo e de
contemplação, o que se ratifica pela elaboração estética empreendida por Rubem
Fonseca na urdidura dos contos.
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Tal temática inusitada para uma coletânea de contos reafirma, na
contemporaneidade, a possibilidade de uma literatura que prescinda do papel,
recorrendo não ao meio digital, mas aos rejeitos do corpo como veículo da arte. Nesse
contexto, se a arte da palavra por vezes expressa o indizível, subvertendo os ditames da
fascista língua (BARTHES, 1994), ela trabalha com os restos, rejeitos da expressão
inexprimível. De maneira semelhante, o excreta, sobra inassimilável do metabolismo
corporal, funciona como uma metáfora de significação sempre fugidia, visto que todo
abjeto é, por excelência, inadjetivável (KRISTEVA, 1982). Protegido pelo nojo e pela
repulsa, o abjeto guarda sempre o impenetrável opaco da escrita, o que lhe garante
estatuto artístico e a beleza peculiar ao hórrido.
Em Secreções, excreções e desatinos, destaca-se o primeiro conto como sendo de
extrema relevância para a presente pesquisa, visto que tal texto, escrito no papel,
apresenta um autor-exegeta de seus próprios textos fecais. Seu título, “Copromancia”, é
por si só irônico e auto-referente, como prova a análise etimológica desse neologismo
fonsequiano. Radical derivado do grego, mancia indica adivinhação ou profecia, ideia
também presente nos vocábulos cognatos “astromancia” (sinônimo de astrologia) e
“quiromancia” (arte divinatória de ler o futuro nas linhas e nos sinais das mãos). Sendo
uma palavra de significação obscura para os leitores não iniciados nas ciências ocultas
da Morfologia Composicional, “copromancia” requer o conhecimento de um
“literomante”, que, à guisa de analista, decifre os mistérios por trás dessa combinação
hermética dos símbolos do alfabeto latino.
Por sua vez, o radical também grego copro denota o sema de “fezes”, de modo que
o conto versa sobre a adivinhação a partir da leitura de excrementos, prática de agouro
criada de forma jocosa e satírica por Rubem Fonseca. Vê-se, portanto, que o título exige
análise minuciosa para ser compreendido, assemelhando-se às fezes a que remete.
Nesse sentido, o autor interroga, indiretamente, a primazia do papel como suporte
do texto literário. Embora seu livro não prescinda dessa superfície branca contra a qual
se imprimem as letras negras, seu personagem faz e frui literatura na superfície alva da
latrina, contra a qual se choca a escura massa fecal. Para o narrador-personagem, papel
com algum valor literário há de ser, pois, o higiênico, sendo possível haver literatura a
despeito das conformações tecnológicas desenvolvidas na contemporaneidade.
Ao longo do conto, o narrador em primeira pessoa, autor de textos jornalísticos,
depara-se com a importância de analisar outros textos que produz; estes, contudo, são
compostos de matéria fecal e lidos na louça de seu vaso sanitário, como há muito o
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homem já faz com a borra de café que se deposita na porcelana das xícaras. Desse
modo, confirma-se o primado dos textos do corpo, em detrimento do invento de
Gutenberg ou mesmo da apoteose do audiovisual, com as telenovelas, o cinema ou o
meio digital.
A abjeção da leitura do copromante contrapõe-se à forma metafísica como tal
modalidade semiótica se impõe, visto que o narrador passa a refletir sobre sua matéria
fecal a partir de um pensamento religioso, durante uma costumeira leitura de jornal no
toalete, como se observa na passagem abaixo:
Mas o certo é que estava pensando em Deus e observando as minhas fezes no vaso sanitário. É engraçado, quando um assunto nos interessa, algo sobre ele a todo instante capta a nossa atenção, como o barulho do vaso sanitário do vizinho, cujo apartamento era contíguo ao meu, ou a notícia que encontrei, num canto de jornal, que normalmente me passaria despercebida, segundo a qual a Sotheby’s de Londres vendera em leilão uma coleção de dez latas com excrementos, obras de arte do artista conceitual italiano Piero Manzoni, morto em 1963. As peças haviam sido adquiridas por um colecionador privado, que dera o lance final de novecentos e quarenta mil dólares (FONSECA, 2001, p.7).
Iniciando o conto com indagações sobre os motivos que teriam levado Deus a criar
as fezes, o narrador chega à ambígua conclusão de que “Deus fez a merda por alguma
razão” (FONSECA, 2001, p.10). Desconstruindo ainda mais o pensamento religioso-
filosófico, as divagações sobre a criação divina dialogam com o cogito cartesiano, na
máxima “Ergo, a merda” (FONSECA, 2001, p.7), acompanhada por um sinal de
interrogação que confirma a desestabilização do pensamento de Descartes. Se pensar
racionalmente provava a existência do homem e de Deus para o filósofo francês, para o
personagem de “Copromancia” (2001) é o ato de defecar que desempenha papel tão
importante.
Ainda no que se refere ao contexto em que o narrador começa a dar atenção às
suas fezes, é mister chamar atenção para o recurso de verossimilhança utilizado por
Rubem Fonseca, que mistura ficção e realidade na passagem supracitada. Para tanto, o
ficcionista lança mão da célebre exposição de Piero Manzoni, que de fato ocorreu em
Londres, em 1961. O artista italiano, decidido a quebrar a austeridade da arte erudita,
preencheu noventa latas com sua matéria fecal, lacrando-as e rotulando-as com o
sintagma Merde d'artista (“Merda do artista”), que dá nome à obra. Além da ideia de
posse entre “merda” e “artista”, ratificada pela arte visual a que estavam vinculadas
essas palavras, há ainda uma possível relação adjetival entre tais vocábulos,
dessacralizando não só a obra de arte como seu criador.
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Por fim, a decisão de Manzoni de vender essas peças literalmente a peso de ouro –
ditando os preços pela cotação do dia – e o valor absurdo que se dá a tudo o que se diz
arte são ironizados por Fonseca ao dizer a alta quantia paga por um “colecionador
privado”. Nesse sentido, é importante perceber que a “privada” é o destino que se
convenciona dar à matéria fecal cotidiana, a que não se atribui valor artístico algum.
Valendo-se ainda do polissêmico termo que pode designar algo particular ou o vaso
sanitário, a mordaz ironia fonsequiana aponta para uma possível crítica à privatização
da arte: uma criação estética não deveria ser privada, mesmo que feita na privada.
Significante coletivo a suscitar significados individuais, o signo-obra pertence ao sujeito
e ao objeto, ao dentro e ao fora, como o bolo fecal que habita a extremidade do duto
digestivo, na ambivalêcia topológica entre o público e o privado.
Assim, da leitura do jornal à leitura das fezes, o conto se desenrola em um jogo de
ambiguidades entre as esferas textual e excrementícia. Tal aproximação entre a escrita
literária e o bolo fecal é identificável em uma série de passagens, como a que segue:
Os meus duzentos e oitenta gramas diários de fezes continham, em média, cem bilhões de bactérias de mais de setenta tipos diferentes. Mas o caráter físico e a composição química das fezes são influenciados, ainda que não exclusivamente, pela natureza dos alimentos que ingerimos. Uma dieta rica em celulose produz um excreto volumoso. O exame das fezes é muito importante nos diagnósticos definidores dos estados mórbidos, é um destacado instrumento da semiótica médica. Se somos o que comemos, como disse o filósofo, somos também o que defecamos (FONSECA, 2001, p.10).
É importante perceber que o vocábulo “celulose” ratifica tal leitura, visto que
identifica a substância que dá consistência às fezes e às fibras de que são feitas as folhas
do papel em que se escrevem os textos. Assim, a “dieta rica em celulose” pode ser
entendida como a importância das muitas leituras para que se possa produzir um texto
literário de consistência – ou um excreto volumoso. Afinal, a composição das fezes – e
dos textos – depende daquilo que se ingere, seja comida ou leitura. Em lugar de
reafirmar a noção de gênio inspirado, típica do século XIX, Rubem Fonseca reconhece a
importância e a inevitabilidade da influência de outros autores sobre qualquer escrita.
Todo dizer é, pois, um redizer, o que caracteriza a literatura contemporânea, marcada
pela crise da noção de autoria, tema presente em outros textos fonsequianos, como
“Artes e ofícios” (1995a), “Agruras de um jovem escritor” (1994a) e “O caso Morel”
(1995b), bem como no romance de Patrícia Melo, analisado na próxima seção.
Embora talvez pareça exagerado aplicar conceitos da Teoria Literária para
descrever as elucubrações do narrador a respeito de seus textos fecais, ele mesmo
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emprega termos caros à Ciência da Literatura quando se refere ao seu excreta,
ratificando a textualidade de seus expurgos intestinais.
Toda leitura exige um vocabulário e evidentemente uma semiótica, sem isso o intérprete, por mais capaz e motivado que seja, não consegue trabalhar. Talvez o meu Álbum de fezes já fosse uma espécie de léxico, que eu criara inconscientemente para servir de base às interpretações que agora pretendia fazer. (...) Não vou detalhar aqui os métodos que utilizava, nem os aspectos semânticos e hermenêuticos do processo (FONSECA, 2001, p.13).
Porém, não satisfeito com sua escrita no vaso sanitário, o narrador se dedica à
composição de um Álbum de fezes, em que registra fotos e regras referentes à secreta
hermenêutica fecal, as quais, de tão veladas, sequer podem ser enunciadas no correr da
narrativa. No entanto, texto sobre o texto, o Álbum se revela um construto
metalinguístico, tal qual o conto, discorrendo sobre os percalços da literatura
excrementícia.
Tal semelhança entre “Copromancia” e o Álbum de fezes se mostra um truque
narrativo sutil, expresso na seguinte passagem, que relata a confissão do protagonista à
amada sobre sua leitura fecal: “Contei-lhe tudo e minha narrativa foi acompanhada
atentamente por Anita, que amiúde consultava o Álbum que mantinha nas mãos”
(FONSECA, 2001, p.16). Ao mesmo tempo em que conta a Anita sobre a copromancia,
o narrador fá-lo ao leitor, que tem em mãos Secreções, excreções e desatinos, como a
moça tem o Álbum de fezes. Vale lembrar que Anita, inicialmente, confunde o texto
que tem em mãos com um dicionário de música, o que confirma o caráter artístico dos
textos de dejetos. O livro de Rubem Fonseca revela-se, então, uma espécie de Álbum de
fezes, como o mencionado na narrativa, sendo cada conto dedicado a uma coletânea de
imagens de sua respectiva temática excrementícia. Se a esse fenômeno de encaixamento
a Teoria da Literatura convencionou chamar de mise-en-abîme, é literalmente no abismo
que essa construção textual nos lança: além da noção de profundidade crescente que
essa estrutura de caixas chinesas propõe, o abismático é, por definição, o insondável, o
profundo, o trevoso, tal quais as cavidades do baixo ventre revisitadas em
“Copromancia”.
No entanto, pode ser levada mais adiante a aproximação en-abîme entre o Álbum
de fezes e Secreções, excreções e desatinos. Assim como essa obra de Rubem Fonseca é
composta por uma reunião de textos que partilham entre si uma semelhança temática, o
Álbum de Fezes reúne uma série de fotografias e anotações sobre os bolos fecais do
personagem-narrador, os quais só ganham unidade quando dispostos dentro de uma
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compilação biblíaca. Tal caráter de antologia de fragmentos faz de ambas as obras – a
ficcional e a fictícia – coleções de dejetos, às quais podem se aplicar muitos dos
conceitos benjaminianos sobre o colecionador.
Para Benjamin (1993), a coleção é muito mais do que memória: colecionar é
sempre tentar reter o perdido, retirando-o do continuum da história e lançando-o em
uma esfera infensa ao tempo, em que só há contemporaneidade. Desse modo, cada item
de uma coleção é simultâneo aos demais quando se lhes justapõe – seja na prateleira, na
estante, em um livro de contos ou em um Álbum de fezes –, o que lhe garante
infinitude.
Retirado de seu aqui-agora e inserido na coleção, todo espécime perde seu caráter
funcional e vira objeto de reflexão, metonimizando e eternizando um momento. Desse
modo, como Rubem Fonseca faz com as excreções corpóreas, retendo-as nas páginas de
seu livro para que se tornem passíveis de contemplação estética e filosófica, o
personagem-narrador de “Copromancia” coleciona em seu Álbum de fezes fotos daquilo
que não sobreviveria a uma descarga, mas que carece de ser analisado com minúcia e
mesmo admirado como possibilidade de belo.
Nesse sentido,
ele [Benjamin] aproximou o colecionador do crítico literário, pois este deveria separar os elementos de uma obra de seu marco falso e reconstituir a sua verdade. Benjamin estava convencido de que o "contexto falso" de uma obra se originava não de sua estrutura mas de sua transmissão, na forma como recebemos e assimilamos uma tradição. A tarefa do colecionador tem um elemento destrutivo, porque sempre recebemos junto com um objeto a imagem de uma ordem. Benjamin acreditava que era necessário romper o caleidoscópio. O colecionador, mais que resgatar objetos de suas funções originais, devia colocá-los em outra constelação, criar novas semelhanças. Nesse sentido, o colecionador está entregue ao princípio da montagem, ao reunir os fragmentos da história em uma nova configuração da experiência (PERRONE; ENGELMAN, 2005, p.83).
O crítico literário também coleta e reúne fragmentos que ele recorta de seu
contexto, reorganizando-os em uma dupla vertente: analítica, que os fragmenta e
segrega em descontinuidades a serem estudadas individualmente; e sintética, que os
reorganiza em colagens e montagens as quais potencializam seus significados. Assim,
se as fezes em “Copromancia” podem ser entendidas como metáfora para o fazer
literário, enunciado não pela língua, mas pelo ânus, o narrador-personagem do conto,
bem como Rubem Fonseca, trabalha à guisa de crítico, fracionando, analisando,
recompondo e reorganizando discursos somáticos.
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Tal prática de seleção e coleção de textos excrementícios – sejam contos ou fotos
de bolos fecais – pode novamente ser aproximada do colecionador benjaminiano, na
medida em que este é comparado, pelo teórico alemão, ao chiffonnier, imagem poética
criada por Baudelaire. Tal figura, também conhecida como trapeiro, ficou imortalizada
pelo autor de Do vinho e do haxixe como um artista coletor de dejetos das ruas, pois “os
poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico”
(BENJAMIN, 1994, p. 78). A partir do resto, da sobra e do abjeto, seria possível a
experiência poética, nascendo o discurso artístico da dicção do sujo. Assim, na coleção
(palavra derivada da raiz latina leg-, como o verbo “ler” e seus cognatos) de fotos de ou
contos excrementícios, confundem-se os leitores de Secreções, excreções e desatinos e
do Álbum de fezes, os quais se defrontam com tentativas de recompor uma enunciação
artística da latrina.
Porém, as relações intertextuais e interdiscursivas vão mais além, já que, sendo as
fezes alegoria para o fenômeno textual, a ideia de uma definição do sujeito por aquilo
que expulsa – pelo ânus ou pela linguagem – remete também ao discurso da psicanálise,
em que o eu se constrói na fala. O pensamento freudiano é, assim, recorrente em
“Copromancia”, como no excerto abaixo.
O excremento, em geral, sempre me pareceu inútil e repugnante, a não ser, é claro, para os coprófilos e coprófagos, indivíduos raros dotados de extraordinárias anomalias obsessivas. Sim, sei que Freud afirmou que o excrementício está íntima e inseparavelmente ligado ao sexual, a posição da genitália – inter urinas et faeces — é um fator decisivo e imutável. Porém isso também não me interessava (FONSECA, 2001, p. 7).
Utilizando o discurso da psicanálise, o narrador revela a indissociabilidade entre o
erótico e o abjeto, dada a anatomia humana. No entanto, como é característico da escrita
fonsequiana, citações de autores célebres geralmente vêm contaminadas por uma
cáustica ironia à erudição livresca, que em nada se parece com sabedoria, mas sim com
fútil e vã ostentação. Desse modo, a despeito do conhecimento de termos latinos usados
por Freud e de vocábulos doutos praticamente desconhecidos fora do jargão
psiquiátrico, o narrador não é capaz de se perceber como um aficionado por fezes, o que
revela o quão oco pode ser o conhecimento da psique humana se infenso à própria
mente.
Sendo a sexualidade uma das várias expressões da potência criadora de Eros, bem
como a arte, o posicionamento da genitália inter urinas et faeces dá a essas formas de
excreção também um poder gerador. Da combinação dessas instâncias, nasce o homem,
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expelido pela vulva que se lhes interpõe, como um metafórico Adão moldado no barro
resultante da mistura dos excretas fecal e urinário. Fértil, as entremeadas esferas do
erótico e do abjeto permitem não só a criação da vida, mas também do literário, em uma
espécie de cloaca artística. Afinal, segundo a fala de Diotima, no Banquete, é Eros quem
impulsiona “a criação desses homens a quem chamamos poetas e a daqueles outros aos
quais chamamos inventores” (PLATÃO, 1945, p.166).
Tamanha potência erótica das fezes acaba por unir, de forma indissociável, Anita e
o narrador no conto. Embora os dois mantivessem uma afável relação desde o momento
em que se conheceram, a intimidade e a fusão de corpos não seria possível enquanto não
se lançassem juntos à paixão literária pelas fezes. De início,
merda, entre nós, era um assunto tacitamente interdito, ela certamente não me deixaria ver suas fezes; se um de nós fosse ao banheiro, tomava o cuidado de pulverizar depois o local com um desodorante, colocado estrategicamente ao lado do lavatório (FONSECA, 2001, p.14).
Antes que um visse as fezes do outro no vaso e assim se conhecessem
profundamente – em todos os sentidos –, podendo se entregar ao amor, os dois amantes
em potencial portavam-se de forma inicialmente asséptica e tabuística diante do excreta
alheio. Ocultando, calando e disfarçando aromas e imagens, o casal parece esconder
seus sentimentos um do outro, sendo o fecal metonímia para toda a esfera interior dos
sujeitos. Nesse contexto, ganha significação a conversa em que finalmente o narrador se
declara a Anita:
Fui almoçar num restaurante com Anita. Como de hábito, ela demorou um longo tempo lendo o cardápio. Eu já disse que ela se considerava uma pessoa mística e que atribuía à comida um valor alegórico. (...) Quando lhe perguntei que papel desempenhavam nesse processo os exercícios aeróbicos, de alongamento e de musculação que ela fazia diariamente, Anita, depois de sorrir superiormente, afirmou que eu, como um monge da Idade Média, confundia misticismo com ascetismo. Na verdade, suas inclinações esotéricas aliadas à sua beleza – ela poderia ser usada como a ilustração da Princesa numa história de era-uma-vez – a tornavam ainda mais atraente. Foi no restaurante que declarei meu amor por Anita pela primeira vez (FONSECA, 2001, p.16).
Ao corrigir seu interlocutor, que a considerava uma mulher mística, Anita afirma
ser ascética, palavra que parece, mas não é, igual a “asséptica”. Desse modo, a mulher
justifica que o fato de atribuir valor alegórico ao que come não é muito diferente do que
seu companheiro faz, ao atribuir valor alegórico ao que descome, sinônimo incomum do
verbo “defecar”. Assim, ascética, mas não mais asséptica, Anita aponta para a falsa
semelhança na paronímia, o que sugere uma mudança em seu comportamento diante das
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fezes. Mostrando-se, a essa altura, pronta para prescindir da assepsia que mascara o
excremento, a mulher abre caminho para a declaração de amor que se sucede à
conversa.
Ainda no que tange à composição do Álbum de fezes, o narrador reconhece a
impossibilidade de reproduzir com perfeição de forma pictórica, fotográfica ou mesmo
linguística o seu excreta, pois as cores e odores são inefáveis e irreprodutíveis – cada
texto tem uma textura própria, logo paráfrase alguma lhe faz jus. Na dificuldade de
descrever, por exemplo, o aroma do bolo fecal, o narrador realiza outra digressão, agora
se aproximando não do discurso psicanalítico, mas do filosófico.
Kant estava certo ao classificar o olfato como um sentido secundário, devido a sua inefabilidade. Escrevi no Álbum, por exemplo, este texto referente ao odor de um bolo fecal espesso, marrom-escuro: odor opaco de verduras podres em geladeira fechada. O que era isso, odor opaco? A espessura do bolo me levara involuntariamente a sinonimizar: espesso-opaco? Que verduras? Brócolis? Eu parecia um enólogo descrevendo a fragrância de um vinho, mas na verdade fazia uma espécie de poesia nas minhas descrições olfativas (FONSECA, 2001, p.9).
À guisa de teórico da literatura, o narrador reflete sobre as condições de confecção
da análise do texto fecal. Sendo assim, percebe que, para se aproximar da multiplicidade
do literário, a crítica de literatura tem de encerrar em si muito da dicção poética. Desse
modo, “fazia uma espécie de poesia nas [suas] descrições olfativas”, precisando
inclusive recorrer a figuras de expressão, como a sinestesia de “odor opaco”. A respeito
desse tropo, é interessante fazer uma remissão à metafísica platônica, questão central no
pensamento kantiano, segundo a qual os sentidos seriam enganadores e múltiplos,
escondendo a unicidade da essência e da verdade. Olfato e visão, portanto, fundidos
nessa expressão, são apenas manifestações distintas de uma essência única, tal qual
papel e fezes seriam formas materiais diferentes para uma mesma ideia perfeita e
singular: a literatura.
Quanto às fotografias de seu excremento, a voz narrativa tem considerações que se
assemelham a posições célebres da Escola de Frankfurt, como se percebe no excerto
abaixo, transcrito do conto:
No dia seguinte comprei uma Polaroid. Com ela, fotografei diariamente as minhas fezes, usando um filme colorido. No fim de um mês, possuía um arquivo de sessenta e duas fotos – meus intestinos funcionam no mínimo duas vezes por dia –, que foram colocadas num álbum. Além das fotografias de meus bolos fecais, passei a acrescentar informações sobre coloração. As cores das fotos nunca são precisas (FONSECA, 2001, p.8).
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A perda cromática por meio do trabalho da objetiva dialoga com a desauratização
da obra de arte devido à sua reprodutibilidade técnica. De acordo com Benjamin,
quando o advento da primeira técnica de reprodução verdadeiramente revolucionária – a fotografia, contemporânea do início do socialismo – levou a arte a pressentir a proximidade de uma crise, que só fez aprofundar-se nos cem anos seguintes, ela reagiu com a doutrina da arte pela arte, que é no fundo uma teologia da arte (BENJAMIN, 1994, p.171).
Denunciando uma obra despojada do seu aqui e agora, o filósofo alemão diz que a
arte se fecha sobre si mesma para defender-se da inserção na indústria cultural, a qual
substitui seu valor de culto pelo de exposição. Para o pensador, a fotografia, como os
demais mecanismos de reprodutibilidade em massa, destrói a unicidade dos objetos,
visto que sua aura se perde nas infinitas cópias. De forma análoga, as fotos tiradas pelo
narrador de “Copromancia” não têm a precisão do original, não captando a cor de suas
obras de arte fecais; nesse contexto, é importante ressaltar que “aura” e “cor” fazem
parte de campos semânticos bastante próximos, os quais podem, inclusive, sobrepor-se.
As limitações do aparato tecnológico levam a voz narrativa do conto a acrescentar
informações sobre coloração e odor ao lado da imagem de cada porção de excremento
no álbum. Essa prática estabelece novo diálogo com o pensamento frankfurtiano, visto
que visa a nortear a leitura pictórica das fezes, o que ratifica a condição do excremento
como literatura do corpo.
Essas fotos orientam a recepção num sentido predeterminado. A contemplação livre não lhes é adequada. Elas inquietam o observador, que deve seguir um caminho definido para se aproximar delas. Ao mesmo tempo, as revistas ilustradas começam a mostrar-lhe indicadores de caminho – verdadeiros ou falsos, pouco importa. Nas revistas, as legendas explicativas se tornam pela primeira vez obrigatórias. É evidente que esses textos têm um caráter completamente distinto dos títulos de um quadro. As instruções que o observador recebe dos jornais ilustrados através das legendas se tornarão, em seguida, ainda mais precisas e imperiosas no cinema, em que a compreensão de cada imagem é condicionada pela sequência de todas as imagens anteriores (BENJAMIN, 1994, p.175).
Refletindo ainda sobre o aroma de suas fezes, o narrador chega, digressivamente,
à etimologia do termo “escatologia”, marcado pela homonímia em nosso idioma. Dessa
forma, quanto às suas diferentes raízes, há “uma skatos, excremento, a outra éschatos,
final, esta segunda escatologia possuindo uma acepção teológica que significa juízo
final, morte, ressurreição, a doutrina do destino último do ser humano e do mundo”
(FONSECA, 2001, p.9).
Esse é um ponto importante na estrutura da narrativa, pois assegura unidade às
duas partes aparentemente desconexas do conto: a reflexão sobre o caráter textual das
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fezes e a possibilidade de nelas prever o destino, sendo o viés escatológico comum a
ambas. É importante dizer que, de tal modo, o narrador-personagem deixa de se ver
como autor do texto fecal, passando à mera condição de exegeta de uma literatura
escrita por Deus. Assim, permeiam-se ainda mais os termos do título, “secreções”,
“excreções” e “des(a)tinos”, sendo os dois primeiros o canal utilizado para veicular a
mensagem, representada pelo último vocábulo da enumeração.
Como na quiromancia o sujeito carregaria seu destino traçado nas mãos, a
copromancia facultou-lhe lê-lo em outro texto corporal/corpus textual: nas fezes. Aliás,
o conto vai mais além, ao indagar “Por que Deus, o criador de tudo o que existe no
Universo, ao dar existência ao ser humano, ao tirá-lo do Nada, destinou-o a defecar?”
(FONSECA, 2001, p.7). Tal passagem sugere que, além de uma cifra do augúrio do
destino, as fezes sejam o próprio destino do homem, escatológico em suas múltiplas
acepções.
A segunda parte do conto, dedicada ao tema do vaticínio, inicia-se a partir da
memória do narrador sobre um texto jornalístico que teria redigido para uma revista –
repare-se aqui a referência ao ofício do autor, mais uma vez figurando com destaque na
ficção fonsequiana –, quando ainda não havia descoberto a escrita de suas fezes. Tal
matéria consistia em um ensaio chamado “Artes adivinhatórias”, em que astrologia,
quiromancia e outros métodos de previsão do futuro eram denunciados como fraudes e
meios de ganhar dinheiro fácil. Todavia, pouco depois da publicação do texto, uma das
profecias que ouviu enquanto o elaborava cumpriu-se: a morte de sua mãe. Anos mais
tarde, após reencontrar aquela revista e perceber a exatidão da presciência da perda
materna, o narrador descobre que pode antever situações vindouras a partir do que
expulsa de seu sistema digestivo, criando a copromancia.
Além dos múltiplos significados de “escatologia”, há outros elementos que
aproximam defecar e prever nesse conto, como a aruspicação, técnica que permitiu o
presságio da morte da mãe do narrador. Tal arte divinatória consiste na predição do
futuro pelo exame das entranhas de vítimas sacrificadas, o que remete à leitura do porvir
a partir do que sai dessas entranhas e acaba na louça sanitária.
Sendo a etimologia um campo do saber constantemente revisitado no conto, como
seu próprio título anuncia – ou prevê –, uma análise mais atenta da seleção vocabular e
suas origens pode potencializar a leitura aqui pretendida. Assim, “fezes”, “fazer”,
“fecundidade”, “feitiço” e “profecia” derivam da mesma raiz latina, de modo que toda
feitura, seja de textos fecundos, de fezes ou de profecias, é semelhante em algum ponto.
73
Por fim, o conhecimento do futuro é oriundo da interpretação de sinais
específicos, o que se aproxima da leitura, seja de excremento, páginas ou vísceras de
vítimas sacrificiais. Tal qual hermeneuta do bolo fecal, o narrador afirma:
Demorei algum tempo, para ser exato setecentos e cinquenta e cinco dias, mais de dois anos, para poder desenvolver meus poderes espirituais e livrar-me dos condicionamentos que me faziam perceber somente a realidade palpável e afinal interpretar aqueles sinais que as fezes me forneciam. Para lidar com símbolos e metáforas é preciso muita atenção e paciência. As fezes, posso afirmar, são um criptograma, e eu descobrira os seus códigos de decifração (FONSECA, 2001, p.13).
Ao longo do conto, o leitor percebe também a importância de atentar para a
linguagem cifrada do texto – fino excremento – que lê. Tal contato com o literário pode
levar tanto tempo quanto os setecentos e cinquenta dias de que fala o narrador, mas o
prazer que dele obtêm os copromantas é compensador. Refletindo sobre si mesma, a
escrita fonsequiana especula no espelho (vocábulos de mesma raiz latina, speculum) as
múltiplas possibilidades artísticas de quaisquer bolos de celulose.
Por meio da abjeta e inusitada metáfora, o ficcionista zomba de sua arte, ao
mesmo tempo em que a dignifica como sendo tão humana quanto as funções
fisiológicas. Escrevendo no papel suas impressões sobre o excreta, como o copromanta
que redige um Álbum de fezes, Rubem Fonseca alude, ainda que metaforicamente, a
outras possibilidades de escrita do literário. Se a pós-modernidade aponta para uma
pretensa morte da literatura, o autor de Secreções, Excreções e Desatinos potencializa as
múltiplas facetas que a arte da palavra pode tomar, mesmo que redundando na jocosa
imagem de uma latrina literária.
Desse modo, a corporalidade dessa variante semiótica, ao remontar a modalidades
escritas anteriores à própria invenção da imprensa, nega com veemência as apocalípticas
previsões de um fim da literatura. O que há, na verdade, como afirmou Danto (2006), é
um borramento (palavra do campo semântico fecal) dos limites entre arte e não-arte,
literatura e não-literatura, que só vem a fecundar (da mesma raiz latina que “fezes”) o
debate estético. Visceral, a escrita de Rubem Fonseca é produto de atividade intestinal
de alta qualidade, agradando até mesmo aos olfatos refinados e aos leitores mais
exigentes.
74
Jonas, o plagiário plagiado
Roteirista, dramaturga e escritora, Patrícia Melo estreou na literatura com o
romance Acqua Toffana (1994), ao qual se seguiram O matador (1995), Elogio da
mentira (1998), Inferno (2000), Valsa negra (2003) e Mundo perdido (2006). Famosa
por sua ficção urbana, povoada por uma galeria de marginais, loucos e homens avessos
à moral, foi acusada diversas vezes de sobreviver no mercado literário às custas de
imitar os moldes da escrita de Rubem Fonseca, cuja influência sobre as obras da autora
é inegável. Marcada por uma perscrutação do que há de mais humano – e mais
abominável – em cada um de nós, seus livros realmente lembram os do autor de
Secreções, excreções e desatinos, não só no plano do conteúdo, mas também no que diz
respeito à forma, como se percebe em suas frases curtas, sintaxe direta, linguagem crua
e diálogos sem travessões ou aspas, integrados ao fluxo da narrativa.
Valendo-se desse tipo de intriga literária como mote para um novo livro, a autora
publicou em 2008 Jonas, o copromanta, uma direta alusão ao conto “Copromancia” de
Rubem Fonseca, escritor que se torna personagem no romance de Patrícia Melo,
embaralhando-se as fronteiras entre autoria e plágio, narrador e personagem, mestre e
discípulo. Turvados esses limites, mesmo o que os especialistas afirmam sobre a ficção
fonsequiana pode por vezes ser aplicado aos textos de Patrícia Melo, dadas as
semelhanças entre os autores tornadas matéria literária na lúdica intertextualidade de
Jonas, o copromanta. Como exemplo de crítica que serve a ambos os escritores, pode-
se citar o seguinte trecho da análise de Vera Figueiredo acerca das obras do autor ex-
policial:
No texto literário, o jogo constante de remissões a outros textos fluidifica as margens que delimitariam a sua interioridade, como se a literatura impressa se deixasse contaminar pelo movimento característico das técnicas de hipertextualização e de navegação na internet, espelhando o desenraizamento espaço-temporal operado, nas sociedades capitalistas pós-industriais, pela tecnociência, pelo mundo das finanças e pelos meios de comunicação de massa. Nesse quadro a leitura também se deslocaliza. Se não há um dentro e um fora do texto como espaços claramente definidos, a ideia de obra como unidade fechada torna-se obsoleta (FIGUEIREDO, 2003, p.12).
Escrito sobre um autor mas aplicável a outro, o trecho acima, na possibilidade de
permuta de objeto de análise, confirma o que expressa: na pós-modernidade, as
fronteiras entre obras, assim como as que dividem países, grupos sociais ou ideias,
tornaram-se fluidas e permeáveis. Aliás, a pertinência de empregar a crítica sobre um
autor no processo de leitura do outro, dadas suas sobreposições e interseções, vem
75
apenas a ratificar esse discurso, mostrando na prática do estudo literário a fluidificação
das margens intertextuais. Misturando obras e autores e indefinindo os limites da
composição artística, Jonas, o copromanta, romance que versa sobre a leitura das fezes,
revisita a impureza típica da arte pós-moderna, tanto na ambivalência de suas fronteiras
textuais quanto no plano do conteúdo, narrando a vida de um bibliotecário que se dedica
a ler seus excretas.
Desse modo, se é cada vez mais difícil delimitar o que pertence a uma obra e não à
outra – se é que isso de alguma forma pode se dar –, Patrícia Melo é bem-sucedida na
criação de um romance que habita propositalmente a liminaridade entre textos de
autores distintos. Criando Jonas, um personagem que acusa Rubem Fonseca de plágio, a
autora promove um exercício de Teoria da Literatura no seio da ficção, estetizando e
problematizando dentro do âmbito da arte questões que há muito são objeto de
discussão teórica, como nos escritos de Walter Benjamin acerca da intertextualidade e
da autoria. Para o pensador alemão, em As mil e uma noites fica claro o inescapável
eterno encadeamento de narrativas que se dá em qualquer texto, literário ou meramente
funcional (voltado para o caráter instrumental da comunicação), pois
a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ele tece a rede que em última instância todas as histórias constituem em si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Sherazzade, que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando (BENJAMIN, 1996, p. 211).
Entremeados são os textos de Sherazzade, como todos os outros em que opera
uma voz narradora, sempre entrecortada de ecos de outros contos, relatos, romances ou
poemas. Assumindo como sua a dicção do eco das narrativas fonsequianas, Patrícia
Melo subverte as acusações de plágio que já lhe foram imputadas, incriminando o
Rubem Fonseca fictício de copiar seu personagem. Assim, se na mitologia grega
Narciso desprezou a ninfa Eco, a narcisista escrita do meta-romance Jonas, o
copromanta, que reflete sobre seu próprio processo de composição, se funda justamente
na valorização do eco, reproduzindo fragmentos e estilos típicos do ficcionista mineiro.
Ao optar por tal enredo, a autora tangencia ainda outro ponto nodal do suposto fim
da literatura nos dias atuais, associado às questões de direitos autorais e copyright. Na
era da Internet, em que tudo é copiado e distribuído em uma questão de segundos, torna-
se difícil controlar reproduções ilegais de obras artísticas, problema que, por exemplo,
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tem conduzido rapidamente à bancarrota a indústria fonográfica. Essa questão é
explicitamente abordada no romance de Patrícia Melo, como se percebe no trecho
abaixo.
E você poderia ao menos tirar uma cópia do conto? Não sabia que é crime xerocar mais do que trinta páginas? Do que você acha que os autores vivem? De brisa? Talvez ela estivesse totalmente cooptada pelo escritor. Agora defendia os interesses dos autores, não dos leitores (MELO, 2008, p.68).
Se um romance como plágio pode prejudicar os direitos autorais do autor vitimado
pela cópia, a reprodução xerográfica perpetrada por Jonas, o personagem supostamente
plagiado, também é daninha à renda do artista. Nesse sentido, as fezes, forma de escrita
privilegiada em “Copromancia” e Jonas, o copromanta, revelam sua superioridade
como modalidade semiótica, visto que, produzidas na intimidade da latrina, só ali
podem ser apreciadas, estando infensas à difusão instantânea da web.
Atravessado por tais questões, o livro de Patrícia Melo conta a história de Jonas,
um solitário arquivista da Biblioteca Nacional que leva uma vida pacata e sem muitas
emoções como carimbador de documentos, enquanto tenta conciliar as investidas
amorosas de suas colegas de trabalho, a recatada Eunice e a ousada Darlene, embora tais
companhias não diminuam sua solidão diante da vida. Para preencher seu enorme vazio
existencial, Jonas se dedica nas horas vagas à literatura e à arte de adivinhação do futuro
pela leitura das fezes, a copromancia, sendo ambas intimamente ligadas à profissão do
protagonista, que lê incessantemente os livros que manuseia.
Como nos contos e romances de Rubem Fonseca, o personagem principal de
Jonas, o copromanta é alguém essencialmente ligado à esfera da escrita, tendo nos
grandes clássicos sua maior companhia. No entanto, a íntima relação de Jonas com a
literatura vai além do que se espera de um ávido leitor ou mesmo de um comum autor,
visto que o protagonista se dedicava, em suas horas vagas, à reescritura de suas obras
preferidas, insatisfeito com o curso que os enredos por vezes tomaram nas mãos de seus
autores originais.
Admito que sou um leitor obsessivo e que, com frequência, reescrevo diletantemente as histórias de meus escritores preferidos. Não que eu seja crítico ou plagiador, ou pior que tudo isso, fraco de imaginação. Reescrevo-as por uma questão de justiça. Alguns personagens merecem destinos melhores. Raskolnikof, por exemplo, jamais deveria ter ido para a Sibéria, e muito menos se casado com a chata da Sônia. No meu Crime e castigo, que se chama Crime sem castigo, Raskolnikof, além de matar as duas velhas inúteis, comete mais uma série de assassinatos e torna a humanidade melhor, como aliás era seu projeto inicial. E minha Lolita não acaba num
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fim de mundo à toa. Ela dopa e castra o pedófilo Humbert Humbert, tendo antes a inteligência de roubá-lo (MELO, 2008, p.10).
Jonas brinca de coautor de livros de artistas consagrados, embaralhando as esferas
de autor e personagem. Ao desrespeitar as fronteiras entre as obras, o protagonista do
romance ora analisado ratifica a lúdica ironia de sua criadora, acusada por vezes de
meramente reescrever Rubem Fonseca. Nesse sentido, é reveladora a fala de Jonas, que
justifica suas operações intertextuais não por ser “crítico ou plagiador, ou pior que tudo
isso, fraco de imaginação”. Na verdade, confecciona seu próprio texto no eterno
processo de recriação e reedição que é a escrita.
Mesmo Rubem Fonseca, mais tarde travestido em personagem na escrita de
Patrícia Melo, advoga em “Intestino grosso” (FONSECA, 1975), uma de suas primeiras
narrativas, pela prática da reescritura como regime textual e possibilidade de literatura.
Aliás, segundo a personagem principal do conto, um escritor sendo entrevistado, a
reescritura não é uma ideia a ser defendida, mas um fato inescapável no processo
autoral.
Não estou dando conselhos. Mesmo porque o sujeito pode tentar escrever a Comédie Humaine aplicando à sua ficção as leis da natureza ou a Metamorfose, rompendo essas mesmas leis, mas cedo ou tarde ele acabará escrevendo o seu livro, dele. Cedo ou tarde, acabará sujando as mãos também, se persistir (FONSECA, 1975, p.174).
Tentando reescrever Balzac ou Kafka, o sujeito cedo ou tarde acaba escrevendo
seu próprio livro, o que prova que toda escrita não passa de reescrita. Sendo o ato da
escrita algo que suja as mãos, segundo o excerto acima, pode-se dizer que, ao
(re)compor um romance sobre a leitura de fezes a partir da obra de Rubem Fonseca,
Patrícia Melo suja as mãos não só na tinta da pena, mas na latrina em que se debruçam
os protagonistas de “Copromancia” (FONSECA, 2001) e Jonas, o copromanta (MELO,
2008).
Aliás, no que tange ao embaralhamento das fronteiras entre mestre e discípulo,
leitor e escritor, autor e personagem, é crucial o fato de, como Patrícia Melo, Jonas ser
fã de Rubem Fonseca, já tendo relido toda a sua obra diversas vezes, embora ainda não
tivesse se dedicado a reescrever nenhum de seus textos. Se Jonas é supostamente
plagiado por Rubem Fonseca, que lhe teria usurpado a ideia da copromancia e foi, por
sua vez, plagiado por Patrícia Melo, que escreveu Jonas, o copromanta, criando o
personagem plagiado pelo fictício Rubem Fonseca, a narrativa entra em um triângulo
não amoroso, mas autoral, em que plagiário e plagiado se confundem.
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Além disso, ao embaralhar os limites entre elementos canônicos constituintes da
narrativa, como as figuras de narrador e personagem, Patrícia Melo lança as fronteiras
internas de sua escrita, bem como as externas, ao dialogar com outras obras, em uma
situação de ambivalência e liminaridade. Tal estado, que geralmente causa desconforto
àquele que o experimenta, graças às crises das certezas e do racionalismo, está presente
não apenas no rocambolesco plano da enunciação de seu romance, mas também no
enunciado: ao criar um personagem copromanta, ou seja, capaz de interpretar fezes,
como o narrador de “Copromancia”, a autora funde as esferas do belo literário a ser lido
e do hórrido intestinal a ser secretado e segredado.
Nesse contexto, a escolha da metáfora das fezes é sobrerrelevante, pois, como
visto no primeiro capítulo desta dissertação, o excremento questiona os sistemas de
ordenação e classificação do real pelos quais pautamos nossa existência, visto que não
se encaixa nos paradigmas racionalistas de segregação do real em unidades
descontínuas, oscilando entre sólido e líquido, prazeroso e infeccioso, dentro e fora.
Se conseguirmos abstrair a patogenia e a higiene de nossas noções de sujo, ficaremos com a antiga definição de sujo como algo fora de lugar. Esta é uma abordagem muito sugestiva. Implica duas condições: um conjunto de relações ordenadas e a contravenção dessa ordem. O sujo, portanto, nunca é um evento único, isolado. Onde há sujeira, há sistema. A sujidade é um produto colateral de uma ordenação sistemática e da classificação das coisas, já que toda ordenação envolve a rejeição de elementos inapropriados (DOUGLAS, 2006, p.44).
Assim, se Jonas se debruça sobre a leitura de textos fecais, Patrícia Melo lança
propositadamente sua narrativa na ambiguidade típica do sujo e, por conseguinte, dos
expurgos intestinais, conforme o próprio título de seu romance anuncia. Ademais, como
nos textos de Rubem Fonseca, o imundo permeia não apenas o turvamento das
fronteiras narrativas ou a temática escatológica, abrangendo também a seleção
vocabular utilizada por narrador e personagens do romance.
Assim que acabou o filme, me aproximei. Que bosta, eu disse. Rubem Fonseca sorriu. Uma merda, ele concordou. Ridículo. Uma porcaria. Queria me desculpar, falei. Ele pareceu não entender (MELO, 2008, p. 91)
No curto diálogo acima, a dicção suja das personagens é o meio mais eficiente de
comunicação que há entre elas, pois, quando se abandonam as palavras de baixo calão e
se utiliza o registro comumente chamado de “polido”, em “Queria me desculpar”, a
mensagem não é compreendida, visto que o personagem Rubem Fonseca, ídolo literário
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de Jonas, não parece acostumado ao polido, mas sim ao poluído. Desse modo, os fãs
extraliterário (Patrícia Melo) e intraliterário (Jonas) do autor de Secreções, excreções e
desatinos falam com fluência o dialeto do ídolo, repleto de expressões que, saídas da
boca, remetem à passagem do ânus. No regime da impureza, a literatura se fecunda com
metáforas excrementícias, procriando na imundície como coliformes fecais.
Ainda no que diz respeito ao protagonista do romance ser um entusiasta das belles
lettres, secretamente brincando de autor ou co-autor de releituras de obras famosas e
compartilhando do mesmo linguajar do personagem Rubem Fonseca, é importante
ressaltar que este reconhece Jonas como um artista. A princípio, isso sugeriria uma
autoafirmação como artista por parte da própria autora do romance, também ela de certa
forma uma (re)escritora aficionada pelo autor de Secreções, excreções e desatinos. No
entanto, definir Jonas como artista não seria apenas dignificar sua prática de reescritura
de clássicos, mas também confirmar o estatuto artístico daquilo que o bibliotecário
expele no vaso sanitário e admira embevecido, em busca de significações ocultas.
Logo, o reconhecimento do fecal como artístico, talvez até como viscoso que
ameace dissolver as sólidas certezas, apreende os excretas de Jonas como o informe a
que se dá forma, na contínua labuta da estética. Tal qual em “Copromancia” e nos
demais contos de Rubem Fonseca analisados na presente dissertação, em Jonas, o
copromanta as fezes são entendidas como textos corporais e corpora textuais, que,
como os tradicionalmente impressos em papel, têm sintaxe, semântica e morfologia
própria, requerendo cautelosa exegese para sua decifração.
Tal acolhimento dos (re)escritos de Jonas – e, consequentemente, de sua criadora
– como arte por parte do Rubem Fonseca fictício fica claro na passagem a seguir:
Abri o embrulho e logo vi as esvoaçantes mechas de cabelos ruivos da Vênus de Boticelli estampando a capa de Secreções, excreções e desatinos, o mesmo livro que eu estava lendo. Novinho em folha. Um terror gélido percorreu minha espinha. (...) Abri o livro e deparei com a dedicatória: “Ao Jonas, meu caro colega de ofício, um forte abraço. Rubem Fonseca (MELO, 2008, p.15).
Recebendo de presente o livro cujo primeiro conto é “Copromancia”, obra em que
se inspira Patrícia Melo para compor seu romance, Jonas se sobressalta ao perceber que
sua vida em muito se assemelha à matéria narrada por Rubem Fonseca no texto inicial
de Secreções, excreções e desatinos. Porém, no que tange ao presente ganho por Jonas,
há ainda um pequeno detalhe digno de atenção: a dedicatória. Ao chamar o arquivista da
biblioteca de “colega de ofício”, Rubem Fonseca o dignifica também como escritor,
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colega de profissão e de folha ofício, superfície em que geralmente se inscreve a labuta
autoral. Todavia, mal sabe o célebre escritor que Jonas não é seu colega de (folha)
ofício, mas de latrina.
A assinatura na contracapa do presente entregue a Jonas, além de mero
fechamento da dedicatória, pode ser compreendida pelo leitor do romance e por seu
protagonista como uma espécie de firma de próprio punho que comprove a autoria dos
contos de Secreções, excreções e desatinos, todos frutos da imaginação e do engenho de
seu criador. Demarcando sua posse sobre todos aqueles textos, inclusive
“Copromancia”, o personagem Rubem Fonseca estimula ainda mais a desconfiança de
Jonas, que há algum tempo cria ter sido vítima de plágio por parte do renomado escritor.
Tal suspeita nasce quando o protagonista do romance ora analisado lê pela primeira vez
“Copromancia”, deparando-se com uma série de situações narradas nesse texto que
fazem parte do seu cotidiano de exegese fecal.
Fechei o livro com a sensação de que algo sinistro estava acontecendo. Sei que é comum casos da vida imitando a arte e vice-versa, mas não de forma tão escabrosa. EU era o personagem central daquele conto, um eu esquisito, disfarçado, com outro nome, mas ainda assim eu, euzinho da silva, me reconheci com a maior facilidade, perscrutando diariamente minhas fezes, intrigado com o possível significado das estranhas e múltiplas formas fecais boiando no vaso sanitário. Quem mais além de mim no mundo possuía um caderno de excrementos? (MELO, 2008, p.9).
Autor e leitor de textos fecais, como o protagonista de “Copromancia”, Jonas
descobre que Rubem Fonseca escreveu um conto que narra seu idiossincrático hábito de
interpretação do excremento. Como o narrador-personagem do conto, Jonas alia
intimamente o hobby literário e a leitura de suas fezes, visto que ambos consistem na
decifração de um código e na exegese de um texto, seja ele impresso no papel ou na
latrina. Segundo Jonas,
quem possui dons divinatórios é por natureza um decifrador, um apaixonado, um jogador nato. Portanto, é fundamental, quando se vai prever o futuro, dominar também o principal axioma da criptografia, que é considerar todas as possibilidades. É uma luta. Nós e eles. O futuro e nós. O segredo e a revelação. O significado e o signo. A forma e o conteúdo. (...) Li num manual de criptologia que uma simples oração como esta última, de apenas trinta e cinco letras, tem cinquenta nonilhões de formas possíveis de rearranjos. Um mar sem fim. Três os. Quatro emes. A lógica pura não dá conta de tudo. Por isso, precisamos ser imaginativos, dois es. Sem criatividade, três is, ficamos sem chão, dois as (MELO, 2008, p.81).
A relação entre literatura e a exegese fecal vai mais além, sendo usada por Jonas
como uma modalidade semiótica que permite a visão do futuro e do passado, inclusive
empregada como método de decifração em sua louca investigação quanto ao suposto
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plágio operado por Rubem Fonseca diante da copromancia. O que o bibliotecário, leitor
obcecado por seu ídolo, não percebe, mas que um leitor atento de Jonas, o copromanta
vê com clareza, é que alguns textos fecais do protagonista não falam sobre o futuro e o
passado das personagens, mas sim sobre a própria enunciação do romance. Desse modo,
por exemplo, Jonas acha que determinada porção de excremento significa “fim”,
sugerindo que houvesse terminado o papel de Rubem Fonseca como guia à verdade
sagrada da copromancia. Contudo, o protagonista ignora outra significação desse
“sintagma fecal”: mais do que relacionado ao desenrolar da narrativa, é no plano da
narração que ele deve ser interpretado, pois anuncia o fim do romance, que acaba de
atingir seu anticlímax quando a obsessão pelo famoso autor é substituída pelo fanatismo
por Zoé, última personagem a ser introduzida na narrativa. Corrobora tal leitura a
presença da palavra “fim” em letras maiúsculas na última página do livro, recurso
gráfico que não aparece nas demais obras literárias publicadas pela Companhia das
Letras e traduz para o português o que os hieróglifos fecais de Jonas haviam lhe
revelado.
Assim, o fim previsto pelo personagem pode realmente ser visto pelo leitor de
Jonas, o copromanta, o que indica que, apesar de aparentemente absurda, a leitura de
textos fecais pode ter consistência, mesmo que só no universo ficcional. Diferente das
malogradas previsões do fim da literatura, pretensamente soterrada pela apoteose do
audiovisual, o vaticínio expelido pelo ânus tem algum grau de acerto, além de alto valor
estético.
Ciente da necessidade de ratificar sua autoria sobre as artes copromânticas pelo
menos diante do leitor, o protagonista tece uma série de comentários, à guisa de crítico
literário, condenando o conto “Copromancia” como um plágio malsucedido de sua
própria leitura fecal cotidiana:
Há muitas incoerências no texto. Já li vários livros de Rubem Fonseca, sei que ele não acredita em Deus. Curiosamente, nesse conto, Deus passa a existir. (...) Outra coisa que não dá para entender: ele nos pede para não confundir a palavra escatologia com a “palavra homógrafa em nossa língua, mas de diferente etimologia grega: uma skatos, excremento, a outra eschátos, [...] uma acepção teológica que significa juízo final, morte, ressurreição, a doutrina última do ser humano e do mundo”. Mas não é óbvio que existe uma relação entre elas, e que é exatamente essa ligação que faz da copromancia uma ciência de adivinhação do futuro? (...) Seus métodos de leitura de fezes também não são consistentes, o que só me confirma o plágio. Tudo o que diz sobre as técnicas de indagação é vago (MELO, 2008, p.31).
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Experiente leitor e (re)escritor, Jonas se posiciona de modo firme diante de
“Copromancia”, em uma profunda ironia que repudia para dignificar, visto que foi com
base nesse conto, criticado pelo personagem, que sua autora o criou. Jogando com as
categorias de autor e personagem, autoria e plágio, Patrícia Melo constrói um romance
em que o caráter textual das fezes é muito mais realçado do que o fora em Secreções,
excreções e desatinos. Se o conto fonsequiano por vezes resvala para a escatologia nua,
como quando as cores e os aromas do excreta são descritos sem meias palavras, Jonas,
o copromanta é um romance sobre as paranoias persecutórias de um solitário
bibliotecário, que enxerga no bolo fecal uma possibilidade de falar com Deus em um
mundo de incomunicabilidade reinante.
Destacando o caráter textual das fezes, leitura corpórea que Jonas valoriza tanto
quanto os grandes clássicos que reescreve, o narrador chega mesmo a equacionar o
conto fonsequiano aos expurgos intestinais que analisa com avidez na latrina:
Além disso, já tinha planos para aquele resto de noite: ia analisar com cuidado o conto-plágio de Rubem Fonseca. Talvez algo tivesse me escapado nas leituras anteriores, e na linguagem de códigos não se desprezam nem os menores detalhes, afinal são eles, muitas vezes, a chave de todo o enigma (MELO, 2008, p.29).
Nota-se nesse caso a seleção vocabular empregada por Jonas ao se referir ao texto
de seu possível perseguidor como sendo repleto de códigos e enigmas, para os quais se
faria necessária uma chave. De maneira semelhante, ao se remeter à linguagem
enunciada pelo ânus, o bibliotecário a define como “Criptográfica. Códigos. Signos”
(MELO, 2008, p.28), analogamente à descrição da linguagem do conto fonsequiano. Tal
formulação, no entanto, misteriosa como as fezes ainda não trazidas à luz, carrega em si
a ambivalência peculiar às falas do baixo ventre: igualar “Copromancia” à matéria fecal
de Jonas pode, por um lado, ser lido como um rebaixamento da ficção de Rubem
Fonseca, tal qual na frequente metáfora desbocada do senso comum. Contudo, uma
leitura mais atenta, que considera o apreço de Patrícia Melo pela ficção do autor e a
preocupação de seu romance em ratificar as fezes como texto do corpo marginalizado
pela tradição ocidental, percebe que tal equação vem apenas a valorizar a escrita do
organismo. Em oposição à literatura no papel, que se faz no contraste com a branca
pureza da superfície, a arte das fezes prescinde do alvo e do imaculado, fazendo da
sujidade sua linguagem e usando o papel apenas como utensílio a limpar seu rastro.
Ainda no que tange à textualidade fecal, é relevante o uso evidente que Jonas faz
da etimologia não só como ferramenta para leitura do excreta, mas mesmo como
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mecanismo para a construção de suas mais simples frases na comunicação cotidiana.
Tal peculiaridade torna-o um exímio leitor, mas um péssimo falante, engasgando a cada
nova sentença detido por digressões. Pernósticas como em Jonas, o copromanta, as
constantes divagações etimológicas não são raras nas obras de Rubem Fonseca, sendo
enunciadas por seus narradores ou personagens que quase sempre têm familiaridade
com o universo das belles lettres e revelam uma erudição inusitada, para não dizer
muitas vezes irônica.
Para análises desse calibre, o bibliotecário conta com um dicionário de etimologia
ganho de presente de Eunice, com o qual passa a se dedicar à origem das palavras
enunciadas por seu expurgo intestinal. Ademais, Jonas vale-se da etimologia para
criticar o autor de “Copromancia”, alegando ser uma falha a ausência de uma
justificativa do processo de formação desse neologismo ao longo do conto. Assim, o
que Rubem Fonseca deixou como um silêncio a ser preenchido pelo leitor em sua
exegese (trabalho deveras semelhante ao do copromanta) Patrícia Melo torna explícito
nas palavras de seu protagonista:
Tudo no conto comprova o plágio. Mas devo admitir que o termo copromancia é bem superior ao meu dejectosofia (substantivo masculino, do latim dejectus, de dejectum + sofia, saber em grego), e por isso adotei-o sem nenhum constrangimento. Afinal, se o escritor roubou minha arte, por que eu não poderia surrupiar-lhe uma simples palavra? (MELO, 2008, p.32).
No trecho acima, além de explicitar o processo de formação dos neologismos que
dão nome às práticas divinatórias, Jonas ratifica o estatuto artístico das fezes ao afirmar
que o autor “roubou [sua] arte”. Além disso, o jogo de espelhamentos entre plágio e
autoria ganha mais um fantasmático reflexo, pois Jonas, fruto de um suposto plágio de
“Copromancia” perpetrado por Patrícia Melo e vítima de um fictício plágio pela
personagem Rubem Fonseca, decide copiar um termo empregado pelo pretenso
plagiário. Com tais relações cada vez mais imbricadas, Jonas, o copromanta aponta
progressivamente para a inexistência de qualquer forma de plágio criminoso, já que toda
obra literária habita necessariamente o seio da intertextualidade.
O próprio autor ex-policial já o afirmara no conto “Intestino Grosso” (FONSECA,
1975), em que a personagem do escritor entrevistado se posiciona de forma categórica
diante da influência de outros artistas sobre sua obra. Ao afirmar “Odeio o Joyce. Odeio
todos os meus antecessores e contemporâneos” (FONSECA, 1975, p.170), o fictício
escritor nega qualquer forma de intertextualidade em seus textos, reeditando a utopia
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romântica do gênio inspirado. Todavia, o personagem repórter claramente percebe a
incoerência desse comentário, explicitando sua improcedência no trecho a seguir:
“Existe uma pornografia da morte, como queria Gorer? Desculpe citar nominalmente
alguém, sei que você não gosta, mas foi você que criou o precedente, citando
Aristóteles, Joyce e Horácio” (FONSECA, 1975, p.171).
Embora ignorando outras citações e alusões feitas pelo personagem autor, como a
Marcel Proust, William Burroughs e Marquês de Sade, o entrevistador aponta a
incongruência da fala supracitada, destacando as constantes remissões feitas a outros
autores no discurso do entrevistado. Incapaz até de conversar sem se remeter a outros
autores, o personagem escritor claramente revela a impossibilidade de uma escrita sem
diálogos intertextuais, aos quais ele próprio afirma recorrer em outro ponto da narrativa:
“E há também a presença da ciência, na pessoa do psicanalista: um símbolo?” “Deliberadamente cândido. Escrevi o livro à maneira de Marcel Proust, evidentemente” (FONSECA, 1975, p. 165).
Reeditando tal prática textual frequente nos textos fonsequianos, a
intertextualidade, Patrícia Melo faz como o personagem de “Intestino grosso”
(FONSECA, 1975), escrevendo o livro à maneira de outrem: no caso, Rubem Fonseca,
o autor de Em busca do tempo perdido. Do mesmo modo, Jonas imita o personagem de
“Copromancia” (ou seria o inverso?), não só no processo de leitura dos excretas, mas
também na confecção de um Álbum de fezes.
Prática de escrita sobre o literário fecal, tal álbum em muito se assemelha a um
manual de crítica ou Teoria Literária, discorrendo sobre as formas, gêneros e
significações das massas expelidas pelo ânus. No entanto, em Jonas, o copromanta, o
Álbum de fezes ganha uma dimensão muito maior, confundindo-se com a própria
confecção do romance. Enquanto “Copromancia” apenas menciona a existência do
álbum, descrevendo-o superficialmente, o livro de Patrícia Melo é ilustrado por uma
série de desenhos de fezes em formatos mil sobre folhas pautadas. Embora o leitor saiba
absurdas as obsessões do protagonista, sente-se em algum momento da leitura instigado
a tentar decifrar os escritos intestinais, tornando-se também um copromanta. Para tal,
Jonas apresenta inclusive uma espécie de alfabeto das fezes, baseado na criptologia
copta e na egípcia.
Borradas assim mais uma vez as fronteiras entre literatura e fezes, percebe-se o
estatuto artístico de qualquer trabalho estético com a palavra, seja expelida pela boca ou
pelo ânus, orifícios de entrada e saída de um mesmo duto. Tal semelhança tópica entre
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essas cavidades é inclusive revisitada no texto, quando Jonas afirma: “Tirei do bolso o
caderno onde regularmente desenho minhas eliminações e chequei as últimas entradas”
(MELO, 2008, p.12), ao qual se seguem diversos desenhos de fezes. Checando as
entradas do caderno, Jonas verifica as saídas do corpo, consequentemente embaralhando
as fronteiras entre dentro e fora, sujeito e objeto, que configuram a pedra angular do
pensamento racionalista.
Texto corpóreo, a escrita em suas fezes é compreendida pelo protagonista como
sendo guiada pela mão de Deus, sendo sua missão decodificá-la, o que é ratificado por
sua descoberta de que “o vocábulo hieróglifo significava literalmente palavra de Deus”
(MELO, 2008, p.34). Ainda que diferente da palavra divina impressa nas páginas
bíblicas, o expurgo intestinal funciona para Jonas como um canal que porta mensagens
sagradas, sendo tão excelso quanto as Sagradas Escrituras. Tal sacralização do corpo e
de suas falas, em detrimento da profana escrita do papel, está também presente em
“Copromancia”, visto que o narrador do conto se questiona por que Deus teria criado as
fezes, embora não chegue a qualquer conclusão nesse sentido, além de uma releitura do
cogito cartesiano: “Ergo, a merda”. Se defecar é o que garante ao homem sua
existência, Jonas completa a reedição de Decartes, ao afirmar, depois de ler
“Copromancia”: “Somos merda, é o que diz o autor. Cago, sum” (MELO, 2008, p. 30).
Nesse sentido, ganha novo significado o fato de os personagens de Rubem
Fonseca e Jonas terem se encontrado pela primeira vez quando o renomado autor vai à
Biblioteca Nacional fazer uma pesquisa sobre a Bíblia de Mogúncia. Obcecado com a
ideia de estar sendo plagiado pelo autor, Jonas se julga sendo perseguido e vigiado,
questionando a veracidade das informações que os colegas lhe dão sobre os hábitos de
Rubem Fonseca na biblioteca, crendo haver contra si um complô.
No entanto, obviamente não há nenhuma espionagem sobre Jonas, que, ao longo
da narrativa, enlouquece progressivamente de uma grave paranoia persecutória,
acreditando piamente que só pela decifração de suas fezes teria uma resposta divina
acerca dos planos de Rubem Fonseca. Desse modo, enquanto o protagonista do romance
se debruça sobre a latrina de sua casa para conhecer as verdades teologais, Rubem
Fonseca folheia a palavra de Deus na Bíblia da Mogúncia, primeira obra impressa na
qual aparecem data, lugar e nomes dos impressores. Lendo no vaso de louça ou na
página de papel os textos do Senhor, ambas as personagens provam que a literatura
pode se inscrever em diferentes formas semióticas.
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Ademais, ainda no que tange à presença da religiosidade em Jonas, o copromanta,
vale lembrar que são homônimos o bibliotecário leitor de fezes e o personagem da
célebre fábula bíblica narrada no livro de Jonas, no Antigo Testamento. Contudo, tal
semelhança não se restringe aos nomes, visto que ambos são profetas e têm de ouvir a
voz de Deus para empreender grandiosa missão, embora o Jonas copromanta termine a
história sem descobrir em seus vaticínios fecais qual desígnio divino lhe cabe.
Por sua vez, o personagem bíblico, tendo desobedecido à vontade divina, que lhe
mandara pregar na cidade de Nínive, resolveu fugir escondido no porão de um navio,
em uma tentativa de se ocultar dos castigos de Deus por sua rebeldia. Todavia, a
onisciência do Senhor descobriu a falta de seu servo, lançando uma enorme tempestade
para afundar o navio e puni-lo. Quando o restante da tripulação compreendeu o que se
passava, lançou Jonas no mar, sendo o homem prontamente engolido por uma baleia,
que o levou a Nínive para cumprir as ordens de Deus. No entanto, se o Jonas bíblico
saiu de dentro da baleia pela boca, o Jonas copromanta certamente o teria feito pelo
ânus, ratificando o caráter profético e divino das fezes. Aliás, segundo Isaías 64, 5:
“Somos como uma coisa impura, e todas as nossas ações parecem trapos sujos”.
Seja no diálogo com a Bíblia, com os clássicos da literatura mundial ou com
“Copromancia”, o romance de Patrícia Melo vem apenas a ratificar o estatuto artístico
que Rubem Fonseca dá às fezes, elegendo-as como imagem poderosa na desconstrução
das certezas e na apreensão da (malcheirosa?) essência humana. Desse modo, o fictício
Rubem Fonseca de Jonas, o copromanta, ao explicar ao protagonista sua predileção
pela temática escatológica, afirma:
A escatologia – não a religiosa – sempre interessou aos escritores. Se você não é um preconceituoso fisiológico, um antibiológico, não terá pudor de escrever sobre isso. É da nossa natureza. Eu escrevo sobre o ser humano, e tento abordá-lo em todos os seus aspectos, não apenas do ponto de vista da bondade, do amor e da redenção, mas também em seu aspecto animal, primitivo (MELO, 2008, p.105).
Trecho ambíguo, “é da nossa natureza” pode ser lido em diferentes camadas de
significação, mudando-se o referente para que aponta o pronome “nossa”. Em um
primeiro nível de leitura, o sintagma “nossa natureza” pode ser compreendido como se
referindo à natureza humana, que, por mais que se arvore distinta dos animais, sempre
tem de se render aos baixos chamados da pressão intestinal. Escrevendo sobre o
homem, Patrícia Melo e Rubem Fonseca narram sobre o que ele tem de melhor e pior,
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mais puro e impuro, seguindo a máxima de Terêncio (2008), segundo o qual “Sou
humano, logo nada do que é humano me é estranho”.
No entanto, em uma segunda camada de significação, o sintagma “nossa natureza”
pode ser entendido como remetendo à natureza do escritor, que tem por ofício despir-se
de preconceitos no ato narrativo. Assim, para abordar o homem em todos os seus
aspectos, a natureza do verdadeiro artista o leva a transcender os limites impostos pelos
meios e materiais, como o papel ou a tela de cristal líquido. Ousando e provando a
imortalidade da literatura, forma de expressão artística que precisa apenas do homem e
de seu corpo (corpo somático, corpo textual e corpus textual) para existir, o artista
Rubem Fonseca e o personagem Rubem Fonseca, criado por Patrícia Melo, revelam que
a arte da palavra é também um rejeito a ser inexorável e continuamente “excorporado”,
seja pela boca ou pelo ânus.
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CAPÍTULO III: O LEVANTE EXCREMENTÍCIO CONTRA A INDÚSTRIA CULTURAL
“La civilisation, c’est le déchet: cloaca maxima”. Jacques Lacan. Conférence aux Amériques, 1976.
“Tudo vira bosta”.
Rita Lee. MTV ao vivo, 2004.
A indústria cultural: a comercialização da catarse e a perversão da mimese
A indústria cultural acena-nos com a falsa possibilidade da homogeneidade
absoluta, conferindo a tudo um ar de semelhança (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
Assim, produzidos em série, os artefatos culturais assemelham-se cada vez mais entre si
no capitalismo tardio, pretensamente para atender às necessidades comuns a todos os
seres humanos. Adorno denuncia tal deturpação falaciosa de relações de causa e
consequência, mostrando que a demanda do consumidor é, na verdade, imposta pelos
produtores:
Os interessados inclinam-se a dar uma explicação tecnológica da indústria cultural. O fato de que milhões de pessoas participam dessa indústria imporia métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais. O contraste técnico entre poucos centros de produção e uma recepção dispersa condicionaria a organização e o planejamento pela direção. Os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis por que são aceitos sem resistência. (...) A atitude do público que, pretensamente e de fato, favorece o sistema da indústria cultural é uma parte do sistema, não sua desculpa (ADORNO, 1985, p.100).
A indústria cultural inverte, assim, a relação oferta-demanda que rege as relações
capitalistas desde o século XV. Até o período industrial, em que o capital era aplicado
pesadamente na formação de um maquinário e de bens duráveis de consumo, o objetivo
do consumidor era adquirir mercadorias que resistissem à passagem do tempo,
investindo-se, por vezes, em produtos mais caros, mas de maior durabilidade. Nessa
época, a necessidade das pessoas regia a produção industrial, a qual visava a suprir os
nichos de mercado oriundos dos desejos humanos.
No entanto, em uma era de consumo histérico e massificado, a palavra de ordem
não é durabilidade, mas substitutibilidade. As mercadorias – e entre elas os artefatos
culturais – devem ser adquiridos em uma sucessão voraz, sendo um filme logo
esquecido para se assistir a outro, apenas superficialmente diferente. Do mesmo modo
que celulares e roupas, livros, exposições e outras formas de expressão artística são
oferecidas a todo instante por um preço muito baixo, mas um custo (humano) altíssimo:
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a reificação do sujeito diante das numericamente diversas, mas geralmente pouco
variadas opções culturais.
Essa mazela ocorre porque, enquanto no passado a demanda guiava a oferta, tal
relação se inverteu na pós-modernidade: hoje são as grandes empresas que, por meio da
propaganda e da mídia, ditam o querer do homem. Sendo-lhe furtada a própria condição
de ser desejante, o indivíduo perde o caráter mais intrínseco de sua condição humana:
querer. Aprendendo na tela da televisão o que deve desejar, o sujeito torna-se objeto,
mercadoria barata na cotação pós-moderna.
Conspurcando o conceito dadaísta e surrealista de inverdade do estilo, a indústria
cultural justifica sua pasteurização, de modo a oferecer ao indivíduo não mais do que
diversão irrefletida. Se, ao se defrontar com a obra de arte, caberia ao sujeito relacionar
a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais (KANT, 2005), tal papel lhe foi
furtado pela maior parte das produções contemporâneas. Tomando-se como exemplo o
cinema, manifestação artística surgida no início do século XX, percebe-se que
ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos (...) paralisam essas capacidade em virtude de sua própria constituição objetiva (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.119).
Vazias de não-ditos, as obras difundidas para o grande público não permitem a
reflexão, pois as lacunas em que o receptor e a ora coconstruíam sentidos foram
substituídos pela histeria da publicidade e pela sucessão ininterrupta de clichês e
reviravoltas. O contato com a arte não mais tira o fôlego pela catarse ou pelo prazer – ou
mesmo desprazer – estético, mas sim pelo esgotamento proporcionado pelo paroxismo
da avalanche de informações descartáveis.
A vigente similitude de temas e clichês na arte não denota mais do que uma
tentativa de apagar distinções sociais ou possíveis conflitos entre dominadores e
dominados, de modo a tornar-se mais eficaz a produção tecnicista. Nesse contexto, os
grandes capitalistas oferecem produtos com a promessa de divertir o consumidor, o qual
requer um passatempo que lhe repouse as forças, necessárias na manhã seguinte para
trabalhar e trazer lucros ao patrão.
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Tal sucessão voraz de estímulos visuais e/ou auditivos assemelha a arte da
indústria cultural à linha de montagem, instaurando seu maior paradoxo, no qual
repousa uma de suas mais poderosas molas motrizes: diversão que se assemelha à faina,
a obra imposta às massas perverte o conceito aristotélico de mimese, de modo que imita
a esteira fabril. Todavia, não por prazer ou inclinação inerente ao homem, como cria o
discípulo de Platão, e sim com vistas ao recrudescimento dos lucros.
Porém, o caráter mercantil da arte não é prerrogativa exclusiva da cultura imposta
às massas na contemporaneidade. O mecenato renascentista e os leitores de folhetins do
século XIX eram patrocinadores de que já dependiam os artistas séculos atrás, embora
hoje a arte se orgulhe de ser mercadoria, trocando seu valor de uso por mero valor de
troca. Tampouco é inovadora a associação entre arte e entretenimento que permeia a
maior parte das produções hodiernas. Prova disso é a antiga reincidência de vocábulos
como jouer ou play na maioria das línguas indoeuropeias, os quais pertencem,
concomitantemente, aos campos semânticos do teatro, da música e da brincadeira
(HUIZINGA, 2001). Para Adorno,
o que é novo na fase da cultura de massas em comparação com a fase do liberalismo avançado é a exclusão do novo. A máquina gira sem sair do lugar. Ao mesmo tempo em que já determina o consumo, ela descarta o que ainda não foi experimentado porque é um risco (ADORNO, 1985, p.111).
Tal paradoxo é acompanhado pela mudança na forma de percepção das
coletividades humanas. A partir do momento em que a obra perde seu caráter aurático
(BENJAMIN, 1985), vinculado às suas condições de produção e ao contexto em que se
insere, tornando-se apenas mais um flash nas telas da sociedade do espetáculo, o
homem, como sujeito histórico, também é posto em xeque. A falsa homogeneidade é
imposta ao sujeito como um valor a ser atingido: obras idênticas são feitas para pessoas
idênticas, todas aspirantes à fama, ao poder, ao dinheiro e a formas esculturais. O
trabalhador da linha de montagem torna-se, assim, apenas mais uma peça a ser
construída em série na esteira fabril.
Em paralelo a tamanha perversão da mimese, em que a obra de arte imita o que há
de nocivo a si mesma e ao homem, também a noção de catarse é deturpada em benefício
da troca monetária. A falácia de obras iguais para pessoas iguais, sob pretexto de
democratizar o acesso à arte, é responsável, junto aos baixos preços, por essa reedição
da utopia medieval da terra de Cocanha: se no imaginário medievo a comida estaria
sempre ao alcance da mão na mítica Cocanha, em tempos de indústria cultural a catarse
seria possível a todo o tempo, facility sedutora para o consumidor do artefato cultural.
91
Assim, para rir, chorar, expurgar ou se emocionar, não é mais preciso esperar pelas
grandes apresentações teatrais, como no tempo de Aristóteles, primeiro sistematizador
do conceito de catarse. A lógica pós-moderna oferece ao sujeito na tevê, no rádio ou em
qualquer das simplórias publicações açucaradas que pululam hoje em livrarias, uma
fácil comoção, sem necessidade de reflexões mais profundas. Contudo, mal sabe o
consumidor que, se o trágico adivinha de um desacerto entre o sujeito e a sociedade, a
falsa identidade entre ambas as instâncias imposta pela indústria cultural ao pasteurizar
o homem põe fim à possibilidade do trágico.
Ademais, a indústria cultural não tem o caráter sublimador de pulsões que a
psicanálise atribuiu à arte. Em vez disso, limita-se a recalcá-las, estimulando desejos
jamais concretizáveis, pois sua realização, mesmo que momentânea, daria fim à eterna
busca por novas mercadorias. Na pós-modernidade, a cadeia lacaniana de significantes
não mais passa pelo seio materno, a mamadeira, a chupeta ou o parceiro sexual.
Hodiernamente, roupas de marca, tecnologia de ponta ou paqueras virtuais sucedem-se
na efemeridade da falsa completude.
Assim, a idolatria inconsciente ao belo, fruto do redirecionamento de pulsões
eróticas, não pode ter lugar em um ambiente em que o sujeito é bombardeado o tempo
todo por um belo inatingível, de corpos esculturais, faces sempre jovens e sorrisos
permanentemente brilhantes. Não há como sublimar e canalizar as pulsões para o
caráter criador de todo Eros, dedicando-se à produção do belo, em uma era em que a
beleza é obtida na mesa de cirurgia, mediante pagamento parcelado sem juros.
Em tal época de artefatos culturais pasteurizados, o próprio homem perde seu
estatuto de indivíduo singular, tornando-se ele também um produto sem identidade,
marcado pela “desrealização do outro, sua anônima caracterização sempre mediada pelo
véu das imagens, a qualidade intercambiável das escolhas tipificadas e previsíveis e o
embotamento geral daí resultante” (DIAS, 2007, p.17). Se Marx (1974) apregoava o
fetiche da mercadoria, não imaginava os absurdos desdobramentos de tal fetichismo,
com o consumidor confundindo-se com o consumido.
Assim, o que se percebe na atualidade é a perda do valor cultual da arte
(BENJAMIN, 1985), dissolvido na mesmice da indústria cultural. No passado, a arte
tinha valor de culto porque sua técnica era parte do ritual, como nas pinturas da caverna
de Lascaux, a que se atribuíam mágicos poderes. A vivência da arte era destacada do
cotidiano, sendo-lhe atribuído estatuto de sagrado (DURKHEIM, 1991).
92
Digna, pois, de altar simbólico, a arte recebeu uma moldura, caixilho com que se
guarnecem e adornam retratos, quadros e espelhos, para destacá-los do entorno e
delimitar um espaço de suspensão do real, como em locais sagrados. Também as outras
modalidades de arte dispõem de respectivas molduras simbólicas para sacralizar o
emoldurado, como as margens do livro e as cortinas do teatro. Nesse sentido,
a moldura de um quadro, a arquitetura do retábulo, a instalação em que uma pintura é inserida como uma joia têm uma lógica em comum (...): elas definem atitudes pictóricas a serem assumidas diante de uma pintura, que por si só não bastam para essa finalidade (DANTO, 2006, p.15).
Entretanto, é como cupim que rói a moldura que opera a indústria cultural. Ao
lançar-se a obra em uma esfera de consumo massificado, simplificado e
descontextualizado, produzindo não arte, mas lenitivos para embalar o sono dos
consumidores, sacrificou-se o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema
capitalista.
Toda obra de arte, por mais realista que seja, tem seu valor estético residente no
descompasso entre o real e sua representação, embora a obra massificada da
contemporaneidade copie o real integralmente, mantendo com ele – e estimulando o
mesmo entre os indivíduos – uma relação de identidade. Tal obsessão identitária
também se reflete no termo “cultura”, contrário ao conceito de diversidade a que se
pretende. Assim, a indústria cultural geralmente não opera no sentido da multiplicidade
e da individualidade, características inerentes aos estatutos humano e artístico. Para a
pseudoarte enlatada, o denominador comum “cultura” implica o caráter classificatório e
organizador que introduz o trabalho estético no âmbito da administração.
Em tal era da alienação e da velocidade, pouco tempo é permitido para que o
indivíduo se abandone diante de uma obra de arte. Afinal, a apreensão do belo é
impossível
se não for acompanhada de indiferença, mais, de desprezo por tudo quanto é extrínseco ao objeto contemplado. Só pelo deslumbramento, pela injusta oclusão do olhar à exigência feita por todo o existente, é que se faz justiça ao existente. Ao tomar-se na sua parcialidade como o que ele é, esta sua parcialidade é concebida – e reconciliada – como a sua essência. O olhar que se perde numa beleza única é um olhar sabático. Salva no objeto algo do descanso do dia da sua criação (ADORNO, 2001, p.74).
Na histeria da pós-modernidade, confusa em meio à caleidoscópica sucessão de
anúncios e informações – pouco retida na memória a despeito da massiva estimulação
das retinas –, o sujeito não consegue se tornar indiferente. Tem de olhar para tudo o
tempo todo, não se permitindo o perder-se na vertigem do belo. No entanto, a atenção
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difusa não possibilita também que o indivíduo se vincule de fato a qualquer uma das
várias informações que momentaneamente apreende.
A própria relação do homem com o sobrenatural, mediada pela mitologia,
reconhece a premência do abandonar-se para a contemplação do belo, prática
impossível no ritmo de vida contemporâneo. Na narrativa grega, Ícaro, filho de Dédalo,
perde a si próprio na contemplação estética do brilho solar, deixando sua condição de
sujeito dissolver-se na apreciação da luz. De maneira semelhante, dissolve-se também a
cera que gruda as penas de suas asas artificiais, de modo que o herói se põe em queda
livre, mergulhando para sempre no oceano do belo.
Infelizmente, nem de Dédalos nem de Ícaros se compõe a pós-modernidade: há
muito os papéis de artífice e esteta rarearam. Perdido no labirinto hodierno, o homem
contemporâneo parece preso para sempre nos descaminhos emaranhados da histeria da
velocidade, da transitoriedade e do consumo. Olhando para todos os lados o tempo todo,
o sujeito do mundo pós-moderno sequer reconhece o belo e, se o percebe, não se
permite contemplá-lo, por exigências do tempo roaz.
Nesse contexto, mesmo aqueles que se arvoram em conhecedores de arte
desvirtuam o teor das indagações estéticas, permeando-as com questões estranhas à arte
e particulares à esfera do capital. Denunciando o caráter mercantil de muitas discussões
estéticas da contemporaneidade, o autor de Minima Moralia desconstrói a noção de
intertextualidade, apregoada por Bakhtin (1988), Compagnon (1996), Kristeva (1974) e
tantos outros teóricos como um pretenso diálogo entre as obras que fecunde e
multiplique suas significações. No aforismo “De gustibus est disputandum” (“Vale a
pena lutar pelos gostos”, em português), Adorno (2001) condena a prática burguesa de
comparação de obras de arte como um instinto mercantil, tal qual o televisor novo que
deve ser comprado porque possui uma série de novas funções que os concorrentes
ignoram. Em vez de estética, a discussão sobre a arte, de acordo com Adorno, está
centrada em aspectos publicitários, de forma que os lances em leilões sejam cada vez
mais altos. O comprador, assim, adquiriria não uma obra de arte, mas o status que ela
lhe confere.
Opondo-se a esse contrassenso instalado pela indústria cultural, o autor de Minima
Moralia afirma que as obras de arte não admitem comparação:
Se a ideia do belo se representa simplesmente repartida em múltiplas obras, cada uma em particular intenta incondicionalmente a ideia total, reclama para si a beleza na sua unicidade e nunca pode admitir o seu parcelamento, sem a si mesma se anular. Enquanto uma, verdadeira e inaparente, livre de
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tal individuação, a beleza não se representa na síntese de todas as obras, na unidade das artes e da arte, mas de forma viva e real: no ocaso da própria arte (ADORNO, 2001, p.73).
Assim, nem mesmo a crítica de arte, que deveria defender a estética contra o
capital, desempenha seu papel de forma satisfatória na sociedade atual: pervertido pela
lógica do consumo, o crítico age à guisa de publicitário, limitando-se a divulgar as
obras, muitas vezes em resenhas compradas.
Pervertida a noção de arte em um mecanismo ideológico que simplesmente
corrobora a desumanização e a exploração do outro, reificado em ferramenta de
trabalho, o próprio artista tem seu papel deturpado na sociedade contemporânea.
Vivemos a era das celebridades instantâneas: estrelas e starlets ascendem ao panteão
dos famosos em questão de segundos, bastando um paparazzo, uma fofoca ou uma
passagem meteórica por programas de TV para que um “artista” – palavra banalizada na
era da modelo-manequim-atriz – se torne capa de periódicos. Na hipermodernidade,
tempo de relações fluidas e instáveis, o estrelato é adquirido da noite para o dia,
velocidade também instantânea para que um indivíduo caia no esquecimento.
No aforismo “Morte da imortalidade”, Adorno (2001)denuncia o esvaziamento da
noção de fama, etimologicamente ligada à raiz fa-, falar. Assim, sendo o famoso aquele
de quem se fala, o verdadeiro artista tornou-se nefando, aquele de quem não se deve
falar, observando-se a cognação entre ambos os termos. Vê-se, pois, que
a fama, enquanto resultado de processos objetivos no seio da sociedade mercantil, que tinha algo de contingente, e amiúde versátil, mas também o esplendor da justiça e da livre escolha, está liquidada. Converteu-se inteiramente numa função dos órgãos de propaganda assalariados e mede-se pelo investimento arriscado pelo portador do nome ou dos grupos de interesse que por detrás dele há (ADORNO, 2001, p.98).
Na crise dos valores clássicos de belo, artístico e literário, anunciada na
apocalíptica trombeta da indústria cultural, constroem-se as reflexões a seguir, acerca de
uma estética tipicamente pós-moderna: uma arte do escatológico. Por meio de metáforas
e metonímias fecais, a arte do abjeto insurge-se contra os ditames do mercado e
subverte a lógica mercantil do sistema reificador.
O excrementício que borra a cultura de massas
Como visto anteriormente, a indústria cultural instala na pós-modernidade uma
situação deplorável de esvaziamento do artístico e massificação da informação,
processos que redundam na reificação do sujeito. Diante desse quadro, uma possível
95
reação linguística de revolta é praguejar contra o status quo, frequentemente
desbocando uma metáfora ligada aos excrementos sólidos humanos, traçando uma
equação entre a indústria cultural e as fezes. Este capítulo, no entanto, visa a investigar
o emprego da imagem do excrementício nas obras de arte por um viés diametralmente
oposto: o expurgo intestinal como forma de levante contra a submissão da arte ao
capital e seu consequente empobrecimento difundido às massas na contemporaneidade.
Nesse sentido, o poder dos rejeitos já havia sido antecipado por Bertolini (1998),
rudólogo famoso por seus aforismos sobre a sujidade: “Le déchet n’est pas insignifiant;
c’est au contraire un signifiant puissant”.
Tal temática do repulsivo, embora a muitos pareça prerrogativa da
contemporaneidade, é desde os primórdios dos estudos estéticos tema polêmico. Platão,
um dos primeiros pensadores a escrever suas impressões sobre a arte, opunha-se
ferozmente a uma representação de elementos ditos inferiores, como a destemperança, a
desproporção e a fealdade. As musas inspirariam apenas a imitação do que é belo, visto
que a estetização do indigno poderia culminar na corrupção da alma humana. Em um
dos célebres diálogos platônicos, Sócrates afirma que “a feiúra, a arritmia, a desarmonia
são irmãs da má linguagem e do mau-caráter, ao passo que as qualidades opostas são
irmãs e imitações do caráter oposto, da sabedoria e da bondade da alma” (PLATÃO,
1999, p.94). Assim, ao expulsar o poeta da idealizada pólis, o autor de A República
teme tais influências nefastas que a imitação de caracteres negativos pudesse ter sobre
os cidadãos.
Nesse sentido, de acordo com o sistema de pensamento do filósofo grego, o
somático é associado à baixeza e ao nocivo, em oposição à superioridade conferida à
alma. Dicotômico, o sistema platônico opunha matéria e ideia, tendo essa antinomia
expressão máxima na Alegoria da Caverna (PLATÃO, 1999). Assim, os excretas,
questão central nesta dissertação, jamais poderiam ser associados ao sol que esperava o
cativo liberto na alegoria, após sua árdua subida em direção à verdade e à sabedoria. As
fezes certamente estariam escondidas nas profundezas da caverna platônica – como nos
meandros intestinais –, não devendo ser apresentadas na forma de arte, mas sim
segredadas como um profano mistério tabuístico.
De maneira distinta via Aristóteles (2006) a questão da mimese, não condenando a
imitação do real pela arte. Como se percebe no excerto a seguir, é possível ter prazer
estético ao se contemplar o abjeto na obra artística:
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A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância. Neste ponto distingue-se de todos os outros seres, por sua aptidão muito desenvolvida para a imitação. Pela imitação adquire seus primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam prazer. A prova é-nos visivelmente fornecida pelos fatos: objetos reais que não conseguimos olhar sem custo, contemplamo-los com satisfação em suas imagens mais exatas; é o caso dos mais repugnantes animais ferozes e dos cadáveres (ARISTÓTELES, 2006, p.30).
Assim, segundo o estagirita, a mediação artística garantiria beleza e aprazibilidade
ao abjeto, que poderia ser contemplado com deleite. Tal posicionamento fez de
Aristóteles, no campo das discussões estéticas, um homem avant la lettre. Afinal,
depois dele,
na Idade Média, o feio, quando representado artisticamente, lembra ao homem que a beleza é transitória; somente no sobrenatural o sujeito encontra a verdadeira beleza. O Renascimento começa a desdivinizar a beleza e a humanizar a feiúra. Amplia-se, nas artes, a conquista do feio como categoria estética, intensificando-se essa prática com as inquietações históricas registradas nas fases barroca e romântica. Mas, leia-se Kant, autor do mais importante tratado de estética do século XVIII – A Crítica da Faculdade do Juízo –, e ver-se-á que perdurava a convicção de que “o feio ocorre na arte quando é belamente representado”. O ideário platônico da beleza deitara raízes profundas na cultura ocidental, entrando em franco declínio apenas a partir da modernidade, uma vez que os artistas desse período passam a explorar o feio como temática predominante em suas obras (ANDRADE, 2008, s.p.).
Seguindo os preceitos aristotélicos, a arte contemporânea traz consigo o abjeto
como forma estética, fundindo duas necessidades humanas: o excrementício e o
artístico. Característica inerente ao homem, desconstruir o real e recompô-lo em um
diferente sistema de signos é uma possível definição da arte que em muito se assemelha
ao processo digestivo, o qual culmina na expulsão de um bolo fecal.
Versão também escatológica da metáfora de desconstrução-reconstrução foi
inclusive utilizada pelos modernistas brasileiros no Manifesto antropofágico
(ANDRADE, 1990), em referência à abordagem prescrita frente à arte estrangeira.
Além disso, vale lembrar a polissemia do vocábulo “obrar”, que tanto designa o ato de
produzir um engenho quanto o de defecar. Sendo do povo que dimana o idioma,
similitudes como essa sugerem as associações por analogia que se traçam entre os
supostamente distintos conceitos de arte e de excremento.
Se durante séculos a produção cultural foi avaliada segundo um critério abstrato e
absolutamente discutível, o gosto, a sociedade hodierna assiste ao elogio ao desgosto
(em sua acepção de repugnância). A arte do abjeto subverte não apenas as prerrogativas
estéticas tradicionais, mas também a compreensão humana acerca das fezes.
Comumente visto como produto da corrupção e da putrefação das formas de um objeto,
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o excrementício ganha nova dimensão quando incorporado à arte, visto que, desse
modo, ao informe bolo fecal dá-se o estatuto de obra, por meio da elaboração da forma.
Subverte-se, assim, o conceito clássico de forma, pois
em primeiro lugar, há uma ruptura com um universo de formas que estaria submetido ao Espírito, ao Divino. Para Hegel, as formas da escultura grega exprimiam o Espírito, o Universal. Para São Tomás de Aquino, a forma humana é à semelhança de Deus. Utilizar o caco de garrafa, o pedaço de ferragem, é reconhecer nas menores parcelas presentes no chão a potência de tornar-se forma. (...) A relação entre forma e matéria foi renovada: a Forma não é mais uma entidade transcendente. As diversas matérias secretam a miríade de formas (BEAUNE, 1999, p.21).
Adivinhando “nas menores parcelas presentes no chão a potência de tornar-se
forma”, o artista contemporâneo percebe o belo no hórrido e no simplório, podendo
fazer inclusive de seu expurgo intestinal forma e matéria de sua obra. Tamanha
dissolução da frequente associação entre Belo e artístico dá ensejo a uma estética do
abjeto, que faz da sujidade e da feiúra sua expressão.
De maneira semelhante, Adorno (2001) afirma, no aforismo “É muito bom da sua
parte doutor”, que
as pequenas alegrias, as manifestações da vida que parecem isentas da responsabilidade do pensamento não só têm um momento de obstinada estupidez, de autocegueira insensível, mas entram também imediatamente ao serviço da sua extrema oposição. Até a árvore que floresce mente no instante em que se percepciona o seu florescer sem a sombra do espanto; até o “como é belo!” inocente se converte em desculpa da afronta da vida, que é diferente, e já não há beleza nem consolação alguma exceto no olhar que, ao virar-se para o horror, o defronta e, na consciência não atenuada da negatividade, afirma a possibilidade do melhor (ADORNO, 2001, p. 19).
Assim, o Belo se corrompe em distrator das mazelas do real, associando-se ao
escapismo. Condenando tal atitude, Adorno elogia o horror como forma de denúncia e
de estímulo ao desejo de mudança para subverter a iniquidade vigente.
O posicionamento adorniano, que condena a primazia de conceitos tradicionais de
Belo, está em consonância com um axioma tornado epíteto por muitos artistas que o
sucederam: “a arte não é necessariamente bela” (READ, 1968). O autor de tal frase,
crítico e poeta inglês, é famoso por suas falas impactantes, relacionadas aos
descaminhos da arte na contemporaneidade, entre as quais se destaca que “o único
pecado é a feiúra”. No entanto, já que a arte não tem de ser bela, a feiúra pecaminosa
não se aplica à representação artística da fealdade, cuja mediação lhe garante valor
estético. Assim, pecado não é a luxúria, a avareza ou a arte com símbolos profanos,
como o expurgo intestinal. Pecado é a não-arte, feia por não ser Bela, no sentido de não-
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mediatizada na elaboração da forma. Aliás, a relação entre arte e beleza stricto sensu é
uma questão de contingência histórica, não parte da essência da arte.
Porém, tal discussão esbarra em outra muito mais profunda e típica da
modernidade. Enquanto no passado não apenas os críticos mas também os leigos
conheciam bem a distinção entre arte e não-arte, a partir do século XX tal barreira se
tornou muito tênue, sendo os casos limítrofes objeto de profunda discussão. Conscientes
disso, os artistas modernistas e contemporâneos investem cada vez mais na produção de
obras que não se encaixam nos ditames de harmonia e verossimilhança da arte
tradicional, mas sim de artefatos que questionam essas diretrizes estéticas.
Danto (2006) traça uma profunda reflexão acerca das mudanças do papel da arte,
do artista, do crítico e do esteta na pós-modernidade. Segundo o autor, vivemos uma era
de transformações no campo artístico, como revela o polêmico título de seu livro, Após
o fim da arte. Para evitar interpretações errôneas de sua tese a partir do título da obra,
Danto esclarece, logo na introdução, que
não era [seu] ponto de vista que não haveria mais arte, o que certamente significa “morte”, mas o de que, qualquer que fosse a arte que se seguisse, ela seria feita sem o benefício da narrativa legitimadora, na qual fosse vista como a próxima etapa apropriada da história. O que havia chegado a um fim era a narrativa, não o tema da narrativa (DANTO, 2006, p.5).
Antes da pós-modernidade, segundo Danto (2006), ser arte equivalia a estar
inscrito em uma narrativa oficial. Isso quer dizer ser filiado a algum movimento ou
seguir uma tendência eleita pelos historiadores da arte como digna de entrar para os
anais da história. Desrespeitar essas tendências dominantes ou não pactuar com algum
manifesto era sinônimo de marginalidade no campo cultural. Assim, o fim da arte é o
fim das regras que dizem o que é arte, de modo que “o contemporâneo é de determinada
perspectiva, um período de desordem informativa, uma condição de perfeita entropia
estética. Hoje não há mais qualquer limite histórico. Tudo é permitido” (DANTO, 2006,
p.5).
Essa multiplicidade levou Danto (2006) a opor a arte contemporânea à moderna,
afirmando ser esta pura e aquela impura. Nas palavras do autor,
Para ele [Greenberg], maturidade significava “pureza”, no sentido do termo que o relaciona exatamente ao que Kant pretendia com a ideia de “pureza” no título de sua Crítica da razão pura. Esta era a razão aplicada a ela mesma, sem nenhum outro tema. A arte pura foi, de maneira análoga, a arte aplicada à arte. E o surrealismo era quase que a materialização da impureza, ligado como estava aos sonhos, ao erotismo, ao inconsciente e, na visão de Foster, ao “sinistro”. Mas, sendo assim, pelo critério de Greenberg, a arte contemporânea é impura (DANTO, 2006, p.12).
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Ao citar o crítico norte-americano ligado ao Modernismo, Danto (2006) aponta
para uma obsessão moderna pela pureza dos meios, em uma arte que abandonou a
agenda representativa para assumir uma nova, em que os meios de representação se
tornaram o objeto de representação.
Enquanto a modernidade se debatia em busca da pureza, a pós-modernidade
aponta para uma arte multimodal, em que diversas mídias se cruzem na elaboração da
obra. No contexto do presente trabalho, uma das várias possibilidades engendradas pela
contemporaneidade se destaca: se um artista moderno podia escrever sobre as fezes ou
mesmo pintá-las, um artista pós-moderno poderia escrever ou pintar com as próprias
fezes, reeditando algo do Marquês de Sade ou das brincadeiras infantis com o próprio
bolo fecal. O modernismo propôs-se, como divisor de águas da arte, a sepultar tudo o
que fosse passado, celebrando as honras funerárias em um faustoso banquete de restos
mortais dos séculos passados. Já a arte pós-moderna da abjeção, empanzinada do
passado, põe-se a vomitar, defecar e exalar seu processo digestivo, não negando o
passado, mas reaproveitando-o e misturando-o a outras mídias, de modo a maculá-lo de
impurezas.
Em sua dinâmica de lúdica bricolagem com o impuro, a arte pós-moderna tem
relevante importância na cena contemporânea, como forma de levante contra o
embotamento humano e estético perpetrado pela indústria cultural.
Assiste-se, hoje, a uma desilusão crescente quanto ao acesso massificado a bens de
consumo e culturais, que outrora prometia ser uma revolução democrática da felicidade.
A prosperidade não chegou a todos, mantendo muitos à margem do processo; o que
chegou aos demais, por sua vez, tem qualidade e solidez risível. Mais do que benesses,
tal massificação trouxe o embotamento das faculdades críticas e criativas, como se
percebe na falência dos sistemas alternativos e opositores à sociedade de consumo.
Tomado no turbilhão da publicidade e na enxurrada de produtos culturais que nem
sempre convidam à reflexão, mas à recepção passiva de fórmulas fáceis e clichês, o
indivíduo é destituído da capacidade de se rebelar contra o sistema vigente.
No entanto, contra a torrente de excremento cultural e mercadológico lançado
sobre o indivíduo, levanta-se uma estética das fezes. Nesse sentido, pode-se falar de
uma politização do excreta, que serve de mecanismo de denúncia quando tornado obra
de arte.
Mais do que uma arte panfletária, a estética fecal, por meio do trabalho com o
abjeto, dando forma estética ao informe excrementício, revela-se eficiente protesto.
100
Defendendo posição semelhante a essa, Adorno (2003) afirma só compreender o
fenômeno estético
quando composições líricas não são abusivamente tomadas como objetos de demonstração de teses sociológicas, mas sim quando sua referência ao social revela nelas próprias algo de essencial, algo do fundamento de sua qualidade. A referência ao social não deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela (ADORNO, 2003, p.66).
Nesse contexto, cabe afirmar que, para Adorno, mesmo as obras radicalmente
alheias ao mundo material, como os sonetos parnasianos, os herméticos contos
modernistas ou o urinol de Duchamp, têm um posicionamento social claro. Como a
figura de retórica do lítotes, que nega para afirmar, a busca por uma palavra virginal,
imaculada pelo real, é um reflexo da sociedade, na medida em que, ao não ser objetiva,
denuncia a reificação do sujeito no mundo contemporâneo. Afinal,
em protesto contra ela [a reificação], o poema enuncia o sonho de um mundo em que essa situação seria diferente. A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, à dominação das mercadorias sobre os homens, que se propagou desde o início da Era Moderna e que, desde a Revolução Industrial, desdobrou-se em força dominante da vida (ADORNO, 2003, p.69).
Entendendo-se poesia em lato sensu, como um fazer inspirado, tal qual na raiz
grega, pode-se expandir o escopo das reflexões do pensador frankfurtiano para toda a
arte, o que incluiria as manifestações estéticas fecais. Assim, melhor do que um
manifesto contra a reificação da cultura, da arte e do sujeito pós-moderno, a arte do
escatológico é ainda uma força que se insurge visceralmente, produzindo, literalmente,
uma descarga de questionamentos contra o empobrecimento da reflexão e a reificação
do sujeito.
É, pois, no trabalho com a forma, prerrogativa da arte, que o disforme
excrementício sofre uma “metaformose” (SÍLVIO, 1997), tornando-se objeto (ou
abjeto) estético nas mãos de Rubem Fonseca e Wim Delvoye, cujas obras serão
estudadas nas próximas seções. Visceral em todas as acepções, o trabalho de tais artistas
denuncia a lógica da indústria cultural, revelando o quão malcheirosos são o
empobrecimento da arte e a reificação do indivíduo.
Literatura excretada
Recebendo a pecha de autor maldito e tendo seu livro de estreia censurado pelo
regime militar, Rubem Fonseca se acostumou a análises superficiais de sua obra, que
101
não a compreendiam, ou mesmo a repudiavam, por tratar de elementos geralmente
banidos para a esfera do marginal, como a violência, a pornografia e a abjeção. No
entanto, é justamente nessa mistura entre o profano dia-a-dia das metrópoles e a
(pretensamente) sagrada literatura que reside a força estética dos escritos do autor.
Porém, não só no plano do conteúdo, mas também no que diz respeito à forma,
Rubem Fonseca viola
permanentemente fronteiras – misturando tempos, espaços e remodelando continuamente identidades. (...) Ultrapassam-se as barreiras da autoria, incorporam-se outros códigos, como o da semiótica, o da filosofia ou o da cultura de massa, e absorvem-se recursos de outras linguagens, como a da fotografia e a do cinema (FIGUEIREDO, 2003, p.12).
Ao embaralhar as fronteiras da enunciação, Rubem Fonseca inscreve sua narrativa
em uma tendência pós-moderna de ambivalente turvação de limites, mesmo entre real e
ficcional, marca da esquizofrenia do sujeito contemporâneo. Aliás,
justamente esta indefinição de limites entre o real e o imaginário, além de construir o sintoma da desorientação do sujeito pós-moderno, nos atuais espaços desenraizados e caóticos, vai gerar, não apenas o deperecimento da percepção da alteridade, mas também a desarticulação imaginária do corpo. É que, frente à cortina de imagens da tecnologia, e de seus desafios à percepção humana, o sujeito vive na corda bamba do paradoxo. No perto-longe que as telas instauram, o corpo está sempre ameaçado. Ou pela imediação desmaterializada entre sujeito e acontecimento, em que a catástrofe assistida tem e não tem existência, porque não atinge o espectador, bem defendido da destruição alheia. Ou, ainda, pela potência do meio eletrônico, em que “a possibilidade de abranger as mais vastas extensões jamais percebidas (geográficas ou planetárias)”, ao engendrar “a ausência da percepção imediata da realidade concreta”, ocasiona “um desequilíbrio perigoso entre o sensível e o inteligível” (DIAS, 2007, p.13).
Ao desarticular o real e o ficcional, a arte pós-moderna desconjunta mesmo as
estruturas intrínsecas à constituição do sujeito. Tal desarticulação arraiga-se de forma
mais profunda na própria materialidade do texto: se a Linguística apregoa serem a
coesão e a coerência categorias fundamentais na compreensão do fenômeno textual, a
literatura contemporânea, por meio da estética do fragmento e da ilogicidade
intencional, subverte essas prescrições acadêmicas, instalando textos de ruídos.
De modo análogo, o próprio corpo, antes visto como um todo coerente e coeso, é
agora alvo de uma apreciação sempre parcial, fragmentando o sujeito em uma série de
objetos descontínuos. Negando o espelho lacaniano, no qual o indivíduo se identifica
como uno, a arte hodierna apreende-o de modo estilhaçado, oscilando entre as instâncias
de sujeito e objeto. Nesse contexto de ambivalência, as fezes desempenham um papel
sobrerrelevante, pois abrigam-se na fronteira entre o dentro e o fora do corpo, oscilando
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entre parte de um eu e de um outro e revelando a visão fragmentária do somático na
contemporaneidade.
Tal transgressão de limites gera situações de liminaridade, em que distintas
linguagens se hibridizam, como a interseção entre estética e escatologia, temática desta
dissertação. Aliás, de acordo com Rodrigues (2006), antropólogo que pesquisa as
representações do corpo, é a ambiguidade o que avilta o homem no que diz respeito ao
abjeto. As excreções – falas corpóreas – são repugnantes porque não são classificáveis,
oscilando entre o sólido e o líquido, o sujeito e o objeto, o prazeroso e o infeccioso.
Assim, o produto do trabalho artístico que se aproxima do produto da digestão,
imagem recorrente nos escritos fonsequianos, causa desconforto àquele que o
contempla, pois tem dificuldade de classificá-lo como arte ou não. Contudo, é na
impossibilidade de classificar ou nomear – visto que toda nomenclatura é per si
classificatória – que surge a metáfora, dizendo o indizível. É na ambivalência,
característica também do excremento, que a literatura opera, instalando ruídos, silêncios
e ambiguidades no seio da linguagem.
No contexto da metalinguagem, é importante observar que o tema da escrita em
Rubem Fonseca é quase sempre ligado às esferas sórdidas da condição humana, como o
crime, a doença e o abjeto, o que se percebe no trecho a seguir:
Nenhum escritor gosta realmente de escrever. Eu gosto de amar e de beber vinho; na minha idade eu não deveria perder tempo com outras coisas, mas eu não consigo parar de escrever. É uma doença (FONSECA, 1975, p.144).
Tal passagem pode ser aproximada de outra que se lhe antecede no texto, a qual
afirma que as palavras têm um efeito catártico, de alívio de tensões e pressões,
referindo-se especialmente aos palavrões. Nesse sentido, vale lembrar que, no discurso
médico, catarse indica a evacuação dos intestinos, o que nos remete diretamente ao
título do conto supracitado, que apresenta o órgão onde as fezes são preparadas para a
expulsão do corpo. Assim, o texto sinaliza para uma possível leitura de que escrever se
assemelha a defecar, visto que ambos os processos consistem em pôr para fora algo que
faz mal se reprimido. Ademais, tal conto é o último do livro no qual se encerra, como o
intestino que antecede o orifício terminal do sistema digestório.
Nessa narrativa, o autor ironiza as transformações radicais sofridas pela arte em
tempos de indústria cultural – especialmente a literatura –, de modo que a diegese se
inicia com um narrador que se depara com a comercialização excessiva da palavra e da
comunicação humana, como se percebe no excerto abaixo:
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Telefonei para o Autor, marcando uma entrevista. Ele disse que sim, desde que fosse pago – "por palavra". Eu respondi que não estava em condições de decidir, teria primeiro de falar com o Editor da revista. "Posso lhe dar até sete palavras de graça, você quer?" disse o Autor. "Sim, quero". "Adote uma árvore e mate uma criança", disse o Autor, desligando. Para mim as sete palavras não valiam um tostão. Mas o Editor pensava de maneira diferente. Foi combinado um valor por palavra, diretamente entre eles (FONSECA, 1975, p.135).
Ao longo da entrevista que o conto apresenta, o narrador-repórter entrevista um
autor de livros polêmicos, visto que não se enquadram em um modelo pré-fabricado de
literatura fácil e rapidamente digerível em tempos de indústria cultural. O autor fictício
é um claro alter ego de Rubem Fonseca, visto que também publica um livro chamado
Intestino grosso e é execrado pela crítica por seus escritos violentos e pornográficos,
permeados por imagens relativas às secreções humanas. No entanto, o conceito de
pornografia para o entrevistado não se liga às funções biológicas de reprodução ou
excreção, mas sim à obscenidade da vida desumana que levam os indivíduos esmagados
pelo sistema, como se percebe em “‘Já ouvi acusarem você de escritor pornográfico.
Você é?’ ‘Sou, os meus livros estão cheios de miseráveis sem dentes.’” (FONSECA,
1975, p.136).
Além disso, o autor personagem acusa a história de João e Maria, conto de fadas
eternizado pelos Irmãos Grimm no século XIX, de pornográfica, pois
é uma história indecente, desonesta, vergonhosa, obscena, despudorada, suja e sórdida. No entanto está impressa em todas ou quase todas as principais línguas do universo e é tradicionalmente transmitida de pais para filhos como uma história edificante. Essas crianças, ladras, assassinas, com seus pais criminosos, não deveriam entrar dentro da casa da gente, nem mesmo escondidas dentro de um livro (FONSECA, 1975, p.138).
Desconstruindo-se a narrativa feérica, reitera-se um novo conceito de pornografia
e obscenidade, o qual também pode ser encontrado nos escritos fonsequianos,
permeados pela violência brutal. Por meio de imagens chocantes ao decoro burguês, o
autor Rubem Fonseca e o autor que ele cria em “Intestino grosso” (FONSECA, 1975)
convidam-nos a questionar a sociedade em que nos inserimos, na qual o homem é
concebido como apenas mais um item a ser fabricado na esteira da produção.
Se a pornografia está nas atitudes humanas que reificam o outro, mais um
elemento de mercado na sociedade do consumo, a indústria cultural é pornográfica ao
extremo, por mais asséptica que se mostre aos olhos ávidos por diversão fácil e
desprovida de reflexão. Nesse sentido, as imagens do excrementício em “Intestino
grosso” (FONSECA, 1975) configuram um levante ideológico e fecal contra a
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pasteurização da arte. Após afirmar que as secreções humanas nada têm de indecentes,
sendo um processo natural, o entrevistado afirma que obsceno é vender para o público
ávido de sangue o momento íntimo de maior liminaridade de um ser humano: a
passagem da vida para a morte, no instante exato em que não se é mais um sujeito,
tampouco se é objeto.
A outra morte - dos crimes, das catástrofes, dos conflitos, a morte violenta, esta faz parte da Fantasia Oferecida às Massas Pela Televisão hoje, como as histórias de Joãozinho e Maria antigamente. Está surgindo, pois, uma Nova Pornografia, a que poderíamos denominar de Pornografia de Gorer (FONSECA, 1975, p.142).
A morte que deveria ocorrer por doença, na cama – cenário preferido da velha
pornografia – vem a público de forma histérica nos meios de comunicação em massa,
tornando-se um espetáculo – a nova pornografia. Em tempos como este, em que a
imoralidade do crime hediondo é o alimento por que clamam as massas nos veículos de
informação, o indecente não é o sexo ou a escatologia, mas sim a desumanização. Nesse
sentido, é emblemática a frase de Jean Baudrillard (1970), filósofo francês
contemporâneo, que diz que “O homem tornou-se o ânus do sistema de produção-
distribuição”. Sendo o homem o ânus da hipermodernidade, inclusive sua escrita pode
se dar de forma fecal, como uma última possibilidade de grito contra a lógica da
indústria cultural, ironizada pela metáfora do excrementício.
Natureza podre
Outro conto dedicado ao abjeto como denúncia do empobrecimento artístico no
contexto da indústria cultural, “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo” é um
marco na trajetória literária de Rubem Fonseca. Publicado pela primeira vez no livro Os
prisioneiros, o título da obra em que se encontra o conto é marcado pela ambivalência,
de modo que, em cada um dos textos que a compõem, as personagens são prisioneiras
de algo, seja do desejo, do consumo, do analista ou da indústria cultural.
Em “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo”, o protagonista que dá nome ao
conto é um pintor revolucionário, que, em lugar de se dedicar à natureza-morta, trabalha
com a natureza-podre, cuja técnica não é claramente explicada no texto. Embora não
haja descrições dos procedimentos, meios e materiais envolvidos nessa modalidade
artística, o narrador, por meio da polifonia, apresenta as reações dos críticos às pinturas
de Potocki:
105
É claro que havia pessoas para as quais a natureza-podre não passava de uma piada de mau gosto. Mas os seus defensores (e esses eram milhões) redarguiam que a arte não pode ser encarada do estreito ponto de vista estético das chamadas Belas Artes. Um crítico da província, certa ocasião, defendendo Potocki, disse que a arte era a natureza vista através de um temperamento e que a natureza–podre de Potocki era a sua visão particular do mundo. Outro crítico, este da cidade, explicou Potocki segundo a teoria de Einfuhlung, partindo do pressuposto de que todos os homens carregam dentro de si a podridão e outra coisa Potocki não fazia senão estabelecer uma empatia entre a podridão implícita na natureza humana e a criação estética. Mas é claro que não pararam aí as especulações dos críticos. A análise mais aceita na ocasião foi a de que a arte de Potocki derivava de um pavor atávico e supersticioso das forças misteriosas da natureza; através de sua arte, Potocki procurava aplacar os poderes hostis da natureza, rendendo-se a eles (FONSECA, 2004, p.73).
Pela fala dos críticos, percebe-se que a natureza-podre enquadra-se no paradigma
contemporâneo de arte do desgosto, em vez do gosto convencional, não seguindo, de
acordo com Read (1968), os ditames tradicionais do Belo. O conhecimento de outros
contos de Rubem Fonseca em que a arte é aproximada do excrementício fecal, como
“Intestino grosso” (1975), “Copromancia” (2001), “Luíza” (2006) e tantos outros,
permite uma possível leitura de que a natureza-podre de Potocki tenha alguma relação
com o expurgo intestinal, seja na temática ou nos materiais usados na pintura.
A própria fala do crítico da cidade ratifica essa possível interpretação, visto que a
pintura do artista resultaria de uma empatia entre uma podridão interna, carregada
dentro do corpo de Potocki, com a própria criação artística. Além disso, se sua arte
“derivava de um pavor atávico e supersticioso das forças misteriosas da natureza”, é
clara sua relação com componentes psíquicas da criação artística. Nesse contexto, é
reveladora a relação traçada pela psicanálise entre fezes, tintas e argilas, ligando pintura
e escultura à fase anal da sexualidade. Em um discurso freudiano, Potocki, tomado por
“um pavor atávico e supersticioso das forças misteriosas da natureza”, regrediria à
infância psíquica, revisitando mecanismos de saciedade sexual típicos dessa fase, como
a analidade. Tal retorno à infância está presente em outros trechos do conto, sempre
ligados às pulsões que levam o pintor a mirar a tela, pois “ele se lembrava que era
assim, dessa maneira, que, quando menino, olhava nos circos para os anões, os gigantes,
o homem tatuado, a mulher barbada” (FONSECA, 2004, p.76). Além disso, a referência
à infância, relacionando pintura e fase anal da sexualidade, está presente em outro
trecho do conto, segundo o qual “estranhamente, as crianças gostavam dos quadros de
Potocki. Os professores de desenho e pintura nas escolas primárias reportaram que todas
as crianças, sem exceção, estavam fazendo quadros à maneira de Potocki” (FONSECA,
2004, p.75).
106
Outro índice de que a arte de Potocki tem ligações com o fecal é a privacidade de
que o pintor depende para criar.
Ninguém jamais vira Potocki no ato de pintar. No entanto, ele não fazia nenhum segredo das tintas que usava, ou da técnica que empregava. Mas nem por isso os seus rivais e imitadores deixavam de dizer que a evanescência de seu cinza e a profundidade do seu negro indicavam o uso de algum ingrediente secreto (FONSECA, 2004, p.74).
Secreto – ou secretado – o ingrediente que Potocki misturava às suas tintas dava às
cores de suas telas profundidade, como se oriundas da profundidade do seu corpo.
Como no ato de defecar na sociedade ocidental contemporânea, Potocki se isola e pede
privacidade, de onde se deriva o termo “privada”, para pintar.
Pintar com o próprio excremento, reedição ficcional da escrita literalmente
visceral do Marquês de Sade, parece chocante a algumas sensibilidades. Porém, se a arte
é a tradução de um impulso interno do artista, por que não utilizar produtos do próprio
corpo como meio de expressão? Como visto no capítulo II desta dissertação, a
tatuagem, forma artística anterior a Cristo, usa a pele como tela de pintura. Por que,
então, não utilizar as fezes como tinta? Afinal,
diz-se que Picasso, a alguém que lhe perguntasse: “Mestre, o que faria, se estivesse na prisão, sem nada?”, teria respondido “Pintaria com meu cocô”. Isso ainda é dar forma ao informe. O excremento utilizado como cor é um pigmento entre outros, um pouco mais inabitual sem dúvidas. Ele tem aliás suas características: colorido como o ocre, untuoso como óleo, boa capacidade de cobertura e relativamente estável. A urina foi também frequentemente utilizada na fabricação de certas cores e nas pátinas em bronze. A urina de certas vacas, alimentadas com determinada erva, fornecia antigamente um amarelo sedutor e estável (CLAIR, 2004, p.31).
Dando forma ao informe, o artista estetiza o abjeto, louco e preso na masmorra,
como o autor de 120 em Sodoma, ou hipoteticamente encarcerado, como o pintor de
Guernica. Potocki precisava, no entanto, apenas de privacidade para pintar, talvez
devido ao esforço para expulsar de dentro de si sua obra, como se percebe no excerto
abaixo:
Ele mesmo não sabia ao certo o que queria dizer, mas o esforço para fazer cada quadro quase o matava; quantas vezes seu corpo tremera tanto que a espátula lhe caíra das mãos; ou sua vista escurecera e ele desmaiara para acordar horas depois no chão do estúdio. Como suportar, pois, frente aos seus quadros, homens perfumados fazendo piruetas, mulheres de voz estridente gritando adjetivos, umas às outras? (FONSECA, 2004, p.75).
A íntima relação entre a corporalidade e a pintura de Potocki fica clara no
momento em que criar lhe arrebata as forças e faz inclusive com que desmaie. Nesse
sentido, a própria palavra espátula, definida no Dicionário Houaiss da Língua
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Portuguesa (HOUAISS, 2001) como “instrumento de metal curvo e que se alarga na
extremidade, usado pelos estucadores para retirar o excesso de massa” serve de mais um
índice na narrativa, apontando para a possível pastosidade fecal envolvida nas criações
do protagonista.
No conto, o protagonista apresenta problemas com a recepção de suas obras, como
a reação “frente aos seus quadros, homens perfumados fazendo piruetas”. Se suas obras
são podres – e possivelmente mal-cheirosas – Potocki não julga apropriada a histeria
perfumada dos burgueses. Toda a narrativa é permeada por críticas mordazes ao
comportamento meramente consumista diante da arte. Em vez de fruírem-na e de
compreenderem-na na podridão (que) secreta, as pessoas apenas compravam os quadros
desenfreadamente, sem sequer entenderem do que se tratava. Despidas de valor de uso,
as obras de Potocki tornaram-se mercadorias, às quais os burgueses atribuíam apenas
valor de troca e ostentação.
Não ter um Potocki em casa, um pelo menos, passou a ser algo deselegante, mesmo vergonhoso. Pessoas sem posses compravam seus Potockis a prazo nas galerias, pagando juros extorsivos, onde os naturezas-podres espalhados pela parede criavam, diziam, um clima de humildade e paz superior ao da ascese (FONSECA, 2004, p.76).
Denunciada a mercantilização da arte, Rubem Fonseca acaba por fazer em
“Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo” uma espécie de conto-tese, que norteia a
compreensão de outros textos que o sucederiam. Como Potocki, pintor de natureza-
podre, Rubem Fonseca pinta muitos quadros da podridão humana em sua ficção, sendo
considerado um best-seller, apesar disso. No entanto, muitos dos que compram potockis
ou livros fonsequianos fazem-no só para atender a questões de status e moda, não por
verdadeira apreciação estética. É contra essa massificação da arte e reificação da cultura
que o autor de Os prisioneiros (FONSECA, 2004) se insurge, sugerindo, no conto ora
analisado, que somos todos prisioneiros dos ditames do mercado, instalado na forma de
um consumismo desenfreado depois da Segunda Guerra Mundial, especialmente no
âmbito cultural.
Nesse contexto, vale ressaltar, quanto à similitude entre Rubem Fonseca e Potocki
no que tange à mercantilização excessiva de sua arte, o excerto a seguir:
Enquanto isso os quadros de Potocki eram vendidos a peso de ouro. As pessoas faziam fila na porta do seu estúdio. Muitas vezes o quadro era levado, pelo comprador ansioso, sem a tinta ter secado ainda. Alguns de seus quadros foram vendidos por muitos milhões, como o “Getúlio Podre”, leiloado na sede do Partido Trabalhista (FONSECA, 2004, p.73).
108
Além da clara referência aos excessos dos compradores, motivados pela onda de
especulações acerca de Potocki, há outro ponto de convergência entre autor e
protagonista do conto: se o Getúlio podre foi uma pintura de grande sucesso no
universo ficcional, no mundo real Agosto, romance fonsequiano sobre a morte de
Getúlio Vargas, seria seu equivalente. Entremeado com fatos da história brasileira,
Agosto é fruto de árdua pesquisa de seu autor, mas a obra terminou, como os quadros de
Potocki, distante da apreciação estética cuidadosa, devido a adaptações malsucedidas
para a televisão e o cinema.
Todavia, a crítica é de mão dupla na escrita cáustica de Rubem Fonseca: se a
moda e a vaziez do mercado ditam o gosto dos compradores – não dos apreciadores –,
também iludem os próprios críticos de arte, que são alvo da mordacidade do autor.
Embora cada vez mais estudado nos dias atuais, o texto fonsequiano ainda esbarra em
algumas limitações da crítica, que em muito restringe seus vieses exegéticos. Nesse
sentido, é preciso delimitar duas tendências dominantes nas análises feitas de Rubem
Fonseca, as quais não dão conta do lirismo, da multiplicidade e da complexidade das
questões levantadas em sua ficção.
Um primeiro grupo de comentaristas encerra a escrita de Fonseca à denúncia da
violência nas grandes cidades, destacando-lhe a narrativa chocante e brutal, retrato de
uma sociedade em crise. Assim, constrange-se o texto literário à mera condição de
panfleto, de modo que o olhar sociológico acaba por negligenciar o valor estético de sua
obra.
Tal inobservância, no entanto, é potencializada ainda mais por uma segunda
corrente crítica, que questiona a própria literariedade da ficção do autor, associando-a às
fórmulas e clichês de best-sellers de baixa qualidade. Porém, de acordo com as
reflexões suscitadas por “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo”, essa associação
é fruto de estudo míope da recepção da obra, a qual valoriza apenas questões
mercadológicas e cifras, em detrimento de análises literárias consistentes.
Contudo, o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz (1993) posiciona-se a favor de
autores como Rubem Fonseca, cuja alta vendagem não implica decréscimo qualitativo.
(...) o valor supremo é o número de compradores de um livro. Ganhar dinheiro é legítimo; também o é produzir livros para o “grande público”; mas uma literatura morre e uma sociedade se degrada se o propósito básico é a publicação de best-sellers e de obras de entretenimento e de consumo popular. (...) Às vezes a popularidade coincide com a excelência da obra (PAZ, 1993, p.106).
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Potocki, apesar de ter suas obras consumidas desenfreadamente no atacado e no
varejo da indústria cultural, é um verdadeiro artista, capaz de questionar o cânone em
sua composição artística inovadora: a natureza-podre. Aliás, seu caráter inovador é
evidente no próprio nome que dá à sua forma de criação, visto que a podridão, oriunda
da putrefação, é algo que se sucede à morte; logo, a natureza-podre seria uma inovação
a partir do conceito tradicional de natureza-morta. Assim, como o protagonista do conto
ora analisado, Rubem Fonseca é autor de uma literatura do baixo, não de baixa
literatura, insurgindo-se no seio da ficção contra os ditames da indústria cultural.
O fecaloma de mamãe
Outro conto que confirma a qualidade de Rubem Fonseca em paralelo à sua alta
vendagem, “Luíza” é também objeto de análise neste trabalho, visto que tematiza as
relações entre o estético e o escatológico, valendo-se da metáfora fecal como meio de
subversão contra a indústria cultural.
“Luíza” foi publicado pela primeira vez no livro Ela e outras mulheres
(FONSECA, 2006), cujos contos se intitulam com antropônimos femininos em ordem
alfabética, como em uma agenda telefônica. A estrutura da obra sugere uma lista em que
a leitura dos nomes evocaria lembranças acerca de cada uma daquelas mulheres,
personagens centrais das narrativas, ora como vítimas ora como algozes. Mesmo na
diagramação da capa do livro a centralidade das personagens femininas é garantida,
com o pronome “ela” grafado em letras garrafais.
A breve narrativa conta a visita de Luíza ao narrador, seu ex-namorado, após dez
anos separados. Em diálogo com o protagonista de “Natureza-podre ou Franz Potocki e
o mundo”, Luíza fora, quando nova, artista acadêmica, pintora de naturezas-mortas e
escultora de figuras à moda renascentista. Nessa época, enquadrava-se no que se
esperava tradicionalmente de um artista em termos de criação estética e no que se
esperava de uma mulher quanto a ser casada e ter um amante, que, no caso do conto,
tratava-se do narrador.
Entretanto, Luíza resolve abandonar tudo e começar nova vida na Europa,
filiando-se a tendências pós-modernas de arte. Distante do academicismo de seu início
de carreira, a mulher muda seu estilo de viver e criar, mas manda uma carta ao ex-
namorado, agendando uma breve visita romântica. Anunciando seu regresso por meio
dessa mensagem, Luísa anexa uma foto sua, em que aparece com “o bigode postiço
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fininho encerado com as pontas para cima, um terno escuro, camisa branca, gravata
preta” (FONSECA, 2006, p.102).
Travestida de Salvador Dalí, a personagem suscita em ambos os leitores – da carta
e do conto – a angústia diante da ambivalência de sua imagem. Meio homem meio
mulher, Luíza, como os andróginos mencionados no Banquete (PLATÃO, 1945), é
poderosa, podendo invadir a morada dos deuses, como na narrativa grega, ou deflorar
seu parceiro masculino, como sugere o curto bilhete que envia a ele: “Chego no dia 28.
Quero te comer. Beijos. L.” (FONSECA, 2006, p.102).
A ambiguidade que permeia a foto tem eco na tessitura do bilhete, pois o verbo
“comer”, geralmente associado à prática sexual daquele que penetra, também pode, com
apoio em uma metáfora mais visual, ser associado àquele que recebe o órgão penetrante,
devorando-o. Além disso, em lugar de uma assinatura completa, apenas uma letra: “L”
de Luíza, com timbre aberto, ou mesmo “ele”, pronome masculino, com timbre fechado.
Tomado pelas incertezas e pela lubricidade, o narrador passa a esperar
ansiosamente a chegada de sua antiga namorada, agora transformada em uma grande
ambivalência. Como visto anteriormente, a liminaridade avilta o sujeito, pois mexe em
seu sistema de classificações e em suas certezas mais profundas. Assim, o homem que
espera a parceira sexual deleita-se e angustia-se ao mesmo tempo por esperar algo
híbrido que transcende as fronteiras de gêneros.
Da mesma forma, o limite entre o excrementício e o artístico é borrado no conto
por ação da personagem Luíza, transgressora que dá ensejo aos acontecimentos que
norteiam a narrativa. Após criticar toda arte que não fosse mais do que “exibicionismo
banal para chocar pequenos burgueses” (FONSECA, 2006, p.103), a moça afirma, em
uma carta ao narrador, citando famoso artista alemão do século XX:
Como Beuys, acredito que todo mundo é um artista em condições de determinar o conteúdo e o significado da vida em sua particular esfera, seja pintura, seja música, seja o que for. Quando minha mãe ficou doente ela teve um fecaloma, uma acumulação endurecida de fezes no cólon que não permitia que ela defecasse, nem com supositórios ou purgantes. O fecaloma tinha que ser extraído à mão, e eu fiz isso, arranquei com os meus dedos aquele bloco de fezes endurecidas do ânus da minha mãe, enfiando os meus dedos e quase a mão inteira pelo seu esfíncter, e quando terminei senti que aquilo que eu fizera era uma obra de arte e guardei o fecaloma numa lata que mandei lacrar e carrego comigo para todo lugar, como uma fonte de inspiração (FONSECA, 2006, p.103).
Na oscilação entre abjeto e objeto (artístico), Luíza imita Piero Manzoni,
enlatando determinado volume de excremento e fazendo dele uma obra de arte. No
entanto, diferente do artista conceitual italiano, o bolo fecal não é do próprio artista, mas
111
de sua progenitora, de cujo ânus é arrancado em um parto simbólico. Sendo a mãe um
símbolo de fertilidade, a obra parida pela mãe de Luíza é guardada pela parteira-artista,
de modo a assegurar fecunda inspiração em sua trajetória de trabalho estético com a
forma.
Além disso, em um estranho jogo com o Complexo de Édipo, Rubem Fonseca
ironiza como determinadas construções filosóficas ou científicas tornam-se máximas
entre o povo graças à ação pavloviana da mídia, que condiciona o sujeito a repetir várias
vezes a mesma frase, irrefletidamente. Embora Luíza tenha uma relação extremamente
íntima com a mãe, participando do parto de seu bolo endurecido de fezes, repete como
as massas uma simplificação excessiva da teoria freudiana: “mães existem para ser
odiadas, pergunte a seu psicanalista” (FONSECA, 2006, p.103). Ao manipular as fezes
maternas, a artista age de acordo com o pensamento de Joseph Beuys, pois determina na
esfera mais particular possível – a intestinal – seu conteúdo e significado.
Nessa desconstrução do mito edípico, o poder da arte, geralmente atribuído a Eros
e a seus componentes pulsionais, é deslocado para o mito psicanalítico da cloaca,
segundo o qual as crianças, incapazes de reconhecer a função sexual da vulva, creem
terem sido expelidas pelo ânus materno. Em lugar de uma força erótica geradora de
vida, deslocada da experiência sexual para a arte no fenômeno da sublimação, Luíza
deriva sua força criadora de uma cloaca simbólica, mistura de ânus e vagina por onde as
fezes e a inspiração artística são dadas à luz.
Inspirada pelo fecaloma materno, a artista não parou de produzir, encontrando
sucesso nos meios comerciais da arte.
Não sei se foi o fecaloma da mãe que lhe serviu de talismã, mas o certo é que Luíza passou a produzir incessantemente e a ser respeitada e convidada para as mais importantes exposições de arte moderna em todo o mundo. Davam-lhe o espaço que ela pedia para mostrar a sua produção, pois Luíza usava inúmeros materiais: um lago cheio de vitórias-régias e sapos; um pavilhão repleto de galinhas mortas e congeladas; um ganso gordo, cercado de latas de patê de foie gras e por dois indivíduos mascarados de bandidos que enfiavam comida por um funil pela goela do animal; um vídeo de closes de ânus pintados com batons de várias cores; um conjunto de poltronas velhas de forro furado; canos enferrujados retorcidos e outros objetos de demolição, como vasos sanitários e banheiras (FONSECA, 2006, p.104).
A temática fecal torna-se uma constante na arte de Luíza, ironia para os
descaminhos da arte na contemporaneidade e suas explicações academicistas, como a
palavra Zeitgeist (tradução para o alemão da expressão latina genius seculi), utilizada
pela moça para definir o que move sua produção. No entanto, apesar do sucesso
comercial da artista, o narrador sugere a efemeridade de suas obras, visto que sequer
112
consegue reter na memória os feitos artísticos de sua ex-namorada: “Essas eram
algumas das suas obras, as que eu me lembrava. Confesso que não acompanhava muito
de perto o seu trabalho. Sei que ela recebeu vários prêmios” (FONSECA, 2006, p.104).
Após Luíza pregar uma peça no ex-namorado, simulando uma ablação do seu
pênis em que ele ingenuamente acredita, o narrador também nos prega uma peça, visto
que, depois que o rapaz descobre ter seu falo ainda íntegro no lugar correto, apenas
pintado de amarelo, recebe um ambíguo bilhete, que simplesmente diz: “Sabe que dia é
hoje? Primeiro de abril. Eu te amo. Luíza” (FONSECA, 2006, p.108).
Se o dia da mentira serve para justificar a brincadeira da moça, também vale como
recurso narrativo, chamando atenção para o fato de toda a narrativa ser produto de
ficção. De maneira análoga, o fecaloma materno, os vídeos com ânus pintados de batom
e as demais manifestações artísticas de ordem fecal seriam apenas ludíbrios narrativos a
ironizar a duvidosa qualidade de parte do que se chama arte nos dias de hoje.
Museu cloacal
Como a abordagem de questões corpóreas na arte contemporânea não é
prerrogativa exclusiva da literatura, propõe-se, nesta seção, um diálogo intersemiótico
entre o literário e as artes plásticas, em busca de se compreenderem as diferentes
maneiras como o excrementício pode se tornar objeto estético e participar de um levante
contra a massificação e o empobrecimento oriundos da indústria cultural. Para tanto,
desenvolve-se aqui um cotejo entre os escritos de Rubem Fonseca acerca das fezes,
tema da presente dissertação, e o tratamento da mesma questão em Cloaca, obra de
título significativo idealizada por Wim Delvoye. Não se pretendendo exaustiva, tal
comparação visa a instigar reflexões dessa natureza de forma comparada entre a
literatura e as artes plásticas, figurando como um possível percurso de pesquisa em
estudos posteriores.
Polêmico como Rubem Fonseca, o artista belga Wim Delvoye vem chocando a
visão – e principalmente o olfato – da população mundial com sua mais polêmica
instalação, já exposta em alguns dos principais museus do mundo: Cloaca, uma
engenhoca de defecar, ilustrada abaixo na Figura 1:
113
Figura 1: Cloaca Fonte: Delvoye, 2002b
A obra consiste em uma maquinaria desenvolvida, segundo o artista, junto a uma
equipe de gastroenterologistas, cientistas e engenheiros da Universidade da Antuérpia
(Bélgica), tendo custado duzentos mil dólares. Sua estrutura tem doze metros de
extensão, dois metros de altura e quase três metros de largura, ocupando, quando de sua
primeira exibição, em 2002, um enorme salão no Novo Museu de Arte Contemporânea
de Manhattan, sendo responsável por enormes filas de curiosos pelo produto da digestão
humana.
A engenhoca se assemelha a um enorme laboratório: em uma ponta, um funil, à
guisa de boca, conduz a um mecanismo mastigador, que funciona como um triturador
de lixo; em seguida, um sistema de tubos e bombas se liga a seis sucessivos recipientes
transparentes, que contêm enzimas, bactérias, ácidos e bases, substituindo o estômago, o
pâncreas e os intestinos. Tal sistema se conecta, por fim, a um modesto gargalo, que
desemboca sobre uma esteira rolante, na qual cai o produto final dos processos
químicos e físicos que ocorrem no interior da máquina. Constituída basicamente de aço
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inoxidável, vidro e acrílico, a estrutura é em sua maior parte transparente, de modo que
os espectadores podem observar com clareza todas as etapas do processo digestivo
humano, reproduzido artificialmente pelo artista com apoio da ciência.
Em Nova Iorque, a máquina era alimentada duas vezes por dia, por entregadores
dos mais caros restaurantes do Soho nova-iorquino, mais exatamente às onze da manhã
e às quatro e meia da tarde, de modo a se assemelhar às duas principais refeições que
fazemos no dia, o almoço e o jantar. Infelizmente, a segunda refeição teve de ser
antecipada em algumas horas, para que pudesse se dar enquanto o museu ainda estivesse
aberto, diante dos curiosos espectadores. Assim, o funil-boca recebia o alimento sólido
intercalado com porções líquidas, de modo a não “engasgar” com a comida.
Segundo Riskin (2003), o momento de maior comoção, porém, não era o da
ingestão, visto ser essa uma prática que os seres humanos realizam em público há
milênios, sem qualquer reação de pudor ou nojo. Entretanto, às duas e meia da tarde, no
intervalo entre as refeições, a máquina, como um intestino invejavelmente pontual,
depois de uma digestão de quase vinte e duas horas, despejava, pelo gargalo final, o
produto de seu trabalho, metonímia da pretensa arte da indústria cultural: um bolo de
fezes, que Delvoye dizia não ser em nada diferente do que a maior parte da suposta arte
contemporânea vinha produzindo nos últimos anos.
Desse modo, o engenho defecante suscita, no âmbito da arte, uma questão que
permeia a multimodalidade típica da impura contemporaneidade:
Como se operou, quase sob nossos olhos, esse retorno do simbólico ao real? Por que se voltou da simbolização da imagem pintada ao real imediato da relíquia? Da obra ao objeto? Da representação de um indivíduo, que é da ordem da metáfora, a pintura, à presença de um fragmento de seu corpo, que é da ordem da metonímia, a relíquia? (CLAIR, 2004, p.90).
Em vez de uma simbolização do corpo, o próprio corpo, transformado em
máquina. Em vez de uma metáfora do homem, uma metonímia de seu intestino. Sob
esses aspectos, Cloaca insurge-se contra a reificação do indivíduo e da arte, voltando à
arte pré-histórica, quando a obra mantinha uma relação visceral com o artista, por vezes
sendo feita com partes do organismo humano, como no conto “Luísa”, de Rubem
Fonseca (2006), em que a protagonista torna artístico um fecaloma materno. No caso da
máquina de Delvoye, não se trata de fezes oriundas das vísceras humanas, mas
produzidas por ele em um enorme e caro intestino artificial. Transparentes, essas
entranhas de acrílico e vidro convidam o homem – literal e simbolicamente – a olhar
para dentro de si mesmo.
115
Se a indústria cultural lucra com a venda de milhões de exemplares de livros e
filmes compostos por fórmulas fáceis, os quais apostam em uma filosofia simplória
salvacionista, baseada no autoconhecimento, Delvoye mostra que tudo isso não passa,
literalmente, de excremento literário ou cinematográfico. Em vez de autoajuda e tons
pastéis, com receitas para conhecer o eu interior e ser feliz, Cloaca mostra quem
realmente somos por dentro e o que nosso corpo não para de produzir em suas
entranhas. Nesse caso, em lugar de um ambiente perfumado por incensos de lojas
esotéricas para possibilitar a busca do self, a instalação destila continuamente cheiro de
fezes, de modo que basta abrir os olhos e as narinas para conhecer-se a si mesmo – e os
meandros da defecação.
O desnudar-se excessivo, típico de uma hipermodernidade em que o íntimo não
mais existe por ser histericamente comercializado na mídia, serve, em Cloaca, para
denunciar o quanto cheiram mal – literalmente – os tempos de hoje. Em lugar de exibir
a vida pessoal de famosos ou uma releitura às avessas da torre do panóptico – como nos
reality shows televisionados, em que muitos vigiam poucos –, Delvoye usa a
transparência para mostrar-nos as entranhas humanas. Trazendo à baila o que deveria
estar segredado nos meandros do corpo, Delvoye e Rubem Fonseca repudiam assim a
ideia de que
determinadas coisas não serão nunca dadas a ver, partilham-se em segredo segundo um tipo de troca diferente do que passa em relação ao visível. No momento em que tudo tende a passar para o lado do visível, como se dá em nosso universo, o que acontece com as coisas que eram antes secretas? Elas se tornam ocultas, clandestinas, maléficas: o que era simplesmente secreto, isto é, algo a ser trocado em segredo, torna-se o mal e deve ser abolido, exterminado. Mas não pode ser destruído: de certo modo, o segredo é indestrutível. Ele vai ser, então, satanizado e vai passar através dos próprios instrumentos usados para eliminá-lo (BAUDRILLARD, 2001, p.35).
A pós-modernidade opera na histeria e na primazia da transparência, de modo que
ver e ser visto são as condições básicas da subjetividade contemporânea. Como
praticamente tudo é objeto de exposição e vira informação a ser consumida na Internet
ou na televisão, o que não se pode dar a ver, o secret(ad)o, ganha estatuto de demoníaco,
maculador e infeccioso, como os tabus em sociedades primitivas.
Isso se dá, por exemplo, com a absolutamente humana e inescapável excreção,
para a qual nossos corpos foram dotados de sistemas anatômicos complexos, dos quais
deveríamos nos orgulhar. Porém, marginalizada na apoteose do exibicionismo e do
voyeurismo de nossos tempos, a defecação é considerada pela maioria esmagadora uma
situação obscena – ou que merece ser mantida à margem da cena. Nesse contexto,
116
amplia-se a significação do vocábulo “cena”, pois, além de indicar uma situação
qualquer, essa palavra está intimamente ligada ao campo do espetáculo, do logro, da
ficção e da metáfora. Assim, o fecal é somente visto à luz do obsceno na
contemporaneidade, despido de qualquer dimensão simbólica, como a que pautava a
relação com o corpo na pré-história. Em lugar da “cena”, o expurgo excrementício só é
compreendido hoje como matéria a ser analisada em laboratórios médicos ou banida em
práticas higienistas.
Quando se está na obscenidade, não há mais cena, jogo, o distanciamento do olhar se extingue. Por exemplo, o pornográfico: é claro que aí temos o corpo por inteiro, realizado. Talvez a definição de obscenidade seria, pois, a de tornar real, absolutamente real, alguma coisa que até então era metafórica ou tinha uma dimensão metafórica. (...) Na obscenidade, os corpos, os órgãos sexuais, o ato sexual, não são mais “postos em cena”, e sim, grosseira e imediatamente, dados a ver, isto é, a devorar, são absorvidos e reabsorvidos no mesmo ato. É um acting out total de coisas que, em princípio, seriam objeto de uma dramaturgia, de uma cena, de um jogo entre parceiros. Aí, não há jogo algum. Não há dialética, nem distanciamento, apenas uma colusão total dos elementos (BAUDRILLARD, 2001, p.30).
Desprovido de qualquer caráter alegórico, ritualístico ou simbólico na pós-
modernidade, o abjeto foi feito obsceno, em suas múltiplas acepções. No entanto, a arte
contemporânea, seja na literatura, com Rubem Fonseca, ou nas artes plásticas, com
Delvoye, devolve os rejeitos metabólicos humanos à esfera cênica, revestindo-os
novamente com uma série de camadas de significações, tais quais textos do corpo a
serem lidos e interpretados.
Nesse contexto, é revelador o que escreve o ficcionista ex-policial na crônica “A
pornografia começou com a Vênus de Willendorf?”, publicada pela primeira vez no
livro O romance morreu (FONSECA, 2007b). Ao discorrer sobre a mais antiga
representação conhecida de um ser humano, a Vênus de Willendorf, estatueta de mulher
nua do paleolítico, o cronista denuncia o posicionamento de críticos pudicos, que têm
ojeriza à representação artística da excreção e da reprodução humana, bem como dos
órgãos utilizados pelo corpo para o desempenho dessas funções.
Seria esse escultor da Idade da Pedra que esculpiu a Vênus de Willendorf destacando e deformando as suas características sexuais “o primeiro artista pornográfico da História”, como querem alguns? “Mesmo comparada com as construções repelentes que os antropólogos fazem da mulher de Neanderthal, a Vênus de Willendorf é simplesmente repulsiva”, disse um historiador. Repulsiva? Por terem sido realçados os seus órgãos sexuais, certamente. O conceito de pornografia tem variado no tempo e no espaço, mas sempre subordinado ao corpo humano, sua nudez e suas secreções e excreções – esperma, fezes, urina –, refletindo o preconceito antibiológico presente, em maior ou menor grau, em quase toda a história da civilização (FONSECA, 2007a, p.12).
117
Não obstante as críticas puristas e uma tendência a tornar obsceno o que é ligado
ao baixo ventre, artistas do escatológico, como o escultor anônimo da Vênus de
Willendorf, Wim Delvoye, Rubem Fonseca, Patrícia Melo e tantos outros, devolvem ao
abjeto sua potência artística, semelhante à do sublime, em busca de representar o
irrepresentável, ou o informe, fora da faixa do simbólico, alheio a qualquer medida ou limite. Contudo, diferentemente da estética romântica e pós-romântica que trabalha a impossibilidade espiritual de conceber o grandioso na natureza ou na criação, a arte contemporânea, após um período de bloqueio cultural no pós-guerra, em que prevaleceu o que Hal Foster denomina de “falha no luto”, dedica-se à extrema materialização da dor e da fisicalidade, em toda a força de sua opacidade ao sentido (DIAS; GLENADEL, 2008, p.7).
Tais reflexões estão de acordo com o fio condutor da obra em que a crônica “A
pornografia começou com a Vênus de Willendorf?” se encontra: O romance morreu.
Sendo iniciado pelo texto “O romance morreu?”, que indaga o fim da literatura na pós-
modernidade, suplantada pelos mass media, o livro contém em seu título a resposta
afirmativa à pergunta central de sua primeira crônica, o que dialoga diretamente com o
segundo capítulo da presente dissertação. No entanto, a despeito do que uma primeira
leitura possa supor, Rubem Fonseca defende não o fim da literatura, mas a morte do
romance como o conhecemos, havendo uma mudança de meios, temas e fins na arte da
palavra. Como o título Após o fim da arte (DANTO, 2006), o livro de Rubem Fonseca
suscitou uma série de interpretações errôneas, que são facilmente desautorizadas pela
frase que encerra a primeira crônica do livro: “Os leitores vão acabar? Talvez. Mas os
escritores não. A síndrome de Camões vai continuar. O escritor vai resistir”
(FONSECA, 2007b, p.10). Desse modo, a arte fecal não revela o ocaso da elaboração
estética da forma, mas sim uma revolução no seio da arte para subverter a lógica
massificada e reificadora da subjetividade contemporânea: o expurgo excrementício
confirma-se, pois, não só na literatura, mas em todas as modalidades artísticas, um
levante contra a indústria cultural.
Ademais, a noção de transparência, presente na cruenta dicção dos narradores
fonsequianos e nos dutos e cilindros de Cloaca, vai mais além, pois no nível conceptual
a instalação de Wim Delvoye alude de forma clara, sem qualquer opacidade que se
interponha à interpretação,
ao próprio sistema atual da arte. Ou seja, um sistema em que importantes investimentos financeiros têm mobilizado profissionais para sua manutenção e que, no final, em teoria, não serve para nada, segundo o próprio Delvoye (...). Em Cloaca essa futilidade adquire um valor, torna-se passível de mais-
118
valia, seja simbólica ou econômica, assim como a obra de arte inserida na dinâmica de mercado (MORAES, 2006, s.p.).
O próprio artista belga afirma, em entrevista ao jornal Le Monde: “No caso de
Cloaca, todos colaboram para produzir nada além de excrementos. Os excrementos são
o que há de mais fútil.” (BREERETTE, 2005). Nesse contexto, o vocábulo fútil tem sua
etimologia revitalizada, a qual se perdeu no uso corrente do vocábulo. Em latim, futilis
designava aquilo “que deixa escapar o que contém”, segundo o Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa (HOUAISS, 2001), sendo derivado da raiz fund-, que dá origem à
palavra “fundo” e suas cognatas, como “fundamento” e “profundidade”. Assim, a
futilidade do excreta, que denuncia a inutilidade de grandes investimentos em
construções pseudoartísticas de gosto duvidoso, também aponta para os fundamentos e
a profundidade da arte, bem como para o fundo dos intestinos.
No que tange a tal crítica ao sistema atual da arte, em que vultosas somas são
direcionadas a projetos de qualidade questionável, segundo uma lógica do desperdício e
da futilidade, Rubem Fonseca, como Delvoye, vale-se da imagem do abjeto como égide
de uma crítica mordaz. Ainda no livro O romance morreu, o autor traz a público a
crônica “Macacos escritores”, que ironiza projetos artísticos e científicos de qualidade
duvidosa, respaldados pelo discurso do capital, nos quais o dinheiro, o tempo e o
esforço, tal qual o bolo fecal, descem descarga abaixo.
Mas não foi por aceitar, como Darwin propunha, o nosso parentesco com os macacos que Huxley criou a sua teoria, e sim porque acreditava, como matemático, no papel que o acaso desempenha na evolução e no processo criativo. Qual era afinal a teoria de Huxley? Muito simples: se um número infinito de macacos for colocado à frente de um número infinito de máquinas de escrever, os macacos acabarão produzindo as obras completas de Shakespeare. Desde então, vários matemáticos, depois de colocarem as devidas equações no computador, concluíram que a teoria da criação literária randômica dos macacos estava correta (FONSECA, 2007c, p.89).
No absurdo das engrenagens da indústria cultural, mesmo um artista como Aldous
Huxley, autor de clássicos da ficção científica, como Admirável mundo novo, Também o
cisne morre, Duas ou três graças e O macaco e a essência, advoga, segundo a crônica
de Rubem Fonseca, a tese de uma criação literária isenta do engenho humano ou dos
sussurros das musas, sendo composta randomicamente por macacos. Se a digitação
aleatória dos animais poderia compor até mesmo os primorosos poemas e peças de
Shakespeare, a tecnologia rapidamente prescindiria do trabalho dos primatas – macacos
ou homens –, de modo que a técnica alienasse arte e artista, relação indissociável por
119
excelência. Assim, na esteira da massificação cultural, equações seriam suficientes para
explicar, produzir e reproduzir o estatuto artístico, mero produto de uma aleatoriedade a
ser mensurada por cálculos probabilísticos.
No entanto, Rubem Fonseca, como o autor de Cloaca, desautoriza o frequente
discurso científico no meio artístico e intelectual da pós-modernidade, satirizando o
resultado real de experiências absurdas como a proposta por Huxley. Segundo o autor
de “Macacos escritores”,
a experiência foi feita com os macacos trancados durante um mês numa sala com computadores. A ideia era ter uma amostra do texto que eles iriam criar. Depois de um mês digitando as teclas dos computadores, os macacos não conseguiram produzir sequer uma palavra. Segundo o chefe da pesquisa, Mike Phillips, mostraram enorme preferência pela letra S, que foi a mais pressionada. Os macacos acabaram produzindo cinco páginas repletas de letras S e alguns, poucos, J, L e M (FONSECA, 2007c, p.91).
Tal trecho já bastaria como denúncia da infecundidade dos experimentos
científicos e do esclarecimento no campo da arte, dada a incapacidade das equações
matemáticas, auxiliadas por macacos e computadores, no sentido de produzir qualquer
coisa inteligível, quiçá um texto shakespeareano. Porém, para chocar o leitor e ratificar
de vez seu ponto de vista, Rubem Fonseca lança mão da imagem do abjeto, de modo a
ridicularizar a megalomania estéril da indústria cultural e seus planos de produzir em
massa, a baixos custos e em alcance global, fazendo do consumidor um animal tão
irracional quanto os macacos datilógrafos. De forma bastante irônica, a crônica
fonsequiana se encerra com as seguintes duas frases, que resumem bem seu espírito
crítico: “‘Outra coisa pela qual os macacos se interessaram muito foi por defecar e
urinar em cima do teclado’. Resumindo: por enquanto os macacos estão defecando para
a literatura” (FONSECA, 2007c, p.92).
A despeito dos investimentos milionários feitos no sentido de disponibilizar a
inverossímil quantidade de infinitos macacos diante de infinitos editores de texto, o
projeto advogado por Huxley malogra, dando origem a uma ilegível sequência de
poucas consoantes. Da mesma forma que isso prova a tolice de desenvolver equações
para tentar provar a absurda hipótese de o texto literário ser fruto de uma aleatória
combinação de caracteres, a imagem do abjeto ridiculariza também todos os envolvidos
na atual dinâmica da produção em massa de algo sem qualidade que se arvora em
literatura. Autores de best sellers açucarados, editores que bombardeiam na mídia
títulos repletos de fórmulas fáceis e leitores que optam por consumir obras que não lhe
demandem mais do que a fatura do cartão em muito se assemelham aos macacos que,
120
“por enquanto (...) estão defecando para a literatura”. Nesse contexto, vale atentar para
as múltiplas significações suscitadas pela imagem do excreta, que pode se assemelhar
ao produto pretensamente literário da indústria cultural, ou ao não-discernimento entre
literário e best seller fácil, turvamento frequente nos dias de hoje.
Assim, tal qual os escritos fonsequianos, a instalação de Delvoye, denunciando o
esvaziamento do homem observado na sociedade de consumo, dialoga claramente com
a mais célebre exposição de Piero Manzoni, que decidiu elaborar esteticamente seu bolo
fecal ao enlatá-lo e expô-lo em galerias e museus. Por fim, a decisão de Manzoni de
vender essas peças literalmente a peso de ouro – ditando os preços pela cotação do dia –
e o valor absurdo que se dá a tudo o que se diz arte são retomados em Cloaca. Levando
à potência máxima a desauratização (BENJAMIN, 1985) da obra artística, parte dos
bolos fecais expelidos pela máquina de Delvoye foram vendidos pela Internet no site
oficial, custando cada “bloco” mil e quinhentos dólares. Tal frenesi consumista, que
ignora o verdadeiro caráter do que se compra, atentando apenas para o status que a
mercadoria dá a seu possuidor, remete ao texto “Natureza-podre ou Franz Potocki e o
mundo”, analisado anteriormente neste capítulo. No conto, vultosas somas são pagas
pelas obras de Potocki, graças à especulação dos críticos, que em nada deixa a desejar
diante da especulação imobiliária, fundiária ou financeira. Incapazes de avaliar o que
adquirem, os indivíduos apenas queriam pendurar os quadros de Potocki em sua parede,
a despeito de eles em muito se assemelharem às fezes expelidas por Cloaca.
No que tange a tal corporificação do fetichismo da mercadoria (MARX, 1974),
teoria segundo a qual as mercadorias, mais do que os consumidores e os produtores,
teriam vida e vontade própria, regendo as relações do mercado, Delvoye foi ainda mais
ousado do que o personagem Potocki, o qual se limitou a vender a varejo suas obras.
Segundo Harri (2005), o artista belga, por intermédio do advogado Tim Laureys,
negociou junto à Comissão de Bancos, Finanças e Seguros Belga (CBFA), inserindo as
fezes expelidas por Cloaca na ciranda financeira e no mundo das ações e das bolsas de
valores.
Para isso, criou cartelas contendo três cupons cada, a serem vendidas por três
euros/cupom aos eventuais interessados que frequentassem as exposições de Cloaca. Ao
final de cada ano, os detentores de cupons poderiam trocar um desses “títulos de
capitalização” por seu dinheiro de volta, com juros de 1.3% ao ano e correção
monetária. No entanto, aqueles que optassem por passar três anos consecutivos sem
resgatar seu dinheiro poderiam trocar a cartela inteira por blocos de fezes expelidos pela
121
engenhoca defecante, embalados hermeticamente. Ironizando os absurdos do atual
mercado da arte,
Delvoye diz que vê “a arte como uma commodity que pode produzir lucros monetários ou simbólicos”. Depois de vender “trinta ou quarenta caixas de cocô logo após o lançamento de Cloaca em 2000”, diz ele, começou a se questionar se seria sempre “um pequeno camarão, se comparado à Microsoft’” (HARRIS, 2005, p.7).
Assim, na era extrema de mercado, tudo pode ser comercializado, inclusive fezes,
contanto que haja uma propaganda eficiente, como provam a engenhoca defecadora e a
especulação financeira em torno dos bolos fecais por ela expelidos. Ao capital, pouco
importa sua origem escatológica: segundo documentos encontrados nas escavações de
Pompeia e compilados por Zangemeister e Schoene (1871), o imperador romano
Vespasiano, ao implantar um imposto para a utilização dos banheiros públicos, afirmou
que “pecunia non olet” (“o dinheiro não fede”, em português”).
A crítica ao poder da propaganda e à nulidade da maior parte das coisas a que se
dá valor na contemporaneidade está presente no próprio logotipo de Cloaca, que reúne a
elipse azulada da Ford, renomada empresa automobilística; a fonte utilizada nos rótulos
de Coca-cola, com seu sinuoso “C”; e a imagem de Mr. Clean, logotipo de uma das
mais famosas marcas de produtos de limpeza no mundo. Tal justaposição de ícones da
indústria cultural e do capitalismo pode ser vista abaixo na Figura 2, que resume o
significado da máquina de Delvoye.
Figura 2: Logotipo de Cloaca Fonte: Delvoye, 2008
122
Esses três elementos pictóricos, retirados de produtos de vendagem massiva em
todo o mundo, formam uma metonímia da sociedade de consumo, sendo
complementados por um intestino estilizado, que resume com clareza o funcionamento
da máquina e o real valor que têm as mercadorias do paroxismo consumista.
Ainda no que tange ao logotipo de Cloaca, é interessante perceber que a
combinação desses elementos aparentemente desconexos, junto com o intestino
estilizado, dá origem à imagem de um gênio, criatura mágica frequente em narrativas
fantásticas. Não saído da lâmpada, mas das vísceras, o gênio de Cloaca também tem
formas gasosas, como os que se veem em desenhos animados. No entanto, o que nas
animações infantis é representado como vaporoso, a parte inferior do corpo da criatura
mágica, é no logotipo um intestino enrolado. Dessa forma, além de remeter ao
significado da máquina, à palavra “cloaca” e à crise da arte na indústria cultural, o gênio
das fezes sugere ainda os gases que são expelidos pelas vísceras, em sua habitual
atividade excretora.
Como praticamente todos os gênios da ficção, o de Cloaca também realiza
pedidos; todavia, não é preciso para tanto destampar uma garrafa ou esfregar uma
lâmpada, bastando adquirir por uma módica quantia um bloco de fezes expelido pela
máquina. Como testemunhas felizes das realizações de seus sonhos, Delvoye
disponibiliza em seu site depoimentos de contentes compradores de fezes, que tiveram
suas vidas renovadas após a aquisição do produto intestinal. Entre os oito testemunhos
divulgados, destacam-se alguns, dado o irônico absurdo de suas jubilosas afirmações:
“Depois de comprar Fezes Cloaca, consegui um emprego e um relacionamento saudável
e satisfatório” (S.K, apud DELVOYE, 2002a), “A Merda Cloaca é um must para
qualquer um com sérias aspirações no desafiador negócio da arte. Ela lhe possibilitará
cultivar um novo nível de energia pessoal e crescimento espiritual” (WEISS apud
DELVOYE, 2002a) e “Item único e colecionável que aumenta sua sexualidade e sua
autoestima” (LEIBER apud DELVOYE, 2002a).
Fictícias, as pessoas que aparecem fotografadas ao lado de seus depoimentos não
passam de personagens, como muito provavelmente ocorre na maioria dos programas de
televendas em que, por exemplo, indivíduos que jamais foram gordos atestam
sorridentes os milagrosos efeitos de fórmulas emagrecedoras instantâneas. Tal
semelhança com comerciais de televisão e programas de televendas convida o
espectador ao riso, haja vista a presença de fotos e nomes de cidades onde
pretensamente esses testemunhos foram colhidos, além do título dado à seção do site em
123
que se encontram esses dados: As seen on TV (“como visto na TV”, em português). Se
ver os sorrisos congelados de personagens de comerciais de eletrodomésticos,
suplementos alimentares e ferramentas multifuncionais já é jocoso, o humor é
potencializado ao se verem fotos de sujeitos sorridentes, que elogiam o bolo fecal
recém-comprado.
Nesse sentido, ao aproximar o riso e as fezes, Delvoye novamente dialoga com a
ficção fonsequiana, cujas escatológicas imagens, se não são chocantes, são pelo menos
hilárias, por seu caráter insólito, ou mesmo “insólido”, no caso das pastosas fezes. A
respeito dessa similitude entre o riso e o excrementício, que nascem, respectivamente,
na entrada e na saída do tubo digestivo, pode-se citar a passagem abaixo, extraída do
conto “Mandrake”.
Fui procurar a caixa de gargalhadas. Remexi o armário de roupas, a estante, muitas gavetas até encontrá-la na cozinha. Dona Balbina adora ouvir as gargalhadas. Levei a caixa para o quarto, deitei e liguei. Uma gargalhada convulsiva e inquietante, engasgada no goto, roxa, de alguém a quem tivessem enfiado um funil pelo ânus e as gargalhadas atravessassem o corpo e saíssem mortíferas pela boca, congestionando os pulmões e o cérebro (FONSECA, 2008, p.82).
Tal trecho não faz parte do enredo central da narrativa, configurando mera
digressão entremeada à progressão dos eventos relatados. Se o conto em questão se
enquadra no viés policial da ficcção de Rubem Fonseca, o trecho dele retirado nada tem
de detetivesco, mas sim de grotesco. Apesar de versar sobre estridentes gargalhadas,
estas não transmitem ao leitor qualquer sensação de bem-estar, mas sim de horror, dado
seu caráter sinistro. Nascidas no ânus, parecem reverberar ao longo das cavidades
corporais, ganhando uma intensidade de borborigma demoníaco e assustador.
Porém, além de chocante, tal trecho contém profunda reflexão filosófica, visto que
as hórridas gargalhadas não são humanas, mas sim artificiais. Semelhantes às fezes de
Cloaca, produzidas por uma máquina, as gargalhadas com que o personagem Mandrake
se depara estão intimamente ligadas ao mercado e ao capital, visto que são produzidas
em caixolas compráveis em qualquer loja barata, como os bolos fecais da máquina belga
adquiríveis na Internet ou por meio de cupons. Sendo o riso e as fezes falas do corpo de
um indivíduo, relacionar-se com elas de forma mediada pelo dinheiro é desnaturalizar e
inscrever no sistema financeiro o que há de mais íntimo e humano.
Ainda no que tange à intertextualidade, entendida pelo Manifesto Antropofágico
(ANDRADE, 1990) do Modernismo brasileiro como forma de digestão, Cloaca digere
124
– e defeca – significantes de outra obra de arte, uma estrutura maquínica projetada e
desenvolvida pelo engenheiro francês Jacques Vaucanson em 1738.
Vaucanson na infância aspirava a ser um relojoeiro, mas desviou seu interesse
após conhecer o cirurgião Le Cat, que lhe ensinou as artes da anatomia. Munido desse
conhecimento, o jovem francês que já construíra pequenas máquinas passou a se dedicar
à feitura de androides que imitassem funções biológicas, tais como a circulação, a
respiração e a digestão.
No que diz respeito a esta última função corpórea, destaca-se sua mais famosa
invenção: o Canard (“pato”, em português), composto por mais de quatrocentas peças
que se moviam em sincronia, incluindo asas, patas, pescoço e bico. A engenhoca, apesar
de estruturalmente complexa, envolvendo uma série de atrativos visuais, como o bater
das asas muito semelhante ao de aves reais, tinha seu maior trunfo não no belo, mas no
hórrido. O pato mecânico, se alimentado, expelia, após alguns minutos, um bolo fecal
(DOYON; LIAIGRE, 1966).
Tal máquina setecentista foi um grande sucesso quando de sua criação, de modo
que pessoas de toda a Europa acorriam ao salão onde se encontrava o autômato para
verem-no defecar, após ser abastecido com grãos e água. Apesar de sua alimentação não
ter sido tão refinada quanto a da máquina de Delvoye, que consome, diariamente, duas
refeições dos mais caros restaurantes das cidades em que é exibida, o resultado da
excreção era provavelmente bem parecido, em termos de cor, textura ou cheiro.
No entanto, do ponto de vista da recepção, reações e interpretações
diametralmente opostas se impõem às obras escatológicas separadas por quase três
séculos. Marcado pelo otimismo racionalista do século XVIII, o Canard
era apresentado e percebido, sem qualquer ironia, como um trabalho de filosofia experimental visando a compreender mecânica e materialmente o ser vivo. O Canard era também um objeto magnífico, uma obra de arte de virtuosidade mecânica, com penas de cobre martelado, um longo pescoço forte e gracioso e um porte majestático. Ele não inspirava a desilusão, mas a admiração; Voltaire comparou inclusive seu criador a Prometeu (RISKIN, 2003, p.52).
A filosofia iluminista via em engenhos dessa natureza o progresso, de modo que a
técnica se aproximasse cada vez mais de controlar e substituir o natural, sobrepondo-se-
lhe. Comparado a Prometeu, Vaucanson é também portador do fogo divino com o qual
o titã animou as criaturas por ele fabricadas sem o consentimento dos deuses.
Cloaca, por sua vez, é da mesma forma uma promessa de criação profana, mas
denuncia a vaziez da sociedade contemporânea, capaz de comprar fezes pela Internet se
125
o apelo publicitário for eficaz. Produzidos em série, os bolos fecais da máquina de
Delvoye se assemelham a itens de consumo como aqueles a que remete o logotipo da
engenhoca. Se o Canard celebrava o otimismo iluminista, Cloaca representa a desilusão
pós-moderna diante dos impasses da indústria cultural e do empobrecimento das
capacidades criativas, embotadas na ciranda financeira.
Infelizmente, o Canard logo se mostrou uma farsa: a comida ingerida pelo pato-
autômato não era por ele processada e transformada, armazenando-se simplesmente em
seu interior. Os excrementos por ele expelidos já estavam, de antemão, devidamente
alocados em um compartimento especial secreto, sendo simplesmente aberto o duto de
escape no momento certo (DOYON; LIAIGRE, 1966). Fraudulenta excreção, o invento
de Vaucanson revela muito mais: o fracasso das promessas da técnica quanto a produzir
um mundo mais justo. Já a máquina belga do século XXI, produtora de matéria fecal
genuína, revela o que há de mais assustador na contemporaneidade: a ciência e a
tecnologia podem muito, mas o resultado final, lançado à vertigem mercadológica
disfarçada de necessidade premente ou obra de arte, nem sempre cheira bem.
126
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Si l’ordure qui dore dans les champs fait or qui dure dans les allées citadines,
l’odeur de l’ordure dure là ou l’or dort”. Dominique Laport. Histoire de la merde, 1978.
“Car comment concilier la sublimité
avec l’abject du corps coutumier? Eh bien, il n’y a pas de sublimité,
mais de l’abject et du coutumier, et c’est tout”. Antonin Artaud. Suppôts et suppliciations, 1976.
Para situar-se no mundo, o homem, máquina compulsiva de fazer sentido, tenta
apreender o real de forma racional e ordenadora, estabelecendo limites e barreiras que
segregam arbitrariamente instâncias. Nessa empreitada que opera em sistema binário,
incluindo/excluindo cada objeto cognoscível, o sujeito depara-se com algo que não pode
ser encaixado em categorias predeterminadas, ou mesmo sequer compreendido: o
abjeto. A própria etimologia da palavra “imundo”, apontando para uma negação do que
seja desse mundo, revela que o impuro ambivalente não cabe na categorização operada
pelo esclarecimento, visto que turva e borra os limites norteadores da metafísica.
Rubem Fonseca, porém, passando seu texto não a limpo, mas a sujo, promove
uma literatura da abjeção, tira os excretas dos escondidos intestinos e lavabos e lança-os
no papel. Tal forma de arte da palavra, dessacralizando todos os preceitos canônicos do
gosto e instaurando uma estética do desgosto, arranca-nos à certeza das categorias fixas
e lança-nos ao turbilhão da dúvida, convidando-nos à reflexão.
Somente a náusea nos faria lúcidos. Nós faríamos da arte atual não a aprendizagem do gosto, mas a desaprendizagem do desgosto lentamente inculcado em nós quando crianças cuidadas pelos adultos. Retornaríamos à posição primitiva do primata, abaixado em direção ao solo, o órgão olfativo novamente vizinho da genitália (CLAIR, 2004, p.45).
De volta à postura de quatro, como os primitivos que tinham o nariz na altura da
genitália e do ânus, o leitor é posto, por meio da literatura fecal, em uma crise das
certezas racionalistas. Devolvido pelo abjeto à posição de gatinhas, o homem
reaproxima vocábulos como ofício e orifício, que perderam sua semelhança etimológica
no desenvolver da língua. Se aquele vem de officium, aglutinação de opus (“trabalho”,
em latim) e facio (“fazer”, em latim), este vem de orificium, aglutinação de os (“boca”,
em latim) e facio. Sendo semelhantes os fazeres da digestão e do trabalho, escrever
torna-se bastante parecido com defecar, em uma produção inescapável de discursos. Por
127
meio dessa fecal e inusitada metáfora, Rubem Fonseca zomba de sua arte, ao mesmo
tempo em que a dignifica como sendo tão humana quanto as funções fisiológicas.
Tal modalidade de escrita, ao retomar uma prática literária anterior ao papel, que
adota o corpo como suporte dos signos textuais, revela a impertinência de alardear o fim
da arte da palavra. Em vez de suplantada e destruída pela técnica e pela apoteose do
audiovisual, a literatura contemporânea ora se vale da tecnologia para fecundar o
terreno literário, ora, no caso da escrita fecal, refugia-se em um tempo em que a
captação do real se limitava a rabiscos no corpo e na parede das cavernas.
Discurso proferido não pela boca, mas pelo ânus, as fezes são uma modalidade
semiótica que faz o corpo falar. No entanto, quando tornadas matéria literária e suporte
textual, como nas obras de Rubem Fonseca e Patrícia Melo, cotejadas nesta dissertação,
as excreções intestinais fazem também a própria língua falar, devolvendo volume e
cheiro – como o excremento – à empobrecida linguagem cotidiana, à qual perdemos a
capacidade de reagir com estranhamento. Sendo a literatura uma forma (e fôrma) em
que as palavras se revestem novamente de poder encantatório e mesmo fetiche, perdidos
no desgaste do dia-a-dia, misturá-las às fezes garante-lhes um desaprender dos sentidos,
que são sempre repensados no contato com o belo e o hórrido. Afinal, não há como
passar incólume diante de uma obra de arte ou de um bolo recendente de esterco: assim
como servem de adubo à agricultura, os expurgos intestinais fecundam também o
campo das discussões estéticas.
Tal saber estético-escatológico é dominado pelos narradores-personagens de
“Copromancia” (FONSECA, 2001) e Jonas, o copromanta (MELO, 2008), capazes de
ler as fezes tal qual exegetas da latrina. Sendo essa uma prática de leitura intimamente
ligada à presciência do futuro nas obras em que se encerra, talvez a copromancia revele
um pouco do que o futuro nos reserva no que tange à qualidade do literário em tempos
de indústria cultural. Assim como as fezes, a maior parte das produções ditas artísticas
na contemporaneidade, seguindo não preceitos estéticos, mas mercadológicos, não
cheira bem.
Reeditando práticas milenares já revisitadas por artistas malditos, como Marquês
de Sade e Duchamp, a arte das fezes subleva-se esteticamente contra tal indústria
cultural, que pasteuriza obras e indivíduos, em uma semelhança nociva que por vezes
merece a descarga sanitária. Nesse sentido, confirma-se pertinente a leitura – entre
muitas outras possíveis – de que Rubem Fonseca e os demais artistas mencionados ao
longo desta dissertação se valem de fezes metafóricas para questionar e criticar os
128
excrementos culturais, rejeitos de um voraz apetite consumista e distribuídos às massas
hodiernamente.
No que tange ao futuro, tema predominante dos textos lidos na latrina pelos
copromantas fictícios, pode-se desenvolver esta pesquisa no sentido de cotejar a
elaboração estética que a literatura e as artes plásticas desenvolvem em torno do bolo
fecal, como já se ensaiou, embora de forma ainda muito embrionária, no último capítulo
desta dissertação. Em trabalhos futuros, pode-se ampliar o escopo de nomes dedicados à
arte fecal, incluindo, por exemplo, David Nebreda, Herman Nitsch, Otto Muhl, Gunter
Brus e outros artistas do grotesco intestinal. Assim, em vez de orifício final de um duto
de mão única, talvez Cloaca se revele muito mais um ponto de partida, ao lado das
literárias fezes fonsequianas, permitindo um percurso comparativo e intertextual entre
ler, ver, tocar e cheirar artísticos bolos fecais.
Outra possibilidade de trabalhos futuros estaria na interface entre Literatura e
Psicanálise, compreendendo como práticas sexuais ditas perversas, as quais por vezes
adotam as fezes como um item imprescindível do coito, não deixam de ser uma
fetichização dos significantes desse campo semântico no próprio texto literário. Desse
modo, o prazer derivado das fezes durante certas modalidades sexuais talvez se
confunda com o perverso prazer textual apregoado por Barthes (2006). Se tocar o abjeto
com a língua pode tornar o coito mais fascinante para alguns, também tocar as esferas
imundas da linguagem com a língua literária pode ser fonte de prazer intenso para os
leitores, voyeurs em estado pleno de excitação que assistem ao strip tease da linguagem
(BARTHES, 2006).
Nesse sentido, vale lembrar que a presente reflexão sobre o abjeto, a qual exige
um debruçar-se conceitual sobre o dejetório, é um olhar oblíquo sobre o que é inerente
ao humano, mas queremos esconder o tempo inteiro: o feio, o fétido, o informe. Tal
contato com o abjeto exorciza a própria abjeção, permitindo uma visão mais tolerante de
si mesmo e do outro, no que há de, literalmente, mais visceral: as fezes, e todos os
símbolos que elas constelam. Aceitar-se como homo cacans (FONSECA, 1994b) é um
longo e interminável processo de descoberta de si e da alteridade não só como aquele
que sapiens, mas como aquele que, além de saber, produz o hórrido.
Ademais, se é por meio de seus excrementos que os animais demarcam seu
território, defecando e urinando naquilo que julgam seu, olhar as fezes e os demais
discursos secretados por nosso corpo permite-nos entender como nos inscrevemos (e
escrevemos) no mundo. Ao chamarmos de “privada” ou “patente” a latrina onde
129
defecamos, reeditamos, a cada ida ao toalete, a posse sobre algo, desejo de pertença
inerente ao homem. Em tal medida, este trabalho revela-se uma reflexão sobre a própria
condição humana e sua relação com o entorno, metaforizada pelo inescapável processo
de circunscrição do real operado pelas fezes.
Assim, espera-se que este trabalho tenha funcionado como alva latrina, contra a
qual as fezes tenham sido lançadas e analisadas, como na fictícia arte da copromancia.
Em vez de mensagens divinas, no entanto, procuraram-se aqui significados e
significantes da própria arte do abjeto, em uma reflexão metaliterária que esclareça um
pouco mais a estetização da linguagem, tenha sido ela proferida pela boca ou pelo ânus,
extremidades opostas de um mesmo duto corpóreo.
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