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LITERATURA E ABJEÇÃO: UM ESTUDO DA IMAGEM DAS FEZES NA OBRA DE RUBEM FONSECA Vinícius Carvalho Pereira Rio de Janeiro Outubro de 2009

LITERATURA E ABJEÇÃO: UM ESTUDO DA IMAGEM DAS FEZES NA OBRA DE RUBEM FONSECA

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LITERATURA E ABJEÇÃO: UM ESTUDO DA IMAGEM DAS FEZES NA OBRA DE RUBEM FONSECA

Vinícius Carvalho Pereira

Rio de Janeiro

Outubro de 2009

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LITERATURA E ABJEÇÃO: UM ESTUDO DA IMAGEM DAS FEZES NA OBRA DE RUBEM FONSECA

Vinícius Carvalho Pereira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientadora: Professora Doutora Ana Maria de Amorim Alencar

Rio de Janeiro

Outubro de 2009

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Literatura e abjeção: um estudo da imagem das fezes na obra de Rubem Fonseca Vinícius Carvalho Pereira

Orientadora: Professora Doutora Ana Maria de Amorim Alencar

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Examinada por: _________________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Ana Maria de Amorim Alencar – UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes – UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor Adauri Silva Bastos – UFRJ _________________________________________________ Prof. Doutor João Camillo Barros de Oliveira Penna – UFRJ, Suplente _________________________________________________ Profa. Doutora Ângela Maria Dias – UFF, Suplente

Rio de Janeiro Outubro de 2009

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FICHA CATALOGRÁFICA

Pereira, Vinícius Carvalho. F676pe Literatura e abjeção: um estudo da imagem das

fezes na obra de Rubem Fonseca / Vinícius Carvalho Pereira. - Rio de Janeiro : UFRJ, 2009.

131 f.: il.; 30cm. Orientadora: Ana Maria Amorim de Alencar. Dissertação (Mestrado) UFRJ, Faculdade de

Letras, Departamento de Ciência da Literatura, 2009.

Bibliografia: f. 125-131.

1. Fonseca, Rubem, 1925 - - Crítica e interpretação 2. Fonseca, Rubem, 1925 - - Personagens 3. Abjeção na literatura. 4. Fezes na literatura. 5. Pós-modernismo. I. Alencar, Ana Maria Amorim de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.

CDD B869.35

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AGRADECIMENTOS

Se a jornada foi longa e árdua, ter chegado até aqui não é mérito só meu, mas de

todos os que estiveram comigo de corpo, alma ou intenção durante o percurso.

Agradeço, pois, a Deus, por ter sido sempre um companheiro tão presente, um

confidente tão fiel e um amigo tão próximo.

A minha orientadora, professora Ana Alencar, por ter me ensinado a ter menos

certezas, condição básica para ser um bom pesquisador. Além disso, agradeço-lhe todos

os bons conselhos, os insights brilhantes, as leituras atentas e a confiança no meu

trabalho.

A minha mãe, que me ensinou a juntar as primeiras letrinhas, segurar o lápis e ser

uma criatura cada vez mais linguageira. Sem as historinhas que ela me contava para

dormir, as brincadeiras para conhecer as sílabas e os trava-línguas e cantigas, eu não

seria hoje um homem encantado pela linguagem, suas manhas e artimanhas. Aliás, sem

essa melhor amiga eu não seria nada, sendo-lhe eternamente grato pelo dom da vida e

por muito do colorido que ela tem.

A meu avô e minha avó, que sempre encorajaram minhas conquistas escolares e

acadêmicas, desde meus desenhos canhestros do jardim de infância a esta dissertação.

Esses fãs, além do carinho incondicional, sempre estiveram ao meu lado, de tudo

fazendo para amparar minha caminhada.

Ao Cristiano, companheiro de todas as horas de alegria e tristeza que embalaram

este trabalho. Obrigado por estar ao meu lado, trazendo-me de volta ao rumo quando eu

me perdia e me ensinando a me perder um pouco quando a obsessão por seguir em

frente me tolhia os movimentos.

Aos amigos, que sempre me apoiaram e incentivaram a correr atrás de meus

sonhos. Na escola, na faculdade, no trabalho ou na vizinhança, esses entes queridos

sempre me disseram que valia a pena e continuam dizendo que eu ainda posso mais.

Obrigado por esse mais, que ainda nem aconteceu, mas já se instalou como desejo meu.

Aos primos e tios que me disseram a vida toda: “você pode”. Acabo de poder mais

um pouco, como este trabalho atesta, e quero poder cada vez mais.

Aos professores que me mostraram os poderes encantatórios das Linguagens e das

Artes, em cuja confluência se situa este trabalho. Obrigado por me apresentarem esse

grande amor que é a Literatura, da qual resolvi fazer uma forma de ler o mundo ao meu

redor.

6

A Rubem Fonseca, que deixou uma impressionante produção literária sobre a qual

tento produzir um pouco de saber (e muito de sabor, por que não?) neste trabalho.

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RESUMO

LITERATURA E ABJEÇÃO: UM ESTUDO DA IMAGEM

DAS FEZES NA OBRA DE RUBEM FONSECA

Vinícius Carvalho Pereira

Orientadora: Ana Maria de Amorim Alencar

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação

em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre

em Teoria Literária.

A obra de Rubem Fonseca é notória pela temática do baixo e do maldito,

envolvendo as esferas da violência, do erotismo e da abjeção. As duas primeiras

instâncias têm sido muito estudadas no meio acadêmico, havendo ampla discussão de

seu rendimento literário. A esfera do abjeto, no entanto, tem sido tratada com repulsa

pelos próprios críticos, que, na maioria das vezes, a ignoram ou a subestimam. Este

trabalho propõe, pois, uma análise do hórrido corporal na ficção fonsequiana, tomando

como objeto principal de estudo uma recorrente imagem dos contos e romances do

autor: as fezes. Discutindo suas dimensões literária, psicanalítica, filosófica e cultural,

esta pesquisa contribui para a compreensão de como o discurso do corpo torna-se

matéria artística no corpo do discurso fonsequiano, especialmente no que tange ao

secret(ad)o bolo fecal.

Palavras-chave: Rubem Fonseca, fezes, abjeção

Rio de Janeiro

Julho de 2009

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ABSTRACT

LITERATURE AND ABJECTION: A STUDY ON THE IMAGE

OF FAECES IN RUBEM FONSECA’S WRITINGS

Vinícius Carvalho Pereira

Orientadora: Ana Maria de Amorim Alencar

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação

em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre

em Teoria Literária.

Rubem Fonseca’s writings are famous for narrating and describing low and

accursed matters, involving the spheres of violence, eroticism and abjection. The first

two areas have been being studied by scholars, so that there is much discussion on their

literariness. The abject sphere, however, has been being observed with disgust by

critics, who usually neglect or look down on it. Thus this research poses an analysis of

the bodily horrid in Rubem Fonseca’s fiction, focusing on a recurring image of his

novels and short stories: faeces. Discussing their literary, psychoanalytic, philosophical

and cultural dimensions, this research contributes to understanding how body discourse

becomes an artistic matter in the body of Rubem Fonseca’s discourse, specially when it

comes to the secret(ed) faecal matter.

Key-words: Rubem Fonseca, faeces, abjection

Rio de Janeiro

Julho de 2009

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................11

CAPÍTULO I: O HORROR DA AMBIVALÊNCIA: AMBIGUIDADES, POLISSEMIAS E

RUÍDOS FECAIS...............................................................................................................................14

O HORROR DA DÚVIDA ......................................................................................................................14

EXPURGOS INTESTINAIS AMBIVALENTES............................................................................................21

PAIXÃO FECAL..................................................................................................................................29

NÚPCIAS ABJETAS.............................................................................................................................36

CAPÍTULO II: OS TEXTOS DO CORPO E O CORPO DO TEXTO: UMA LITERATURA

FECAL................................................................................................................................................46

A LITERATURA NÃO MORREU ............................................................................................................46

O CORPO TEXTUAL ...........................................................................................................................54

UMA ESCRITA VISCERAL ...................................................................................................................62

JONAS, O PLAGIÁRIO PLAGIADO .........................................................................................................74

CAPÍTULO III: O LEVANTE EXCREMENTÍCIO CONTRA A INDÚSTRIA CULTURAL.......88

A INDÚSTRIA CULTURAL: A COMERCIALIZAÇÃO DA CATARSE E A PERVERSÃO DA MIMESE....................88

O EXCREMENTÍCIO QUE BORRA A CULTURA DE MASSAS......................................................................94

LITERATURA EXCRETADA ...............................................................................................................100

NATUREZA PODRE ..........................................................................................................................104

O FECALOMA DE MAMÃE ................................................................................................................109

MUSEU CLOACAL ...........................................................................................................................112

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................................130

10

“Tu m’as donné de la boue et j’en ai fait de l’or”. Charles Baudelaire. Oeuvres complètes, 1968.

“Pour moi, tout a la même valeur, le diamant et la merde”.

Émile Zola, em célebre diálogo com Mallarmé

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INTRODUÇÃO

“Apportez-moi un orinal Et si verrai dedans le mal”.

Le Roman de Renart, 1985.

“Tout ce qui pue ne tue pas, tout ce qui tue ne pue pas”. Paul Brouardel. L’évacuation des vidanges, 1882.

O ato de escrever está associado a um contínuo processo de feituras e refeituras,

jamais se chegando a um objeto final estático ou perfeito. No que tange à composição

literária, tal elaboração torna-se muito mais intensa, visto ser a estética um valor que lhe

é inerente de forma primordial. Assim, o ofício de um escritor requer não apenas a

inspiração demiúrgica louvada pelos românticos, mas também técnica, precisão e

meticulosidade, passando a limpo o tempo todo o que se escreve, em versões cada vez

mais aprimoradas.

Todavia, passar a limpo também envolve, por vezes, passar o texto a sujo. Rubem

Fonseca, autor brasileiro da contemporaneidade, é notório pela urdidura de textos

eivados de brutalidade, sexo e escatologia, geralmente combinados em uma profusão

caleidoscópica de cenas chocantes ao status quo. Em sua obra, o que causa repugnância

e horror é tornado matéria literária de alta qualidade, rompendo convencionalismos

artísticos. A contemporaneidade assiste, assim, a uma potencialização das rupturas com

o que se considera matéria digna da literatura, a qual passa a incorporar temas antes

restritos à esfera do marginal.

Nesse contexto, a presente pesquisa adota como objeto de estudo a ficção

fonsequiana voltada para o baixo somático, mais especificamente para as fezes, dada a

exiguidade de trabalhos sobre o tema, acreditando que tal escassez se deva a

preconceitos intelectuais e à falta de bibliografia especializada acerca da estetização

fecal. A opção pela temática das fezes se justifica pelo caráter múltiplo desse excreta,

ora associado ao sagrado, ora ao profano; ora vinculado à arte, ora ao brutalismo; ora

marcado pela repulsa, ora pelo desejo; ora preso ao sujeito, ora ao objeto; ora prazeroso,

ora infeccioso. Desse modo, a literatura fecal questiona o posicionamento do leitor

frente à excreção e, por conseguinte, frente aos rejeitos – inclusive humanos – da

sociedade em que vivemos, questão fulcral em uma pós-modernidade de pessoas e

mercadorias descartáveis.

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A despeito da escassez de estudos sobre o expurgo intestinal como imagem

literária, esse é um viés de extrema importância na compreensão não só do estatuto

humano, como também do artístico, visto que a escatologia está presente no trabalho

estético desde a origem da humanidade, sendo tão inescapável como a necessidade de

evacuar periodicamente. Do ponto de vista literário, há ainda outro fator que justifica a

realização desta dissertação: a necessidade de compreender como um texto defecado

pelo corpo, por meio das palavras-fezes, pode devolver materialidade, densidade – e

talvez cheiro – à linguagem, tornada incolor, inodora e insípida na comunicação

cotidiana. Ao falar literariamente sobre fezes, latrinas ou algo que o valha, a linguagem

acaba por falar sobre si mesma, em um debruçar-se metalinguístico semelhante ao que

fazem as pessoas que se dobram sobre a latrina para observar seu bolo fecal. Assim,

analisando a estetização do aparentemente desprovido de beleza, esta dissertação visa a

compreender de que maneira a literatura interroga a si mesma e ao homem, seu começo

e fim, por meio da imagem do abjeto intestinal, que, causando repulsa e angústia,

convida à incerteza e à reflexão.

Passar o texto a sujo, no caso dos contos de Rubem Fonseca, implica borrá-lo:

tornar imprecisas e relativas as balizas que norteiam o pensamento do senso comum.

Diferente de outros autores contemporâneos, que se valem da imagem das fezes apenas

de forma fácil e apelativa, com a escatologia como um chamariz para vender mais, as

obras do ficcionista mineiro, ao embaralharem as fronteiras entre o hórrido e o belo,

entram na esfera da ambivalência. Tal fenômeno de liminaridade entre duas instâncias é

tema do Capítulo I desta dissertação, que interroga de que modo o autor emprega, na

composição de seus textos, a duplicidade como estratagema estético, capaz de chocar e

embevecer ao mesmo tempo.

Dando prosseguimento à discussão da ambivalência excrementícia, que questiona

os arbitrários sistemas de ordenação do real e promove ambiguidades e polissemias

caras à arte, o Capítulo II versa sobre o expurgo intestinal como linguagem artística do

corpo, opção temática e estética da pós-modernidade. Tal dicção do sujo, por alguns

compreendida como uma corrupção do suposto papel da arte, é na verdade um

manifesto pelas múltiplas possibilidades que a contemporaneidade enseja, indicando

renovação no campo do literário, e não crise ou morte do trabalho estético, alardeados

improcedentemente à guisa de apocalipse.

Em oposição a teorias alarmistas de que a pós-modernidade assistiria ao derradeiro

fim da produção artística, suplantada pelo audiovisual e pela técnica, a literatura

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contemporânea revela apenas haver mudanças no que se entende por arte da palavra,

mesmo que se trate de escritos sobre fezes. Nesse sentido, destaca-se a obra de Rubem

Fonseca, promovendo uma discursividade somática que, de acordo com o recorte desta

dissertação, se configura não só como literatura sobre o excreta, mas como uma

verdadeira escrita fecal. Assim, no Capítulo II desta dissertação, investiga-se de que

modo o protagonista do conto “Copromancia”, um analista de fezes que nelas percebe

poesia e literariedade, indaga as múltiplas e inesgotáveis possibilidades literárias, seja

no suporte audiovisual, temido por tantos críticos conservadores, ou mesmo no vaso

sanitário.

Para fins de análise, julgou-se produtivo o cotejo do escritor ex-policial com outra

autora contemporânea, Patrícia Melo, que produziu um romance em diálogo direto com

o conto fonsequiano: Jonas, o copromanta. Versando também sobre um analista de

fezes, que as trata como fino texto literário, a narrativa da autora tangencia ainda outros

pontos caros à estética do abjeto, como a ambivalência que lhe é cara e sua relação com

a renovação não só de temas e técnicas, mas também de suportes do literário, seja no

papel, na tela ou mesmo na latrina.

No Capítulo III, em continuidade aos dois anteriores, situa-se a discussão acerca

das fezes no panorama da produção cultural contemporânea, marcada pela indelével

mancha da cultura de massas. Desse modo, investiga-se como a estética do abjeto pode

configurar um levante contra a indústria cultural e suas fórmulas fáceis, condenando o

quão fecal e merecedora de uma descarga é a pseudoarte que embota a reflexão humana.

Massa informe muitas vezes flutuante – e por que não fluvial? –, o bolo fecal pode, na

tela, na página ou no museu, instalar silêncios, ritmos e multiplicidades, os quais

obstruem a leitura fluviante e flutual (NETO, 2008), frequente prática em tempos de

indústria cultural.

Por fim, na conclusão, traçam-se as considerações finais acerca deste trabalho e de

seus percursos intelectuais, que, como a imagem das fezes, convidam a ler e cheirar a

literatura do abjeto com bons olhos e narizes. Espera-se, pois, que a mancha negra da

tinta, que fecunda o papel ao macular sua brancura, seja na arte, na crítica, na teoria, ou

mesmo nesta pesquisa, deixe indelével escrita de saberes e sabores sobre o homem e a

linguagem, como a escura massa fecal, ao chocar-se contra a alva latrina.

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CAPÍTULO I: O HORROR DA AMBIVALÊNCIA: AMBIGUIDADES, POLISSEMIAS E RUÍDOS FECAIS

“Que sont pour la nature notre laid et notre beau, notre propre et notre sordide? Avec l’immondice, elle crée la fleur; d’un peu de fumier, elle nous extrait le grain béni

du froment”. Jean-Henri Fabre. Souvenirs entomologiques, 1989.

“Le déchet est un peut-être”.

Jean Gouhier. Géographie des déchets : l’art d’accomoder les restes, 1984.

O horror da dúvida

O ser humano, a fim de sentir-se confortável e de fato pertencente ao mundo que

habita, esforça-se o tempo todo para atribuir-lhe significado lógico. Para isso, sua mente

opera como uma máquina de fazer sentido, tentando explicar, de acordo com preceitos

racionais, o que se passa consigo mesmo e em torno de si. Dessa forma, o aparelho

psíquico concentra suas funções conscientes na introjeção de representações e na sua

decodificação em uma sintaxe coerente, o que nos torna muito vulneráveis ao nonsense,

que não se permite traduzir em categorias pré-existentes.

Para tanto, as sociedades criaram e criam, até hoje, narrativas mitológicas,

entremeadas à religião, para justificar o surgimento de tudo, inclusive do próprio

universo. Seja o espírito do Deus cristão, que separou os céus e a terra por ação do

Verbo, ou o enlace grego entre Urano e Geia, que deu origem aos primeiros deuses, o

mito

relata como, graças às façanhas dos seres sobrenaturais, uma realidade chega à existência, seja a realidade total, o Cosmo, ou somente um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. Portanto, é sempre a narrativa de uma “criação”: conta-se como alguma coisa foi produzida, como começou a ser (BRUNEL, 2000, p.15).

Narrativa sem autor, produzida no seio da tradição, o mito é uma prática

extremamente ligada à poesia e à literatura, voltada a dar sentido coletivo a um

acontecimento, que pode ser de cunho geral ou mesmo particular. No seio do mito,

poiesis e práxis são palavras ressignificadas, perdendo a antinomia que lhes é

frequentemente atribuída, polarização que ora pendeu para um lado ora para o outro ao

longo da história da filosofia e da literatura.

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De acordo com sua raiz grega, poiesis geralmente é associada ao fazer estético e à

criação poética, estando relacionada a uma produção singular, de caráter não rotineiro.

Além disso, tal confecção pode estar ligada a processos orgânicos, como revelam as

formas “galactopoese” (produção de leite), “hematopoese” (produção de hemácias) e

“leucopoese” (produção de leucócitos). Assim, fruto gerado de maneira singular nos

meandros do corpo, a poiesis se oporia à práxis, entendida como uma ação de caráter

rotineiro, o que caracteriza a vida em grupo, como a política (ARISTÓTELES, 1997).

Assim, de práxis se originam termos como “pragmatismo”, “prática” e “praxe”, todos

ligados muito mais à esfera do coletivo do que à do indivíduo.

Unindo ambas as esferas, o mito seria capaz de dar dimensão particular e geral a

uma explicação, de modo a reconciliar o sujeito com o todo. No entanto, o pensamento

mítico foi, ao longo da história, desvalorizado frente ao pensamento científico,

supostamente mais preciso e condutor à verdade. Apesar de expor boa parte de seus

pensamentos na forma de alegorias e narrativas, como a Alegoria da caverna (1999) e O

banquete (1945), Platão, ao afirmar haver uma verdade única a ser descoberta por trás

das ilusões, lançou bases para o racionalismo que enfraqueceria a instância mítica na

vida humana.

Assim, a procura desenfreada pela razão, conduzida com veemência pelo mestre

de Aristóteles e reeditada ao longo das épocas na forma de Renascimento, Iluminismo,

Positivismo e tantos outros movimentos intelectuais, potencializou a busca humana de

entendimento. Entretanto, não mais narrando em torno da fogueira, o homem tomado

pelo racionalismo passou a nomear de ciência sua prática intelectual, desprezando tudo

aquilo que não se encaixasse nesse arbitrário modelo de saber. Nas palavras de Adorno,

no sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber (ADORNO, 1985, p.17).

Angustiado pela consciência obsessivamente significadora, que não aceita a

contingência e a fortuitidade, querendo a tudo imputar uma causa e uma consequência,

o homem moderno faz da ciência seu fio de Ariadne no labirinto da vida, chamando de

obscuro ou infantil todo ato ou pensamento que não se guie por pressupostos da lógica

formal ou métodos sistemáticos. Porém, o que não percebe o homem é que

os mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram produto do próprio esclarecimento. No cálculo científico dos acontecimentos anula-se a conta

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que outrora o pensamento dera, nos mitos, dos acontecimentos. O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar. Com o registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato, para se tornarem uma doutrina. Todo ritual inclui uma representação dos acontecimentos bem como do processo a ser influenciado pela magia. Esse elemento teórico do ritual tornou-se autônomo nas primeiras epopeias dos povos. Os mitos, como os encontraram os poetas trágicos, já se encontram sob o signo daquela disciplina que Bacon enaltece como o objetivo a se alcançar (ADORNO, 1985, p.20).

Tanto o pensamento mítico quanto o científico são tentativas de apreender o real

de forma mediada pela razão, em uma eterna busca por controle. Para o ser humano,

conhecer é a forma mais pura e completa de dominar. Assim, à medida que o homem

avançou no desenvolvimento dos mitos e, posteriormente, da ciência, aprimorou a

taxonomia do real, categorizando coisas e pessoas em classes estanques e inflexíveis.

No fundo, toda revolução na história é uma tentativa de se livrar de um rótulo

aprisionador, oriundo da obsessão humana por dividir e etiquetar. Lutou-se contra a

segregação dos rótulos de “judeu”, “herege”, “colônia”, “negro”, “índio”, “mulher”,

“gay”, em busca de restaurar a dignidade de outrora, uma vez perdida quando se deu

nome à diferença. Afinal, já havia não-cristãos, não-heterossexuais e não-brancos no

passado, mas apenas quando o homem se deu conta da diferença – e passou a nomeá-la

– foi preciso segregar. A intolerância, mesmo que disfarçada sob a máscara da

tolerância ao exótico, termo por si só discriminador, está sempre associada àquilo que

não se encaixou na ordenação fechada do mundo.

No entanto, o fervor classificatório humano, em vez de aproximar o sujeito do

real, em oposição à fantasia, afasta-o dele. A crença de que é preciso explicar o mundo

gera nos homens “o pensamento de uma insuficiência do real”, ou o sentimento de que a decifração da realidade só se dará com o apoio de instâncias exteriores a ela (...) porque passa a ser tratada, ao mesmo tempo, como inesgotável e escassa. Esta desvalorização do real imediato é, então, considerada por Rosset como sintoma do “princípio de realidade insuficiente” que constitui o credo comum a toda denegação filosófica do real. Por extensão, esta atitude negadora e suspeitosa diante da realidade encontra-se na base de todo o pensamento tecnocientífico, de todas as teorias-mães dos aparelhos tecnológicos e da espectralidade que eles produzem (DIAS, 2007, p.19).

Ao explicar o real de acordo com os pressupostos científicos, o homem tem de se

afastar dele, de modo que possa operar com distanciamento crítico e objetividade

analítica. Tal prática, porém, acarreta uma perda, tornada sistemática no mundo de hoje,

em que só se olha o entorno pelas lentes da ciência ou pelas telas do computador ou da

televisão.

17

Distanciado do real por uma mediação racionalista, o sujeito tenta subjugá-lo, por

meio da classificação e da ordenação, valores máximos na visão positivista. Nesse

sentido, a própria linguagem desempenha papel preponderante, visto que toda língua

funciona sob uma lógica classificatória, de sorte que nomear é, por si só, um ato de

rotular um objeto em determinada classe, fechando-lhe as múltiplas possibilidades em

um nome arbitrário. Em tal contexto, destaca-se o caráter iluminador da citação de

Chesterton, escritor inglês do final do século XIX, presente na conclusão do célebre

conto “O idioma analítico de John Wilkins”, de Borges:

O homem sabe que há na alma matizes mais desconcertantes, mais inumeráveis e mais anônimos que as cores de um bosque outonal... Crê, no entanto, que esses matizes, em todas suas fusões e conversões, podem ser representados com precisão por meio de um mecanismo arbitrário de grunhidos e chiados. Crê que mesmo de dentro de um corretor da Bolsa realmente saem ruídos que significam todos os mistérios da memória e todas as agonias do desejo (BORGES, 1984, p.117).

A linguagem humana, meio por excelência da organização do pensamento, é a

ferramenta mais antiga e taxativa utilizada na empreitada de ordenação e catalogação do

real. Sua eficiência se deve ao fato de que é impossível escapar à linguagem, pois ela é

ubíqua, um sempre-já do qual não há fora. Assim, toda língua é opressora e fascista

(BARTHES, 1994) por ser um sistema arbitrário de classificação, limitando as

possibilidades de expressão e obrigando o falante a determinadas construções. O

linguista russo Jakobson, por exemplo, disse que um idioma se define mais por aquilo

que obriga a dizer do que pelo que permite expressar.

A própria Antropologia, influenciada pela corrente saussuriana de pensamento, vê

hoje a vida social como um “sistema no qual a razão de ser dos elementos que o

constituem é significar; da mesma forma, considera-se que as relações entre esses

elementos significantes são sempre produtoras de significação” (RODRIGUES, 2006,

p.17), catalogadas em categorias linguísticas. Assim, a operação mental e social de

classificar está intimamente ligada à faculdade humana de nomear. “Classificar consiste

nos atos de incluir e excluir. Cada ato nomeador divide o mundo em dois: entidades que

respondem ao nome e todo o resto que não” (BAUMAN, 1999, p.11). No entanto, tal

violência contra o mundo nunca é totalmente bem-sucedida, havendo um refugo que

escapa ao afã ordenador e causa horror ao homem: a ambivalência.

Rubem Fonseca, autor cuja produção se analisa na presente dissertação, torna tais

arbitrariedades da língua – e os problemas das classificações do real em categorias

estanques – matéria literária em sua ficção. No conto “A opção”, por exemplo,

18

publicado pela primeira vez em 1965, no livro A coleira do cão, a problemática das

limitações impostas pelo idioma vem à baila.

O conto narra uma breve reunião entre especialistas da área de cirurgia plástica

genital, discutindo sobre a necessidade de definir um único sexo e um único gênero para

uma criança nascida hermafrodita, compatibilizando ambas as instâncias de sua

identidade. Todavia, o próprio ato de se referir à criança já se revela, de certa forma,

uma classificação do pequeno ser dentro das categorias pré-estabelecidas de masculino

e feminino.

“Mas você concorda que fizeram uma coisa inteligente registrando o garoto como Nair; caso se chamasse Marlene, teria problemas quando foi para o colégio, de calças. Ele exigiu calças, e os pais concordaram. Talvez não fossem tão imbecis”. “Ele inventava coisas. Ajudou a nossa, a sua...” “A nossa...” “A nossa decisão”, disse Fernando. “Este caso é diferente”, Danilo. “Ela não”. “Ela?”, Duarte. “Isso significa –“ “Sei onde você quer chegar. Não significa coisa alguma. Não posso dizer it ou das, a língua não deixa. E se deixasse, também não usaria” (FONSECA, 1991, p.98).

Ao se referir à criança como “ela”, o personagem Danilo a enquadra

gramaticalmente no gênero feminino, o que implica determinada estrutura morfológica

não só para o pronome, mas também para uma genitália que corresponda a esse gênero.

Contudo, para enfatizar que a decisão final não é sua, mas do grupo, apesar de ser ele o

chefe da equipe, defende-se afirmando que não foi ele, mas a própria língua portuguesa

que atribuiu gênero ao pequeno ser, concordando o pronome “ela” com o substantivo

“criança”.

Como argumento, Danilo afirma que seu idioma não lhe permite se referir à

criança utilizando o gênero neutro, presente em outras línguas, como o inglês e o

alemão. Assim, a atitude dos médicos que decidem arbitrariamente o sexo de um

indivíduo que não pode optar por si mesmo se assemelha à dos indivíduos que se

submetem aos ditames da língua, como no português, sendo obrigados a classificar cada

substantivo dentro de categorias autocráticas e inflexíveis, como masculino e feminino.

Gênero, seja categoria gramatical seja social, é tradicionalmente uma classificação

arbitrária, que enquadra o ser em um dos polos de uma antinomia autoritária.

Os pais da primeira criança mencionada, no entanto, foram mais sagazes do que os

médicos, sendo capazes de trapacear com a língua. Se, como visto anteriormente, é

impossível escapar às arbitrariedades da linguagem fugindo dela, é no próprio seio da

19

língua, paradoxalmente, que se deve lutar contra seu fascismo (BARTHES, 1994). Para

tal, o homem se vale da literatura, capaz de instalar ambivalências no coração da língua,

embaralhando as cartas e subvertendo a ordem racionalista no jogo de significantes e

significados. Assim, a literatura, fugindo à opressão ordenadora da língua, instaura “no

próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas” (BARTHES,

1994).

Dessa forma, como os pais da criança que lhe chamaram Nair, em um batismo

profano que define o pequeno ser por um nome indefinido, operam os artistas,

trabalhando com o refugo da ordenação asséptica dos cientistas. Não obedecendo à

catalogação positivista do real, a arte não pode servir à reafirmação do statu quo,

desencaminhando a rota da razão reificadora desenfreada. Assim, o encantamento que a

arte exerce sobre o sujeito, fruto de suas ambivalências e ambiguidades, serve para

emperrar a engrenagem iluminista. Quanto a isso, tanto o título quanto o conteúdo do

aforismo “Exibicionismo” de Minima Moralia são reveladores:

Nenhuma obra artística pode evitar, na organização social, a sua pertença à cultura, mas também não há nenhuma, que seja mais do que arte industrial, que não tenha feito à cultura um gesto de repúdio – pelo que se tornou obra de arte. A arte é tão antiartística como os artistas. Na renúncia à meta do instinto preserva para este a fidelidade desmascaradora do socialmente desejado, que Freud com ingenuidade exalta como a sublimação que, provavelmente, não existe (ADORNO, 2001, p.222).

Ao fazer um gesto de repúdio à cultura, a arte se volta contra o afã ordenador

humano, condição única para que se possa criar o próprio rótulo de “cultura”. Dando as

costas à classificação e à segregação, o artista trabalha no desconforto que a

ambivalência perpetra, pondo em crise todos os valores criados pelo homem para reger

sua passagem pela vida.

No entanto, tal desrespeito à ordenação racional do mundo, prerrogativa da arte

contemporânea por excelência, subverte os limites das categorias que nos permitem, em

tese, calcular probabilidades e traçar planos supostamente seguros de ação. Na

ambivalência, o homem é lançado no turbilhão da dúvida, sendo tomado pela angústia

do não-saber.

É por causa da ansiedade que a acompanha e da consequente indecisão que experimentamos a ambivalência como desordem – ou culpamos a língua pela falta de precisão ou a nós mesmos por seu emprego incorreto. E no entanto a ambivalência não é produto da patologia da linguagem ou do discurso. É, antes, um aspecto normal da prática linguística. Decorre de uma das principais funções da linguagem: a de nomear e classificar. Seu volume aumenta dependendo da eficiência com que essa função é desempenhada. A

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ambivalência é, portanto, o alter ego da linguagem e sua companheira permanente – com efeito, sua condição normal (BAUMAN, 1999, p.9).

Uma situação fronteiriça, que turva os limites pré-estabelecidos entre as

categorias, causa desassossego, pois não permite que se façam cálculos probabilísticos

antes de agir. É por isso que “ninguém aprecia as situações confusas e que temos em

geral pressa de pôr um fim às ambiguidades, submetendo-as a uma análise que as

determine” (DAGOGNET, 1994).

De modo perspicaz, Dagognet chama a essas situações liminares de troubles,

palavra de sentidos também imprecisos em francês, a qual pode designar desde um

problema ou uma desordem, como o substantivo trouble, em inglês, até a noção de

“turvo”, aplicando-se a fenômenos fronteiriços e de difícil categorização. Assim,

perturbado (termo cognato de “turvo”) pelo caráter turvo daquilo que é impreciso, o

homem se defronta com a angústia e a malograda empreitada de catalogar o

ambivalente segundo seus insuficientes critérios de compreensão do real.

No entanto, o temor é muito maior do que o simples fato de não conseguir

identificar uma situação específica. Se, em determinado contexto, sua ordenação

racionalista falha, indutivamente o homem conclui que pode ter se enganado em outras

classificações. A ambivalência revela assim a fragilidade das certezas humanas,

convidando o sujeito a abandonar-se à vertigem da dúvida.

Todavia, tal queda-livre apavora o homem a ponto de fazê-lo criar entidades

suprassensíveis que ordenem o mundo, malgrado as constrições que elas acarretam em

seu estilo de vida: pecado, higiene, profilaxia e ascese são apenas alguns dos exemplos

de sofrimentos que o homem prefere se imputar a abandonar-se à incerteza. Assim,

embora nascida do impulso de nomear/classificar, a ambivalência só pode ser combatida com uma nomeação ainda mais exata e classes definidas de modo mais preciso ainda: isto é, com operações tais que farão demandas ainda mais exigentes (contrafactuais) à descontinuidade e transparência do mundo e assim darão ainda mais lugar à ambiguidade. A luta contra a ambivalência é, portanto, tanto autodestrutiva quanto autopropulsora. Ela prossegue com força incessante porque cria seus próprios problemas enquanto os resolve (BAUMAN, 1999, p.11).

Trabalho de Sísifo, a luta contra a ambivalência é pedra de mármore que jamais

deixa de rolar montanha abaixo, visto que uma nova classificação apenas gera mais

ambivalências. Se a modernidade teve como seu projeto máximo a ordenação do mundo

por meio da razão e da ciência, a pós-modernidade tem como tarefa o desaprendizado

da certeza, lidando com os refugos deixados para trás pelo esclarecimento ordenador.

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Tais refugos são sempre motivo de reações de repulsa, visto que causam ao

homem o desconforto do inclassificável e, por conseguinte, do incontrolável. Assim, o

homem jamais está tranquilo na presença do ambíguo, sendo necessário buscar

mecanismos para escondê-lo.

As ervas daninhas são o refugo da jardinagem, ruas feias o refugo do planejamento urbano, a dissidência o refugo da unidade ideológica, a heresia o refugo da ortodoxia, a intrusão o refugo da construção do Estado-nação. São refugos porque desafiam a classificação e a arrumação da grade. São a mistura desautorizada de categorias que não devem se misturar. Receberam a pena de morte por resistir à separação. O fato de que não ficariam em cima do muro se, antes de mais nada, o muro não tivesse sido construído não seria considerado pelo tribunal moderno uma defesa válida. O tribunal está aí para preservar a nitidez do muro (BAUMAN, 1999, p.23).

Defrontando-se com a queda da razão como diretriz, o homem contemporâneo se

depara com a falência das metáforas ligadas à racionalidade, todas vinculadas à noção

de alto, luz e mente. Em vez disso, a pós-modernidade, na crise do esclarecimento,

elege metáforas da dúvida, próximas dos campos da escuridão, do baixo e do somático.

Nesse contexto, destaca-se o tema do presente estudo – as fezes como forma de saber o

mundo –, preso na escuridão do baixo ventre. O homem de hoje tem, pois, a

necessidade de se defrontar com o abjeto e aprender a lidar com o que sai de seus

intestinos.

Assim, na próxima seção, pretende-se analisar como o expurgo intestinal pode

contribuir de maneira literalmente visceral para a compreensão do expurgo racional – a

ambivalência.

Expurgos intestinais ambivalentes

A grande maioria das dicotomias que norteiam o pensamento racionalista são

derivações de uma antinomia primeira, entre interior e exterior. Assim, o exterior é o

duplo negativo do interior, apontando para o que o interior não é, de modo que toda

classificação parte da operação básica de incluir/excluir, adotar/segregar. Tal oposição

se deriva de uma projeção da dicotomia básica da metafísica platônica, isto é, a

distinção entre sujeito e objeto. Logo, interior é tudo aquilo que se relaciona ao sujeito

cognoscente, enquanto exterior é o objeto a ser conhecido, na definição platônica de

filosofia. Seria, pois, nessa relação entre dentro e fora que se dariam o conhecimento e a

possibilidade racionalista de compreender e dominar o real.

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No entanto, tal binarismo é borrado pelo abjeto, que se opõe às noções de sujeito e

objeto (KRISTEVA, 1982). Expulso do corpo do sujeito, o abjeto não é, todavia, objeto,

pois, enquanto o objeto carrega em si uma significação cognoscível, o abjeto equivale a

uma fissura na trama de significantes e significados, marcando o ponto exato em que

essa cadeia se rompe. Paradoxal por excelência, o abjeto viola até no plano linguístico

fronteiras de significação: no latim, o verbo jacio era um significante multifacetado,

vinculando-se às noções de lançar, deitar, jogar, exalar, produzir, dizer. Logo, seus

limites semânticos eram já marcados pela imprecisão.

Na língua portuguesa, sujeito, objeto e abjeto, por exemplo, são todos vocábulos

derivados dessa mesma raiz, apresentando, contudo, significados muito distintos.

Enquanto os dois primeiros fundam o par opositivo que norteia a metafísica, o último

dissolve tal dicotomia, levando o indivíduo simbolicamente de volta à união primordial

uterina, abandonada quando de sua definição como sujeito.

Durante a gestação, o feto não se reconhece como um eu completo, em oposição à

alteridade placentária. Envolto no líquido amniótico e preso à mãe pelo cordão

umbilical, há apenas completude no período que antecede a individuação, na fusão entre

sujeito e o objeto materno. Porém, tal situação paradisíaca tem fim no primeiro trauma

da vida humana, o corte do cordão umbilical, cisão que funda o limite inicial do

homem: a fronteira corpórea. Ao longo da vida, o sujeito experimenta, pois, a nostalgia

da comunhão com o ambiente, revivendo esse prazer na experiência da abjeção.

A abjeção preserva o que havia no arcaísmo do relacionamento pré-objetal, antes da violência imemorial com que um corpo é separado do outro para ser – preservando a noite em que o limite da coisa significada desaparece e onde se completa o afeto imponderável (KRISTEVA, 1982, p.10).

A imprecisão do abjeto acarreta seu caráter inefável e aviltante, mas é essa própria

vagueza que oferece a promessa secreta e indecorosa de devolver o indivíduo à fusão

original. O abjeto é aquilo que tentamos ejetar, pois não o podemos adjetivar (verbos

também derivados da raiz jacio), visto que não se encaixa nos paradigmas racionalistas

de classificação. Nesse contexto, as fezes revelam-se o abjeto por excelência, dada sua

condição de eterna ambiguidade.

Nem sólido nem líquido, o excremento fecal revela-se o inclassificável da forma,

assumindo formatos aleatórios e imprevisíveis, que fogem às possibilidades linguísticas

de nomeação. Os exames laboratoriais, tentativa de decodificação da semiótica fecal,

revelam a insuficiência do jargão médico para traduzir a sintaxe do pastoso para o laudo

médico: cego para nuances, texturas e geometrias, o patologista não reconhece mais do

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que claro e escuro, contínuo e descontínuo, presença e ausência. Na miopia da técnica, o

racionalismo deixa de apreender as fezes como fala corporal ambígua que se assemelha,

pois, à arte. Rubem Fonseca, no entanto, devolve o estatuto de obra de arte às fezes, em

contos como “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo” (2004), “Luíza” (2006),

“Intestino grosso” (1975), “Copromancia” (2001), entre muitos outros que permeiam

sua ficção escatológica.

Nessa ambivalência entre o artístico e o escatológico, o expurgo fecal revela-se

um artístico escatológico, de modo a constituir uma obra genuinamente orgânica,

brotada das entranhas autorais. Arte literalmente visceral, o abjeto turva todos os limites

entre esses campos, causando repulsa e embevecimento em leigos e críticos. Precursor

dessa lógica excrementícia, Duchamp revolucionou a arte de seu tempo com sua Fonte,

urinol de porcelana em que grafou “Mr. Mutt”.

O urinol inverte de um só golpe a significação do museu. Se o museu, segundo as teses de Walter Benjamin, é essa instituição que transforma o cultual em cultural – o objeto do culto arcaico tornado arte –, apresentar em contrapartida um urinol nas salas de um museu é se valer do poder profanador da instituição para, de um objeto de alívio, fazer uma obra de arte. E desse lugar há muito consagrado às musas, fazer um espaço vizinho dos banheiros públicos, do prostíbulo ou do bordel, enfim o local turvo que se tornou o museu de arte moderna (CLAIR, 2004, p.40).

Perdida a aura (BENJAMIN, 1985) em meio às fezes, a obra se aproxima daquele

que a contempla, visto que defecar é um traço comum entre o artista e o leigo.

Humanizado o artista, “artistiza-se” o contemplador, imprecisando-se os limites entre

essas instâncias. Assim, mais surpreendente do que a fabricação é a recepção dessas

obras: diretores de museus, curadores, críticos e apreciadores têm aplaudido e se

encantado com a arte do abjeto (CLAIR, 2004). Talvez, no gozo do corpo humano com

seus rejeitos feitos arte, um outro corpo – o corpo social – reafirme sua coesão. Na

admiração do inclassificável e do destoante somático, a comunidade fortalece seus elos,

aprendendo a lidar com os sujeitos que não se encaixam nos padrões arbitrários, rejeitos

da ordenação reificadora. Ao mesmo tempo em que repudia o intersticial, a sociedade

dele depende para reafirmar sua ordem por oposição ao caos, “numa expressão em que

seus conteúdos adquirem sentido através do que repelem – e através da qual ela faz-se

significar a si própria” (RODRIGUES, 2006, p.25).

Desauratizada, a obra perde seu valor de culto, o aqui e agora beirando o religioso,

que, segundo Benjamin (1985), lhe garante historicidade. Se o museu é uma tentativa de

preservar tal característica, pendurando a tela na parede da galeria, à guisa da parede de

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Lascaux, o abjeto dessacraliza museu e obra, lançando a arte na ambivalência entre o

profano e o religioso. Na imundície sórdida do excreta, a arte do abjeto remete à baixeza

do profano, mas, ao permitir a catarse (evacuação dos intestinos, no jargão médico),

permite a purificação preconizada por Aristóteles (2006) em sua Arte Poética. Sendo a

coletiva catarse – purificação no culto de entidades suprassensíveis – prerrogativa da

prática religiosa, a arte do abjeto oscila na ambiguidade profano/sagrado, pois “os vários

meios de purificação do abjeto – as várias catarses – constituem a história das religiões

e culminam nesta forma de catarse por excelência, chamada arte, ao mesmo tempo

próxima e distante da religião” (KRISTEVA, 1982, p.17).

Nessa impossibilidade de classificação entre pecaminoso e divino, o homem,

necessitando de definições para pensar o abjeto, funda nova categoria, o tabu,

substantivo que designa algo a ser excluído e segregado do convívio humano por portar

um poder corruptor inimaginável.

O significado de “tabu”, como vemos, diverge em dois sentidos contrários. Para nós significa, por um lado, “sagrado”, “consagrado” e, por outro, “misterioso”, “perigoso”, “proibido”, “impuro”. O inverso de “tabu” em polinésio é “noa”, que significa “comum” ou “geralmente acessível”. Assim, “tabu” traz em si um sentido de algo inabordável, sendo principalmente expresso em proibições e restrições. Nossa acepção de “temor sagrado” muitas vezes pode coincidir em significado com “tabu” (FREUD, 1996d, p.37).

Código não escrito, o tabu é a forma de legislação mais antiga que existe,

remontando a um período anterior às religiões (WUNDT, 1906). Servindo à

manutenção da ordem, tabus prescrevem e proscrevem comportamentos, pessoas,

instituições e substâncias, de modo a banir ambivalências e decretar parâmetros de

ordenação. Nesse sentido, a própria criação do conceito de tabu é fruto da prática

racionalista classificatória, cunhando-se essa categoria para designar aquilo que foge à

dicotomia entre sagrado e profano.

A distinção entre “sagrado” e “impuro” não existia nos primórdios do tabu. Por esse mesmo motivo, esses conceitos eram, nesse período, destituídos da significação peculiar que só poderiam adquirir quando se tornassem opostos um ao outro. Animais, seres humanos ou localidades sobre os quais se impunha um tabu eram “demoníacos”, não “sagrados”, nem, por conseguinte, “impuros”, no sentido que foi posteriormente adquirido. É precisamente esse significado neutro e intermediário – “demoníaco” ou “o que não pode ser tocado” – que é com propriedade expresso pela palavra “tabu”, desde que ela ressalta uma característica que permanece comum todo o tempo, tanto para o que é sagrado como para o que é impuro: o temor do contato com ele (FREUD, 1996d, p.43).

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O temor da reprimenda – social e divina – à transgressão do tabu faz com que o

homem tome atitudes aparentemente irracionais e não questione certas práticas do grupo

em que se insere, naturalizando-as. Diante das fezes, por exemplo, feitas tabus por seu

caráter ambíguo, algumas sociedades, como a ocidental, elegem locais e momentos

próprios para a evacuação, tornando absolutamente cultural uma função que, a priori,

deveria estar sob domínio exclusivo do biológico. Nesse sentido, vê-se a importância de

normatizar o tratamento dado às fezes, presente inclusive na própria Bíblia. Segundo o

livro do Deuteronômio,

terás fora do arraial um lugar, onde vás satisfazer as necessidades da natureza, levando um pauzinho no cinto: e tendo satisfeito a tua necessidade, cavarás ao redor e cobrirás com a terra que tiraste aquilo de que te aliviaste (porque o Senhor teu Deus anda no meio do campo, para te livrar de todo o perigo, e para te entregar os teus inimigos) e o teu campo seja santo, e não apareça nele coisa de fealdade, para que não te desampare (Bíblia Sagrada, cap. 23, vv 12-14).

Todavia, enquanto destinamos um local específico em nossas casas à eliminação

dos resíduos metabólicos – o banheiro –, tal nem sempre se dá em sociedades não-

ocidentais: “para os arapesh, a excreção não é uma função em relação à qual se exija

recato, indo os adultos até o limite da aldeia para resolverem os seus problemas”

(RODRIGUES, 2006, p.101). Esse tipo de diferença apenas vem a corroborar o caráter

não-natural, mas cultural, que damos ao excremento: o que justificamos como sendo

exigência higiênica no fundo não passa de um construto da vida em sociedade.

Geralmente cremos que nossas práticas de limpeza são fruto natural da ciência,

enquanto as dos outros povos, julgados primitivos, estariam permeadas pela fantasia.

No entanto, a maioria das pessoas que lavam as mãos após terem defecado fazem-no

por crença em categorias abstratas, como “bactérias”, “vírus”, “micróbios” e outras

entidades supra-sensíveis que têm de ser evitadas mesmo sem serem vistas, como

demônios ou espíritos míticos. Não se pretende aqui criticar a limpeza das mãos após o

uso da latrina, mas sim chamar atenção para o fato de esse ritual estar muito mais

atrelado à necessidade simbólica de expurgar a perigosa matéria ambivalente do que à

premência da higiene. Afinal, a maior parte das práticas higienistas é muito mais antiga

do que a descoberta dos microorganismos patogênicos pela ciência.

Também no plano topológico, o excremento revela-se um tabu, por ser violador de

limites. Posicionado no orifício de saída do tubo digestivo, encontra-se o bolo fecal na

fronteira entre o eu e o entorno, constituindo para a criança a primeira forma simbólica

de agir ativamente sobre o mundo. Gozo pleno da fase anal, a possibilidade de controlar

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o esfíncter que se abre para o real permite que a criança estabeleça uma barreira entre si

mesma e o outro, guardando a integridade de seus contornos e fronteiras como

indivíduo. Para configurar-se como um eu, o bebê deve entender os limites de seu

corpo, identificando a partir de onde não se trata mais de si mesma, mas sim de algo a

ser descartado, que vive no limite impreciso do sujeito e do objeto (FREUD, 1996e).

Contudo, nem sempre é fácil para a criança desprender-se de seu excremento, haja vista

o grande número de bebês que brincam com suas fezes, modelando-as como sua

primeira chance de plasmar e reconfigurar o real, tais quais pequenos artistas.

Por sua vez, alguns artistas adultos reeditam, em suas performances e processos de

criação, o gozo da primeira obra – a excreção – da infância. David Nebreda, famoso

artista que se dedica à estética da excreção, é conhecido por notória fala acerca de

experiências escatológicas:

Como tornar compreensíveis as sensações que me produzem meu sangue e meus excrementos? Sentimentos primários de reconhecimento, de plenitude, de gozo, de ternura, de identificação longínqua, de amor. Recolhi-os e guardei-os; toquei-os, manipulei-os, cobri meu rosto e meu corpo com eles. Pu-los em minha boca e eles foram secretamente conservados até o dia de meu sacrifício (CLAIR, 2004, p.20).

Defrontado com esse depoimento, cabe apenas ao sujeito interrogar-se o que está

por trás dessa aberrante relação com o abjeto. De volta à fase anal, o artista busca, na

interação com um produto de seu trabalho – estético e intestinal – o proibido retorno à

indiferenciação intrauterina. Compensando a perda anal mediante a incorporação oral

(FÉRENCZI, 1990), busca o sujeito, na efemeridade do instante, a completude do

paraíso perdido.

“Reconhecimento”, “gozo”, “ternura”, “identificação”: estamos aqui no registro do amor materno e no tempo dos primeiros instantes da vida, quando tocar, sentir, provar os excrementos, era colocar os primeiros limites entre o corpo e o que não é meu corpo. Porém, aqui, a separação e a doação não têm lugar. Nada é dado à mãe. Tudo é mantido. “Até o dia de meu sacrifício”. Que sacrifício? Para que deus terrível e longínquo? Narcisismo primário. Retenção. Regressão. Que importam as palavras (CLAIR, 2004, p.20).

No entanto, se há uma promessa de gozo no contato com o abjeto, é preciso

lembrar que as fezes estão em uma situação liminar entre o prazeroso e o infeccioso.

Apesar da possibilidade de reencontro com a situação de indiferenciação primeira,

característica do que a psicanálise chamou de pulsão de morte (FREUD, 1996a),

identificar-se como sujeito é um processo essencial à sobrevivência, como nos límpidos

e refulgentes espelhos de Lacan, segundo o qual “a função do estádio do espelho revela-

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se (...) como um caso particular da função da imago, que é estabelecer uma relação do

organismo com sua realidade” (LACAN, 1998, p.100). Assim, o excremento assusta e

repugna o homem, que teme, ao mesmo tempo em que deseja, perder-se na

indiferenciação: se retornar ao útero materno, dissolvendo-se no âmnio, é uma promessa

de gozo proibido, esta está situada no paradoxo do prazer destrutivo, pois ameaça o

amor narcísico pelo eu íntegro, fortalecido na luta pela sobrevivência ao longo da vida.

Essa combinação de temor e desejo diante da ambivalência torna-a o que a

psicanálise chama de “estranho” (FREUD, 1996c), categoria do assustador que funde o

velho e o novo, de modo que algo conhecido e desejado, mas recalcado, retorna como

algo estranho, a ser repelido. Desse modo, a indiferenciação, de volta ao seio do

intersticial, experimentada no corpo materno, é recalcada no inconsciente após o trauma

do parto, sendo depois receada como ameaça de morte. Cobiçado e temido, o

ambivalente é sempre um poderoso tabu, a ser literalmente limpado da vida humana.

Como se pode perceber a partir dos fatores mencionados ao longo desta seção, o

horror da ambivalência é, mesmo do ponto de vista epistemológico, uma questão

ambígua, visto que transgride os tênues limites entre Psicologia e Antropologia, pois

todo fenômeno psicológico é em certo sentido um fenômeno sociológico, na medida em que o mental, por discrepância ou por conformismo, se identifica com o social, e já que, em última instância, o sentido dos fenômenos sociais só pode ser apreendido em intelectos individuais com que o pesquisador entra em contato, pois os símbolos são puras convenções abstratas que os indivíduos observam para tornar possível a vida social no nível humano de organização (RODRIGUES, 2006, p.13).

Assim, ainda no que tange à ambivalência peculiar ao excremento, vale ressaltar

que, na antinomia cultura versus natureza, fundada pelo antropólogo Lévi-Strauss, a

ordem instaurada pelo homem é fruto da cultura, sendo toda a ambiguidade pertencente

à natureza ainda não domada. Nesse contexto, a imagem das fezes e da ambivalência,

ambas tais quais rejeitos de processos complexos, é potencializada. Em O cru e o

cozido, Lévi-Strauss (2004) toma o par de antônimos do título, entre outros possíveis

pares de significação oposta, para mostrar como a sociedade humana sobrevive de

transformar as coisas em seus reversos, em binarismos caros ao pensamento

estruturalista. Sendo assim, ao se alimentar, o homem cozinha os alimentos,

transformando o cru, estado natural, em cozido, produto cultural próprio à alimentação.

É preciso perceber, porém, o juízo de valores que está por trás dessa oposição, levado ao

paroxismo na modernidade:

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A existência pura, livre de intervenção, a existência não ordenada, ou à margem da existência ordenada, torna-se agora natureza: algo singularmente inadequado para a vida humana, algo em que não se deve confiar e que não deve ser deixado por sua própria conta – algo a ser dominado, subordinado, remodelado de forma a se reajustar às necessidades humanas. Algo a ser reprimido, refreado e contido, a resgatar do estado informe e a dar forma através do esforço e à força (BAUMAN, 1999, p.15).

O homem moderno, apesar de defender a preservação do ambiente, busca fazer da

natureza um jardim – construção humana com feições naturais, mas altamente

normatizada, conhecida e calculada. O mesmo vale para formas de alimentação

contemporâneas que buscam se reaproximar de hábitos de nossos antepassados,

buscando por vezes o cru e o in natura, mas sempre com embasamento em pesquisas

científicas, testes com cobaias e técnicas agrícolas modernosas.

Levando adiante o pensamento do antropólogo francês, o cozido é processado na

digestão orgânica, que o fragmenta em diversos nutrientes e os distribui pelo organismo.

Contudo, como em toda segregação que visa à classificação, há um refugo, que não se

encaixa em nenhuma categoria pré-estabelecida. Sobra do cozido não aproveitado, as

fezes funcionam, então, como rejeito do processo da cultura, ambivalência que restou

como inclassificável na empreitada ordenadora do homem. Temidas por seu caráter

ambíguo, as fezes têm por destino a excreção, sendo expulsas e afastadas do sistema

ordenado e devolvidas à também ambivalente natureza, seja pela descarga, pela fossa ou

mesmo por aterramento.

Todas essas formas de expurgo funcionam como tentativas da cultura de garantir o

retorno à ordem, enquadrando em um destino predeterminado pela técnica o que lhe

escapa ao cálculo. De maneira semelhante, muitos indivíduos acrescentam ao ritual de

exorcismo das fezes o uso de aromatizantes, afirmando ser aviltante o cheiro exalado

pelo expurgo intestinal. Tal prática, no entanto, em nada difere dos rituais de sociedades

ditas primitivas para expulsar o tabu, visto que a própria noção de bom ou mau odor é

socialmente inculcada. É no seio da família, interpretando as reações dos parentes, que a

criança aprende que perfumes franceses têm essência agradável, mas que a latrina exala

vapores hórridos. Tais substâncias não têm em si nada que as torne melhores ou piores,

mas sim representam, como significantes, significados para que a sociedade estabeleceu

escalas arbitrárias de valores.

“Interpretação”, “significantes”, “significados”, “arbitrariedade”. As fezes aqui

invadem mais um limite: o domínio do linguístico, configurando-se como forma de

significação a permear a comunicação humana. Nesse contexto, confirma-se a

29

importância de estudar a escrita de Rubem Fonseca, autor contemporâneo cuja produção

pode ser analisada pelo viés da ambivalência. Principalmente em seus contos, o

ficcionista mineiro vale-se de imagens relacionadas a uma escatologia estética – ou a

uma estética escatológica – para atacar o sistema racionalista de classificações que nos

norteia, abalando noções como as de sujeito e objeto, ejetando-as, abjetando-as e

dejetando-as em um locus impreciso, em que essas fronteiras não mais existem.

Paixão fecal

Autor de uma arte literária fecal, Rubem Fonseca opera em uma escrita do

interdito, revisitando temas proibidos e banidos para a esfera do íntimo, como as

próprias fezes, que ao longo da história da humanidade tiveram de ser transferidas para

o segredo do toalete fechado. A criação do vaso sanitário privado, em oposição a seu

antecedente arquitetônico, a lavatrina (estrutura pública nos célebres banhos romanos),

revela a necessidade de esconder a dejeção dos olhos do outro, conforme a crescente

racionalização da sociedade.

Assim, enquanto a tendência de pensar o fecal aponta para o monólogo interior no

vaso de louça (CORBIN, 1986), Rubem Fonseca investe na divulgação pública do

excreta, reeditando práticas anteriores à histeria asséptica da sociedade atual. Se no

mundo contemporâneo nos deparamos com a crise dos penicos, das fraldas de pano, das

valas a céu aberto e da defecação em público por motivos higienistas, de certa forma

pode-se observar, em paralelo, uma assepsia excessiva nos meios de comunicação. Com

a constante evolução das tecnologias de telecomunicações e da informática, a

possibilidade de ruído é cada vez menor, devendo a comunicação se dar sempre de

forma linear, clara e coerente, banindo-se qualquer possibilidade de dupla interpretação

e de nonsense na informação. Para que isso seja possível, toda chance do aleatório tem

de ser evitada, de modo que a decodificação da mensagem seja pura e controlada e se dê

nos moldes exatos segundo os interesses – nem sempre tão puros – do locutor. Nesse

sentido,

o limite último da guerra contra o ruído é um modo de vida totalmente controlado e a completa heteronomia do indivíduo – um indivíduo localizado sem ambiguidade na ponta receptora do fluxo de informação e tendo suas opções seguramente encerradas numa moldura estritamente definida pela autoridade especializada (BAUMAN, 1999, p.237).

Rubem Fonseca, porém, ao privilegiar o sórdido em seus escritos, tira o leitor do

torpor higienista, lançando-o na dúvida do ambivalente. Assim, além do interdito, o

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autor propõe uma escrita do entredito, em que silêncios, metáforas e ambiguidades

instalam ruídos na leitura, de modo que o leitor seja lançado no torvelinho do não-saber.

Portanto, aproxima-se da descrição que Julia Kristeva faz da literatura pós-moderna, em

sua ruptura com a obsessão ordenadora, superego coletivo – nas palavras da autora –

que assombra o homem moderno.

A literatura contemporânea não assume o lugar delas [Religião, Moral, Lei]. Em vez disso, parece ser escrita para além do alcance perverso do superego. Ela reconhece a impossibilidade da Religião, da Moral e da Lei – seu jogo de forças e sua necessária significação absurda. Como a perversão, a literatura contemporânea tira vantagem dessas instâncias, desviando-as e subvertendo-as. (...). O escritor, fascinado pelo abjeto, imagina sua lógica, projeta-se dentro dele, introjeta-o e, como consequência, perverte a linguagem – estilo e conteúdo (KRISTEVA, 1982, p.16).

No plano do conteúdo, a ambivalência é notória em toda a obra do autor, que

funde a lei e a promiscuidade, em personagens como Mandrake; o masculino e o

feminino, em identidades ficcionais como o travesti Viveca e tantas outras mulheres

fálicas simbolicamente; o humano e o animal, nos célebres assaltantes de “Feliz ano

novo”; entre tantos outros casos. Nas reflexões aqui alinhavadas, porém, é dos intestinos

que provém uma forma de indefinição que permeia grande parte dos escritos

fonsequianos.

No plano da forma, percebe-se, de maneira análoga, uma imprecisão de limites

entre entidades constituintes da narrativa, conforme os preceitos canônicos das Ciências

da Literatura. Assim, segundo a crítica sobre o autor, destaca-se

o deslizamento constante que a ficção do escritor realiza entre o dentro e o fora, entre o próprio e o alheio, e entre autor e leitor. Essa oscilação, característica da estética contemporânea, aponta para a dissolução das antíteses entre o que consideramos polos opostos, ou, se quisermos, para a indiscernibilidade dos contrários, em consonância com o acirramento do impulso crítico que coloca em questão as certezas canônicas da metafísica ocidental. A arte tende, então, cada vez mais, a afastar-se dos procedimentos de ruptura, das negações radicais que supunham afirmações também radicais. Em vez da revolução, a transgressão. Isto é, não se trata de fundar um novo lugar, mas de trabalhar com a violação permanente de fronteiras – misturando tempos, espaços e remodelando continuamente identidades (FIGUEIREDO, 2003, p.12).

Nessa mistura de indefinições, borrando-se preceitos da dita “boa literatura”,

segundo padrões clássicos, um dos textos fundacionais da crítica literária é subvertido: a

Arte Poética de Aristóteles (2006), que divide os gêneros literários e prescreve ser

necessário separá-los bem, sem que um gênero macule outro na composição de um

texto.

31

Rubem Fonseca, por sua vez, comporta-se diante dessas prescrições como quem

dá descarga no expurgo intestinal. Em suas narrativas que versam sobre as fezes e sua

ambivalência, também se tornam imprecisas as fronteiras entre os gêneros textuais.

Não se trata mais de coexistência pacífica das diversas modalidades de romance e conto, mas do desdobramento destes gêneros, que na verdade deixam de ser gêneros, incorporando técnicas e linguagens nunca dantes imaginadas dentro de suas fronteiras. Resultam textos indefiníveis: romances que mais parecem reportagens; contos que não se distinguem de poemas ou crônicas, semeados de sinais e fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica de romance; narrativas que são cenas de teatro; textos feitos com a justaposição de recortes, documentos, lembranças, reflexões de toda a sorte. A ficção recebe na carne mais sensível o impacto do boom jornalístico moderno, do espantoso incremento de revistas e pequenos semanários, da propaganda, da televisão, das vanguardas poéticas que atuam desde o fim dos anos 50, sobretudo o concretismo, storm-center que abalou hábitos mentais, inclusive porque se apoiou em reflexão teórica exigente (CANDIDO, 2000, p.209).

Publicado pela primeira vez em 2002 no livro Pequenas criaturas, agraciado com

o Prêmio Jabuti, o conto “Paixão” está em plena consonância com tais transgressões de

fronteiras, operando, por meio da imagem das fezes, um turvamento de limites impostos

pelo racionalismo classificador.

Como os demais textos do livro, “Paixão” apresenta personagens abandonadas aos

dilemas da vida, geralmente confrontadas com o fato de que optar por um dos lados

implica a perda do outro. Assim, no plano do conteúdo, homens e mulheres revelam-se

na obra pequenas criaturas, revivendo a versão moderna da noção do trágico

aristotélico. Analogamente, o plano da forma ratifica essa pequenez, visto que

praticamente todos os contos são bem curtos, como se poucas linhas bastassem para

narrar o dilema humano, logo apagado para dar lugar ao drama de outrem na narrativa

que se sucede.

No conto ora analisado, José sofre após discussão séria com a namorada Sylvia,

tentando os dois, embora sem sucesso, reatar o relacionamento malogrado. A ênfase

lançada pelo narrador, no entanto, não recai sobre esses fatos, mas sim sobre os

descaminhos linguísticos, repletos de praguejamentos, duplos sentidos e ruídos, na

comunicação do casal.

Embora narrado em terceira pessoa, o conto tem como perspectiva central a dor de

José, que amarga a ausência da amada, marcando seu sofrimento com uma única

interjeição, que se repete ao longo do texto como estribilho: “merda”.

Merda, merda, agora está tudo uma merda, José pensa, sentindo calor, sem disposição para tirar os sapatos que esquentam seus pés.

32

Não sabe há quanto tempo está arriado na cadeira, mas não pode ficar sentado sem fazer nada, se lamentando como um choramingas. Levanta-se, vai até a geladeira, pega uma garrafa de champanhe. Merda, merda. Procura, em torno, um lugar adequado. Quebra a garrafa na borda da pia. Os cacos da garrafa se espalham pelo recinto, uma parte do líquido molha sua roupa (FONSECA, 2002, p.72).

Tal vocábulo, comum na fala cotidiana, é tornado recurso estilístico no conto,

formando um refrão fecal que garante unidade ao texto, iniciado e terminado pelo par

“merda, merda”. Sendo as fezes o protótipo do ambíguo, desfazendo separações claras

entre categorias de pensamento, é preciso observar tal imprecisão de fronteiras na

própria construção do texto, em que, por meio do discurso indireto livre, as interjeições

do personagem central se fundem ao discurso do narrador.

Na turva alternância entre as vozes da narrativa, destaca-se a coprolalia, termo que

tem sua significação potencializada no conto. De acordo com o Dicionário Houaiss da

Língua Portuguesa (2001), “coprolalia” é um termo da psicopatologia que designa uma

“tendência incontrolável a usar palavras obscenas”, sendo formado pelos radicais

“copro” (“fezes”, em grego) e “lalia” (“palavra”, em grego). Assim, no discurso

coprolálico de José, as excreções anais são trazidas à baila, ainda que pela boca, e não

pelo ânus, para manifestar seu profundo sentimento de indignação.

Tal associação entre as fezes e ideias de negatividade tem origem ainda na tenra

infância. A criança começa a aprender que há uma legislação sobre seu excreta quando

recebe a primeira palmada ou vê a primeira cara feia quando seu comportamento

perante as fezes está em desacordo com o que pensa seu círculo social primeiro: a

família. Mais tarde, observa que as palavras que nomeiam seu excremento têm valor

adjetival e interjetivo, sendo aplicadas em situações desagradáveis, para desqualificar e

expressar desaprovação. Dessa forma, o falante reedita, a cada palavrão proferido, todas

as angústias diante do sentimento de desaprovação familiar oriundo do ato de defecar.

José, no entanto, faz mais do que simplesmente praguejar ao exclamar “merda”.

Como se pode perceber na passagem anteriormente destacada, que descreve a

linguagem corporal do personagem, “merda” tem valor vocativo, não só interjetivo no

conto. Se José continua “arriado”, derrubando algo que, ao cair no chão, “molha sua

roupa”, revive metaforicamente a experiência da latrina, quando o líquido, graças à ação

do empuxo, espirra na pele daquele que defeca. Desse modo, o grito de “merda”,

oscilando entre a exclamação e a interpelação, pode ser lido como uma voz que invoca

uma força primeva e fecal, capaz de, com seus obscuros poderes, acabar com o

sofrimento do amante.

33

Outra imagem ligada às fezes é revisitada metaforicamente no conto quando,

na cozinha, José esmigalha com a sola do sapato cacos da garrafa, que ruído agradável, odeio champanhe, pisar nos cacos da garrafa dá uma boa sensação. Vou deixar os cacos, no chão, vou ficar com a roupa molhada, para ela ver. Eu amo essa mulher, sem ela fica tudo uma merda (FONSECA, 2002, p.74).

Pisar, por acidente, em excremento, quando se anda distraidamente na rua, é

infortúnio comum na vida cotidiana, dada a presença de animais que defecam nas vias

públicas. Como as superstições populares afirmam que pisar em dejetos é sinal de bom

augúrio, José decide pisar na matéria que, ao cair, molhou-lhe a roupa, à guisa de fezes.

Assim, esmigalhando com prazer os cacos, que mantêm semelhança fonética com o

popular termo “cocô”, o personagem continua seu ritual profano de invocação simbólica

das fezes, de modo que elas possam salvar seu relacionamento, mesmo que no plano do

inconsciente.

Além disso, o primeiro sinal de que alguém pisou em rejeitos orgânicos é o cheiro,

sintoma inescapável da presença do abjeto. Assim, na invocação simbólica do ambíguo

fecal, o narrador cria um correspondente sensitivo ao olfato: a audição. Turvando os

limites entre as percepções sensoriais, o texto embaralha, por extensão, os cinco

sentidos, as mais frequentes ferramentas usadas na captação e na ordenação do real.

Sinestesia entredita, a mistura sensorial de “Paixão” traz um “ruído agradável”, o que

sugere ser também agradável o cheiro dos “cacos-cocôs”. Vale salientar também que, se

o signo das fezes no conto é expelido pela boca, não pode ser recebido senão pelo

ouvido, em vez da tradicional captação pela visão e pelo olfato, a que estamos

acostumados na vida cotidiana.

Também o título do conto se localiza em uma situação de liminaridade,

transitando entre campos semânticos aparentemente díspares. Se o senso comum

convencionou dar à palavra “paixão” apenas o significado de amor e volúpia

arrebatadora, como o que une os sujeitos José e Sylvia, a origem do vocábulo remete a

outra ideia: a de passividade, papel semântico mais ligado ao objeto do que o sujeito,

geralmente preso à noção de agente. Assim, em algum lugar entre a dicotomia

fundadora da metafísica – o par sujeito/objeto – a paixão está associada ao sofrimento,

como no sintagma “paixão de Cristo”.

Sofrendo de amor, José é sujeito e objeto na relação com Sylvia, ora repelindo-a

ora clamando por seu retorno, em um peristaltismo de emoções que remete ao

funcionamento dos intestinos, além do fort-da psicanalítico (FREUD, 1996a). Embora

34

absurda à primeira vista, tal aproximação entre o somático e o psíquico é comum nos

escritos de Sandor Férenczi, que cunha o termo anfimixia (FÉRENCZI, 1990) para dar

conta de fenômenos em que uma forma de erotismo se confunde com outra, como a

coprofagia (fusão entre erotismo anal e oral) ou outras não tão aparentes. Como

exemplo menos evidente do fenômeno da anfimixia, semelhante ao “peristaltismo

emocional” entre José e Sylvia, pode-se citar que o psicanalista húngaro acreditava que

a uretra ensinava ao ânus “generosidade”, para livrar-se das fezes, enquanto o ânus

ensinaria à uretra “parcimônia”, de modo a não esbanjar o sêmen e evitar a ejaculação

precoce. Tal equilíbrio entre a generosidade uretral e a parcimônia anal teria, inclusive,

reflexos emocionais, na forma de lidar com o dinheiro e o sentimento de posse nas

relações humanas.

Refém de seu peristáltico amor no apartamento de José, o casal põe-se a conversar

sobre a relação, tentando reatar o relacionamento, mas se detém em aspectos

linguísticos, não conjugais.

“Vamos conversar, José. Senta aqui. Agora você vive falando merda a toda hora, merda isso, merda aquilo. Eu não gosto, acho vulgar”. “Não falo mais, nunca mais. Vamos tomar champanhe, tem outra garrafa na geladeira. Você adora champanhe” (FONSECA, 2002, p.74).

Nesse contexto, além da ambiguidade da estrutura “falar merda”, que também

pode ser interpretada como “falar bobagem”, destaca-se o caráter gregário das fezes.

Enquanto a tradição ocidental moderna aponta para uma privatização do excremento, a

ser secretado na solidão do banheiro trancado, o narrador transgride essa máxima,

lançando o vocábulo “merda” como a palavra de reaproximação do casal. Sendo, pois,

as fezes um pretexto para a união, restaura-se o valor etimológico de “vulgar”, adjetivo

usado por Sylvia para caracterizar a fala de José. Derivado da palavra vulgus (“povo”,

em latim), “vulgar” expressa bem o que seja o expurgo intestinal em “Paixão”. Além do

significado atual de “obsceno”, atribuído às intersticiais secreções corpóreas, a “merda”

é vulgar por ser formadora do povo, unindo as pessoas, como o casal protagonista do

conto. Afinal, pouca coisa têm em comum todos os integrantes de um grupo humano,

senão seu funcionamento metabólico e o consequente rejeito dessas transformações

físico-químicas.

Ainda centrando a discussão em aspectos linguísticos, quais analistas do discurso,

José e Sylvia pesam as palavras usadas na negociação de significados em seu

relacionamento:

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“Querido, foder é vulgar, mas é uma palavra bonita. Nós falamos sempre”. “Mas foi o jeito que você falou, o som da sua voz”. “E o que você disse, em seguida? Merda, mais uma vez, merda. Aliás, você disse: merda, vamos encerrar o assunto”. “E você brigou comigo por causa de uma palavra? Merda?” “Você sabe que briguei por causa de outra palavra”. “Que palavra foi essa?” “Foi aquele não, definitivo, da sua resposta” (FONSECA, 2002, p.75).

Em suas análises textuais, o casal chega à conclusão de que, mais que o

enunciado, é a enunciação que acarreta determinadas emoções no interlocutor, sendo o

jeito de falar mais importante do que aquilo que se diz. Da mesma forma, a palavra

“merda”, ou outra que o valha, pode ser tornada item de uma obra de arte, contanto que

a forma como foi empregada tenha rendimento estético. Nesse sentido, Rubem Fonseca

advoga pela beleza desse vocábulo em seu conto, visto que sua defesa pode ser

ratificada pelo argumento de Sylvia, o qual pode ser lido como uma defesa ao estribilho:

“mas é uma palavra bonita. Nós falamos sempre”.

Todavia, depois de praguejar e, ao mesmo tempo, invocar “merda” ao longo de

toda a narrativa, José se vê refém da dualidade desejar/temer, peculiar à relação com o

abjeto. Querendo a paz da indiferenciação, mas temendo o fim na desindividuação, José

reflete esse paradoxo psíquico em uma formulação ambígua: “Então na verdade você

não quer morar comigo. Quer ter um filho comigo. E colocar a merda do bebezinho no

meu lugar” (FONSECA, 2002, p.76).

Inseguro do amor de Sylvia, o personagem ataca a amada verbalmente, acusando-a

de substituí-lo “pela merda do bebezinho”, construção que pode indicar valor adjetival,

desclassificando o bebê, ou relação de posse, apontando para o bolo fecal expelido pela

criança. De ambas as formas, percebe-se o bolo fecal como um possível duplo do eu,

gerando uma forte crise de ciúmes em José.

A respeito disso, vale lembrar que, do ponto de vista embriológico, o pênis

desenvolve-se a partir dos intestinos e, nos mamíferos inferiores, da cloaca urogenital.

Assim, a identificação entre fezes e pênis acarreta uma identificação entre fezes e o ego,

sendo o pênis mero elemento de transição nessa equação. De acordo com Férenczi,

“devemos considerar o membro viril como um duplo em miniatura do ego inteiro, a

encarnação do ego-prazer, e nesse desdobramento do ego vemos a condição

fundamental do amor narcísico pelo ego” (FÉRENCZI, 1990, p.22). Temeroso, pois, de

ser trocado por seu duplo fecal, José rompe definitivamente o relacionamento, restando-

lhe, após a partida de Sylvia, apenas exclamar: “merda!”

36

Núpcias abjetas

Aproximando também as esferas do amor e da dejeção, o conto “Viagem de

Núpcias”, publicado pela primeira vez no livro Histórias de amor (FONSECA, 1997),

faz do excremento um elemento de união. A obra em que se encontra o texto em

questão tem como fio condutor que une os contos o que se apresenta no título: histórias

de amor. No entanto, diferentes do que a tradição canonizou como protótipo do conto

amoroso, as narrativas do livro não têm finais necessariamente felizes, vilões que se

oponham ao amor de jovens ou casais que tenham de lutar contra imposições sociais

para afirmar seu sentimento. Em vez disso, o desejo nesses contos beira o grotesco,

sendo geralmente associado a matérias pouco românticas, como, no caso de “Viagem de

Núpcias”, as fezes.

O conto narra a história de Maurício e Adriana, dois jovens belos, ricos e bem-

sucedidos que têm apoio intenso das respectivas famílias para o casamento, ao contrário

de Romeu e Julieta, casal emblemático da literatura amorosa. Adriana, seguindo os

moldes tradicionais da heroína romântica, é virgem, guardando sua pureza – e,

consequentemente, os meandros de seu corpo – para a noite de núpcias. Seu namorado,

porém, também de acordo com os machistas preceitos românticos, era um jovem de

vida sexual intensa com diversas mulheres, até o dia do casamento, quando abandona

essa promiscuidade pregressa para viver um amor puro com sua esposa.

O problema para o casal se inicia justamente com essa pureza: sem carnalidade, o

amor dos jovens revela-se puro não só no plano espiritual, em que o suposto nobre

sentimento não se mistura às baixezas do corpo, mas também no plano físico, pois não

há trocas de fluidos ou rejeitos metabólicos entre os jovens, configurando uma relação

absolutamente asséptica e assexuada.

Tal fato é ratificado na própria seleção vocabular empregada pelo narrador, que

afirma, antes da cena do casamento, que “Adriana estava apaixonada por Maurício, mas

ele a amava candidamente, como se ela fosse sua irmã” (FONSECA, 1997, p.35). Nesse

trecho, a polissemia do termo “cândida” é reveladora, pois a transgressão entre limites

de significação operada por essa palavra indica diferentes camadas de leitura para o

trecho em que se encontra. Além de sinônimo de “pura”, “cândida” é também um

substantivo que designa vulgarmente o hipoclorito de sódio (água sanitária), substância

utilizada como desinfetante a fim de exterminar toda a impureza e as consequentes

ameaças que ela perpetra. Assim, “amar candidamente”, ao denotar um amor sem

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carnalidade, conota um amor sem as necessárias impurezas – excreções corpóreas –

borradoras de limites.

Nesse sentido, é importante ressaltar a relação entre a suspensão de limites

intersubjetivos, possivelmente proporcionada pela abjeção, e o erotismo. Se o desejo

pelo outro é sempre uma busca pela fusão, o amor só pode ter plenitude quando se

turvam as fronteiras entre os seres, misturando-se, inclusive, os líquidos que correm em

seus corpos.

Assim, o erotismo é uma busca pela suspensão momentânea da descontinuidade

entre seres. No momento oportuno, a matemática perde o sentido, dois igualam-se à

unidade, e os limites entre os indivíduos são dissolvidos, fundindo-se, portanto, em

apenas um, dissoluto em todas suas acepções.

Sem uma violação do ser constituído – que se constitui na descontinuidade – não podemos imaginar a passagem de um estado a um outro essencialmente distinto. Encontramos nas passagens desordenadas dos animálculos engajados na reprodução não só o fundo de violência que nos sufoca no erotismo dos corpos, mas também a revelação do sentido íntimo dessa violência. O que significa o erotismo dos corpos senão uma violação do ser dos parceiros, uma violação que confina com a morte, que confina com o assassínio? (BATAILLE, 1987, p.16).

O erotismo é, portanto, sempre uma violência, como no texto fonsequiano,

marcado por um realismo feroz (CANDIDO, 2000). No entanto, Maurício, amando

Adriana “candidamente”, não fusionara com ela corpos, líquidos ou excretas antes do

casamento, mantendo-se intactas as barreiras intersubjetivas entre os namorados.

Assim, na noite de núpcias, primeiro momento de conjunção carnal entre os

amantes, todo o ritual de defloramento foi tenso e sofrido, dada a exagerada assepsia

que permeava a relação. Tal qual vítima sacrificial que se prepara para um triste fim,

não uma noite de gozo, Adriana retirou-se para uma câmara à parte, onde se aprontou,

preocupada e insegura, como que para ser sacrificada a algum deus obscuro.

Mesmo a descrição da fusão dos corpos é descrita não como um momento de

prazer, mas de tensão tanto da vítima quanto do algoz no altar da imolação. Em um

longo parágrafo que ocupa duas páginas, tirando o fôlego do leitor, a própria tessitura

do trecho sugere a atmosfera opressora do coito, visto o apego das personagens à

pureza, seja do amor, dos corpos ou dos fluidos.

“Não quero beber”, Adriana disse, com um fio de voz. Maurício esvaziou em longos sorvos as duas taças e deitou-se de barriga para baixo ao lado de Adriana, beijou os bicos enrijecidos do peito dela, depois o lábio e o pescoço. Adriana deu um suspiro de langor e medo. Maurício também suspirou porque o seu pênis permanecia flácido. (...) Novamente pensou

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ansioso em Ludmila e então o seu pênis afinal endureceu e ele deitou-se apressado sobre Adriana, separando abruptamente as suas pernas, temendo que a ereção cessasse. (...) Adriana disse que ele a estava machucando, pediu que parasse, mas Maurício sabia que se não prosseguisse sem trégua seu pênis perderia seu enrijecimento, não endureceria mais naquela noite. E assim investiu com rapidez e brutalidade, sem se importar com os gritos de dor de Adriana (...). Ele atacou ainda mais durante algum tempo para se certificar de que seu dever fora cumprido (...) (FONSECA, 1997, p.38).

Tendo a relação entre os jovens sido sempre permeada pela pureza – em todas as

suas formas – a mistura de líquidos do coito foi um processo sofrido e sufocante, como

a própria estrutura claustrofóbica do parágrafo que o narra. Assim, mais do que em um

ato de prazer e gozo cúmplice, os amantes se portaram como inimigos em luta,

destacando-se na descrição da cópula vocábulos como “medo”, “machucar”,

“brutalidade”, “dor” e “atacar”.

Na dificuldade de se excitar diante da pureza de Adriana, Maurício recorreu à

memória de Ludmila, “uma das parceiras preferidas das suas noites lúbricas no

apartamento da cidade” (FONSECA, 1997, p.38). Momentos lembrados pela abjeção do

sexo e da mistura de secreções corpóreas, tais cenas pretéritas são marcadas pela

polissemia, que turva os limites semânticos em torno do vocábulo “lúbrico”. Em sentido

literal, tal palavra designa algo ligado à luxúria e à sensualidade, como se percebe a uma

primeira leitura do conto. No entanto, em um nível mais profundo de significação,

pode-se compreender tal referência de acordo com outra acepção proposta pelo

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001), segundo o qual “lúbrico” seria algo

úmido, mole ou escorregadio, podendo ser associado ao caráter ambivalente e pastoso

das fezes, o que confirmaria a impureza excitante dos encontros com Ludmila.

Além disso, o mesmo dicionário aponta outra possibilidade de conotação para o

termo “lúbrico”, que poderia ser empregado também para designar o ventre que

processa rejeitos com facilidade. Assim, noites lúbricas seriam aquelas em que o abjeto

se assimilaria facilmente, não havendo ojeriza asséptica ao ambivalente, seja do sexo,

da suspensão das barreiras intersubjetivas, ou das próprias fezes. Ademais, a origem

etimológica de “lúbrico” (lubricus, em latim) não poderia ser mais parecida com a

origem de “lombriga” (lumbricus, no mesmo idioma), animal que habita, se alimenta e

copula nos meandros intestinais, retorcendo-se na sensual ambiguidade que o termo

“lubricidade” permite.

Dessa forma, apenas excitado pela lubricidade de Ludmila, Maurício consegue

fazer sexo com a esposa na noite de núpcias. Diferente da outra, porém, Adriana não

admite a impureza, pedindo ao marido que apague a luz antes de irem para cama. Sendo

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necessário esconder a indecente transgressão das fronteiras de seus corpos, o casal se

põe a discutir sobre o destino a ser dado às provas do “crime” de seus fluidos:

“Vou trocar esse lençol, deve ter roupa de cama limpa em algum lugar”, ela disse. “A arrumadeira faz isso amanhã. Vamos dormir no outro quarto”, ele disse. Mas Adriana encontrou lençóis num armário e refez a cama, dobrando cuidadosamente o lençol manchado, de maneira que o sangue não fosse visto. Depois foram dormir no outro quarto (FONSECA, 1997, p.39).

Sendo impossível simplesmente apertar o botão da descarga, como se faz com os

resíduos que vão para a louça sanitária, a jovem esposa se esforça para se afastar dos

ambíguos rejeitos de seu corpo, preocupando-se ainda em escondê-los dos olhos

alheios. Diferente da antiga tradição de exibir orgulhosamente o lençol manchado pelo

hímen virginal rompido na primeira noite de amor marital, a tentativa de Adriana de

ocultar seu abjeto fluido revela que, apesar da perda da virgindade, mantém-se sua

obsessão pela pureza e pela assepsia.

Prova da transgressão, mesmo que momentânea, das barreiras de seu corpo,

formando-se uma zona de liminaridade em que os limites do eu e do outro se perderam,

o sangue era nojento e ignominioso para Adriana. Afinal,

as codificações do corpo e as manifestações afetivas que acompanham as reações de nojo respondem à intolerância do homem à ausência de sentido no mundo em que ele vive. O inconformismo da conduta corporal corresponde ao inconformismo da ordem intelectual: as codificações do corpo são também codificações do mundo, são de ordem intelectual, e as reações afetivas não são senão uma maneira particular de manifestação para a consciência da estruturação intelectual inconsciente do mundo (RODRIGUES, 2006, p.122).

Na ameaça da crise do sujeito e do corpo social, suscitada pela ambivalência do

fluido corpóreo – sangue sagrado da virgem e profano do coito –, o casal decide

abandonar as núpcias e voltar para casa, não mais se envolvendo em conjunções carnais.

Assim, ambos partem juntos em lua-de-mel para fazerem rafting no rio Colorado, em

uma viagem que mudaria suas vidas. A bordo de um bote, têm de deixar a segurança

higiênica de suas casas e do hotel onde passaram a noite de núpcias, abandonando-se ao

selvagem, ao incalculável e ao avesso à classificação ordenadora. Desse modo,

aproximaram-se da imprevisível natureza e afastaram-se da racionalizante cultura ao

embarcarem

[n]o selvagem, remoto e poderoso rio Colorado [que] atravessa o dramático e fascinante red rock country do Canyonlands National Park... Paredões de rocha de arenito vermelho de trezentos metros de altura ladeiam as margens do rio... Nas cem milhas de descida do rio, você atravessa corredeiras famosas como a Satan’s Gut.... (FONSECA, 1997, p.40).

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Para demonstrar a mudança que se opera lentamente no casal, em busca de formas

menos assépticas de viver, entrando em contato com o indômito abjeto, a própria

seleção de palavras feita pelo narrador é reveladora: entre todos os acidentes

geográficos possíveis para se percorrer em um bote, o texto apresenta a queda Satan’s

Gut, que de fato existe nos Estados Unidos e, em português, teria seu nome traduzido

como “Intestino/Tripa do Satanás”. Assim, um casal que se põe a remar em um pequeno

bote à deriva de uma corredeira que sai das tripas do demônio coloca-se simbolicamente

como um diabólico bloco fecal que abandona os intestinos e é lançado na torrente da

descarga.

Embora o símile pareça grotesco, confirma-se essa leitura ao longo do conto,

permeado por referências às fezes. Como exemplo, pode-se citar a principal

preocupação de Maurício no que diz respeito às condições inóspitas em que se poriam

durante a viagem:

“E como é que a gente?...” “A gente o quê?” “Não é nada.” “Você quer perguntar onde são feitas as necessidades fisiológicas, não é isso?”, disse Adriana, que conhecia Maurício havia tempo bastante para conhecer seus tabus. “Isso mesmo.” “Está aqui no folheto. Toda balsa tem um toalete especial, que é diariamente esvaziado num depósito anti-séptico da balsa e depois levado para a sede da empresa de turismo. É proibido urinar ou fazer qualquer coisa no terreno, o solo e cada pedaço de pedra são preservados e protegidos por lei. Mas eu não me preocuparia com isso, a companhia deve ter previsto uma maneira confortável, higiênica e recatada de resolver o problema”, disse Adriana (FONSECA, 1997, p.42).

O silêncio de Maurício, ausência da linguagem diante do impronunciável abjeto, é

compreendido por Adriana, que logo o substitui por um termo pomposo e vago,

“necessidades fisiológicas”, embora essa locução, ao designar demandas corpóreas, seja

pouco elucidativa, pois pode apontar para outras necessidades, como alimento, oxigênio

etc. Essa precariedade do discurso revela o horror ante o inominável, dado o caráter

ambivalente e inclassificável das fezes, turvando o sujeito e o objeto, o sagrado e o

profano, o sólido e o líquido, o prazeroso e o infeccioso.

A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve desempenhar. O principal sintoma de desordem é o agudo desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações alternativas (BAUMAN, 1999, p.9).

41

Inefável tabu da dejeção, defecar foi substituído até por uma estrutura vazia de

significação como “fazer qualquer coisa no terreno”, que, por poder indicar tudo, acaba

não indicando nada.

Ao puritanismo discursivo dos jovens, que se recusam a dizer os nomes feios do

excreta, opõem-se os textos de Rubem Fonseca, que, nesta dissertação, são analisados

sob a ótica das metáforas fecais. Assim, ao dizer que a resposta para a dejeção “está

aqui no folheto”, o conto sugere um artifício metalinguístico: se o folheto publicitário

que divulga o rafting no rio Colorado explica como lidar com as fezes, também o faz

Rubem Fonseca, na folha que tem em mãos o leitor – do conto, não do folheto.

Diferente do esdrúxulo “depósito anti-séptico da balsa” a ser “levado para a sede da

empresa de turismo”, o excremento é dito explicitamente na ficção fonsequiana,

promovendo a catarse – no sentido aristotélico, de purificação de humores negativos

diante da obra de arte, e no sentido médico, de evacuação dos intestinos. Portanto,

enquanto a “companhia deve ter previsto uma maneira confortável, higiênica e recatada

de resolver o problema”, o autor de “Viagem de Núpcias” prevê uma maneira séptica e

visceral de compor seus textos.

Como característica predominante na obra de Rubem Fonseca – em paralelo à

notória temática da violência de seus primeiros escritos – a remissão ao papel do autor é

constante no conto, visto que o casal está sempre acompanhado por alguém que escreve,

seja o poeta que com eles faz rafting ou o misterioso homem do notebook.

O aeroporto de Moab consistia numa pista de pouso e decolagem e uma pequena casa pré-fabricada, de madeira, que estava fechada. Ao lado da casa havia dois trailers. Não havia nenhuma pessoa da empresa de viagem esperando por eles. Na verdade, além do piloto do teco-teco e do homem do notebook não se via mais ninguém na casa, nos trailers ou mesmo na imensa planície vazia que os cercava (FONSECA, 1997, p.43).

Além disso, garantindo unidade ao texto e funcionando como um índice

(BARTHES, 1973) que aponta gradualmente para o clímax da narrativa, a presença da

“pequena casa pré-fabricada” – ou “casinhola”, como em menções posteriores no conto

– sugere a popular “casinha”, latrina privada típica de lugares sem sistema de esgoto.

Assim, como augúrio do final em que as fezes unem o casal, com seu poder de

ambivalência poluente, os dois jovens entram juntos na “casinhola”, para dar um

telefonema quando chegam ao aeroporto.

Porém, até que chegassem à situação para que esse índice da narrativa aponta, o

casal ainda teria de se submeter a uma experiência intensa com o abjeto, tão radical

42

quanto a prática do rafting. Afinal, a “casinha”, como índice, apenas indicava o fim do

percurso narrativo. Muito teria o casal de viver – e o narrador a relatar – até que os

jovens vivessem plenamente a dejeção, pois ainda estavam muito presos a convenções

de higiene: “Eles nunca entravam no banheiro juntos, em seu apartamento novo de São

Paulo cada um tinha banheiro próprio” (FONSECA, 1997, p.45).

Tamanha falta de intimidade reflete-se na vida conjugal de Maurício e Adriana,

praticamente assexuada, pois o rapaz não se sentia excitado pela moça, a despeito de sua

beleza. Sendo a volúpia uma força muito mais próxima da natureza do que da cultura, o

casal padecia de uma subserviência muito forte aos ditames da racionalização

ordenadora, repudiando toda a ambivalência e os instintos sexuais. Como que intuindo o

drama dos recém-casados, a guia Suzete “disse que a comunhão com a natureza devia

fazê-los mais felizes, mas que, como dissera Mildred Barbel, ‘happiness is a conscious

choice, not an automatic response’” (FONSECA, 1997, p.46). Dessa forma, faltava ao

casal abandonar-se voluntariamente ao instintivo, não esperar que o desejo os invadisse

automaticamente após o laço matrimonial.

Contudo, o brado da natureza invocando o casal é mais forte que sua obsessão

higienista. Como seres humanos, além de homo sapiens sapiens os jovens são homo

cacans (FONSECA, 1994b), não podendo escapar aos ditames de suas entranhas. No

entanto, para tentar ordenar e controlar essa poderosa força da natureza que se rebela

contra a ordenação racionalista, a sociedade, representada pelas ordens da guia Suzete,

legisla sobre as fezes, promovendo uma gramática das excreções.

[Suzete] pediu que ninguém urinasse no terreno, estavam num parque nacional que devia ser preservado, dentro da água podia, ou então no dispositivo sanitário que Boatman estava instalando naquele momento no meio do mato, num local distante, isolado da vista de todos. Para ir ao vaso sanitário a pessoa teria que passar por um ponto onde havia um rolo grosso de papel higiênico numa caixa com um pé comprido espetado no solo. (...) “Quando alguém for usar o dispositivo, deve apanhar o rolo. E depois colocá-lo no mesmo lugar. Assim, a ausência ou presença do rolo orientará os usuários” (FONSECA, 1997, p.47).

Tal legislação, visando ao máximo de pureza, asseamento e individualidade,

prescreve práticas muito mais simbólicas do que realmente ambientais, como a urina

dentro da água. Do ponto de vista ecológico, é absurdo pensar que a urina, líquido

expelido por todos os animais, seria um poluente para a terra, não para o rio. Logo, a

água desempenha, nesse caso, papel alegórico de ablução e purificação, neutralizando e

dissolvendo a sujidade da excreção. Da mesma forma, a necessidade de banir para

dentro do mato a latrina improvisada e impedir o encontro de pessoas a caminho dela

43

muito se assemelha à tentativa do casal de esconder o sangue quando de sua primeira

conjunção carnal.

Apesar dessas restrições com vistas à manutenção da ordem, o temor do caos e da

ambivalência mantém-se preponderante no casal, que se recusa a usar o vaso instalado

por Boatman. Porém, como têm de se curvar à pressão que o abjeto faz em suas

entranhas, decidem urinar no rio, não obstante a guia lhes ter dito “que eles não podiam

tomar banho no rio pois aquele trecho estava infestado de giárdias, um protozoário (...)

que causava fortes diarreias” (FONSECA, 1997, p.48). Assim, temerosos de usar o

sanitário disponibilizado pela empresa de turismo, os jovens acabam se molhando em

uma falsa promessa de higiene – a água –, que os reconduz, mais tarde, à inescapável

latrina.

Sofrendo os efeitos das giárdias – natureza que devolve o homem à sua

semelhança com os animais, por meio da dejeção –, Maurício encaminha-se para o

sanitário, mas surpreende Adriana nas proximidades do dispositivo provido pela

empresa de turismo. Marcados ainda fortemente pelo impronunciável tabuístico, os

jovens não trocam palavras sobre o que os movera a se aproximar do vaso,

simplesmente calados e constrangidos, como criminosos que refletem sobre a falta

cometida.

Maurício foi até o vaso sanitário e antes de sentar olhou a camada de líquido anti-séptico azul-celeste transparente que enchia o receptáculo. E pôde ver com nítida clareza um enorme bolo fecal marrom-escuro submerso no fundo. Um pedaço de papel higiênico amarfanhado boiava na superfície. (...) Aquela asquerosa, imensa massa excrementícia fora expelida por Adriana, e essa constatação o encheu de horror. Espalhou papel profusamente sobre o líquido, de maneira a esconder aquela visão repugnante. Seus intestinos ficaram ainda mais bloqueados. Vestiu as calças e se afastou, com o pouco que restava do rolo de papel higiênico na mão. Quando chegou na caixa onde deveria colocar o papel, parou sem fôlego (FONSECA, 1997, p.54).

A prova do crime hórrido de Adriana, no entanto, era evidente, a despeito de sua

tentativa de ocultá-la com o papel amarfanhado. Note-se, nesse sentido, a oposição entre

a coloração marrom-escura das fezes da moça e a limpidez do “líquido anti-séptico azul

celeste transparente”. Conclamada por seu instinto de homo cacans, a jovem macula

permanentemente a pureza do vaso, alegoria da racionalidade categorizadora que

sustenta as relações sociais e permite ao ego, em princípio, compreender e ordenar o

real.

Tal visão causa em seu marido o que a Teoria da Literatura convencionou chamar

de “epifania”, termo tomado de empréstimo à religião, que, originalmente, indicava uma

44

manifestação reveladora de Deus, em que se revivia o batismo de Cristo. Ian Reid, em

The Short Story, teoriza sobre a relevância desse fenômeno como um átimo peculiar à

estrutura do conto canônico, servindo não só ao desenrolar da narrativa, mas à estrutura

própria da narração.

Poder-se-ia dizer que o conto tipicamente se centra sobre o significado interior de um evento crucial, sobre grandes intuições súbitas, ‘epifanias’, no sentido que James Joyce confere a essa palavra; em virtude de sua brevidade e delicadeza, ele [o conto] pode, por exemplo, singularizar com especial precisão aquelas ocasiões em que um indivíduo está mais alerta ou mais solitário (REID, 1977, p.28).

Todavia, em “Viagem de Núpcias”, a epifania localiza-se na ambiguidade entre o

sagrado e o profano, pois o aspecto de iluminação espiritual não é desencadeado pelo

divino, mas sim por uma “asquerosa, imensa massa excrementícia”. Após deparar-se

com as fezes da amada, Maurício passa a vê-la de outra forma, desejando carnalmente

seu corpo e buscando-a de forma incessante para o sexo. A visão de algo que habita a

fronteira entre o sujeito e o objeto, o abjeto, convida simbolicamente o rapaz a desejar o

mesmo tipo de fusão com a carne da esposa, não mais a amando da pura e asséptica

forma “cândida”.

No monólogo interior que a solidão da latrina permite, o próprio corpo do rapaz

reage ante a visão do abjeto: além da perda do fôlego, “seus intestinos ficaram ainda

mais bloqueados”, reagindo de forma complementar às entranhas da Adriana. O que um

expele, o outro retém, como no ato sexual. Entretanto, no lugar do sêmen jorrado pelo

homem e retido pela mulher, apresentam-se no conto as fezes expurgadas pela moça e

guardadas por seu marido.

Feito o ato sexual simbólico, posto no papel do livro pelo autor e no papel

higiênico pelo casal, segue-se-lhe a cópula carnal, ocorrida quando ambos se encontram

na barraca.

Adriana entrou na barraca. Maurício tirou a roupa dela delicadamente, depois se desnudou também, feliz com sua virilidade latejante. Deitaram-se e ele beijou Adriana na boca, sorvendo a saliva dela, e pacientemente percorreu com a língua as mais recônditas partes do corpo da mulher que amava (...). Depois possuiu-a com um ardor que nunca tivera, e esperou que os braços e as pernas da sua mulher se enlanguescessem no gozo para fruir aquela comunhão com um deleite que não imaginava pudesse existir (FONSECA, 1997, p.55).

Despido das preocupações de assepsia prática e simbólica, o casal finalmente goza

junto a fusão de suas carnes e a troca de seus líquidos, suspendendo no momento da

cópula a descontinuidade (BATAILLE, 1987) de seus corpos. Depois da visão do abjeto

45

nascido das vísceras de Adriana, Maurício sorve com prazer outras excreções da amada,

como sua saliva.

Mais do que isso, percorre as partes mais recônditas – anteriormente vistas como

sórdidas – do corpo da esposa com a língua, criando-se, no plano do enunciado, uma

cena de forte carga erótica. Contudo, o gozo tem eco no plano da enunciação, graças ao

truque metalinguístico em que uma língua que percorre o que há de recôndito no

organismo pode também ser lida como metonímia da linguagem despudorada.

Na obra de Rubem Fonseca, tal estratégia de composição literária dá materialidade

ao texto, que pode ser percorrido eroticamente com uma língua que toca o

impronunciável. Nesse sentido, a máxima de que a perversão é o regime do prazer

textual (BARTHES, 2006) ganha ressignificação: perverso ao passar a língua no

recôndito do corpo e se excitar coprofilicamente com as fezes, o prazer também é

perverso por deslocar o erotismo do genital para o literário, convidando o leitor ao gozo

ao tocar com a língua literária o inefável ambivalente do corpo do idioma.

46

CAPÍTULO II: OS TEXTOS DO CORPO E O CORPO DO TEXTO: UMA LITERATURA FECAL

“Un arabe qui va chier n’emporte pas une poignée de papiers, mais un peu d’eau dans une vieille boîte de

conserve... L’occidental est tellement entiché de paperasserie qu’il s’en fourre jusque dans le cul”.

Michel Tournier. Les météores, 1975.

“O mundo está dividido entre os que cagam bem e os que cagam mal. Sobre esse dogma

o médico elaborara toda uma teoria do caráter, que considerava mais certeira do que a astrologia”.

Gabriel García Márquez. O amor nos tempos do cólera, 1985.

A literatura não morreu

Tema controverso, “pós-modernidade” é um termo por si só polêmico que designa

um período da história das mentalidades destacado por um grupo de pesquisadores,

enquanto outros dizem que se trata apenas de uma setorização excessiva dos últimos

anos da modernidade. Nesse sentido, vale lembrar que “a própria definição de período

como fase marcada por uma mudança de direção implica, simultaneamente,

continuidade e ruptura” (PANOFSKY, 1981). Porém, a despeito de divergências de

nomenclatura e embates epistemológicos, é consenso que, a partir da década de 50, a

sociedade ocidental passou por drásticas transformações tecnológicas, econômicas,

políticas e culturais, redundando em uma necessidade de estudos especializados acerca

desse período histórico.

Sob os rótulos de pós-modernidade, hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2004) ou

modernidade líquida (BAUMAN, 2001), para citar apenas os mais célebres termos,

encontra-se uma era de fluidez e incertezas, como sugere a terminologia baumaniana.

Enquanto a modernidade foi marcada pela crença racionalista nos poderes da ciência e

da lógica como mecanismo de compreender o mundo, a pós-modernidade depara-se

com a falência desses ideais. A razão, eleita como sólido pilar das ações humanas desde

o fim da Idade Média, esvai-se entre os dedos e se mostra deformável, maleável e

relativa, como só os líquidos sabem ser, visto que facilmente se adaptam ao formato do

recipiente em que são despejados.

Sem balizas fornecidas pelo esclarecimento, as quais paradoxalmente impedem o

sujeito de pensar de forma autônoma, já que pode confiar suas dúvidas ao poder

47

inexorável da razão, o homem pós-moderno vive o impasse da incerteza. Noções de

certo e errado, feio e belo, naturalizadas na vida em sociedade, revelam-se meros

construtos culturais, de modo que o indivíduo contemporâneo deve escolher em que

narrativa quer acreditar. Perdido no labirinto dos relativismos, o sujeito não pode fazer

mais do que se abandonar à vertigem do não-saber.

Denunciadas como parcialidades, as grandes metanarrativas (LYOTARD, 1986)

perdem seu caráter de verdade absoluta, revelando-se apenas versões do insondável

mistério que é o real. Ciência, religião, moral, tradição, norma e desvio assumem, pois,

seu caráter discursivo como meras construções linguísticas que tentam, sempre de forma

muito precária, explicar o universo e a condição humana.

Nesse contexto de fim das grandes metanarrativas, situa-se a polêmica obra de

Após o fim da arte (DANTO, 2006), que, dado seu título, suscitou interpretações

simplistas e deturpadoras de sua tese sobre os limites da história na arte contemporânea.

Leituras apressadas das teorias do autor fomentaram as discussões alarmistas de que a

arte chegava ao fim, profetizando um inverossímil futuro em que não haveria mais

artistas. Tais posicionamentos geralmente foram respaldados por visões de que a técnica

alienante substituiria a arte, pervertida em mero item de consumo na indústria cultural.

Todavia, Danto (2006) esclarece em seu livro que o fim da arte não seria o fim da

produção da arte, ao contrário do que dizem os que alardeiam o declínio da literatura.

Em vez disso, a teoria do fim da arte aponta para o ocaso das definições fechadas do que

seja ou não artístico, ampliando-se ao infinito as possibilidades no trabalho estético.

Trombeteira do apocalipse, a mídia alardeia o fim da literatura, a morte dos livros,

o sepulcro da leitura como a conhecemos, sendo substituída pela apoteose do

audiovisual. A profecia é antiga, tendo surgido com a invenção do cinema e culminado

na segunda metade do século XX, quando da popularização do aparelho televisor e,

posteriormente, quando os personal computers invadiram os lares de todo o mundo,

prometendo acesso fácil e instantâneo a todo tipo de informação.

Contudo, essa falsa predição é fruto do charlatanismo de uma série de

Nostradamus da contemporaneidade, que apelam à doxa e aos impactos das afirmações

cataclísmicas para veicular seus próprios interesses. A literatura, prática inerente à

condição humana, só pode ter seu fim anunciado em profecias irracionais, não baseadas

em critérios científicos, racionalistas ou empíricos, visto que apenas o desaparecimento

do gênero humano acarretaria a morte da arte da palavra. Sintomas do mal-estar na

modernidade (ROUANET, 1993), os prognósticos do óbito da literatura denunciam

48

muito mais a crise dos critérios científicos e da razão – inclusive no meio acadêmico,

que por vezes também anuncia o fim da literatura – que do trabalho estético com a

palavra.

Em sua argumentação sobre o fim das metanarrativas artísticas, Danto (2006)

remete a um tempo em que não havia arte, isto é, em que a elaboração estética da forma

não tinha estatuto artístico. Dos primeiros rabiscos nas paredes de cavernas às imagens

devotas cristãs produzidas até o ano de 1400 d.C., o trabalho estético não era

considerado arte, pois sequer existia tal conceito. Essas obras não eram nem mesmo

atribuídas a seus produtores, sendo a própria noção de autoria cunhada quando do

surgimento da ideia de arte. Assim, a arte anterior à era da arte estava ligada ao

sobrenatural, com poderes encantatórios sobre as caçadas de animais ou como fruto de

intervenções do Espírito Santo, que fazia do gênero humano apenas um veículo das

revelações divinas. Logo, embora já houvesse homens colocando laboriosamente

marcas em superfícies, essa atividade não era considerada inserida em estilos ou

tendências, conceitos criados apenas na Renascença. Até então, o que havia eram

manifestações espirituais que, com o posterior advento do conceito de arte, tornaram-se

também objeto de estudos estéticos.

De maneira semelhante, Após o fim da arte advoga por uma nova era em que são

improcedentes as discussões do que seria artístico ou não. Continuam existindo o

artista, a obra e a recepção; o que desaparece são as narrativas definidoras do estatuto

artístico dos objetos, normatizando técnicas, tendências e materiais. A teoria de Danto

seria, pois,

(...) um meio algo dramático de declarar que as narrativas mestras que primeiro definiram a arte tradicional, e depois a arte modernista, não só chegaram a um fim, mas que a arte contemporânea não mais se permite ser representada por narrativas mestras de modo algum. Aquelas narrativas mestras inevitavelmente excluíam certas tradições e práticas artísticas como “além dos limites da história” – uma frase de Hegel à qual recorri mais de uma vez. É uma das muitas coisas que caracterizam o momento contemporâneo da arte – ou o que denomino o “momento pós-histórico” – em que não há mais limites da história. Nada se encontra interditado (...). O nosso é um momento, pelo menos (e talvez unicamente) na arte, de profundo pluralismo e total tolerância. Nada está excluído (DANTO, 2006, p.XVI).

Sem previsão de morte, a arte em geral e a literatura, mais especificamente neste

trabalho, continuam sendo produzidas após o que Danto anunciou como o fim da arte,

referindo-se ao ocaso das narrativas que a regulam. Desse modo, no presente momento,

em vez de pós-modernismo, talvez seja mais apropriado utilizar uma forma plural, “pós-

49

modernismos”, para tentar dar conta da multiplicidade de facetas que assumiu a

produção cultural após a década de 50.

Ao assumir seu caráter multíplice, a pós-modernidade afasta-se de um dos

preceitos básicos da modernidade: o discurso normativo da pureza de temas, técnicas e

suportes, em que não deveria haver misturas ou criações liminares entre arte e não-arte.

Tal distinção entre moderno e pós-moderno, tomada pela maioria dos especialistas

como um sólido argumento a justificar a necessidade de diferenciar ambas as instâncias,

é parte integrante de um fenômeno maior, que perpassa as subjetividades em ambos os

períodos.

O homem da modernidade racional buscou a pureza em seu raciocínio, instalando

classificações e ordenações lógicas do real, de modo a catalogar os objetos cognoscíveis

em categorias predeterminadas. Os que não se encaixassem em tais divisões arbitrárias

eram considerados um refugo nocivo a ser expelido, como reflexo do processo

civilizatório que impõe os ditames da cultura a tudo o que é natural. Nesse contexto,

limpezas étnicas e culturais foram perpetradas, em busca de uma suposta pureza: o

holocausto judeu, a chacina dos índios, a aculturação das colônias estavam na agenda

moderna como práticas ordenadoras, substituindo o caos pela ordem, o aleatório pela

pureza.

Dada a crise dos valores racionalistas na pós-modernidade, que descobre a

parcialidade da própria ciência, até a pureza da razão é questionada. A defesa do

indômito e do natural ganha corpo nos movimentos ecológicos crescentes e as noções

de centro e periferia são questionadas. O termo excêntrico, empregado geralmente para

designar o diferente, ganha contornos politicamente incorretos, porque indica o que está

fora do centro, sugerindo uma hierarquia de valores.

(...) “Viva às margens!”. O movimento no sentido de repensar as margens e as fronteiras é nitidamente um afastamento em relação à centralização juntamente com seus conceitos associados de origem, unidade e monumentalidade, que atuam no sentido de vincular o conceito de centro aos conceitos de eterno e universal. O local, o regional e o não-totalizante são reafirmados à medida que o centro vai se tornando uma ficção – necessária, desejada, mas apesar disso uma ficção (HUTCHEON, 1991, p.85).

Sem distinção entre centro e periferia, borrados em um locus indiferenciado, o

excêntrico (fora do centro) torna-se “ex-cêntrico” (que não é mais cêntrico). Nesse

contexto, minorias antes expurgadas pelo sistema social ganham voz, como nos

50

movimentos gay, negro, indígena e hippie, militantes pelo fim da proclamada pureza

superior dos padrões impostos pela sociedade.

De maneira análoga, tais concepções acerca de (im)pureza se percebem nas

diferenças entre as produções artísticas da modernidade e da pós-modernidade, visto

que a arte, mais do que reflexo, é parte do processo social em que se insere.

Os impulsos internos do modernismo (...) eram completamente fundacionalistas. Cada uma das artes, tanto a pintura como as outras, tinha de determinar o que era peculiar a si mesma – o que pertencia somente a ela. É claro que a pintura “estreitaria a sua área de competência, mas ao mesmo tempo tornaria a posse daquela área ainda mais certa”. Portanto, a prática de uma arte foi, ao mesmo tempo, uma autocrítica daquela arte, o que significou a eliminação, de cada uma das artes, de “todo e qualquer efeito que pudesse ser concebidamente tomado por empréstimo de ou pelo meio de qualquer outra arte. Com isso, toda arte se tornaria “pura”, e em sua pureza encontraria a garantia de seus padrões, bem como de sua independência. “Pureza” significa “autodefinição”. Note-se a agenda da crítica da arte aqui implícita: é uma crítica a uma obra de arte impura, e isso quer dizer, que contenha uma mistura de qualquer outro meio exceto ela mesma (DANTO, 2006, p.77).

Se a modernidade buscou uma arte pura, sem contaminação de outros fenômenos

estéticos, a pós-modernidade celebra a multimodalidade artística, fundindo linguagens,

técnicas e materiais. Na colagem misturada à pintura; na escultura feita de pessoas

vivas, à guisa de dança; ou no entre-lugar de cinema e teatro, a arte contemporânea

busca fusões e experimentações, negando as categorias estanques propostas pela

ordenação racional moderna.

Assim, de fato há hoje uma mudança nos paradigmas segundo os quais

concebemos o fenômeno literário, tanto no que tange à própria tessitura textual quanto à

sua produção e recepção. Porém, não está morta a arte da palavra, tem apenas uma nova

forma de ser, em paralelo à tradicional impressão em offset sobre papel branco. Nesse

contexto, as potencialidades surpreendentes dos avanços tecnológicos dão ensejo a

inovadoras possibilidades literárias, prescindindo inclusive do suporte físico do papel.

Como consequência, os próprios processos de enunciação mudam, visto que a seleção

do canal influencia a constituição da mensagem, bem como sua recepção (JAKOBSON,

1995). Assim, a literatura pós-moderna, em oposição à moderna, não busca uma pureza

de origens, mas sim uma arte multimodal: estética do fragmento que recomponha, ainda

que precariamente, os estilhaços da crise das tradições e das certezas racionalistas.

No entanto, a influência da tecnologia de ponta sobre a forma de se produzir, fruir

e conceber a literatura não é prerrogativa da pós-modernidade. Muito antes, Gutenberg

já revolucionara a arte da palavra com sua prensa de tipos móveis.

51

Ela substituiu o manuscrito pelas cópias idênticas, introduziu o livro portátil, criou o caderno com páginas numeradas, índices e sumários, para dizer pouco. Tais alterações técnicas revolucionaram o conteúdo da cultura, no que se refere a quem produz e a quem tem acesso aos seus frutos: é quando surge a noção de autor e se amplia o número virtual de leitores (PELLEGRINI, 1999, p.15).

Permitindo narrativas mais longas e densas, facilmente reprodutíveis graças à

nova tecnologia, a invenção alemã trouxe contribuições significativas para o próprio

processo da enunciação, menos preso às antigas restrições de produção e circulação do

livro. De maneira análoga, o atual império do audiovisual, em que as subjetividades

pós-modernas se acostumam a uma série ininterrupta de bombardeios informacionais

que afetam todos os sentidos, especialmente a audição e a visão, traz mudanças

profundas à maneira como concebemos literatura.

“Quantidade, movimento, visibilidade, simultaneidade de tempos e espaços”

(PELLEGRINI, 1999) são categorias inauguradas pela técnica da fotografia, que

suplantou a pintura em sua capacidade mimética. Mais eficiente do que as pinceladas de

qualquer indivíduo, mesmo o obsoleto daguerreótipo reproduz com alta perfeição o real,

captando todos os seus matizes de luminosidade. Assim, desbancada por seu rival

tecnológico de reprodução imagística, a pintura teve de se reinventar, deixando de lado

os academicismos e a obsessão pela cópia do natural, abandonando-se a desvarios de

cores, formas e texturas de que a fotografia não seria capaz.

Na mesma corrente, o cinema e, mais recentemente, a televisão fundem sua

sintaxe à literária, que ganha com truques cinematográficos tanto no plano do conteúdo

como no da forma. Rubem Fonseca, por exemplo, autor estudado no presente trabalho,

põe nas mãos de seus narradores câmeras que vão da panorâmica ao contre-plongée,

com closes da objetiva para captar momentos excruciantes da dicção. Assim, a ficção

contemporânea ganha em visualidade, fazendo-se do abstrato e do conceitual apenas

descaminhos em que se volta à apoteose da imagem. Destaca-se, pois,

a importância atribuída à técnica de narrar na modernidade, tanto no cinema quanto no romance, como se evidencia através da recusa à linearidade, da fragmentação do discurso, da atomização do tempo, da relevância do ponto de vista, da diversidade de vozes narrativas, da falta de homogeneidade semântica, da dissonância de elementos justapostos e da desordem na sequenciação dos episódios (BARBIERI, 2003, p.25).

Os sujeitos fragmentados pós-modernos, que sofrem o colapso da visão

monadológica da identidade, reconhecem-se no narrador e nas personagens com que se

defrontam, cuja linguagem, tomada de empréstimo às recortadas e justapostas cenas da

tevê e do cinema, é marcada pela atomização e pela fragmentação. Analogamente, a

52

tessitura entrecortada da prosa contemporânea, repleta de ruídos e nonsenses,

assemelha-se ao turbilhão informacional pós-moderno, em que se chocam e sobrepõem

dados de todos os lados, por vezes resultando em uma cacofonia incompreensível.

Nessa fusão de letra e imagem, significante e significado, audição e visão, a ficção

pós-moderna transcende o conceito de polifonia (BAKHTIN, 2002), instaurando uma

prosa absurdamente sinestésica. Surge, assim, no intercâmbio semiótico da literatura

contemporânea, a polieidolia, caleidoscópio de imagens fônicas que vêm acopladas a

imagens visuais (BARBIERI, 2003).

De maneira análoga, a era da computação trouxe uma série de mudanças e

contribuições à prática literária, inclusive a leitores e autores que se julgavam infensos à

tecnologia de ponta: processadores de texto, arquivos digitais, impressão a laser e

comercialização na Internet são apenas algumas das inescapáveis influências da ubíqua

informática sobre a literatura.

Porém, como o desenvolvimento tecnológico é ininterrupto e cada vez mais veloz,

mesmo essas contribuições já podem ser consideradas pretéritas, se comparadas com a

tendência cada vez maior de abandonar o papel como suporte do literário. Embora

muito do que se produz hoje no meio digital possa, com custos mais altos e menor

possibilidade de divulgação, ser impresso, como se faz tradicionalmente desde o invento

de Gutenberg, a revolução computacional influenciou sobremaneira o próprio processo

de enunciação, surgindo uma poética exclusivamente virtual. É o caso de obras literárias

interativas e hipertextuais, bem como aquelas que se constroem holograficamente como

realidade virtual e cuja realização não é possível sem o apoio da tecnologia digital.

Nesse sentido, vale chamar atenção para a etimologia da própria palavra tela, interface

em que o leitor pós-moderno tem contato com os textos, sejam de televisão, cinema ou

computador. O vocábulo latino tela é uma contração da forma texela, derivada de

texere, que equivale ao atual verbo “tecer”. Sendo assim, toda tela é um tecido de

informações, um texto em que se entremeiam, como na página de papel, mas de forma

pluridimensional, os fios da linguagem.

Tal forma de literatura, que troca a celulose pelo cristal líquido como superfície de

inscrição, está em plena consonância com o perfil do leitor pós-moderno, moldado pelas

peculiaridades de nosso tempo. Trata-se de

um leitor em estado de prontidão, conectando-se entre nós e nexos, num roteiro multilinear, multi-sequencial e labiríntico que ele próprio ajudou a construir ao interagir com os nós entre palavras, imagens, documentação, músicas, vídeos etc. Trata-se de um leitor implodido cuja subjetividade se

53

mescla na hipersubjetividade de infinitos textos num grande caleidoscópio tridimensional onde cada novo nó e nexo pode conter uma outra grande rede numa outra dimensão. Enfim, trata-se aí de um universo inteiramente novo que parece realizar o sonho ou alucinação borgiana da biblioteca de Babel, uma biblioteca virtual, mas que funciona como promessa eterna de se tornar real a cada click do mouse (SANTANELLA, 1998, s.p.).

Retirando a primazia do papel sobre o literário, a tecnologia digital potencializa ao

infinito as possibilidades do intertexto e do hipertexto, bastando um clique para que as

relações de dentro e fora do texto original sejam transgredidas. Assim, o

desenraizamento espaciotemporal engendrado pela globalização, que desvincula as

clássicas relações newtonianas de tempo e espaço, contamina a esfera do literário. O

cristal líquido da modernidade também líquida (BAUMAN, 2001) fluidifica as margens

textuais, dadas as múltiplas possibilidades de janelas simultâneas na navegação digital.

No entanto, uma das maiores características da pós-modernidade é o pluralismo de

tendências, de modo que muitos autores negam ou ignoram a literatura digital. Outros,

como Rubem Fonseca ou Patrícia Melo, ao criarem personagens que leem textos

escritos por Deus em suas fezes, apontam para o fato de que o corpo é o locus por

excelência da produção artística e a instância de significação primeira de qualquer

semiótica, visto que o somático fala e seu discurso pode ser trabalhado esteticamente.

A propósito de textos fora do papel, redigidos e veiculados em outras superfícies,

Rubem Fonseca propõe, desse modo, uma ruptura absolutamente pós-moderna:

questionar o passado voltando a ele, em um pastiche historiográfico. Assim, seu conto

“Copromancia” (2001) aponta, no plano do conteúdo, para uma tradição textual anterior

ao próprio papiro: a escrita do corpo. Se a pele é milenarmente usada como superfície

textual na tatuagem, o ficcionista mineiro reedita de maneira inusitada o literário

corporal, criando personagens que escrevem e leem fezes, falas somáticas enunciadas

pelos intestinos.

De forma semelhante, Patrícia Melo também se vale da metáfora das fezes para

questionar as certezas que permeiam o estudo literário, como a noção de autoria, a

conceituação dos elementos da narrativa, ou mesmo o fato de que livros devam ser

impressos em papel. Escrevendo um romance sobre um plágio às avessas do conto

“Copromancia”, a autora dialoga diretamente com Rubem Fonseca, que se torna seu

personagem na narrativa de Jonas, o copromanta, texto de papel sobre a textualidade do

excreta.

Escatológica – nas múltiplas significações que esse adjetivo permite –, essa forma

fecal de encarar o texto ora indaga o suposto fim da literatura (eskhátos, em grego,

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designa o fim das coisas), ora chama atenção para o papel das fezes como signos a

serem decodificados (skatós, em grego, indica os excrementos). Mostrando a

impertinência das teorias que advogam a crise da literatura, a hecatombe dos artistas e

demais profecias alarmistas, a escrita do expurgo intestinal, tema a ser investigado neste

capítulo, revela a renovação de antigas possibilidades estéticas como arte

contemporânea.

Assim, se a minissaia já entrou e saiu de moda várias vezes, o mesmo vale para a

literatura sem papel. Antes do papiro, os sumérios já escreviam em tábuas de argila e, ao

longo de toda a história da humanidade, as escritas na superfície do corpo estiveram

sempre presentes, seja como tatuagem, body-art ou mesmo, no caso de “Copromancia”

ou Jonas, o copromanta, como no bolo fecal. Portanto, a aparentemente esdrúxula

metáfora adotada por Rubem Fonseca e Patrícia Melo não é mais do que uma volta

anterior à era da arte (DANTO, 2006) para defender a arte após o fim da arte, valendo-

se da escrita do corpo como forma de protesto contra os falsos Nostradamus.

O corpo textual

Para se inscrever no mundo, o homem sempre escreveu, mesmo quando ainda não

conhecia o papel ou o alfabeto. Adotando outros códigos, não se pode dizer que

desenhos, sintomas e profecias não sejam formas de leitura ou escrita, visto que

envolvem a incisão e a decodificação de marcas gravadas – efêmera ou eternamente –

em alguma superfície. Quando, pois, o som não se provou suficiente para portar uma

mensagem – pictórica, neurótica ou divina – o homem talhou, rabiscou ou manchou o

mundo à sua volta. Assim, como depois da informática o papel parece perder espaço

como superfície textual, houve um tempo em que o papel sequer existia e o corpo da

escrita era realizado, primeiramente, como escrita no corpo.

Se a linguagem é um fenômeno exclusivo do homem e a escrita uma invenção que

nos humaniza ainda mais, permitindo uma mais profunda perscrutação do que seja a

condição humana, não é de se estranhar que um dos primeiros suportes da garatuja

tenha sido o próprio corpo. Como é nos limites da carne que o indivíduo experimenta

pela primeira vez a noção das fronteiras entre sujeito e objeto, nada mais justo que nessa

mesma carne ele inscreva – e escreva – marcas culturais da sua humanidade.

As inscrições da natureza sobre o corpo são nítidas: feridas, rugas e manchas

contam, na superfície do homem, sua história – onde esteve, por quanto tempo o fez, se

55

riu ou chorou. Muitas sociedades valorizam tais marcas como sinais da maturidade e

índices de uma narrativa que asseguram ao sujeito status no grupo, como alguém capaz

de reconhecer os próximos traços que o narrador suprassensível imprimirá em seus

personagens.

A sociedade ocidental, no entanto, na voracidade pós-moderna pelo descartável e

pelo efêmero, cria técnicas que apaguem, mesmo que de forma precária, os traços da

narrativa natural. Botox, lasers e academias de ginástica fazem da vida um eterno

flashback, em que as cenas parecem não se suceder de forma cronológica. As marcas

impressas pelo tempo devem ser escondidas tais quais avisos profanos da decadência,

como se fosse possível reeditar uma narrativa sem fim no mundo real. Sherazzades

frustradas, aqueles que não aceitam o clímax e o desfecho de suas histórias passam o

tempo todo empreendendo uma luta entre natureza e cultura, esta tentando dominar

aquela, mas sem sucesso. O sultão tem de matar Sherazzade ao fim das mil e uma

noites, mesmo que ela tenha escondido de seu rosto as marcas da narrativa que se

desenrolou ao longo dos anos.

Em paralelo a essa tentativa de apagar o texto que o tempo escreve no corpo, as

sociedades paradoxalmente têm gosto por chamar atenção para o caráter antinatural do

somático, revelando-o como um construto cultural, permeado, pois, pela linguagem. Por

um lado, a multiplicação de células e a formação de estruturas biológicas se dão na

esfera da natureza. Por outro,

que o corpo porta em si marcas da vida social, expressa-o a preocupação de toda sociedade em fazer imprimir nele, fisicamente, determinadas transformações que escolhe de um repertório cujos limites virtuais não se podem definir. Se considerarmos todas as modelações que sofre, constataremos que o corpo é pouco mais que uma massa de modelagem à qual a sociedade imprime formas segundo suas próprias disposições: formas nas quais a sociedade projeta a fisionomia do seu próprio espírito (RODRIGUES, 2006, p.62).

Nesse contexto, revelam-se ainda mais infundadas as alarmistas previsões de que a

sociedade do audiovisual, em detrimento da validade do papel como registro da

informação, assiste à morte da literatura. Desde que se concebeu como um ser da

cultura, diferente dos demais, em oposição à natureza, o homem percebeu sua

necessidade de relatar. Assim, metalinguisticamente, adotou seu próprio corpo como

suporte de textos que invariavelmente remetem de volta à experiência corporal. Na

relevância do somático para o ato de narrar em todas as épocas, destaca-se o papel da

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mão, não só como órgão que conduz a pena, a caneta ou a tecla, mas que medeia, por

excelência, a relação com o real.

O papel da mão no trabalho produtivo se tornou mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, apreendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito.) A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão, típica das obras de Valéry, é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada (BENJAMIN, 1985, p.220).

Associadas ao trabalho e ao manuseio das ferramentas, as mãos são sempre

propulsoras do fazer, seja este de ordem prática ou artística. Tal possibilidade de

fabricar instrumentos que facilitam a sobrevivência, um dos marcos adotados pela

Antropologia clássica para distinguir a passagem do homem da natureza à cultura, foi

engendrada pela morfologia das mãos humanas, dizem os especialistas. Dotado de um

polegar opositor que pode ser girado contra os dedos, o que permite pegar objetos de

diferentes tamanhos com a mesma eficiência e manipulá-los com maior destreza, o

homem tanto tem força para agarrar quanto precisão para desenvolver movimentos

sutis. As atividades executadas pelas mãos humanas são bastante diversificadas e

possibilitaram não somente a utilização de ferramentas pesadas, como a lança e o

machado, mas também utensílios escreventes, como o pincel, a caneta, a pena.

Relacionado por Benjamin (1985) à narrativa, o fazer da mão humana – e do corpo

todo, por extensão – ganha ordem literária. Nesse sentido, vale ressaltar que “fazer” tem

a mesma etimologia de “fezes”, metáfora eleita por Rubem Fonseca e Patrícia Melo

como designadora dos textos do corpo. Enquanto alguns analistas da pós-modernidade,

temerosos do fim da literatura, proclamam uma futura inexistência de artistas, os autores

de “Copromancia” e Jonas, o copromanta mostram que a arte da palavra pode se dar em

qualquer superfície, mesmo que lida contra a louça do vaso sanitário.

Quaisquer práticas de escrita/leitura do corpo fazem, portanto, com que nos

apropriemos dele cada vez mais, imprimindo assinaturas na carne. Dessa forma,

aproximamo-nos do corpo, reafirmando sua pertença ao sujeito, mas fazemos dele

superfície textual, avizinhando-o da noção de objeto cognoscível e interpretável.

Oscilando na fronteira inicial que funda a metafísica, o corpo se revela suporte de

signos que (de)codificam os mistérios da existência.

Nossos corpos não são tão nossos assim, e o trabalho de apropriar-se, habitar, incorporar, tornar nosso o corpo próprio, trabalho iniciado na primeira infância, desdobra-se nas infinitas vicissitudes de um processo que

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só termina na morte. Nossos corpos são sempre alheios, sempre demasiados, sempre insuficientes. Isso não é curável, não é um problema a ser lamentado ou sanado, é a própria marca constitutiva de nossa corporalidade (PORTINARI, 2002, p.141).

No que tange a essa aproximação entre corpo e linguagem, é fulcral a contribuição

da Psicanálise, que funda uma verdadeira hermenêutica da linguagem do inconsciente,

articulada por todos os poros do sujeito. Tal visão revela-se divisora de águas no

pensamento ocidental, que, desde Platão, opunha corpo e alma como esferas imiscíveis.

Desse modo, Freud, ao revelar que o corpo comporta também uma anatomia de

símbolos, retoma a fusão entre somático e psíquico, desfazendo uma cisão impensável

na filosofia pré-socrática. A respeito da relação entre esses dois polos, na qual se

instaura a linguagem, é relevante o que diz a Semiologia, como ciência que estuda o

corpo dos signos (e, por consequência, os signos do corpo): “Aquilo que nega a

oposição teológica entre o corpo e alma: é o corpo sem oposição, e, logo, privado de

sentido: é o dentro aplicado, como uma bofetada, ao íntimo” (BARTHES, 1990, p.189).

Se o inconsciente funciona como um texto em que se inscrevem os traços

mnêmicos, o homem, a todo o tempo, opera uma tradução intersemiótica dessa

linguagem caótica, por meio de signos do corpo. A própria aquisição da palavra seria

um aprendizado corpóreo, não mentalista, visto que a primeira forma de símbolo que a

criança reconhece são as partes do próprio organismo. Mesmo na ausência da palavra

para dizer o impronunciável, tal qual na experiência da angústia ou na necessidade da

metáfora, a sintaxe corpórea é a única forma de comunicar, pois “faltando significante,

não há distância entre o gozo e o corpo” (LACAN, 1991, p.169).

A respeito da linguagem do corpo como manifestação do inconsciente, destacam-

se os escritos iniciais freudianos acerca da histeria, patologia em que há a conversão de

afetos psíquicos em corpóreos (FREUD, 1996b), de modo que o doente não “pense”

suas representações angustiantes. Em lugar de elucubrações mentais ou verbais acerca

do trauma, o histérico adoece fisicamente, mas sem uma causa orgânica. Assim, o

sintoma, fala do corpo, remeteria

a outra cena em que está em jogo uma satisfação substitutiva de uma fantasia de conteúdo sexual. Essa outra cena fala do sujeito através do corpo, possibilitando sua aparição como sujeito barrado. A conversão histérica, portanto, é uma formação do inconsciente, onde o que se observa são efeitos de corpo da linguagem inconsciente, fundada por uma operação simbólica irredutível, onde aparecem os sinais da mensagem do Outro (NICOLAU, 2008, p.1).

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“Fantasia”, “cena”, “fala”, “linguagem”, “simbólica”, “mensagem”: mais do que à

esfera da saúde mental, esses termos são caros à ficção e, portanto, à literatura. Fora do

papel ou da tela de cristal líquido, o inconsciente como linguagem fala por todo o corpo.

Não havendo verdade ou mentira, fato ou ficção para a psicanálise, aos leitores do texto

inconsciente na carne impõe-se um pacto de leitura, como na apreciação dos romances:

impera ali a verdade do sujeito, infensa à lógica do mundo exterior, sendo preciso

substituir o verdadeiro pelo verossímil para se acompanharem as narrativas de qualquer

sintoma.

Linguagem somática, o sintoma, a despeito do sofrimento, traz sempre um gozo,

permitindo, literalmente na calada do corpo, a realização de impronunciáveis fantasias.

Como texto que faz gozar no deslocamento de uma pulsão sexual, o sintoma aproxima-

se da asserção de que a perversão é o regime textual (BARTHES, 2006). (Per)vertendo

para o corpo o simbólico que opera no inconsciente, o sintoma é signo de uma

linguagem cifrada, cuja leitura pode-se dar no próprio divã da experiência analítica. Ao

promover tamanha revisão do conceito de corpo, Freud opõe ao corpo biológico, objeto

de estudo da Medicina, o corpo pulsional, que seria atravessado pela linguagem e pelo

desejo do sujeito. Afinal,

é na e pela linguagem que se faz essa ultrapassagem no homem de um corpo natural para um corpo dito pulsional. Pensar o corpo como efeito de linguagem equivale a pensá-lo como capturado pelo funcionamento da linguagem. Captura que o coloca numa estrutura que surge mesmo no corpo-máquina para conduzi-lo através dessa lógica incongruente aos caminhos da eficácia simbólica (LIMA, 2005, p.2).

Tal ambivalência entre físico e psíquico lembra as teorias clássicas de que a alma

seria governada por humores benignos e malignos, devendo estes ser expurgados do

corpo para que se reouvesse a saúde. Assim, a dor física seria ao mesmo tempo um

clamor por ajuda e um grito de alívio, devolvendo ao vocábulo pathos, do qual se deriva

“patologia”, a dimensão catártica presente nos escritos aristotélicos sobre literatura. Sem

saber, ao registrar suas impressões relativas ao trágico no gênero dramático, o filósofo

grego elaborava rudimentos de uma teoria da recepção que transcendia o universo dos

tradicionais gêneros literários, aplicando-se inclusive à poética do inconsciente, muito

anterior a qualquer teoria psicanalítica ou literária.

Porém, além de uma linguagem inconsciente, o corpo também é canal de

veiculação consciente de mensagens, por meio do que se convencionou chamar de

linguagem gestual. Em vez de uma leitura ao pé da letra, a leitura da “letra do pé”:

59

mãos, face e todo o corpo combinam-se, em uma escrita que desaparece a cada novo

signo que se escreve, como o que as crianças escrevem na areia e o mar apaga.

Mais antiga do que a linguagem verbal, a corporal acabou marginalizada na

sociedade ocidental após o advento da escrita, visto que esta tem caráter de permanente,

sobrevivendo à passagem do tempo. O gráfico, ao desenvolver-se em uma conjunção de

tempo e espaço no papel, permite sempre um avanço ou um recuo na leitura, dado que

um novo instante para os olhos pode apontar para qualquer outro ponto no texto, sempre

presente. O papel ganhou, assim, caráter documental, de modo que ao escrito se atribui

maior grau de fidedignidade.

O gestual, por outro lado, depende sempre da confiança entre os que se

comunicam, visto que o enunciado se perde no próprio átimo da enunciação. Como

garantir que o gesto foi mesmo efetuado pelo outro? Sem câmeras, cabe apenas o

registro da memória, único papel capaz de reter o graphos gestual. Efêmero, o corpo se

comunica ao longo do tempo, mas em um mesmo espaço, mudando apenas sua

conformação. Isso faz dele o primeiro e mais eficiente palimpsesto da história da

humanidade: não é preciso jamais raspá-lo para abrir espaço para um novo signo, visto

que o próprio instante se encarrega de realizá-lo. Sua mensagem, no entanto, inscreve-se

apenas na retina e na memória, não deixando para trás qualquer prova do crime da

linguagem.

Se ao apreender o real o sujeito incorpora seus sentidos, ao produzir significantes

o sujeito “excorpora” significados, neologismo que aponta para as mensagens enviadas

para fora do corpo, produzidas nas entranhas da carne. O corpo, assim, jamais se

permite calar: mesmo sem pronunciar ou ouvir, o homem não deixa nunca de causar ou

sofrer impressão, quando em companhia do semelhante. Nesse contexto, cabe dizer que,

se comunicar é deixar impressões, são reveladoras as acepções desta palavra:

“impressão”, segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986), corresponde

a um "encontro ou contato de um corpo sobre outro", ou "marca ou sinal deixado pela

pressão de um corpo sobre outro”. Remetendo diretamente ao corpóreo, ressignifica-se

o termo empregado para designar o efeito da invenção de Gutenberg, que une texto e

corpo, papel e marca.

Ao falar das relações entre o corpóreo e o textual, não se pode deixar de lado um

dos maiores documentos da formação da cultura judaico-cristã em que nos inserimos: a

Bíblia. Se do verbo se fez carne, quando da encarnação da figura de Deus em Jesus

60

Cristo, da carne se faz verbo na era da engenharia genética, contrariando-se muitos dos

preceitos bíblicos.

Com a inimaginável evolução tecnológica dos últimos anos, a ciência foi capaz de

decodificar a cifra em que nossa carne foi escrita, lendo nas fitas – não de papel, mas de

cromossomos – os segredos encerrados nos núcleos celulares. De posse desse saber,

como o pecaminoso casal que comeu o fruto da Árvore da Sabedoria, o homem tem

hoje um conhecimento que não está nas Sagradas Escrituras, mas nas “Profanas

Escrituras” do corpo. Assim, de leitor a autor foi um pulo: não mais criatura,

personagem do texto divino, o homem se tornou criador, escrevendo a apocrifia

genética, subversão da noção de autoria perpetrada na intertextualidade entre Jonas, o

copromanta (2008) e “Copromancia” (2001), como se verá nas próximas seções.

Enquanto a engenharia genética, modalidade de escrita da carne, é prerrogativa da

pós-modernidade, a escrita na carne antecede o papel: a tatuagem, que faz da pele uma

escrivaninha (COUY, 2007), eterniza sentidos no corpo humano desde a Idade da Pedra.

Antes mesmo de grafar imagens da caça, como pedido de fartura a entidades supra-

sensíveis, nas paredes de Lascaux, o homem já garatujava sobre si mesmo.

Se é película (pelezinha) o nome técnico dado ao filme, a tatuagem se revela uma

narrativa cinematográfica no corpo, marcando, nas sociedades antigas, os pontos

principais do enredo que envolvem o protagonista-papel: nascimento, puberdade,

casamento, reprodução e morte. Digno de profundas análises discursivas, o texto

tatuado tem uma sintaxe própria, de cores, formas e símbolos compartilhados por cada

comunidade, tal qual os idiomas modernos.

Além disso, toda tatuagem é assinatura, garantindo identidade ao sujeito que a

incorpora. Enquanto sinais de nascença transmitem mensagens divinas,

individualizando o portador das mesmas, a tatuagem é uma marca incrustada pelo

próprio homem em si, identificando-se como também um mensageiro: “O nome é o

tempo do objeto. A nominação constitui um pacto através do qual dois sujeitos

concordam em reconhecer o mesmo objeto” (LACAN, 1987, p.215). Tal axioma revela

o quanto a letra na pele, que nomeia e individualiza o sujeito, é também seu tempo na

memória. Em oposição ao nome dito, que mata o objeto ao permitir a relação com ele in

absentia, a tatuagem é sempre relação in presentia. Diferente do papel, porém, que

sobrevive à passagem do tempo, a tatuagem tem sua finitude decretada tão logo se

inscreve no corpo: por registrar a história do sujeito, garante-lhe eternidade; por

61

alimentar os vermes, com sua morte, garante finitude à sua história. Texto na pele, a

tatuagem se revela, pois, uma narrativa de temporalidade paradoxal.

Também à flor da pele, como a tatuagem, a quiromancia lê nas mãos do homem o

que escreveram as mãos divinas sobre aquele sujeito. Para os praticantes dessa arte

adivinhatória, a palma das mãos seria uma metáfora do universo, em que se veriam as

relações entre os astros e os quatro elementos, cuja conjuntura narraria de forma críptica

o futuro do homem.

Nesse sentido, conta antiga lenda asiática que existe no Himalaia uma caverna

onde vive um iogue de mais de quatrocentos anos de idade, que se encontra em estado

de meditação e que é portador de um antigo livro, feito com peles das palmas de mãos

humanas mumificadas no qual se podem observar perfeitamente suas linhas. Fato ou

ficção, o que importa é a presença da literatura, da escrita e da leitura a despeito da

ausência de papel. Mais uma prova, pois, que a literatura não está morrendo com a crise

do livro: nem que para isso precise arrancar a pele de seu semelhante e encaderná-la, o

homem é sempre um ser de linguagem e exegese. Tal lenda revela, assim, um manual

(literalmente) de Teoria Literária, ensinando as técnicas da hermenêutica quiromante

àqueles que desejarem sua iniciação nos mistérios da análise literária das mãos.

Se são as mãos as estruturas corporais que conduzem a gravação da letra no papel,

assírios, egípcios, chineses e indianos há mais de quatro mil anos leem diretamente as

garatujas na mão, rabiscadas pelo destino. Hoje tomada por muitos como charlatanice,

tal modalidade de leitura – e por que não de literatura? – já foi usada pelas medicinas

chinesa e iogue, tal qual outras leituras do corpo que se fazem em laboratórios da

contemporaneidade, como exames de fezes e urinas.

Aliás, é nesse ponto de convergência de tradições milenares e contemporâneas de

leitura e exegese do corpo que se situam o conto e o romance a serem analisados nas

próximas seções “Copromancia” (FONSECA, 2001) e Jonas, o copromanta (MELO,

2008). Embora a mídia, trombeteira do Apocalipse, anuncie incessantemente o fim da

literatura, a morte dos livros, o sepulcro da leitura como a conhecemos, sendo

substituída pela apoteose do audiovisual, os narradores dos textos supracitados

apresentam ao leitor uma nova possibilidade corpórea de literatura: a escrita fecal, cujos

símbolos se leem nos formatos, cores e cheiros do expurgo intestinal. Bem ao gosto da

pós-modernidade, tal metáfora reedita uma prática anterior a Cristo – a escrita no corpo

– para questionar um recente axioma: o fim da arte da palavra. Enigmáticas – como o

futuro que pretendem elucidar nos textos analisados a seguir, que versam sobre a

62

adivinhação baseada na leitura do excreta –, as fezes lançam ao leitor uma série de

dúvidas, como possíveis profecias também do mundo real. Seriam vaticínios sobre o

futuro da literatura, como os que anunciaram, sem sucesso, o seu fim? Será, depois do

papel e da tela de cristal líquido, que voltaremos à primazia da escrita corpórea, agora

no suporte do vaso sanitário e usando a descarga como borracha?

Uma escrita visceral

Em 2001, Rubem Fonseca, autor famoso por seus escritos marcados pelo

erotismo, pelo brutalismo e pela abjeção, publicou Secreções, excreções e desatinos,

título que explicita desde a capa o conteúdo da obra: trata-se de catorze contos que

narram, um a um, experiências assustadoras e fascinantes envolvendo as excreções

humanas. No livro, há textos sobre urina, catarro, sangue, bafo, saliva, flatulências,

espermatozoides, tumores, menstruação e fezes, sendo este último produto do

metabolismo o tema da presente pesquisa. Ademais, vale ressaltar o caráter

metalinguístico do próprio título, que aponta para a textualidade inerente a essas falas

corporais: secreções e excreções, dizeres somáticos inescapáveis, são também desatinos,

ou seja, algo que não se pode controlar, como um texto que se produz a despeito da

vontade do sujeito. O corpo fala, pois, por si só. O próprio vocábulo “desatino” provém

da raiz tin-, que remete ao verbo “tinir”, ligado às noções de falar, murmurar e tagarelar,

segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001).

Ainda no que diz respeito à capa do livro, é importante perceber a relação que seu

título estabelece com o texto não-verbal que o acompanha: a Vênus de Botticelli,

pintada no auge da Renascença, quando o corpo humano era apreendido artisticamente

sob a ótica da proporção, do equilíbrio e da higidez. Tal imagem, aparentemente oposta

à visão de corpo postulada no título “Secreções, excreções e desatinos”, revela, no

entanto, que é do corpo galante e harmonioso da Vênus que nascem os horrores

excrementícios, tais como as fezes, entrelaçando-se de maneira arguta o belo e o

hórrido. Além disso, sendo Vênus a representação da beleza e da sedução, seu cotejo

com o título afirma o caráter encantatório das secreções e excreções, como desatinos a

que não podemos nos furtar. Assim, artísticas como a tela de Botticelli, as excreções e

secreções do título anunciam-se, desde a capa, como um possível objeto de desejo e de

contemplação, o que se ratifica pela elaboração estética empreendida por Rubem

Fonseca na urdidura dos contos.

63

Tal temática inusitada para uma coletânea de contos reafirma, na

contemporaneidade, a possibilidade de uma literatura que prescinda do papel,

recorrendo não ao meio digital, mas aos rejeitos do corpo como veículo da arte. Nesse

contexto, se a arte da palavra por vezes expressa o indizível, subvertendo os ditames da

fascista língua (BARTHES, 1994), ela trabalha com os restos, rejeitos da expressão

inexprimível. De maneira semelhante, o excreta, sobra inassimilável do metabolismo

corporal, funciona como uma metáfora de significação sempre fugidia, visto que todo

abjeto é, por excelência, inadjetivável (KRISTEVA, 1982). Protegido pelo nojo e pela

repulsa, o abjeto guarda sempre o impenetrável opaco da escrita, o que lhe garante

estatuto artístico e a beleza peculiar ao hórrido.

Em Secreções, excreções e desatinos, destaca-se o primeiro conto como sendo de

extrema relevância para a presente pesquisa, visto que tal texto, escrito no papel,

apresenta um autor-exegeta de seus próprios textos fecais. Seu título, “Copromancia”, é

por si só irônico e auto-referente, como prova a análise etimológica desse neologismo

fonsequiano. Radical derivado do grego, mancia indica adivinhação ou profecia, ideia

também presente nos vocábulos cognatos “astromancia” (sinônimo de astrologia) e

“quiromancia” (arte divinatória de ler o futuro nas linhas e nos sinais das mãos). Sendo

uma palavra de significação obscura para os leitores não iniciados nas ciências ocultas

da Morfologia Composicional, “copromancia” requer o conhecimento de um

“literomante”, que, à guisa de analista, decifre os mistérios por trás dessa combinação

hermética dos símbolos do alfabeto latino.

Por sua vez, o radical também grego copro denota o sema de “fezes”, de modo que

o conto versa sobre a adivinhação a partir da leitura de excrementos, prática de agouro

criada de forma jocosa e satírica por Rubem Fonseca. Vê-se, portanto, que o título exige

análise minuciosa para ser compreendido, assemelhando-se às fezes a que remete.

Nesse sentido, o autor interroga, indiretamente, a primazia do papel como suporte

do texto literário. Embora seu livro não prescinda dessa superfície branca contra a qual

se imprimem as letras negras, seu personagem faz e frui literatura na superfície alva da

latrina, contra a qual se choca a escura massa fecal. Para o narrador-personagem, papel

com algum valor literário há de ser, pois, o higiênico, sendo possível haver literatura a

despeito das conformações tecnológicas desenvolvidas na contemporaneidade.

Ao longo do conto, o narrador em primeira pessoa, autor de textos jornalísticos,

depara-se com a importância de analisar outros textos que produz; estes, contudo, são

compostos de matéria fecal e lidos na louça de seu vaso sanitário, como há muito o

64

homem já faz com a borra de café que se deposita na porcelana das xícaras. Desse

modo, confirma-se o primado dos textos do corpo, em detrimento do invento de

Gutenberg ou mesmo da apoteose do audiovisual, com as telenovelas, o cinema ou o

meio digital.

A abjeção da leitura do copromante contrapõe-se à forma metafísica como tal

modalidade semiótica se impõe, visto que o narrador passa a refletir sobre sua matéria

fecal a partir de um pensamento religioso, durante uma costumeira leitura de jornal no

toalete, como se observa na passagem abaixo:

Mas o certo é que estava pensando em Deus e observando as minhas fezes no vaso sanitário. É engraçado, quando um assunto nos interessa, algo sobre ele a todo instante capta a nossa atenção, como o barulho do vaso sanitário do vizinho, cujo apartamento era contíguo ao meu, ou a notícia que encontrei, num canto de jornal, que normalmente me passaria despercebida, segundo a qual a Sotheby’s de Londres vendera em leilão uma coleção de dez latas com excrementos, obras de arte do artista conceitual italiano Piero Manzoni, morto em 1963. As peças haviam sido adquiridas por um colecionador privado, que dera o lance final de novecentos e quarenta mil dólares (FONSECA, 2001, p.7).

Iniciando o conto com indagações sobre os motivos que teriam levado Deus a criar

as fezes, o narrador chega à ambígua conclusão de que “Deus fez a merda por alguma

razão” (FONSECA, 2001, p.10). Desconstruindo ainda mais o pensamento religioso-

filosófico, as divagações sobre a criação divina dialogam com o cogito cartesiano, na

máxima “Ergo, a merda” (FONSECA, 2001, p.7), acompanhada por um sinal de

interrogação que confirma a desestabilização do pensamento de Descartes. Se pensar

racionalmente provava a existência do homem e de Deus para o filósofo francês, para o

personagem de “Copromancia” (2001) é o ato de defecar que desempenha papel tão

importante.

Ainda no que se refere ao contexto em que o narrador começa a dar atenção às

suas fezes, é mister chamar atenção para o recurso de verossimilhança utilizado por

Rubem Fonseca, que mistura ficção e realidade na passagem supracitada. Para tanto, o

ficcionista lança mão da célebre exposição de Piero Manzoni, que de fato ocorreu em

Londres, em 1961. O artista italiano, decidido a quebrar a austeridade da arte erudita,

preencheu noventa latas com sua matéria fecal, lacrando-as e rotulando-as com o

sintagma Merde d'artista (“Merda do artista”), que dá nome à obra. Além da ideia de

posse entre “merda” e “artista”, ratificada pela arte visual a que estavam vinculadas

essas palavras, há ainda uma possível relação adjetival entre tais vocábulos,

dessacralizando não só a obra de arte como seu criador.

65

Por fim, a decisão de Manzoni de vender essas peças literalmente a peso de ouro –

ditando os preços pela cotação do dia – e o valor absurdo que se dá a tudo o que se diz

arte são ironizados por Fonseca ao dizer a alta quantia paga por um “colecionador

privado”. Nesse sentido, é importante perceber que a “privada” é o destino que se

convenciona dar à matéria fecal cotidiana, a que não se atribui valor artístico algum.

Valendo-se ainda do polissêmico termo que pode designar algo particular ou o vaso

sanitário, a mordaz ironia fonsequiana aponta para uma possível crítica à privatização

da arte: uma criação estética não deveria ser privada, mesmo que feita na privada.

Significante coletivo a suscitar significados individuais, o signo-obra pertence ao sujeito

e ao objeto, ao dentro e ao fora, como o bolo fecal que habita a extremidade do duto

digestivo, na ambivalêcia topológica entre o público e o privado.

Assim, da leitura do jornal à leitura das fezes, o conto se desenrola em um jogo de

ambiguidades entre as esferas textual e excrementícia. Tal aproximação entre a escrita

literária e o bolo fecal é identificável em uma série de passagens, como a que segue:

Os meus duzentos e oitenta gramas diários de fezes continham, em média, cem bilhões de bactérias de mais de setenta tipos diferentes. Mas o caráter físico e a composição química das fezes são influenciados, ainda que não exclusivamente, pela natureza dos alimentos que ingerimos. Uma dieta rica em celulose produz um excreto volumoso. O exame das fezes é muito importante nos diagnósticos definidores dos estados mórbidos, é um destacado instrumento da semiótica médica. Se somos o que comemos, como disse o filósofo, somos também o que defecamos (FONSECA, 2001, p.10).

É importante perceber que o vocábulo “celulose” ratifica tal leitura, visto que

identifica a substância que dá consistência às fezes e às fibras de que são feitas as folhas

do papel em que se escrevem os textos. Assim, a “dieta rica em celulose” pode ser

entendida como a importância das muitas leituras para que se possa produzir um texto

literário de consistência – ou um excreto volumoso. Afinal, a composição das fezes – e

dos textos – depende daquilo que se ingere, seja comida ou leitura. Em lugar de

reafirmar a noção de gênio inspirado, típica do século XIX, Rubem Fonseca reconhece a

importância e a inevitabilidade da influência de outros autores sobre qualquer escrita.

Todo dizer é, pois, um redizer, o que caracteriza a literatura contemporânea, marcada

pela crise da noção de autoria, tema presente em outros textos fonsequianos, como

“Artes e ofícios” (1995a), “Agruras de um jovem escritor” (1994a) e “O caso Morel”

(1995b), bem como no romance de Patrícia Melo, analisado na próxima seção.

Embora talvez pareça exagerado aplicar conceitos da Teoria Literária para

descrever as elucubrações do narrador a respeito de seus textos fecais, ele mesmo

66

emprega termos caros à Ciência da Literatura quando se refere ao seu excreta,

ratificando a textualidade de seus expurgos intestinais.

Toda leitura exige um vocabulário e evidentemente uma semiótica, sem isso o intérprete, por mais capaz e motivado que seja, não consegue trabalhar. Talvez o meu Álbum de fezes já fosse uma espécie de léxico, que eu criara inconscientemente para servir de base às interpretações que agora pretendia fazer. (...) Não vou detalhar aqui os métodos que utilizava, nem os aspectos semânticos e hermenêuticos do processo (FONSECA, 2001, p.13).

Porém, não satisfeito com sua escrita no vaso sanitário, o narrador se dedica à

composição de um Álbum de fezes, em que registra fotos e regras referentes à secreta

hermenêutica fecal, as quais, de tão veladas, sequer podem ser enunciadas no correr da

narrativa. No entanto, texto sobre o texto, o Álbum se revela um construto

metalinguístico, tal qual o conto, discorrendo sobre os percalços da literatura

excrementícia.

Tal semelhança entre “Copromancia” e o Álbum de fezes se mostra um truque

narrativo sutil, expresso na seguinte passagem, que relata a confissão do protagonista à

amada sobre sua leitura fecal: “Contei-lhe tudo e minha narrativa foi acompanhada

atentamente por Anita, que amiúde consultava o Álbum que mantinha nas mãos”

(FONSECA, 2001, p.16). Ao mesmo tempo em que conta a Anita sobre a copromancia,

o narrador fá-lo ao leitor, que tem em mãos Secreções, excreções e desatinos, como a

moça tem o Álbum de fezes. Vale lembrar que Anita, inicialmente, confunde o texto

que tem em mãos com um dicionário de música, o que confirma o caráter artístico dos

textos de dejetos. O livro de Rubem Fonseca revela-se, então, uma espécie de Álbum de

fezes, como o mencionado na narrativa, sendo cada conto dedicado a uma coletânea de

imagens de sua respectiva temática excrementícia. Se a esse fenômeno de encaixamento

a Teoria da Literatura convencionou chamar de mise-en-abîme, é literalmente no abismo

que essa construção textual nos lança: além da noção de profundidade crescente que

essa estrutura de caixas chinesas propõe, o abismático é, por definição, o insondável, o

profundo, o trevoso, tal quais as cavidades do baixo ventre revisitadas em

“Copromancia”.

No entanto, pode ser levada mais adiante a aproximação en-abîme entre o Álbum

de fezes e Secreções, excreções e desatinos. Assim como essa obra de Rubem Fonseca é

composta por uma reunião de textos que partilham entre si uma semelhança temática, o

Álbum de Fezes reúne uma série de fotografias e anotações sobre os bolos fecais do

personagem-narrador, os quais só ganham unidade quando dispostos dentro de uma

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compilação biblíaca. Tal caráter de antologia de fragmentos faz de ambas as obras – a

ficcional e a fictícia – coleções de dejetos, às quais podem se aplicar muitos dos

conceitos benjaminianos sobre o colecionador.

Para Benjamin (1993), a coleção é muito mais do que memória: colecionar é

sempre tentar reter o perdido, retirando-o do continuum da história e lançando-o em

uma esfera infensa ao tempo, em que só há contemporaneidade. Desse modo, cada item

de uma coleção é simultâneo aos demais quando se lhes justapõe – seja na prateleira, na

estante, em um livro de contos ou em um Álbum de fezes –, o que lhe garante

infinitude.

Retirado de seu aqui-agora e inserido na coleção, todo espécime perde seu caráter

funcional e vira objeto de reflexão, metonimizando e eternizando um momento. Desse

modo, como Rubem Fonseca faz com as excreções corpóreas, retendo-as nas páginas de

seu livro para que se tornem passíveis de contemplação estética e filosófica, o

personagem-narrador de “Copromancia” coleciona em seu Álbum de fezes fotos daquilo

que não sobreviveria a uma descarga, mas que carece de ser analisado com minúcia e

mesmo admirado como possibilidade de belo.

Nesse sentido,

ele [Benjamin] aproximou o colecionador do crítico literário, pois este deveria separar os elementos de uma obra de seu marco falso e reconstituir a sua verdade. Benjamin estava convencido de que o "contexto falso" de uma obra se originava não de sua estrutura mas de sua transmissão, na forma como recebemos e assimilamos uma tradição. A tarefa do colecionador tem um elemento destrutivo, porque sempre recebemos junto com um objeto a imagem de uma ordem. Benjamin acreditava que era necessário romper o caleidoscópio. O colecionador, mais que resgatar objetos de suas funções originais, devia colocá-los em outra constelação, criar novas semelhanças. Nesse sentido, o colecionador está entregue ao princípio da montagem, ao reunir os fragmentos da história em uma nova configuração da experiência (PERRONE; ENGELMAN, 2005, p.83).

O crítico literário também coleta e reúne fragmentos que ele recorta de seu

contexto, reorganizando-os em uma dupla vertente: analítica, que os fragmenta e

segrega em descontinuidades a serem estudadas individualmente; e sintética, que os

reorganiza em colagens e montagens as quais potencializam seus significados. Assim,

se as fezes em “Copromancia” podem ser entendidas como metáfora para o fazer

literário, enunciado não pela língua, mas pelo ânus, o narrador-personagem do conto,

bem como Rubem Fonseca, trabalha à guisa de crítico, fracionando, analisando,

recompondo e reorganizando discursos somáticos.

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Tal prática de seleção e coleção de textos excrementícios – sejam contos ou fotos

de bolos fecais – pode novamente ser aproximada do colecionador benjaminiano, na

medida em que este é comparado, pelo teórico alemão, ao chiffonnier, imagem poética

criada por Baudelaire. Tal figura, também conhecida como trapeiro, ficou imortalizada

pelo autor de Do vinho e do haxixe como um artista coletor de dejetos das ruas, pois “os

poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico”

(BENJAMIN, 1994, p. 78). A partir do resto, da sobra e do abjeto, seria possível a

experiência poética, nascendo o discurso artístico da dicção do sujo. Assim, na coleção

(palavra derivada da raiz latina leg-, como o verbo “ler” e seus cognatos) de fotos de ou

contos excrementícios, confundem-se os leitores de Secreções, excreções e desatinos e

do Álbum de fezes, os quais se defrontam com tentativas de recompor uma enunciação

artística da latrina.

Porém, as relações intertextuais e interdiscursivas vão mais além, já que, sendo as

fezes alegoria para o fenômeno textual, a ideia de uma definição do sujeito por aquilo

que expulsa – pelo ânus ou pela linguagem – remete também ao discurso da psicanálise,

em que o eu se constrói na fala. O pensamento freudiano é, assim, recorrente em

“Copromancia”, como no excerto abaixo.

O excremento, em geral, sempre me pareceu inútil e repugnante, a não ser, é claro, para os coprófilos e coprófagos, indivíduos raros dotados de extraordinárias anomalias obsessivas. Sim, sei que Freud afirmou que o excrementício está íntima e inseparavelmente ligado ao sexual, a posição da genitália – inter urinas et faeces — é um fator decisivo e imutável. Porém isso também não me interessava (FONSECA, 2001, p. 7).

Utilizando o discurso da psicanálise, o narrador revela a indissociabilidade entre o

erótico e o abjeto, dada a anatomia humana. No entanto, como é característico da escrita

fonsequiana, citações de autores célebres geralmente vêm contaminadas por uma

cáustica ironia à erudição livresca, que em nada se parece com sabedoria, mas sim com

fútil e vã ostentação. Desse modo, a despeito do conhecimento de termos latinos usados

por Freud e de vocábulos doutos praticamente desconhecidos fora do jargão

psiquiátrico, o narrador não é capaz de se perceber como um aficionado por fezes, o que

revela o quão oco pode ser o conhecimento da psique humana se infenso à própria

mente.

Sendo a sexualidade uma das várias expressões da potência criadora de Eros, bem

como a arte, o posicionamento da genitália inter urinas et faeces dá a essas formas de

excreção também um poder gerador. Da combinação dessas instâncias, nasce o homem,

69

expelido pela vulva que se lhes interpõe, como um metafórico Adão moldado no barro

resultante da mistura dos excretas fecal e urinário. Fértil, as entremeadas esferas do

erótico e do abjeto permitem não só a criação da vida, mas também do literário, em uma

espécie de cloaca artística. Afinal, segundo a fala de Diotima, no Banquete, é Eros quem

impulsiona “a criação desses homens a quem chamamos poetas e a daqueles outros aos

quais chamamos inventores” (PLATÃO, 1945, p.166).

Tamanha potência erótica das fezes acaba por unir, de forma indissociável, Anita e

o narrador no conto. Embora os dois mantivessem uma afável relação desde o momento

em que se conheceram, a intimidade e a fusão de corpos não seria possível enquanto não

se lançassem juntos à paixão literária pelas fezes. De início,

merda, entre nós, era um assunto tacitamente interdito, ela certamente não me deixaria ver suas fezes; se um de nós fosse ao banheiro, tomava o cuidado de pulverizar depois o local com um desodorante, colocado estrategicamente ao lado do lavatório (FONSECA, 2001, p.14).

Antes que um visse as fezes do outro no vaso e assim se conhecessem

profundamente – em todos os sentidos –, podendo se entregar ao amor, os dois amantes

em potencial portavam-se de forma inicialmente asséptica e tabuística diante do excreta

alheio. Ocultando, calando e disfarçando aromas e imagens, o casal parece esconder

seus sentimentos um do outro, sendo o fecal metonímia para toda a esfera interior dos

sujeitos. Nesse contexto, ganha significação a conversa em que finalmente o narrador se

declara a Anita:

Fui almoçar num restaurante com Anita. Como de hábito, ela demorou um longo tempo lendo o cardápio. Eu já disse que ela se considerava uma pessoa mística e que atribuía à comida um valor alegórico. (...) Quando lhe perguntei que papel desempenhavam nesse processo os exercícios aeróbicos, de alongamento e de musculação que ela fazia diariamente, Anita, depois de sorrir superiormente, afirmou que eu, como um monge da Idade Média, confundia misticismo com ascetismo. Na verdade, suas inclinações esotéricas aliadas à sua beleza – ela poderia ser usada como a ilustração da Princesa numa história de era-uma-vez – a tornavam ainda mais atraente. Foi no restaurante que declarei meu amor por Anita pela primeira vez (FONSECA, 2001, p.16).

Ao corrigir seu interlocutor, que a considerava uma mulher mística, Anita afirma

ser ascética, palavra que parece, mas não é, igual a “asséptica”. Desse modo, a mulher

justifica que o fato de atribuir valor alegórico ao que come não é muito diferente do que

seu companheiro faz, ao atribuir valor alegórico ao que descome, sinônimo incomum do

verbo “defecar”. Assim, ascética, mas não mais asséptica, Anita aponta para a falsa

semelhança na paronímia, o que sugere uma mudança em seu comportamento diante das

70

fezes. Mostrando-se, a essa altura, pronta para prescindir da assepsia que mascara o

excremento, a mulher abre caminho para a declaração de amor que se sucede à

conversa.

Ainda no que tange à composição do Álbum de fezes, o narrador reconhece a

impossibilidade de reproduzir com perfeição de forma pictórica, fotográfica ou mesmo

linguística o seu excreta, pois as cores e odores são inefáveis e irreprodutíveis – cada

texto tem uma textura própria, logo paráfrase alguma lhe faz jus. Na dificuldade de

descrever, por exemplo, o aroma do bolo fecal, o narrador realiza outra digressão, agora

se aproximando não do discurso psicanalítico, mas do filosófico.

Kant estava certo ao classificar o olfato como um sentido secundário, devido a sua inefabilidade. Escrevi no Álbum, por exemplo, este texto referente ao odor de um bolo fecal espesso, marrom-escuro: odor opaco de verduras podres em geladeira fechada. O que era isso, odor opaco? A espessura do bolo me levara involuntariamente a sinonimizar: espesso-opaco? Que verduras? Brócolis? Eu parecia um enólogo descrevendo a fragrância de um vinho, mas na verdade fazia uma espécie de poesia nas minhas descrições olfativas (FONSECA, 2001, p.9).

À guisa de teórico da literatura, o narrador reflete sobre as condições de confecção

da análise do texto fecal. Sendo assim, percebe que, para se aproximar da multiplicidade

do literário, a crítica de literatura tem de encerrar em si muito da dicção poética. Desse

modo, “fazia uma espécie de poesia nas [suas] descrições olfativas”, precisando

inclusive recorrer a figuras de expressão, como a sinestesia de “odor opaco”. A respeito

desse tropo, é interessante fazer uma remissão à metafísica platônica, questão central no

pensamento kantiano, segundo a qual os sentidos seriam enganadores e múltiplos,

escondendo a unicidade da essência e da verdade. Olfato e visão, portanto, fundidos

nessa expressão, são apenas manifestações distintas de uma essência única, tal qual

papel e fezes seriam formas materiais diferentes para uma mesma ideia perfeita e

singular: a literatura.

Quanto às fotografias de seu excremento, a voz narrativa tem considerações que se

assemelham a posições célebres da Escola de Frankfurt, como se percebe no excerto

abaixo, transcrito do conto:

No dia seguinte comprei uma Polaroid. Com ela, fotografei diariamente as minhas fezes, usando um filme colorido. No fim de um mês, possuía um arquivo de sessenta e duas fotos – meus intestinos funcionam no mínimo duas vezes por dia –, que foram colocadas num álbum. Além das fotografias de meus bolos fecais, passei a acrescentar informações sobre coloração. As cores das fotos nunca são precisas (FONSECA, 2001, p.8).

71

A perda cromática por meio do trabalho da objetiva dialoga com a desauratização

da obra de arte devido à sua reprodutibilidade técnica. De acordo com Benjamin,

quando o advento da primeira técnica de reprodução verdadeiramente revolucionária – a fotografia, contemporânea do início do socialismo – levou a arte a pressentir a proximidade de uma crise, que só fez aprofundar-se nos cem anos seguintes, ela reagiu com a doutrina da arte pela arte, que é no fundo uma teologia da arte (BENJAMIN, 1994, p.171).

Denunciando uma obra despojada do seu aqui e agora, o filósofo alemão diz que a

arte se fecha sobre si mesma para defender-se da inserção na indústria cultural, a qual

substitui seu valor de culto pelo de exposição. Para o pensador, a fotografia, como os

demais mecanismos de reprodutibilidade em massa, destrói a unicidade dos objetos,

visto que sua aura se perde nas infinitas cópias. De forma análoga, as fotos tiradas pelo

narrador de “Copromancia” não têm a precisão do original, não captando a cor de suas

obras de arte fecais; nesse contexto, é importante ressaltar que “aura” e “cor” fazem

parte de campos semânticos bastante próximos, os quais podem, inclusive, sobrepor-se.

As limitações do aparato tecnológico levam a voz narrativa do conto a acrescentar

informações sobre coloração e odor ao lado da imagem de cada porção de excremento

no álbum. Essa prática estabelece novo diálogo com o pensamento frankfurtiano, visto

que visa a nortear a leitura pictórica das fezes, o que ratifica a condição do excremento

como literatura do corpo.

Essas fotos orientam a recepção num sentido predeterminado. A contemplação livre não lhes é adequada. Elas inquietam o observador, que deve seguir um caminho definido para se aproximar delas. Ao mesmo tempo, as revistas ilustradas começam a mostrar-lhe indicadores de caminho – verdadeiros ou falsos, pouco importa. Nas revistas, as legendas explicativas se tornam pela primeira vez obrigatórias. É evidente que esses textos têm um caráter completamente distinto dos títulos de um quadro. As instruções que o observador recebe dos jornais ilustrados através das legendas se tornarão, em seguida, ainda mais precisas e imperiosas no cinema, em que a compreensão de cada imagem é condicionada pela sequência de todas as imagens anteriores (BENJAMIN, 1994, p.175).

Refletindo ainda sobre o aroma de suas fezes, o narrador chega, digressivamente,

à etimologia do termo “escatologia”, marcado pela homonímia em nosso idioma. Dessa

forma, quanto às suas diferentes raízes, há “uma skatos, excremento, a outra éschatos,

final, esta segunda escatologia possuindo uma acepção teológica que significa juízo

final, morte, ressurreição, a doutrina do destino último do ser humano e do mundo”

(FONSECA, 2001, p.9).

Esse é um ponto importante na estrutura da narrativa, pois assegura unidade às

duas partes aparentemente desconexas do conto: a reflexão sobre o caráter textual das

72

fezes e a possibilidade de nelas prever o destino, sendo o viés escatológico comum a

ambas. É importante dizer que, de tal modo, o narrador-personagem deixa de se ver

como autor do texto fecal, passando à mera condição de exegeta de uma literatura

escrita por Deus. Assim, permeiam-se ainda mais os termos do título, “secreções”,

“excreções” e “des(a)tinos”, sendo os dois primeiros o canal utilizado para veicular a

mensagem, representada pelo último vocábulo da enumeração.

Como na quiromancia o sujeito carregaria seu destino traçado nas mãos, a

copromancia facultou-lhe lê-lo em outro texto corporal/corpus textual: nas fezes. Aliás,

o conto vai mais além, ao indagar “Por que Deus, o criador de tudo o que existe no

Universo, ao dar existência ao ser humano, ao tirá-lo do Nada, destinou-o a defecar?”

(FONSECA, 2001, p.7). Tal passagem sugere que, além de uma cifra do augúrio do

destino, as fezes sejam o próprio destino do homem, escatológico em suas múltiplas

acepções.

A segunda parte do conto, dedicada ao tema do vaticínio, inicia-se a partir da

memória do narrador sobre um texto jornalístico que teria redigido para uma revista –

repare-se aqui a referência ao ofício do autor, mais uma vez figurando com destaque na

ficção fonsequiana –, quando ainda não havia descoberto a escrita de suas fezes. Tal

matéria consistia em um ensaio chamado “Artes adivinhatórias”, em que astrologia,

quiromancia e outros métodos de previsão do futuro eram denunciados como fraudes e

meios de ganhar dinheiro fácil. Todavia, pouco depois da publicação do texto, uma das

profecias que ouviu enquanto o elaborava cumpriu-se: a morte de sua mãe. Anos mais

tarde, após reencontrar aquela revista e perceber a exatidão da presciência da perda

materna, o narrador descobre que pode antever situações vindouras a partir do que

expulsa de seu sistema digestivo, criando a copromancia.

Além dos múltiplos significados de “escatologia”, há outros elementos que

aproximam defecar e prever nesse conto, como a aruspicação, técnica que permitiu o

presságio da morte da mãe do narrador. Tal arte divinatória consiste na predição do

futuro pelo exame das entranhas de vítimas sacrificadas, o que remete à leitura do porvir

a partir do que sai dessas entranhas e acaba na louça sanitária.

Sendo a etimologia um campo do saber constantemente revisitado no conto, como

seu próprio título anuncia – ou prevê –, uma análise mais atenta da seleção vocabular e

suas origens pode potencializar a leitura aqui pretendida. Assim, “fezes”, “fazer”,

“fecundidade”, “feitiço” e “profecia” derivam da mesma raiz latina, de modo que toda

feitura, seja de textos fecundos, de fezes ou de profecias, é semelhante em algum ponto.

73

Por fim, o conhecimento do futuro é oriundo da interpretação de sinais

específicos, o que se aproxima da leitura, seja de excremento, páginas ou vísceras de

vítimas sacrificiais. Tal qual hermeneuta do bolo fecal, o narrador afirma:

Demorei algum tempo, para ser exato setecentos e cinquenta e cinco dias, mais de dois anos, para poder desenvolver meus poderes espirituais e livrar-me dos condicionamentos que me faziam perceber somente a realidade palpável e afinal interpretar aqueles sinais que as fezes me forneciam. Para lidar com símbolos e metáforas é preciso muita atenção e paciência. As fezes, posso afirmar, são um criptograma, e eu descobrira os seus códigos de decifração (FONSECA, 2001, p.13).

Ao longo do conto, o leitor percebe também a importância de atentar para a

linguagem cifrada do texto – fino excremento – que lê. Tal contato com o literário pode

levar tanto tempo quanto os setecentos e cinquenta dias de que fala o narrador, mas o

prazer que dele obtêm os copromantas é compensador. Refletindo sobre si mesma, a

escrita fonsequiana especula no espelho (vocábulos de mesma raiz latina, speculum) as

múltiplas possibilidades artísticas de quaisquer bolos de celulose.

Por meio da abjeta e inusitada metáfora, o ficcionista zomba de sua arte, ao

mesmo tempo em que a dignifica como sendo tão humana quanto as funções

fisiológicas. Escrevendo no papel suas impressões sobre o excreta, como o copromanta

que redige um Álbum de fezes, Rubem Fonseca alude, ainda que metaforicamente, a

outras possibilidades de escrita do literário. Se a pós-modernidade aponta para uma

pretensa morte da literatura, o autor de Secreções, Excreções e Desatinos potencializa as

múltiplas facetas que a arte da palavra pode tomar, mesmo que redundando na jocosa

imagem de uma latrina literária.

Desse modo, a corporalidade dessa variante semiótica, ao remontar a modalidades

escritas anteriores à própria invenção da imprensa, nega com veemência as apocalípticas

previsões de um fim da literatura. O que há, na verdade, como afirmou Danto (2006), é

um borramento (palavra do campo semântico fecal) dos limites entre arte e não-arte,

literatura e não-literatura, que só vem a fecundar (da mesma raiz latina que “fezes”) o

debate estético. Visceral, a escrita de Rubem Fonseca é produto de atividade intestinal

de alta qualidade, agradando até mesmo aos olfatos refinados e aos leitores mais

exigentes.

74

Jonas, o plagiário plagiado

Roteirista, dramaturga e escritora, Patrícia Melo estreou na literatura com o

romance Acqua Toffana (1994), ao qual se seguiram O matador (1995), Elogio da

mentira (1998), Inferno (2000), Valsa negra (2003) e Mundo perdido (2006). Famosa

por sua ficção urbana, povoada por uma galeria de marginais, loucos e homens avessos

à moral, foi acusada diversas vezes de sobreviver no mercado literário às custas de

imitar os moldes da escrita de Rubem Fonseca, cuja influência sobre as obras da autora

é inegável. Marcada por uma perscrutação do que há de mais humano – e mais

abominável – em cada um de nós, seus livros realmente lembram os do autor de

Secreções, excreções e desatinos, não só no plano do conteúdo, mas também no que diz

respeito à forma, como se percebe em suas frases curtas, sintaxe direta, linguagem crua

e diálogos sem travessões ou aspas, integrados ao fluxo da narrativa.

Valendo-se desse tipo de intriga literária como mote para um novo livro, a autora

publicou em 2008 Jonas, o copromanta, uma direta alusão ao conto “Copromancia” de

Rubem Fonseca, escritor que se torna personagem no romance de Patrícia Melo,

embaralhando-se as fronteiras entre autoria e plágio, narrador e personagem, mestre e

discípulo. Turvados esses limites, mesmo o que os especialistas afirmam sobre a ficção

fonsequiana pode por vezes ser aplicado aos textos de Patrícia Melo, dadas as

semelhanças entre os autores tornadas matéria literária na lúdica intertextualidade de

Jonas, o copromanta. Como exemplo de crítica que serve a ambos os escritores, pode-

se citar o seguinte trecho da análise de Vera Figueiredo acerca das obras do autor ex-

policial:

No texto literário, o jogo constante de remissões a outros textos fluidifica as margens que delimitariam a sua interioridade, como se a literatura impressa se deixasse contaminar pelo movimento característico das técnicas de hipertextualização e de navegação na internet, espelhando o desenraizamento espaço-temporal operado, nas sociedades capitalistas pós-industriais, pela tecnociência, pelo mundo das finanças e pelos meios de comunicação de massa. Nesse quadro a leitura também se deslocaliza. Se não há um dentro e um fora do texto como espaços claramente definidos, a ideia de obra como unidade fechada torna-se obsoleta (FIGUEIREDO, 2003, p.12).

Escrito sobre um autor mas aplicável a outro, o trecho acima, na possibilidade de

permuta de objeto de análise, confirma o que expressa: na pós-modernidade, as

fronteiras entre obras, assim como as que dividem países, grupos sociais ou ideias,

tornaram-se fluidas e permeáveis. Aliás, a pertinência de empregar a crítica sobre um

autor no processo de leitura do outro, dadas suas sobreposições e interseções, vem

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apenas a ratificar esse discurso, mostrando na prática do estudo literário a fluidificação

das margens intertextuais. Misturando obras e autores e indefinindo os limites da

composição artística, Jonas, o copromanta, romance que versa sobre a leitura das fezes,

revisita a impureza típica da arte pós-moderna, tanto na ambivalência de suas fronteiras

textuais quanto no plano do conteúdo, narrando a vida de um bibliotecário que se dedica

a ler seus excretas.

Desse modo, se é cada vez mais difícil delimitar o que pertence a uma obra e não à

outra – se é que isso de alguma forma pode se dar –, Patrícia Melo é bem-sucedida na

criação de um romance que habita propositalmente a liminaridade entre textos de

autores distintos. Criando Jonas, um personagem que acusa Rubem Fonseca de plágio, a

autora promove um exercício de Teoria da Literatura no seio da ficção, estetizando e

problematizando dentro do âmbito da arte questões que há muito são objeto de

discussão teórica, como nos escritos de Walter Benjamin acerca da intertextualidade e

da autoria. Para o pensador alemão, em As mil e uma noites fica claro o inescapável

eterno encadeamento de narrativas que se dá em qualquer texto, literário ou meramente

funcional (voltado para o caráter instrumental da comunicação), pois

a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ele tece a rede que em última instância todas as histórias constituem em si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Sherazzade, que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando (BENJAMIN, 1996, p. 211).

Entremeados são os textos de Sherazzade, como todos os outros em que opera

uma voz narradora, sempre entrecortada de ecos de outros contos, relatos, romances ou

poemas. Assumindo como sua a dicção do eco das narrativas fonsequianas, Patrícia

Melo subverte as acusações de plágio que já lhe foram imputadas, incriminando o

Rubem Fonseca fictício de copiar seu personagem. Assim, se na mitologia grega

Narciso desprezou a ninfa Eco, a narcisista escrita do meta-romance Jonas, o

copromanta, que reflete sobre seu próprio processo de composição, se funda justamente

na valorização do eco, reproduzindo fragmentos e estilos típicos do ficcionista mineiro.

Ao optar por tal enredo, a autora tangencia ainda outro ponto nodal do suposto fim

da literatura nos dias atuais, associado às questões de direitos autorais e copyright. Na

era da Internet, em que tudo é copiado e distribuído em uma questão de segundos, torna-

se difícil controlar reproduções ilegais de obras artísticas, problema que, por exemplo,

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tem conduzido rapidamente à bancarrota a indústria fonográfica. Essa questão é

explicitamente abordada no romance de Patrícia Melo, como se percebe no trecho

abaixo.

E você poderia ao menos tirar uma cópia do conto? Não sabia que é crime xerocar mais do que trinta páginas? Do que você acha que os autores vivem? De brisa? Talvez ela estivesse totalmente cooptada pelo escritor. Agora defendia os interesses dos autores, não dos leitores (MELO, 2008, p.68).

Se um romance como plágio pode prejudicar os direitos autorais do autor vitimado

pela cópia, a reprodução xerográfica perpetrada por Jonas, o personagem supostamente

plagiado, também é daninha à renda do artista. Nesse sentido, as fezes, forma de escrita

privilegiada em “Copromancia” e Jonas, o copromanta, revelam sua superioridade

como modalidade semiótica, visto que, produzidas na intimidade da latrina, só ali

podem ser apreciadas, estando infensas à difusão instantânea da web.

Atravessado por tais questões, o livro de Patrícia Melo conta a história de Jonas,

um solitário arquivista da Biblioteca Nacional que leva uma vida pacata e sem muitas

emoções como carimbador de documentos, enquanto tenta conciliar as investidas

amorosas de suas colegas de trabalho, a recatada Eunice e a ousada Darlene, embora tais

companhias não diminuam sua solidão diante da vida. Para preencher seu enorme vazio

existencial, Jonas se dedica nas horas vagas à literatura e à arte de adivinhação do futuro

pela leitura das fezes, a copromancia, sendo ambas intimamente ligadas à profissão do

protagonista, que lê incessantemente os livros que manuseia.

Como nos contos e romances de Rubem Fonseca, o personagem principal de

Jonas, o copromanta é alguém essencialmente ligado à esfera da escrita, tendo nos

grandes clássicos sua maior companhia. No entanto, a íntima relação de Jonas com a

literatura vai além do que se espera de um ávido leitor ou mesmo de um comum autor,

visto que o protagonista se dedicava, em suas horas vagas, à reescritura de suas obras

preferidas, insatisfeito com o curso que os enredos por vezes tomaram nas mãos de seus

autores originais.

Admito que sou um leitor obsessivo e que, com frequência, reescrevo diletantemente as histórias de meus escritores preferidos. Não que eu seja crítico ou plagiador, ou pior que tudo isso, fraco de imaginação. Reescrevo-as por uma questão de justiça. Alguns personagens merecem destinos melhores. Raskolnikof, por exemplo, jamais deveria ter ido para a Sibéria, e muito menos se casado com a chata da Sônia. No meu Crime e castigo, que se chama Crime sem castigo, Raskolnikof, além de matar as duas velhas inúteis, comete mais uma série de assassinatos e torna a humanidade melhor, como aliás era seu projeto inicial. E minha Lolita não acaba num

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fim de mundo à toa. Ela dopa e castra o pedófilo Humbert Humbert, tendo antes a inteligência de roubá-lo (MELO, 2008, p.10).

Jonas brinca de coautor de livros de artistas consagrados, embaralhando as esferas

de autor e personagem. Ao desrespeitar as fronteiras entre as obras, o protagonista do

romance ora analisado ratifica a lúdica ironia de sua criadora, acusada por vezes de

meramente reescrever Rubem Fonseca. Nesse sentido, é reveladora a fala de Jonas, que

justifica suas operações intertextuais não por ser “crítico ou plagiador, ou pior que tudo

isso, fraco de imaginação”. Na verdade, confecciona seu próprio texto no eterno

processo de recriação e reedição que é a escrita.

Mesmo Rubem Fonseca, mais tarde travestido em personagem na escrita de

Patrícia Melo, advoga em “Intestino grosso” (FONSECA, 1975), uma de suas primeiras

narrativas, pela prática da reescritura como regime textual e possibilidade de literatura.

Aliás, segundo a personagem principal do conto, um escritor sendo entrevistado, a

reescritura não é uma ideia a ser defendida, mas um fato inescapável no processo

autoral.

Não estou dando conselhos. Mesmo porque o sujeito pode tentar escrever a Comédie Humaine aplicando à sua ficção as leis da natureza ou a Metamorfose, rompendo essas mesmas leis, mas cedo ou tarde ele acabará escrevendo o seu livro, dele. Cedo ou tarde, acabará sujando as mãos também, se persistir (FONSECA, 1975, p.174).

Tentando reescrever Balzac ou Kafka, o sujeito cedo ou tarde acaba escrevendo

seu próprio livro, o que prova que toda escrita não passa de reescrita. Sendo o ato da

escrita algo que suja as mãos, segundo o excerto acima, pode-se dizer que, ao

(re)compor um romance sobre a leitura de fezes a partir da obra de Rubem Fonseca,

Patrícia Melo suja as mãos não só na tinta da pena, mas na latrina em que se debruçam

os protagonistas de “Copromancia” (FONSECA, 2001) e Jonas, o copromanta (MELO,

2008).

Aliás, no que tange ao embaralhamento das fronteiras entre mestre e discípulo,

leitor e escritor, autor e personagem, é crucial o fato de, como Patrícia Melo, Jonas ser

fã de Rubem Fonseca, já tendo relido toda a sua obra diversas vezes, embora ainda não

tivesse se dedicado a reescrever nenhum de seus textos. Se Jonas é supostamente

plagiado por Rubem Fonseca, que lhe teria usurpado a ideia da copromancia e foi, por

sua vez, plagiado por Patrícia Melo, que escreveu Jonas, o copromanta, criando o

personagem plagiado pelo fictício Rubem Fonseca, a narrativa entra em um triângulo

não amoroso, mas autoral, em que plagiário e plagiado se confundem.

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Além disso, ao embaralhar os limites entre elementos canônicos constituintes da

narrativa, como as figuras de narrador e personagem, Patrícia Melo lança as fronteiras

internas de sua escrita, bem como as externas, ao dialogar com outras obras, em uma

situação de ambivalência e liminaridade. Tal estado, que geralmente causa desconforto

àquele que o experimenta, graças às crises das certezas e do racionalismo, está presente

não apenas no rocambolesco plano da enunciação de seu romance, mas também no

enunciado: ao criar um personagem copromanta, ou seja, capaz de interpretar fezes,

como o narrador de “Copromancia”, a autora funde as esferas do belo literário a ser lido

e do hórrido intestinal a ser secretado e segredado.

Nesse contexto, a escolha da metáfora das fezes é sobrerrelevante, pois, como

visto no primeiro capítulo desta dissertação, o excremento questiona os sistemas de

ordenação e classificação do real pelos quais pautamos nossa existência, visto que não

se encaixa nos paradigmas racionalistas de segregação do real em unidades

descontínuas, oscilando entre sólido e líquido, prazeroso e infeccioso, dentro e fora.

Se conseguirmos abstrair a patogenia e a higiene de nossas noções de sujo, ficaremos com a antiga definição de sujo como algo fora de lugar. Esta é uma abordagem muito sugestiva. Implica duas condições: um conjunto de relações ordenadas e a contravenção dessa ordem. O sujo, portanto, nunca é um evento único, isolado. Onde há sujeira, há sistema. A sujidade é um produto colateral de uma ordenação sistemática e da classificação das coisas, já que toda ordenação envolve a rejeição de elementos inapropriados (DOUGLAS, 2006, p.44).

Assim, se Jonas se debruça sobre a leitura de textos fecais, Patrícia Melo lança

propositadamente sua narrativa na ambiguidade típica do sujo e, por conseguinte, dos

expurgos intestinais, conforme o próprio título de seu romance anuncia. Ademais, como

nos textos de Rubem Fonseca, o imundo permeia não apenas o turvamento das

fronteiras narrativas ou a temática escatológica, abrangendo também a seleção

vocabular utilizada por narrador e personagens do romance.

Assim que acabou o filme, me aproximei. Que bosta, eu disse. Rubem Fonseca sorriu. Uma merda, ele concordou. Ridículo. Uma porcaria. Queria me desculpar, falei. Ele pareceu não entender (MELO, 2008, p. 91)

No curto diálogo acima, a dicção suja das personagens é o meio mais eficiente de

comunicação que há entre elas, pois, quando se abandonam as palavras de baixo calão e

se utiliza o registro comumente chamado de “polido”, em “Queria me desculpar”, a

mensagem não é compreendida, visto que o personagem Rubem Fonseca, ídolo literário

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de Jonas, não parece acostumado ao polido, mas sim ao poluído. Desse modo, os fãs

extraliterário (Patrícia Melo) e intraliterário (Jonas) do autor de Secreções, excreções e

desatinos falam com fluência o dialeto do ídolo, repleto de expressões que, saídas da

boca, remetem à passagem do ânus. No regime da impureza, a literatura se fecunda com

metáforas excrementícias, procriando na imundície como coliformes fecais.

Ainda no que diz respeito ao protagonista do romance ser um entusiasta das belles

lettres, secretamente brincando de autor ou co-autor de releituras de obras famosas e

compartilhando do mesmo linguajar do personagem Rubem Fonseca, é importante

ressaltar que este reconhece Jonas como um artista. A princípio, isso sugeriria uma

autoafirmação como artista por parte da própria autora do romance, também ela de certa

forma uma (re)escritora aficionada pelo autor de Secreções, excreções e desatinos. No

entanto, definir Jonas como artista não seria apenas dignificar sua prática de reescritura

de clássicos, mas também confirmar o estatuto artístico daquilo que o bibliotecário

expele no vaso sanitário e admira embevecido, em busca de significações ocultas.

Logo, o reconhecimento do fecal como artístico, talvez até como viscoso que

ameace dissolver as sólidas certezas, apreende os excretas de Jonas como o informe a

que se dá forma, na contínua labuta da estética. Tal qual em “Copromancia” e nos

demais contos de Rubem Fonseca analisados na presente dissertação, em Jonas, o

copromanta as fezes são entendidas como textos corporais e corpora textuais, que,

como os tradicionalmente impressos em papel, têm sintaxe, semântica e morfologia

própria, requerendo cautelosa exegese para sua decifração.

Tal acolhimento dos (re)escritos de Jonas – e, consequentemente, de sua criadora

– como arte por parte do Rubem Fonseca fictício fica claro na passagem a seguir:

Abri o embrulho e logo vi as esvoaçantes mechas de cabelos ruivos da Vênus de Boticelli estampando a capa de Secreções, excreções e desatinos, o mesmo livro que eu estava lendo. Novinho em folha. Um terror gélido percorreu minha espinha. (...) Abri o livro e deparei com a dedicatória: “Ao Jonas, meu caro colega de ofício, um forte abraço. Rubem Fonseca (MELO, 2008, p.15).

Recebendo de presente o livro cujo primeiro conto é “Copromancia”, obra em que

se inspira Patrícia Melo para compor seu romance, Jonas se sobressalta ao perceber que

sua vida em muito se assemelha à matéria narrada por Rubem Fonseca no texto inicial

de Secreções, excreções e desatinos. Porém, no que tange ao presente ganho por Jonas,

há ainda um pequeno detalhe digno de atenção: a dedicatória. Ao chamar o arquivista da

biblioteca de “colega de ofício”, Rubem Fonseca o dignifica também como escritor,

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colega de profissão e de folha ofício, superfície em que geralmente se inscreve a labuta

autoral. Todavia, mal sabe o célebre escritor que Jonas não é seu colega de (folha)

ofício, mas de latrina.

A assinatura na contracapa do presente entregue a Jonas, além de mero

fechamento da dedicatória, pode ser compreendida pelo leitor do romance e por seu

protagonista como uma espécie de firma de próprio punho que comprove a autoria dos

contos de Secreções, excreções e desatinos, todos frutos da imaginação e do engenho de

seu criador. Demarcando sua posse sobre todos aqueles textos, inclusive

“Copromancia”, o personagem Rubem Fonseca estimula ainda mais a desconfiança de

Jonas, que há algum tempo cria ter sido vítima de plágio por parte do renomado escritor.

Tal suspeita nasce quando o protagonista do romance ora analisado lê pela primeira vez

“Copromancia”, deparando-se com uma série de situações narradas nesse texto que

fazem parte do seu cotidiano de exegese fecal.

Fechei o livro com a sensação de que algo sinistro estava acontecendo. Sei que é comum casos da vida imitando a arte e vice-versa, mas não de forma tão escabrosa. EU era o personagem central daquele conto, um eu esquisito, disfarçado, com outro nome, mas ainda assim eu, euzinho da silva, me reconheci com a maior facilidade, perscrutando diariamente minhas fezes, intrigado com o possível significado das estranhas e múltiplas formas fecais boiando no vaso sanitário. Quem mais além de mim no mundo possuía um caderno de excrementos? (MELO, 2008, p.9).

Autor e leitor de textos fecais, como o protagonista de “Copromancia”, Jonas

descobre que Rubem Fonseca escreveu um conto que narra seu idiossincrático hábito de

interpretação do excremento. Como o narrador-personagem do conto, Jonas alia

intimamente o hobby literário e a leitura de suas fezes, visto que ambos consistem na

decifração de um código e na exegese de um texto, seja ele impresso no papel ou na

latrina. Segundo Jonas,

quem possui dons divinatórios é por natureza um decifrador, um apaixonado, um jogador nato. Portanto, é fundamental, quando se vai prever o futuro, dominar também o principal axioma da criptografia, que é considerar todas as possibilidades. É uma luta. Nós e eles. O futuro e nós. O segredo e a revelação. O significado e o signo. A forma e o conteúdo. (...) Li num manual de criptologia que uma simples oração como esta última, de apenas trinta e cinco letras, tem cinquenta nonilhões de formas possíveis de rearranjos. Um mar sem fim. Três os. Quatro emes. A lógica pura não dá conta de tudo. Por isso, precisamos ser imaginativos, dois es. Sem criatividade, três is, ficamos sem chão, dois as (MELO, 2008, p.81).

A relação entre literatura e a exegese fecal vai mais além, sendo usada por Jonas

como uma modalidade semiótica que permite a visão do futuro e do passado, inclusive

empregada como método de decifração em sua louca investigação quanto ao suposto

81

plágio operado por Rubem Fonseca diante da copromancia. O que o bibliotecário, leitor

obcecado por seu ídolo, não percebe, mas que um leitor atento de Jonas, o copromanta

vê com clareza, é que alguns textos fecais do protagonista não falam sobre o futuro e o

passado das personagens, mas sim sobre a própria enunciação do romance. Desse modo,

por exemplo, Jonas acha que determinada porção de excremento significa “fim”,

sugerindo que houvesse terminado o papel de Rubem Fonseca como guia à verdade

sagrada da copromancia. Contudo, o protagonista ignora outra significação desse

“sintagma fecal”: mais do que relacionado ao desenrolar da narrativa, é no plano da

narração que ele deve ser interpretado, pois anuncia o fim do romance, que acaba de

atingir seu anticlímax quando a obsessão pelo famoso autor é substituída pelo fanatismo

por Zoé, última personagem a ser introduzida na narrativa. Corrobora tal leitura a

presença da palavra “fim” em letras maiúsculas na última página do livro, recurso

gráfico que não aparece nas demais obras literárias publicadas pela Companhia das

Letras e traduz para o português o que os hieróglifos fecais de Jonas haviam lhe

revelado.

Assim, o fim previsto pelo personagem pode realmente ser visto pelo leitor de

Jonas, o copromanta, o que indica que, apesar de aparentemente absurda, a leitura de

textos fecais pode ter consistência, mesmo que só no universo ficcional. Diferente das

malogradas previsões do fim da literatura, pretensamente soterrada pela apoteose do

audiovisual, o vaticínio expelido pelo ânus tem algum grau de acerto, além de alto valor

estético.

Ciente da necessidade de ratificar sua autoria sobre as artes copromânticas pelo

menos diante do leitor, o protagonista tece uma série de comentários, à guisa de crítico

literário, condenando o conto “Copromancia” como um plágio malsucedido de sua

própria leitura fecal cotidiana:

Há muitas incoerências no texto. Já li vários livros de Rubem Fonseca, sei que ele não acredita em Deus. Curiosamente, nesse conto, Deus passa a existir. (...) Outra coisa que não dá para entender: ele nos pede para não confundir a palavra escatologia com a “palavra homógrafa em nossa língua, mas de diferente etimologia grega: uma skatos, excremento, a outra eschátos, [...] uma acepção teológica que significa juízo final, morte, ressurreição, a doutrina última do ser humano e do mundo”. Mas não é óbvio que existe uma relação entre elas, e que é exatamente essa ligação que faz da copromancia uma ciência de adivinhação do futuro? (...) Seus métodos de leitura de fezes também não são consistentes, o que só me confirma o plágio. Tudo o que diz sobre as técnicas de indagação é vago (MELO, 2008, p.31).

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Experiente leitor e (re)escritor, Jonas se posiciona de modo firme diante de

“Copromancia”, em uma profunda ironia que repudia para dignificar, visto que foi com

base nesse conto, criticado pelo personagem, que sua autora o criou. Jogando com as

categorias de autor e personagem, autoria e plágio, Patrícia Melo constrói um romance

em que o caráter textual das fezes é muito mais realçado do que o fora em Secreções,

excreções e desatinos. Se o conto fonsequiano por vezes resvala para a escatologia nua,

como quando as cores e os aromas do excreta são descritos sem meias palavras, Jonas,

o copromanta é um romance sobre as paranoias persecutórias de um solitário

bibliotecário, que enxerga no bolo fecal uma possibilidade de falar com Deus em um

mundo de incomunicabilidade reinante.

Destacando o caráter textual das fezes, leitura corpórea que Jonas valoriza tanto

quanto os grandes clássicos que reescreve, o narrador chega mesmo a equacionar o

conto fonsequiano aos expurgos intestinais que analisa com avidez na latrina:

Além disso, já tinha planos para aquele resto de noite: ia analisar com cuidado o conto-plágio de Rubem Fonseca. Talvez algo tivesse me escapado nas leituras anteriores, e na linguagem de códigos não se desprezam nem os menores detalhes, afinal são eles, muitas vezes, a chave de todo o enigma (MELO, 2008, p.29).

Nota-se nesse caso a seleção vocabular empregada por Jonas ao se referir ao texto

de seu possível perseguidor como sendo repleto de códigos e enigmas, para os quais se

faria necessária uma chave. De maneira semelhante, ao se remeter à linguagem

enunciada pelo ânus, o bibliotecário a define como “Criptográfica. Códigos. Signos”

(MELO, 2008, p.28), analogamente à descrição da linguagem do conto fonsequiano. Tal

formulação, no entanto, misteriosa como as fezes ainda não trazidas à luz, carrega em si

a ambivalência peculiar às falas do baixo ventre: igualar “Copromancia” à matéria fecal

de Jonas pode, por um lado, ser lido como um rebaixamento da ficção de Rubem

Fonseca, tal qual na frequente metáfora desbocada do senso comum. Contudo, uma

leitura mais atenta, que considera o apreço de Patrícia Melo pela ficção do autor e a

preocupação de seu romance em ratificar as fezes como texto do corpo marginalizado

pela tradição ocidental, percebe que tal equação vem apenas a valorizar a escrita do

organismo. Em oposição à literatura no papel, que se faz no contraste com a branca

pureza da superfície, a arte das fezes prescinde do alvo e do imaculado, fazendo da

sujidade sua linguagem e usando o papel apenas como utensílio a limpar seu rastro.

Ainda no que tange à textualidade fecal, é relevante o uso evidente que Jonas faz

da etimologia não só como ferramenta para leitura do excreta, mas mesmo como

83

mecanismo para a construção de suas mais simples frases na comunicação cotidiana.

Tal peculiaridade torna-o um exímio leitor, mas um péssimo falante, engasgando a cada

nova sentença detido por digressões. Pernósticas como em Jonas, o copromanta, as

constantes divagações etimológicas não são raras nas obras de Rubem Fonseca, sendo

enunciadas por seus narradores ou personagens que quase sempre têm familiaridade

com o universo das belles lettres e revelam uma erudição inusitada, para não dizer

muitas vezes irônica.

Para análises desse calibre, o bibliotecário conta com um dicionário de etimologia

ganho de presente de Eunice, com o qual passa a se dedicar à origem das palavras

enunciadas por seu expurgo intestinal. Ademais, Jonas vale-se da etimologia para

criticar o autor de “Copromancia”, alegando ser uma falha a ausência de uma

justificativa do processo de formação desse neologismo ao longo do conto. Assim, o

que Rubem Fonseca deixou como um silêncio a ser preenchido pelo leitor em sua

exegese (trabalho deveras semelhante ao do copromanta) Patrícia Melo torna explícito

nas palavras de seu protagonista:

Tudo no conto comprova o plágio. Mas devo admitir que o termo copromancia é bem superior ao meu dejectosofia (substantivo masculino, do latim dejectus, de dejectum + sofia, saber em grego), e por isso adotei-o sem nenhum constrangimento. Afinal, se o escritor roubou minha arte, por que eu não poderia surrupiar-lhe uma simples palavra? (MELO, 2008, p.32).

No trecho acima, além de explicitar o processo de formação dos neologismos que

dão nome às práticas divinatórias, Jonas ratifica o estatuto artístico das fezes ao afirmar

que o autor “roubou [sua] arte”. Além disso, o jogo de espelhamentos entre plágio e

autoria ganha mais um fantasmático reflexo, pois Jonas, fruto de um suposto plágio de

“Copromancia” perpetrado por Patrícia Melo e vítima de um fictício plágio pela

personagem Rubem Fonseca, decide copiar um termo empregado pelo pretenso

plagiário. Com tais relações cada vez mais imbricadas, Jonas, o copromanta aponta

progressivamente para a inexistência de qualquer forma de plágio criminoso, já que toda

obra literária habita necessariamente o seio da intertextualidade.

O próprio autor ex-policial já o afirmara no conto “Intestino Grosso” (FONSECA,

1975), em que a personagem do escritor entrevistado se posiciona de forma categórica

diante da influência de outros artistas sobre sua obra. Ao afirmar “Odeio o Joyce. Odeio

todos os meus antecessores e contemporâneos” (FONSECA, 1975, p.170), o fictício

escritor nega qualquer forma de intertextualidade em seus textos, reeditando a utopia

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romântica do gênio inspirado. Todavia, o personagem repórter claramente percebe a

incoerência desse comentário, explicitando sua improcedência no trecho a seguir:

“Existe uma pornografia da morte, como queria Gorer? Desculpe citar nominalmente

alguém, sei que você não gosta, mas foi você que criou o precedente, citando

Aristóteles, Joyce e Horácio” (FONSECA, 1975, p.171).

Embora ignorando outras citações e alusões feitas pelo personagem autor, como a

Marcel Proust, William Burroughs e Marquês de Sade, o entrevistador aponta a

incongruência da fala supracitada, destacando as constantes remissões feitas a outros

autores no discurso do entrevistado. Incapaz até de conversar sem se remeter a outros

autores, o personagem escritor claramente revela a impossibilidade de uma escrita sem

diálogos intertextuais, aos quais ele próprio afirma recorrer em outro ponto da narrativa:

“E há também a presença da ciência, na pessoa do psicanalista: um símbolo?” “Deliberadamente cândido. Escrevi o livro à maneira de Marcel Proust, evidentemente” (FONSECA, 1975, p. 165).

Reeditando tal prática textual frequente nos textos fonsequianos, a

intertextualidade, Patrícia Melo faz como o personagem de “Intestino grosso”

(FONSECA, 1975), escrevendo o livro à maneira de outrem: no caso, Rubem Fonseca,

o autor de Em busca do tempo perdido. Do mesmo modo, Jonas imita o personagem de

“Copromancia” (ou seria o inverso?), não só no processo de leitura dos excretas, mas

também na confecção de um Álbum de fezes.

Prática de escrita sobre o literário fecal, tal álbum em muito se assemelha a um

manual de crítica ou Teoria Literária, discorrendo sobre as formas, gêneros e

significações das massas expelidas pelo ânus. No entanto, em Jonas, o copromanta, o

Álbum de fezes ganha uma dimensão muito maior, confundindo-se com a própria

confecção do romance. Enquanto “Copromancia” apenas menciona a existência do

álbum, descrevendo-o superficialmente, o livro de Patrícia Melo é ilustrado por uma

série de desenhos de fezes em formatos mil sobre folhas pautadas. Embora o leitor saiba

absurdas as obsessões do protagonista, sente-se em algum momento da leitura instigado

a tentar decifrar os escritos intestinais, tornando-se também um copromanta. Para tal,

Jonas apresenta inclusive uma espécie de alfabeto das fezes, baseado na criptologia

copta e na egípcia.

Borradas assim mais uma vez as fronteiras entre literatura e fezes, percebe-se o

estatuto artístico de qualquer trabalho estético com a palavra, seja expelida pela boca ou

pelo ânus, orifícios de entrada e saída de um mesmo duto. Tal semelhança tópica entre

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essas cavidades é inclusive revisitada no texto, quando Jonas afirma: “Tirei do bolso o

caderno onde regularmente desenho minhas eliminações e chequei as últimas entradas”

(MELO, 2008, p.12), ao qual se seguem diversos desenhos de fezes. Checando as

entradas do caderno, Jonas verifica as saídas do corpo, consequentemente embaralhando

as fronteiras entre dentro e fora, sujeito e objeto, que configuram a pedra angular do

pensamento racionalista.

Texto corpóreo, a escrita em suas fezes é compreendida pelo protagonista como

sendo guiada pela mão de Deus, sendo sua missão decodificá-la, o que é ratificado por

sua descoberta de que “o vocábulo hieróglifo significava literalmente palavra de Deus”

(MELO, 2008, p.34). Ainda que diferente da palavra divina impressa nas páginas

bíblicas, o expurgo intestinal funciona para Jonas como um canal que porta mensagens

sagradas, sendo tão excelso quanto as Sagradas Escrituras. Tal sacralização do corpo e

de suas falas, em detrimento da profana escrita do papel, está também presente em

“Copromancia”, visto que o narrador do conto se questiona por que Deus teria criado as

fezes, embora não chegue a qualquer conclusão nesse sentido, além de uma releitura do

cogito cartesiano: “Ergo, a merda”. Se defecar é o que garante ao homem sua

existência, Jonas completa a reedição de Decartes, ao afirmar, depois de ler

“Copromancia”: “Somos merda, é o que diz o autor. Cago, sum” (MELO, 2008, p. 30).

Nesse sentido, ganha novo significado o fato de os personagens de Rubem

Fonseca e Jonas terem se encontrado pela primeira vez quando o renomado autor vai à

Biblioteca Nacional fazer uma pesquisa sobre a Bíblia de Mogúncia. Obcecado com a

ideia de estar sendo plagiado pelo autor, Jonas se julga sendo perseguido e vigiado,

questionando a veracidade das informações que os colegas lhe dão sobre os hábitos de

Rubem Fonseca na biblioteca, crendo haver contra si um complô.

No entanto, obviamente não há nenhuma espionagem sobre Jonas, que, ao longo

da narrativa, enlouquece progressivamente de uma grave paranoia persecutória,

acreditando piamente que só pela decifração de suas fezes teria uma resposta divina

acerca dos planos de Rubem Fonseca. Desse modo, enquanto o protagonista do romance

se debruça sobre a latrina de sua casa para conhecer as verdades teologais, Rubem

Fonseca folheia a palavra de Deus na Bíblia da Mogúncia, primeira obra impressa na

qual aparecem data, lugar e nomes dos impressores. Lendo no vaso de louça ou na

página de papel os textos do Senhor, ambas as personagens provam que a literatura

pode se inscrever em diferentes formas semióticas.

86

Ademais, ainda no que tange à presença da religiosidade em Jonas, o copromanta,

vale lembrar que são homônimos o bibliotecário leitor de fezes e o personagem da

célebre fábula bíblica narrada no livro de Jonas, no Antigo Testamento. Contudo, tal

semelhança não se restringe aos nomes, visto que ambos são profetas e têm de ouvir a

voz de Deus para empreender grandiosa missão, embora o Jonas copromanta termine a

história sem descobrir em seus vaticínios fecais qual desígnio divino lhe cabe.

Por sua vez, o personagem bíblico, tendo desobedecido à vontade divina, que lhe

mandara pregar na cidade de Nínive, resolveu fugir escondido no porão de um navio,

em uma tentativa de se ocultar dos castigos de Deus por sua rebeldia. Todavia, a

onisciência do Senhor descobriu a falta de seu servo, lançando uma enorme tempestade

para afundar o navio e puni-lo. Quando o restante da tripulação compreendeu o que se

passava, lançou Jonas no mar, sendo o homem prontamente engolido por uma baleia,

que o levou a Nínive para cumprir as ordens de Deus. No entanto, se o Jonas bíblico

saiu de dentro da baleia pela boca, o Jonas copromanta certamente o teria feito pelo

ânus, ratificando o caráter profético e divino das fezes. Aliás, segundo Isaías 64, 5:

“Somos como uma coisa impura, e todas as nossas ações parecem trapos sujos”.

Seja no diálogo com a Bíblia, com os clássicos da literatura mundial ou com

“Copromancia”, o romance de Patrícia Melo vem apenas a ratificar o estatuto artístico

que Rubem Fonseca dá às fezes, elegendo-as como imagem poderosa na desconstrução

das certezas e na apreensão da (malcheirosa?) essência humana. Desse modo, o fictício

Rubem Fonseca de Jonas, o copromanta, ao explicar ao protagonista sua predileção

pela temática escatológica, afirma:

A escatologia – não a religiosa – sempre interessou aos escritores. Se você não é um preconceituoso fisiológico, um antibiológico, não terá pudor de escrever sobre isso. É da nossa natureza. Eu escrevo sobre o ser humano, e tento abordá-lo em todos os seus aspectos, não apenas do ponto de vista da bondade, do amor e da redenção, mas também em seu aspecto animal, primitivo (MELO, 2008, p.105).

Trecho ambíguo, “é da nossa natureza” pode ser lido em diferentes camadas de

significação, mudando-se o referente para que aponta o pronome “nossa”. Em um

primeiro nível de leitura, o sintagma “nossa natureza” pode ser compreendido como se

referindo à natureza humana, que, por mais que se arvore distinta dos animais, sempre

tem de se render aos baixos chamados da pressão intestinal. Escrevendo sobre o

homem, Patrícia Melo e Rubem Fonseca narram sobre o que ele tem de melhor e pior,

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mais puro e impuro, seguindo a máxima de Terêncio (2008), segundo o qual “Sou

humano, logo nada do que é humano me é estranho”.

No entanto, em uma segunda camada de significação, o sintagma “nossa natureza”

pode ser entendido como remetendo à natureza do escritor, que tem por ofício despir-se

de preconceitos no ato narrativo. Assim, para abordar o homem em todos os seus

aspectos, a natureza do verdadeiro artista o leva a transcender os limites impostos pelos

meios e materiais, como o papel ou a tela de cristal líquido. Ousando e provando a

imortalidade da literatura, forma de expressão artística que precisa apenas do homem e

de seu corpo (corpo somático, corpo textual e corpus textual) para existir, o artista

Rubem Fonseca e o personagem Rubem Fonseca, criado por Patrícia Melo, revelam que

a arte da palavra é também um rejeito a ser inexorável e continuamente “excorporado”,

seja pela boca ou pelo ânus.

88

CAPÍTULO III: O LEVANTE EXCREMENTÍCIO CONTRA A INDÚSTRIA CULTURAL

“La civilisation, c’est le déchet: cloaca maxima”. Jacques Lacan. Conférence aux Amériques, 1976.

“Tudo vira bosta”.

Rita Lee. MTV ao vivo, 2004.

A indústria cultural: a comercialização da catarse e a perversão da mimese

A indústria cultural acena-nos com a falsa possibilidade da homogeneidade

absoluta, conferindo a tudo um ar de semelhança (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).

Assim, produzidos em série, os artefatos culturais assemelham-se cada vez mais entre si

no capitalismo tardio, pretensamente para atender às necessidades comuns a todos os

seres humanos. Adorno denuncia tal deturpação falaciosa de relações de causa e

consequência, mostrando que a demanda do consumidor é, na verdade, imposta pelos

produtores:

Os interessados inclinam-se a dar uma explicação tecnológica da indústria cultural. O fato de que milhões de pessoas participam dessa indústria imporia métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais. O contraste técnico entre poucos centros de produção e uma recepção dispersa condicionaria a organização e o planejamento pela direção. Os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis por que são aceitos sem resistência. (...) A atitude do público que, pretensamente e de fato, favorece o sistema da indústria cultural é uma parte do sistema, não sua desculpa (ADORNO, 1985, p.100).

A indústria cultural inverte, assim, a relação oferta-demanda que rege as relações

capitalistas desde o século XV. Até o período industrial, em que o capital era aplicado

pesadamente na formação de um maquinário e de bens duráveis de consumo, o objetivo

do consumidor era adquirir mercadorias que resistissem à passagem do tempo,

investindo-se, por vezes, em produtos mais caros, mas de maior durabilidade. Nessa

época, a necessidade das pessoas regia a produção industrial, a qual visava a suprir os

nichos de mercado oriundos dos desejos humanos.

No entanto, em uma era de consumo histérico e massificado, a palavra de ordem

não é durabilidade, mas substitutibilidade. As mercadorias – e entre elas os artefatos

culturais – devem ser adquiridos em uma sucessão voraz, sendo um filme logo

esquecido para se assistir a outro, apenas superficialmente diferente. Do mesmo modo

que celulares e roupas, livros, exposições e outras formas de expressão artística são

oferecidas a todo instante por um preço muito baixo, mas um custo (humano) altíssimo:

89

a reificação do sujeito diante das numericamente diversas, mas geralmente pouco

variadas opções culturais.

Essa mazela ocorre porque, enquanto no passado a demanda guiava a oferta, tal

relação se inverteu na pós-modernidade: hoje são as grandes empresas que, por meio da

propaganda e da mídia, ditam o querer do homem. Sendo-lhe furtada a própria condição

de ser desejante, o indivíduo perde o caráter mais intrínseco de sua condição humana:

querer. Aprendendo na tela da televisão o que deve desejar, o sujeito torna-se objeto,

mercadoria barata na cotação pós-moderna.

Conspurcando o conceito dadaísta e surrealista de inverdade do estilo, a indústria

cultural justifica sua pasteurização, de modo a oferecer ao indivíduo não mais do que

diversão irrefletida. Se, ao se defrontar com a obra de arte, caberia ao sujeito relacionar

a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais (KANT, 2005), tal papel lhe foi

furtado pela maior parte das produções contemporâneas. Tomando-se como exemplo o

cinema, manifestação artística surgida no início do século XX, percebe-se que

ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos (...) paralisam essas capacidade em virtude de sua própria constituição objetiva (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.119).

Vazias de não-ditos, as obras difundidas para o grande público não permitem a

reflexão, pois as lacunas em que o receptor e a ora coconstruíam sentidos foram

substituídos pela histeria da publicidade e pela sucessão ininterrupta de clichês e

reviravoltas. O contato com a arte não mais tira o fôlego pela catarse ou pelo prazer – ou

mesmo desprazer – estético, mas sim pelo esgotamento proporcionado pelo paroxismo

da avalanche de informações descartáveis.

A vigente similitude de temas e clichês na arte não denota mais do que uma

tentativa de apagar distinções sociais ou possíveis conflitos entre dominadores e

dominados, de modo a tornar-se mais eficaz a produção tecnicista. Nesse contexto, os

grandes capitalistas oferecem produtos com a promessa de divertir o consumidor, o qual

requer um passatempo que lhe repouse as forças, necessárias na manhã seguinte para

trabalhar e trazer lucros ao patrão.

90

Tal sucessão voraz de estímulos visuais e/ou auditivos assemelha a arte da

indústria cultural à linha de montagem, instaurando seu maior paradoxo, no qual

repousa uma de suas mais poderosas molas motrizes: diversão que se assemelha à faina,

a obra imposta às massas perverte o conceito aristotélico de mimese, de modo que imita

a esteira fabril. Todavia, não por prazer ou inclinação inerente ao homem, como cria o

discípulo de Platão, e sim com vistas ao recrudescimento dos lucros.

Porém, o caráter mercantil da arte não é prerrogativa exclusiva da cultura imposta

às massas na contemporaneidade. O mecenato renascentista e os leitores de folhetins do

século XIX eram patrocinadores de que já dependiam os artistas séculos atrás, embora

hoje a arte se orgulhe de ser mercadoria, trocando seu valor de uso por mero valor de

troca. Tampouco é inovadora a associação entre arte e entretenimento que permeia a

maior parte das produções hodiernas. Prova disso é a antiga reincidência de vocábulos

como jouer ou play na maioria das línguas indoeuropeias, os quais pertencem,

concomitantemente, aos campos semânticos do teatro, da música e da brincadeira

(HUIZINGA, 2001). Para Adorno,

o que é novo na fase da cultura de massas em comparação com a fase do liberalismo avançado é a exclusão do novo. A máquina gira sem sair do lugar. Ao mesmo tempo em que já determina o consumo, ela descarta o que ainda não foi experimentado porque é um risco (ADORNO, 1985, p.111).

Tal paradoxo é acompanhado pela mudança na forma de percepção das

coletividades humanas. A partir do momento em que a obra perde seu caráter aurático

(BENJAMIN, 1985), vinculado às suas condições de produção e ao contexto em que se

insere, tornando-se apenas mais um flash nas telas da sociedade do espetáculo, o

homem, como sujeito histórico, também é posto em xeque. A falsa homogeneidade é

imposta ao sujeito como um valor a ser atingido: obras idênticas são feitas para pessoas

idênticas, todas aspirantes à fama, ao poder, ao dinheiro e a formas esculturais. O

trabalhador da linha de montagem torna-se, assim, apenas mais uma peça a ser

construída em série na esteira fabril.

Em paralelo a tamanha perversão da mimese, em que a obra de arte imita o que há

de nocivo a si mesma e ao homem, também a noção de catarse é deturpada em benefício

da troca monetária. A falácia de obras iguais para pessoas iguais, sob pretexto de

democratizar o acesso à arte, é responsável, junto aos baixos preços, por essa reedição

da utopia medieval da terra de Cocanha: se no imaginário medievo a comida estaria

sempre ao alcance da mão na mítica Cocanha, em tempos de indústria cultural a catarse

seria possível a todo o tempo, facility sedutora para o consumidor do artefato cultural.

91

Assim, para rir, chorar, expurgar ou se emocionar, não é mais preciso esperar pelas

grandes apresentações teatrais, como no tempo de Aristóteles, primeiro sistematizador

do conceito de catarse. A lógica pós-moderna oferece ao sujeito na tevê, no rádio ou em

qualquer das simplórias publicações açucaradas que pululam hoje em livrarias, uma

fácil comoção, sem necessidade de reflexões mais profundas. Contudo, mal sabe o

consumidor que, se o trágico adivinha de um desacerto entre o sujeito e a sociedade, a

falsa identidade entre ambas as instâncias imposta pela indústria cultural ao pasteurizar

o homem põe fim à possibilidade do trágico.

Ademais, a indústria cultural não tem o caráter sublimador de pulsões que a

psicanálise atribuiu à arte. Em vez disso, limita-se a recalcá-las, estimulando desejos

jamais concretizáveis, pois sua realização, mesmo que momentânea, daria fim à eterna

busca por novas mercadorias. Na pós-modernidade, a cadeia lacaniana de significantes

não mais passa pelo seio materno, a mamadeira, a chupeta ou o parceiro sexual.

Hodiernamente, roupas de marca, tecnologia de ponta ou paqueras virtuais sucedem-se

na efemeridade da falsa completude.

Assim, a idolatria inconsciente ao belo, fruto do redirecionamento de pulsões

eróticas, não pode ter lugar em um ambiente em que o sujeito é bombardeado o tempo

todo por um belo inatingível, de corpos esculturais, faces sempre jovens e sorrisos

permanentemente brilhantes. Não há como sublimar e canalizar as pulsões para o

caráter criador de todo Eros, dedicando-se à produção do belo, em uma era em que a

beleza é obtida na mesa de cirurgia, mediante pagamento parcelado sem juros.

Em tal época de artefatos culturais pasteurizados, o próprio homem perde seu

estatuto de indivíduo singular, tornando-se ele também um produto sem identidade,

marcado pela “desrealização do outro, sua anônima caracterização sempre mediada pelo

véu das imagens, a qualidade intercambiável das escolhas tipificadas e previsíveis e o

embotamento geral daí resultante” (DIAS, 2007, p.17). Se Marx (1974) apregoava o

fetiche da mercadoria, não imaginava os absurdos desdobramentos de tal fetichismo,

com o consumidor confundindo-se com o consumido.

Assim, o que se percebe na atualidade é a perda do valor cultual da arte

(BENJAMIN, 1985), dissolvido na mesmice da indústria cultural. No passado, a arte

tinha valor de culto porque sua técnica era parte do ritual, como nas pinturas da caverna

de Lascaux, a que se atribuíam mágicos poderes. A vivência da arte era destacada do

cotidiano, sendo-lhe atribuído estatuto de sagrado (DURKHEIM, 1991).

92

Digna, pois, de altar simbólico, a arte recebeu uma moldura, caixilho com que se

guarnecem e adornam retratos, quadros e espelhos, para destacá-los do entorno e

delimitar um espaço de suspensão do real, como em locais sagrados. Também as outras

modalidades de arte dispõem de respectivas molduras simbólicas para sacralizar o

emoldurado, como as margens do livro e as cortinas do teatro. Nesse sentido,

a moldura de um quadro, a arquitetura do retábulo, a instalação em que uma pintura é inserida como uma joia têm uma lógica em comum (...): elas definem atitudes pictóricas a serem assumidas diante de uma pintura, que por si só não bastam para essa finalidade (DANTO, 2006, p.15).

Entretanto, é como cupim que rói a moldura que opera a indústria cultural. Ao

lançar-se a obra em uma esfera de consumo massificado, simplificado e

descontextualizado, produzindo não arte, mas lenitivos para embalar o sono dos

consumidores, sacrificou-se o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema

capitalista.

Toda obra de arte, por mais realista que seja, tem seu valor estético residente no

descompasso entre o real e sua representação, embora a obra massificada da

contemporaneidade copie o real integralmente, mantendo com ele – e estimulando o

mesmo entre os indivíduos – uma relação de identidade. Tal obsessão identitária

também se reflete no termo “cultura”, contrário ao conceito de diversidade a que se

pretende. Assim, a indústria cultural geralmente não opera no sentido da multiplicidade

e da individualidade, características inerentes aos estatutos humano e artístico. Para a

pseudoarte enlatada, o denominador comum “cultura” implica o caráter classificatório e

organizador que introduz o trabalho estético no âmbito da administração.

Em tal era da alienação e da velocidade, pouco tempo é permitido para que o

indivíduo se abandone diante de uma obra de arte. Afinal, a apreensão do belo é

impossível

se não for acompanhada de indiferença, mais, de desprezo por tudo quanto é extrínseco ao objeto contemplado. Só pelo deslumbramento, pela injusta oclusão do olhar à exigência feita por todo o existente, é que se faz justiça ao existente. Ao tomar-se na sua parcialidade como o que ele é, esta sua parcialidade é concebida – e reconciliada – como a sua essência. O olhar que se perde numa beleza única é um olhar sabático. Salva no objeto algo do descanso do dia da sua criação (ADORNO, 2001, p.74).

Na histeria da pós-modernidade, confusa em meio à caleidoscópica sucessão de

anúncios e informações – pouco retida na memória a despeito da massiva estimulação

das retinas –, o sujeito não consegue se tornar indiferente. Tem de olhar para tudo o

tempo todo, não se permitindo o perder-se na vertigem do belo. No entanto, a atenção

93

difusa não possibilita também que o indivíduo se vincule de fato a qualquer uma das

várias informações que momentaneamente apreende.

A própria relação do homem com o sobrenatural, mediada pela mitologia,

reconhece a premência do abandonar-se para a contemplação do belo, prática

impossível no ritmo de vida contemporâneo. Na narrativa grega, Ícaro, filho de Dédalo,

perde a si próprio na contemplação estética do brilho solar, deixando sua condição de

sujeito dissolver-se na apreciação da luz. De maneira semelhante, dissolve-se também a

cera que gruda as penas de suas asas artificiais, de modo que o herói se põe em queda

livre, mergulhando para sempre no oceano do belo.

Infelizmente, nem de Dédalos nem de Ícaros se compõe a pós-modernidade: há

muito os papéis de artífice e esteta rarearam. Perdido no labirinto hodierno, o homem

contemporâneo parece preso para sempre nos descaminhos emaranhados da histeria da

velocidade, da transitoriedade e do consumo. Olhando para todos os lados o tempo todo,

o sujeito do mundo pós-moderno sequer reconhece o belo e, se o percebe, não se

permite contemplá-lo, por exigências do tempo roaz.

Nesse contexto, mesmo aqueles que se arvoram em conhecedores de arte

desvirtuam o teor das indagações estéticas, permeando-as com questões estranhas à arte

e particulares à esfera do capital. Denunciando o caráter mercantil de muitas discussões

estéticas da contemporaneidade, o autor de Minima Moralia desconstrói a noção de

intertextualidade, apregoada por Bakhtin (1988), Compagnon (1996), Kristeva (1974) e

tantos outros teóricos como um pretenso diálogo entre as obras que fecunde e

multiplique suas significações. No aforismo “De gustibus est disputandum” (“Vale a

pena lutar pelos gostos”, em português), Adorno (2001) condena a prática burguesa de

comparação de obras de arte como um instinto mercantil, tal qual o televisor novo que

deve ser comprado porque possui uma série de novas funções que os concorrentes

ignoram. Em vez de estética, a discussão sobre a arte, de acordo com Adorno, está

centrada em aspectos publicitários, de forma que os lances em leilões sejam cada vez

mais altos. O comprador, assim, adquiriria não uma obra de arte, mas o status que ela

lhe confere.

Opondo-se a esse contrassenso instalado pela indústria cultural, o autor de Minima

Moralia afirma que as obras de arte não admitem comparação:

Se a ideia do belo se representa simplesmente repartida em múltiplas obras, cada uma em particular intenta incondicionalmente a ideia total, reclama para si a beleza na sua unicidade e nunca pode admitir o seu parcelamento, sem a si mesma se anular. Enquanto uma, verdadeira e inaparente, livre de

94

tal individuação, a beleza não se representa na síntese de todas as obras, na unidade das artes e da arte, mas de forma viva e real: no ocaso da própria arte (ADORNO, 2001, p.73).

Assim, nem mesmo a crítica de arte, que deveria defender a estética contra o

capital, desempenha seu papel de forma satisfatória na sociedade atual: pervertido pela

lógica do consumo, o crítico age à guisa de publicitário, limitando-se a divulgar as

obras, muitas vezes em resenhas compradas.

Pervertida a noção de arte em um mecanismo ideológico que simplesmente

corrobora a desumanização e a exploração do outro, reificado em ferramenta de

trabalho, o próprio artista tem seu papel deturpado na sociedade contemporânea.

Vivemos a era das celebridades instantâneas: estrelas e starlets ascendem ao panteão

dos famosos em questão de segundos, bastando um paparazzo, uma fofoca ou uma

passagem meteórica por programas de TV para que um “artista” – palavra banalizada na

era da modelo-manequim-atriz – se torne capa de periódicos. Na hipermodernidade,

tempo de relações fluidas e instáveis, o estrelato é adquirido da noite para o dia,

velocidade também instantânea para que um indivíduo caia no esquecimento.

No aforismo “Morte da imortalidade”, Adorno (2001)denuncia o esvaziamento da

noção de fama, etimologicamente ligada à raiz fa-, falar. Assim, sendo o famoso aquele

de quem se fala, o verdadeiro artista tornou-se nefando, aquele de quem não se deve

falar, observando-se a cognação entre ambos os termos. Vê-se, pois, que

a fama, enquanto resultado de processos objetivos no seio da sociedade mercantil, que tinha algo de contingente, e amiúde versátil, mas também o esplendor da justiça e da livre escolha, está liquidada. Converteu-se inteiramente numa função dos órgãos de propaganda assalariados e mede-se pelo investimento arriscado pelo portador do nome ou dos grupos de interesse que por detrás dele há (ADORNO, 2001, p.98).

Na crise dos valores clássicos de belo, artístico e literário, anunciada na

apocalíptica trombeta da indústria cultural, constroem-se as reflexões a seguir, acerca de

uma estética tipicamente pós-moderna: uma arte do escatológico. Por meio de metáforas

e metonímias fecais, a arte do abjeto insurge-se contra os ditames do mercado e

subverte a lógica mercantil do sistema reificador.

O excrementício que borra a cultura de massas

Como visto anteriormente, a indústria cultural instala na pós-modernidade uma

situação deplorável de esvaziamento do artístico e massificação da informação,

processos que redundam na reificação do sujeito. Diante desse quadro, uma possível

95

reação linguística de revolta é praguejar contra o status quo, frequentemente

desbocando uma metáfora ligada aos excrementos sólidos humanos, traçando uma

equação entre a indústria cultural e as fezes. Este capítulo, no entanto, visa a investigar

o emprego da imagem do excrementício nas obras de arte por um viés diametralmente

oposto: o expurgo intestinal como forma de levante contra a submissão da arte ao

capital e seu consequente empobrecimento difundido às massas na contemporaneidade.

Nesse sentido, o poder dos rejeitos já havia sido antecipado por Bertolini (1998),

rudólogo famoso por seus aforismos sobre a sujidade: “Le déchet n’est pas insignifiant;

c’est au contraire un signifiant puissant”.

Tal temática do repulsivo, embora a muitos pareça prerrogativa da

contemporaneidade, é desde os primórdios dos estudos estéticos tema polêmico. Platão,

um dos primeiros pensadores a escrever suas impressões sobre a arte, opunha-se

ferozmente a uma representação de elementos ditos inferiores, como a destemperança, a

desproporção e a fealdade. As musas inspirariam apenas a imitação do que é belo, visto

que a estetização do indigno poderia culminar na corrupção da alma humana. Em um

dos célebres diálogos platônicos, Sócrates afirma que “a feiúra, a arritmia, a desarmonia

são irmãs da má linguagem e do mau-caráter, ao passo que as qualidades opostas são

irmãs e imitações do caráter oposto, da sabedoria e da bondade da alma” (PLATÃO,

1999, p.94). Assim, ao expulsar o poeta da idealizada pólis, o autor de A República

teme tais influências nefastas que a imitação de caracteres negativos pudesse ter sobre

os cidadãos.

Nesse sentido, de acordo com o sistema de pensamento do filósofo grego, o

somático é associado à baixeza e ao nocivo, em oposição à superioridade conferida à

alma. Dicotômico, o sistema platônico opunha matéria e ideia, tendo essa antinomia

expressão máxima na Alegoria da Caverna (PLATÃO, 1999). Assim, os excretas,

questão central nesta dissertação, jamais poderiam ser associados ao sol que esperava o

cativo liberto na alegoria, após sua árdua subida em direção à verdade e à sabedoria. As

fezes certamente estariam escondidas nas profundezas da caverna platônica – como nos

meandros intestinais –, não devendo ser apresentadas na forma de arte, mas sim

segredadas como um profano mistério tabuístico.

De maneira distinta via Aristóteles (2006) a questão da mimese, não condenando a

imitação do real pela arte. Como se percebe no excerto a seguir, é possível ter prazer

estético ao se contemplar o abjeto na obra artística:

96

A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância. Neste ponto distingue-se de todos os outros seres, por sua aptidão muito desenvolvida para a imitação. Pela imitação adquire seus primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam prazer. A prova é-nos visivelmente fornecida pelos fatos: objetos reais que não conseguimos olhar sem custo, contemplamo-los com satisfação em suas imagens mais exatas; é o caso dos mais repugnantes animais ferozes e dos cadáveres (ARISTÓTELES, 2006, p.30).

Assim, segundo o estagirita, a mediação artística garantiria beleza e aprazibilidade

ao abjeto, que poderia ser contemplado com deleite. Tal posicionamento fez de

Aristóteles, no campo das discussões estéticas, um homem avant la lettre. Afinal,

depois dele,

na Idade Média, o feio, quando representado artisticamente, lembra ao homem que a beleza é transitória; somente no sobrenatural o sujeito encontra a verdadeira beleza. O Renascimento começa a desdivinizar a beleza e a humanizar a feiúra. Amplia-se, nas artes, a conquista do feio como categoria estética, intensificando-se essa prática com as inquietações históricas registradas nas fases barroca e romântica. Mas, leia-se Kant, autor do mais importante tratado de estética do século XVIII – A Crítica da Faculdade do Juízo –, e ver-se-á que perdurava a convicção de que “o feio ocorre na arte quando é belamente representado”. O ideário platônico da beleza deitara raízes profundas na cultura ocidental, entrando em franco declínio apenas a partir da modernidade, uma vez que os artistas desse período passam a explorar o feio como temática predominante em suas obras (ANDRADE, 2008, s.p.).

Seguindo os preceitos aristotélicos, a arte contemporânea traz consigo o abjeto

como forma estética, fundindo duas necessidades humanas: o excrementício e o

artístico. Característica inerente ao homem, desconstruir o real e recompô-lo em um

diferente sistema de signos é uma possível definição da arte que em muito se assemelha

ao processo digestivo, o qual culmina na expulsão de um bolo fecal.

Versão também escatológica da metáfora de desconstrução-reconstrução foi

inclusive utilizada pelos modernistas brasileiros no Manifesto antropofágico

(ANDRADE, 1990), em referência à abordagem prescrita frente à arte estrangeira.

Além disso, vale lembrar a polissemia do vocábulo “obrar”, que tanto designa o ato de

produzir um engenho quanto o de defecar. Sendo do povo que dimana o idioma,

similitudes como essa sugerem as associações por analogia que se traçam entre os

supostamente distintos conceitos de arte e de excremento.

Se durante séculos a produção cultural foi avaliada segundo um critério abstrato e

absolutamente discutível, o gosto, a sociedade hodierna assiste ao elogio ao desgosto

(em sua acepção de repugnância). A arte do abjeto subverte não apenas as prerrogativas

estéticas tradicionais, mas também a compreensão humana acerca das fezes.

Comumente visto como produto da corrupção e da putrefação das formas de um objeto,

97

o excrementício ganha nova dimensão quando incorporado à arte, visto que, desse

modo, ao informe bolo fecal dá-se o estatuto de obra, por meio da elaboração da forma.

Subverte-se, assim, o conceito clássico de forma, pois

em primeiro lugar, há uma ruptura com um universo de formas que estaria submetido ao Espírito, ao Divino. Para Hegel, as formas da escultura grega exprimiam o Espírito, o Universal. Para São Tomás de Aquino, a forma humana é à semelhança de Deus. Utilizar o caco de garrafa, o pedaço de ferragem, é reconhecer nas menores parcelas presentes no chão a potência de tornar-se forma. (...) A relação entre forma e matéria foi renovada: a Forma não é mais uma entidade transcendente. As diversas matérias secretam a miríade de formas (BEAUNE, 1999, p.21).

Adivinhando “nas menores parcelas presentes no chão a potência de tornar-se

forma”, o artista contemporâneo percebe o belo no hórrido e no simplório, podendo

fazer inclusive de seu expurgo intestinal forma e matéria de sua obra. Tamanha

dissolução da frequente associação entre Belo e artístico dá ensejo a uma estética do

abjeto, que faz da sujidade e da feiúra sua expressão.

De maneira semelhante, Adorno (2001) afirma, no aforismo “É muito bom da sua

parte doutor”, que

as pequenas alegrias, as manifestações da vida que parecem isentas da responsabilidade do pensamento não só têm um momento de obstinada estupidez, de autocegueira insensível, mas entram também imediatamente ao serviço da sua extrema oposição. Até a árvore que floresce mente no instante em que se percepciona o seu florescer sem a sombra do espanto; até o “como é belo!” inocente se converte em desculpa da afronta da vida, que é diferente, e já não há beleza nem consolação alguma exceto no olhar que, ao virar-se para o horror, o defronta e, na consciência não atenuada da negatividade, afirma a possibilidade do melhor (ADORNO, 2001, p. 19).

Assim, o Belo se corrompe em distrator das mazelas do real, associando-se ao

escapismo. Condenando tal atitude, Adorno elogia o horror como forma de denúncia e

de estímulo ao desejo de mudança para subverter a iniquidade vigente.

O posicionamento adorniano, que condena a primazia de conceitos tradicionais de

Belo, está em consonância com um axioma tornado epíteto por muitos artistas que o

sucederam: “a arte não é necessariamente bela” (READ, 1968). O autor de tal frase,

crítico e poeta inglês, é famoso por suas falas impactantes, relacionadas aos

descaminhos da arte na contemporaneidade, entre as quais se destaca que “o único

pecado é a feiúra”. No entanto, já que a arte não tem de ser bela, a feiúra pecaminosa

não se aplica à representação artística da fealdade, cuja mediação lhe garante valor

estético. Assim, pecado não é a luxúria, a avareza ou a arte com símbolos profanos,

como o expurgo intestinal. Pecado é a não-arte, feia por não ser Bela, no sentido de não-

98

mediatizada na elaboração da forma. Aliás, a relação entre arte e beleza stricto sensu é

uma questão de contingência histórica, não parte da essência da arte.

Porém, tal discussão esbarra em outra muito mais profunda e típica da

modernidade. Enquanto no passado não apenas os críticos mas também os leigos

conheciam bem a distinção entre arte e não-arte, a partir do século XX tal barreira se

tornou muito tênue, sendo os casos limítrofes objeto de profunda discussão. Conscientes

disso, os artistas modernistas e contemporâneos investem cada vez mais na produção de

obras que não se encaixam nos ditames de harmonia e verossimilhança da arte

tradicional, mas sim de artefatos que questionam essas diretrizes estéticas.

Danto (2006) traça uma profunda reflexão acerca das mudanças do papel da arte,

do artista, do crítico e do esteta na pós-modernidade. Segundo o autor, vivemos uma era

de transformações no campo artístico, como revela o polêmico título de seu livro, Após

o fim da arte. Para evitar interpretações errôneas de sua tese a partir do título da obra,

Danto esclarece, logo na introdução, que

não era [seu] ponto de vista que não haveria mais arte, o que certamente significa “morte”, mas o de que, qualquer que fosse a arte que se seguisse, ela seria feita sem o benefício da narrativa legitimadora, na qual fosse vista como a próxima etapa apropriada da história. O que havia chegado a um fim era a narrativa, não o tema da narrativa (DANTO, 2006, p.5).

Antes da pós-modernidade, segundo Danto (2006), ser arte equivalia a estar

inscrito em uma narrativa oficial. Isso quer dizer ser filiado a algum movimento ou

seguir uma tendência eleita pelos historiadores da arte como digna de entrar para os

anais da história. Desrespeitar essas tendências dominantes ou não pactuar com algum

manifesto era sinônimo de marginalidade no campo cultural. Assim, o fim da arte é o

fim das regras que dizem o que é arte, de modo que “o contemporâneo é de determinada

perspectiva, um período de desordem informativa, uma condição de perfeita entropia

estética. Hoje não há mais qualquer limite histórico. Tudo é permitido” (DANTO, 2006,

p.5).

Essa multiplicidade levou Danto (2006) a opor a arte contemporânea à moderna,

afirmando ser esta pura e aquela impura. Nas palavras do autor,

Para ele [Greenberg], maturidade significava “pureza”, no sentido do termo que o relaciona exatamente ao que Kant pretendia com a ideia de “pureza” no título de sua Crítica da razão pura. Esta era a razão aplicada a ela mesma, sem nenhum outro tema. A arte pura foi, de maneira análoga, a arte aplicada à arte. E o surrealismo era quase que a materialização da impureza, ligado como estava aos sonhos, ao erotismo, ao inconsciente e, na visão de Foster, ao “sinistro”. Mas, sendo assim, pelo critério de Greenberg, a arte contemporânea é impura (DANTO, 2006, p.12).

99

Ao citar o crítico norte-americano ligado ao Modernismo, Danto (2006) aponta

para uma obsessão moderna pela pureza dos meios, em uma arte que abandonou a

agenda representativa para assumir uma nova, em que os meios de representação se

tornaram o objeto de representação.

Enquanto a modernidade se debatia em busca da pureza, a pós-modernidade

aponta para uma arte multimodal, em que diversas mídias se cruzem na elaboração da

obra. No contexto do presente trabalho, uma das várias possibilidades engendradas pela

contemporaneidade se destaca: se um artista moderno podia escrever sobre as fezes ou

mesmo pintá-las, um artista pós-moderno poderia escrever ou pintar com as próprias

fezes, reeditando algo do Marquês de Sade ou das brincadeiras infantis com o próprio

bolo fecal. O modernismo propôs-se, como divisor de águas da arte, a sepultar tudo o

que fosse passado, celebrando as honras funerárias em um faustoso banquete de restos

mortais dos séculos passados. Já a arte pós-moderna da abjeção, empanzinada do

passado, põe-se a vomitar, defecar e exalar seu processo digestivo, não negando o

passado, mas reaproveitando-o e misturando-o a outras mídias, de modo a maculá-lo de

impurezas.

Em sua dinâmica de lúdica bricolagem com o impuro, a arte pós-moderna tem

relevante importância na cena contemporânea, como forma de levante contra o

embotamento humano e estético perpetrado pela indústria cultural.

Assiste-se, hoje, a uma desilusão crescente quanto ao acesso massificado a bens de

consumo e culturais, que outrora prometia ser uma revolução democrática da felicidade.

A prosperidade não chegou a todos, mantendo muitos à margem do processo; o que

chegou aos demais, por sua vez, tem qualidade e solidez risível. Mais do que benesses,

tal massificação trouxe o embotamento das faculdades críticas e criativas, como se

percebe na falência dos sistemas alternativos e opositores à sociedade de consumo.

Tomado no turbilhão da publicidade e na enxurrada de produtos culturais que nem

sempre convidam à reflexão, mas à recepção passiva de fórmulas fáceis e clichês, o

indivíduo é destituído da capacidade de se rebelar contra o sistema vigente.

No entanto, contra a torrente de excremento cultural e mercadológico lançado

sobre o indivíduo, levanta-se uma estética das fezes. Nesse sentido, pode-se falar de

uma politização do excreta, que serve de mecanismo de denúncia quando tornado obra

de arte.

Mais do que uma arte panfletária, a estética fecal, por meio do trabalho com o

abjeto, dando forma estética ao informe excrementício, revela-se eficiente protesto.

100

Defendendo posição semelhante a essa, Adorno (2003) afirma só compreender o

fenômeno estético

quando composições líricas não são abusivamente tomadas como objetos de demonstração de teses sociológicas, mas sim quando sua referência ao social revela nelas próprias algo de essencial, algo do fundamento de sua qualidade. A referência ao social não deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela (ADORNO, 2003, p.66).

Nesse contexto, cabe afirmar que, para Adorno, mesmo as obras radicalmente

alheias ao mundo material, como os sonetos parnasianos, os herméticos contos

modernistas ou o urinol de Duchamp, têm um posicionamento social claro. Como a

figura de retórica do lítotes, que nega para afirmar, a busca por uma palavra virginal,

imaculada pelo real, é um reflexo da sociedade, na medida em que, ao não ser objetiva,

denuncia a reificação do sujeito no mundo contemporâneo. Afinal,

em protesto contra ela [a reificação], o poema enuncia o sonho de um mundo em que essa situação seria diferente. A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, à dominação das mercadorias sobre os homens, que se propagou desde o início da Era Moderna e que, desde a Revolução Industrial, desdobrou-se em força dominante da vida (ADORNO, 2003, p.69).

Entendendo-se poesia em lato sensu, como um fazer inspirado, tal qual na raiz

grega, pode-se expandir o escopo das reflexões do pensador frankfurtiano para toda a

arte, o que incluiria as manifestações estéticas fecais. Assim, melhor do que um

manifesto contra a reificação da cultura, da arte e do sujeito pós-moderno, a arte do

escatológico é ainda uma força que se insurge visceralmente, produzindo, literalmente,

uma descarga de questionamentos contra o empobrecimento da reflexão e a reificação

do sujeito.

É, pois, no trabalho com a forma, prerrogativa da arte, que o disforme

excrementício sofre uma “metaformose” (SÍLVIO, 1997), tornando-se objeto (ou

abjeto) estético nas mãos de Rubem Fonseca e Wim Delvoye, cujas obras serão

estudadas nas próximas seções. Visceral em todas as acepções, o trabalho de tais artistas

denuncia a lógica da indústria cultural, revelando o quão malcheirosos são o

empobrecimento da arte e a reificação do indivíduo.

Literatura excretada

Recebendo a pecha de autor maldito e tendo seu livro de estreia censurado pelo

regime militar, Rubem Fonseca se acostumou a análises superficiais de sua obra, que

101

não a compreendiam, ou mesmo a repudiavam, por tratar de elementos geralmente

banidos para a esfera do marginal, como a violência, a pornografia e a abjeção. No

entanto, é justamente nessa mistura entre o profano dia-a-dia das metrópoles e a

(pretensamente) sagrada literatura que reside a força estética dos escritos do autor.

Porém, não só no plano do conteúdo, mas também no que diz respeito à forma,

Rubem Fonseca viola

permanentemente fronteiras – misturando tempos, espaços e remodelando continuamente identidades. (...) Ultrapassam-se as barreiras da autoria, incorporam-se outros códigos, como o da semiótica, o da filosofia ou o da cultura de massa, e absorvem-se recursos de outras linguagens, como a da fotografia e a do cinema (FIGUEIREDO, 2003, p.12).

Ao embaralhar as fronteiras da enunciação, Rubem Fonseca inscreve sua narrativa

em uma tendência pós-moderna de ambivalente turvação de limites, mesmo entre real e

ficcional, marca da esquizofrenia do sujeito contemporâneo. Aliás,

justamente esta indefinição de limites entre o real e o imaginário, além de construir o sintoma da desorientação do sujeito pós-moderno, nos atuais espaços desenraizados e caóticos, vai gerar, não apenas o deperecimento da percepção da alteridade, mas também a desarticulação imaginária do corpo. É que, frente à cortina de imagens da tecnologia, e de seus desafios à percepção humana, o sujeito vive na corda bamba do paradoxo. No perto-longe que as telas instauram, o corpo está sempre ameaçado. Ou pela imediação desmaterializada entre sujeito e acontecimento, em que a catástrofe assistida tem e não tem existência, porque não atinge o espectador, bem defendido da destruição alheia. Ou, ainda, pela potência do meio eletrônico, em que “a possibilidade de abranger as mais vastas extensões jamais percebidas (geográficas ou planetárias)”, ao engendrar “a ausência da percepção imediata da realidade concreta”, ocasiona “um desequilíbrio perigoso entre o sensível e o inteligível” (DIAS, 2007, p.13).

Ao desarticular o real e o ficcional, a arte pós-moderna desconjunta mesmo as

estruturas intrínsecas à constituição do sujeito. Tal desarticulação arraiga-se de forma

mais profunda na própria materialidade do texto: se a Linguística apregoa serem a

coesão e a coerência categorias fundamentais na compreensão do fenômeno textual, a

literatura contemporânea, por meio da estética do fragmento e da ilogicidade

intencional, subverte essas prescrições acadêmicas, instalando textos de ruídos.

De modo análogo, o próprio corpo, antes visto como um todo coerente e coeso, é

agora alvo de uma apreciação sempre parcial, fragmentando o sujeito em uma série de

objetos descontínuos. Negando o espelho lacaniano, no qual o indivíduo se identifica

como uno, a arte hodierna apreende-o de modo estilhaçado, oscilando entre as instâncias

de sujeito e objeto. Nesse contexto de ambivalência, as fezes desempenham um papel

sobrerrelevante, pois abrigam-se na fronteira entre o dentro e o fora do corpo, oscilando

102

entre parte de um eu e de um outro e revelando a visão fragmentária do somático na

contemporaneidade.

Tal transgressão de limites gera situações de liminaridade, em que distintas

linguagens se hibridizam, como a interseção entre estética e escatologia, temática desta

dissertação. Aliás, de acordo com Rodrigues (2006), antropólogo que pesquisa as

representações do corpo, é a ambiguidade o que avilta o homem no que diz respeito ao

abjeto. As excreções – falas corpóreas – são repugnantes porque não são classificáveis,

oscilando entre o sólido e o líquido, o sujeito e o objeto, o prazeroso e o infeccioso.

Assim, o produto do trabalho artístico que se aproxima do produto da digestão,

imagem recorrente nos escritos fonsequianos, causa desconforto àquele que o

contempla, pois tem dificuldade de classificá-lo como arte ou não. Contudo, é na

impossibilidade de classificar ou nomear – visto que toda nomenclatura é per si

classificatória – que surge a metáfora, dizendo o indizível. É na ambivalência,

característica também do excremento, que a literatura opera, instalando ruídos, silêncios

e ambiguidades no seio da linguagem.

No contexto da metalinguagem, é importante observar que o tema da escrita em

Rubem Fonseca é quase sempre ligado às esferas sórdidas da condição humana, como o

crime, a doença e o abjeto, o que se percebe no trecho a seguir:

Nenhum escritor gosta realmente de escrever. Eu gosto de amar e de beber vinho; na minha idade eu não deveria perder tempo com outras coisas, mas eu não consigo parar de escrever. É uma doença (FONSECA, 1975, p.144).

Tal passagem pode ser aproximada de outra que se lhe antecede no texto, a qual

afirma que as palavras têm um efeito catártico, de alívio de tensões e pressões,

referindo-se especialmente aos palavrões. Nesse sentido, vale lembrar que, no discurso

médico, catarse indica a evacuação dos intestinos, o que nos remete diretamente ao

título do conto supracitado, que apresenta o órgão onde as fezes são preparadas para a

expulsão do corpo. Assim, o texto sinaliza para uma possível leitura de que escrever se

assemelha a defecar, visto que ambos os processos consistem em pôr para fora algo que

faz mal se reprimido. Ademais, tal conto é o último do livro no qual se encerra, como o

intestino que antecede o orifício terminal do sistema digestório.

Nessa narrativa, o autor ironiza as transformações radicais sofridas pela arte em

tempos de indústria cultural – especialmente a literatura –, de modo que a diegese se

inicia com um narrador que se depara com a comercialização excessiva da palavra e da

comunicação humana, como se percebe no excerto abaixo:

103

Telefonei para o Autor, marcando uma entrevista. Ele disse que sim, desde que fosse pago – "por palavra". Eu respondi que não estava em condições de decidir, teria primeiro de falar com o Editor da revista. "Posso lhe dar até sete palavras de graça, você quer?" disse o Autor. "Sim, quero". "Adote uma árvore e mate uma criança", disse o Autor, desligando. Para mim as sete palavras não valiam um tostão. Mas o Editor pensava de maneira diferente. Foi combinado um valor por palavra, diretamente entre eles (FONSECA, 1975, p.135).

Ao longo da entrevista que o conto apresenta, o narrador-repórter entrevista um

autor de livros polêmicos, visto que não se enquadram em um modelo pré-fabricado de

literatura fácil e rapidamente digerível em tempos de indústria cultural. O autor fictício

é um claro alter ego de Rubem Fonseca, visto que também publica um livro chamado

Intestino grosso e é execrado pela crítica por seus escritos violentos e pornográficos,

permeados por imagens relativas às secreções humanas. No entanto, o conceito de

pornografia para o entrevistado não se liga às funções biológicas de reprodução ou

excreção, mas sim à obscenidade da vida desumana que levam os indivíduos esmagados

pelo sistema, como se percebe em “‘Já ouvi acusarem você de escritor pornográfico.

Você é?’ ‘Sou, os meus livros estão cheios de miseráveis sem dentes.’” (FONSECA,

1975, p.136).

Além disso, o autor personagem acusa a história de João e Maria, conto de fadas

eternizado pelos Irmãos Grimm no século XIX, de pornográfica, pois

é uma história indecente, desonesta, vergonhosa, obscena, despudorada, suja e sórdida. No entanto está impressa em todas ou quase todas as principais línguas do universo e é tradicionalmente transmitida de pais para filhos como uma história edificante. Essas crianças, ladras, assassinas, com seus pais criminosos, não deveriam entrar dentro da casa da gente, nem mesmo escondidas dentro de um livro (FONSECA, 1975, p.138).

Desconstruindo-se a narrativa feérica, reitera-se um novo conceito de pornografia

e obscenidade, o qual também pode ser encontrado nos escritos fonsequianos,

permeados pela violência brutal. Por meio de imagens chocantes ao decoro burguês, o

autor Rubem Fonseca e o autor que ele cria em “Intestino grosso” (FONSECA, 1975)

convidam-nos a questionar a sociedade em que nos inserimos, na qual o homem é

concebido como apenas mais um item a ser fabricado na esteira da produção.

Se a pornografia está nas atitudes humanas que reificam o outro, mais um

elemento de mercado na sociedade do consumo, a indústria cultural é pornográfica ao

extremo, por mais asséptica que se mostre aos olhos ávidos por diversão fácil e

desprovida de reflexão. Nesse sentido, as imagens do excrementício em “Intestino

grosso” (FONSECA, 1975) configuram um levante ideológico e fecal contra a

104

pasteurização da arte. Após afirmar que as secreções humanas nada têm de indecentes,

sendo um processo natural, o entrevistado afirma que obsceno é vender para o público

ávido de sangue o momento íntimo de maior liminaridade de um ser humano: a

passagem da vida para a morte, no instante exato em que não se é mais um sujeito,

tampouco se é objeto.

A outra morte - dos crimes, das catástrofes, dos conflitos, a morte violenta, esta faz parte da Fantasia Oferecida às Massas Pela Televisão hoje, como as histórias de Joãozinho e Maria antigamente. Está surgindo, pois, uma Nova Pornografia, a que poderíamos denominar de Pornografia de Gorer (FONSECA, 1975, p.142).

A morte que deveria ocorrer por doença, na cama – cenário preferido da velha

pornografia – vem a público de forma histérica nos meios de comunicação em massa,

tornando-se um espetáculo – a nova pornografia. Em tempos como este, em que a

imoralidade do crime hediondo é o alimento por que clamam as massas nos veículos de

informação, o indecente não é o sexo ou a escatologia, mas sim a desumanização. Nesse

sentido, é emblemática a frase de Jean Baudrillard (1970), filósofo francês

contemporâneo, que diz que “O homem tornou-se o ânus do sistema de produção-

distribuição”. Sendo o homem o ânus da hipermodernidade, inclusive sua escrita pode

se dar de forma fecal, como uma última possibilidade de grito contra a lógica da

indústria cultural, ironizada pela metáfora do excrementício.

Natureza podre

Outro conto dedicado ao abjeto como denúncia do empobrecimento artístico no

contexto da indústria cultural, “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo” é um

marco na trajetória literária de Rubem Fonseca. Publicado pela primeira vez no livro Os

prisioneiros, o título da obra em que se encontra o conto é marcado pela ambivalência,

de modo que, em cada um dos textos que a compõem, as personagens são prisioneiras

de algo, seja do desejo, do consumo, do analista ou da indústria cultural.

Em “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo”, o protagonista que dá nome ao

conto é um pintor revolucionário, que, em lugar de se dedicar à natureza-morta, trabalha

com a natureza-podre, cuja técnica não é claramente explicada no texto. Embora não

haja descrições dos procedimentos, meios e materiais envolvidos nessa modalidade

artística, o narrador, por meio da polifonia, apresenta as reações dos críticos às pinturas

de Potocki:

105

É claro que havia pessoas para as quais a natureza-podre não passava de uma piada de mau gosto. Mas os seus defensores (e esses eram milhões) redarguiam que a arte não pode ser encarada do estreito ponto de vista estético das chamadas Belas Artes. Um crítico da província, certa ocasião, defendendo Potocki, disse que a arte era a natureza vista através de um temperamento e que a natureza–podre de Potocki era a sua visão particular do mundo. Outro crítico, este da cidade, explicou Potocki segundo a teoria de Einfuhlung, partindo do pressuposto de que todos os homens carregam dentro de si a podridão e outra coisa Potocki não fazia senão estabelecer uma empatia entre a podridão implícita na natureza humana e a criação estética. Mas é claro que não pararam aí as especulações dos críticos. A análise mais aceita na ocasião foi a de que a arte de Potocki derivava de um pavor atávico e supersticioso das forças misteriosas da natureza; através de sua arte, Potocki procurava aplacar os poderes hostis da natureza, rendendo-se a eles (FONSECA, 2004, p.73).

Pela fala dos críticos, percebe-se que a natureza-podre enquadra-se no paradigma

contemporâneo de arte do desgosto, em vez do gosto convencional, não seguindo, de

acordo com Read (1968), os ditames tradicionais do Belo. O conhecimento de outros

contos de Rubem Fonseca em que a arte é aproximada do excrementício fecal, como

“Intestino grosso” (1975), “Copromancia” (2001), “Luíza” (2006) e tantos outros,

permite uma possível leitura de que a natureza-podre de Potocki tenha alguma relação

com o expurgo intestinal, seja na temática ou nos materiais usados na pintura.

A própria fala do crítico da cidade ratifica essa possível interpretação, visto que a

pintura do artista resultaria de uma empatia entre uma podridão interna, carregada

dentro do corpo de Potocki, com a própria criação artística. Além disso, se sua arte

“derivava de um pavor atávico e supersticioso das forças misteriosas da natureza”, é

clara sua relação com componentes psíquicas da criação artística. Nesse contexto, é

reveladora a relação traçada pela psicanálise entre fezes, tintas e argilas, ligando pintura

e escultura à fase anal da sexualidade. Em um discurso freudiano, Potocki, tomado por

“um pavor atávico e supersticioso das forças misteriosas da natureza”, regrediria à

infância psíquica, revisitando mecanismos de saciedade sexual típicos dessa fase, como

a analidade. Tal retorno à infância está presente em outros trechos do conto, sempre

ligados às pulsões que levam o pintor a mirar a tela, pois “ele se lembrava que era

assim, dessa maneira, que, quando menino, olhava nos circos para os anões, os gigantes,

o homem tatuado, a mulher barbada” (FONSECA, 2004, p.76). Além disso, a referência

à infância, relacionando pintura e fase anal da sexualidade, está presente em outro

trecho do conto, segundo o qual “estranhamente, as crianças gostavam dos quadros de

Potocki. Os professores de desenho e pintura nas escolas primárias reportaram que todas

as crianças, sem exceção, estavam fazendo quadros à maneira de Potocki” (FONSECA,

2004, p.75).

106

Outro índice de que a arte de Potocki tem ligações com o fecal é a privacidade de

que o pintor depende para criar.

Ninguém jamais vira Potocki no ato de pintar. No entanto, ele não fazia nenhum segredo das tintas que usava, ou da técnica que empregava. Mas nem por isso os seus rivais e imitadores deixavam de dizer que a evanescência de seu cinza e a profundidade do seu negro indicavam o uso de algum ingrediente secreto (FONSECA, 2004, p.74).

Secreto – ou secretado – o ingrediente que Potocki misturava às suas tintas dava às

cores de suas telas profundidade, como se oriundas da profundidade do seu corpo.

Como no ato de defecar na sociedade ocidental contemporânea, Potocki se isola e pede

privacidade, de onde se deriva o termo “privada”, para pintar.

Pintar com o próprio excremento, reedição ficcional da escrita literalmente

visceral do Marquês de Sade, parece chocante a algumas sensibilidades. Porém, se a arte

é a tradução de um impulso interno do artista, por que não utilizar produtos do próprio

corpo como meio de expressão? Como visto no capítulo II desta dissertação, a

tatuagem, forma artística anterior a Cristo, usa a pele como tela de pintura. Por que,

então, não utilizar as fezes como tinta? Afinal,

diz-se que Picasso, a alguém que lhe perguntasse: “Mestre, o que faria, se estivesse na prisão, sem nada?”, teria respondido “Pintaria com meu cocô”. Isso ainda é dar forma ao informe. O excremento utilizado como cor é um pigmento entre outros, um pouco mais inabitual sem dúvidas. Ele tem aliás suas características: colorido como o ocre, untuoso como óleo, boa capacidade de cobertura e relativamente estável. A urina foi também frequentemente utilizada na fabricação de certas cores e nas pátinas em bronze. A urina de certas vacas, alimentadas com determinada erva, fornecia antigamente um amarelo sedutor e estável (CLAIR, 2004, p.31).

Dando forma ao informe, o artista estetiza o abjeto, louco e preso na masmorra,

como o autor de 120 em Sodoma, ou hipoteticamente encarcerado, como o pintor de

Guernica. Potocki precisava, no entanto, apenas de privacidade para pintar, talvez

devido ao esforço para expulsar de dentro de si sua obra, como se percebe no excerto

abaixo:

Ele mesmo não sabia ao certo o que queria dizer, mas o esforço para fazer cada quadro quase o matava; quantas vezes seu corpo tremera tanto que a espátula lhe caíra das mãos; ou sua vista escurecera e ele desmaiara para acordar horas depois no chão do estúdio. Como suportar, pois, frente aos seus quadros, homens perfumados fazendo piruetas, mulheres de voz estridente gritando adjetivos, umas às outras? (FONSECA, 2004, p.75).

A íntima relação entre a corporalidade e a pintura de Potocki fica clara no

momento em que criar lhe arrebata as forças e faz inclusive com que desmaie. Nesse

sentido, a própria palavra espátula, definida no Dicionário Houaiss da Língua

107

Portuguesa (HOUAISS, 2001) como “instrumento de metal curvo e que se alarga na

extremidade, usado pelos estucadores para retirar o excesso de massa” serve de mais um

índice na narrativa, apontando para a possível pastosidade fecal envolvida nas criações

do protagonista.

No conto, o protagonista apresenta problemas com a recepção de suas obras, como

a reação “frente aos seus quadros, homens perfumados fazendo piruetas”. Se suas obras

são podres – e possivelmente mal-cheirosas – Potocki não julga apropriada a histeria

perfumada dos burgueses. Toda a narrativa é permeada por críticas mordazes ao

comportamento meramente consumista diante da arte. Em vez de fruírem-na e de

compreenderem-na na podridão (que) secreta, as pessoas apenas compravam os quadros

desenfreadamente, sem sequer entenderem do que se tratava. Despidas de valor de uso,

as obras de Potocki tornaram-se mercadorias, às quais os burgueses atribuíam apenas

valor de troca e ostentação.

Não ter um Potocki em casa, um pelo menos, passou a ser algo deselegante, mesmo vergonhoso. Pessoas sem posses compravam seus Potockis a prazo nas galerias, pagando juros extorsivos, onde os naturezas-podres espalhados pela parede criavam, diziam, um clima de humildade e paz superior ao da ascese (FONSECA, 2004, p.76).

Denunciada a mercantilização da arte, Rubem Fonseca acaba por fazer em

“Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo” uma espécie de conto-tese, que norteia a

compreensão de outros textos que o sucederiam. Como Potocki, pintor de natureza-

podre, Rubem Fonseca pinta muitos quadros da podridão humana em sua ficção, sendo

considerado um best-seller, apesar disso. No entanto, muitos dos que compram potockis

ou livros fonsequianos fazem-no só para atender a questões de status e moda, não por

verdadeira apreciação estética. É contra essa massificação da arte e reificação da cultura

que o autor de Os prisioneiros (FONSECA, 2004) se insurge, sugerindo, no conto ora

analisado, que somos todos prisioneiros dos ditames do mercado, instalado na forma de

um consumismo desenfreado depois da Segunda Guerra Mundial, especialmente no

âmbito cultural.

Nesse contexto, vale ressaltar, quanto à similitude entre Rubem Fonseca e Potocki

no que tange à mercantilização excessiva de sua arte, o excerto a seguir:

Enquanto isso os quadros de Potocki eram vendidos a peso de ouro. As pessoas faziam fila na porta do seu estúdio. Muitas vezes o quadro era levado, pelo comprador ansioso, sem a tinta ter secado ainda. Alguns de seus quadros foram vendidos por muitos milhões, como o “Getúlio Podre”, leiloado na sede do Partido Trabalhista (FONSECA, 2004, p.73).

108

Além da clara referência aos excessos dos compradores, motivados pela onda de

especulações acerca de Potocki, há outro ponto de convergência entre autor e

protagonista do conto: se o Getúlio podre foi uma pintura de grande sucesso no

universo ficcional, no mundo real Agosto, romance fonsequiano sobre a morte de

Getúlio Vargas, seria seu equivalente. Entremeado com fatos da história brasileira,

Agosto é fruto de árdua pesquisa de seu autor, mas a obra terminou, como os quadros de

Potocki, distante da apreciação estética cuidadosa, devido a adaptações malsucedidas

para a televisão e o cinema.

Todavia, a crítica é de mão dupla na escrita cáustica de Rubem Fonseca: se a

moda e a vaziez do mercado ditam o gosto dos compradores – não dos apreciadores –,

também iludem os próprios críticos de arte, que são alvo da mordacidade do autor.

Embora cada vez mais estudado nos dias atuais, o texto fonsequiano ainda esbarra em

algumas limitações da crítica, que em muito restringe seus vieses exegéticos. Nesse

sentido, é preciso delimitar duas tendências dominantes nas análises feitas de Rubem

Fonseca, as quais não dão conta do lirismo, da multiplicidade e da complexidade das

questões levantadas em sua ficção.

Um primeiro grupo de comentaristas encerra a escrita de Fonseca à denúncia da

violência nas grandes cidades, destacando-lhe a narrativa chocante e brutal, retrato de

uma sociedade em crise. Assim, constrange-se o texto literário à mera condição de

panfleto, de modo que o olhar sociológico acaba por negligenciar o valor estético de sua

obra.

Tal inobservância, no entanto, é potencializada ainda mais por uma segunda

corrente crítica, que questiona a própria literariedade da ficção do autor, associando-a às

fórmulas e clichês de best-sellers de baixa qualidade. Porém, de acordo com as

reflexões suscitadas por “Natureza-podre ou Franz Potocki e o mundo”, essa associação

é fruto de estudo míope da recepção da obra, a qual valoriza apenas questões

mercadológicas e cifras, em detrimento de análises literárias consistentes.

Contudo, o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz (1993) posiciona-se a favor de

autores como Rubem Fonseca, cuja alta vendagem não implica decréscimo qualitativo.

(...) o valor supremo é o número de compradores de um livro. Ganhar dinheiro é legítimo; também o é produzir livros para o “grande público”; mas uma literatura morre e uma sociedade se degrada se o propósito básico é a publicação de best-sellers e de obras de entretenimento e de consumo popular. (...) Às vezes a popularidade coincide com a excelência da obra (PAZ, 1993, p.106).

109

Potocki, apesar de ter suas obras consumidas desenfreadamente no atacado e no

varejo da indústria cultural, é um verdadeiro artista, capaz de questionar o cânone em

sua composição artística inovadora: a natureza-podre. Aliás, seu caráter inovador é

evidente no próprio nome que dá à sua forma de criação, visto que a podridão, oriunda

da putrefação, é algo que se sucede à morte; logo, a natureza-podre seria uma inovação

a partir do conceito tradicional de natureza-morta. Assim, como o protagonista do conto

ora analisado, Rubem Fonseca é autor de uma literatura do baixo, não de baixa

literatura, insurgindo-se no seio da ficção contra os ditames da indústria cultural.

O fecaloma de mamãe

Outro conto que confirma a qualidade de Rubem Fonseca em paralelo à sua alta

vendagem, “Luíza” é também objeto de análise neste trabalho, visto que tematiza as

relações entre o estético e o escatológico, valendo-se da metáfora fecal como meio de

subversão contra a indústria cultural.

“Luíza” foi publicado pela primeira vez no livro Ela e outras mulheres

(FONSECA, 2006), cujos contos se intitulam com antropônimos femininos em ordem

alfabética, como em uma agenda telefônica. A estrutura da obra sugere uma lista em que

a leitura dos nomes evocaria lembranças acerca de cada uma daquelas mulheres,

personagens centrais das narrativas, ora como vítimas ora como algozes. Mesmo na

diagramação da capa do livro a centralidade das personagens femininas é garantida,

com o pronome “ela” grafado em letras garrafais.

A breve narrativa conta a visita de Luíza ao narrador, seu ex-namorado, após dez

anos separados. Em diálogo com o protagonista de “Natureza-podre ou Franz Potocki e

o mundo”, Luíza fora, quando nova, artista acadêmica, pintora de naturezas-mortas e

escultora de figuras à moda renascentista. Nessa época, enquadrava-se no que se

esperava tradicionalmente de um artista em termos de criação estética e no que se

esperava de uma mulher quanto a ser casada e ter um amante, que, no caso do conto,

tratava-se do narrador.

Entretanto, Luíza resolve abandonar tudo e começar nova vida na Europa,

filiando-se a tendências pós-modernas de arte. Distante do academicismo de seu início

de carreira, a mulher muda seu estilo de viver e criar, mas manda uma carta ao ex-

namorado, agendando uma breve visita romântica. Anunciando seu regresso por meio

dessa mensagem, Luísa anexa uma foto sua, em que aparece com “o bigode postiço

110

fininho encerado com as pontas para cima, um terno escuro, camisa branca, gravata

preta” (FONSECA, 2006, p.102).

Travestida de Salvador Dalí, a personagem suscita em ambos os leitores – da carta

e do conto – a angústia diante da ambivalência de sua imagem. Meio homem meio

mulher, Luíza, como os andróginos mencionados no Banquete (PLATÃO, 1945), é

poderosa, podendo invadir a morada dos deuses, como na narrativa grega, ou deflorar

seu parceiro masculino, como sugere o curto bilhete que envia a ele: “Chego no dia 28.

Quero te comer. Beijos. L.” (FONSECA, 2006, p.102).

A ambiguidade que permeia a foto tem eco na tessitura do bilhete, pois o verbo

“comer”, geralmente associado à prática sexual daquele que penetra, também pode, com

apoio em uma metáfora mais visual, ser associado àquele que recebe o órgão penetrante,

devorando-o. Além disso, em lugar de uma assinatura completa, apenas uma letra: “L”

de Luíza, com timbre aberto, ou mesmo “ele”, pronome masculino, com timbre fechado.

Tomado pelas incertezas e pela lubricidade, o narrador passa a esperar

ansiosamente a chegada de sua antiga namorada, agora transformada em uma grande

ambivalência. Como visto anteriormente, a liminaridade avilta o sujeito, pois mexe em

seu sistema de classificações e em suas certezas mais profundas. Assim, o homem que

espera a parceira sexual deleita-se e angustia-se ao mesmo tempo por esperar algo

híbrido que transcende as fronteiras de gêneros.

Da mesma forma, o limite entre o excrementício e o artístico é borrado no conto

por ação da personagem Luíza, transgressora que dá ensejo aos acontecimentos que

norteiam a narrativa. Após criticar toda arte que não fosse mais do que “exibicionismo

banal para chocar pequenos burgueses” (FONSECA, 2006, p.103), a moça afirma, em

uma carta ao narrador, citando famoso artista alemão do século XX:

Como Beuys, acredito que todo mundo é um artista em condições de determinar o conteúdo e o significado da vida em sua particular esfera, seja pintura, seja música, seja o que for. Quando minha mãe ficou doente ela teve um fecaloma, uma acumulação endurecida de fezes no cólon que não permitia que ela defecasse, nem com supositórios ou purgantes. O fecaloma tinha que ser extraído à mão, e eu fiz isso, arranquei com os meus dedos aquele bloco de fezes endurecidas do ânus da minha mãe, enfiando os meus dedos e quase a mão inteira pelo seu esfíncter, e quando terminei senti que aquilo que eu fizera era uma obra de arte e guardei o fecaloma numa lata que mandei lacrar e carrego comigo para todo lugar, como uma fonte de inspiração (FONSECA, 2006, p.103).

Na oscilação entre abjeto e objeto (artístico), Luíza imita Piero Manzoni,

enlatando determinado volume de excremento e fazendo dele uma obra de arte. No

entanto, diferente do artista conceitual italiano, o bolo fecal não é do próprio artista, mas

111

de sua progenitora, de cujo ânus é arrancado em um parto simbólico. Sendo a mãe um

símbolo de fertilidade, a obra parida pela mãe de Luíza é guardada pela parteira-artista,

de modo a assegurar fecunda inspiração em sua trajetória de trabalho estético com a

forma.

Além disso, em um estranho jogo com o Complexo de Édipo, Rubem Fonseca

ironiza como determinadas construções filosóficas ou científicas tornam-se máximas

entre o povo graças à ação pavloviana da mídia, que condiciona o sujeito a repetir várias

vezes a mesma frase, irrefletidamente. Embora Luíza tenha uma relação extremamente

íntima com a mãe, participando do parto de seu bolo endurecido de fezes, repete como

as massas uma simplificação excessiva da teoria freudiana: “mães existem para ser

odiadas, pergunte a seu psicanalista” (FONSECA, 2006, p.103). Ao manipular as fezes

maternas, a artista age de acordo com o pensamento de Joseph Beuys, pois determina na

esfera mais particular possível – a intestinal – seu conteúdo e significado.

Nessa desconstrução do mito edípico, o poder da arte, geralmente atribuído a Eros

e a seus componentes pulsionais, é deslocado para o mito psicanalítico da cloaca,

segundo o qual as crianças, incapazes de reconhecer a função sexual da vulva, creem

terem sido expelidas pelo ânus materno. Em lugar de uma força erótica geradora de

vida, deslocada da experiência sexual para a arte no fenômeno da sublimação, Luíza

deriva sua força criadora de uma cloaca simbólica, mistura de ânus e vagina por onde as

fezes e a inspiração artística são dadas à luz.

Inspirada pelo fecaloma materno, a artista não parou de produzir, encontrando

sucesso nos meios comerciais da arte.

Não sei se foi o fecaloma da mãe que lhe serviu de talismã, mas o certo é que Luíza passou a produzir incessantemente e a ser respeitada e convidada para as mais importantes exposições de arte moderna em todo o mundo. Davam-lhe o espaço que ela pedia para mostrar a sua produção, pois Luíza usava inúmeros materiais: um lago cheio de vitórias-régias e sapos; um pavilhão repleto de galinhas mortas e congeladas; um ganso gordo, cercado de latas de patê de foie gras e por dois indivíduos mascarados de bandidos que enfiavam comida por um funil pela goela do animal; um vídeo de closes de ânus pintados com batons de várias cores; um conjunto de poltronas velhas de forro furado; canos enferrujados retorcidos e outros objetos de demolição, como vasos sanitários e banheiras (FONSECA, 2006, p.104).

A temática fecal torna-se uma constante na arte de Luíza, ironia para os

descaminhos da arte na contemporaneidade e suas explicações academicistas, como a

palavra Zeitgeist (tradução para o alemão da expressão latina genius seculi), utilizada

pela moça para definir o que move sua produção. No entanto, apesar do sucesso

comercial da artista, o narrador sugere a efemeridade de suas obras, visto que sequer

112

consegue reter na memória os feitos artísticos de sua ex-namorada: “Essas eram

algumas das suas obras, as que eu me lembrava. Confesso que não acompanhava muito

de perto o seu trabalho. Sei que ela recebeu vários prêmios” (FONSECA, 2006, p.104).

Após Luíza pregar uma peça no ex-namorado, simulando uma ablação do seu

pênis em que ele ingenuamente acredita, o narrador também nos prega uma peça, visto

que, depois que o rapaz descobre ter seu falo ainda íntegro no lugar correto, apenas

pintado de amarelo, recebe um ambíguo bilhete, que simplesmente diz: “Sabe que dia é

hoje? Primeiro de abril. Eu te amo. Luíza” (FONSECA, 2006, p.108).

Se o dia da mentira serve para justificar a brincadeira da moça, também vale como

recurso narrativo, chamando atenção para o fato de toda a narrativa ser produto de

ficção. De maneira análoga, o fecaloma materno, os vídeos com ânus pintados de batom

e as demais manifestações artísticas de ordem fecal seriam apenas ludíbrios narrativos a

ironizar a duvidosa qualidade de parte do que se chama arte nos dias de hoje.

Museu cloacal

Como a abordagem de questões corpóreas na arte contemporânea não é

prerrogativa exclusiva da literatura, propõe-se, nesta seção, um diálogo intersemiótico

entre o literário e as artes plásticas, em busca de se compreenderem as diferentes

maneiras como o excrementício pode se tornar objeto estético e participar de um levante

contra a massificação e o empobrecimento oriundos da indústria cultural. Para tanto,

desenvolve-se aqui um cotejo entre os escritos de Rubem Fonseca acerca das fezes,

tema da presente dissertação, e o tratamento da mesma questão em Cloaca, obra de

título significativo idealizada por Wim Delvoye. Não se pretendendo exaustiva, tal

comparação visa a instigar reflexões dessa natureza de forma comparada entre a

literatura e as artes plásticas, figurando como um possível percurso de pesquisa em

estudos posteriores.

Polêmico como Rubem Fonseca, o artista belga Wim Delvoye vem chocando a

visão – e principalmente o olfato – da população mundial com sua mais polêmica

instalação, já exposta em alguns dos principais museus do mundo: Cloaca, uma

engenhoca de defecar, ilustrada abaixo na Figura 1:

113

Figura 1: Cloaca Fonte: Delvoye, 2002b

A obra consiste em uma maquinaria desenvolvida, segundo o artista, junto a uma

equipe de gastroenterologistas, cientistas e engenheiros da Universidade da Antuérpia

(Bélgica), tendo custado duzentos mil dólares. Sua estrutura tem doze metros de

extensão, dois metros de altura e quase três metros de largura, ocupando, quando de sua

primeira exibição, em 2002, um enorme salão no Novo Museu de Arte Contemporânea

de Manhattan, sendo responsável por enormes filas de curiosos pelo produto da digestão

humana.

A engenhoca se assemelha a um enorme laboratório: em uma ponta, um funil, à

guisa de boca, conduz a um mecanismo mastigador, que funciona como um triturador

de lixo; em seguida, um sistema de tubos e bombas se liga a seis sucessivos recipientes

transparentes, que contêm enzimas, bactérias, ácidos e bases, substituindo o estômago, o

pâncreas e os intestinos. Tal sistema se conecta, por fim, a um modesto gargalo, que

desemboca sobre uma esteira rolante, na qual cai o produto final dos processos

químicos e físicos que ocorrem no interior da máquina. Constituída basicamente de aço

114

inoxidável, vidro e acrílico, a estrutura é em sua maior parte transparente, de modo que

os espectadores podem observar com clareza todas as etapas do processo digestivo

humano, reproduzido artificialmente pelo artista com apoio da ciência.

Em Nova Iorque, a máquina era alimentada duas vezes por dia, por entregadores

dos mais caros restaurantes do Soho nova-iorquino, mais exatamente às onze da manhã

e às quatro e meia da tarde, de modo a se assemelhar às duas principais refeições que

fazemos no dia, o almoço e o jantar. Infelizmente, a segunda refeição teve de ser

antecipada em algumas horas, para que pudesse se dar enquanto o museu ainda estivesse

aberto, diante dos curiosos espectadores. Assim, o funil-boca recebia o alimento sólido

intercalado com porções líquidas, de modo a não “engasgar” com a comida.

Segundo Riskin (2003), o momento de maior comoção, porém, não era o da

ingestão, visto ser essa uma prática que os seres humanos realizam em público há

milênios, sem qualquer reação de pudor ou nojo. Entretanto, às duas e meia da tarde, no

intervalo entre as refeições, a máquina, como um intestino invejavelmente pontual,

depois de uma digestão de quase vinte e duas horas, despejava, pelo gargalo final, o

produto de seu trabalho, metonímia da pretensa arte da indústria cultural: um bolo de

fezes, que Delvoye dizia não ser em nada diferente do que a maior parte da suposta arte

contemporânea vinha produzindo nos últimos anos.

Desse modo, o engenho defecante suscita, no âmbito da arte, uma questão que

permeia a multimodalidade típica da impura contemporaneidade:

Como se operou, quase sob nossos olhos, esse retorno do simbólico ao real? Por que se voltou da simbolização da imagem pintada ao real imediato da relíquia? Da obra ao objeto? Da representação de um indivíduo, que é da ordem da metáfora, a pintura, à presença de um fragmento de seu corpo, que é da ordem da metonímia, a relíquia? (CLAIR, 2004, p.90).

Em vez de uma simbolização do corpo, o próprio corpo, transformado em

máquina. Em vez de uma metáfora do homem, uma metonímia de seu intestino. Sob

esses aspectos, Cloaca insurge-se contra a reificação do indivíduo e da arte, voltando à

arte pré-histórica, quando a obra mantinha uma relação visceral com o artista, por vezes

sendo feita com partes do organismo humano, como no conto “Luísa”, de Rubem

Fonseca (2006), em que a protagonista torna artístico um fecaloma materno. No caso da

máquina de Delvoye, não se trata de fezes oriundas das vísceras humanas, mas

produzidas por ele em um enorme e caro intestino artificial. Transparentes, essas

entranhas de acrílico e vidro convidam o homem – literal e simbolicamente – a olhar

para dentro de si mesmo.

115

Se a indústria cultural lucra com a venda de milhões de exemplares de livros e

filmes compostos por fórmulas fáceis, os quais apostam em uma filosofia simplória

salvacionista, baseada no autoconhecimento, Delvoye mostra que tudo isso não passa,

literalmente, de excremento literário ou cinematográfico. Em vez de autoajuda e tons

pastéis, com receitas para conhecer o eu interior e ser feliz, Cloaca mostra quem

realmente somos por dentro e o que nosso corpo não para de produzir em suas

entranhas. Nesse caso, em lugar de um ambiente perfumado por incensos de lojas

esotéricas para possibilitar a busca do self, a instalação destila continuamente cheiro de

fezes, de modo que basta abrir os olhos e as narinas para conhecer-se a si mesmo – e os

meandros da defecação.

O desnudar-se excessivo, típico de uma hipermodernidade em que o íntimo não

mais existe por ser histericamente comercializado na mídia, serve, em Cloaca, para

denunciar o quanto cheiram mal – literalmente – os tempos de hoje. Em lugar de exibir

a vida pessoal de famosos ou uma releitura às avessas da torre do panóptico – como nos

reality shows televisionados, em que muitos vigiam poucos –, Delvoye usa a

transparência para mostrar-nos as entranhas humanas. Trazendo à baila o que deveria

estar segredado nos meandros do corpo, Delvoye e Rubem Fonseca repudiam assim a

ideia de que

determinadas coisas não serão nunca dadas a ver, partilham-se em segredo segundo um tipo de troca diferente do que passa em relação ao visível. No momento em que tudo tende a passar para o lado do visível, como se dá em nosso universo, o que acontece com as coisas que eram antes secretas? Elas se tornam ocultas, clandestinas, maléficas: o que era simplesmente secreto, isto é, algo a ser trocado em segredo, torna-se o mal e deve ser abolido, exterminado. Mas não pode ser destruído: de certo modo, o segredo é indestrutível. Ele vai ser, então, satanizado e vai passar através dos próprios instrumentos usados para eliminá-lo (BAUDRILLARD, 2001, p.35).

A pós-modernidade opera na histeria e na primazia da transparência, de modo que

ver e ser visto são as condições básicas da subjetividade contemporânea. Como

praticamente tudo é objeto de exposição e vira informação a ser consumida na Internet

ou na televisão, o que não se pode dar a ver, o secret(ad)o, ganha estatuto de demoníaco,

maculador e infeccioso, como os tabus em sociedades primitivas.

Isso se dá, por exemplo, com a absolutamente humana e inescapável excreção,

para a qual nossos corpos foram dotados de sistemas anatômicos complexos, dos quais

deveríamos nos orgulhar. Porém, marginalizada na apoteose do exibicionismo e do

voyeurismo de nossos tempos, a defecação é considerada pela maioria esmagadora uma

situação obscena – ou que merece ser mantida à margem da cena. Nesse contexto,

116

amplia-se a significação do vocábulo “cena”, pois, além de indicar uma situação

qualquer, essa palavra está intimamente ligada ao campo do espetáculo, do logro, da

ficção e da metáfora. Assim, o fecal é somente visto à luz do obsceno na

contemporaneidade, despido de qualquer dimensão simbólica, como a que pautava a

relação com o corpo na pré-história. Em lugar da “cena”, o expurgo excrementício só é

compreendido hoje como matéria a ser analisada em laboratórios médicos ou banida em

práticas higienistas.

Quando se está na obscenidade, não há mais cena, jogo, o distanciamento do olhar se extingue. Por exemplo, o pornográfico: é claro que aí temos o corpo por inteiro, realizado. Talvez a definição de obscenidade seria, pois, a de tornar real, absolutamente real, alguma coisa que até então era metafórica ou tinha uma dimensão metafórica. (...) Na obscenidade, os corpos, os órgãos sexuais, o ato sexual, não são mais “postos em cena”, e sim, grosseira e imediatamente, dados a ver, isto é, a devorar, são absorvidos e reabsorvidos no mesmo ato. É um acting out total de coisas que, em princípio, seriam objeto de uma dramaturgia, de uma cena, de um jogo entre parceiros. Aí, não há jogo algum. Não há dialética, nem distanciamento, apenas uma colusão total dos elementos (BAUDRILLARD, 2001, p.30).

Desprovido de qualquer caráter alegórico, ritualístico ou simbólico na pós-

modernidade, o abjeto foi feito obsceno, em suas múltiplas acepções. No entanto, a arte

contemporânea, seja na literatura, com Rubem Fonseca, ou nas artes plásticas, com

Delvoye, devolve os rejeitos metabólicos humanos à esfera cênica, revestindo-os

novamente com uma série de camadas de significações, tais quais textos do corpo a

serem lidos e interpretados.

Nesse contexto, é revelador o que escreve o ficcionista ex-policial na crônica “A

pornografia começou com a Vênus de Willendorf?”, publicada pela primeira vez no

livro O romance morreu (FONSECA, 2007b). Ao discorrer sobre a mais antiga

representação conhecida de um ser humano, a Vênus de Willendorf, estatueta de mulher

nua do paleolítico, o cronista denuncia o posicionamento de críticos pudicos, que têm

ojeriza à representação artística da excreção e da reprodução humana, bem como dos

órgãos utilizados pelo corpo para o desempenho dessas funções.

Seria esse escultor da Idade da Pedra que esculpiu a Vênus de Willendorf destacando e deformando as suas características sexuais “o primeiro artista pornográfico da História”, como querem alguns? “Mesmo comparada com as construções repelentes que os antropólogos fazem da mulher de Neanderthal, a Vênus de Willendorf é simplesmente repulsiva”, disse um historiador. Repulsiva? Por terem sido realçados os seus órgãos sexuais, certamente. O conceito de pornografia tem variado no tempo e no espaço, mas sempre subordinado ao corpo humano, sua nudez e suas secreções e excreções – esperma, fezes, urina –, refletindo o preconceito antibiológico presente, em maior ou menor grau, em quase toda a história da civilização (FONSECA, 2007a, p.12).

117

Não obstante as críticas puristas e uma tendência a tornar obsceno o que é ligado

ao baixo ventre, artistas do escatológico, como o escultor anônimo da Vênus de

Willendorf, Wim Delvoye, Rubem Fonseca, Patrícia Melo e tantos outros, devolvem ao

abjeto sua potência artística, semelhante à do sublime, em busca de representar o

irrepresentável, ou o informe, fora da faixa do simbólico, alheio a qualquer medida ou limite. Contudo, diferentemente da estética romântica e pós-romântica que trabalha a impossibilidade espiritual de conceber o grandioso na natureza ou na criação, a arte contemporânea, após um período de bloqueio cultural no pós-guerra, em que prevaleceu o que Hal Foster denomina de “falha no luto”, dedica-se à extrema materialização da dor e da fisicalidade, em toda a força de sua opacidade ao sentido (DIAS; GLENADEL, 2008, p.7).

Tais reflexões estão de acordo com o fio condutor da obra em que a crônica “A

pornografia começou com a Vênus de Willendorf?” se encontra: O romance morreu.

Sendo iniciado pelo texto “O romance morreu?”, que indaga o fim da literatura na pós-

modernidade, suplantada pelos mass media, o livro contém em seu título a resposta

afirmativa à pergunta central de sua primeira crônica, o que dialoga diretamente com o

segundo capítulo da presente dissertação. No entanto, a despeito do que uma primeira

leitura possa supor, Rubem Fonseca defende não o fim da literatura, mas a morte do

romance como o conhecemos, havendo uma mudança de meios, temas e fins na arte da

palavra. Como o título Após o fim da arte (DANTO, 2006), o livro de Rubem Fonseca

suscitou uma série de interpretações errôneas, que são facilmente desautorizadas pela

frase que encerra a primeira crônica do livro: “Os leitores vão acabar? Talvez. Mas os

escritores não. A síndrome de Camões vai continuar. O escritor vai resistir”

(FONSECA, 2007b, p.10). Desse modo, a arte fecal não revela o ocaso da elaboração

estética da forma, mas sim uma revolução no seio da arte para subverter a lógica

massificada e reificadora da subjetividade contemporânea: o expurgo excrementício

confirma-se, pois, não só na literatura, mas em todas as modalidades artísticas, um

levante contra a indústria cultural.

Ademais, a noção de transparência, presente na cruenta dicção dos narradores

fonsequianos e nos dutos e cilindros de Cloaca, vai mais além, pois no nível conceptual

a instalação de Wim Delvoye alude de forma clara, sem qualquer opacidade que se

interponha à interpretação,

ao próprio sistema atual da arte. Ou seja, um sistema em que importantes investimentos financeiros têm mobilizado profissionais para sua manutenção e que, no final, em teoria, não serve para nada, segundo o próprio Delvoye (...). Em Cloaca essa futilidade adquire um valor, torna-se passível de mais-

118

valia, seja simbólica ou econômica, assim como a obra de arte inserida na dinâmica de mercado (MORAES, 2006, s.p.).

O próprio artista belga afirma, em entrevista ao jornal Le Monde: “No caso de

Cloaca, todos colaboram para produzir nada além de excrementos. Os excrementos são

o que há de mais fútil.” (BREERETTE, 2005). Nesse contexto, o vocábulo fútil tem sua

etimologia revitalizada, a qual se perdeu no uso corrente do vocábulo. Em latim, futilis

designava aquilo “que deixa escapar o que contém”, segundo o Dicionário Houaiss da

Língua Portuguesa (HOUAISS, 2001), sendo derivado da raiz fund-, que dá origem à

palavra “fundo” e suas cognatas, como “fundamento” e “profundidade”. Assim, a

futilidade do excreta, que denuncia a inutilidade de grandes investimentos em

construções pseudoartísticas de gosto duvidoso, também aponta para os fundamentos e

a profundidade da arte, bem como para o fundo dos intestinos.

No que tange a tal crítica ao sistema atual da arte, em que vultosas somas são

direcionadas a projetos de qualidade questionável, segundo uma lógica do desperdício e

da futilidade, Rubem Fonseca, como Delvoye, vale-se da imagem do abjeto como égide

de uma crítica mordaz. Ainda no livro O romance morreu, o autor traz a público a

crônica “Macacos escritores”, que ironiza projetos artísticos e científicos de qualidade

duvidosa, respaldados pelo discurso do capital, nos quais o dinheiro, o tempo e o

esforço, tal qual o bolo fecal, descem descarga abaixo.

Mas não foi por aceitar, como Darwin propunha, o nosso parentesco com os macacos que Huxley criou a sua teoria, e sim porque acreditava, como matemático, no papel que o acaso desempenha na evolução e no processo criativo. Qual era afinal a teoria de Huxley? Muito simples: se um número infinito de macacos for colocado à frente de um número infinito de máquinas de escrever, os macacos acabarão produzindo as obras completas de Shakespeare. Desde então, vários matemáticos, depois de colocarem as devidas equações no computador, concluíram que a teoria da criação literária randômica dos macacos estava correta (FONSECA, 2007c, p.89).

No absurdo das engrenagens da indústria cultural, mesmo um artista como Aldous

Huxley, autor de clássicos da ficção científica, como Admirável mundo novo, Também o

cisne morre, Duas ou três graças e O macaco e a essência, advoga, segundo a crônica

de Rubem Fonseca, a tese de uma criação literária isenta do engenho humano ou dos

sussurros das musas, sendo composta randomicamente por macacos. Se a digitação

aleatória dos animais poderia compor até mesmo os primorosos poemas e peças de

Shakespeare, a tecnologia rapidamente prescindiria do trabalho dos primatas – macacos

ou homens –, de modo que a técnica alienasse arte e artista, relação indissociável por

119

excelência. Assim, na esteira da massificação cultural, equações seriam suficientes para

explicar, produzir e reproduzir o estatuto artístico, mero produto de uma aleatoriedade a

ser mensurada por cálculos probabilísticos.

No entanto, Rubem Fonseca, como o autor de Cloaca, desautoriza o frequente

discurso científico no meio artístico e intelectual da pós-modernidade, satirizando o

resultado real de experiências absurdas como a proposta por Huxley. Segundo o autor

de “Macacos escritores”,

a experiência foi feita com os macacos trancados durante um mês numa sala com computadores. A ideia era ter uma amostra do texto que eles iriam criar. Depois de um mês digitando as teclas dos computadores, os macacos não conseguiram produzir sequer uma palavra. Segundo o chefe da pesquisa, Mike Phillips, mostraram enorme preferência pela letra S, que foi a mais pressionada. Os macacos acabaram produzindo cinco páginas repletas de letras S e alguns, poucos, J, L e M (FONSECA, 2007c, p.91).

Tal trecho já bastaria como denúncia da infecundidade dos experimentos

científicos e do esclarecimento no campo da arte, dada a incapacidade das equações

matemáticas, auxiliadas por macacos e computadores, no sentido de produzir qualquer

coisa inteligível, quiçá um texto shakespeareano. Porém, para chocar o leitor e ratificar

de vez seu ponto de vista, Rubem Fonseca lança mão da imagem do abjeto, de modo a

ridicularizar a megalomania estéril da indústria cultural e seus planos de produzir em

massa, a baixos custos e em alcance global, fazendo do consumidor um animal tão

irracional quanto os macacos datilógrafos. De forma bastante irônica, a crônica

fonsequiana se encerra com as seguintes duas frases, que resumem bem seu espírito

crítico: “‘Outra coisa pela qual os macacos se interessaram muito foi por defecar e

urinar em cima do teclado’. Resumindo: por enquanto os macacos estão defecando para

a literatura” (FONSECA, 2007c, p.92).

A despeito dos investimentos milionários feitos no sentido de disponibilizar a

inverossímil quantidade de infinitos macacos diante de infinitos editores de texto, o

projeto advogado por Huxley malogra, dando origem a uma ilegível sequência de

poucas consoantes. Da mesma forma que isso prova a tolice de desenvolver equações

para tentar provar a absurda hipótese de o texto literário ser fruto de uma aleatória

combinação de caracteres, a imagem do abjeto ridiculariza também todos os envolvidos

na atual dinâmica da produção em massa de algo sem qualidade que se arvora em

literatura. Autores de best sellers açucarados, editores que bombardeiam na mídia

títulos repletos de fórmulas fáceis e leitores que optam por consumir obras que não lhe

demandem mais do que a fatura do cartão em muito se assemelham aos macacos que,

120

“por enquanto (...) estão defecando para a literatura”. Nesse contexto, vale atentar para

as múltiplas significações suscitadas pela imagem do excreta, que pode se assemelhar

ao produto pretensamente literário da indústria cultural, ou ao não-discernimento entre

literário e best seller fácil, turvamento frequente nos dias de hoje.

Assim, tal qual os escritos fonsequianos, a instalação de Delvoye, denunciando o

esvaziamento do homem observado na sociedade de consumo, dialoga claramente com

a mais célebre exposição de Piero Manzoni, que decidiu elaborar esteticamente seu bolo

fecal ao enlatá-lo e expô-lo em galerias e museus. Por fim, a decisão de Manzoni de

vender essas peças literalmente a peso de ouro – ditando os preços pela cotação do dia –

e o valor absurdo que se dá a tudo o que se diz arte são retomados em Cloaca. Levando

à potência máxima a desauratização (BENJAMIN, 1985) da obra artística, parte dos

bolos fecais expelidos pela máquina de Delvoye foram vendidos pela Internet no site

oficial, custando cada “bloco” mil e quinhentos dólares. Tal frenesi consumista, que

ignora o verdadeiro caráter do que se compra, atentando apenas para o status que a

mercadoria dá a seu possuidor, remete ao texto “Natureza-podre ou Franz Potocki e o

mundo”, analisado anteriormente neste capítulo. No conto, vultosas somas são pagas

pelas obras de Potocki, graças à especulação dos críticos, que em nada deixa a desejar

diante da especulação imobiliária, fundiária ou financeira. Incapazes de avaliar o que

adquirem, os indivíduos apenas queriam pendurar os quadros de Potocki em sua parede,

a despeito de eles em muito se assemelharem às fezes expelidas por Cloaca.

No que tange a tal corporificação do fetichismo da mercadoria (MARX, 1974),

teoria segundo a qual as mercadorias, mais do que os consumidores e os produtores,

teriam vida e vontade própria, regendo as relações do mercado, Delvoye foi ainda mais

ousado do que o personagem Potocki, o qual se limitou a vender a varejo suas obras.

Segundo Harri (2005), o artista belga, por intermédio do advogado Tim Laureys,

negociou junto à Comissão de Bancos, Finanças e Seguros Belga (CBFA), inserindo as

fezes expelidas por Cloaca na ciranda financeira e no mundo das ações e das bolsas de

valores.

Para isso, criou cartelas contendo três cupons cada, a serem vendidas por três

euros/cupom aos eventuais interessados que frequentassem as exposições de Cloaca. Ao

final de cada ano, os detentores de cupons poderiam trocar um desses “títulos de

capitalização” por seu dinheiro de volta, com juros de 1.3% ao ano e correção

monetária. No entanto, aqueles que optassem por passar três anos consecutivos sem

resgatar seu dinheiro poderiam trocar a cartela inteira por blocos de fezes expelidos pela

121

engenhoca defecante, embalados hermeticamente. Ironizando os absurdos do atual

mercado da arte,

Delvoye diz que vê “a arte como uma commodity que pode produzir lucros monetários ou simbólicos”. Depois de vender “trinta ou quarenta caixas de cocô logo após o lançamento de Cloaca em 2000”, diz ele, começou a se questionar se seria sempre “um pequeno camarão, se comparado à Microsoft’” (HARRIS, 2005, p.7).

Assim, na era extrema de mercado, tudo pode ser comercializado, inclusive fezes,

contanto que haja uma propaganda eficiente, como provam a engenhoca defecadora e a

especulação financeira em torno dos bolos fecais por ela expelidos. Ao capital, pouco

importa sua origem escatológica: segundo documentos encontrados nas escavações de

Pompeia e compilados por Zangemeister e Schoene (1871), o imperador romano

Vespasiano, ao implantar um imposto para a utilização dos banheiros públicos, afirmou

que “pecunia non olet” (“o dinheiro não fede”, em português”).

A crítica ao poder da propaganda e à nulidade da maior parte das coisas a que se

dá valor na contemporaneidade está presente no próprio logotipo de Cloaca, que reúne a

elipse azulada da Ford, renomada empresa automobilística; a fonte utilizada nos rótulos

de Coca-cola, com seu sinuoso “C”; e a imagem de Mr. Clean, logotipo de uma das

mais famosas marcas de produtos de limpeza no mundo. Tal justaposição de ícones da

indústria cultural e do capitalismo pode ser vista abaixo na Figura 2, que resume o

significado da máquina de Delvoye.

Figura 2: Logotipo de Cloaca Fonte: Delvoye, 2008

122

Esses três elementos pictóricos, retirados de produtos de vendagem massiva em

todo o mundo, formam uma metonímia da sociedade de consumo, sendo

complementados por um intestino estilizado, que resume com clareza o funcionamento

da máquina e o real valor que têm as mercadorias do paroxismo consumista.

Ainda no que tange ao logotipo de Cloaca, é interessante perceber que a

combinação desses elementos aparentemente desconexos, junto com o intestino

estilizado, dá origem à imagem de um gênio, criatura mágica frequente em narrativas

fantásticas. Não saído da lâmpada, mas das vísceras, o gênio de Cloaca também tem

formas gasosas, como os que se veem em desenhos animados. No entanto, o que nas

animações infantis é representado como vaporoso, a parte inferior do corpo da criatura

mágica, é no logotipo um intestino enrolado. Dessa forma, além de remeter ao

significado da máquina, à palavra “cloaca” e à crise da arte na indústria cultural, o gênio

das fezes sugere ainda os gases que são expelidos pelas vísceras, em sua habitual

atividade excretora.

Como praticamente todos os gênios da ficção, o de Cloaca também realiza

pedidos; todavia, não é preciso para tanto destampar uma garrafa ou esfregar uma

lâmpada, bastando adquirir por uma módica quantia um bloco de fezes expelido pela

máquina. Como testemunhas felizes das realizações de seus sonhos, Delvoye

disponibiliza em seu site depoimentos de contentes compradores de fezes, que tiveram

suas vidas renovadas após a aquisição do produto intestinal. Entre os oito testemunhos

divulgados, destacam-se alguns, dado o irônico absurdo de suas jubilosas afirmações:

“Depois de comprar Fezes Cloaca, consegui um emprego e um relacionamento saudável

e satisfatório” (S.K, apud DELVOYE, 2002a), “A Merda Cloaca é um must para

qualquer um com sérias aspirações no desafiador negócio da arte. Ela lhe possibilitará

cultivar um novo nível de energia pessoal e crescimento espiritual” (WEISS apud

DELVOYE, 2002a) e “Item único e colecionável que aumenta sua sexualidade e sua

autoestima” (LEIBER apud DELVOYE, 2002a).

Fictícias, as pessoas que aparecem fotografadas ao lado de seus depoimentos não

passam de personagens, como muito provavelmente ocorre na maioria dos programas de

televendas em que, por exemplo, indivíduos que jamais foram gordos atestam

sorridentes os milagrosos efeitos de fórmulas emagrecedoras instantâneas. Tal

semelhança com comerciais de televisão e programas de televendas convida o

espectador ao riso, haja vista a presença de fotos e nomes de cidades onde

pretensamente esses testemunhos foram colhidos, além do título dado à seção do site em

123

que se encontram esses dados: As seen on TV (“como visto na TV”, em português). Se

ver os sorrisos congelados de personagens de comerciais de eletrodomésticos,

suplementos alimentares e ferramentas multifuncionais já é jocoso, o humor é

potencializado ao se verem fotos de sujeitos sorridentes, que elogiam o bolo fecal

recém-comprado.

Nesse sentido, ao aproximar o riso e as fezes, Delvoye novamente dialoga com a

ficção fonsequiana, cujas escatológicas imagens, se não são chocantes, são pelo menos

hilárias, por seu caráter insólito, ou mesmo “insólido”, no caso das pastosas fezes. A

respeito dessa similitude entre o riso e o excrementício, que nascem, respectivamente,

na entrada e na saída do tubo digestivo, pode-se citar a passagem abaixo, extraída do

conto “Mandrake”.

Fui procurar a caixa de gargalhadas. Remexi o armário de roupas, a estante, muitas gavetas até encontrá-la na cozinha. Dona Balbina adora ouvir as gargalhadas. Levei a caixa para o quarto, deitei e liguei. Uma gargalhada convulsiva e inquietante, engasgada no goto, roxa, de alguém a quem tivessem enfiado um funil pelo ânus e as gargalhadas atravessassem o corpo e saíssem mortíferas pela boca, congestionando os pulmões e o cérebro (FONSECA, 2008, p.82).

Tal trecho não faz parte do enredo central da narrativa, configurando mera

digressão entremeada à progressão dos eventos relatados. Se o conto em questão se

enquadra no viés policial da ficcção de Rubem Fonseca, o trecho dele retirado nada tem

de detetivesco, mas sim de grotesco. Apesar de versar sobre estridentes gargalhadas,

estas não transmitem ao leitor qualquer sensação de bem-estar, mas sim de horror, dado

seu caráter sinistro. Nascidas no ânus, parecem reverberar ao longo das cavidades

corporais, ganhando uma intensidade de borborigma demoníaco e assustador.

Porém, além de chocante, tal trecho contém profunda reflexão filosófica, visto que

as hórridas gargalhadas não são humanas, mas sim artificiais. Semelhantes às fezes de

Cloaca, produzidas por uma máquina, as gargalhadas com que o personagem Mandrake

se depara estão intimamente ligadas ao mercado e ao capital, visto que são produzidas

em caixolas compráveis em qualquer loja barata, como os bolos fecais da máquina belga

adquiríveis na Internet ou por meio de cupons. Sendo o riso e as fezes falas do corpo de

um indivíduo, relacionar-se com elas de forma mediada pelo dinheiro é desnaturalizar e

inscrever no sistema financeiro o que há de mais íntimo e humano.

Ainda no que tange à intertextualidade, entendida pelo Manifesto Antropofágico

(ANDRADE, 1990) do Modernismo brasileiro como forma de digestão, Cloaca digere

124

– e defeca – significantes de outra obra de arte, uma estrutura maquínica projetada e

desenvolvida pelo engenheiro francês Jacques Vaucanson em 1738.

Vaucanson na infância aspirava a ser um relojoeiro, mas desviou seu interesse

após conhecer o cirurgião Le Cat, que lhe ensinou as artes da anatomia. Munido desse

conhecimento, o jovem francês que já construíra pequenas máquinas passou a se dedicar

à feitura de androides que imitassem funções biológicas, tais como a circulação, a

respiração e a digestão.

No que diz respeito a esta última função corpórea, destaca-se sua mais famosa

invenção: o Canard (“pato”, em português), composto por mais de quatrocentas peças

que se moviam em sincronia, incluindo asas, patas, pescoço e bico. A engenhoca, apesar

de estruturalmente complexa, envolvendo uma série de atrativos visuais, como o bater

das asas muito semelhante ao de aves reais, tinha seu maior trunfo não no belo, mas no

hórrido. O pato mecânico, se alimentado, expelia, após alguns minutos, um bolo fecal

(DOYON; LIAIGRE, 1966).

Tal máquina setecentista foi um grande sucesso quando de sua criação, de modo

que pessoas de toda a Europa acorriam ao salão onde se encontrava o autômato para

verem-no defecar, após ser abastecido com grãos e água. Apesar de sua alimentação não

ter sido tão refinada quanto a da máquina de Delvoye, que consome, diariamente, duas

refeições dos mais caros restaurantes das cidades em que é exibida, o resultado da

excreção era provavelmente bem parecido, em termos de cor, textura ou cheiro.

No entanto, do ponto de vista da recepção, reações e interpretações

diametralmente opostas se impõem às obras escatológicas separadas por quase três

séculos. Marcado pelo otimismo racionalista do século XVIII, o Canard

era apresentado e percebido, sem qualquer ironia, como um trabalho de filosofia experimental visando a compreender mecânica e materialmente o ser vivo. O Canard era também um objeto magnífico, uma obra de arte de virtuosidade mecânica, com penas de cobre martelado, um longo pescoço forte e gracioso e um porte majestático. Ele não inspirava a desilusão, mas a admiração; Voltaire comparou inclusive seu criador a Prometeu (RISKIN, 2003, p.52).

A filosofia iluminista via em engenhos dessa natureza o progresso, de modo que a

técnica se aproximasse cada vez mais de controlar e substituir o natural, sobrepondo-se-

lhe. Comparado a Prometeu, Vaucanson é também portador do fogo divino com o qual

o titã animou as criaturas por ele fabricadas sem o consentimento dos deuses.

Cloaca, por sua vez, é da mesma forma uma promessa de criação profana, mas

denuncia a vaziez da sociedade contemporânea, capaz de comprar fezes pela Internet se

125

o apelo publicitário for eficaz. Produzidos em série, os bolos fecais da máquina de

Delvoye se assemelham a itens de consumo como aqueles a que remete o logotipo da

engenhoca. Se o Canard celebrava o otimismo iluminista, Cloaca representa a desilusão

pós-moderna diante dos impasses da indústria cultural e do empobrecimento das

capacidades criativas, embotadas na ciranda financeira.

Infelizmente, o Canard logo se mostrou uma farsa: a comida ingerida pelo pato-

autômato não era por ele processada e transformada, armazenando-se simplesmente em

seu interior. Os excrementos por ele expelidos já estavam, de antemão, devidamente

alocados em um compartimento especial secreto, sendo simplesmente aberto o duto de

escape no momento certo (DOYON; LIAIGRE, 1966). Fraudulenta excreção, o invento

de Vaucanson revela muito mais: o fracasso das promessas da técnica quanto a produzir

um mundo mais justo. Já a máquina belga do século XXI, produtora de matéria fecal

genuína, revela o que há de mais assustador na contemporaneidade: a ciência e a

tecnologia podem muito, mas o resultado final, lançado à vertigem mercadológica

disfarçada de necessidade premente ou obra de arte, nem sempre cheira bem.

126

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Si l’ordure qui dore dans les champs fait or qui dure dans les allées citadines,

l’odeur de l’ordure dure là ou l’or dort”. Dominique Laport. Histoire de la merde, 1978.

“Car comment concilier la sublimité

avec l’abject du corps coutumier? Eh bien, il n’y a pas de sublimité,

mais de l’abject et du coutumier, et c’est tout”. Antonin Artaud. Suppôts et suppliciations, 1976.

Para situar-se no mundo, o homem, máquina compulsiva de fazer sentido, tenta

apreender o real de forma racional e ordenadora, estabelecendo limites e barreiras que

segregam arbitrariamente instâncias. Nessa empreitada que opera em sistema binário,

incluindo/excluindo cada objeto cognoscível, o sujeito depara-se com algo que não pode

ser encaixado em categorias predeterminadas, ou mesmo sequer compreendido: o

abjeto. A própria etimologia da palavra “imundo”, apontando para uma negação do que

seja desse mundo, revela que o impuro ambivalente não cabe na categorização operada

pelo esclarecimento, visto que turva e borra os limites norteadores da metafísica.

Rubem Fonseca, porém, passando seu texto não a limpo, mas a sujo, promove

uma literatura da abjeção, tira os excretas dos escondidos intestinos e lavabos e lança-os

no papel. Tal forma de arte da palavra, dessacralizando todos os preceitos canônicos do

gosto e instaurando uma estética do desgosto, arranca-nos à certeza das categorias fixas

e lança-nos ao turbilhão da dúvida, convidando-nos à reflexão.

Somente a náusea nos faria lúcidos. Nós faríamos da arte atual não a aprendizagem do gosto, mas a desaprendizagem do desgosto lentamente inculcado em nós quando crianças cuidadas pelos adultos. Retornaríamos à posição primitiva do primata, abaixado em direção ao solo, o órgão olfativo novamente vizinho da genitália (CLAIR, 2004, p.45).

De volta à postura de quatro, como os primitivos que tinham o nariz na altura da

genitália e do ânus, o leitor é posto, por meio da literatura fecal, em uma crise das

certezas racionalistas. Devolvido pelo abjeto à posição de gatinhas, o homem

reaproxima vocábulos como ofício e orifício, que perderam sua semelhança etimológica

no desenvolver da língua. Se aquele vem de officium, aglutinação de opus (“trabalho”,

em latim) e facio (“fazer”, em latim), este vem de orificium, aglutinação de os (“boca”,

em latim) e facio. Sendo semelhantes os fazeres da digestão e do trabalho, escrever

torna-se bastante parecido com defecar, em uma produção inescapável de discursos. Por

127

meio dessa fecal e inusitada metáfora, Rubem Fonseca zomba de sua arte, ao mesmo

tempo em que a dignifica como sendo tão humana quanto as funções fisiológicas.

Tal modalidade de escrita, ao retomar uma prática literária anterior ao papel, que

adota o corpo como suporte dos signos textuais, revela a impertinência de alardear o fim

da arte da palavra. Em vez de suplantada e destruída pela técnica e pela apoteose do

audiovisual, a literatura contemporânea ora se vale da tecnologia para fecundar o

terreno literário, ora, no caso da escrita fecal, refugia-se em um tempo em que a

captação do real se limitava a rabiscos no corpo e na parede das cavernas.

Discurso proferido não pela boca, mas pelo ânus, as fezes são uma modalidade

semiótica que faz o corpo falar. No entanto, quando tornadas matéria literária e suporte

textual, como nas obras de Rubem Fonseca e Patrícia Melo, cotejadas nesta dissertação,

as excreções intestinais fazem também a própria língua falar, devolvendo volume e

cheiro – como o excremento – à empobrecida linguagem cotidiana, à qual perdemos a

capacidade de reagir com estranhamento. Sendo a literatura uma forma (e fôrma) em

que as palavras se revestem novamente de poder encantatório e mesmo fetiche, perdidos

no desgaste do dia-a-dia, misturá-las às fezes garante-lhes um desaprender dos sentidos,

que são sempre repensados no contato com o belo e o hórrido. Afinal, não há como

passar incólume diante de uma obra de arte ou de um bolo recendente de esterco: assim

como servem de adubo à agricultura, os expurgos intestinais fecundam também o

campo das discussões estéticas.

Tal saber estético-escatológico é dominado pelos narradores-personagens de

“Copromancia” (FONSECA, 2001) e Jonas, o copromanta (MELO, 2008), capazes de

ler as fezes tal qual exegetas da latrina. Sendo essa uma prática de leitura intimamente

ligada à presciência do futuro nas obras em que se encerra, talvez a copromancia revele

um pouco do que o futuro nos reserva no que tange à qualidade do literário em tempos

de indústria cultural. Assim como as fezes, a maior parte das produções ditas artísticas

na contemporaneidade, seguindo não preceitos estéticos, mas mercadológicos, não

cheira bem.

Reeditando práticas milenares já revisitadas por artistas malditos, como Marquês

de Sade e Duchamp, a arte das fezes subleva-se esteticamente contra tal indústria

cultural, que pasteuriza obras e indivíduos, em uma semelhança nociva que por vezes

merece a descarga sanitária. Nesse sentido, confirma-se pertinente a leitura – entre

muitas outras possíveis – de que Rubem Fonseca e os demais artistas mencionados ao

longo desta dissertação se valem de fezes metafóricas para questionar e criticar os

128

excrementos culturais, rejeitos de um voraz apetite consumista e distribuídos às massas

hodiernamente.

No que tange ao futuro, tema predominante dos textos lidos na latrina pelos

copromantas fictícios, pode-se desenvolver esta pesquisa no sentido de cotejar a

elaboração estética que a literatura e as artes plásticas desenvolvem em torno do bolo

fecal, como já se ensaiou, embora de forma ainda muito embrionária, no último capítulo

desta dissertação. Em trabalhos futuros, pode-se ampliar o escopo de nomes dedicados à

arte fecal, incluindo, por exemplo, David Nebreda, Herman Nitsch, Otto Muhl, Gunter

Brus e outros artistas do grotesco intestinal. Assim, em vez de orifício final de um duto

de mão única, talvez Cloaca se revele muito mais um ponto de partida, ao lado das

literárias fezes fonsequianas, permitindo um percurso comparativo e intertextual entre

ler, ver, tocar e cheirar artísticos bolos fecais.

Outra possibilidade de trabalhos futuros estaria na interface entre Literatura e

Psicanálise, compreendendo como práticas sexuais ditas perversas, as quais por vezes

adotam as fezes como um item imprescindível do coito, não deixam de ser uma

fetichização dos significantes desse campo semântico no próprio texto literário. Desse

modo, o prazer derivado das fezes durante certas modalidades sexuais talvez se

confunda com o perverso prazer textual apregoado por Barthes (2006). Se tocar o abjeto

com a língua pode tornar o coito mais fascinante para alguns, também tocar as esferas

imundas da linguagem com a língua literária pode ser fonte de prazer intenso para os

leitores, voyeurs em estado pleno de excitação que assistem ao strip tease da linguagem

(BARTHES, 2006).

Nesse sentido, vale lembrar que a presente reflexão sobre o abjeto, a qual exige

um debruçar-se conceitual sobre o dejetório, é um olhar oblíquo sobre o que é inerente

ao humano, mas queremos esconder o tempo inteiro: o feio, o fétido, o informe. Tal

contato com o abjeto exorciza a própria abjeção, permitindo uma visão mais tolerante de

si mesmo e do outro, no que há de, literalmente, mais visceral: as fezes, e todos os

símbolos que elas constelam. Aceitar-se como homo cacans (FONSECA, 1994b) é um

longo e interminável processo de descoberta de si e da alteridade não só como aquele

que sapiens, mas como aquele que, além de saber, produz o hórrido.

Ademais, se é por meio de seus excrementos que os animais demarcam seu

território, defecando e urinando naquilo que julgam seu, olhar as fezes e os demais

discursos secretados por nosso corpo permite-nos entender como nos inscrevemos (e

escrevemos) no mundo. Ao chamarmos de “privada” ou “patente” a latrina onde

129

defecamos, reeditamos, a cada ida ao toalete, a posse sobre algo, desejo de pertença

inerente ao homem. Em tal medida, este trabalho revela-se uma reflexão sobre a própria

condição humana e sua relação com o entorno, metaforizada pelo inescapável processo

de circunscrição do real operado pelas fezes.

Assim, espera-se que este trabalho tenha funcionado como alva latrina, contra a

qual as fezes tenham sido lançadas e analisadas, como na fictícia arte da copromancia.

Em vez de mensagens divinas, no entanto, procuraram-se aqui significados e

significantes da própria arte do abjeto, em uma reflexão metaliterária que esclareça um

pouco mais a estetização da linguagem, tenha sido ela proferida pela boca ou pelo ânus,

extremidades opostas de um mesmo duto corpóreo.

130

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