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3º Festival de História • Diálogos Oceânicos – Braga, Portugal – 20 a 23 de maio, 2015
Manuel de Pontes Câmara (1815-1882): exemplo de um
emigrante português que não quis voltar “brasileiro”
Os portugueses e o Brasil
O século XIX português, especialmente a sua segunda metade – como ainda as três ou
quatro primeiras décadas da vigésima centúria – foi indelevelmente marcado pela
presença de uma espécie de figura romanesca que a voz do povo batizou como
“brasileiros”, umas vezes por extrema admiração, outras por sentimentos adversos a esta1.
Referia-se essa vox populi, secundada na admiração ou na afronta por jornalistas,
políticos ou escritores, a um conjunto de homens que, tendo emigrado para a outra
margem do Atlântico, para a antiga América portuguesa, à procura do seu El Dorado, ali
enriqueceu. Senhores de grandes fortunas, voltaram à pátria-mãe em busca de um estatuto
que não levavam consigo à partida e de um reconhecimento que não raramente
alcançaram. A região noroeste de Portugal, numa área que costuma ser balizada como o
“entre Vouga e Minho”, foi o território de onde essas partidas mais aconteceram2.
Estes homens, um pequeno grupo que no início do último quartel de oitocentos era
composto por cerca de 5% do total das centenas de milhar que haviam partido3,
1 A presença maciça de portugueses em Terras de Vera Cruz iniciou-se poucas décadas após a chegada ao território de
Pedro Álvares Cabral, em 1500. Desde então, os que ali enriqueciam e ricos voltavam ao continente, transformaram-
se em grandes benfeitores das comunidades de onde eram oriundos, passando, após o seu regresso, a ser apelidados de
“brasileiros”. Para um melhor conhecimentos dos atos de caridade deste grupo de indivíduos durante o período moderno
pode ler-se Araújo, Maria Marta Lobo de, “Os brasileiros nas Misericórdias do Minho (séculos XVII-XVIII)”, in
Araújo, Maria Marta Lobo de (org.), As Misericórdias das duas margens do Atlântico: Portugal-Brasil (séculos XV-
XX), Cuiabá, Carlino & Canioto, 2009, pp. 229-260. 2 Veja-se Alves, Jorge Fernandes, Emigração e Retorno do Porto Oitocentista, Porto, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 1993; Cruz, Maria Antonieta, “Agruras dos Emigrantes Portugueses no Brasil. Contribuição
para o estudo da emigração portuguesa na segunda metade do século XIX”, Revista de História: Instituto Nacional de
Investigação Científica (vol. 7), Porto, Universidade do Porto, 1986-1987, p. 16. 3 Segundo um estudo de Fernando de Sousa e Isilda Monteiro, a emigração portuguesa para o Brasil atingiu, entre 1876
e 1974, o número de 1.588.346 de cidadãos, que partiram quer do continente quer das ilhas. Estes investigadores
recordam que a população portuguesa era, nos anos sessenta do século XIX de apenas 4 milhões de indivíduos, e de 6
milhões em 1921. Cf. Sousa, Fernando de, Monteiro, Isilda, “A Emigração Portuguesa e Italiana para o Brasil – Uma
2
impuseram-se socialmente quando voltaram às suas pequenas aldeias e vilas de origem,
ou às cidades maiores onde, após o regresso, decidiram fixar-se, comprando ou mandado
erigir magníficos palacetes, adotando modos de vida social que antes só tinham paralelo
nos palácios da fidalguia ou nas casas das burguesias citadinas e distribuindo
“liberalidades” às mãos-cheias àqueles que delas precisavam e às terras de onde haviam
abalado, quase sempre quando crianças de doze para catorze anos. Às suas terras de
origem ofereceram estradas, igrejas e capelas, casas de espetáculos, escolas, asilos ou
hospitais, conquistando, através desses atos de benemerência, não apenas a admiração das
comunidades bafejadas pelos seus atos filantrópicos, como o reconhecimento oficial,
tantas vezes traduzido na atribuição de uma comenda, religiosa ou civil, quando não na
elevação ao baronato ou ao viscondado, títulos cujos símbolos usavam com garbo e às
vezes até com exagerada vaidade, ajudando, com o pagamento dos direitos de mercê de
tais honrarias, as finanças públicas nacionais4. É certo que, em determinados meios e
situações também foram destratados. Jornalistas, poetas e romancistas ridicularizaram-
nos nos seus escritos e a designação de “brasileiro” foi muitas vezes sinónimo de
“pacóvio”, “agiota”, “imbecil” ou “analfabeto”. Mas o tempo, que para a historiografia é
material imprescindível ao bom julgamento de pessoas a atos, acabou por desconstruir
essa imagem e hoje, quando falamos de “brasileiros”, referimo-nos, em geral, a um grupo
de indivíduos, homens e mulheres, que se constituíram como portugueses admiráveis,
dados a enormes gestos de filantropia, senhores e senhoras de bons modos e, na sua
grande maioria, cultos muito acima da média do seu tempo5.
Nesta comunicação não nos iremos debruçar sobre a obra incomparável que estes
antigos emigrantes realizaram em Portugal após o seu regresso, quer no foro das obras
civis e religiosas, quer no campo assistencial. Sobre o tema podem ler-se os muitos
análise comparativa (1876-1974)”, in Sousa, Fernando de, et (coord.), Um Passaporte Para a Terra Prometida, Porto,
CEPESE/Fronteira do Caos Editora, 2011, p. 521. Outra informação preciosa é a do então governador civil do Porto,
Tabner de Morais, citado por Jorge Fernandes Alves, que estimava, num inquérito parlamentar datado de 1873, que ao
terminar o terceiro quartel do século XIX apenas 40% a 50% dos que tinham partido regressavam à pátria; que, destes,
cerca de 20% regressavam pobres, tão ou mais pobres do que quando partiram, enquanto cerca de 15% vinham com
capitais que lhes permitiam, cá chegados, comprar alguns terrenos ou dedicar-se ao pequeno comércio, assim
garantindo o seu sustento e o da família. Ainda segundo a mesma fonte, do total dos que haviam partido prenhes de
sonhos, apenas cerca de 5% regressavam ricos ou mesmo muito ricos. Eram estes últimos os considerados realmente
“brasileiros”, porque os que regressavam com pouco capital apenas mereciam a classificação de “abrasileirados”. Cf.
Alves, Jorge Fernandes, “Prefácio”, in Araújo, Maria Marta Lobo de; Esteves, Alexandra, Coelho, José Abílio; Franco,
Renato (coords.), Os brasileiros enquanto agentes de mudança: poder e assistência, Braga/Rio de Janeiro,
CITCEM/Fundação Getúlio Vargas, 2013, pp. 9-15. 4 Alves, Jorge Fernandes, “De Relance – O Barão de Trovisqueira”, Catálogo da Exposição ‘Barão da Trovisqueira –
Reencontro’, Vila Nova de Famalicão, Museu Bernardino Machado, 2001, disponível em http://ler.letras.up.pt/
uploads/ficheiros/artigo11191.pdf [acesso em 07.04.2015] 5 Coelho, José Abílio, “Saraus, visitas, merendas, passeios e viagens: a vida social dos ‘brasileiros’ nos finais do século
XIX e na primeira metade do século XX”, in Araújo, Maria Marta Lobo de; Esteves, Alexandra; Silva, Ricardo, Coelho,
José Abílio (coords.), Sociabilidades na Vida e na Morte (Séculos XVI-XX), Braga, CITCEM, 2014, pp. 359-373.
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trabalhos que de há décadas a esta parte vêm sendo publicados. Vamos, antes, abordar,
ainda que ao de leve dada a exiguidade de tempo disponível, a vida de um desses
emigrantes que, embora mantendo até à morte a nacionalidade portuguesa, que sempre se
honrou de ser, escolheu o Brasil para residir, trabalhar e enriquecer sem jamais pensar em
regressar definitivamente à pátria, ali investindo quase tudo quanto foi conseguindo
amealhar. E tendo a “boa moral” como candeia com que alumiou os seus caminhos.
Este é, aliás, em nossa opinião, um aspeto da emigração portuguesa no Brasil ainda
longe se encontrar devidamente estudado, pois que o papel benemerente destes homens
não aconteceu apenas em Portugal, após o regresso, deixando os mesmos, na terra que os
recebeu, importantes marcas da sua estada. Dos Asilos de Inválidos às Sociedades
Beneficentes, dos Liceus Portugueses aos Reais Gabinetes de Leitura, dos Grémios
Literários aos Hospitais Portugueses de Beneficência ou às Santas Casas da Misericórdia
espalhadas um pouco por todo aquele imenso país, muitas são as marcas da doação destes
emigrantes que, enquanto tal, construíram ou ajudaram a fundar e cujo funcionamento
garantiram, tendo inclusive, muitos deles, ao elaborarem os seus testamentos em Portugal,
doado a essas casas a que estiveram ligados boas somas de dinheiro, prédios e outros bens
de raiz que por lá haviam mantido em sua posse. Recorde-se, entre muitos e muitos outros
e apenas como pálido exemplo do que dissemos, os casos do mercador Manuel Neto da
Silva Castelo, natural de Paços de Ferreira e estabelecido em Belém, que, quando foi
preciso comprar sede para a recém-criada Academia de Direito do Pará, garantiu o
empréstimo, sem dele cobrar qualquer juro, dos 50 contos de réis que custou o edifício
para instalar tão importante instituição6; do viseense José Marques Merino, homem que
tendo partido de Portugal como simples ferreiro, na então capital do império se
transformou em fabricante de instrumentos cirúrgicos e que, quando o Rio de Janeiro se
viu atacado, na década de 1870, por mais uma malfadada epidemia de varíola, dotou os
Hospitais da Caixa de Socorros D. Pedro V de todo o material necessário para o bom
funcionamento das suas enfermarias, vindo, por esse gesto de elevada doação à cidade, a
ser condecorado com a Cruz Humanitária, à época a mais alta distinção dada aos que
lutavam em favor da saúde pública7; ou o de António Ferreira Lopes, nascido na Póvoa
de Lanhoso e que no Brasil trabalhou durante cerca de três décadas, o qual, mesmo já
fisicamente afastado do Brasil há muito perto de quarenta anos, legou, quando em
Portugal mandou lavrar o seu testamento, em 1927, importantes verbas à Santa Casa da
6 Album Photo-Biografico Portuguezes no Brazil, Porto, ano 1, nº 2, s/d, p. 6. 7 Album Photo-Biografico Portuguezes no Brazil, Porto, ano 1, nº 6, s/d, p. 5.
4
Misericórdia do Rio de Janeiro e ao Hospital da Beneficência Portuguesa, razão pela qual
o seu retrato, de corpo inteiro e dimensão natural, se encontra ainda hoje entre os dos
grandes beneméritos de ambas as instituições8.
Para além do mais, muitos destes “brasileiros”, antes de regressarem a Portugal para,
no torrão natal, gastarem nos restos das suas vidas os bons cabedais no Brasil
conquistados, foram, do lado de lá do mar Oceano, dirigentes e contribuintes ativos em
todas essas obras de bem-fazer, tendo alguns deles o hábito de custearem por longos
períodos, que chegavam a atingir um mês por ano, tantas vezes durante vários anos, as
“dietas” dos internados de todo um hospital ou os custos de ensino dos muitos alunos de
um liceu português, encontrando-se também ligados às mais variadas irmandades e
confrarias religiosas que ajudaram a sustentar com largueza. É essa história do importante
papel dos portugueses no Brasil, “brasileiros” após o regresso à pátria de origem, que
ainda se encontra quase integralmente por fazer e da qual não nos devemos esquecer,
certos de que o cabal conhecimento da sua doação ao país que os recebeu de braços
abertos e lhes permitiu o caminho de muitos sucessos, fará deles seres ainda mais dignos
de grande admiração não só em Portugal, que essa já a conquistaram fruto da investigação
que nas últimas décadas tem sido produzida e divulgada, mas também do lado de lá, onde,
infelizmente, hoje como no século XIX, há quem os continue a estigmatizar como
“usurários”, “sovinas”, “oportunistas” e “exploradores”9.
Na presente comunicação pretendemos dar a conhecer um desses portugueses que,
tendo, como a maioria dos demais compatriotas emigrantes, partido da terra de
nascimento, a ilha da Madeira, quando era ainda menino, viria a conseguir no Rio de
Janeiro, à força de muito trabalho, edificar um verdadeiro império, sem jamais ter pensado
em voltar definitivamente a Portugal. O seu nome, Manuel de Pontes Câmara, bem como
a marca de cafés por si criada e que ficou conhecida pelo seu apelido – “Cafés Câmara”
– são, ainda hoje, um padrão sinalizador da sua estada naquele território.
8 Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia da Póvoa de Lanhoso (doravante ASCMPL), Testamento de António
Ferreira Lopes, Caixa dos testamentos, s/paginação. 9 No Brasil, o emigrante português também teve, entre literatos e cronistas, os seus detratores, que ora os tratavam
como “comerciante rico, explorador e usurário”, ora como “burro de carga que, ao aceitar (estupidamente) condições
de trabalho que o brasileiro (esperto e malandro) recusaria, praticava uma concorrência desleal no mercado de
trabalho”. Cf. Rowland, Robert, “Manuéis e Joaquins: A cultura brasileira e os portugueses”, Etnográfica, vol. V (1),
2001, pp. 157-172; Maria Antonieta Cruz, ao descrever a lusofobia que se gerou no Brasil na segunda metade do século
XIX, manifestada em regiões como Porto Alegre, Pernambuco, Ceará, Baía, Pará, S. Paulo, etc., recorda que os
portugueses eram apelidados, entre outras designações menos próprias, de “negros brancos”, “marinheiros safados” ou,
já no século XX, “tamanqueiros”, “pés-de-chumbo”, “galegos”, “burros sem rabo”, etc.. Cf. Cruz, Maria Antonieta,
“Agruras dos Emigrantes Portugueses no Brasil. Contribuição para o estudo da emigração portuguesa na segunda
metade do século XIX”, disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6489.pdf. [Acesso em 05.10.2013].
5
Manuel de Pontes Câmara: apontamento biográfico
Quando Manuel de Pontes Câmara10 nasceu na freguesia das Achadas da Cruz, ilha da
Madeira, aos dezasseis dias do primeiro mês de 1815, já a Corte portuguesa se havia
transferido para o Rio de Janeiro, em resultado da primeira invasão napoleónica, em
novembro de 1807.
A instalação da família real levou a que os portos do Brasil se tenham escancarado ao
comércio e à navegação internacionais e que, em 1810, fossem assinados com a Inglaterra
dois acordos, um comercial e outro político: o primeiro, tempos depois apelidado de
“ominoso”, cumpria inicialmente a missão de permitir a importação, a partir da “Europa
amiga”, dos géneros e manufaturas de que a terra não dispunha, mas também a de escoar,
para o continente europeu, a produção agrícola e natural do Brasil. O segundo,
atualizando a “secular aliança luso-britânica”, tinha por objetivo “garantir a integridade
de um reino que o rei abandonara à frágil autoridade de uma regência”, colocando, na
realidade, o continente sob o domínio de estranhos. Com a chegada da “paz geral”, em
1814, resultante da derrota de Napoleão, os continentais portugueses esperavam que o
jugo político-militar inglês pudesse ser afastado, do mesmo modo que ansiavam a
recuperação do monopólio do mercado brasileiro para a metrópole. Nada disso aconteceu
e Portugal continental, remetido desde a partida da família real, na prática, à situação de
“colónia”, vivia um penoso período económico-financeiro, quer dado as receitas antes
resultantes do comércio externo terem sofrido acentuadíssima quebra, quer devido ao
pagamento de uma enormíssima dívida pública, para a qual todos eram obrigados a
contribuir11.
Filho de um casal de remediadas posses, em 1821, com seis anos de idade, Manuel de
Pontes Câmara entrou como interno num colégio madeirense onde se manteve até aos
onze, apesar de, entretanto, ter ficado órfão de pai e de sua mãe ter contraído um segundo
matrimónio. Por sua vontade, viria a afirmar o próprio num manuscrito redigido muitas
décadas depois, e dando deste logo indicações de que iria ser pela vida fora um self-made
10 Câmara é um dos mais antigos apelidos utilizados na Madeira, tendo sido seu primeiro utilizador João Gonçalves da
Câmara, filho primogénito do descobridor e primeiro capitão donatário do Funchal, João Gonçalves Zarco. Resultaria
da carta régia de 4 de Julho de 1460, através da qual lhe era conferido título de nobreza e concedido o respetivo brasão
de armas. O apelido manteve-se na ilha até à atualidade, tendo ao longo dos séculos sido utilizado por algumas das
mais distintas famílias da região. Cf. Silva, Pe. Fernando Augusto da; Menezes, Carlos Azevedo, Elucidário
Madeirense, vol. 1, A-E, edição dos Autores, 1921, pp. 384-387. 11 Bonifácio, Maria da Fátima, A Monarquia Constitucional. 1807-1910, Lisboa, Texto Editores, 2010, pp. 19-23.
6
man, o rapazinho decidiu abandonar os estudos para se empregar como marçano, na vila
de Porto Moniz, aí fazendo o seu tirocínio comercial.
Portugal, descontente com a ausência da família real e sobretudo com o estado de
penúria que no continente se vivia, tinha feito implantar, em 1820, à revelia da Coroa, um
novo regime: o Liberalismo12. Não obstante essa mudança política, que se em muitos
portugueses renovou o sonho do regresso do rei ao continente e a reconquista do estatuto
de sede de negócios do reino para Lisboa, mas também o retorno do Brasil ao modelo que
vigorara anteriormente a 1808, não matou noutros o espírito aventureiro, a mesma sina
que desde havia vários séculos levara tantos a partir, fazia-os agora sonhar com a travessia
do Atlântico em busca da riqueza que a própria terra de nascimento lhes negava. Como
se disse, se os anos que se seguiram à partida da Coroa foram de extrema dificuldade, o
dealbar do primeiro liberalismo, em 1820, trazendo profundas transformações não
melhorou a situação. Entre as radicais mudanças que afetaram Portugal, pelo significado
que teve na vida destes homens que viam na então América portuguesa a sua “terra da
promissão”, relembramos a perda definitiva do Brasil em 7 de setembro de 182213. Sete
anos depois do Grito do Ipiranga, Manuel de Pontes Câmara quis, ainda, seguir o rumo
dos antigos colonos, agora como emigrante, embarcando para o Rio de Janeiro em finais
de 1829, quando contava apenas 14 anos de idade14.
Na cidade maravilhosa empregou-se de imediato no comércio de fazendas, onde
amealhou algum pecúlio. Pouco mais de um ano depois de ali se encontrar, isto é, quando
em abril de 1831 ocorreram os levantamentos que levaram D. Pedro I a renunciar à coroa
imperial brasileira e dado o “clima de mal-estar” que contra os defensores portugueses do
imperador se viveu na cidade15, Pontes Câmara decidiu mais uma vez fazer-se ao mar,
desta vez com destino à África portuguesa. Durante um ano percorreu os portos marítimos
de Benguela, Novo Redondo e Luanda e quando, menos de um ano volvido e
aproveitando os ânimos mais calmos na capital do novo Império decidiu regressar ao Rio,
12 Sobre a implantação do Liberalismo em Portugal ler entre outros Sá, Victor, Instauração do Liberalismo em Portugal,
Lisboa, Livros Horizonte, 1987. 13 Sobre a independência do Brasil e seus efeitos em Portugal, pode ler-se Proença, Maria Cândida, A Independência
do Brasil, Lisboa, Edições Colibri, 1999. 14 Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara, datilografado, s/paginação.
Agradeço à Dr.ª Lucia Sanson, neta em quarto grau de Manuel de Pontes Câmara e residente no Rio de Janeiro, a
cedência de uma cópia deste documento. 15 Sobre a renúncia de D. Pedro I e as divergências entre portugueses e brasileiros, pode ler-se Pandolfi, Fernanda
Cláudia, A abdicação de D. Pedro I: espaço público da política e opinião pública no final do Primeiro Reinado, Assis,
2007, dis. de doutoramento policopiada, pp. 24-64.
7
levava consigo “alguns centos de milhares de réis”, reunidos em negócios feitos durante
a viagem16.
Contava então apenas 17 anos de idade, mas pensava e agia já como um comerciante
de larga experiência. Vejamos, como o próprio anotou ao referir-se aos “centos de
milhares de réis” que tinha conseguido angariar na sua passagem pela África, a garra que
levava consigo:
“Precisando fazer produzir estes fracos cobres, tomei logo o expediente de ir
comprar alguns cereais nos subúrbios da cidade para ir vendê-los na Corte. Neste
pequeno comércio obtive regular interesse, mas como não era negócio estável,
estabeleci no mesmo ano de 1832 um negócio de louça que produzia regular
resultado, mas que pouco me aproveitou, porque os emigrados portugueses que aqui
se achavam e que na máxima parte não queriam trabalhar, comiam sob o pretexto de
benefício patriótico não só o pouco que eu ganhava, mas até o pequeno capital de
que dispunha”17.
Esta sua primeira experiência fê-lo relutar em relação aos compatriotas, que durante
muitos anos deixou mesmo de empregar, afirmando que, desse modo, começou a tirar
bons resultados do seu trabalho. Descontente também com o pouco lucro do negócio dos
cereais, encetou, no ano seguinte de 1832, uma parceria comercial com Vicente Estácio,
em que ambos entraram “com algum capital” para se dedicarem à venda de louças, o que
resultou em alguns lucros. Passou a viajar para outras cidades brasileiras, comprando e
vendendo, sempre em busca de bons e lucrativos negócios. Não era um “mascate”, um
“vendedor ambulante de miudezas”, para usarmos palavras de Gilberto Freyre18, antes
um negociante de visão larga e algum investimento, o que lhe trouxe não só significativos
lucros mas lhe granjeou também grandes amizades, capazes de lhe garantirem crédito e
bom nome. Entre estas amizades, que continuará a cultivar pela vida fora, encontrava-se
o padre António Ferreira Viçoso, depois bispo de Mariana, que em 1835 conheceu em
Ilha Grande e se transformou numa referência para toda a sua vida19.
16 Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 17 Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 18 Cf. Freyre, Gilberto, Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX…, p. 81. 19 D. António Ferreira Viçoso, religioso Vicentino, nasceu em Portugal a 13 de maio de 1787. Ordenado sacerdote em
1818, foi professor em Évora antes de embarcar para o Brasil, aos 32 anos. Em 1843 foi nomeado bispo de Mariana,
tendo, enquanto tal, promovido uma profunda reforma do clero e fundado várias obras de caridade e educação, entre
as quais o primeiro colégio feminino de Minas Gerais. Reconhecido humanista e lutador contra a escravatura, escreveu,
em 1840, um livro intitulado A escravatura ofendida e defendida. Foi um dos principais mentores da luta desenvolvida
contra o liberalismo dos Imperadores na chamada questão religiosa. Morreu em 1875. Pelas suas virtudes, foi em julho
8
Figura 1
Pontes Câmara com a esposa e as duas filhas mais velhas, Elisa e Elvira
Fonte: Coleção do autor
No mesmo ano viajou para Porto Alegre, de onde regressou um ano volvido, numa
viagem de que tirou bons lucros. Em 1850, na qualidade de administrador de uma massa
falida, Pontes Câmara deslocou-se a Santa Catarina. Dois meses volvidos retornava à
capital “com bom resultado” da sua missão. Antes e depois desta data, continuou a
dedicar-se ao comércio, fazendo sociedades várias que abarcavam negócios de louça e
miudezas, de peixe fresco, carnes verdes, cereais, fabrico de cal, casas de pasto, trapiche,
negócios de tapioca, refinação de açúcar, fabrico de chapéus, cultivo de café, botequins
ou negócios de carvão em pedra. Mas os negócios que lhe deram grande fama e maior
proveito foram, sem sombra de dúvidas, o das “comissões” e o dos cafés.
de 2014 declarado beato pelo Papa Francisco. Cf. Padres Vicentinos, disponível em http://padresvicentinos.org/pt/d-
antonio-ferreira-vicoso/ [Acesso em 28.09.2014]
9
A sua vida de comerciante mante-se durante mais de cinco décadas, umas vezes com
lucros, outras com prejuízos. Para podermos fazer uma ideia do seu percurso enquanto
negociante, vejamos o resumo da atividade desenvolvida, que o próprio deixou anotada
(ver quadro 1).
Quadro 1 – Negócios em que Pontes Câmara teve sociedade, 1832-1878
Início Sócios Produtos Resultado
1832 Joaquim Alves da Silva Louças e miudezas Lucros
1832 João de Deus Peixe fresco Lucros
1833 José Francisco Pedro Carnes verdes Prejuízo
1833 Vicente Estácio da Silva Louças e outros Lucros
1834 José Pedro da Silva Cereais Prejuízo
1836 José Joaquim Leite Bastos,
José Cândido Pereira Salgado
Canuto Maria Pereira de Macedo
Fábrica de cal Lucros
1836 João Dias Vilares Louças e miudezas Lucros
1839 José Dias Pinto Aleixo Especulação de contas Muito lucro
1843 Tomás Pereira da Rosa Cereais Lucros
1844 António Moreira Betencourt Casa de pasto Lucros
1848 Joaquim José de Oliveira Bastos Cereais Lucros
1848 José da Silva Gajeiro Casa de pasto Prejuízo
1849 José Domingos da Costa Cereais e especulação Prejuízo
1850 Manuel Alves Oliveira Queiroz Trapiches e comissões Lucros
1851 João António Ferreira Guimarães Tapioca Prejuízo
1853 Francisco Mazar
Agostinho Sommer
Refinaria de açúcar Prejuízo
1853 Francisco da Silva Betencourt
Joaquim José Simões
Cereais Muito lucro
1858 António Alves Carreira Fábrica de chapéus Prejuízo
1858 José Neves Pinto Cereais Prejuízo
1858 Tomás Alves de Oliveira Cereais Prejuízo
1858 José Pinto de Figueiredo Vilhena
Joaquim Domingos da Costa
Especulação Prejuízo
1860 Rafael José Lopes de Andrade Trapiche e comissões Muito lucro
1863 José Alves Pereira Fazenda de café Muito lucro
1860 Domingos Lopes Quintas Botequim Lucros
1864 Francisco Joaquim Gomes Café e cereais Muito lucro
1867 Joaquim Fernandes Moura Café Lucros
1868 Vicente Cavalcante de Orem Cereais Lucros
1868 José Rodrigues da Silva Cereais Prejuízo
1872 Joaquim Matos Vieira Café e cereais Lucros
1872 António Ferreira Lopes Cereais Lucros
1878 António Rodrigues da Silva
Mascarenhas
António Coelho Fortes
Belmiro António Rodrigues
Carvão em pedra Lucros
1878 Manuel Ribeiro
Justino Albano
Joaquim
Café Lucros
Fonte: Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação.
10
Como se pode observar pelo quadro apresentado, Pontes Câmara teve quatro dezenas
de sócios ao longo da sua vida comercial. “Com uns tive lucros e com outros prejuízos”,
escreveu o próprio em 1880, “mas com nenhuns deles tive dúvidas em contas, tendo-me
separado de todos na melhor harmonia achando-me de contas saldadas com todos”20.
Entre estes sócios, encontravam-se pelo menos três dos seus futuros genros: António
Ferreira Lopes, Francisco Joaquim Gomes e António Coelho Fortes.
No dia 24 de dezembro de 1851, aos 36 anos e já abastado negociante, Manuel de
Pontes Câmara casou-se com Guilhermina de Matos Vieira, de apenas 15 anos de idade,
natural do Rio Grande do Sul21. Volvido pouco mais de um ano sobre o casamento, isto
é, a 14 de abril de 1953, nascia a primeira filha do casal, Elisa22. A 10 de abril de 1856 o
emigrante português embarcou para a Europa com a mulher, grávida de quatro meses, e
a filha, de tenra idade. Instalada a família na cidade do Porto, na rua 23 de julho da
freguesia de Santo Ildefonso, partiu o comerciante para França, no Porto nascendo, na
sua ausência23, a segunda filha, Elvira de Pontes Câmara24.
O casal Câmara permaneceu na capital do norte de Portugal até ao dia 2 de junho de
1860, data em que, na companhia da esposa e das filhas, embarcou de regresso ao Rio de
Janeiro. As viagens eram demoradas, chegando a gastar-se, para cada travessia do
Atlântico, entre um a dois meses. O que justificava que quando estes homens viajavam
prolongassem as estadas no exterior.
De regresso à capital do império do Brasil, Pontes Câmara encontrou a casa comercial,
que deixara em franco crescimento quatro anos antes, em situação de falência. “Achei-a
20 Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 21 Curiosa confidência é feita por Pontes Câmara no seu manuscrito Factos mais notáveis…: “No dia 24 de Junho de
1836, decidi terminar, por carta, algumas ideias de casamento que tivera com uma respeitável moça, participando-lhe
que com atenção à minha posição e estado não estava resolvido a tomar estado. É nesse mesmo dia de Junho que o
calendário religioso dedica a São João Baptista que, na cidade capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre e por uma
coincidência que se não pode explicar, nasceu aquela que mais tarde veio a ser minha mulher”. Cf. Câmara, Manuel de
Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 22 Viria a casar-se em 10 de Setembro de 1867, com 15 anos incompletos, com Francisco Joaquim Gomes, desde 1864
sócio do sogro na casa “Câmara & Gomes”. Este casal não deixou descendência. Uma segunda filha de Guilhermina e
Manuel de Pontes Câmara, cujo nome se não conhece, morreu com apenas uma semana de vida. Nasceu a 30 de Março
de 1855, no Bairro das Laranjeiras, onde o casal habitava, e faleceu a 7 de Abril, tendo sido batizada em casa para que
não morresse sem sacramentar. 23 No seu manuscrito Manuel de Pontes Câmara refere: “É esta a única filha a cujo nascimento não assisti”. Embora o
não afirme claramente, Pontes Câmara estaria envolvido amorosamente com uma francesa (e note-se que são
constantes, ao longo da sua vida as viagens à Europa e especialmente a França), pois indica que a 13 de Novembro
desse ano de 1856, nasceu em Paris, pelas “seis horas e quatro minutos da tarde, outra minha filha”. Esta criança foi
também batizada na igreja de Santo Ildefonso, na cidade do Porto, aos 28 dias do mês de Julho de 1859, com o nome
de Emma Edouina Rita Emmuella, sendo padrinhos José Cardozo Pinto Montenegro e D. Rita Acácia Lopes. Faleceu
a 18 de Fevereiro de 1867. Cf. Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes
Câmara…, s/paginação. 24 Arquivo Distrital do Porto, Livro de assentos da paróquia de Santo Ildefonso, 1856, fl. 44.
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envolvida de tal forma que não só supus a minha fortuna perdida, mas em risco de não
pagar por inteiro aos credores. Mas conseguindo separar a Sociedade, mediante a
responsabilidade de mil e alguns contos de réis, consegui pagar por inteiro e apesar de
perder na liquidação cerca de quatrocentos contos ainda me ficou alguma fortuna que
manejada com critério me colocou ainda em posição desassombrada pelo que resta dar
graças a Deus”25.
Não obstante “as amargas provações” de que diz ter sido vítima, este homem, que aos
14 anos de idade, sem resguardo algum se fez ao mundo e foi capaz de, como era seu
desejo ao partir da ilha natal, “fazer fortuna” por si mesmo, a tudo resistiu, fruto da sua
inteligência, da sua capacidade para os negócios e dos seus rígidos princípios morais,
como adiante veremos. Recuperada a posição, à custa de muito dinheiro perdido,
reaplicou-se na gestão das suas empresas e, muito rapidamente, viu a sua posição não só
recuperada, mas fortalecida.
Adquiriu então um palacete, com capela, na rua Olinda, onde passou a habitar com a
esposa e as filhas Elisa e Elvira. Ali nasceram e cresceram os restantes filhos do casal26.
No dia 24 de agosto de 1874, aos 38 anos de idade e após vinte e dois de casamento,
Guilhermina de Matos Vieira faleceu no Rio de Janeiro, deixando Manuel de Pontes
Câmara, que contava então 59 anos de idade, viúvo.
Empreendeu, após da morte da mulher, mais algumas viagens à Europa, onde três dos
seus filhos estudavam, tendo a última dessas viagens ocorrido março de 1882. Vindo do
Rio de Janeiro, permaneceu alguns dias em Lisboa, acompanhando uma filha e um genro
português que ali se instalaram numa espécie de lua-de-mel tardia. Até que, no dia 31
desse mesmo mês, embarcou sozinho no vapor Douro, da Mala Real Inglesa. O seu
destino era a cidade inglesa de Southampton, de onde, após visitar uma das filhas mais
novas que na Grã-Bretanha estudava, retornaria ao Brasil para retomar a condução dos
seus negócios. Mas, desta vez, a “fortuna” que Manuel Pontes Câmara tantas vezes
invocava como sinónimo de sorte e felicidade, não o acompanhava. Pelas onze da noite,
25 Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 26 A 23 de julho de 1861, nasceu Edeltrudes, que em 16 de Janeiro de 1878 casou com António Rodrigues da Silva
Júnior; a 13 de agosto de 1863, Ernestina, que virá a casar, na capela do colégio das Irmãs da Caridade, em 9 de julho
de 1879, com António Coelho Fortes, casamento do qual nasceram duas filhas; a 11 de novembro de 1866, nasceu
Maria Estefânia, que viria a casar-se, já depois da morte dos pais, com José Mendes de Oliveira Castro, 2º Barão de
Oliveira Castro e sócio de seu sogro desde antes do casamento; a 22 de janeiro de 1869, nasceu Guilhermina, na cidade
de Petrópolis. Viria a falecer aos dez anos de idade, em 28 de março de 1879, sendo sepultada no cemitério de S. João
Baptista; por último, em 21 de agosto de 1870, nasceu, na rua Olinda, Manuel, o único filho e “tanto desejado” varão
do casal. Por ser o único rapaz e ter ficado órfão muito jovem, teve uma vida de aventureiro. Casou muito cedo, teve
um filho, e viveu viajando. A história da família refere que atravessou o Atlântico trinta e oito vezes, “a última das
quais, morto, para ser sepultado no Brasil”. Cf. Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel
de Pontes Câmara…, s/paginação.
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navegando o Douro ao largo do cabo Finisterra, na Galiza, levando nos seus porões
75.000 libras que trouxera do Brasil e mais 25.000 carregadas em Lisboa, para além de
outra carga pesada entre a qual 15.600 sacos de café, foi violentamente abalroado pelo
vapor espanhol Yrurac-Bat, que, da Corunha, seguia rumo a La Habana27. A noite estava
escura e as ondas tumultuosas. O desastre levou o Douro para o fundo do oceano em
pouco mais de meia hora. Mesmo assim, muitos dos passageiros de ambas as embarcações
conseguiram salvar-se, dada a rápida intervenção de outro barco que à mesma hora
passava por perto. Não foi o caso de 57 passageiros de ambas as embarcações, entre as
quais Manuel de Pontes Câmara, um dos três passageiros da primeira classe do Douro
que, aos 67 anos de idade, encontrou eterna sepultura no fundo do Atlântico28. O seu
corpo jamais foi recuperado. No dia 14 de abril de 1882, isto é, duas semanas após o
desastre, a pedido da família ou por imposição da companhia seguradora do vapor em que
viajava, era publicado no jornal Faro de Vigo um anúncio nos seguintes termos:
“Por la localización de un cadáver. El consignatario en esta ciudad de la
Compañía Mala Real Inglesa, señor don Estanislao Durán, ofrece una buena
gratificación al que encuentre o dé noticia del cadáver del comendador Dn. Manuel
de Pontes Cámara, el cual ha sido víctima en el naufragio del vapor Douro. Las señas
del finado son las siguientes: estatura regular, delgado, edad 67 años, usaba toda la
barba. Vestía pantalones, chaleco y gabán todo de paño negro, sombrero de coco y
botinas cortas con elástico. Debe tener en el bolsillo del gabán una cartera con
documentos donde consta su nombre así como tarjetas de visita. La ropa blanca que
vestía tiene las iniciales M. P. C.”29.
Na memória oral familiar ficou a notícia, talvez fantasiosa, talvez não, de que Manuel
de Pontes Câmara terá dado o seu lugar no bote a que os passageiros de primeira classe
tinham direito, a uma pobre mulher que viajava em classe económica com um filho de
tenra idade30.
27 “Muerte en el mar de Finisterre”, disponível em http://www.farodevigo.es/gran-vigo/2012/04/05/muerte-mar-
finisterre/638250.html [acesso em 11.04.2015] 28 Cf. Calvo-Sotelo, Juan Campos, Náufragos de Antaño. Los grandes naufragios en la Costa de la Muerte en el siglo
XIX, Barcelona, Editorial Juventud, 2002, pp. 205-222. 29 Cf. Jornal Faro de Vigo, disponível em http://www.farodevigo.es/opinion/2012/04/14/hemeroteca-decano /640438.
html [acesso em 11.04.2015]. 30 Informação prestada pela Dr.ª Lucia Sanson, trineta de Pontes Câmara, residente no Rio de Janeiro.
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A criação de um colosso comercial
Após a viagem por terras africanas que lhe permitiu regressar ao Brasil com “alguns
centos de milhares de réis”, tinha então apenas 17 anos de idade, Manuel de Pontes
Câmara iniciou uma vida comercial de sucesso que, como já vimos, lhe garantiu ligação
a mais de uma trintena de negócios, umas vezes como sócio solidário, outras como
comanditário.
O Brasil, que nos anos que se seguiram à independência teve que se adaptar a novas
circunstâncias, não apenas à reorganização de todos os serviços públicos do novo império
mas também aos efeitos negativos que esse facto acarretou, que fez crescer muito os
compromissos económicos para com o exterior, viveu um período algo conturbado e
difícil. Não obstante, a riqueza dos seus solos e a vontade de levantar uma nova nação
levaram a que, sobretudo a partir de meados do século XIX, o país entrasse numa fase de
enorme crescimento, organizando-se modernamente com grandes empresas comerciais,
financeiras e industriais. As indicações desse crescimento eram já notórias na primeira
metade da centúria de oitocentos, mas, ao longo da sua segunda metade, mudou
radicalmente para melhor, sobretudo com “a verdadeira revolução que se operava na
distribuição das suas atividades produtivas”, decaindo as lavouras tradicionais como a da
cana-de-açúcar, algodão ou tabaco e ressurgindo, apoteoticamente, outras produções que
anteriormente eram de pequena importância. Dentre estas últimas, destacar-se-ia o café,
que “acabará por figurar quase isolado na balança económica brasileira”31.
E foi exatamente neste setor, o do café, que a partir da década de sessenta Manuel de
Pontes Câmara irá jogar toda a sua experiência, o saber alicerçado num trilho com já
quase três décadas ligado a negócios vários, ao fundar, em 2 de janeiro de 1864, sob a
designação de Câmara & Gomes, um empório comercial que o tinha como sócio
maioritário e como minoritários um genro, Francisco Joaquim Gomes e um cunhado, o
barão de Matos Vieira32. Dedicando-se também aos negócios dos couros e dos cereais,
era contudo no café que a Câmara & Gomes tinha o seu principal mercado. A sociedade
deve ter sucedido a um negócio mais pequeno, talvez do mesmo ramo, que Manuel de
Pontes Câmara possuía na rua de S. Bento, já que o seu nome surgia individualmente
31 Júnior, Caio Prado, História Económica do Brasil, acessível em http://minhateca.com.br/PalavraeTeologia/
LIVROS+DIVERSOS/Caio-Prado-Junior-Historia-Economica-Do-Brasil,30602957.pdf [acesso em 11.04.2015] 32 O Brasil, Rio de Janeiro, S.te de Publicité Sud-Americaine Monte Domec & Cie, vol. 1, 1919, pp. 51-56.
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cadastrado como “negociante estrangeiro” nas páginas do “Almanak da Corte e Provincia
do Rio de Janeiro para o anno bissexto de 1864”33.
A Câmara & Gomes atingiu, rapidamente, fruto da experiência do seu sócio
maioritário e do esforço de todos os que com ele trabalhavam, o estatuto de grande casa
comercial “da capital do Império”34. Poucos anos volvidos, já não comercializava apenas
aos balcões da rua de S. Bento. Tinha-se envolvido em negócios de comissões, comércio
de cereais, couros e outros produtos nacionais e importados, torrefação, moagem e
ensaque de café, assegurando “operações que iam crescendo de vulto, irradiando a todo
o país, do Norte a Sul e ao Estrangeiro”, exportando especialmente para a Europa35, onde,
no ano de 1874, colocou 500 sacas de 60 quilos de café, situando-se entre os setenta
primeiros exportadores de todo o Brasil, devendo referir-se que entre as primeiras cem
empresas exportadoras a esmagadora maioria eram inglesas ou francesas36. O enorme
crescimento da casa obrigou a que, mantendo o estabelecimento da rua de S. Bento,
abrisse depósitos e balcões nas ruas dos Beneditinos, da Saúde, Frei Caneca e avenida
Mem de Sá. O “Café Câmara” tornou-se famoso no Rio, existindo a marca, ainda hoje,
noutras mãos. Nos inícios do século XX e já após a morte de Manuel de Pontes Câmara,
a empresa, onde se mantinham como operacionais ou comanditários alguns dos seus
genros, mandou construir um dos grandes edifícios da então recém-inaugurada avenida
Central, mais tarde avenida de Rio Branco, possuindo, em 1919, o capital social de
1.250.000 réis e “girando” anualmente a soma de 120 mil contos de réis37.
Fortuna, riqueza e bem-fazer
Manuel de Pontes Câmara tinha alcançado a honorabilidade de comendador. Como tal
o referem as várias notícias que dão conta da sua morte por afogamento. Desconhecemos,
porque ainda não tivemos oportunidade de aceder a documentação elucidativa, em que
data a alcançou e se a honraria lhe terá sido atribuída pelo Estado brasileiro, se pela Igreja,
dadas as suas estreitas ligações a altos dignitários católicos, entre as quais se refere
monsenhor D. Miguel Ferrini, bispo italiano que na década de 1870 foi representante de
33 Almanak da Corte e Provincia do Rio de Janeiro para o anno bissexto de 1864 fundado por Eduardo von
Laaemmerk…, Rio de Janeiro, Eduardo & Henrique Laemmert, 1864, p. 527. 34 O Brasil…, p. 51. 35 O Brasil…, p. 51-56. 36 Retrospecto Commercial de 1877, Revista do Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, Typographia Imperial e
Constitucional de J, Villeneuve & C., 1878, pp. 31-32. 37 O Brasil…, p. 52.
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negócios da Santa Sé no Brasil e que, pela amizade que o prendia ao madeirense, presidiu
ao casamente de uma das suas filhas38. Para além de D. Ferrini, Pontes Câmara foi amigo,
desde muito jovem, do padre António Ferreira Viçoso, em 1843 nomeado bispo de
Mariana e figura de proa da questão religiosa no Brasil pós independência39. É também
certo que o negociante português pertencia a um conjunto de irmandades religiosas das
quais, logo desde muito jovens, fizeram também parte três das suas oito filhas: Elvira
entrou para a Ordem de Nossa Senhora do Carmo aos 12 anos de idade; Edeltrudes para
irmã da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo aos oito anos; Ernestina para irmã
da Ordem de S. Francisco da Penitência aos sete; Maria Estefânia, que foi pelo casamento
baronesa de Oliveira Castro, para a mesma Ordem de S. Francisco quando contava apenas
três anos de idade. No ato de batismo delegou em santas da sua devoção a qualidade de
madrinhas, ou protetoras, de alguns dos filhos: Eliza teve como madrinha Nossa Senhora
de Santa Rita; Maria, Nossa Senhora da Conceição; e Manuel, dito Maneco, seu filho
único e mais novo, Nossa Senhora das Dores. A filha Ernestina, que casou em 9 de julho
de 1879 com Artur Coelho Fortes, teve a oficializar a cerimónia de casamento o então
bispo diocesano do Rio de Janeiro, D. Pedro Maria de Lacerda40.
Desconhecemos o testamento integral deste português natural da ilha da Madeira, mas
sabemos que, em vida, “praticou [no Brasil] atos da mais assinalada benemerência”, que
mandou reerguer, numa das suas passagens pela ilha que lhe serviu de berço, a capela de
Nossa Senhora das Achadas, que fez uma doação de cinco contos de réis à Misericórdia
do Funchal e que “legou quase inteiramente a terça dos seus bens a casas de caridade,
especialmente à Misericórdia da cidade do Rio de Janeiro, ficando os seus filhos com o
remanescente da sua grande fortuna”41.
Manuel de Pontes Câmara foi, como se viu, um riquíssimo e poderoso comerciante da
praça do Rio de Janeiro. Falava pelo menos mais duas línguas para além do português,
38 Monsenhor Miguel Ferrini morreu no Rio de Janeiro em 13 de fevereiro de 1875, vítima de febre-amarela, sendo
sepultado no cemitério da Venerável Irmandade de S. Pedro, no Cajú, Rio de Janeiro. Italiano, doutor em Teologia e
Direito Civil e Canónico foi internúncio e desde 6 de junho de 1874 Encarregado de Negócios da Santa Sé no Brasil.
Apesar de ter falecido repentinamente de doença diagnosticada pelos médicos, o jornal O Apostolo, do Rio de Janeiro,
aproveitando o mau ambiente vivido entre D. Pedro II e a Santa Sé, no âmbito do processo que ficou para a história
como a questão religiosa brasileira, atribuiu a sua morte prematura a uma indisposição depois de ter sido recebido pelo
imperador e pelo seu ministro dos Negócios Estrangeiros. O jornal considerou mesmo D. Ferrini como “mais uma
victima da politica execranda da maçonaria Imperial”. Cf. O Apostolo, nº 35, de 16 de fevereiro de 1875, p. 1; Alves,
José Luiz, “Noticia sobre os Nuncios, Internuncios e Delegados Apostolicos que desde o ano de 1808 até hoje
representaram a Santa Sé no Brazil Reino Unido, no 1º e 2º Reinados e na Republica Federal”, Revista Trimestral do
Instituto Histórico e Geográfico Brazileiro, Tomo II (I), Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1900, p. 268. 39 Ver nota número 19. 40 Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 41 Silva, Pe. Fernando Augusto da; Menezes, Carlos Azevedo, Elucidário Madeirense, vol. 1, A-E, edição dos
Autores, 1921, p. 26.
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era leitor dos clássicos da época42, viajou dezenas de vezes para Portugal, França,
Inglaterra, Bélgica e Holanda, foi um extraordinário benfeitor de instituições de caridade
brasileiras, destacando-se o seu legado à Misericórdia do Rio de Janeiro43.
Cabe, pois, aqui uma pergunta: terá sido Pontes Câmara, como tantas vezes se tentou
fazer crer sobre estes antigos emigrantes portugueses, um “usurário”, um “sovina”, um
“oportunistas”, um “explorador”44?
Utilizemos, em jeito de resposta a esta nossa questão, um discurso, redigido pelo seu
próprio punho em abril de 1875, para, nessa mesma data, ser por si lido aos seus sócios e
empregados na casa comercial Câmara & Gomes. Nele começa por justificar a partida
para uma viagem à Europa, com saída a 24 desse mesmo mês e ano, onde visitaria alguns
dos seus filhos que em colégios europeus estudavam. Confessa-se cansado física e
psicologicamente, já que acabara de ficar viúvo e com vários filhos para acabar de formar.
Mas remete para a filosofia cristã que ensina o homem a lutar constantemente contra as
contrariedades, a forma de encontrar forças para resistir. Depois de historiar alguns
grandes problemas que os seus negócios viveram aquando de outras saídas ao estrangeiro,
afirma confiar nos seus sócios e em todos aqueles que o servem como empregados. Traça-
lhes, seguidamente, uma lição sobre honradez, afirmando:
“ (…) Se o crédito pessoal não representa por si só um capital representa sem
duvida e pelo menos uma machina aperfeiçoada e quaseque infalível com aqual se
pode adequirir muito d’esse capital ou riqueza sem grande dificuldade, sendo por
isso que vulgarmente se diz que quem possue credito possue capital ou riqueza (…).
Mas o credito moral é mais sublime. Este crédito alem de cooperar para essa
acumulação de bens terrestres tão desejado pela maxima parte dos homens, acresce
que elle é conveniente acquisição dos bens celestes, e que por um lado satisfazendo
as necessidades do corpo satisfaz pelo outro as aspirações da alma. (…). O Crédito
Material obtem-se e conserva-se quando se trabalha com assiduidade, dedicação e
intelligencia, quando só se emprehendem os negocios que estão nos limites dos
nossos meios e circumstancias, quando eles são contractados e concluídos com
circumspção e prodencia (…).
42 Silva, Pe. Fernando Augusto da; Menezes, Carlos Azevedo, Elucidário Madeirense…, p. 26. 43 Câmara, Manuel de Pontes, Factos mais notáveis da vida de Manoel de Pontes Câmara…, s/paginação. 44 Conferir nota 29.
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O Credito Moral, tão raro na nossa época, é por isso mais apreciado e tanto quanto
é difícil de conseguir-se bem como de conservar, mas como o querer é, segundo o
proverbio poder, este crédito também se obtem com mais dificuldade quando se quer.
Para ganhar-se (…) preciza-se antes de tudo que seja elle mesmo moralizado na
sua vida publica e particular e que d’essa moral dê claros exemplos a sua família, a
seus fâmulos, e ate aquelles com quem transigir ou conviver. (…). Que na concepção
e realização de qualquer negocio comercial, civil, ou moral tenha como principio
inalterável não entrar n’elle sem convencer-se primeiramente que o negócio é licito,
legal e honesto”45.
Apesar de longo, não quisemos deixar de transcrever este trecho de um escrito de
Manuel de Pontes Câmara. Através dele desejava aos que o escutavam – isto é, a alguns
dos seus genros, sócios e empregados, sobre todos os quais afirma saber possuírem as
boas qualidades que acabara de referir – que enriquecessem de bens terrenos, mas que,
acima de tudo, deviam colocar sempre em primeiro lugar a seriedade e a boa moral46.
Considerações finais
Se ao longo de muitos séculos, quer como colonos quer, após a independência, como
emigrantes, muitos portugueses enriqueceram no Brasil por processos pouco lícitos, e é
provável que isso tenha acontecido no Brasil como, ao longo dos tempos, ocorreu em
todos os quatro cantos do mundo, tivessem os infratores a nacionalidade que tivessem, a
verdade é que, como diz o adágio, “a árvore não se pode confundir com a floresta”. A
genuína honestidade de Manuel de Pontes Câmara enquanto negociante que foi durante
mais de cinco décadas, como as benfeitorias em favor dos menos abastados a quem,
através de instituições várias e em especial da Misericórdia do Rio de Janeiro, destinou
parte da sua enorme fortuna, é apenas um exemplo pálido da contribuição e do empenho
que a comunidade portuguesa residente no Brasil legou ao país.
Mas, como dissemos, conhecer devidamente esse processo, o completo mecanismo do
deve e do haver, é um caminho ainda longo a ser percorrido. Era pois utilíssimo, para a
história de ambos os países, que algo fosse feito nesse sentido. E que as instituições se
45 Arquivo de Lucia Sanson, Carta de Manuel de Pontes Câmara aos amigos e sócios da Camara & Gomes, Rio de
Janeiro, 1875, documento datilografado, s/paginação. 46 Arquivo de Lucia Sanson, Carta de Manuel de Pontes Câmara aos amigos e sócios da Camara & Gomes…,
/paginação.
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unissem no apoio a essa investigação, para que, como ocorreu já com grande parte do
recheio do vapor Douro em cujo naufrágio Pontes Câmara pereceu há 133 anos, pudesse
ser feita luz mais clara sobre muitas sombras que anatematizam, desde há muito perto de
duas centúrias a esta parte, a vida destes emigrantes no além Atlântico.