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MODERNIDADE, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO: ALGUMAS REFLEXÕES Maria Cristina Palma Mungioli Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP Doutoranda em Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP o artigo discute, com base em algumas idéias fundadoras da Modernidade, as contradições e ambigüidades presentes -em planos educacionais destinados à maior parte da população de países capitalistas sob processo de globalização. Taisplanos educacionais são, em sua maioria, "sugeridos" por organismos internacionais de assessoria econômica e/ou de financiamento. Sob o véu dojargão "qualidade total" e do propalado "acesso amplo e irrestrito à educação", existem políticas educacionais públicas cujos objetivos nada têm de democráticos. Palavras-chave: modernidade, globalização, educação, políticas educacionais, democracia, qualidade de ensino. From the perspective of Modernity founding ideas this article discusses the current contradictions and ambiguities of educational policies, intended for the majority of the people of capitalist countries under globalization processo Most of these educational policies are "suggested" by international organizations of economic consulting and/or financial funds. Under the slogans of "total quality" and "comprehensive access to education ", there are public educational policies whose targets are not democratic. Key words: modernity, globalization, education, educational policies, democracy, educational quality. A procura de subsídios para discutir as relações de mercado que ora se introduzem de maneira clara e não mais escamoteada por discursos "politicamente corretos" em todos os países capitalistas, mesmo naqueles cuja tradição de qualidade e abrangência do sistema de ensino é incontestável, leva-nos a buscar no pensamento de Jean-Jacques Rousseau elementos importantes para nossa análise. Em nossa opinião, não basta constatarmos as Sinergia, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 95-102, jul./dez. 2004 "Não existe sujeição tão perfeita quanto aquela que conserva a aparência de liberdade. " Rousseau' "Não é suficiente dizer aos cidadãos - sede bons: é preciso ensiná-los a ser. " Rousseau' mudanças no cenano econômico que permitem que tais discursos sejam enunciados, é preciso que consigamos compreender que caminhos foram percorridos para que discursos anteriormente ditos, provavelmente entre quatro paredes, ganhassem fôlego e se constituíssem em discursos públicos (e publicáveis) por organizações de alcance mundial. Um desses discursos consta de ~======================~95

MODERNIDADE, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO: algumas reflexões

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MODERNIDADE, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO:ALGUMAS REFLEXÕES

Maria Cristina Palma MungioliMestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP

Doutoranda em Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP

o artigo discute, com base em algumas idéias fundadoras da Modernidade, as contradições eambigüidades presentes -em planos educacionais destinados à maior parte da população depaíses capitalistas sob processo de globalização. Taisplanos educacionais são, em sua maioria,"sugeridos" por organismos internacionais de assessoria econômica e/ou de financiamento.Sob o véu do jargão "qualidade total" e do propalado "acesso amplo e irrestrito à educação",existem políticas educacionais públicas cujos objetivos nada têm de democráticos.

Palavras-chave: modernidade, globalização, educação, políticas educacionais, democracia,qualidade de ensino.

From the perspective of Modernity founding ideas this article discusses the currentcontradictions and ambiguities of educational policies, intended for the majority of the peopleof capitalist countries under globalization processo Most of these educational policies are"suggested" by international organizations of economic consulting and/or financial funds.Under the slogans of "total quality" and "comprehensive access to education ", there arepublic educational policies whose targets are not democratic.

Key words: modernity, globalization, education, educational policies, democracy,educational quality.

A procura de subsídios para discutiras relações de mercado que ora se introduzemde maneira clara e não mais escamoteada pordiscursos "politicamente corretos" em todosos países capitalistas, mesmo naqueles cujatradição de qualidade e abrangência do sistemade ensino é incontestável, leva-nos a buscarno pensamento de Jean-Jacques Rousseauelementos importantes para nossa análise. Emnossa opinião, não basta constatarmos asSinergia, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 95-102, jul./dez. 2004

"Não existe sujeição tão perfeita quanto aquelaque conserva a aparência de liberdade. "

Rousseau'

"Não é suficiente dizer aos cidadãos - sede bons:é preciso ensiná-los a ser. "

Rousseau'

mudanças no cenano econômico quepermitem que tais discursos sejam enunciados,é preciso que consigamos compreender quecaminhos foram percorridos para quediscursos anteriormente ditos, provavelmenteentre quatro paredes, ganhassem fôlego e seconstituíssem em discursos públicos (epublicáveis) por organizações de alcancemundial.

Um desses discursos consta de~======================~95

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relatório publicado, em 1996, pela OCDE3sobre o qual Hirrt (2001) comenta que "nodocumento publicado em 1996pelos serviçosde pesquisa da OCDE, Christian Morrisonindicava com remarcável clareza e umcinismo cruel como os governantes deveriamcuidar disso (demanda por mais vagas equalidade). Tendopassado em revista algumasopções impraticáveis, a ideologia desseorganismo de reflexão estratégica docapitalismo mundial sugeria: 'Depois dessadescrição de medidas arriscadas, pode-se,por oposição, recomendar numerosasmedidas que não criam qualquer dificuldadepolítica. (. ..) Se as despesas com ofuncionamento forem diminuídas, é precisoficar atento para que não se diminua aquantidade de serviço, mesmo sob o risco deque com isso a qualidade baixe. Podem-sereduzir os créditos para funcionamento dasescolas e das universidades, mas seriaperigoso reduzir o número de alunos ouestudantes. As famílias reagirãoviolentamente diante da recusa de matrículade seus filhos, mas não a uma baixa gradualda qualidade do ensino, e a escola podeprogressiva e pontualmente obter umacontribuição (financeira) das famílias, ousuprimir uma atividade qualquer. Isso se fazpouco a pouco, numa escola, mas não noestabelecimento vizinho, de tal forma que seevite um descontentamento geral dapopulação. ' " (tradução nossa)

Percebem-se, no texto acima,indicações claras sobre como devem procederas autoridades frente à eterna questãoeducacional: qualidade X quantidade. Paraessa questão crucial, segundo esse relatório,há uma solução: deve-se fornecer ensino debaixa qualidade a muitos e de boa qualidade apoucos. Criando-se (ou mantendo-se), dessaforma, ilhas de excelência nas quais estudariampoucos que mereceram estar lá. Ou seja,acirram-se os mecanismos de competiçãosocial em busca de vagas nas melhores escolas.Assim, num processo de inversão de valorese expectativas, o problema da qualidade deensino estaria resolvido, uma vez que o

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culpado pela sua exclusão (da boa escola) é oaluno (e a família) e não o sistema de ensino.

Obviamente, há diversas maneiras dese tentar compreender como discursos dessanatureza podem ser ditos com tantanaturalidade por uma organização que diz sepreocupar com a democracia (e com aqualidade de vida das pessoas). O caminhoque escolhemos para nossa análise passa pelastortuosas trilhas percorridas pelo pensamentocontraditório e ambíguo que fundou aModernidade (período no qual o Capitalismoprospera e que engendra a Globalização) e,em boa parte, a idéia de Democracia com aqual vivemos hoje em dia.

Buscar uma definição para o queconvencionamos denominar Modernidadeconstitui-se uma tarefa das mais dificeis eingratas, pois se trata de um período recheadode contradições que se revelam tanto no planoteórico quanto no da concretude: progressoscientíficos e tecnológicos convivem commiséria (humana) e destruição do planeta;humanização das relações sociais eanimalização dos homens; servidão e sonhosde liberdade.

No que concerne à Educação, aModernidade constitui-se também como fontede inquietude, de contradição, de legitimaçãode direitos e deveres civis, de obtenção decidadania e de sua perda, de individuação ede nascimento grupal. São contradiçõesimanentes da própria constituição, daModernidade e, portanto, insolúveis, porémdiscutíveis. É dentro desse mundo moldadopelo pensamento moderno que nasce aPedagogia como ciência que busca controlarracionalmente as complexas variáveis que seinter-relacionam na formação do ser humano,não só nos seus aspectos cognitivos, mastambém, e talvez principalmente, nos aspectossociais. Certamente há diversas correntespedagógicas que discutem abertamente opapel controlador e castrador das instituiçõesescolares modernas, porém não cabe aquidiscutirmos tais correntes. Nossa intenção é ade apenas esboçar algumas influências dopensamento moderno para a constituição dos

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estudos pedagógicos (e por conseqüência daspolíticas educacionais) tais como eles seapresentam hoje para que possamoscompreender alguns dos problemas queatualmente afligem os educadorespreocupados com o papel social da escolanuma acepção pluralista, subordinada o menospossível aos interesses dos governantes (e porque não dizer dos dirigentes de empresas/organizações) que rejeitam a idéia de umaeducação popular de quaIidade.

Acreditamos que somente acompreensão das injunções que levaram àconstituição do ser humano moderno, comoindivíduo e ser social, permitirá uma análisedas relações de poder que se apresentam nocenário econômico e político mundial epermitirá buscar um posicionamento crítico econseqüente frente a essas transformaçõesnotadamente no campo da educação.

Quando se fala em Modernidade, opensamento de Rousseau surge de maneiravigorosa e central. Berman (1986:17)considera a voz desse filósofo comoarquetípica da primeira fase da Modernidade,pois "(..) é ele a matriz de algumas das maisvitais tradições modernas, do devaneionostálgico à auto-especulação psicanalíticae à democracia participativa ".

No que se refere à Educação, acontribuição do pensamento de Rousseau éextremamente importante, seja em textos decaráter claramente educativos, como Emilio,seja em textos filosóficos, como O contratosocial. O papel de Rousseau é tão importantepara a Educação que geralmente ele éconsiderado o "pai" da pedagogiacontemporânea. Descrito muitas vezes comoalguém perturbado e que ouvia vozes,Rousseau sintetiza a ambigüidade e odinamismo que são característicos dopensamento moderno, sobretudo no que serefere à Educação. O filósofo genebrino operauma verdadeira revolução pedagógica aocolocar no centro da sua teorização a criança,e ao opor-se a todas as idéias educativasvigentes. Encontram-se presentes emRousseau duas questões caras ao pensamento

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Maria Crísfína Palma Mungíolí

moderno: o indivíduo como elemento centrale catalisador para o qual devem afluir asatenções da sociedade (como se prescreve emEmílio) e o ser social que deve seguir normaspara que a vivência em sociedade seja possívele cuja socialização é regulada pelo Estado(como é prescrito em O Contrato social). Sãoesses os dois motores que regularão ascorrentes pedagógicas que ganharão corpo noperíodo moderno. Embora esses modelospossam parecer conflitantes, uma análise maisprofunda permitirá compreender os caminhosalternativos e complementares de que seconstituem.

Tal qual tudo que ocorre naModernidade, o pensamento de Rousseausobre a Educação é multifacetado e aberto adiversas formas de análise e compreensão. Seulegado para a Educação tem sido analisadonos últimos tempos como dois modeloseducativos bem diferenciados entre si e, àsvezes, até mesmo opostos. O primeiro temcomo base as prescrições feitas em Emilio.Trata-se de um modelo de educação natural elibertária que privilegia a formação do homem.Já o segundo modelo é construído sobre asbases de uma educação social e política,desenvolvida pelo Estado e ligada mais aoprincípio da conformação social do que ao daliberdade. Essa dicotomia marca de formaindelével todo pensamento pedagógicocontemporâneo: privilegiar a formação doindivíduo ou a conformação deste ao planosocial que o envolve. São questões até hojeinsolúveis como tantas outras postas emdestaque pelo pensamento moderno.

Dessa forma, a oposição, ou ainda, apossibilidade de ser duas ou mais coisas aomesmo tempo são características básicas efundadoras da mentalidade moderna e, porconseguinte, do ser humano moderno. Assim,o homem moderno guia-se pelo ideal deliberdade, mas ao mesmo tempo deve seconformar às regras sociais. "( ...) Trata-se deuma antinomia, de uma oposiçãofundamental que marca a história daMo dernidade, faz dela um processodramático e inconcluso, dilacerado e

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dinâmico em seu próprio interior, e,portanto,problemático e aberto". (Cambi 1999: 200)

Em termos gerais, a educação naModernidade caracteriza-se pela laicização doensino, pela universalização do acesso àeducação (tarefa ainda inconclusa em paísesem desenvolvimento), pela criação de sistemasnacionais de educação controlados pelosgovernos, por controles governamentaisreferentes à avaliação dos alunos eprofessores, pela defesa de princípios quepretendem salvaguardar a individualidade e aigualdade entre seus alunos e, ao mesmotempo, proteger o grupo social e promover aeducação de modo que os educandos seamoldem à sociedade, aos processos e aosditames determinados pela sociedade, demaneira a que prossigam o caminho daHumanidade em direção ao "progresso". Alémdisso, deve-se ainda destacar que a escola tem-se constituído ao longo dos séculos numa dasprincipais instâncias reguladoras das relaçõessociais e da manutenção do status quo e defornecimento de mão-de-obra preparada edócil para as diversas funções que devem serpreenchidas dentro da indústria, do comércioe do serviço público. Faz parte dessemovimento a constituição de programas ecurrículos que visavam (e visam) à formaçãoprofissional.

Mais recentemente, com oenfraquecimento do Estado-nação e oformidável fortalecimento das corporações,ocorrido principalmente após a II GuerraMundial, pode-se perceber nas políticasgovernamentais destinadas à Educação umamudança bastante acentuada no que dizrespeito à formação educacional de grandescontingentes populacionais. Em paíseseuropeus centrais como França, Bélgica eInglaterra, cujos problemas educacionais sãode pequena magnitude (se comparados aosdos países em desenvolvimento), vozesinflamadas preocupadas com os rumos que aGlobalização tem imposto aos sistemaseducacionais nacionais têm se levantado ealertado a população, por meio de publicaçõese debates, sobre os perigos que rondam a

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Educação. Perigos como rebaixamento daqualidade de ensino (em todos os níveis)",baixos investimentos em educação,desregulamentação, maior atenção à educaçãobásica', O investimento em educação básicase sustenta na estrutura econômica e não nahumanitária (como melhores condições devida)".

No Brasil, o discurso sobre maioresdotações financeiras para a Educação Básicaem detrimento dos recursos destinados aoEnsino Superior tem sido freqüente e forte.Em nossa opinião, é preciso cautela comrelação a esse tipo de solução. Não somoscontra a idéia de que a educação básica mereçaatendimento prioritário por parte do governo,porém nos soa como uma espécie de canto desereias o discurso aparentemente "social eigualitário" de empresários sobre anecessidade de se deixar o nível superior acargo da iniciativa privada para que o governopossa se ocupar com mais atenção dasnecessidades básicas de educação da maioriada população. São inúmeros os artigospublicados "displicentemente" na grandeimprensa abordando as "vantagens" de ogoverno federal investir menos no nívelsupenor.

Os planos nacionais de reformulaçãoda educação, tanto dos países desenvolvidos 7

quanto os dos países em desenvolvimento,dizem praticamente as mesmas coisas comrelação à adaptação dos currículos àsnecessidades das empresas, à participação dafamília (principalmente financeira ou por meiode serviços); ao aprimoramento de testes quecomprovem os níveis de aprendizagem, bemcomo que controlem os saberes e os fazeresdocentes. Pode-se perceber nesse "pacote"uma série de implicações que reafirmam a idéiade preparação do aluno para o mundo dotrabalho e não para a vida. Porém, a principalvítima dessa forma de pensar e agir é a escola(e os educadores), uma vez que ela é atingidanaquilo que tinha de mais utópico: na crençana possibilidade de propagar o conhecimentoindependentemente de qualquer conotação ena possibilidade de promover a mobilidade e

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a justiça social."As tentativas de simplificar currículos

e de facilitar a concessão de diplomas que paranada servem ou a freqüência a cursos que nadaacrescentam de significativo à formação doindivíduo são vistas, por educadorespreocupados com os rumos da educação nocenário da globalização, como formas de fazercom que a escola participe de maneira clarada formação de uma mão-de-obra menosqualificada e mais subserviente aos ditamesdo mercado. É dentro desse contexto que sãopropostos cursos superiores de curta duração(dois anos), cujos programas contêm somentedisciplinas específicas e que prometem aoegresso uma rápida e "exitosa" inserção no"competitivo" mercado de trabalho. Taiscursos são uma resposta imediata às demandasdo mercado de trabalho.

Numa perspectiva futura de mercado,talvez até esses cursos contenham informações"demais" para os tipos de postos de trabalhoque serão abertos nos próximos anos, poishaverá um crescimento explosivo dos postosde trabalho que requerem pouca qualificação.Pesquisas realizadas nos Estados Unidos ecitadas por Hirrt (2001) dão conta de que osempregos que mais crescerão (nos próximosvinte anos) são os de faxineiros,acompanhantes, vendedores, caixas e garçons.O único emprego com algum componentetecnológico, o de mecânico, aparece emvigésimo (e último) lugar em tais pesquisas.Embora seja quase um lugar-comum seafirmar que os postos de trabalho ocupadospor engenheiros e por profissionais ligados àstecnologias da informação e da comunicaçãosofrerão um crescimento vertiginoso, isso nãoacontecerá, pois as tecnologias de pontademandam cada vez menos especialistas. Ocrescimento dessas profissões deverá ser altoem porcentagem, mas não em quantidade.Trata-se, assim, de um discurso que justificaa busca de uma formação cada vez maiscomplexa (em quantidade de certificados,diplomas) por um número cada vez maior dejovens e adultos, mas que, na verdade, mascaraalguns outros fundamentos caros ao

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Maria Cristina Palma Mungioli

capitalismo (excesso de mão-de-obra gerabaixa salarial; além disso, a indústria dediplomas propicia a criação e expansão deempresas ligadas à Educação). É dentro dessecontexto que temos visto surgir, nosclassificados de empregos de jornais, aexigência de nível universitário para os postosde trabalho cujos ocupantes não necessitariamdessa formação (por exemplo, para o devendedor de eletrodomésticos).

Dessa forma, percebemos que osistema escolar vem-se adaptando de maneirarápida e "coerente" às exigências do mercadode trabalho. Hirrt (2001) afirma que na Europajá se assiste a uma demanda menor por cursosde nível superior, mesmo em países em queesses cursos são gratuitos. Esse fato já podeser visto como uma resposta da sociedade aodesemprego que atinge a camada dapopulação detentora de diplomas superiores.Um economista, alinhado com a perspectivade que o mercado deve regular tudo, talvezdissesse: viram como o mercado domesticoua demanda!

Outro aspecto importante que se deveassinalar, com respeito a essa "regulaçãosalutar" imposta pelo mercado, é a questãodo discurso que justifica o sucesso de algunse o insucesso de muitos: o mérito, a dedicação.Enfim, a individualidade levada a extremos eque justifica todos os tipos de injustiça social,pois desse ponto de vista as pessoas obtêmsucesso por méritos próprios (quase por "domdivino", ultimamente neodarwinistas falam atéem características transmitidas pelo DNA) eas que não obtêm não o mereceram (poisforam incapazes ou preguiçosas).

Por meio desses discursos, o fracassoescolar e profissional desloca-se assim daesfera social para a esfera privada, individual.É esse individualismo, associado ao que seconvencionou chamar de meritocracia, quejustifica a falta de apoio que as pessoas quelutam por melhores condições para alunos dasescolas públicas nos Estados Unidos vêmenfrentando". Quem pode pagar ou escolheruma escola pública melhor (mesmo quedistante) não se importa com o que acontece

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com as escolas públicas em geral (vítimas depolíticas educacionais baseadas nos cortes deverbas). O pensamento que justifica essasituação é o seguinte: "se eu posso pagar umaescola melhor para meu filho ou levá-lo a umaescola pública melhor, ele terá maioresoportunidades de sucesso, principalmente sehouver menos concorrentes; portanto, não mepreocupo com o problema dos poucosrecursos alocados para a educação pública".Vemos aqui a emergência exacerbada de doisdos fatores fundadores da Modernidade: aliberdade e a individualidade.

No Brasil, tem-se vinculado fortementeas mudanças dos programas curriculares, dosmodelos de avaliação e dos próprios fins daeducação à ingerência de organismosinternacionais nos assuntos educacionaisnacionais. Aqui, como em outros países emdesenvolvimento, essa intervenção se processade forma bastante clara quando a aprovaçãode empréstimos fica condicionada a"sugestões" de mudanças estruturais nosistema de ensino; o Banco Mundial arrogapara si o papel de principal conselheiro dospaíses que recebem ajuda financeira". Porém,o modelo educacional proposto pelo bancobaseia-se, sobretudo, em conceitoseconômicos dificilmente adaptáveis à realidadeeducacional e a suas peculiaridades. Slogansempresariais!' e econômicos de fácilassimilação por grande parte da populaçãocomeçam a fazer parte do vocabuláriopedagógico sem que os professores se dêemconta de suas implicações conjunturais eestruturais. Assim é que expressões como"flexibilização", "qualidade total", "aprender aaprender" (e até mesmo "desregulamentação")passam a fazer parte de inúmeras publicaçõeseducacionais que transformam o mercadoeditorial dedicado à pedagogia num imensofilão financeiro, mas que, na realidade, poucocontribuem para a melhoria da qualidade deensino, uma vez que assentam sobre teorias eprocedimentos alheios ao processoeducacional.

As duas frases de Rousseau queescolhemos como epígrafe para este texto sãobem a medida da antinomia presente nopensamento moderno, pois grande parte daaceitação desse estado de coisasaparentemente contraditório encontra suporteem dois dos eixos fundadores da mentalidadedo homem moderno: a liberdade individual ea sua conformação ao contrato socialexistente. Nossa sociedade baseia-se emdireitos e deveres individuais e sociais que,em grande medida, são influenciados e atémesmo definidos pelo sistema de produçãoque se tornou civilizatório e que os viu nascere crescer: o Capitalismo".

Diante do quadro aqui traçado quedemonstra, em relação à Educação, a força ea voracidade da mais nova filha desse sistema,a Globalização, é importante que educadorese pessoas interessadas na qualidade daeducação estejam atentas às manobras feitaspelos representantes do status quo no sentidode rebaixar (ainda mais) a qualidade do ensino,bem como de relegar o ensino ao status desimples mercadoria e, principalmente, decontinuar tratando a educação como formade se conseguir mais valor agregado. Para selutar contra essa situação, é necessário queos educadores se manifestem claramente a esserespeito e exijam dos governos umposicionamento sério com relação às"reformas necessárias" para se adequar "ànova ordem mundial". Além disso, os cursosde formação de professores devem tambémfazer seu papel no que diz respeito a tentardesvendar alguns conceitos e algumas práticasaparentemente inocentes usadas' comfrnalidades pedagógicas, mas que dissimulamuma expropriação ainda maior dos bensculturais de grande parte da população.Certamente, sabemos que os Estados poucopodem diante do poderio das corporações,porém sempre haverá uma certa negociaçãoentre os poderosos, pelo menos é o queesperamos.

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NOTAS

1 Emilio apud Franco CAMBI - História daPedagogia, p. 352.

2 Citado por Gilda Naécia Maciel Barros, inRousseau e a questão da cidadania.

3 A sigla OCDE refere-se à Organização deCooperação e de DesenvolvimentoEconômicos. A entidade agrupa trinta paísesmembros, todos pratic~ntes da democraciae da economia de mercado. Conforme sitehttp://www.oecd.org/.Acessoem12.11.04.(tradução nossa)

4 Cf. Dany- Robert DUFOUR. La fabrique del'enfant 'post-moderne' - Malaise dansI'éducation, Le Monde Diplomatique, novo2001, p. 10-1I.

S Cf. Rosa Maria Torres. Melhorar a qualidadeda educação básica? As estratégias do BancoMundial (ln: OBanco Mundial e aspolíticaseducacionais, p. 131-132).

6 Cf. FISCHMAN, Gustavo. Repensando adocência: jogando com o bom o mau e oambíguo. In: Silva - Luiz H. da (org.). Aescola cidadã no contexto da globalização.

7 Cf. Stephen J. BALL. Cidadania Global,consumo e política Educacional. In: SILVA,Luiz Heron da (org.). A escola cidadã nocontexto da globalização, p. 126.

8 Cf. Ricardo Petrella. L' enseignement pris emotage - Cinq piéges tendus à I'éducation.Le monde diplomatique. Paris, out. 2000.

9 Cf. Peter McLaren: Traumas do capital:pedagogia, política e práxis no mercadoglobal. In: Silva, Luiz Heron da (org.).Escola cidadã no contexto da globalização.

10 Cf. José Luis Coraggio, Propostas do BancoMundial para a educação: sentido oculto ouproblemas de concepção? In O BancoMundial e as políticas educacionais, p. 75.

11 Stephen J. BALL. Cidadania global,consumo e política educacional. In: SILVA,Luiz Heron (org.). A escola cidadã nocontexto da globalização, p. 126. "Naverdade, o documento da União Européiasobre educação e treinamento, Towards thelearning society (Union, 1995), anuncia "ofim da discussão sobre princípios

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educacionais" (p.22). Conceitos como "asociedade de aprendizagem ", "economiabaseada no conhecimento ", etc., sãopotentes slogans de política pública nointerior desse aparente consenso. Elessimbolizam a crescente colonização dapolítica educacional pelos imperativos daeconomia. "

12 Octavio lanni, A Era do Globalismo, p. 56-57: "( ...) o capitalismo, visto como processocivilizatório, invade, conquista, assimila,desafia, recobre, convive, acomoda-se oumesmo recria as mais diversas formas de vidae trabalho, em todos os cantos do mundo.Um processo histórico de amplasproporções que já se desenvolvidairregularmente com o mercantilismo,colonialismo e imperialismo (sempreatravessados pela acumulação originária)alcança intensidade e generalidadeexcepcionais no limiar do século XXI".

REFERÊNCIASBILIOGRÁFIC/'l.~'

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Para contato com a autora:[email protected]

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