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115 115 115 115 115 THIAGO MOTA * NIETZSCHE IETZSCHE IETZSCHE IETZSCHE IETZSCHE, F , F , F , F , FOUCA OUCA OUCA OUCA OUCAUL UL UL UL ULT E O SENTIDO SENTIDO SENTIDO SENTIDO SENTIDO DA G G G G GENE ENE ENE ENE ENEAL AL AL AL ALOGIA OGIA OGIA OGIA OGIA * Thiago Mota é mestre em Filosofia pela UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ (UFC), UNIVERSITÉ DE TOULOUSE II - LE MIRAIL (França), UNIVERSITÉ CATHOLIQUE DE LOUVAIN (Bélgica), RUHR-UNIVERSITÄT BOCHUM, (Alemanha), e doutorando em Educação pela UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ (UFC). [email protected] 1 Quanto a isso, Veyne, numa nota de rodapé, dá a boa chave de leitura: “Foucault disse o quanto Heidegger contou para ele e evocou as suas leituras do autor em DE, IV, p. 703; mas, na minha modesta opinião, de Heidegger não terá lido nada além de Vom Wesen der Wahrheit e o grande livro sobre Nietzsche – que importou para ele, já que esse livro teve como efeito paradoxal torná-lo nietzschiano e não heideggeriano.”. VEYNE, Paul. Foucault: o pensamento, a pessoa. Trad. L. Lima. Lisboa: Texto & Grafia, 2009, p. 9. 2 Cf. MARTON, Scarlett. A terceira margem da interpretação. In: Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 3.ed. São Paulo: Discurso Editorial, Ijuí: Editora Unijuí, 2009. A associação entre os “personagens conceituais” em questão é conhecida em todos os idiomas falados na academia moderna em todo o mundo. Foucault declarava filiação a Nietzsche – aliás, recusando a ascendência de Heidegger 1 . Scarlett Marton dizia que Foucault chegava a constituir uma espécie de modelo de leitura de Nietzsche 2 , o da “caixa de ferramentas”, criticando Foucault, como ocorrera na França, por sua apropriação pouco “rigorosa”, pouco “exegética” de Nietzsche. A verdade é que nas mãos

Nietzsche, Foucault e o sentido da genealogia

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THIAGO MOTA *

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* Thiago Mota é mestre em Filosofia pela UNIVERSIDADE FEDERAL

DO CEARÁ (UFC), UNIVERSITÉ DE TOULOUSE II - LE MIRAIL (França),UNIVERSITÉ CATHOLIQUE DE LOUVAIN (Bélgica), RUHR-UNIVERSITÄT

BOCHUM, (Alemanha), e doutorando em Educação pelaUNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ (UFC). [email protected]

1 Quanto a isso, Veyne, numa nota de rodapé, dá a boa chave deleitura: “Foucault disse o quanto Heidegger contou para ele e evocouas suas leituras do autor em DE, IV, p. 703; mas, na minha modestaopinião, de Heidegger não terá lido nada além de Vom Wesen derWahrheit e o grande livro sobre Nietzsche – que importou para ele,já que esse livro teve como efeito paradoxal torná-lo nietzschiano enão heideggeriano.”. VEYNE, Paul. Foucault: o pensamento, a pessoa.Trad. L. Lima. Lisboa: Texto & Grafia, 2009, p. 9.

2 Cf. MARTON, Scarlett. A terceira margem da interpretação.In: Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 3.ed.São Paulo: Discurso Editorial, Ijuí: Editora Unijuí, 2009.

A associação entre os “personagens conceituais” em questão é conhecida em todos os idiomas falados na academia moderna em todo o

mundo. Foucault declarava filiação a Nietzsche – aliás,recusando a ascendência de Heidegger 1. ScarlettMarton dizia que Foucault chegava a constituir umaespécie de modelo de leitura de Nietzsche 2, o da “caixade ferramentas”, criticando Foucault, como ocorrerana França, por sua apropriação pouco “rigorosa”, pouco“exegética” de Nietzsche. A verdade é que nas mãos

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NIETZSCHE SCHOPENHAUER

GÊNESE E SIGNIFICADO DA GENEALOGIA

de Foucault o martelo de Nietzsche parece funcionarmuito bem, se sofisticar, adquirir instrumentos maiscompletos, mais complexos. Há certa atmosferanietzschiana por toda parte em Foucault, como se eleprecisasse do “pai Nietzsche” como de um profeta dopróprio foucaldismo. Nietzschiano sim, exegeta não.Eu não gostaria, portanto, de entrar na discussãoacerca do “acerto” da leitura foucaldiana de Nietzsche,de se Foucault leu Nietzsche acertadamente ou não,mas gostaria de insistir em determinado Nietzscheque vem à tona em alguns textos de Foucault. Se esteseria este o “Nietzsche certo”, também isso não meimporta.

O que me parece mais interessante é que o queFocault diz de Nietzsche, para dele se apropriar emvários momentos, em diferentes usos, diz-nos muitohoje em dia ainda acerca do que é fazer filosofia, ousimplesmente pensar – esta tarefa que a maioria denós se julga capaz de realizar ao ingressar em umaformação filosófica – pensar acerca do modo como,enquanto “filósofos profissionais”, nos engajamosinevitavelmente naquilo mesmo que fazemos e nomundo em que vivemos. Procedimento reflexivo,pensar a questão do engajamento a partir de Nietzschee Foucault: isso daria um tema de tese. Sem grandespretensões, vou reconstruir um pouco do Nietzsche queFoucault nos oferece e isso para chegar a certa idéiado intelectual, engajado, queira ou não, nas práticassociais. Tentarei, portanto, tomar consciência de algoque está implicado no fato de que nos engajamos, nósmesmos, hoje, enquanto agentes nômades,

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THIAGO MOTA

desestabilizados, multifacetados que somos, queiramosou não.

O percurso da exposição é o seguinte: (1)Interpretação, poder e perspectivas, que trata deNietzsche e Marx como instauradores do que Foucaultchama de hermenêutica moderna, na medida em quepara eles interpretar é uma tarefa constitutivamenteinfinita; (2) A suposição de base arqueológica dagenealogia, em que se defende a tese de que não háruptura, mas continuidade entre o Foucault arqueólogoe o Foucault genealogista, pois o ponto crucial daarqueologia está na inclusão do poder entre ascondições efetivas do conhecimento; e, finalmente, (3)Caracterização da genealogia, onde tento umacaracterização geral do que Foucault, partindo deNietzsche, entende por método genealógico, que comoveremos é mais que uma metodologia, uma tática deação social e de intervenção política.

INTERPRETAÇÃO, PODER E PERSPECTIVAS: NIETZSCHE E MARX

As entradas são múltiplas. Foucault já falavade Nietzsche na História da loucura. Uma coisa deNietzsche permite distinguir o louco do gênio: a obra.A verdade da desrazão que se exprime na poesia, nafilosofia de Nietzsche é verdadeira. O louco volta aser levado a sério, como o fora na Idade clássica. Opapel dessa seriedade na leitura do louco filósofogenial alemão que se lia às escondidas na França dopós-guerra é devido em muito a Foucault, que editoue prefaciou Nietzsche. Era o momento de uma“desnazificação” de Nietzsche na França, daredescoberta da Wille zur Macht (vontade de poder)

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como volonté de puissance, puissance que já não tinhanada a ver com poder. Para se desligar do engodonazista, Macht não era concebido como pouvoir(poder). Era entendido como puissance (potência).Nietzsche era, então, o filósofo da “vontade depotência”. Creio que essa pequena confusão acabouacarretando uma estetização pasteurizante deNietzsche: Nietzsche era tratado como um autorapolítico.

Sem entrar no mérito da discussão sobre a noçãode “potência”, parece-me que para Foucault essa nãoé a boa leitura, pois, para ele, a questão de Nietzschesempre foi a do poder. Indo direto ao ponto, em umaentrevista sobre a prisão à Magazine Littéraire, Foucaultresponde o que é feito hoje (em meados dos anos 1970)de Nietzsche:

Hoje fico mudo quando se trata de Nietzsche. Notempo em que era professor, dei freqüentementecursos sobre ele, mas não mais o faria hoje. Se fossepretensioso, daria como título geral ao que faço“genealogia da moral”. Nietzsche é aquele que ofereceucomo alvo essencial, digamos ao discurso filosófico, arelação de poder. Enquanto que para Marx era a relaçãode produção. Nietzsche é o filósofo do poder, masque chegou a pensar o poder sem se fechar no interiorde uma teoria política. A presença de Nietzsche écada vez mais importante. Mas me cansa a atençãoque lhe é dada para fazer sobre ele os mesmoscomentários que se fez ou que se fará sobre Hegel ouMallarmé. Quanto a mim, os autores que gosto, eu osutilizo. O único sinal de reconhecimento que se podeter para com um pensamento como o de Nietzsche, é

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precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger,gritar. Que os comentadores digam se se é ou nãofiel, isto não tem o menor interesse.3

Insistindo na relação entre Marx e Nietzsche,entre relações de produção e relações de poder, pode-se dizer que hoje em dia na França vê-se construir todauma leitura “marxista” de Foucault, uma entrada senão anti­-nietzschiana, em todo caso não-nietzschiana,que enfatizaria o Foucault crítico do capitalismo.Grande parte do novo fôlego que a recherche sobreFoucault atualmente recebe se deve se deve a umareabertura do debate sobre Marx no interior sobreFoucault 4.

Com efeito, ler Foucault pelo prisma de Marxao invés de lê-lo de acordo com o cânone nietzschianoseria uma opção para fugir do foucaldismo. Digo“foucaldismo” no sentido de um discurso que tende ase tornar uma ideologia hegemônica na academia efora dela, de maneira transversal, da área de saúdemental ou à de criminologia, da educação à ciênciadas mídias, um discurso que é disseminado de formaacrítica em manuais de leitura “facilitada”. Falar emFoucault não é hoje uma excentricidade, umacademicismo. Longe disso, Foucault se tornou malgrélui, um argumento de autoridade, um daqueles que

3 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. R. Machado.Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 81.

4 Ver a esse respeito o trabalho do Group de recherche matérialistes(GRM): <http://www.europhilosophie.eu/recherche/spip.php?rubrique182>, ou o livro de LEGRAND, Stéphane.Les normes chez Foucault. Paris: PUF, 2007.

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pode ser mobilizado para decidir, ou abreviar umadiscussão. Há, com efeito, um déficit de crítica naapropriação que se faz do discurso de Foucault hojeem dia, o que autoriza falar em “foucaldismo” comouma ideologia.

Entretanto, mais interessante que colocarNietzsche entre parênteses, seria colocar Nietzsche eMarx em relação, fazer deles uma máquina dedesconstrução das relações de poder e de produção,de relações de produção de poder ao mesmo tempo.Digo isso, me interrogando o que seria uma críticafoucaldiana do capitalismo, senão uma crítica marxistae nietzschiana do capitalismo. A passagem citadasugere uma dicotomia entre poder e produção,Nietzsche e Marx, que certamente não era o queFoucault tinha em mente. Fazer ranger Nietzschelendo-o com Marx, fazer ranger Marx lendo-o comNietzsche, não aceitar a facilidade da ideologia, dodiscurso quando se torna ideologia e pára de refletir:não seria este o bom caminho para fugir do“foucaldismo”? Mais do que isso, não seria esta umaforma de fazer genealogia, entendida como tática decombate, muito mais do que como epistemologia, deuma política da resistência? Genealogia não seria, comNietzsche e com Marx, uma análise fina das relações depoder e produção tendo em vista compreender o sistemapara criar bloqueios locais mais de efeitos globais?

Uma das entradas, um dos Nietzsches deFoucault, é certamente o que se encontra em um textoque surge relativamente cedo, o da mesa redondaNietzsche, Freud, Marx no Colloque de Royaumont de

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julho de 1964 5. O texto é, na verdade, “pré-genealógico”, da época em que Foucault ainda escreviaAs palavras e as coisas (1966). Não se trata ali,entretanto, de genealogia, mas de interpretação.Gostaria de retomar um pouco essa discussão, fugindodo enfrentamento imediato com a temática do nossoencontro, que é a genealogia para tomar, na verdade,um atalho. Foucault afirma que Nietzsche e Marx são,ao lado de Freud, os fundadores da “hermenêuticamoderna”, os “mestres da suspeita”, que teriam,segundo Foucault, operado feridas narcísicas nohomem moderno ainda mais profundas que aquelasque Freud elenca (Copérnico, Darwin e, ele mesmo,Freud). Junto a Nietzsche e Marx, Freud teria, paraFoucault, operado a verdadeira ruptura entre o clássicoe o moderno no que diz respeito à interpretação,definindo o horizonte em que nós mesmos atualmente,ainda modernos, sempre modernos, interpretamos. Elesteriam modificado radicalmente o espaço dasignificação ou, como diz Foucault, “o espaço derepartição no qual os signos podem ser signos” (Dits etécrits I, p. 596). Em que medida? Foucault nos faz verNietzsche, Freud e Marx como – a palavra não é deFoucault, mas cabe – “perspectivistas”. Há algo quedistingue radicalmente o modo como interpretamoshoje daquele que se fazia na Renascença, é o fato deque interpretar tornou-se, embora já o fosseinconscientemente entre os clássicos, uma tarefainfinita, constitutivamente inacabada. Em uma palavra,

5 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I. Paris : Gallimard, 2001,pp. 592-607.

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a infinitude da interpretação é o que define o horizontehermenêutico moderno. Isso porque, diz Foucault,

simplesmente não há nada a interpretar. Não hánada de absolutamente primeiro a interpretar, poisno fundo, tudo já é interpretação, cada signo é nelemesmo não a coisa que se oferece à interpretação,mas interpretação de outros signos 6.

Raramente encontramos um Foucault maisclaramente perspectivista. Não há que distinguir entre uminterpretandum e um interpretans, ou seja, entre a “coisa”a ser interpretada e a própria interpretação, tudo se põena superfície do discurso: eis a suposição de base anti-fundacionista das pesquisas arqueológicas. O arqueólogosabe que, por mais que ele cave, ele nunca vai chegar ao“centro da terra”, que não tem o menor interesse em ir tãorápido assim ao fundo, que é preciso ficar no palimpsesto.Foucault retoma as críticas de Nietzsche à “profundidade”,mostrando que o mais profundo é sempre apenas uma“dobra”, uma “ruga” (pli) da superfície. Penso que é claroque estamos falando aqui nos mesmos termos em queNietzsche falava de perspectivismo 7. Estamos também noterreno do que Deleuze e Guattari chamaram de rizomático,da escrita a “n-1”, do princípio da supressão do princípio,de uma necessária “repluralização” de tudo aqui que chegaa ser monolítico 8.6 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I. Paris: Gallimard, 2001, pp. 599.7 MOTA, Thiago. Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo.

Cadernos Nietzsche. São Paulo, n. 27, 2010, pp. 213-237.8 Cf. DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo

e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. A. Guerra e C. Costa. Rio deJaneiro: Ed. 34, 1995, p. 14: “Subtrair o único damultiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.”

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É desnecessário fazer a defesa da idéia de queNietzsche seja perspectivista. O que curioso é a sugestãode que Marx também o seja. A Crítica da economiapolítica, o Capital, a Ideologia alemã são de fatoperspectivistas na medida em que se trata sempre, nahistória das relações de produção, para Marx, não danatureza enquanto tal, mas de certa interpretação.Trata-se da crítica do discurso burguês que se serve deum mecanismo ideológico quando naturaliza o que éhistórico, reificando relações de produção que sãoconstitutivamente interpretáveis ao infinito.

É bem verdade que esse ponto não é bastantedesenvolvido na fala de Foucault e que ele é discutível,tanto que retorna na questão posta por Vattimo nodebate (Dits et écrtis I, p. 605): até que ponto nãohaveria em Marx um ponto de chegada, uma infra-estrutura, uma instância de determinação última –justamente a esfera das relações de produção, daeconomia. O que vem ao debate é uma crítica que jáWeber fazia ao que chamava de “princípio dacarruagem” em Marx 9: o processo de desmascaramentoda ideologia, num certo sentido, sua denúncia pelacrítica, cessa no momento em que se deixa de fazerideologia e se passa a fazer ciência. Marx não critica asi mesmo como critica as ideologias. O socialismocientífico se opõe ao utópico em Marx e Engels, assimcomo o discurso proletário se opõe ao discurso burguês:como o verdadeiro e o falso, a ciência e a ideologia.

9 Cf. LÖWY, Michel. As aventuras de Karl Marx contra o Barão deMünchhausen: marxismo e positivismo na sociologia doconhecimento. 7.ed. São Paulo: Cortez, 2000, p. 97 e ss.

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Nós sabemos o quanto saber e poder estão por todaparte atrelados para crer que possamos opor ideologiae ciência de modo tão simples. Nós sabemos tambémque entre as condições de produção de nossos saberesestão o inacabamento e a infinitude da tarefa dainterpretação, que, portanto, jamais estaremos em possede verdades não-interpretativas, que num certo sentidoé tudo ideologia, ou se preferirmos, interpretação,perspectiva. O stalinismo, o leninismo-marxismoenquanto ideologia oficial do Estado totalitário, nosensinou a ver como ciência se torna ideologia facilmente,e quão potentes são tais ideologias.

Creio que é precisamente neste ponto que épossível e preciso fazer ranger Marx, mobilizando-ono âmbito de uma crítica micropolítica das ideologias.Não é preciso, em todo caso, que a ortodoxia marxistaaceite que Marx é perspectivista, para que nós outilizemos. E Foucault parece tê-lo utilizado nessepreciso sentido.

A SUPOSIÇÃO DE BASE ARQUEOLÓGICA DA GENEALOGIA

Isso posto, gostaria de tentar encarar mais defrente a questão do colóquio, que é a da “gênese esignificação da genealogia”. Gostaria, entretanto, de evitara entrada digamos mais óbvia, que seria falar de Nietzsche,a genealogia, a história. Vou falar de outro texto.

Mas antes disso é preciso retomar a questão dapassagem da arqueologia à genealogia em Foucault.Vontade de poder se iguala a vontade de saber, podere saber se tornam um binômio, passamos a falar depoder-saber. Isso vai se evidenciando cada vez maisem Foucault. Não se trata nunca de abandonar o saber

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como objeto, mas de compreender como saber e podersempre caminham juntos, se trata, portanto, de enfatizaro poder sem perder de vista, ao contrário, paracompreender o saber. Por aí se efetua o que seconvencionou chamar, na literatura sobre Foucault, uma“virada”, a passagem das pesquisas arqueológicas (sobreo saber) para as pesquisas genealógicas (sobre o poder).Com isso, a referência a Nietzsche, que se encontrava nomais das vezes implícita, torna-se cada vez mais explícita.Se quiséssemos falar em um “marco”, o momento emque Foucault se torna genealógico, talvez pudéssemossituá-lo na Ordem do discurso (1973). Esse é um objetode discussão favorito do foucaldismo, tornou-se um“lugar comum”. E, precisamente por isso, diria que setrata do modo errado de colocar a questão, ou ao menosde um modo que não é o mais interessante.

Para sair um pouco da superfície, para mostrarmais uma “dobra”, mais uma “ruga” da questão dagenealogia, vou voltar à primeira conferência sobre Averdade e as formas jurídicas, pronunciada na PUC-Rioem maio de 1973, texto que repõe a metodologia emquestão, ainda que no âmbito de uma investigação quejá é genealógica, a discussão metodológica que seapresenta aí recorrendo justamente a Nietzsche.Avancemos ainda que esse texto é extremamentefavorável para ver mais de perto a crítica de Foucaultao capitalismo, às relações de poder imbricadas nosmodos de produção, portanto, a uma vinculação entreMarx e Nietzsche em Foucault.

A verdade e as formas jurídicas se situa na supostaviragem, de que falávamos, do Foucault arqueólogo

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para o Foucault genealógico. A pesquisa arqueológicanão estava errada, mas se mantinha aferrada a um“epistemologismo” que ora cabia justamente destruir.Não que os epistemólogos devam perder seusempregos, mas chega um momento em que se tem de“aplicar o método”. Deixar de fazer arqueologia parafazer genealogia significa que Foucault não tem maiscontas a prestar com os kantianos. Isso está certo,entretanto é importante não fazer disso uma dicotomia.Que a suposta dicotomia em que arqueologia egenealogia se opõem seja uma falácia, é algo que seprecisa repetir. Veremos que o Nietzsche que Foucaultpõe em jogo nessa conferência estava implícito naArqueologia do saber, ainda que este texto soe maiscomo o Discurso do método do que como a Genealogiada moral. Se na Arqueologia o poder surge como traçoapriorístico histórico da produção dos discursos, naOrdem do discurso a centralidade do poder se colocade modo curto e grosso: “O discurso não ésimplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemasde dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, opoder do qual nos queremos apoderar.”10

A associação entre discurso e poder, discursoenquanto poder, vontade de poder enquanto vontadede saber: eis a suposição de base de uma análisearqueológica. E Foucault nos adverte que não se trata,como As palavras e as coisas poderia deixar a entender,de um “historicismo transcendental”. Dentre ascondições de possibilidade do conhecimento, no plano

10 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. L. Sampaio.5.ed. São Paulo: Loyola, 1999, p. 10.

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transcendental portanto, encontra-se o poder, mas issonão quer dizer que o poder seja “transcendental”.Podemos colocar as coisas dessa forma: não que o poderse transcendentalize, mas que o transcendental deixa deser transcendental sem que deixe de haver umcondicionamento necessário à produção do saber. Essecondicionamento inclui relações de poder, luta,dominação, apoderamento. Nesta interpretação, o temado a priori histórico torna-se mais nietzschiano do quekantiano, é já genealógico, no sentido de que a questãodeixa de ser a da validação, para ser a da gênese do saber.Questão genética portanto, ou, se vocês preferirem,genealógica. Dever-se-ia falar, então, se este não fosseum nome muito feio, de arqueogenealogia, que significasimplesmente deixar de se auto-espelhar numa obsessãofundacional, para ver como são produzidos os resultados,como, queríamos ou não, interferimos neles. Nenhumacontradição, nenhuma auto-refutação, mas, sobretudo,nenhuma mudança de opinião ou de caminho. Quandose compreende que o cerne da Arqueologia é responder àquestão transcendental das condições de possibilidadedo saber com a articulação de certo conceito de poder,então Nietzsche é muito mais importante para oarqueólogo do que Kant. O arqueólogo não se transformaem genealogista, ele se descobre enquanto tal, ele é naverdade um arqueogenealogista.

CARACTERIZAÇÃO DA GENEALOGIA

A partir dessa suposição de base arqueológica,segundo a qual o poder se inclui entre as condições depossibilidade efetivas do discurso, o métodogenealógico é definido por Foucault, em A verdade e as

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formas jurídicas, como uma história política doconhecimento e do sujeito do conhecimento, como análisehistórica da política da verdade. É o que Foucault chama“modelo de Nietzsche”, cuja caracterização nos permiteentender porque a metodologia que ele passa a empregardeve ser entendida como genealogia.

Com efeito, Foucault diz que do ponto de vistametodológico seria mais justo citar apenas um nome:o de Nietzsche. Nietzsche representa uma dupla rupturacom a tradição da filosofia ocidental, na medida emque ele assume uma crítica radical de todofundacionismo, rompendo seja com a idéia de Deuscomo fundamento (morte de Deus), seja com a idéiade sujeito como fundamento (morte do homem). Emseu Foucault, Deleuze já afirmava que o maisimportante em Nietzsche não era a morte de Deus,mas a morte do homem, a crítica noção de homemenquanto duplo empírico-transcendental. Foucault lêem Nietzsche uma reformulação da teoria do sujeitoque dispensa a unidade do sujeito humano e admiteque há sujeitos, ou que não há o sujeito. Dizer que ohomem está morto significa dizer que o sujeito já nãopode ser entendido como o fundamento, a camadaúltima da realidade, pois não há o sujeito no singular esim sujeitos no plural.

A esse respeito, para mencionar Nietzsche, agenealogia, a história, pode-se dizer que a transparência,a lisura, do sujeito é re-pluralizada, re-estratificada,segundo o procedimento rizomático que Foucault atribuià genealogia, e é substituída por um baile de máscaras.A subjetividade se constitui de várias máscaras e não

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há máscara derradeira. Tudo é jogo de máscaras. Ali ondeparecia haver unidade e continuidade, do ponto de vistagenealógico há heterogeneidade e fragmentação. Nessestermos, a genealogia se torna uma análise histórica dosujeito, do processo pelo qual os sujeitos são fundados erefundados pela história, de processo de assujeitamentoou de sujeição que não admite a preexistência do sujeitodo conhecimento.

Foucault entende que na concepção deNietzsche, o sujeito epistêmico não preexiste à história,em primeiro lugar, porque o conhecimento não tempropriamente uma “origem”, Ursprung, mas é produtode uma “invenção”, Erfindung. No mesmo sentido, aliás,menciona Foucault, Nietzsche considera, contraSchopenhauer, que a religião não possui sua origemnum sentimento metafísico universalmentecompartilhado, mas ela foi inventada em função ouem meio a relações de poder. Ora, se o conhecimentoé uma invenção, então também o sujeito doconhecimento, ou ainda os sujeitos do conhecimentoforam inventados, têm uma história, respondem aoregime de verdade de uma dada época.

Em segundo lugar, o conhecimento deriva deum conflito ou do que podemos chamar de umaagonística pulsional, ou seja, o jogo, o afrontamento, ajunção, a luta e o compromisso entre as pulsões ou osafetos. Foucault colhe da Gaia ciência o exemplo que opermite esclarecer essa agonística pulsional. Noaforismo 333 desta obra, lemos um texto que retomaSpinoza para polemizar. Spinoza opõe intelligere,compreender, a ridere, rir, lugere, deplorar, e detestari,

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GÊNESE E SIGNIFICADO DA GENEALOGIA

detestar, afirmando que só se compreende as coisasquando essas paixões, essas pulsões, esses afetos, orir, o deplorar e o detestar estão apaziguadas. Nietzscheentende que as coisas não se dão dessa maneira, masque é justamente o contrário que se passa, ou seja,compreender é o resultado de certo jogo, de certa luta,de uma agonística entre o rir, o deplorar e o detestar.Na luta, essas afetos chegam a um estado de equilíbrio,a um compromisso precário – jamais a um consenso –a certa correlação de forças, donde resulta acompreensão. Nada de apaziguamento pulsional comoqueria Spinoza, mas antes um estado de guerra, deestabilização momentânea, em que o conhecimentosurge, na bela metáfora proposta por Foucault, como“uma centelha entre duas espadas”.11

Em terceiro lugar, não é apenas entre as pulsões,digamos, no plano da interioridade, que se estabelecemrelações de força. Também a relação entre o homem,enquanto sujeito epistêmico, e o mundo, enquantoobjeto cognitivo, é uma relação de poder. Não é aessência das coisas que vem a lume no processo doconhecimento. Este é antes definido como luta, comodominação, como violência, como apropriação dedeterminada porção da realidade para, sobre ela,exercer poder. A agonística, portanto, se passa tantono plano da interioridade, onde ela assume a formade um conflito entre os afetos, quanto no plano daexterioridade, em que o conhecimento se define comouma relação de poder entre o homem e o mundo.

11 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II. Paris : Gallimard, 2001,p. 1417 : “une éticinelle entre deux épées”.

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THIAGO MOTA

Diga-se de passagem, que essa leitura de Foucaultdeixa ressoar, ainda que eu creia que Foucault não ostinha em mente como precursores, uma tese de Adornoe Horkheimer, que, na Dialética do esclarecimento,estabelecem uma analogia o sujeito e o ditador, entreos objetos e os súditos. Com relação ao conhecimentoenquanto pesquisa de essências, como podemos ler emNietzsche, a genealogia, a história, que a genealogia secaracteriza como anti-essencialista, diz Foucault:

se o genealogista toma o cuidado de ouvir a históriaem vez de crer na metafísica, o que é que eleaprende? Que por trás das coisas há algocompletamente diferente: de forma alguma seusegredo essencial e sem data, mas o segredo de queelas são sem essência, ou que sua essência foiconstruída peça por peça a partir de figuras que lheera estranhas.12

Em suma, a genealogia se caracteriza comométodo anti-fundacionista, que não admite umfundamento último, quer seja Deus, quer seja o sujeito;anti-essencialista, que não admite a existência deessências supra-históricas, mas que considera que asessências são invenções; e agonístico, que compreendeque o conhecimento é produto de relações de força,seja entre as pulsões, seja entre o homem e o mundo.

A essas características, Foucault acrescenta algomuito importante para o percurso que vimos fazendo,pois nos habilita a tratar da questão do engajamento.É que o conhecimento tem, segundo Foucault, um12 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II. Paris : Gallimard, 2001,

p. 1006.

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GÊNESE E SIGNIFICADO DA GENEALOGIA

“caráter perspectivo”13, no sentido de que o olhar queo homem do conhecimento lança ao mundo é sempreum olhar parcial, inacabado, interpretativo, pois oconhecimento é sempre certa relação estratégica naqual nos encontramos. Ora, o caráter perspectivo doconhecimento decorre justamente de seu caráteragonístico, do fato de que há luta e de que oconhecimento é o resultado dessa luta.

É exatamente esse último aspecto, o caráterperspectivo do conhecimento, que o marxismo e acrítica das ideologias em geral não chegam areconhecer. O marxismo, e este é o ponto crucial dacrítica de Foucault, se mantém atrelado à noção deum sujeito epistêmico que seria capaz de conhecer demaneira não-perspectiva, não-estratégica, consciêncianão-alienada que abriria caminho direto para a verdadeao fazer a crítica das ideologias e das condições político-econômicas das quais elas procedem. Foucault entendeque as condições econômicas, políticas, que asideologias, enfim, não são um obstáculo para acompreensão do que se passa no plano cognitivo. Pelocontrario, elas são, em certo sentido, as condições depossibilidade efetivas, o solo no qual se formam ossujeitos, os domínios do conhecimento e os regimesde verdade.

É por essa razão que a genealogia deixa detrabalhar com a noção de ideologia e passa a analisar,do ponto de vista estratégico, as práticas discursivas, odiscurso. A finalidade de tal tipo de pesquisa,

13 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits II. Paris : Gallimard, 2001,p. 1419.

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entretanto, não deve ser entendida apenas como ademonstração do modo como se dão, a partir dosdiscursos, os processos de assujeitamento queconstituem as subjetividades que povoam a história eos regimes de verdade vigentes em cada época, mastambém, e sobretudo, como pode-se praticar umapolítica da resistência que tem em vista promoverbloqueios no sistema para reverter relações de poder.Nesse sentido, a genealogia não é apenas umametodologia, mas uma tática de intervenção política.

A partir do que foi dito, vou retomar, paraconcluir, meu ponto de partida, formulando umaquestão aos foucaldianos. A questão é a seguinte: apolítica da resistência, o bloqueio como forma deintervenção social, é suficiente para uma crítica docapitalismo em tempos de “guerra cambial”? Vimosque mais do simplesmente denunciar a injustiça dasrelações de poder ali mesmo onde elas são maisinaparentes, mais escondidas, mais escamoteadas, porexemplo, no processo cognitivo, a genealogia tem afinalidade de promover bloqueios no sistema. A políticada resistência é uma forma de política do bloqueio,cujo melhor exemplo histórico são ainda as barricadasarmadas pelos estudantes em Paris no maio de 68. Aquestão é: os bloqueios, a resistência, são suficientes?É o bastante bloquear o sistema para queespontaneamente as relações de poder se revertam eprocessos de subjetivação assumam o lugar dosprocessos de assujeitamento? Creio que está aí a grandeingenuidade da política da resistência e do foucaldismoenquanto ideologia acrítica.

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Para superar a tarefa da desconstrução, é precisopensar os meios da construção possível, é preciso passardo bloqueio à transformação. A história nos mostra quetal passagem não se dá espontaneamente após um surtoanárquico da sociedade. A transformação real dascondições político-econômicas em que se estabelecemas relações de poder e de produção em uma dadasociedade, em uma dada época, pressupõe que micro-revoluções sejam seguidas de experimentos micro-institucionais. E estes estão em vias de aflorar em cadauma das fraturas de que se constitui a vida social. Mesmoos estudantes no maio de 68, que se diziam realistaspor quererem o impossível, desenvolveram formas deorganização que os permitia agir coletivamente.Foucault parece cego a um dos aspectos da genealogiaque talvez possa ser remetido a Nietzsche, precisamenteaquele segundo o qual a genealogia é o estudo dascondições de gênese da ação. É por aí que não só se superao niilismo, mas que este adquire sentido: não eraNietzsche quem dizia que a destruição é criativaexatamente na medida em que ela cria as condições,abre o terreno, para que uma nova construção se erga?

Está claro que a questão que se formula aqui éa do engajamento, da forma de intervenção dointelectual no mundo em que ele vive. É verdade queesta questão encontra poucas respostas em Foucault,que praticamente não chegou a teorizar acerca dascondições de gênese da ação e das micro-instituições.É, entretanto, interessante notar como Foucault, devidoao papel de militância que exerceu ao longo de suavida, chegou a participar de experimentos micro-

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institucionais, exemplo patente disto foi suaparticipação na criação do GIP (Groupe d’informationssur les prisons).

Portanto, vou apenas sugerir uma pista depesquisa. A idéia seria fazer o estudo do arquivo doGIP, seus manifestos, estatutos, entrevistas de seusparticipantes na imprensa, os instrumentos de enqueteque eles construíram juntamente com os presos, enfimde suas iniciativas de ação coletiva. É possível emprincípio, ainda que o estudo tenha de ser feito,encontrar nesses documentos o registro de uma açãocoletiva concreta que visava, mais do que simplesmentedenunciar as condições de maus-tratos em que ospresos se encontravam, a transformação dessascondições. Nesses termos, creio, a genealogia poderiaser entendida e praticada também como análisehistórica das condições de gênese da ação.

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N677

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Nietzsche, Schopenhauer: gênese e significado da genealogia/ Gustavo B. N. Costa, José Maria Aruda, Ruy de Carvalho (orgs.). –Fortaleza: EdUECE, 2012.

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