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l " ' 'maglnarlo Revista do NÛcleo lnterdisciplinar do lmaginârio e Memôria - NtME e do Laboratôrio de Estudosdo lmaginârio - LABI lnstituto de Psicologia da Universidade de Sâo Paulo - IP-USP Deslocamenfos ano Xlil . nûmero 14 janeiro a iunho de 2007 |SSN 1413-666x lmaginârio - usp, 2007, vol. 13, n" 14, O deslocamento das cidades, umatradiçâo hispano- americana? O caso de Parangaricutiro (México,1944) Alain Mussef* Introduçâo O deslocamento de uma cidadeinteira pode aparecer como um acontecimento excepcional ligado a circunstâncias muitoparticu- larese dificilmente reprodutiveis. No entanto, contrariamente aos portugueses, que poucoutilizaram essemétodo paraadaptar sua redeurbana às realidades geogrâficas, econômicas ou geopoliticas do mundo brasileirol, os espanhôis instalados na América nâo hesitaram em mudarconstantemente de lugarsuas cidadesquan- do as circunstâncias o exigiam. Apôs seteanosde estudos sobre esse tema, conteipelo menos 160 cidades deslocadas desde o inicio da Conquista espanhola e o fim da época colonial (nos anos 1820), sem contar aquelas que tiveram a mesmasortenos séculos XIX e XX, como San Juan Parangaricutiro no México, Baeza e Pe- lileono Equador, ou Chillan no Chile(MUSSET, 2002).2 A relativa facilidade dos deslocamentos (principalmente duranteo séculoXVI) explica-se em grandeparte porquea aglomeraçâo, recentemente fundada, muitas vezesera apenas um simples bur- go construido com materiais pereciveis. Com efeito, as leis de fun- daçâo promulgadas pela Coroa e sintetizadas nas Nouyellesordon- nances de découverteet de peuplemenf [Novas Ordens de desco- - Nascido em 1959 em Mar- seille, na França Geôgrafo, especialista em América La- tina, planejamento urbano e representaçôes do espaço. Foi aluno da Ecole Normale Supérieure - ENS (Paris). Membro do Groupe de géo- graphie sociale et d'études urbaines e membro honorârio do /nstitut Universitaire de France. 1 Ne..e contexto, a histôria extraordinâria de Mazâgâo, deslocada da costa marroqui- na até a floresta amazônica no século XVlll, aparece como uma exceçâo e um caso extremo (ARAUJO, 1998; VIDAL,2005). 2 Aind" qr" o nûmero de ca- sos seja impressionante, o con-junto nâo pretende ser exaus-tivo. Nenhum catâlogo jamais poderâ recensear as cidades que, nos ûltimos cin- co séculos, foram deslocadâs para um territôrio tâo vasto quanto o do antigo impéro espanhol da América. Além disso, certas cidades foram deslocadas vârias vezes, como Truxillo (Venezuela), qualificada em sua época como "ciudad portatil" por An- tonio de Alcedo (1967). 139

O deslocamento das cidades, uma tradição hispano-americana ? O caso de Parangaricutiro (México, 1944)

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Revista do NÛcleo lnterdisciplinar do lmaginârio e Memôria - NtMEe do Laboratôrio de Estudos do lmaginârio - LABI

lnstituto de Psicologia da Universidade de Sâo Paulo - IP-USP

Deslocamenfosano Xlil . nûmero 14

janeiro a iunho de 2007|SSN 1413-666x

lmaginâr io - usp, 2007,vol . 13, n" 14,

O deslocamento das cidades, uma tradiçâo hispano-americana? O caso de Parangaricutiro (México, 1944)

Alain Mussef*

Introduçâo

O deslocamento de uma cidade inteira pode aparecer como umacontecimento excepcional l igado a circunstâncias muito part icu-lares e dificilmente reprodutiveis. No entanto, contrariamente aosportugueses, que pouco ut i l izaram esse método para adaptar suarede urbana às realidades geogrâficas, econômicas ou geopoliticasdo mundo brasi le i ro l , os espanhôis instalados na América nâohesitaram em mudar constantemente de lugar suas cidades quan-do as circunstâncias o exigiam. Apôs sete anos de estudos sobreesse tema, contei pelo menos 160 cidades deslocadas desde oinicio da Conquista espanhola e o f im da época colonial (nos anos1820), sem contar aquelas que tiveram a mesma sorte nos séculosXIX e XX, como San Juan Parangaricutiro no México, Baeza e Pe-l i leo no Equador, ou Chi l lan no Chi le (MUSSET, 2002).2A relativa facilidade dos deslocamentos (principalmente durante oséculo XVI) expl ica-se em grande parte porque a aglomeraçâo,recentemente fundada, muitas vezes era apenas um simples bur-go construido com materiais pereciveis. Com efeito, as leis de fun-daçâo promulgadas pela Coroa e sintetizadas nas Nouyelles ordon-nances de découverte et de peuplemenf [Novas Ordens de desco-

- Nascido em 1959 em Mar-sei l le, na França Geôgrafo,especialista em América La-t ina, p lanejamento urbano erepresentaçôes do espaço.Foi a luno da Ecole NormaleSupérieure - ENS (Par is) .Membro do Groupe de géo-graphie sociale et d 'étudesurbaines e membro honorâriodo /nst i tut Universi ta i re deFrance.

1 Ne..e contexto, a histôr iaextraordinâr ia de Mazâgâo,deslocada da costa marroqui-na até a f loresta amazônicano século XVl l l , aparececomo uma exceçâo e umcaso extremo (ARAUJO,1998; VIDAL,2005).

2 Aind" qr" o nûmero de ca-sos seja impressionante, ocon- junto nâo pretende serexaus-tivo. Nenhum catâlogojamais poderâ recensear ascidades que, nos ûl t imos cin-co séculos, foram deslocadâspara um terr i tôr io tâo vastoquanto o do ant igo impéroespanhol da América. Alémdisso, certas c idades foramdeslocadas vâr ias vezes,como Truxi l lo (Venezuela),qual i f icada em sua épocacomo "ciudad portati l" por An-tonio de Alcedo (1967).

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Musset, A. O deslocamento das cidades, uma tradiçâo hispano-americana?

berta e de povoamenfol de 1573 exigiam um mlnimo de pelo menostrinta vecinos para se fundar uma cidade, o que representava umapopulaçâo espanhola inferior a cento e cinqûenta habitantes. Essascidades, pouco populosas, construidas às pressas, podiam faci l -mente mudar de lugar antes de encontrar seu sl t io def ini t ivo. Emcontrapartida, quando a transferência era efetuada apôs vâriosdecênios de-presença no mesmo local, o problema at ingia outraampl i tude: a cidade havia se enraizado, e uma sociedade urbana,com sua hierarquia, seus côdigos, seus conflitos internos, havia tidotempo de implantar-se e as relaçôes com o mundo rural estavamsol idamente estabelecidas.Estudar o deslocamento das cidades na América hispânica possi-bilita uma reflexâo sobre as formas e as funçôes da cidade e tam-bém possibi l i ta compreender melhor as relaçôes constantementeconflituais mantidas hoje pelos estabelecimentos humanos com seumeio ambiente. Além disso, talabordagem valorizaas contradiçôesinternas da sociedade urbana, pois nem sempre é fâci l tomar adecisâo da transferência: ela é a manifestaçâo dos determinantesde poder e de dinherro que fragilizam uma comunidade cujos mem-bros nâo manifestam os mesmos interesses nem as mesmas pre-ocupaçôes quando devem enfrentar uma crise maior.Nesse contexto, o deslocamento de San Juan Parangar icut i ro(Michoacan, México) é particularmente interessante, pois foi reali-zado na metade do século XX, seguindo à risca regras herdadas daépoca colonial . Ora, é somente transportando-se esse episôdiorecente para uma tradiçâo muito mais ant iga que se pode com-preender nâo apenas o comportamento dos habitantes, mas tam-bém a reaçâo das autoridades regionais ou nacionais durante as di-ferentes etapas do processo de decisâo.

O desastre "natural" e sua interpretaçâo

Os primeiros sinais da atividade telûrica que vai provocar a ruina deSan Juan Parangaricutiro intervêm em 8 de fevereiro de 1943, quando

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um terremoto de grande amplitude, seguido de numerosas réplicas,provoca um inicio de pânico na populaçâo. Alguns dias mais tarde,quando trabalhava em seu campo de milho, Don Dionisio Pulido vê-se preso num turbi lhâo de cinzas e fumaça, acompanhado de ex-plosôes ensurdecedoras: ele assiste, apesar de si , ao nascimentode um novo vulcâo, o Paricut in, cujo cone acabarâ elevando-se amais de 2.600 metros numa zona montanhosa que ultrapassa 2.000metros de al t i tude média. Muito rapidamente, os r ios de lava engo-lem a cidadezinha de Paricutin, cujos habitantes devem encontrarrefûgio perto da cidade pr incipal, Uruapan. O vulcâo cospe entâouma coluna de fumaça negra que se eleva a mais de seis qui lôme-tros e cujas part iculas mais f inas recaem sobre a cidade do Méxi-co, s i tuada a mais de 350 qui lômetros.

Em 15 de janeiro de 1944, apôs um longo ano de atividade vulcânicaininterrupta, foienviado um relatôrio ao presidente da Repûblica, Ma-nuelAvila Camacho, com o objetivo de descrever a extensâo do desas-tre.3 Num raio de três quilômetros à volta do vulcâo, nada restava da ricafloresta que antes cobria as montanhas. Num raio de seis quilômetros,uma espessa camada de cinzas recobria as ârvores, impedindo-as derespirar. Num perimetro ainda mais amplo (sete quilômetros), toda avegetaçâo herbâcea havia desaparecido. O gado, privado de sua ali-mentaçâo natural, teve de ser deslocado para zonas menos expostas.Até '10 quilômetros do ponto de emissâo, todas as terras arâveis ha-viam se tornado estéreis, e o ar, carregado de particulas em suspen-sâo, provocava nos habitantes numerosas afecçôes respiratôrias. Ora,segundo o engenheiro Ezquiel Ordofrez, encarregado desse estudo,nesse momento ainda havia duas mil pessoas em San Juan Paranga-ricutiro e quase cinco mil na zona afetada.

A questâo sobre a origem divina do desastre foi rapidamente abor-dada pelos habitantes da regiâo, desejosos de dar um sent idoescatolôgico ao mal que os at ingia. Num México que acabava desair de uma longa guerra civil que havia oposto um Estado anti-cle-rical a camponeses muito religiosos4, poderia ser tentador interpretaressa erupçâo vulcânica como uma manifestaçâo do todo-poder doSenhor. Tal era a opiniâo de Vicente Agui lar, cujo testemunho foicolhido por Rafael Mendoza Valent in:

3 Archivo General de la Naci-ôn (AGN-México), Avi la Ca-macho, 561 .4/15-1 3. Comisi-ôn impulsora y coordinadorade la invest igaciôn cient i f ica,15 de enero de '1944-

4 Entr" 1926 e 1929, a "Chris-t iade" ensangûentou todo oMéxico ocidental . Foi precisoesperar o ano de'1 934 e achegada ao poder do generalLâzaro Cârdenas (or ig inâr iode Michoacân, um dos pr in-cipais centros da insurreiçâo)para que as perseguiçôescontra os padres e os cr is-teros (soldados do Cristo)fossem f inalmente abando-nadas.

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Musset, A. O deslocamento das cidades, uma tradiçâo hispano-americana?

A lo mejor lo del volcan fue un cast igo, porque el 20 de febreroanter ior habiamos ido muchis imas personas a la piedra delhorno donde pusimos una cruz grande de madera [ . . . ] Perosucediô que unas personas de Paricut in la tumbaron a hacha-zos porque pensaron que nosotros los de San Juan, nos habi-amos val ido del "credo", para poner el l indero de la comunidad,pero no fue asi (VALENTIN, 1995, p. 54).

Outra testemunha da erupçâo vulcânica, Silviano Toral, lembrou quehâ muitos anos Deus enviava sinais ( luzes mister iosas em plenanoite) para anunciar a catâstrofe aos habitantes da regiâo, mas queeles nâo haviam sabido interpretar a mensagem divina (idem, p.62).Essa explicaçâo mlstico-religiosa se expressa hoje de modo ingê-nuo por meio de uma grande maquete instalada num dos lados dabasilica do Nuevo San Juan: vê-se ai um diabo com chifres vestidode vermelho montar guarda diante do vulcâo, como se a lava expe-lida pelo Paricutin saisse diretamente das profundezas do inferno(fotografia no. 1).

Fotografiâ no. 1: O Diabo vigia o Paricutin. lvlaquete realizada para comemorar a destruiçào deSan Juan Parangaricutiro.

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Nesse sent ido, a sociedade mexicana dos anos 1940 apenas se-guia a linha traçada desde a época colonial pelas ordens religiosasque haviam evangelizado as populaçôes amerindias. Assim, no diaseguinte à destruiçâo da Ciudad de Sant iago de Guatemala, em1541, a grâf ica de Juan Cromberger, instalada na Cidade do Méxi-co, publ icou um texto que ressaltava os aspectos fantâst icos doacontecimento. Segundo o autor do relato, enquanto um habitantetentava socorrer a viûva do adelantado Pedro de Alvarado, refugia-da em sua capela, um animal fabuloso (uma vaca com um meio-chifre)veio barrar-lhe a passagèm, prova irrefutâvel da intervençâodas forças sobrenaturais na destruiçâo da Ciudad de Sant iago(MEDINA, 1989, p.7). No f im do século XVl, raros eram os espa-nhôis educados que acreditavam ainda em vulcôes alimentados pelofogo do inferno, mas o padre Joseph de Acosta, em sua Historianatural y moralde /as Indias, sentia-se obrigado a refutar essa te-or ia. Segundo ele, o inferno si tuava-se excessivamente longe dasuperficie terrestre para que corrêssemos o risco de sermos engo-l idos, mas o fogo onde queimavam os condenados era ainda maisardente do que o dos vulcôes (ACOSTA, 1 985, p.136).

Sem negligenciar interpretaçôes religiosas solidamente enraizadasna mentalidade coletiva, também era preciso encontrar explicaçÔescient i f icas dest inadas a assegurar a populaçâo. Ao lado dos geÔ-logos autorizados pelo governo para estudar a evoluçâo das corren-tes de lava e das emanaçôes de gâs e cinzas, numerosos habitan-tes arquitetavam suas prôprias hipôteses. lnterrogado 40 anos apÔso desastre, Tiburcio Rincôn reconhecia que ele nâo havia se impres-sionado pelo que se passava entâo, pois haviam lhe expl icado ascausas naturais da erupçâo: "nos decian que era un resuel lo de latierra, porque ya estaba muy sofocada y necesitaba un respirade-ro" (VALENTIN, 1995, p 48).A idéia de uma terra que estava sufo-cando e buscando um meio de respirar foi reutilizada em agosto de1943 por um habitante de Guadalajara, Gabriel Ramirez, que dese-java ajudar os habitantes da regiâo. Em 10 de agosto, ele escreveuuma carta ao presidente da Repûbl ica para dar sua interpretaçâosobre a erupçâo vulcânica e preconizar uma soluçâo radical :

Avi la Camacho,-13. Carta de del Srlamirez al Sr Presi-

la Repûbl ica.

Musset, A. O deslocamento das cidades, uma tradiçâo hispano-americâna?

Dei-me conta de que a boca do vulcâo nâo é bastante grandepara que ele possa respirar convenientemente, e é por issomesmo que ele nâo pâra de entrar em erupçâo, porque no inte-rior o sufocamento é terrivel, e enquanto nâo fizermos outrasaberturas para aumentar sua boca para que ele assim possarespirar melhor, parar um pouco de entrar em erupçâo e pararde cuspir lava, pois tenho certeza de que ele vai continuar a cres-cer e a destruir tudo o que se encontra em sua passagem. Pen-so entâo em jogar bombas de grande alcance e de grande po-tência em torno da boca do vulcâo; nâo importa que a aberturajâ seja grande; a boca da cratera serâ ainda maior e permit i râuma maior respiraçâo, de tal modo que ele cessarâ de sufocarno interior. Esta idéia me veio porque fiz a experiência com umapanela de âgua fervendo, cuja tampa tinha pequenos furos, ora,através desses furos saia o vapor, e eu me disse que eles nâoeram suficientes, pois apesar deles a âgua fervendo subia e sedi fundia; bastava entâo ret i rar a tampa e a âgua descia rapida-mente e parava de ferver; e disso tudo me veio a idéia de que ovulcâo t inha o mesmo problema: sua boca nâo era bastantegrande.5

A proposta de Gabriel Ramirez permaneceu como letra morta, masesse t ipo de discurso, fundado sobre a observaçâo da natureza,inscreve-se numa tradiçâo cientif ica de mais de dois mil anos, daqual pode-se seguir a pista desde a época romana até meados doséculo XX (para nâo dizer mais), o que prova que as idéias morremlentamente. É assim que, por ocasiâo do terremoto de 1651 , os ofi-c ia is municipais da Guatemala pediram aos habi tantes da capi ta lpara cavar buracos em seus jardins para lutar contra os s ismos(LUJAN, 1987, p. 16). Essa ordem parece incompreensivelquandonâo se sabe que, para Aristôteles (Metereolôgica) e para Sêneca(Questôes naturais) , os terremotos sâo provocados pelo ar sobpressâo que circula sob a crosta terrestre e que busca um caminhona superficie para chegar a seu lugar natural, segundo a teoria doselementos:

A grande causa dos terremotos é, portanto, o ar, um elementomôvel por natureza e que circula de um lugar a outro. [ . . . ] Depois,quando ele percorreu, sem poder escapar, todo o lugar que o

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mantinha fechado, ele bate nas paredes sobre as quais ele haviase jogado com a maior força, e entâo, ou ele se perde nas pas-sagens secretas cr iadas pela desagregaçâo gerada pelo terre-moto, ou ele se lança através da nova abertura que ele inf l ig iuao solo. Nenhum agregado pode retê- lo, e le rompe todos osentraves, leva com ele qualquer carga e, deslizando por estrei-tas f issuras, abre espaço e se l iberta graças à potência indomâ-vel de sua natureza, sobretudo quando, violentamente agitado,ele faz valer seu direito (SÊNECA, 1961, p. 272).

Essas teorias foram trazidas ao gosto da época por sâbios, comoo padre jesuita Joseph de Acosta (Historia natural y moralde /aslndias,1590) ou o doutor Juan de Cârdenas (Problemas y secretosmaravillosos de /as Indias,1591), que tentavam explicar as particu-laridades da natureza americana. Este, num texto ornado por nu-merosas expressôes metafôricas (a superficie do solo é compara-da à pele de uma castanha ou à casca de um ovo mergulhado emâgua fervente), situa a ciência de sua época e explica por que a terradas indias ocidentais é particularmente propicia aos terremotos:

Eu digo que, jâ que o abismo indico é cavernoso e a parte super-f ic ial da terra é muito densa e muito fechada, ocorre que osvapores, dissolvidos pelo sol a partir da umidade do centro, emmuitos casos nâo podem escapar, pois os poros da terra, poronde deveriam sair, fecham-se e se apertam com muita facilida-de; é por isso que, buscando uma saida e uma abertura, e lesfazem tremer e sacudir a terra com frequência; e assirn o pro-blema é resolvido (CARDENAS, 1988, p. 96).

Assim, tendo pedido aos habitantes da Guatemala para cavar bu-racos em seus jardins, as autoridades municipais pensavarn ofere-cer uma passagem aos ventos violentos que, para furar a crosta queos aprisiona, sacodem a superficie do solo. Essas escavaçôes,concebidas como os poros da pele, deveriam ter o papel dg verda-deiras vâlvulas de segurança. Essa interpretaçâo foi amplamentedifundida na literatura cientifica do mundo antigo. Ela é encontradano grande poema int i tulado Efna, geralmente atr ibuido a Virgi l io,apesar de todas as dÛvidas sobre sua redaçâo: "Sâo os ventos queprovocam esses distûrbios violentos; através de seus furiosos tur-

lovernador do)acan ao Pre-bl ica, em 2 de

uas croades, uma tradiçâo hispano-americana?

bi lhôes, lançam essas matér ias contra si mesmas, massa espes_sa que eles fazem girar e rolar para fora das profundezas. Eis acausa que permite prever o iminente incêndio da mon-tanha" (VlR_GlLlO, 1961, p. 17). Sem o saber, Gabr ie l Ramirez inscrevia_seassim numa tradiçâo cient l f ica muito ant iga que teve um papelcentral em numerosos deslocamentos de cidades na América his-pânica durante a época colonial (MUSSET, 2002, p.61).

A realizaçâo da transferência

Em 2 de março de 1943, os geôrogos enviados pero governo centralconsideravam ainda que as cidades em torno do paricut in nâocorriam perigo imediato: "é por isso que fizemos um grande traba-lho de persuasâo para convencer os habitantes a i rem para casa.como conseqùência dos acontecimentos anter iores, o tur ismoaumentou de modo considerâvel"6, enquanto numerosas famil iassem recursos jâ haviam começado a deixar as zonas mais ameaca-das. Essa atitude se explica em parte pelo desejo do Estado oe nâoabandonar uma polegada do terr i tôr io nacional. Nesse sent ido. ogoverno mexicano se posicionava de modo diferente das estraté-gias desenvolvidas pela coroa durante o periodo colonial para ga-rant ir a cont inuidade da presença espanhola em espaços muitovastos e mal controlados. como os conquistadores haviam feito doscentros urbanos os pivôs e os guardiôes de seu sistema pol i t ico-econômico, a administraçâo realfreqùentemente hesitou antes depermitir a dispersâo dos cidadâos dos quais ela tanto precisava paraimpor sua presença no Novo Mundo. Esse é o sent ido da carta de21 de fevereiro de 1607 endereçada pelo Rei às autoridades perua-nas para fel ic i tâ- los por ter impedido os habitantes de Arequipa,fortemente atingida por um violento terremoto, de desertar suascasas: " isto foi muito bom, como vocês nos disseram ter fei to, deanimar e reconfortar os habitantes de Arequipa, de Arica e da villade Anama, para reparar os estragos provocados pelo terremoto queos at ingiu e para que eles nâo abandonem, mas, ao contrâr io. re-construam"T.

rnal (Madrid),

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Entretanto, apesar da vontade polltica apregoada de nâo ceder àsforças da natureza, os habitantes da cidadezinha de Paricutin foramobrigados a abandonar o lugar a part i r do mês de abri l de 1943.Instalaram-se a alguns quilômetros dali, em Caltzontzin, em terrascompradas pelo Estado de proprietâr ios pr ivados ou cedidas porejidos vindos da Revoluçâo. A tarefa de planejar a nova aldeia e dedistr ibuir de modo equivalente as terras agrlcolas necessârias àsobrevivência das familias foi confiada às autoridades locais (Dele-gaciôn Agraria do Michoacân e Oficina de Promociôn Eiidal). Algunsmeses mais tarde, a corrente de lava começou a aproximar-seperigosamente de San Juan Parangaricut i ro. O municipio inundoucom cartas e telegramas os serviços da Presidência e os escr i tÔ-rios do governador do Estado para expor às autoridades competen-tes o terror de sua cidade agonizante. A partir de setembro de 1943'a agricul tura local nâo podia mais al imentar a populaçâo. Em de-zembro, as reservas de milho, de feijâo e de arroz estavam esgota-das, e o espectro da fome havia feito sua apariçâo. Como na épo-ca colonial , quando o cabi ldo pedia ao Rei, sem muita esperança,que ele viesse visitar as populaçôes atingidas por um terremoto, osmembros do conselho municipalsugeriam ao presidente que vies-se ao local para dar-se conta da situaçâo: "o caso é tâo grave quemereceria sua visita às zonas afetadas, e entâo encontrariamos umremédio definitivo"s.

A questâo do abandono da cidade e do deslocamento da populaçâopara um lugar menos exposto tornou-se um assunto de debatesintensos no seio da comunidade, pois tal decisâo nunca é fâci l deser tomada. Jâ na época colonial , ela era freqÙentemente percebi-da como um fracasso pelos habitantes, obr igados nâo somente aabandonar suas residências e perder seu patrimônio em terras mastambém a quest ionar o status social que eles puderam adquir i r aolongo do tempo. Apenas a mençâo desse tema jâ separava a cida-de em dois campos (part idâr ios e adversârios da transferência),como o demonstram os grandes debates organizados em 1717 naGuatemala, por ocasiâo das reuniôes do Conselho municipal am-pliado à populaçâo, ou os da controvérsia de 1773, quando a Coroafinalmente impôs a evacuaçâo da Ciudad de Santiago. Podern serencontrados esquemas idênticos, complicados por rivalidades pes-

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Musset, A. O deslocamento das cidades, uma tradiçâo hispano-americana?

soais e disputas pol i t icas ou rel igiosas, em quase todos os proje-tos de deslocamento. A hora da escolha é assim um momentochave da histôr ia da cidade hispano-americana, quando as sol ida-riedades de fachada apagam-se diante das profundas clivagens davida colohial e que a sociedade humana se revela em toda a suadiversidade (M USSET, 2002, p. 203).

Na transferência de San Juan Parangaricutiro, as mesmas hesitaçôesparalisaram os membros da comunidade, divididos entre o medo deperder todos os seus bens, seu desejo de nâo abandonar uma ci-dade amada e a necessidade de escapar da ameaça vulcânica.Assim, Paula Galvân recusou-se até o fim a abandonar sua casinhade Paricutin: ? mi, me trajeron a fuerzas, yo no queria salirme demi puebl i to, hasta nos enojâbamos con mi esposo porque yo noqueria sal i / ' (VALENTIN, 1995, p 40) Em contrapart ida, apôs umavisi ta real izada à regiâo, em maio de 1943, o bispo auxi l iar de Za-mora, Salvador Martinez Silva, declarou-se abertamente a favor doabandono da aldeia e até mesmo de San Juan. no entanto maisafastada da cratera em fogo, apesar da oposiçâo de uma grandeparte dos habitantes:

todos t ienen opiniones dist intas sobre lo que debe hacer elpr.reblo y todos se empefran en que se haga lo que piensan,especialmente un grupo numero de hi jos de San Juan insis-ten en no sal i r y en que no salga el sef ior de los Mi lagros( idem, p. 45).

Em 27 de dezembro de 1943, um debate pûbl ico foi organizadopelas autoridades municipais na prefeitura, para ouvir as propostasde cada uma das 250 pessoas ("todos vecinos y Jefes de casa") queparticiparam dessa reuniâo, corno nos cabildos abiertos da épocacolonial . Recusando a idéia de abandonar sua casa, J. Jesûs Or-tiz tentou convencer a assembléia de que nâo era necessârio pre-parar um deslocamento, pois a lava ainda nâo havia at ingido a al-deia. Outros ressaltaram que as propostas de re-alojamento feitaspelas comunidades vizinhas nâo eram viâveis, pois os agricul toresnâo poderiam dispor de terras cultivâveis em quantidade suficiente.Entretanto, a si tuaçâo era muito cr i t ica para retardar ainda mais o

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inevitâvel e uma moçâo quase desesperada foivotada pela maioria:" tan luego como la lava abanse hasta el panteôn municipaldel lu-gar, se prosederâ al traslado del pueblo".eEm 1997, pude encontrar um dos protagonistas da transferência,don Celedonio GutierrezAcosta, à época com 32 anos. Conversandocom ele, eu t inha a impressâo de folhear as pâginas vivas de umdossiê que nunca havia sido colocado na poeira dos arquivos. Noinicio dos anos 1940, don Celedonio era um pequeno camponês,que, como quase todos os seus viz inhos, cul t ivava milho e fei jâo ecoletava a resina do pinheiro. ldealizador e proprietârio de um mi-nûsculo museu, dedicado à erupçâo do paricutin e ao deslocamentode San Juan Parangaricutiro, ele me confirmou que muitos habitan-tes nâo estavam de acordo em abandonar suas casas. Interminâ-veis reuniôes (Juntas y mas juntas", para retomar a expressâo dedon Celedonio) precederam a decisâo f inal , tomada a contragostoquando a lava jâ atingia as primeiras construçôes e corria lentamen-te pelas ruas da cidade.No entanto, em pequenos grupos, os sinistrados jâ haviam come-çado a abandonaro lugardurante o ano de 1943 levando consigosuas magras economias. Um telegrama lacônico enviado pelo pre-sidente da Repûblica resume a situaçâo desses infelizes: "partiramhoje os pr imeiros habitantes desse municipio, para Ario de Rosa-les, em busca de terras a colonizar. Sâo 31 chefes de familia. numtotal de 125 pessoas. A esses elementos fal ta absolutamentetudo"l0. Somente no inic io de maio de 1g44 os ûl t imos ocupantesfecharam bagagens, em busca de um lugarfavorâvel à instalaçâo desuas famil ias. Como lembra o museu of ic ial da nova cidade em oueum afresco color ido representa a tragédia de 9 de maio de 1944:"Com légrimas nos olhos, os habitantes deixam San Juan. A ima-gem abençoada do Senhor dos Milagres preside e guia sua peregri-naçâo" (fotografia no. 2). Até mesmo o padre Ezequiel Montafro,vigârio da parôquia, reconheceu que essa decisâo foi mal recebidapor uma parte dos habitantes, que esperavam ainda uma interven_çâo divina. A saida da aldeia foi di f ic i l , pois muitos habitantes ten-taram impedir a part ida do Cristo que protegia a comunidade (VA-LENTIN, 1995, p.60)11.

9 eoru, Avira c i561 .411 5-1 3. Actaasemblea efectuadadic iembre de 1943.

1o ne ru, Avira c.561 .4/1 5-1 3, te legral487, de 3 de agosto ,

11 A viagem real izachegar ao local do NLJuân durou três diépnmerra etapa con(sinistrados até Ang€km), onde uma gran(reuniu toda a comLEm 11 de maio, cheUruapan, apôs ummarcha de 33 qui lôEsgotados, passamdiante da igreja de Scisco. Na manhâ seum ûltimo esforço os Ia "terra prometida", oLos Conejos, s i tuaqui lômetros a oestetal regional .

Musset, A. O deslocamento das cidades, uma tradiçâo hispano-americana?

A escolha do novo luoar

Como i.u"t"* os arquivos da Presidência do generalAvila Cama-cho, a es_colha de um novo sitio para os habitantes de San Juan nâofoi fâcil. Desde junho de 1943, o governo mexicano estudou diferen-tes possibilidades com o objetivo de partilhar seus prôprios interes-ses, os projetos do municlpio, os das comunidades vizinhas ou aspropostas de part iculares, cujas intençôes nem sempre eram cla-ras. Assim, desde agosto de 1943, os decisores de Vi l la Escalan-te (a antiga Santa Clara del Cobre), comovidos com a situaçâo trâ-gica dos habitantes de San Juan, propuseram aos sinistrados virinstalar-se nas terras de sua comunidade. EIa dispunha, com efei-to, de bons terrenos para construir, que o governo poderia comprare redistr ibuir aos novos cidadâos. Além disso, os agricul tores pr i-vados de seus campos ter iam a possibi l idade de trabalhar nas ter-ras agricolas que certos proprietârios jâ estavam dispostos a devol-ver ao Estado, como uma honesta retr ibuiçâo. Além dos pequenos

)tografia no. 2: Os habitantes de San Juan Parangaricutiro abandonam sua cidade. Pintura mural do museu de Nuevo San Juan

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lucros que certos habitantes de Villa Escalante contavam realizar,o prefeito pensava nas possibilidades de desenvolvimento que po-deriam ser oferecidas a uma comunidade cujo peso demogrâfico iriaquase dobrar: "Nosso honorâvel conselho municipal considerou umainf inidade de razôes de carâter econômico, consultando pessoasautor izadas deste local, que auguram uma era de progresso paranossas duas populaçôes reunidas, tanto no plano pol i t ico quantoeconômico, graças a um crescimento notâvel das atividades"l2.Algumas boas almas ofereceram, por sua vez, terrenos magnificos quenâo pediam mais que sua valorizaçâo pelos camponeses experimen-tados. Assim, a Sra. Elpidia Pihon Romero sugeriu ao presidente daRepûblica a troca de 103 hectares de terra situados em Tlalpujahua(Michoacân) contra apenas meio hectare de terras arâveis no DistritoFederal, com o objetivo de ajudar os sinistrados a garantir sua subs-tância.13 A proprietâria esperava sem dûvida fazer um bom negôcio,contando com a mais-valia operada pela revenda de um vasto terrenopara construçâo na capital mexicana. Ainda mais ambiciosos, os ir-mâos Del Valle aproveitaram a ocasiâo para oferecer às vitimas doParacutin a liberdade de instalar-se em terrenos em oue deveriamgarantir a colonizaçâo agricola, no lado do pacifico do Estado deOaxaca, segundo um acordo anterior assinado com o governo.laNo entanto, nesse dominio, o prêmio do maquiavelismo cabe serndûvida ao governador do Estado de Chiapas, Rafael pascacio Gam-boa, que ofereceu a instalaçâo gratuita de milfamilias de campone-ses expulsos de suas casas pela erupçâo vulcânica em 15 mil hec-tares de terras arâveis situadas no municipio de Mapastepec. Essadoaçâo generosa ocultava pensamentos mais geopoliticos, pois tra-tava-se, antes de mais nada, para o governador, de acelerar a valo-rizaçâo de espaços rurais pouco povoados e pouco explorados paraimpedir os imigrantes guatemaltecos de penetrar no territôrio mexi-cano: "para resolver integralmente o problema que existe na frontei-ra de nosso pais com a repûblica vizinha da Guatemala, consideran-do-se a grande porcentagem de populaçâo guatemalteca que residehoje nessa entidade, torna-se imperativa a adoçâo de medidas urgen-tes destinadas a desenvolver um verdadeiro trabalho de mexicaniza-çâo da dita zona fronteira".15

12 AGN, Auir"561.4/15-13. Casidente MunicipEscalante al Prescipal de San Juarcut i ro,2 de agos

13 AGN, Auir"561.4115-13, calabr i l de 1943.

14 AGN, Auir"56'1.4/15-13, calabr i l de '1943.

15 AGN, Auir"561 .4/1 5-1 3, cardic iembre de 192

erraS, 79 exp 4

rvrub5cr, A- u oêslocamento das cidades. uma i radiçâo hispano-americana?

Abandonados esses projetos, a escolha do governador fixou-se numterreno prôximo à capital regional, Uruapan, num lugar chamado LosConejos - o que representa uma distância de mais de 30 quilômetrosem vôo de pâssaro em relaçâo às torres da antiga igreja, que, depoisda catâstrofe, emergem da gangue de basalto expelida pelo vulcâo(fotografia no. 3). Na maioria dos casos que estudei em todo o con-tinente americano e num periodo de quatro séculos, os deslocamen-tos foram de baixa amplitude. A cidade era mais constantemente re-construida nas proximidades do local primitivo para evitar a mudan-ça dos equilibrios regionais instalados pelos conquistadores espa-nhôis. Além disso, era preciso respeitar os limites administrativos epoliticos das cidades vizinhas, bem como os direitos sobre a terra dascomunidades indigenas. Finalmente, os habitantes raramente que-riam afastar-se de suas propriedades agricolas, de suas minas ou dosindios, que, de diversas maneiras, trabalhavam gratuitamente paraeles. Foiassim que, em 1614, a pequena cidade de Nexapa (Oaxa-ca, México) propôs a operaçâo de um deslocamento, que, segundoo relato de testemunhas convocadas diante das autoridades reais oaraestabelecimento do dossiê, nâo ultrapassava 160 ou 170 - isto é, umtiro de bacamarte.l6 Tratava-se entâo de um simples deslizamento dacidade para o pé da col ina em que ela se si tuava.

Fotografia n'. 3: Somente as tores da igreja da antiga San Juan Parangaricutiro emergem hoje da gangue basâlticaoue acabou oor recobrir a aldeia.

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Para escapar às correntes de lava do Paricut in, os habitantes deSan Juan Parangaricut i ro nâo se contentaram com um pul inho(mapa): seu êxodo para Uruapan os inscreve na categoria particu-lar dos deslocamentos de grande envergadura, como GuatemalaCiudad, Riobamba (Equador) ou San Miguel de Tucuman (Argentina)'A grande quantidade de cinza jogada na atmosfera e a progressâoda corrente de lava para o norte levaram as autoridades mexicanasa instalar os sinistrados a sudeste da cratera em erupçâo, num lugarque deveria garantir sua segurança. Entretanto, segundo don Cele-donio Gutierrez, a pr incipal preocupaçâo dos deslocados era a deencontrar um terreno plano, prôximo às suas antigas habitaçôes e deseus campos devastados pela lava, e principalmente bem alimenta-do por âgua. Os arquivos da presidência confirmam o relato de velhoagricul tor, porque, num memorando endereçado ao general Avi laCamacho em 12 de janeiro de 1944, os representantes da municipa-

Mapa de San Juan Parangaricutiro ao Nuevo San Juan (Michoacan, México)

, Avi la Camacho,-13, Memorandum)fror Presidente de laa, 12 de enero de

vo General de Indias, Chi le, 147,6a, f . 7 v.

u aurçao ntspano-americana?

lidade baseavam sua argumentaçâo em critérios solidamente anco-rados em sua mentalidade hâ vârias centenas de anos:

(. . . ) uma soluçâo possivel ser ia local izar neste mesmo Estadode Michoacân uma zona nâo insalubre e com terras laborâveis,para onde poderiamos transfer ir a local idade de Parangaricut i -ro como unidade sociolôgica, evi tando assim a dispersâo dasfami l ias que se sentem estrangeiras em outros meios sociaisonde sâo agredidas, o que aumenta seu sofr imento ( . . . ) . Seriapreciso que esta zona fosse si tuada o mais perto possivel denossa cidade, porque poderiamos assim cont inuar a explorar ar iqueza f lorestal da comunidade, que ainda é considerâvel.17

No século XX, a escolha de um novo lugar ainda se colocava emtermos idênt icos aos da época colonial , pois as necessidadesmateriais das populaçôes deslocadas, muito dependentes do mun-do rural , haviam mudado pouco. Os cr i tér ios evocados em 1944pelos especialistas do governo mexicano inspiravam-se ainda nasrecomendaçôes de santo Tomâs de Aquino, contidas no De Regi-mine principum (Do Governo dos Principes) e nas Nouye//es Ordon-nances de découverte et de peuplement [Novas Ordens de desco-berta e de povoamenfol promulgadas por Philippe ll em 1573 (BER-THE, 19BO). As mesmas preocupaçôes eram expressas peloshabitantes de Concepciôn de Chile, pequena cidade portuâria des-truida em 1751 por um terremoto e um tsunami. Para escolher umnovo lugar, seus representantes enumeravam as regras mais sim-ples, que deveriam ser sistematicamente aplicadas para fundar umanova cidade: "Sete sâo as coisas que se deve ter como pr ior idadepara tentar fundar cidades nas indias. A pr imeira é que haja âguanas proximidades, de modo a poder trazê-la sem que isto custemuito caro aos habitantes. Em segundo lugar, que haja fâcil provi-mento de viveres. Em terceiro, que os materiais de construçâo nâoestejam muito afastados. Em quarto, que o cl ima seja saudâvel.Em quinto, que nâo se esteja exposto aos ataques dos indios. Emsexto, que possamos nos defender dos piratas e dos inimigos domar. Em sétimo, que, se nos encontrarmos perto de um rio, nâohaja r isco de inundaçâo em caso de cheia".18

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Essas recomendaçôes inspiram-se em grande parte nas instruçôesreais de 1573, pois os pontos 1 e 3 do texto ci tado correspondemao artigo 39 ("o lugar e o sitio das localidades devem ser escolhidosem lugares onde haja âgua nas proximidades e que se possa des-viar para melhor aproveitar (...) e onde se encontrarâ materiais ne-cessârios para construir edificaçÔes"); o ponto 2 faz referência aoart igo 35 ("do mesmo modo, que eles sejam férteis e abundem detodas as frutas e de todos os alimentos"); o 4, ao 34 ("que se es-colha a provincia vizinha e a terra que deve ser povoada consideran-do-se que ela seja salubre"); o 6, ao 41 ("nâo se deve escolher lu-gares para cidades em locais mari t imos por causa do perigo doscorsârios").

Levando em conta todos esses critérios (excluindo-se a èferênciaaos ataques de piratas), as autor idades federais f inalmente esco-lheram o sitio de Los Conejos para instalar os habitantes da velhaSan Juan. Em 5 de janeiro de 1944, o conselho municipal endere-çava um novo relatôr io ao Comitê Central pro-damnif icados delParicut in com o objet ivo de just i f icar essa decisâo, que inscrevia-se involuntar iamente numa tradiçâo de vâr ios séculos:

En la asemblea efectuada el 27 de diciembre del af io pasadol levada a cabo por 250 jefes de famil ia, segÛn acta que para talefecto nos permit imos acompafrar, l legamos a un acuerdo detransladarnos a los ranchos denominados, o mejor dicho alrancho " los Conejos" de la cercania de la Ciudad de Uruapan,por l lenar este rancho los requisi tos de nuestras necesidades,agua suf ic iente, t ierras laborables y pastos para cr iaderos desanado. le l l , î ;

3JÏro de

Organizaçâo da nova cidade

Mesmo no caso de uma pequena aldeia, como San Juan Paranga-r icut i ro e as cidadezinhas que a cercavam, a transferência da po-pulaçâo, a reconstruçâo dos imôveis pûblicos e privados e a relor-ganizaçâo das atividades produtivas requeriam um custo que as co-

ara evi tar desvios de)s, o governador de Mi-:ân suger iu dar apenas)esos para cada chefermi l ia, sendo o resto;itado à medida do avan-rs t rabalhos. A ajuda f i -

- . i ra do governo federalst imada em 55.800 pe-aos quais se deviam;centar 2 '1 .500 pesosr compra de 50 parelhas) is e 1.500 pesos dest i -; à aquis içâo do mesmo)ro de carro-ças, semrr o mater ia l necessâr ioevar âgua de uma fonteda a 1.500 metros aosantes da nova cidade, Avi la Camacho, 561.4/i . Me-morandum para elr General de Eiv is iônel Avila Camacho, Presi-de la Repùbl ica, ' l l de

de 1 943).

GN, Avi la Camacho,/15-13. Memorandumrl Seior Presidente de labl ica. 12 de enero de

Musset, A. O deslocamento das cidades, uma i radiÇâo hispano-americana?

munidades locais eram incapazes de assumir sozinhas, o queobrigou seus representantes a pedir ajuda às autoridades federais.A part i r de junho de 1943, o ministér io das f inanças concedeu aogovernador de Michoacân uma ajuda f inanceira de cem mil pesospara a compra e a organizaçâo de uma grande fazenda prÔxima àestaçâo de Caltzontzin. Tratava-se de cr iar um centro agricoladest inado a alojar habitantes da cidadezinha de Paricut in, engol i -da pela lava, e de dar-lhes terra cultivâveis: ao todo, 1.314 hectares,dos quais três quartos provinham de e7ïdos jâ constituidos, os deSan Francisco Uruapan, de Toreo el Alto e de Toreo el Bajo. Essadecisâo, adaptada sem dificuldade pelos agricultores de San Fran-cisco, foiv iolentamente cr i t icada pelo conselho ej idalde Toreo elBajo, que se sentia destituido de uma parte de seu territôrio e deseus recursos econômicos.

Os serviços administrativos do ministério da agricultura prestaramauxilio aos sinistrados para planejar a reconstruçâo de sua cidade.Os especialistas decidiram que seria possfvel construir dois tipos decasas: as de adobe eram incontestavelmente mais econômicas (650pesos) e mais robustas, mas nâo se podia construir em plena esta-çâo de chuvas. Foi preciso entâo voltar-se sobre edificios de madei-ra, nâo apenas mais custosos (1 .200 pesos por unidade), como maisfrâgeis. AIém disso, tratava-se somente de alojamentos pequenos erudimentares, de 6x4 metros, com 3,5 metros de al tura.2oQuando, apôs muitas hesitaçôes e delongas, o deslocamento deSan Juan Parangaricutiro pareceu inevitâvel, os notâveis de San Juanenviaram por sua vez um memorando ao presidente Avila Camachopara deixâ-lo a par do grande desamparo dos habitantes. Eles lhespediam para garantir seu sustento permitindo-lhes instalar-se emnovas terras: "para cada chefe de familia dar-se-ia uma parcela su-ficiente conforme a qualidade do terreno, instrumentos de trabalho,sementes e uma casa para sua famil ia, ainda que muito modesta eo menos custosa possivel".21 Os habitantes se declaram prontos areembolsar ao Estado uma parte das somas avançadas, se o traba-lho dos campos permitisse, dentro de um prazo mais ou menos lon-go, retirar lucros. No caso em que nâo mais fosse possivel exploraras florestas de pinheiros, que representavam uma grande fonte de

;6

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renda para a economia local, os representantes da comunidadesugeriram que o governo favorecesse o desenvolvimento do artesanatoe da pequena indristria na regiâo, oferecendo ferramentas e mâqui-nas aos camponeses sinistrados: "compreendemos bem que tudoisso é muito custoso, mas é a esse preço que se salva uma cidade".22 22 rbi

Por outro lado, os chefes de familia se declararam prontos a emigrartemporariamente para os Estados Unidos para trabalhar como dia-ristas (braceros) nas grandes exploraçôes agricolas instaladas aonorte do Rio Bravo. Alguns, como o marido de Paula Galvan, traba-lharam vârios meses nas plantaçôes de laranja da Califôrnia para tercom que suprir as necessidades de sua familia (MENDOZA, 1995, p.40). De qualquer modo, as autoridades federais e federalivas encar-regaram-se de boa parte dos custos pelo deslocamento dos habitan-tes para o Valle de /os Conejos. Num telegrama de 31 de julho de1944, três meses depois da partida dos Ûltimos irredutivèis de SanJuan, o general Fel ix l reta, governador de Michoacân, assinala queele teve de garantir o transporte de grande quantidade de madeira deconstruçâo destinada aos habitantes instalados no novo local. Ora,estamos nessa época em plena estaçâo de chuvas, o que nâo resolvea situaçâo dos sinistrados. O prefeito da cidade abandonada pede àsautoridades pregos e pranchas para consertar os tetos de ripas (fe-jamanil) estragados pelas cinzas e sob a ameaça de deixar passara âgua portodo lado. Vârias cartas enviadas ao presidente da Repû-blica ou às autoridades locais mostram o estado de desamparo daspessoas deslocadas, como a de Antonio Vergara, de 24 de junho de1945, que pede ao presidente um auxilio financeiro para construir suacasa, pois, depois de ter perdido toda fonte de renda, ele se encon-tra coberto de dividas.

A sol idar iedade nacional expressou-se por meio de numerosasiniciativas: organizaçâo de rifas em beneficio dos sinistrados, emdinheiro ou espécie.. . Em outubro de 1943, a companhia TechoEterno Eureka e o Banco Nacional Hipotecario Urbano'y de ObrasPûblicas ofereceram às familias mais desfavorecidas 4.000 m2 deplacas de fibrocimento para a reconstruçâo de suas casas. Entre-tanto, esse afluxo de dinheiro e de material provocou às vezes ainveja das comunidades vizinhas, ou melhor, de seus dirigentes. Foi

N, Avi la Camacho,15-13. Car la de 6 de)ro de 1945, Confede-de Obreros y Campe-e México.

ta épocâ, a par idadelo peso mexicano comnorte-americano era

. O salârio cotidiano darobra nâo ultrapassa-pesos no Michoacân,na fami l ia precisava7 pesos por dia paraiver.

Musset, A. O deslocamento das cidades, uma tradiçâo hispano-americana?

assim que, em novembro de 1945, o prefei to de Uruapan tentoudesviar em seu proveito (ou em proveito de seus administrativos),tubos dest inados à al imentaçâo de âgua potâvel dos habitantes deNuevo San Juan, o que provocou a ira legitima das vitimas do rou-bo, "com a circunstância agravante de que o material e os tubos sâode propriedades da dita localidade e foram comprados graças aoaporte pessoal de seus habitantes".23 Em i2 de fevereiro de 1945,um novo memorando foi enviado ao presidente da Repûbl ica paradar parte dos problemas econômicos enfrentados pela pequena co-munidade (380 familias) reunida pelas autoridades no Vatte de /osConejos. Segundo o autor do relatôrio, havia urgência em se ofere-cer terras a esses refugiados e portanto em investir 90.000 pesosna compra de duas propriedades agricolas situadas a alguns quilô-metros do Nuevo San Juan. Apesardo preço atraente, inferiorao realvalor, t ratava-se de um invest imento considerâvel, podendo serassumido apenas pelo Estado federal. Ainda era preciso acrescen-tar a essa soma o custo dos animais de t i ro ou de carga, indispen-sâveis ao bom andamento de uma exploraçâo tradicional.2aEntretanto, pouco a pouco a nova cidade tomava forma. O primeiroimôvel construido foi a basilica dedicada ao Cristo dos Milagres, inau-gurada em 1955 (fotografla no. 4). Nessa ocasiâo, o Estado anti-cleri-cal vindo da Revoluçâo nâo queria avivar o fogo com sua oposiçâo aogrande projeto de uma lgreja catôlica, amplamente sustentado pelapopulaçâo. De um modo totalmente clâssico, os engenheiros e arqui-tetos designados pelo governo elaboraram um projeto de urbanismo quenâo se diferenciava dos cânones em vigor na época colonial: em tor-no de uma grande praça central articulava-se uma rede de vias orien-tadas no sentido norte-sul e leste-oeste, que se cruzavam em ânguloreto, formando vastas manzanas perfeitamente geométricas. Mais umavez, o confronto entre os arquivos coloniais (ou republicanos) e amemôria de um habitante de San Juan Parangaricutiro mostra que areconstruçâo de uma cidade nunca deixou de serfonte de conflito enrregrupos com interesses divergentes, mas também entre as autoridadeslocais e nacionais ou entre os arquitetos e a populaçâo. euando o en-genheiro enviado pelo presidente da Repûblica apresentou seu proje-to urbano aos habitantes de Nuevo San Juan, em 1944, ele provocouincompreensâo. "Por que o senhorfaz ruas tâo grandes ?", perguntou-

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lhe don celedonio Gutierrez, observando que o projeto previa artériasde vinte metros de largura (fotografia no 5).

Fotografia no 4

Musset, A. O deslocamenlo das cidades. uma l radicâo hisoano-americana?

Os lotes de maior prestigio, situados em torno da praça central, daigreja e da prefei tura, foram atr ibuldos às pessoas que poderiamconstruir imediatamente sua residência. Oficialmente, tratava-seassim de evjtar a formaçâo de "dentes esburacados" e de terrenosvagos durante a fase inicial da construçâo. Os outros, aqueles quenâo podiam f inanciar suas casas, foram instalados nas zonas pe-riféricas da nova cidade. Foi o caso de don Celedonio, cuja modestacasa se encontra hoje num terreno que na época estava situado àsmargens do espaço urbanizado. Essa politica restritiva permitia darà cidade em construçâo, o mais râprdo possivel, um rosto quasedefinitivo, favorecendo a emergência de uma paisagem urbana ho-mogênea. No plano funcional, a estratégia utilizada permitia renta-bilizar as operaçôes de organizaçâo urbana e reduzir o custo daimplantaçâo das redes, pois podia-se concentrar o esforço técnicoe financeiro em espaços densamente ocupados em vez de disper-sar as intervençôes no conjunto do terr i tôr io a urbanizar. Ao mes-mo tempo, tal escolha reforçava as estruturas tradicionais da cida-de hispano-americana, pois todos os edificios simbôlicos do podere do urbanismo encontravam-se reunidos num luqar central .

Fotografia no 5: Uma rua de Nuevo San Juan Parangaricutiro (México)

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De modo indireto, a implantaçâo desse modelo servia também (etalvez principalmente) para a reproduçâo das divisôes espaciais esociais que prevaleciam na cidade destruida. Através dos séculos, omesmo sistema foi util izado para que cada um permanecesse emseu lugartanto na sociedade quanto no espaço urbano. Foi assim que,apôs o grande terremoto de 1751 e o deslocamento da cidade paraHorca, os oficiais municipais de chillân foram encarregados de ven-der e atribuir à maior oferta os lotes recortados em quarteirôes prô-ximos à praça central, a fim de preservar o equilibrio econômico esocial da comunidade. Esse sistema de atr ibuiçâo permit ia aos ci-dadâos mais r icos de instalarem-se perto dos locais do poder eassegurava a perenidade da organizaçâo pol i t ica da cidade. paragarant ir a legi t imidade dessa part i lha, todos aqueles que haviamobtido um cargo municipaleram considerados como prioritârios paraadquirir um terreno dos lados sul e oeste da praça central, ou nos oitoquarteirôes que formavam o primeiro quadrado da cidade. os outrosvecinos, menos afortunados ou menos implicados na vida pûblica (oque constantemente vinha junto) deviam passar pelo sorteio parareceber um lote edificâvel.25 Nesse sentido, o abandono de san JuanParangaricut i ro e a construçâo do Nuevo san Juan inscrevem-senuma longa tradiçâo hispano-americana em que, para as elites eco-nômicas e para o poder politico, a reproduçâo da forma urbana ain_da é o melhor meio de garant ir e de perpetuar a ordem social .

Conclusâo

Segundo os dados do ûl t imo recenseamento (2000), a Nova paran-garicut i ro conta com mais de 15.000 habitantes e sua economrapermanece voltada para o mundo rural e para a exploraçâo dosrecursos florestais. Paradoxalmente, a nova cidade deve uma par_te de sua prosperidade atual ao desastre que conduziu à destruiçâoda pr imeira san Juan. com efei to, numerosos tur istas nacionais ouestrangeiros continuam a visitar os vestigios da igreja engolida pelacorrente de lava em 1944, ainda que os f luxos tenham se estagna-do desde que o Paricut in nâo estâ mais em at iv idade. euest iona-

25 Archivo General de ChCapitania General , vol . 9rn" 17514, t .272-272v.

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Musset, A. O deslocamento das cidades, uma tradiçâo hispano_americana?

do por Rafael Mendoza Valentin, Ramôn Guerrero se lembra commelancolia dos bons tempos em que ele levava os visitantes àsproximidades do vulcâo:

Parâ nosotros y para los que vendian cosas en el campamen-to, era de mucha alegria lo del volcân. Estabamos gustosos,porque iban muchos tur istas. Es que asl nos l legaba nuestrodineri to (VALENTIN, 1995, p. 65).

Mais do que as torres da velha igreja emergindo do mar de basal-to, é a basilica do Senhor dos Milagres que a cada ano atrai milha-res de peregrinos: graças à imagem do Cristo que soube protegerseus fiéis contra a côlera do vulcâo, a Nova San Juan tornou-se umcentro religioso de primeira importância. As paredes da basilica sâocobertas de ex-votos e de pinturas pr imit ivas evocando as curasmiraculosas e as intervençôes divinas atr ibuidas ao protetor dacomunidade indigena. O Senhor dos Milagres atingiu tal renome quecôpias sâo enviadas às parôquias mexicanas que as pedem e paraas quais uma comissâo avalia o mérito - pois trata-se de nâo des-valorizar uma imagem santa tâo carregada de simbolo e de poder(fotograf ia no. 6)" Esse br i lho é a prova de que o deslocamento deSan Jua5 Parangaricutiro para o Valle de /os Coneybs foi um suces-so, ainda que o abandono do pr imeiro local tenha sido um despe-daçamento para seus habitantes. Esse caso exemplar nâo foi umacidente: ele se inscreve numa tradiçâo solidamente ancorada nasprâticas sociais e culturais importadas pelos espanhois para o NovoMundo e cujo impacto sobre os sistemas urbanos e a organizaçâodos terr i tôr ios ainda nâo foi bem aval iado.

lmaginâr io - usp, 2002, vol . 13, no 14, 139_.166

-tqit '

1 ,

Musset, A O deslocamento das cidades, uma tradiçâo hispano-americana?

Resumo: Em 1943, a erupçâo do vulcâo paricut in conduziuao abandono de San Juan Parangaricut i ro (Michoacân, Mé-xico) e à fundaçâo de uma nova cidade, que obedecia a nor-mas urbanisticas herdadas da época colonial. O objetivo desteartigo é de re-situar esse estudo de caso no contexto mais geraldas dezenas de deslocamentos que caracterizaram a instabi-l idade do sistema urbano hispano-americano desde o inic ioda conquista até meados do século XX. A comparaçâo entreos arquivos coloniais e os da Presidência de Manuel Avi laCamacho permite mostrar a continuidade dos meca-nismosinst i tucionais e dos processos instalados para garant ir odeslocamento de uma cidade e de seus habitantes numasituaçâo de cr ise.

Palavras-chave: San Juan Parangaricut i ro, 1944, desloca-mento, histôr ia urbana, organizaçâo do terr i tôr io.

Abstract: In 1943, the eruption of the Paricutin volcano led tothe abandonment of San Juan Parangaricut i ro (Michoacân,Mexico) and to the foundation of a new city, which followed theurbanistic rules inherited from the colonial period. This articleaims at replacing this case study within the most generalcontext of the tens of displacemeni that character ize theHispano-American urban system's unsteadiness since thebeginning of the conquest until the middle of the XX century.The comparison between the colonial fi les and those of Ma-nuelAvi la Camacho's Presidence al lows showing the cont i-nui ty of the inst i tut ional mechanisms and the processes setto ensure the displacement of a ci ty and i ts inhabitants in acr is is si tuat ion.

Key words: San Juan Parangaricut i ro, lg44, displacement,urban history, territory organization.

lmaginâr io - usp,2007, vol .13, n" 14,139-166

Resumen: En 1943, la erupciôn delvolcân Paricut in condu-jo al abandono de San Juan Parangaricutiro (Michoacân, Mé-xico) y a la fundaciôn de una nueva ciudad, que obedecia anormas urbanist icas heredadas de la época colonial . El ob-jetivo de este articulo es re-situar este estudio de caso en elcontexto mâs generalde decenas de desplazamientos quecaracter izaron la inestabi l idad del s istema urbano hispano-americano desde el inicio de la conquista hasta mediados delsiglo XX. La comparaciôn entre los archivos coloniales y losde la Presidencia de ManuelAvila Camacho permite mostrarla cont inuidad de los mecanismos inst i tucionales y de losprocesos instalados para garantizar el desplazamiento de unaciudad y de sus habitantes en una si tuaciÔn de cr is is.

Palabras clave: San Juan Parangaricut i ro-1944, despla-zamiento, histor ia urbana, organizaciÔn del terr i tor io-

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e-mail: musset@ehess-frRecebido em 1 1 /07/2006.Aceito em 27/09/2006.