129

O LUGAR DA AUSÊNCIA: LUTA DE CLASSES E DIREITOS NA FRUTICULTURA IRRIGADA DO SÃO FRANCISCO

  • Upload
    sussex

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

2

ID 312

CLASSE E GÊNERO NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA SINDICAL PARA ASSALARIADOS RURAIS

Camilla de Almeida Silva Guilherme José Mota Silva José Fernando Souto Júnior Resumo: O Submédio São Francisco se destaca por seu dinamismo econômico associado à fruticultura irrigada, como um dos maiores produtores de frutas no país. O aumento do número de trabalhadores rurais assalariados em consequência da fruticultura irrigada garantiu a inserção de muitas mulheres nesse mercado de trabalho. A partir de então, a participação destas nas organizações sindicais da região tem se mostrado bastante significativa, pautando também políticas sindicais voltadas ao sexo feminino. Assim, temos como objetivo neste artigo a compreensão do papel desempenhado pelas mulheres nesse mercado de trabalho específico, problematizando como esta condição possibilita a constituição de uma experiência de classe singular. Objetivamos ainda discutir o processo de organização das mulheres no movimento sindical dos trabalhadores rurais, e como isso possibilitou a inserção de demandas e reivindicações específicas das trabalhadoras. Para o desenvolvimento deste trabalho foi utilizada a metodologia qualitativa, privilegiando a análise documental, sobretudo as convenções coletivas de trabalho (CCT), e entrevistas semiestruturadas. A análise do processo de desenvolvimento das CCT negociadas no Vale permite a percepção da ampliação das garantias de direitos às trabalhadoras, podendo ser compreendida tanto pelo grande número de mulheres contratadas pelas empresas fruticultoras, como também pelo ingresso destas nos sindicatos.

Palavras-chave: Sindicalismo rural; Trabalho; Mulheres; Gênero; Assalariadas.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

3

1. Introdução

As reflexões apresentadas neste trabalho envolvem a discussão dos

resultados obtidos nas pesquisas sobre as organizações sindicais de

trabalhadores rurais na região do Vale do São Francisco, iniciada em 2008 com

o apoio da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de

Pernambuco (FACEPE), tendo continuidade, em 2010, com financiamento do

CNPq para o projeto “Ação Sindical no Vale do São Francisco (1990 – 2008)”,

sob coordenação do professor Dr. José Fernando Souto Junior.

O desdobramento das pesquisas sobre as organizações sindicais no

Vale do São Francisco deram margem a uma análise da organização e

demandas de gênero ao mesmo tempo em que procurou evidenciar os conflitos

entre capital e trabalho, como possibilitadores da construção e

desenvolvimento de uma política sindical voltada aos assalariados e

assalariadas da fruticultura irrigada na região do Submédio Vale São Francisco,

em meados da década de 1990.

Para esta sistematização nos detivemos a uma análise de como as

especificidades das mulheres nas relações de trabalho que se estabelecem na

fruticultura possibilitam a constituição de uma “consciência de classe”

(THOMPSON, 2011). Nesse sentido, buscamos evidenciar como as cláusulas

específicas às mulheres na convenção coletiva de trabalho (CCT) da

fruticultura irrigada no Vale do São Francisco são reveladoras de acúmulo e

articulação que expressam uma consciência de classe nos moldes do que

discute Edward P. Thompson.

Nesta análise será enfatizada a ação conjunta dos Sindicatos dos

Trabalhadores Rurais de Petrolina/PE e o de Juazeiro/BA. Temos como

objetivo discutir o processo de organização das mulheres no movimento

sindical rural e como isso possibilitou a inserção de demandas e reivindicações

específicas das trabalhadoras. Para tal, buscamos compreender o papel

desempenhado pelas mulheres na produção de frutas em grande escala para

exportação, problematizando como esta condição possibilitou a constituição de

uma experiência de classe diferenciada.

O marco temporal deste trabalho foi delimitado entre os anos 1994 até

2010. A razão dessa delimitação é que o ano de 1994 foi um marco para o

4

início das negociações que resultaram na primeira Convenção Coletiva de

Trabalho dos Trabalhadores Assalariados da Fruticultura Irrigada.

As argumentações desse trabalho serão desenvolvidas numa análise

que procura demonstrar como a partir de uma política estatal para o

desenvolvimento da região do Vale do São Francisco, modernizaram-se os

modelos produtivos agrícolas locais, possibilitando a emergência de um polo

agrícola, que tem como principal expoente a fruticultura irrigada voltada à

exportação. Este fato repercute também nas relações de trabalho, integrando

milhares de trabalhadores e trabalhadoras, principalmente mulheres, ao

mercado formal de trabalho.

Por fim, tentamos demonstrar como a participação feminina garantiu a

inserção de uma pauta política que levou em consideração os direitos das

mulheres nas CCT, e como esse processo de acúmulo e organização da classe

trabalhadora possibilitou a constituição de uma consciência de classe.

2. Metodologia

A pesquisa sobre o estudo das relações entre classe e gênero na ação

sindical do Vale do São Francisco no pólo Petrolina/PE–Juazeiro/BA destaca

as mulheres trabalhadoras rurais e sindicalistas como sujeitos na análise desse

estudo.

Nesse sentido, os resultados dessetrabalho são frutos de uma análise

qualitativa dos dados levantados no decorrer das pesquisas. Num primeiro

momento foi realizado um levantamento bibliográfico enfatizando os aspectos

relacionados à temática da pesquisa; sendo levados em consideração os

aspectos socioeconômicos da região do Submédio Vale do São Francisco, bem

como temas correlatos à sociologia do trabalho e às relações de gênero.

A partir da coleta de dados nos noticiários locais,Gazzeta do São

Francisco, em Petrolina/PE, e Diário da Região, em Juazeiro/BA, buscamos

publicações que pudessem contribuir com a pesquisa sobre os sindicatos de

trabalhadores rurais estudados. Nos acervos dos sindicatos supracitados,

coletamos informações de documentos arquivados, tais como as atas,

periódicos e, principalmente, as convenções coletivas de trabalho.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

5

Na análise documental das Convenções Coletivas de Trabalho (CCT)

da fruticultura irrigada, atentamos para as conquistas da classe trabalhadora a

cada ano, enfatizando as cláusulas específicas às trabalhadoras do sexo

feminino. Também nos utilizamos de 16 entrevistas semiestruturadas e

abertas, com lideranças e dirigentes sindicais, além de autoridades do poder

público que atuaram nas negociações das convenções, a fim de suprir a

lacunas deixadas pela análise documental, com a história oral.

3. Análise

Contradições do Capital: O Vale do São Francisco

De acordo com os dados do IBGE e do Ministério do Trabalho e

Emprego (MTE), a região do Submédio Vale do São Francisco apresenta um

crescimento populacional acima da média da região Nordeste. No período de

2000 a 2007, de acordo com o MTE, Petrolina/PE chegou a contabilizar um

crescimento populacional de 22,78%1. Noticiários da região divulgaram dados

do IBGE (2010) que apontam o município como detentor do terceiro maior PIB

agrícola do país, em torno de R$ 658 milhões.2

O pólo Petrolina-Juazeiro constitui o exemplo mais expressivo dos

impactosmodernizadores da agricultura irrigada nordestina, podendo ser

considerada uma das regiões agrícolas mais dinâmicas do Nordeste, devido,

principalmente, aos investimentos estatais na década de 1970, que tinham

como objetivo o desenvolvimento de projetos empresariais com a introdução

dos sistemas de irrigação.

Além disso, a participação estatal no desenvolvimento da região vai de

empresas públicas com mega projetos, como a CHESF, a Universidades como

a Universidade Estadual da Bahia - UNEB e, mais recentemente, a

Universidade Federal do Vale do São Francisco – Univasf. Agências de

desenvolvimento como Codevasf, empresas de pesquisa como a Embrapa

também fazem parte das políticas de estado para a região.

                                                            1 Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Sertão do São Francisco – PE. Disponível em: <http://sit.mda.gov.br/download/ptdrs/ptdrs_qua_territorio083.pdf>. Acesso em 23 de julho de 2013. 2Blog do Meireles. Disponível em: <http://blogdomeireles.com.br/?p=18043> Acesso em: 23 de julho de 2013.

6

Como uma peculiaridade em meio ao sertão nordestino, o Vale

destacou-se durante os anos 1990 como o maior produtor e exportador de

frutas e verduras de alta qualidade no país. Os principais cultivos incluem a

manga e a uva, vendidas ainda “frescas” para a Europa e Estados Unidos,

além de outros cultivos que são destinados ao mercado nacional, como a

banana, côco, maracujá, e a acerola (DAMIANI, 2003).

As transformações na base produtiva, tendo como locomotiva a

fruticultura, promoveu um processo de reestruturação da agricultura irrigada no

submédio São Francisco. Ao mesmo tempo em que intensificou a substituição

dos pequenos produtores pelos grandes empresários fruticultores, da

automação da produção, levou a redução dos níveis de emprego e deteriorou

as condições de trabalho (CORDEIRO NETO & ALVES, 2009, p.345 apud

SILVA, 2001).

A relação de trabalho que anteriormente se dava no âmbito da

agricultura familiar, da agricultura de sequeiro, ou de fundos de pasto, deu

lugar à implantação de grandes empresas fruticultoras. Com a modernização

das relações de produção, o trabalho rural também passou por reestruturações,

assumindo características típicas do assalariamento, a exemplo de jornadas

fixas de trabalho e grande controle tanto em relação à produtividade, quanto na

qualidade do serviço.

Relações de trabalho no Vale do São Francisco: a “qualificação” do

trabalho feminino

O crescimento da agricultura irrigada, entre o final da década de 1980 e

início da década de 1990, produziu uma variedade de efeitos, dentre os quais a

geração de empregos, passando a atrair trabalhadores oriundos de áreas

distintas do Nordeste e até mesmo de outras regiões. Nesse período, a região

do submédio Vale do São Francisco foi transformada numa das poucas áreas

do Nordeste onde a taxa de imigração superava a taxa de emigração

(DAMIANI, 2003).

Esta atração populacional se dava em decorrência de uma imagem do

Vale do São Francisco propagada como sinônimo de um intenso crescimento

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

7

econômico, que ofertava melhores condições de vida e trabalho aos migrantes,

além de grandes oportunidades de negócios para o empresariado.

Nesse contexto, as mulheres representavam uma quantidade bastante

significativa de força de trabalho a ser empregada no nascente mercado de

produção frutícola.De acordo com Cavalcanti (2012: 78),

sessenta e cinco por cento dos trabalhadores são mulheres. Dos 31 mil trabalhadores associados ao sindicato, 20.025 são mulheres. A ampla maioria de mulheres filiadas está ligada à absorção da mão de obra feminina pela cultura da uva (CAVALCANTI, 2012:78 apud SILVA, 2012).

Estes números, muito embora estejam aquém da real quantidade de

trabalhadores envolvidos na fruticultura, evidenciam o grau de informalidade e

falta de registro oficial daqueles que efetivamente trabalham na região.

Na produção defrutas para exportação há uma forte distinção da força

de trabalho entre homens e mulheres por tipo de cultura. Os homens são

predominantes nas fazendas de produção de manga para exportação,

enquanto que a “delicadeza” atribuída à mulher garante às trabalhadoras uma

maior possibilidade de emprego nos parreirais.

A “feminização” do trabalho na viticultura se dá pela preferência em

empregar as trabalhadoras rurais devido ao caráter artesanal da produção, o

que exige mais “delicadeza” e “precisão” no cultivo, sendo esta argumentação

o principal apontamento nos discursos dos produtores, que também é

reforçado entre os trabalhadores e os sindicalistas, como se esta fosse a única

condição para o trabalho assalariado do sexo feminino.

Não é porque os patrões são bons não, é por que o trabalho da uva ele é muito delicado, e aí ele é mais feito pela mão feminina, por exemplo, ralear uva, raleia mais as mulheres,né? Queaquela parte difícil, todo trabalho da uva é um trabalho delicado, e as mulheres é quem mais têm facilidade para fazer isso, é uma mão de obra especializada digamos, né? Eaí elas dão conta do recado por que mulher é muito inteligente mesmo, a verdade é essa, né?(...) Assim, é um trabalho qualificado e tem a ver muito com a delicadeza da mão, não sei (Rita Maria Rosa da Silva – Assessora da FETAPE/Polo Petrolina)3.

                                                            3 Entrevista realizada em Petrolina/PE, dia 21 de agosto de 2012.

8

Desse modo, a viticultura emprega, em sua maioria, as trabalhadoras

do sexo feminino, contribuindo assim para o estigma que trata da construção

social do sexo feminino como o “sexo frágil” (MOURA, 1999), qualificado

apenas para o exercício do trabalho “leve”, “fácil” e com pouco advento

tecnológico empregado na produção.

A qualificação do trabalho feminino está associada às habilidades

“naturais”, como a “delicadeza” e a “sensibilidade”. Entretanto, esse tipo de

“qualificação”, que também está ligada à esfera reprodutiva e à feminilidade,

não possui prestígio e status de qualificação para o mundo do trabalho. Assim,

quando muito, a qualificação é classificada apenas como “qualidade feminina”,

e mesmo que sejam vantajosas para o processo produtivo, não se traduz como

carreira, e tampouco está imbuída de acréscimo salarial (KERGOAT, 1989).

Entretanto, em oposição à “qualificação do trabalho feminino”, os

setores mais modernizados da produção, que exigem treinamento e

qualificação são masculinizados. Ângela Araújo (2005: 93) destaca que

pesquisas realizadas em diferentes ramos industriais demonstraram

a ocorrência de um processo semelhante de masculinização dos setores modernizados através da introdução de equipamentos de última geração ou da complexificação de tarefas diante da aproximação entre operação, inspeção de qualidade e manutenção, processos que exigem treinamento e novas qualificações (ARAÚJO, 2005: 93).

Na irrigação, de acordo com Cavalcanti (2003), quanto mais sofisticada

é a tecnologia empregada na realização de uma tarefa, menos mulheres

participam dela. Dessa maneira, a autora afirma haver uma não qualificação de

mulheres em atividades que não sejam aquelas tipicamente condizentes com

as “características” atribuídas ao sexo feminino.

Sendo assim, tal naturalização chega a limitar a participação das

trabalhadoras rurais em outras atividades do processo produtivo, tendo em

vista que as atividades desenvolvidas na irrigação dividem homens e mulheres

de acordo com suas características físicas e fisiológicas, com base na

construção social da feminilidade e da masculinidade, restando às mulheres as

“tarefas leves” do raleio e colheita da uva e os packinghouses.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

9

A Divisão Sexual do Trabalho como conceito

A divisão sexual do trabalho é associada à divisão do trabalho social

decorrente das relações sociais entre os sexos, e caracteriza a designação

prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva,

e simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor

social adicionado (HIRATA; KERGOAT, 2007).

Nesta perspectiva, há uma necessidade em transcender o “plano

conceitual” da divisão sexual do trabalho a partir de novas configurações

propostas por Hirata e Kergoat (2007: 598) no sentido de pensar o trabalho

assalariado das mulheres na fruticultura irrigada no Vale do São Francisco com

caráter “doméstico” e “artesanal”.

depois que ‘a família’, na forma de entidade natural, biológica, se esfacelou para ressurgir prioritariamente como lugar de exercício de um trabalho, foi a vez de implodir a esfera do trabalho assalariado, pensado até então apenas em torno do trabalho produtivo e da figura do trabalhador masculino, qualificado, branco (HIRATA; KERGOAT, 2007: 598).

Dessa forma, propõe-se a distinção dos princípios da divisão sexual do

trabalho em dois princípios organizadores, quais são: o princípio da separação

(que firma a existência, substancialmente, de trabalhos de homens e trabalhos

de mulheres), e o princípio hierárquico (em que há uma “valoração do

trabalho”, no sentido de que um trabalho de homem “vale” mais do que um

trabalho de mulher).

Para Hirata e Kergoat (2007: 599), essa legitimação não

necessariamente significa que a divisão sexual do trabalho seja um dado

imutável. Inversamente, as modalidades da divisão sexual do trabalho passam

por variações temporais e espaciais, e não consistem em uma única forma de

divisão do trabalho, mas se articulam a outras. O principal elemento em

comum, em todas as variações dessa categorização estaria na hierarquização

do trabalho conforme o sexo de quem o realiza.

Assim, mesmo que o agrupamento entre os sexos não consista na

única forma de divisão do trabalho em uma sociedade ou cultura, e tampouco

seja exclusivamente ocidental, a grande importância da divisão do trabalho

entre os sexos torna-se visível pela capacidade de dar notoriedade às relações

10

sociais. Nesse sentido, “a divisão sexual do trabalho é o suporte empírico que

permite a medição entre relações sociais (abstratas) e práticas sociais

(concretas)” (MARCONDES et al, 2003 apud HIRATA: KERGOAT, 1998:95).

A hierarquia que organiza, pela “valoração”, as diferenças entre os

trabalhos realizados por homens e por mulheres, possibilita o não

reconhecimento dos trabalhos que ocorrem na esfera doméstica e são

relacionados ao mundo privado. Atribui-se às mulheres o cuidado com a casa e

com as pessoas que nela vivem, mas não se considera trabalho, já que estas

são “apenas” atividades de manutenção para a realização do trabalho

produtivo, que é realizado em espaço público e assalariado.

Um dos principais elementos organizadores da atribuição de hierarquia

e valor que legitima o que seria o “verdadeiro trabalho” é a separação entre o

trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo. Entretanto, ao transcender a esfera

doméstica, o trabalho feminino é acrescido de “valor” em quais aspectos?

O trabalho “produtivo” e a identidade da trabalhadora continuam a ser

de mulher, e enquanto mulher, o seu lugar permanece ligado à casa e à

maternidade. No momento em que estas mulheres passam a transitar nos

espaços públicos, por mais que haja uma conscientização da opressão da

desigualdade da divisão do trabalho doméstico, constata-se que mesmo

conscientes dessa desigualdade, militantes e sindicalistas continuam a se

incumbir do essencial desse trabalho reprodutivo (HIRATA; KERGOAT, 2007:

607).

Nas entrevistas realizadas com sindicalistas do sexo feminino, nos

sindicatos dos trabalhadores rurais pesquisados, percebemos que a fala de

algumas dessas mulheres sindicalistas revela certo ressentimento em não ter

reproduzido as atividades designadas à mulher no âmbito privado familiar.

Eu sofro muito porque foi... Hoje eu não posso tá muito perto dele [o companheiro], assim, toda hora eu to distante, ele precisa muito de mim hoje.(...) O movimento [sindical] é meio, nesse ponto aí...Eu gosto muito dele, mas ele é meio ingrato. Ingratoassim, porque a gente deixa até, né? Mas eu gosto desse movimento ingrato. Ele [o companheiro] não tem a visão hoje e eu não tenho como tá bem perto dele toda hora que ele precise. Mastem uma pessoa que fica lá e ele disse que é melhor do que eu, às vezes. Porque eu fico daqui pracolá, não paro, fazendo uma coisa, fazendo outra, e essa pessoa

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

11

se dedica (Maria das Dores Aires da Silva, sindicalista – STR Lagoa Grande)4.

O movimento sindical é associado a um “movimento ingrato”, porque a

sindicalista ao transcender a esfera doméstica, mesmo consciente das amarras

que a prendem ao seio da família, não se desvinculou de seu papel doméstico.

Para suprir o seu lugar de ausência, as tarefas domésticas foram delegadas a

uma outra pessoa, geralmente mais jovem e do sexo feminino.

A inserção da mulher no “setor produtivo” do trabalho mantém ainda

uma ligação com a esfera privada. No Vale, a característica que confere à

mulher uma maior possibilidade de trabalho na viticultura e

nospackinghousesestá ligada ao fato de ter uma mão de obra “especializada”

em realizar tarefas tipicamente associadas ao universo feminino – a poda, a

colheita e o raleio do processo delicado que é o cultivo da uva.

Entretanto, é importante que haja uma articulação entre as esferas do

trabalho doméstico e assalariado (reprodução e produção), no sentido de,

como defende Kergoat (1987: 89), não se considerar a indissociabilização

dessa dicotomia.

por não se considerar o conjunto produção/reprodução como um todo indissociável, tudo se passa como se devêssemos encontrar um princípio de coerência único, e que essa coerência devesse ser relacionada a um lugar institucional: a família ou a fábrica. O que é apenas, no fim das contas, uma das maneiras de pôr em funcionamento a dicotomia clássica: aos homens, o trabalho assalariado – e quando as mulheres inserem-se positivamente nesse espaço, isto continua a ser considerado como excepcional – às mulheres, a família: lugar de enclausuramento e de opressão; lugar fechado (KERGOAT, 1987: 89).

A análise do gênero (sexo) e da classe deve estar articulada, de modo

que, assim como produção e reprodução, o âmbito da casa e do trabalho sejam

espaços de interação através de relações sociais fundamentais. A noção de

“uniformidade” da classe trabalhadora trata de ocultar uma importante diferença

no mundo do trabalho com relação ao sexo dos trabalhadores, já que as

mulheres se tornam invisíveis quando analisada a classe como um todo

(SOUZA-LOBO, 2011).

                                                            4Entrevista realizada em Lagoa Grande/PE, dia 08 de Julho de 2011.

12

Assim, atentamos para o fato de que não se pode compreender o

trabalho assalariado feminino a partir da uniformidade da noção de classe, mas

tomando o gênero e as experiências singulares de classe que esta condição

acarreta às trabalhadoras. Nesse sentido, adotamos a perspectiva de E. P.

Thompson (2011: 9-10) que compreende a classe como um fenômeno histórico

e processual, e as experiências atreladas a ela determinadas pelas relações de

produção.

A ação sindical no Vale do São Francisco e a inserção de

assalariadas e assalariados rurais ao mundo dos direitos

A atuação dos sindicatos tomados como referências neste estudo (o

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Petrolina/PE e o Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Juazeiro/BA) data de período anterior à ascensão da

fruticultura irrigada. O STR Petrolina, por exemplo, foi fundado no início da

década de 19605.

Percebe-se que até o momento de ascensão da fruticultura irrigada no

Vale do São Francisco, no final da década de 1980 e início da década de 1990,

a atuação dos sindicatos foi essencialmente voltada aos pequenos produtores

da agricultura familiar. De acordo com Damiani (2001: 23), a mudança no perfil

de atuação dos sindicatos foi resultado do estabelecimento de empresas de

agricultura irrigada com um grande número de funcionários assalariados.

Paulo José Mendes, auditor fiscal do Ministério do Trabalho, que atuou

como subdelegado regional do trabalho em Petrolina/PE no período das

primeiras negociações da convenção coletiva, relata as dificuldades na

modificação dessa orientação das atividades sindicais:

O sindicato que antes via apenas a pequena produção, os trabalhadores de sequeiro, que era a representação deles, encontrasse algo novo, que era a relação de trabalho vinculada, isso criou uma dificuldade de intervenção de ordem política para fazer com que o sindicato dos trabalhadores compreendesse que eles tinham que olhar esse lado dos trabalhadores com mão de obra

                                                            5 Histórico do sindicato. Disponível em: http://strpetrolina.com.br/institucional. Acesso em: 22/07/2013.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

13

vinculada. (Paulo José Mendes de Oliveira, Auditor fiscal do Ministério do Trabalho).6

A partir de uma nova orientação de atuação política voltada aos

assalariados rurais da fruticultura, o número de associados e,

consequentemente, a arrecadação do sindicato, expandiu consideravelmente.

Até o início da década de 1990 eram poucos os associados, e estes em grande

parte eram pequenos produtores de áreas de sequeiro. O ingresso da categoria

dos assalariados rurais refletiu além de uma maior arrecadação das

organizações sindicais, na modificação de suas estruturas físicas e, sobretudo,

de suas atuações.

O diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Petrolina na época,

Francisco Pascoal (Chicou), relatou tais mudanças com o início da luta sindical

junto aos assalariados:

Pra você ter ideia, o sindicato não tinha uma bicicleta pra andar, depois que os trabalhadores começaram a acreditar e pagar ao sindicato, com menos de três meses a gente já tinha comprado um carro pra o sindicato. Então o sindicato foi crescendo dentro dessa luta, tanto na política de assalariado como na política de agricultura familiar. (Francisco Pascoal Cipriano da Silva, sindicalista)7.

Nos primeiros anos da década de 1990, teve início a atuação dos

Sindicatos junto aos assalariados rurais. Primeiramente, na margem

pernambucana do Submédio São Francisco, essa atuação consistiu apenas em

reuniões nos bairros periféricos das cidades de Petrolina e nos distritos de

Vermelhos, Izacolândia e Lagoa Grande, onde residia grande parte dos

trabalhadores assalariados das empresas fruticultoras.

Essas reuniões tinham como objetivo a aproximação entre as

organizações sindicais e os trabalhadores, e possibilitavam também aos

sindicalistas o entendimento de como se estabeleciam as relações de trabalho

naquele momento na fruticultura irrigada.

Os espaços de diálogo entre sindicatos e trabalhadores também

contribuíram para uma aproximação destes com as garantias que a legislação

trabalhista lhes assegurava. Assim como também proporcionava aos

trabalhadores que participavam das reuniões o repassasse desse

                                                            6Entrevista realizada em Recife/PE, dia 30 de Abril de 2012. 7 Entrevista realizada em Petrolina/PE, dia 09 de Dezembro de 2011.

14

conhecimento nas empresas em que trabalhavam, contribuindo para o

processo de conscientização dos assalariados rurais a respeito dos seus

direitos e da crescente representação sindical.

A advogada da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado

de Pernambuco (FETAPE), no início da década de 1990, Cida Pedrosa,

evidenciou como aconteceu essa articulação inicial entre trabalhadores e

sindicatos, destacando as iniciativas de conscientização dos trabalhadores

quanto aos seus direitos.

Primeiro era conhecer que assalariamento era esse, como é que se davam as relações de trabalho, quem é que eles empregavam, os níveis de direitos cumpridos, e aí a gente foi criando um grupinho e começou a fazer uma coisa que a gente fazia na igreja, eu, no caso que vinha com essa experiência, que era fazer os cursinhos, os cursinhos é as pessoas se apropriarem dos seus direitos e levarem isso para a empresa, então juntar grupos de seis, sete, oito apresentar o que são os direito do trabalho, direito a carteira assinada, a questão do agrotóxico, das férias, do entender eu tenho esses direitos e tenho direito a cobrar isso, e aí fomos criando representantes por estrutura (Maria Aparecida Pedrosa Bezerra, advogada).8

Cida Pedrosa evidenciou ainda a necessidade dos sindicatos, naquele

momento, conhecerem quem eram esses trabalhadores assalariados e como

se dava as relações de trabalho nas empresas. Segundo a advogada:

Quem trabalhava? Mulheres! Muitas mulheres. O raleamento de uva

é um trabalho muito feito por mulheres, tem uma mão de obra

assalariada de mulheres muito grande e é um trabalho delicado. Não

é o trabalho da cana, é um trabalho de processamento delicado;

muitos jovens estudantes, gente muito jovem trabalha lá, e a gente

descobriu que o grande cancro era o agrotóxico, além de todos eles,

era o agrotóxico. Deixavaas pessoas doentes e essa coisa dessa

mão de obra feminina e jovem e aí a gente põe na convenção coletiva

algumas guaridas para as mulheres e pros jovens que foram de muito

difícil entendimento(Maria Aparecida Pedrosa Bezerra, advogada).

Todo esse trabalho, iniciado em 1990, de reuniões de aproximação e

reconhecimento junto à base, de fiscalização das empresas e da própria

compreensão interna dos sindicatos sobre necessidade da luta com a                                                             8 Entrevista realizada em Recife/PE, dia 16 de dezembro de 2011.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

15

categoria, tem como consequência a assinatura da primeira convenção coletiva

de trabalho dos assalariados rurais do Vale do São Francisco no início do ano

de 1994.

A primeira convenção coletiva de trabalho da fruticultura foi negociada

apenas entre os sindicatos de Petrolina e Santa Maria da Boa Vista. Ainda que

houvesse assalariamento de trabalhadores na margem baiana do submédio

Vale do São Francisco, os sindicatos baianos, nesse primeiro momento não

aderiram às negociações, o que aconteceu apenas anos depois, em 1997.

Dentre as conquistas da primeira convenção coletiva, o movimento das

mulheres trabalhadoras rurais alcançou aquela, que sem dúvidas, está

intrínseca às discussões de gênero em todas as instâncias sindicais: a

igualdade salarial9. Entretanto, isso não aparece explícito na convenção como

uma conquista das trabalhadoras, constando apenas como a garantia de um

salário unificado para toda a categoria.

Dentre as sessenta e uma cláusulas aprovadas nesta primeira

convenção, quatro são especificamente voltadas à trabalhadora rural. Quais

são: garantia de estabilidadeno emprego à trabalhadora gestante, e a

adequação desta a um trabalho condizente com sua condição, recebendo o

mesmo salário. Além da estabilidade, essa mesma cláusula reforça o direito

legal da trabalhadora assalariada ao salário-maternidade, conforme a

constituição federal; direito a creche no local de trabalho; garantia de meia hora

de descanso em cada turno de trabalho durante o período de amamentação

até que o filho complete seis meses; e por fim, em caso de aborto não

criminoso, direito a duas semanas de repouso.

A análise dessas cláusulas revela como as conquistas neste primeiro

momento ainda estão relacionadas às questões domesticas vinculadas a

mulher, sobretudo, à maternidade. Garantindo, dessa forma, a possibilidade de

que a mulher continue a exercer suas funções profissionais concomitantemente

às atribuições domésticas.

No ano seguinte foram negociadas mais quatro novas cláusulas, e

dentre elas, uma é específica à saúde da mulher trabalhadora rural. Esta

cláusula asseguraà trabalhadora a liberação de um dia por ano para a

                                                            9 Cláusula 1ª da CCT de 1994 (salário unificado).

16

realização de exames preventivos ginecológicos; para as trabalhadoras com

mais de 40 anos é garantido um dia por semestre.

Chama atenção que cláusulas específicas sobre o trabalho assalariado

feminino só aparecem na CCT de 1997, convenção que marca a unificação das

negociações entre sindicatos baianos e pernambucanos. Essas são as

cláusulas 64ª e 65ª: a primeira determina que o trabalho da mulher seja

executado de acordo com suas peculiaridades físicas e fisiológicas. Já pela

cláusula seguinte, fica proibido qualquer tipo de discriminação ou esterilização

para permanência do emprego, sendo cabíveis de penalidade também aqueles

empregados que comprovadamente seja agente de assédio sexual à mulher

trabalhadora.

Diferentemente das demais, estas novas cláusulas revelam

características diferenciadas. Apesar de específicas à mulher, estão

diretamente vinculadas à esfera do trabalho, respeitando as especificidades da

mulher, mas não necessariamente vinculando-a ao âmbito doméstico.

Além das assembleias de construção das pautas e dos momentos de

negociações das convenções coletivas, as trabalhadoras e sindicalistas

participam também de outros espaços de militância e luta pela garantia dos

direitos das mulheres.

A relatoria do I Encontro de Capacitação de Mulheres Assalariadas

Rurais do Vale do São Francisco, realizado nos dias 11 e 12 de novembro de

1999, em Petrolina, demonstra que o encontro teve como objetivos: a avaliação

da situação das mulheres assalariadas rurais, e os problemas diários no

ambiente de trabalho e com a família; esclarecimento sobre os direitos da

mulher garantidos na Constituição Federal de 1988 e na Convenção Coletiva; e

o fortalecimento da organização das mulheres trabalhadoras rurais do Vale do

São Francisco. Neste encontro estiveram presentes, representantes dos

Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de Petrolina, Lagoa Grande, Santa Maria

da Boa Vista, em Pernambuco, e de Juazeiro, na Bahia.

As trabalhadoras denunciavam o não cumprimento de cláusulas

acordadas nas convenções coletivas de trabalho como, por exemplo, a

dificuldade em conseguir afastamento nas empresas, no período de

amamentação, principalmente, na época de colheita. Também foi relatada a

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

17

discriminação e exploração no local de trabalho, chamando atenção para os

casos de assédio sexual cometido pelos chefes ou patrões10.

Em matéria publicada pelo jornal Gazzeta do São Francisco, com o

título “Mulheres reivindicam salário maternidade”, a imprensa local noticiou a

ocupação da sede do INSS em Petrolina.

A Federação dos Trabalhadores em Agricultura do Estado de Pernambuco promoveu na terça-feira, 14, uma manifestação com cerca de duzentas trabalhadoras rurais que reivindicaram em frente à sede do INSS em Petrolina o direito a assistência maternidade. Elas entregaram um documento a gerencia do órgão pedindo melhoria nos serviços prestados. Segundo as trabalhadoras rurais este direito não está sendo cumprido, visto as dificuldades que as gestantes encontram na hora de pedir o benefício11.

Dessa forma,enfatizamos a importância das assembleias, das reuniões

de bairros, dos atos públicos, das assembleias de construção e negociação da

CCT e dos demais espaços sindicais como um possibilitadores de uma

articulação de interesses e identidades de classe.

A partir dessa articulação de interesses e identidades, e da

compreensão de que estas são diversas, inclusive dentro da perspectiva do

gênero, se faz possível a construção de pautas e bandeiras especificas que se

articulam e que possuem um pano fundo comum que é a oposição aos

interesses de outros sujeitos, no caso a classe patronal.

Para E. P. Thompson,

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus (THOMPSON, 2011).

Pensar a classe como um fenômeno processual, não limitando a

análise a uma perspectiva estruturalista nos permite compreender de que

forma as especificidades das mulheres nas relações de trabalho que se

estabelecem na fruticultura irrigada possibilitam a constituição de uma

“consciência de classe” (THOMPSON, 2011).

                                                            10Relatório do I Encontro de capacitação de mulheres assalariadas rurais do Vale do São Francisco. Petrolina/PE, 11 e 12 de novembro de 1999. 11Gazzeta do São Francisco. Petrolina/PE, 19 a 25 de março de 2000.

18

As cláusulas específicas às mulheres na convenção coletiva da

fruticultura irrigada no Vale do São Francisco são reveladoras desse acúmulo e

articulação da classe trabalhadora. No processo de construção, negociação e

defesa dessas cláusulas é que se objetivam as singularidades das experiências

de classe dessas mulheres.

4. Considerações Finais

A atuação conjunta dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais no Vale

do São Francisco, como uma política estimulada pela Federação dos

Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (FETAPE), foi uma

condição importante para a articulação entre trabalhadores e sindicatos,

culminando na construção da primeira convenção coletiva no ano de 1994,

inserindo milhares de trabalhadores e trabalhadoras assalariadas ao “mundo

dos direitos”.

Primeiramente devemos perceber a influência da fruticultura irrigada, e

do processo de desenvolvimento da região na organização dos Sindicatos dos

Trabalhadores Rurais do Vale do São Francisco. No inicio da década de 1990,

a ação sindical se volta para políticas que assegurassem melhorias na

qualidade de vida e trabalho dos assalariados e assalariadas rurais.

Dentro desse panorama, sobressai a participação da mulher tanto no

mercado de trabalho, quanto no movimento sindical, evidenciando as suas

influências quando analisada a política sindical, que em grande medida busca

assegurar o direito da mulher trabalhadora rural assalariada.Devemos ainda

atentar para tal processo de articulação de interesses e identidades, ao

reconhecimento dos direitos no ambiente de trabalho como espaço de

reafirmação da trabalhadora do sexo feminino.

Entretanto, não podemos deixar observar que este processo é também

repleto de contradições e debilidades, seja no processo de construção de um

discurso sindical voltado às mulheres, seja na garantia do cumprimento das

cláusulas estabelecidas na convenção.

O discurso sindical apresenta-se contraditório no sentido de que os

sindicalistas também reafirmam o lugar da mulher notrabalho a partir da

construção social e cultural do gênero, que imputa a delicadezacomo uma

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

19

característica essencialmente feminina, ou como uma“qualificação” condicional

para a garantia de emprego das mulheres na viticultura. Isso se revela,

inclusive, na fala de sindicalistas do sexo feminino.

Porque assim, a uva ela tem uma mão de obra que ela é mais delicada, né? (...) Não estou discriminando a mão de obra masculina, mas a uva, ela tem um pelinho, ela tem uma massinha que não pode ser tirada. (...) Porque a mão de obra é mais delicada, a uva, ela exige delicadeza na sua mão de obra. É diferente da manga. A manga, você cortou, jogou alí no contentor, então é aquela coisa mais grosseira. (...) Mas no caso da uva tem que ser mais delicada, não pode ser pegada como se tivesse pegando um cacho de flor de manga, né? E a gente percebe que não é só 70%, nos packingshouses, eles, muitas das vezes, tem 90% [de mulheres] (Maria Joelma da Silva, sindicalista)12.

Recorrentemente, são atribuídas outras “características” ao sexo

feminino, no sentido de conferir ao trabalho feminino qualidades que garantem

a inserção das mulheres nestes postos de trabalho.

As mulheres são mais educadas, as mulheres aprendem mais rápido, as mulheres não são rebeldes, (...) a mulher é mais pontual, as mulheres elas tem mais jeito para o trabalho muito doméstico que é uva, muito artesanal. Elaé mais preocupada com horário de sair, com o horário de chegar, e ela está ali por uma questão muito séria, que é a necessidade de casa. Ela não está lá porque gosta de estar lá, ela está porque ta passando precisão (Josefa Rita, sindicalista).13

As características associadas ao sexo feminino que são apontadas

pela sindicalista, como por exemplo, a não rebeldia, a educação, a

pontualidade, e responsabilidade com o trabalho, são reveladoras de uma

submissão justificada na necessidade de manutenção do lar, e nesse contexto,

também do ponto de vista econômico. O assalariamento, neste sentido,

transfere para a mulher a condição de “chefe da casa”, já que ela passa a ser

responsável pelo orçamento doméstico, mas não necessariamente, ela será

“chefe da família” (WOORTMAN, 1987: 67-68).

Apesar dos significativos avanços,“falta ainda muita conscientização e

união entre as próprias mulheres”, como já evidenciavam as trabalhadoras e

sindicalistas em 1999 durante o I Encontro de Capacitação de Mulheres

Assalariadas Rurais. Oamadurecimento de um discurso que resignifique o

                                                            12 Entrevista realizada em Petrolina/PE, sem data. 13 Entrevista realizada em Sobradinho/BA, dia 17 de julho de 2013.

20

papel da mulher nesta dicotomia indissociável do trabalho doméstico e

assalariado, ainda se mostra um desafio entre trabalhadoras e militantes no

Vale do São Francisco.

Um outro empecilho aos sindicatos pode ser apontado pelas

dificuldades relatadas no cumprimento das cláusulas negociadas nas

convenções por parte das empresas. Nesse ponto, algumas cláusulas

relacionadas ao trabalho feminino tem resistência do patronato no seu

cumprimento. Dentre estas, os sindicalistas frequentemente apontam a não

existência de creches nas empresas frutícolas do Vale como o caso mais

ilustrativo.

O jornal local Gazzeta do São Francisco de novembro de 2007

publicou uma reportagem sobre a preparação dos trabalhadores rurais para a

convenção coletiva de 2008/2009, na qual destacava a fala da secretária de

Assalariados do STR Petrolina, Maria Joelma.

Por outro lado, de acordo com a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Petrolina é possível verificar o descumprimento de alguns pontos da Convenção 2007/2008. “Temos percebido muitos direitos descumpridos como a carga horária dobrada, principalmente em packinghouses. Já pegamos gente trabalhando 16 horas, quando a lei só permite 8 horas, podendo ampliar para mais duas horas, quando negociadas”, afirma a secretária de assalariados do STR Petrolina, Maria Joelma.14

Quando questionada sobre as conquistas e os avanços anuais nas

convenções, a sindicalista Maria das Dores Aires da Silva (Dorinha), aponta

também as dificuldades no cumprimento das pautas, a exemplo da creche.

Uma coisa que a gente toda vida batalhou muito e não conseguiu, assim diretamente foi a creche pra o local de trabalho, isso aí agente nunca conseguiu, foi uma luta, mas nunca conseguiu a questão de creche pra crianças. (...) Em nenhuma empresa... em nenhuma empresa. Isso aí foi uma coisa que a gente bateu, bateu, bateu, mas isso aí na realidade quando saí de um sindicato, não tem força pra outro conquistar (Maria das Dores Aires da Silva, sindicalista).15

No entanto,devemos enfatizar que as convenções tem significado um

importante avanço na luta das trabalhadoras e trabalhadores rurais. A inicial

articulação entre trabalhadores e os sindicatos, desembocou em conquistas                                                             14Gazzeta do São Francisco. Petrolina/PE, 24 a 26 de novembro de 2007. 15 Entrevista realizada em Lagoa Grande, dia 08 de julho de 2011.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

21

para a categoria, tais como transporte realizado em ônibus para as fazendas,

piso salarial acima do salário mínimo, adicional noturno e hora extra.

Nesse sentido, o amadurecimento do debate sobre as relações de

gênero entre sindicalistas e trabalhadores, assim como também a garanta do

cumprimento das cláusulas negociadas na convenção se revelam como novos

desafios para essas organizações sindicais.

5. Referências

ARAÚJO, Angela Maria Carneiro. Gênero nos estudos do trabalho (Para relembrar Elisabeth de Souza Lobo). Gênero nas fronteiras do sul, 2005: PP. 85-96.

BLOCH, Didier. As frutas amargas do Velho Chico: irrigação e desenvolvimento no Vale do São Francisco. Livros da Terra: Oxfam. São Paulo, 1996.

BRANCO, Adélia; VAINSENCHER, Semira Adler. Trabalhadoras e agrotóxicos no submédio São Francisco. Cadernos de Estudos Sociais, Recife, 2001.

BRANCO, Adélia; VAINSENCHER, Semira Adler. Gênero e globalização no vale do São Francisco. Ciência e trópico, Recife, v.30, n.1, p.29-50, jan./jun. 2002.

CAVALCANTI, J. S. B. (2003). Os trabalhadores no contexto da globalização dos alimentos. GT Anpocs Trabalhadores, Sindicatos e a Nova Questão Social Seminário Intermediário. USP.

CAVALCANTI, J. S. B.; ANDRADE, BerlanoBênis França de; RODRIGUES, Victor. Mulheres e trabalho na agricultura de exportação: questões atuais. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 16, volume 23: 2012.

CAVALCANTI. Josefa Salete Barbosa. Frutas para o mercado global. Estudos Avançados, São Paulo. v. li , n. 29, p. 79-93. jan./abr. 1997.

DAMIANI, O. Diversificação Agrícola e Redução de Pobreza: A Introdução no Nordeste Brasileiro de Produtos Agrícolas Não-Tradicionais de Alto Valor e Seus Efeitos sobre Pequenos Produtores e Trabalhadores Rurais Assalariados. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 34, n. 1, jan-mar. 2003.

FISCHER, Izaura Rufino. O protagonismo da mulher rural no contexto da dominação. Recife: Fundação Joaquim Nabuco. Ed. Massangana, 2012.

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007.

22

MARCONDES, Willer Baumgartem et al. O peso do trabalho “leve” feminino à saúde. São Paulo em Perspectiva, 17: 91-101, 2003.

MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. “Frente a frente com a América: Mulheres Trabalhadoras e o Inconsistente Discurso da Fragilidade Feminina”. In: HOLANDA, Heloisa Buarque de. et AL (orgs). Relações de Gênero e Diversidades Culturais nas Américas. EDUSP: São Paulo, 1999.

OLIVEIRA, Lúcia Marisy Souza Ribeiro de. Dois anos em um: a realidade do cotidiano feminino. Salvador: Secretaria do Trabalho e Ação Social, 1998.

SILVA, Pedro Carlos Gama de. “Dinâmica e Crise da Fruticultura Irrigada no Vale do São Francisco”. In: Aldenôr Gomes da Silva; Josefa Salete Barbosa Cavalcanti; Maria de Nazareth B. Wanderley. (Org.). Diversificação dos Espaços Rurais e Dinâmicas Territoriais no Nordeste do Brasil. 1 ed. João Pessoa: Zarinha Centro de Cultura, 2009, v. 1, p. 69-95.

SOUTO JR, J. Fernando. O Vale Encantado do São Francisco: desenvolvimentismo e sindicalismo rural (1990-2008). REED – Revista Espaço de Diálogo e Desconexão. Araraquara. Vol3, N 2. Jan/jul 2011.

SOUZA LOBO, Elisabeth.A classe operária tem dois sexos: Trabalho Dominação e Resistência. Editora Brasiliense, 2ª Ed. São Paulo, 2011.

THOMPSON. E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa, 1: a árvore da liberdade. 6. ed.São Paulo: Paz e Terra, 2011.

WOORTMAN, Klass. A família das mulheres. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: CNPq, 1987.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

23

ID 332

DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA NO BRASIL: DISPUTAS SINDICAIS E A MERCANTILIZAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS

Ana Paula Pegoraro, Unicamp/IE/Cesit

Resumo

O objetivo do trabalho é mostrar, desde uma perspectiva histórica, como que o desenvolvimento capitalista no Brasil consolidou uma estrutura institucional, política e social, que dentre suas diversas especificidades, tem como elemento central a mercantilização de bens públicos dentro de um sistema de proteção social que busca, por outro lado, a consolidação da cidadania.

Neste enfoque, um elemento de suma importância é a centralidade do trabalho e o papel relevante das disputas sindicais. A ideia é mostrar até que ponto os movimentos sociais, liderados pelas centrais sindicais, são importantes para legitimar, ou não, as conquistas de direitos no Brasil. A pergunta que se busca responder é: Qual o papel dos sindicatos para o movimento de mercantilização dos bens públicos?

Este trabalho tem o objetivo de captar especificidades da história do capitalismo no Brasil que expliquem a estrutura formada e as formas como o setor privado se apropriou, pouco a pouco, da prestação de bens e serviços públicos. Apesar de buscar aspectos gerais, busca-se entender o que se consolidou após anos de ditadura militar e um processo de intensa industrialização brasileira.

Palavras-chave: mercantilização, sindicalismo, Brasil.

24

Introdução

A intenção deste trabalho é delinear as características fundamentais

envolvidas no processo que ajudem a explicar a apropriação privada de bens

públicos ao longo do tempo versus a consolidação de direitos políticos civis e

sociais nos distintos períodos. Para tal discussão a análise será dividida em

quatro períodos, o primeiro período, que se estende de 1930 a 1964, conta

com a consolidação de diversos direitos civis, alguns direitos sociais e avanços

e retrocessos nos direitos políticos, neste primeiro período cabem ressaltar o

papel do Estado para a origem da estrutura sindical vigente até os dias de hoje.

O segundo período, marcado pela ditadura militar no Brasil, compreende os

anos de 1964 a 1984 em que houve grande abertura de espaços públicos para

empresas privadas a despeito da ampliação de diversos direitos sociais, no que

tange aos sindicatos este foi um período de retrocesso uma vez que o governo

proibiu as formas de organização sindical presentes até então.

O terceiro período é curto, porém relevante; trata-se do período que

culminou na Constituição Federal de 1988, em que foram consolidados

diversos direitos políticos, civis e sociais, levando tal Carta a ser conhecida

como Constituição cidadã. Além disso, este período foi também importante no

que diz repeito ao sindicalismo, dado o surgimento de um novo-sindicalismo,

fundamental para a redemocratização. Por fim, temos o período de 1988 a

2013, de democracia em conjunto com a adoção de políticas neoliberais que

pouco contribuiu para a garantia efetiva dos direitos consolidados na Carta de

1988, alguns autores afirmam que, tanto no que diz respeito às políticas sociais

quanto no sindicalismo há sinais de quão frágil é o sindicalismo brasileiro se

levarmos em conta a mercantilização das políticas públicas e o

enfraquecimento contínuo do Estado.

De 1930 a 1964: cidadania regulada

A aceleração das mudanças sociais e políticas a partir de 1930 é o

motivo para que diversos autores marquem este ano como o início de um novo

período, principalmente no que diz respeito aos direitos sociais, em que os

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

25

avanços e mudanças foram significativos. Já no que tange aos direitos

políticos, a evolução é mais complexa, já que é um período de instabilidade,

alternando entre ditadura e regimes democráticos. Quanto aos direitos civis, a

progressão foi lenta, de tal forma que sua garantia continuou precária para a

maioria da população.

Para Carvalho (2008), a partir da década de 20 a oposição ao sistema

político vigente começa a ganhar força, este movimento buscava mudanças em

diversas áreas tais como: campo cultural e intelectual, educação, saúde, além

da política. Neste sentido, o autor afirma que, diferente de 1889, em que o

povo esteve ausente, houve debate a uma parte da população e o povo foi

ator, mesmo que coadjuvante, na Revolução de 1930. O regime de 1930

nasceu sob a tutela do Exercito, mas pelo menos carregava uma característica

crucial: a critica ao federalismo oligárquico. Isto é, este novo governo trazia a

esperança de centralização do poder, combate as oligarquias, reforma da

sociedade, promoção da industrialização e modernização do país.

O período de 1930 a 1937 é marcado por grande agitação política,

marcado pela amplitude e pelo grau de organização dos movimentos políticos.

Entretanto, para Carvalho (2008), a aceitação do golpe de 1937 mostrou como

os avanços democráticos ainda eram frágeis, de 1937 a 1945 o Brasil passou

por um regime ditatorial civil, sob a tutela das forças armadas, em que

manifestações políticas e imprensa eram proibidas e o governo legislava por

decreto.

O ponto crucial deste período, sem sombra de duvidas, não está nos

direitos políticos, que tiveram avanços limitados e sujeitos a sérios recuos, e

sim na grande atenção dada ao problema trabalhista e social pela liderança do

movimento desde 1930. Os avanços nos direitos sociais incluem avanços na

legislação trabalhista (salário mínimo, redução da jornada de trabalho,

regulamentação do trabalho feminino, criação da carteira de trabalho, direito de

férias),na área da previdência (criação de diversos Institutos de

Aposentadorias, apesar de ainda excluir categorias importantes de

trabalhadores). Cabe ressaltar, porém, que a política social implantada

baseava-se na concepção de privilégio e não de direito. Para o autor, entre

26

1930 e 1945 é um grande momento da legislação social, porém, por ela ter sido

introduzida em um ambiente de baixa ou nula participação política e de

precária vigência dos direitos civis, foi longe de ser uma conquista realmente

democrática, comprometendo o desenvolvimento de uma cidadania ativa.

Do ponto de vista político, a atuação na área sindical constituiu o ponto

central da estratégia do governo. Os sindicatos formados nesta época tinham

como orientação a cooperação entre operários, patrões e o Estado, de tal

forma que o sistema sindical evoluiu na direção de um corporativismo de

Estado. A luta de classes ficara menos desigual, pois a legislação trabalhista

protegia, mas a interferência do Estado constrangia com a legislação sindical,

já que as organizações operárias dependiam do Ministério do Trabalho. O

dilema era: liberdade sem proteção ou proteção sem liberdade.

Com o Estado Novo, o intervencionismo governamental foi reforçado,

aperfeiçoando a legislação sindical, da Justiça do Trabalho e do

enquadramento sindical, no que se refere à definição das categorias

econômicas e profissionais que poderiam organizar sindicatos.

Apesar do forte autoritarismo e demais pontos negativos de tal política, o

período de 1930 a 1945 deve ser destacado no que diz respeito aos avanços

dos direitos sociais, o núcleo da legislação trabalhista e previdenciária foi

implantado, de modo que nos anos seguintes foi apenas aperfeiçoamento,

racionalização e extensão da legislação a um numero maior de trabalhadores.

Analisando este período do ponto de vista da cidadania, o autor afirma

que o significado é ambíguo e complexo, uma vez que a ênfase nos direitos

sociais em detrimento aos direitos políticos e civis fez com o que os primeiros

não sejam vistos realmente como direitos. Os trabalhadores foram

incorporados à sociedade por interesse político e não pela ação sindical e

política dos trabalhadores. Para o autor a cidadania que surgiu neste período

era passiva e receptora, quando deveria ser ativa e reivindicadora.

Em 1946, a nova Constituição Federal manteve as conquistas sociais do

período anterior e avançou nos direitos civis e políticos, tais como liberdade de

imprensa, liberdade de organização política, funcionamento livre de partidos

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

27

políticos e eleições para os principais cargos públicos. outro ponto importante

foi a introdução dos trabalhadores rurais, posseiros e pequenos proprietários

como atores políticos importantes no debate nacional, a despeito deste avanço,

o direito à greve para todos os trabalhadores continuou proibido.

A mobilização política deste momento lutava por “reformas de base”, tais

como reforma de estrutura agrária, fiscal, bancária e educacional, e reforma

política para ampliação dos direitos políticos. Apesar da grande mobilização

feita no período, o autor a avalia como débil e frágil, uma vez que, com o golpe,

as grandes massas não defenderam o governo, dando legitimidade ao golpe de

1964.

A análise do período que se estende de 1930 a 1964, evidencia o

primeiro ensaio de participação popular na política nacional ainda que mal

organizada e frágil. A Constituição de 1946 expandiu os direitos garantidos em

1934, ainda com exclusão dos trabalhadores rurais. A partir de 1945 a

participação do povo na política cresceu significativamente, com grandes

progressos nas eleições e com a criação de partidos, sindicatos e outras

associações, este movimento reflete o amadurecimento democrático do povo

brasileiro.

Porém, este amadurecimento democrático não foi capaz de assegurar a

consolidação da democracia no país, culminando no golpe de 1964. O

processo democrático era incipiente, não havia organizações civis fortes e

representativas.

De 1964 a 1984: modernização conservadora e o

fortalecimento do setor privado

O período de 1964 a 1984 é marcado pela estratégia de “modernização

conservadora”, cuja condução da estratégia é constituída por quatro

características centrais: Caráter regressivo do financiamento do gasto social;

Privatização do espaço público; A centralização do processo decisório;

Fragmentação institucional (Fagnani, 2005).

28

Tal caracterização explicita que a reforma dos mecanismos estatais

levou a modernização institucional, financeira e burocrática ampliando assim o

alcance da gestão governamental, o que possibilitou a expansão da oferta de

bens e serviços, sobretudo para as camadas de maior renda, através de novos

mecanismos de financiamento. Porém, tais políticas sociais atenderam, em

grande medida, as camadas de média e alta renda explicitando o caráter

conservador do período, devido à limitada capacidade de redistribuição de

renda, o que acentuou as desigualdades regionais e de renda entre os

diferentes segmentos populacionais (Fagnani, 2005).

Os quatro traços centrais deste período são, sem duvidas, fundamentais

para entender a consolidação de uma determinada estrutura de proteção social

no Brasil, mas para este trabalho destaca-se a privatização do espaço público

em um momento de total repressão dos movimentos sociais. No caso da

saúde, o setor privado se fortaleceu neste período principalmente pela forma

de financiamento do sistema, Fagnani (2005) destaca a presença de enormes

transferências de recursos públicos para o setor privado, impulsionando a

expansão capitalista no setor da saúde.

O Brasil, por ser um país de industrialização tardia, apresentava, na

década de 1960, enorme heterogeneidade social e regional, acentuada

concentração da renda, formas precárias de inserção no mercado de trabalho e

um contingente expressivo de excluídos e miseráveis, no campo e na cidade. A

dramática situação socioeconômica do Brasil eram obstáculos objetivos à

natureza das fontes de financiamento das políticas sociais.

Durante a ditadura, a estratégia do governo foi de criar mecanismos

regressivos, os quais não promoveram articulações positivas entre o

desenvolvimento econômico e a distribuição de renda. A regressividade nos

mecanismos de financiamento é reflexa da utilização, sobremaneira, de

recursos provenientes de contribuições, em detrimento de recursos de natureza

fiscal. Cabe ressaltar que as contribuições reproduzem diversas desigualdades

na sociedade, principalmente se tratando de um país com industrialização

tardia como o Brasil, mas a principal desigualdade neste período era de

acesso, uma vez que o acesso aos bens públicos era condicionado pela

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

29

contribuição individual de trabalhadores formais, excluindo assim grande

parcela da população.

Uma das características marcantes do período de ditadura militar no

Brasil foi, sem duvida, a centralização do processo decisório no Executivo

federal, que, em um contexto político e institucional autocrático próprio do

autoritarismo, deixou a sociedade civil completamente fora do processo político

e do controle democrático sobre a ação do Estado.

No que diz respeito aos movimentos sindicais, este movimento

centralizador do Estado interrompeu e fragilizou ainda mais um longo ciclo de

movimento que a classe trabalhadora tinha construído. A destituição das

entidades sindicais inibiu a representação da classe trabalhadora na definição

dos rumos da previdência social, da política salarial e da própria Justiça do

Trabalho.

O que Fagnani (2005) chama de privatização do espaço publico nada

mais é do que a extrema permeabilidade das políticas aos interesses

particulares, empresariais e clientelistas, resultado do enfraquecimento dos

mecanismos democráticos tradicionais de representação política e de controle

social. Em diversos setores da política social poderosas alianças entre o setor

privado e o publico foram consolidadas ao longo de mais de 20 anos de

ditadura militar.

No caso da saúde, como já destacado, o setor privado se fortaleceu

neste período principalmente pela forma de financiamento do sistema. Além

disso, o autor explica, de forma simplificada, que o modelo hegemônico na

saúde, a assistência médica previdenciária, funcionava a partir do pagamento

de “unidade de serviço” ao setor privado credenciado (hospitais, laboratórios e

médicos) em todos os municípios brasileiros, via geração de fatura remetida ao

Inamps.

O principal problema deste arranjo é que o Inamps não tinha capacidade

de analisar e vistoriar a geração de tais faturas o que levou a enorme

transferência de recursos públicos para o setor privados, impulsionando a

expansão capitalista no setor da saúde.

30

Fagnani (2005:23) cita Carlos Gentille de Mello (1977) que afirma “(...)

qualquer que seja a roupagem da medicina privatizada, a sua pratica cria as

condições ideais e propicias para a mercantilização da medicina, sem que haja

qualquer possibilidade de instituir um sistema eficaz de controle e fiscalização.

Daí porque é nesse campo que tem surgido os mais graves problemas

relacionados com as mais sérias infrações éticas (...)”.

Numa revelação contundente, Reinhold Stephanes, presidente do INSS

no governo Geisel, confirmou as apreensões do sanitarista e reconheceu o

total descontrole das contas da saúde. Num trabalho escrito em 1984, o ex-

dirigente do INSS no regime militar reconheceu que a forma de apresentar

faturas e pagamentos era como “um cheque em branco” ao setor privado.

Outras práticas de privatização como, por exemplo, o uso clientelista do

espaço publico, o empreguismo, a indicação de profissionais para cargos

públicos, a expansão da infraestrutura segundo critérios eleitorais sem base

técnica, e a oferta assistencialista de bens e serviços foram observadas em

todos os outros setores de política social. Mas, o autor destaca a educação,

porque há indicações de que a privatização tenha ocorrido em todos os níveis

de ensino.

Por fim, a última característica deste período, a fragmentação

institucional, não atingiu as políticas sociais centrais, tais como previdência,

saneamento e habitação. Segundo o autor a fragmentação institucional

circunscreveu-se aos segmentos relativamente periféricos, sobretudo da

alimentação popular e da assistência social.

Os quatro traços centrais das políticas sociais adotadas neste período

refletem o movimento de modernização conservadora que marcou e definiu um

padrão de política social, o qual tem como principal reflexo o reduzido impacto

para a redução das desigualdades socioeconômicas no Brasil. De certa forma,

a privatização do espaço público teve um papel importante para acentuar as

desigualdades regionais e sociais na sociedade brasileira durante a ditadura

militar.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

31

Não se pode negar que a criação de novos mecanismos institucionais e

financeiros potencializou a capacidade de intervenção estatal, proporcionando

uma significativa expansão da oferta de bens e serviços. Entretanto, a forma

conservadora como a política social foi conduzida em um contexto de extrema

repressão de todos os movimentos sociais, inclusive sindicatos, consolidou um

modelo de proteção social com baixa capacidade de distribuição direta e

indireta de renda, o que, acarretou, em alguns casos, no aumento das

desigualdades sociais no Brasil.

Os mecanismos regressivos de financiamento do gasto social criados

neste período se mostraram incompatíveis com a busca pela equidade,

outrossim, o gasto foi direcionado para interesses privados, conduzindo a um

processo intenso de mercantilização dos bens públicos. Um exemplo disso foi

que a expansão da rede de saúde foi direcionada para onde estava o dinheiro

e não onde estava à doença, além da completa marginalização das ações

ligadas aos cuidados primários de saúde e atenção médica sanitária, o que

manteve altas taxas de morbidade e de mortalidade infantil e demasiada

incidência de epidemias associadas à miséria.

O período de ditadura militar foi intenso e heterogêneo, é claro não se

pode entender este período sem avanços e retrocessos deste movimento de

modernização conservadora. De 1964 a 1967, Fagnani (2005) define o período

como “Gestação da Estratégia de Modernização Conservadora”, marcada pelo

interesse em estabilizar os preços e realizar as reformas institucionais que

visavam a “modernização conservadora” no campo econômico. O principal

objetivo destas reformas era modernizar os instrumentos de gestão econômica

e de ampliar as bases de financiamento da economia e do setor público. Foi

nesta fase que surge a ideia de financiar o gasto social através das

contribuições sociais, que foi difundido para a maior parte dos setores sociais.

O segundo momento destacado por Fagnani (2005) é a “A

Modernização em Marcha (1968-1973)”, marcada pelo avanço e fortalecimento

das políticas que vinham sendo geridas no momento anterior. Nesta fase as

características apontadas se tornam evidentes e vão se consolidando. A

consolidação destas características foram possíveis dada à conjuntura

32

econômica e política desta fase, marcada pelo “milagre econômico” e

recrudescimento do autoritarismo.

Por fim, há a fase de “Esgotamento da estratégia (1980-1984)”,

determinada pelo contexto político e econômico do período. A situação política

é deteriorada pelo movimento de massa que reivindicava o restabelecimento

de eleição direta para Presidência da República.

O crescimento da inflação e a vulnerabilidade do balanço de

pagamentos marcavam a crise econômica, que tem seu ápice em 1982 com o

colapso cambial. A o contexto econômico desfavorável agravou a situação

social, que pode ser explicitada pelo aumento do desemprego, da dificuldade

de acesso aos serviços sociais e redução nos raios de manobra da intervenção

estatal nas áreas sociais (Fagnani, 2005).

O terceiro período é a “Tentativa de Mudança (1974-1979)”, em que há

algumas tentativas de reformas que visavam mudar os movimentos da fase

anterior. Os condicionantes deste período podem ser resumidos na

precariedade das condições de vida da população, no agravamento da questão

social, o que levava a oposição do regime ditatorial. No caso da saúde houve

surtos de epidemias em diversas regiões e estudos mostravam altas taxas de

mortalidade infantil.

Levando em consideração a abordagem aqui discutida sobre o período

de 1964 a 1985, fica evidente que o período autoritário brasileiro é marcado por

uma expansão da oferta de bens e serviços sociais, porém tal expansão é

excludente e limitadora às classes mais desenvolvidas da sociedade, o que

implica no agravamento da desigualdade social e regional do Brasil.

De 1985 a 1988: a Constituição Cidadã e o surgimento do

novo-sindicalismo

O período que se estende entre os anos de 1985 e 1989 é conhecido

pela transição democrática e marcado pela Constituição Federal de 1988, que

representou a etapa fundamental do projeto de reformas progressistas. A Carta

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

33

consolidou o fim da ditadura militar e reorganizou o Estado em bases liberais e

democráticas.

Desde a metade da década de 1970, já é possível observar a

intensificação do processo de reorganização política da sociedade civil, de tal

forma que na primeira metade da década seguinte um amplo projeto de

reforma de caráter nacional, democrático, desenvolvimentista e redistributivo já

eram desenhados pelas forças oposicionistas.

A década de 1980 foi um período de grande efervescência do

movimento sindical e outros movimentos sociais, os quais ganharam força, se

expandiram e se uniram na luta contra a ditadura militar, tendo papel atuante

com propostas e sugestões de emendas ao texto constitucional, o que garantiu

a inscrição de um conjunto de novos direitos sociais na Constituição aprovado

(Araujo e Filgueiras, 2010). A institucionalidade foi criada no Estado Novo, e se

consolidou em 1988, levando a certa relação entre Estado, sindicato, trabalho,

e a sociedade.

Os anos 80 são de grande eficiência e eficácia da ação representativa e

organizativa sindical, de acordo com Cardoso (2004) os principais vetores do

crescimento vertiginoso do movimento sindical neste período são: 1. Formas

sobreviventes da resistência ao regime militar; 2. Estrutura sindical corporativa

(imposto sindical, burocracia ágil e alianças políticas duradouras) foi mantida

intacta pelos militares; 3. Relações de trabalho eram precárias e uso predatório

da força de trabalho, sindicalismo lutava por justiça e dignidade no trabalho; 4.

Altas taxas de inflação, estagnação econômica e reestruturação industrial;5.

Crise fiscal do Estado, que diminuiu qualidade dos serviços públicos e queda

dos salários dos servidores; 6. Crise duradoura restringiu enormemente os

horizontes de cálculo dos agentes econômicos, levando à estratégia sindical do

tudo ou nada (soma zero), a ação confrontacionista mostrou-se bastante eficaz

como meio de fortalecimento de seu poder político e social;

Fagnani (2005) destaca o papel da oposição neste processo de

transição para a normalidade democrática. A principal frente de oposição foi o

Movimento Democrático Brasileiro que foi convertido em Partido, dado origem

ao PMDB, em 1979.

34

Dentre todo o movimento, o autor enfatiza a produção do documento

“Esperança e Mudança: uma Proposta de Governo para o Brasil” (PMDB,

1982), que delimita um amplo projeto de transformação de cunho nacionalista,

desenvolvimentista, democrático e igualitário. Além de consolidar diversas

agendas setoriais, as diretrizes políticas, econômicas e sociais do documento

“serviram de fio condutor das forças progressistas no longo processo de luta

que desaguou na Assembleia Nacional Constituinte; e, além disso, suas

principais bandeiras foram inscritas na Constituição de república promulgada

em 1988” (Fagnani, 2005:102).

A motivação do documento é o agravamento da situação social do país

no inicio da década de 1980, dada à crise de caráter econômico, social e

institucional. Dessa forma, o documento afirmava que a única saída para tal

crise era o restabelecimento da democracia e do Estado de Direito, dando,

assim, grande importância aos movimentos sociais e ao fortalecimento dos

partidos políticos.

No âmbito do desenvolvimento social a estratégia era promover

distribuição de renda e da riqueza social, através de dois eixos: reformas

sociais e institucionais e o conjunto de políticas públicas para redistribuição de

renda. O documento ainda contemplava diretrizes para mudanças na política

econômica e na questão do resgate da identidade nacional (Fagnani, 2005).

O período de 1985 a 1988 é caracterizado pela transição para a

democracia, porém este processo é complexo e envolve diversos aspectos, por

isso, a intenção deste trabalho á apenas esboçar os principais elementos que

determinam esse movimento. O autor destaca que houve um pacto político

conservadorem 1984 responsável pela transição, cuja representação simbólica

foi a “Aliança Democrática”, que explicitava uma série de “compromissos

impostergáveis e fundamentais com a nação brasileira” nas esferas política,

econômica e social.

Entre 1985 e 1985, a Secretaria de Planejamento da presidência da

república formulou diversos planos de desenvolvimento econômico e social

assimilando as principais bandeiras oposicionistas e reafirmando a prioridade

do enfrentamento da questão social e da reforma da política social da ditadura,

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

35

dentre eles, destaca-se o “Plano de Metas”, que estabeleceu metas ambiciosas

paras os anos de 1986-1989.

O objetivo do Plano era a inclusão social e a redistribuição de renda, que

poderia ser alcançado dado um novo modelo de desenvolvimento econômico

baseado na determinação política em direcionar as opções macroeconômicas

as prioridades sociais.

Segundo o autor, para reformar da política social estabelecida a partir de

1964, era necessário que houvesse: uma revisão dos mecanismos regressivos

de financiamento e gasto social e da centralização das decisões no Executivo

federal; redução da privatização do espaço público via ampliação do controle

social; e uma reforma gerencial buscando reduzir a fragmentação institucional.

Em suma, era preciso reduzir as características consolidadas no período

anterior.

Segundo Fagnani (2005:158) “Em 1984, com a consolidação da

candidatura de Tancredo Neves, o Movimento Sanitarista teve papel decisivo

na montagem da proposta do novo governo e na construção dos consensos em

meio ao embate político da transição”. O movimento atuou de forma direta em

diversas frentes ampliando sua participação no ambiente político e

parlamentar.

Sobre o movimento de transição democrático, pode-se afirmar que

houve um movimento de propostas tanto no que se refere ao desenvolvimento

social quanto às reformas das políticas sociais. Neste sentindo Fagnani

(2005:164) afirma:

“(...) a partir de meados dos anos 70, no bojo do processo de reorganização política da sociedade civil, as forças oposicionistas construíram uma extensa agenda política, econômica e social de mudanças. Na primeira metade dos anos 80, já era possível identificar os contornos de um amplo projeto de reforma de cunho nacional, democrático, desenvolvimentista e igualitário. A construção de um efetivo Estado Social, universal, equânime, era um dos cernes desse projeto”.

Entre 1985 e 1988, setores da esquerda brasileira, representantes de

forças políticas que fizeram oposição ao regime militar e que passaram a

36

participar do processo decisório federal, tentaram programar um amplo projeto

reformista progressista. Tal tentativa começou na frente de luta nessa direção

se deu na esfera do governo da Nova República, em seguida, deslocou-se para

a Assembleia nacional Constituinte (ANC) e, por fim, resultou na promulgação

da Constituição Federal de 1988, que consolidou tais impulsos e movimentos

reformistas.

Os impulsos e movimentos reformistas de iniciativa do Executivo

Federal, que surgiram em 1985-1986 foram: a instituição do seguro-

desemprego; a reincorporação da Reforma Agrária na agenda governamental;

a reforma da Previdência Social; a Reforma Sanitária; a Reforma Educacional;

a reforma das políticas urbanas; e o reforço da alimentação popular.

Segundo Fagnani (2005), em 1987 e 1988, o projeto reformista

progressista teve como lócus a Assembléia Nacional Constituinte e, após um

longo período de discussões e disputas, suas principais bandeiras foram

inscritas na Constituição de 1988.

Dentre os conceitos introduzidos pela Constituição de 1988, dois

conceitos devem ser destacados: a seguridade social e a descentralização. O

princípio da seguridade social compreende no “conjunto de ações integradas

destinadas a assegurar direitos sociais universais nos campos da previdência,

saúde, e assistência social, independente da contribuição individual para o

financiamento dessas ações” (Fagnani, 2005:175).

Dois pressupostos básicos estão por trás deste conceito: todo cidadão é

titular de um conjunto mínimo de direitos sociais independentemente de sua

capacidade de contribuição para o financiamento dos bens e serviços; e é

responsabilidade da sociedade prover recursos para assegurar o primeiro

pressuposto.

Dessa forma, o Poder Público tinha como objetivos: a universalização da

cobertura e do atendimento, uniformidade e equivalência dos benefícios às

populações urbanas e rurais, seletividade na prestação dos benefícios e

serviços, irredutibilidade do valor dos benefícios, equidade na forma de

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

37

participação no custeio, diversidade da base de financiamento, caráter

democrático e descentralização da gestão administrativa (Fagnani, 2005).

A Constituição de 1988 contemplou uma série de direitos, mas cabe

ressaltar que, para o mundo do trabalho, ela foi fundamental, pois garantiu um

conjunto de direitos trabalhistas estendidos aos trabalhadores rurais e em parte

ais empregados domésticos, também modificou a legislação sindical.

No que tange aos sindicatos, a Constituição eliminou a possibilidade de

intervenção estatal nos sindicatos, retirando da ilegalidade as Centrais

Sindicais e estabelecendo maior liberdade de organização horizontal e vertical,

reconheceu o direito de sindicalização dos funcionários públicos e previu o

direito de escolha de delegados sindicais nas empresas. Entretanto, foi mantido

o sindicato único por categoria, tendo como base territorial mínima o município,

e o chamado imposto sindical, que eram elementos centrais do modelo sindical

corporativista criado nos anos 30 (Araujo e Filgueiras, 2010).

Este período foi, sem duvida, um ponto de ruptura em meio ao

movimento anterior e que, ao mesmo tempo, sofreu um grande revés no

período seguinte. O cerne da questão aqui levantado é a importância dos

movimentos sociais, principalmente dos sindicatos, para a consolidação de

uma Constituição cidadã, que garante um conjunto vasto de direitos políticos,

civis e sociais.

Os sindicatos e demais movimentos sociais foram fundamentais para a

consolidação da Constituição de 1988, já que estes lutavam por um padrão de

proteção social universal e público. Em outras palavras, o que deve ser

ressaltado aqui é que o contexto econômico, social e político dos anos 1980

abriu espaço para que os movimentos sociais e sindicatos lutassem por um

projeto de proteção social englobando uma série de direitos sociais e diversos

setores.

Mais do que a ruptura de um movimento anterior, este período marca a

tentativa, em grande parte, vitoriosa com atuação direta do povo para a

articulação de novas relações sociais e salariais no Brasil através do controle

38

do capital por meio do Estado, inibindo os interesses privados e mercantis

sobre os bens públicos.

Neste período, as revindicações dos sindicatos buscavam mudanças no

padrão de desenvolvimento capitalista brasileiro e seus reflexos em todos os

setores sociais. Os sindicatos eram, portanto, organizações sociais que tinham,

na maioria das vezes, interesses que transcendiam o mercado de trabalho

formal, uma vez que buscavam melhorias para toda população brasileira.

Esta análise se torna ainda mais relevante ao perceber que tal

movimento foi na contra marcha de um processo de ampliada desestruturação

e incertezas que já vinha ocorrendo no mundo e que chega com maior força no

país nos anos seguintes. A adoção de políticas neoliberais ganha força nos

anos 1990 no Brasil e é, em conjunto com outros fatores, a responsável pela

mudança na orientação das políticas e, principalmente, das revindicações dos

movimentos sociais.

De 1988 a 2013: políticas neoliberais e o novo rumo dos

sindicatos

Nos anos 80, o movimento redemocratizante e a piora generalizada nas

condições socioeconômicas acabam por frear o movimento que já se constituía nos

principais países capitalistas, a adoção de políticas neoliberais. A forma tardia como a

flexibilização se consolidou no Brasil tem aspectos positivos, principalmente no que se

refere à consolidação de direitos sociais estabelecidos na Constituição de 1988.

Durante a década de 1980, um aspecto importante que deve ser destacado foi

à luta, através da CUT principalmente, para implementação de uma estratégia sindical

de combate à política de desenvolvimento pró-monopolista, pró-imperialista e pró-

latifundiária do Estado brasileiro (Boito Jr, 1999). Neste sentido, o autor afirma que:

É possível afirmar que essa concepção sindical e a estratégia

de ação a ela vinculada corporificaram uma orientação de oposição à

política de desenvolvimento pró-monopolista, pró-imperialista e pró-

latifundiaria do estado brasileiro (Boito Jr., 1999:137).

Essa proposta tinha como base a ideia de que a ação sindical iria além

da defesa dos salários e das condições de trabalho, já que apontava para a

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

39

necessidade de uma alteração no bloco de poder, de forme que os interesses

dos trabalhadores fossem contemplados. Apesar dessa estratégia adotada, a

tendência à deterioração dos salários se confirmou na década de 1980.

Mesmo assim, a estratégia alcançou diversas vitórias, entre elas,

destaca-se o fato de que tal política:

(...) contribuiu, de modo decisivo, para a constitucionalização

de inúmeros direitos políticas, sociais e trabalhistas, como o direito de

greve, a aposentadoria por tempo de serviço e sem idade mínima, a

jornada semanal de 44 horas, a extensão da legislação trabalhistaaos

empregados domésticos e muitos outros (...)(Boito Jr., 1999:137).

Essa vitória tem um significado ainda maior quando se observa os

anos 90, isso porque, segundo Boito Jr. (1999), ela se revelou um obstáculo à

implantação do programa neoliberal no Brasil. Tendo isso em mente, destaca-

se como o quadro consolidado nos anos 1980 é revertido na década seguinte.

No Brasil, a década de 1990 é marcada por abertura comercial e

financeira, privatizações, desnacionalização dos capitais em diversos setores,

estabilização dos preços (a partir de 1994), grande fluxo de capitais, políticas

macroeconômicas restritivas (cortem de gastos do governo, altas taxas de

juros, e a redução dos reajustes salariais). Além disso, a principal característica

desta década para o período é o processo de reestruturação produtiva que, de

forma tardia, que as empresas realizaram buscando se ajustar às novas

condições da economia brasileira inserida neste novo contexto internacional

(Krein, 2007).

“O Brasil incorpora, de forma tardia e singular, a agenda da

flexibilização16das relações de trabalho. Tardia em relação aos países

centrais17,pois ela aparece com intensidade nos anos 90,3 no contexto de

                                                            16 A preferência pelo conceito de flexibilidade justifica‐se por ser este mais ajustado à realidade brasileira, que não conheceu, com exceção da previdência e dos servidores públicos, uma desregulamentação de direitos, mas assistiu à introdução de novas regulamentações que ampliaram a flexibilidade nos elementos centrais da relação de emprego. 

17 O tardio da agenda liberal, como lembra Ricardo Antunes (2006), precisa ser visto como algo positivo, pois expressa a existência de um movimento de resistência da sociedade. 

40

uma crise econômica, abertura comercial e financeira com valorização

cambial, redefinição do papel do Estado, reestruturação produtiva e

opção política pelo neoliberalismo. Singular, pois as especificidades

nacionais do nosso capitalismo tardio mostram que o Brasil sempre teve

um mercado de trabalho flexível, especialmente depois da ditadura

militar, permitindo ao empregador ajustar o volume e o preço da força de

trabalho às diferentes conjunturas econômicas.Portanto, diferentemente

dos países centrais, aqui a regulação social do trabalho não alcançou o

mesmo grau de proteção.” (Krein, 2007:1).

Segundo Krein (2007), houve, portanto, mudanças na estrutura das

relações de trabalho. O Estado teve seu papel invertido, através da

subordinação da política à economia, e os sindicatos foram imensamente

fragilizados, por conta da menor capacidade de intervenção na regulação e nos

rumos da sociedade.

Com tais mudanças, as negociações coletivas se tornam uma forma de

amenizar a precarização do trabalho, proteger os direitos sociais e as

conquistas dos trabalhadores. Tais negociações buscavam melhorias nas

condições de trabalho, sendo assim, os sindicatos passaram a atuar muito

mais para interesses de um grupo especifico do que para interesses coletivos

como no período anterior.

A mudança na orientação das lutas dos sindicatos é de suma

importância para este trabalho, pois o processo de mercantilização dos bens

públicos que vinha ocorrendo desde 1930, como já exposto, ganha espaço

neste contexto. Os sindicatos, que antes transcendiam o mercado de trabalho

formal em busca de avanços nas políticas sociais universais, agora focam suas

lutas em aspectos próprios do mercado de trabalho.

A década de 1990 é marcada por uma reversão na cena brasileira no que tange ao movimento sindical, principalmente a partir de 1994, com a estabilização monetária através do Plano Real. Cardoso (2004) destaca 8 principais aspectos dessa reversão:

1. Aprofundamento da redemocratização reduziu o potencial político

dos movimentos sociais de cunho contestatórios;

2. A liberação parcial instituída pela Constituição de 1988 tornou-se um

dos principais elementos de seu enfraquecimento na década de

1990;

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

41

3. Reestruturação industrial facilitou a negociação entre trabalhadores e

gerencia, sem a interferência sindical. As altas taxas de rotatividade

foram trocadas por terceirizações e subcontratações;

4. Com o Plano Real houve queda na taxa de inflação, mas também um

aumento expressivo do desemprego e da informalização, o que reduz

severamente a propensão dos trabalhadores à ação coletiva.

5. Estado continuou em crise, o que levou a apatia política da

sociedade, reduzindo a capacidade de mobilização social;

6. Estratégias do tipo “soma zero” foram reduzidas pela conjuntura de:

insegurança estrutural no emprego dado pela reestruturação

industrial e econômica, fim da inflação e pleno de ajuste econômico.

7. Os altos índices de desemprego levaram a problemas de

financiamento dos sindicatos.

8. Ataque incisivo e direto do governo FHC contra a CUT e a esquerda

em geral. Um exemplo disso foi a greve dos petroleiros, em que

houve demissão de líderes sindicais e nenhuma reivindicação

atendida, lembrando piores momentos da repressão aos movimentos

operários durante a ditadura, essa ocasião representou uma grande

derrota para a CUT.

De forma geral, os salários e condições de trabalho foram alvos centrais

enquanto segurança no emprego não ganhava importância. A estabilidade no

emprego tornou-se crucial e a própria sobrevivência dos sindicatos passou a

depender dela.Apesar de haver exceções, que é o caso do setor automotivo,

houve destruições de 2 milhões de empregos formais na indústria, além de

deterioração do serviço público, pilares da organização nacional.

Cardoso (2004), ao analisar tal reversão do quadro destaca a

incapacidade dos sindicatos em unir forças e sustentar um movimento social

contra a adoção de políticas neoliberais adotadas pelo governo Fernando

Henrique Cardoso:

Os movimentos nacionalistas, de esquerda ou não, não foram

capazes de canalizar para si a insatisfação popular e fazer disso

movimento sustentado de resistência à privatização de antigos bastiões

42

do movimento sindical brasileiro. Mais do que isso, em vários casos a

privatização levou à perda de poder por parte de direções cutistas para

entidades concorrentes, com destaque para a Força Sindical. (Cardoso,

2004:46)

Neste sentido, o autor afirma que, ao longo da década de 1990, o

neoliberalismo parece ter vencido não apenas uma batalha, mas a guerra

política e ideológica. Porém tal pessimismo e sensação de derrota irreversível

estão diretamente relacionados com a referência adotada: os anos 80,

marcado pelo fortalecimento do movimento sindical.

Na década de 1990, um dos reflexos das profundas mudanças nas bases da

ação sindical foi o deslocamento do centro da arena política brasileira. Em um

contexto completamente hostil, as centrais sindicais se mostraram incapazes

de oferecer alternativas viáveis às políticas neoliberais, as quais destruíram as

bases de sustentação do sindicalismo brasileiro.

Os traços gerais da velha estrutura corporativa ainda persistem embora a

atuação sindical tenha se deparado com novos desafios

Tendo como suporte para tal discussão o trabalho de Boito (1999) e Ferraz

(2006), destaca-se que ambos reconhecem que o sindicalismo e

movimentações nos anos 90 se fragilizam, nenhum ignora que houve

mudanças, tanto de estratégia quanto de contexto. A diferença é que o Boito

(1999) enfatiza a explicação pela mudança de estratégia adotada pela CUT,

que passou de ser um movimento confrontista para um movimento de

negociação, enquanto que Ferraz destaca a explicação pela mudança de

contexto que acarretou em demais mudanças.

De acordo com os dois autores utilizados, fica claro o enfraquecimento do

movimento sindical nos anos 90 decorrente de uma série de fatores sociais,

políticos, econômicos, conjunturais e até estruturais. Neste sentido Cardoso

(2004) afirma que o movimento sindical, representado pelas centrais, não foi

capaz de articular interesses e se organizar buscando o fortalecimento do

movimento sindical.

Na década de 1990, mudanças profundas nas bases da ação

sindical resultaram em seu deslocamento do centro da arena política

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

43

brasileira. Lutando por sobreviver em um ambiente pouco amistoso, as

centrais sindicais mostraram-se incapazes de oferecer alternativas

viáveis as políticas neoliberais que erodiram suas bases de sustentação.

(Cardoso, 2004:73)

Diante de todo o exposto, dos altos e baixos vividos pelo movimento

sindical no Brasil, avanços e recuos, ascensão e declínio dos sindicatos, a

atuação destas organizações na cena política nacional continuará exercendo

seu papel de importância, não apenas para os trabalhadores, na relação

capital-trabalho, mas também nas relações que permeiam a sociedade em

geral na relação entre seus diversos atores.

Porém, cabe a reflexão do papel do sindicato no confronto à

adoção de políticas neoliberais que resultam não só na precarização do

trabalho em diversas frentes, mas também na mercantilização dos bens

públicos e, indiretamente, precariza a vida de todos os brasileiros. Os

sindicatos são atores fundamentais para a representação dos trabalhadores

frente aos diversos e poderosos interesses que se apresentam na cena

brasileira atual.

Bibliografia

ARAUJO, A. e FILGUEIRAS. A Constituição de 1988 e o sindicalismo

Brasileiro. In KREIN,BIAVASCHI e SANTANA. A Constituição Cidadã. LTR,

2010

ARAÚJO, A. M. C.; OLIVEIRA, R. V.. El sindicalismo enla era de lula: entre

paradojas ynuevas perspectivas . Revista Latinoamericana de

EstudiosdelTrabajo, 2011.

BALTAR, P.; SANTOS, A.; PRONI, M. Garrido, F. ESTRUTURA DO

EMPREGO E DARENDA: evolução e perspectivas futuras. In: Perspectivas do

Investimento no Brasil: TemasTransversais. Vol. 4. Projeto PIB; UFRJ;

IE/UNICAMP; BNDES; 2010.

44

BALTAR, P. Estrutura Econômica e Emprego Urbano na década de 90. In:

PRONI, M. &HENRIQUE, W. Trabalho, Mercado e Sociedade: O Brasil dos

anos 90. Ed. UNESP, 2003.

BALTAR, P. et al. Evolução do mercado de trabalho e significado da

recuperação do empregoformal nos anos recentes, In: DEDECCA, C. &

PRONI, M. Políticas Públicas e Trabalho: textospara estudos dirigidos.

Campinas, Unicamp. IE / Brasília, DF Ministério do Trabalho e

Emprego,Unitrabalho, 2006.

BALTAR, P.; SANTOS, A.; KREIN, J. D.; LEONE, E. T.; MORETTO, A.;

SALAS, C.; PRONI,M.; MAIA, A. G. Trabalho no governo Lula: uma reflexão

sobre a recente experiência brasileira. Global LabourUniversityWorkingPapers.

Paper n. 9, may 2009. Berlim, Alemanha

BARBOSA DE OLIVEIRA, C. A. – “O processo de industrialização – do

capitalismo originário aoatrasado”. São Paulo: Editora UNESP; Campinas, SP:

UNICAMP, 2003.

BARBOSA, C. A. e HENRIQUE. Determinantes da Pobreza no Brasil. Carta

Social e do Trabalho,CESIT/IE/UNICAMP, 2011.

BELLUZZO, L.G. e ALMEIDA, J. BELLUZZO, L.G. E ALMEIDA, J.S. Depois da

queda: Aeconomia brasileira da crise da dívida aos impasses do Real. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira. 2002.

BEYNON, H. O sindicalismo tem futuro no século XXI? In. SANTANA, M. A. &

RAMALHO, J.R. (orgs.). Além da Fábrica: trabalhadores, sindicatos e a nova

questão social. São Paulo: Boitempo,2003.

BOITO JR. Armando. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil

BOITO JR., Armando; MARCELINO, Paula. O SINDICALISMO DEIXOU A

CRISE PARATRÁS? Um novo ciclo de greves na década de 2000. Caderno

CRH

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

45

BOITO, A. A crise do sindicalismo. In. SANTANA, M. A. & RAMALHO, J. R.

(orgs.). Além daFábrica: trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. São

Paulo: Boitempo, 2003.

BOITO, Armando Jr. Política Neoliberal e Sindicalismo no Brasil. São

Paulo:Xamã, 1999.

BRIDI, M.A. e FERRAZ, M (org). O sindicalismo equilibrista: entre o

continuísmo e as novas

CARDOSO DE MELLO, J. M. e NOVAIS, Fernando A. – “Capitalismo tardio e

sociabilidademoderna”. 2ª ed. – São Paulo: Editora UNESP; Campinas, SP:

Facamp, 2009.

CARDOSO JR, J.C. (2001). Crise e regulação do trabalho no Brasil. In. Tempo

Social RevistaUSP n 13(2), 2011.

CARDOSO JR, J.C. As fontes de recuperação do emprego formal no Brasil e

as condiçõespara sua sustentabilidade temporal. X Encontro Nacional da

Associação Brasileira de Estudos doTrabalho ABET. Salvador;2007.

CARDOSO, A. A década neoliberal. Cap1;

CARDOSO, Adalberto Moreira. A década neoliberal e a crise dos sindicatos no

Brasil. Ed. Boitempo. 2004.

DRAIBE, Sonia M. – “Rumos e metamorfoses. Estado e industrialização no

Brasil: 1930/1960”.Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.

ESTANQUE, E.: Trabalho, sindicalismo e ação coletiva: desafios no contexto

de crise; in COSTA,A.H e ESTANQUE, E. (orgs.). O sindicalismo Português e a

nova questão social: crise ourenovação?. Coimbra: Almedina e CES, 2011.

FERRAZ, M. Do confronto à negociação: a CUT na passagem dos anos 1990.

In ARAUJO, S. M.;

GALVÃO. A., O movimento sindical no governo Lula: entre a divisão e a

unidade. V CongresoLatinoamericano de Ciencia Política organizado por

46

laAsociaciónLationoamericana de CiênciaPolítica (ALACIP). Buenos Aires, 28 a

30 de julio de 2010. 2010.

GANZ LUCIO, C. Questões e uma agenda sindical: Notas para refletir sobre os

desafios para a ação sindical. 2010.

HARVEY, D. Condição pós-moderna. 1998.

HENRIQUE, Wilnês. - “O Capitalismo selvagem: um estudo sobre desigualdade

no Brasil”. Tesede doutoramento, Campinas, Unicamp, IE, 1999.

HOBSBAWM, E. Como mudar o mundo?, 2011.

MACHADO DA SILVA, L. A. (1990) A (des)organização do trabalho no Brasil

urbano. São Pauloem Perspectiva Vol. 4 nº 3-4. São Paulo. SEADE

MATTOS, F. A. M. Flexibilização do trabalho. 2008.

MATTOSO, J. E. L. A desordem do trabalho, cap. I. 1955.

OIT. Global employment trends, jan. 2011.

OLIVEIRA, Marco Antonio. Notas sobre a crise do novo sindicalismo brasileiro.

São Paulo em Perspectiva, 12(1). 1998.

POCHMANN, M. O trabalho sob fogo cruzado. 1999.

práticas. Curitiba: UFPR/SCHLA, 2006.

SANTOS, A. Recuperação Econômica e Trabalho no Governo Lula. Campinas,

2011, mímeo. (aser publicado pela em Coletânea de Livro pela Universidade

Nacional Autônoma do México).

VERAS, R. Sindicalismo e democracia no Brasil: do novo sindicalismo ao

sindicato cidadão. SãoPaulo: Annablume, 2011;

VERAS, R. Sindicalismo e democracia no Brasil: do novo sindicalismo ao

sindicato cidadão. SãoPaulo: Annablume, 201;

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

47

ID 353

A MOBILIZAÇÃO DOS DESEMPREGADOS NOS ANOS 2000 AUTORES: Elaine Regina Aguiar Amorim

Resumo Em 2000, surgiu no estado do Rio Grande do Sul (RS), o Movimento

dos Trabalhadores Desempregados (MTD). O MTD/RS originou-se a partir da iniciativa de militantes nucleados na Consulta Popular e pertencentes a diversas organizações sociais e políticas. O objetivo geral que norteia o estudo que estamos desenvolvendo e que se insere em uma pesquisa mais ampla de pós-doutorado, consiste em analisar a trajetória política do MTD durante a década de 2000. Para tanto, realizamos uma pesquisa documental, bibliográfica e empírica. Esta última, realizada junto ao MTD/RS, consistiu, por um lado, na realização de entrevistas qualitativas com membros que pertenciam à Coordenação Executiva e Estadual, com lideranças intermediárias e, por outro, na aplicação de um questionário semi-aberto com uma pequena parcela da base social. Pretendemos discutir no GT alguns dos resultados alcançados, até o momento, que se referem às mudanças e/ou continuidades observadas nas reivindicações, na base social e nas formas de organização do MTD.

Palavras-chave: desemprego, neoliberalismo, flexibilização dos direitos trabalhistas, movimento de desempregados, lutas sociais.

48

Introdução

A gestação do Movimento de Trabalhadores Desempregados (MTD) do

Rio Grande do Sul, no final dos anos de 1990, ocorreu em um contexto de

refluxo do movimento operário e popular. Ao contrário das inúmeras

mobilizações, das greves massivas e da significativa capacidade organizativa

do movimento operário e sindical observadas na década anterior (1980) e que

tiveram o papel de retardar a implantação do neoliberalismo no país (GALVÃO;

BOITO; MARCELINO, 2011), os anos de 1990 caracterizaram-se pela

diminuição das ações grevistas, por mudanças na prática sindical do

sindicalismo combativo e pela aplicação das políticas neoliberais.

Ao observarmos os dados sobre o mercado de trabalho brasileiro ao

longo da década de 1990 e início dos anos 2000 encontramos informações

significativas para a compreensão dos impactos das políticas neoliberais sobre

o desemprego. Se considerarmos os registros do DIEESE18, somente na região

metropolitana de São Paulo a taxa média de desemprego aumentou de 14,2%,

em 1994, para 19,3%, em 1999, e 20,4% em abril de 2002; porcentagem que

bateu recorde histórico por ter sido superior a todas as outras registradas

desde 1985, quando se iniciaram os levantamentos feitos por esse

departamento (DIEESE, 2002). A esse quadro poderíamos acrescentar, ainda,

a difusão de formas e contratos de trabalho precários e a redução do caráter

protetor da legislação trabalhista, expressos, por exemplo, no crescimento da

informalidade brasileira19 (POCHMANN, 2006).

                                                            18 A mediação oficial do desemprego nacional realizada pelo IBGE pautava-se, até 2002, em uma metodologia que considerava como desempregado somente o trabalhador que na semana anterior à pesquisa tivesse procurado emprego e não trabalhado nem mesmo 60 minutos, como também estivesse apto para ocupar imediatamente uma vaga. Disso resultava a subestimação das taxas auferidas por esse instituto. Por isso, utilizamos os dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômico (DIEESE) que, embora registre os dados relacionados somente às seis principais regiões metropolitanas do país, adota os 30 dias anteriores da pesquisa como período de referência e considera nos seus levantamentos a soma dos índices relativos ao desemprego oculto pelo trabalho precário, ao desemprego oculto pelo desalento e ao desemprego aberto.

19 Para se ter uma noção da magnitude da informalidade no Brasil 1/3 das ocupações existentes durante os anos de 1980 não tinha carteira assinada. Esta situação somente agravou-se durante a década de 1990 juntamente com o aumento do desemprego aberto e com a difusão das novas formas de trabalho precário. De acordo com Pochmann (2007, p.1) a inflexão do mercado brasileiro a partir de meados da década de 1980 teria reconfigurado a informalidade. Entre 1985 e 2005 de cada 10 postos de trabalho criado no período, seis foram assalariados (20,2 milhões) e dentre estes quatro com carteira assinada (12,7 milhões de empregos formais). Em contrapartida, o país criou um contingente adicional de 13,1 milhões de postos de trabalho não assalariados, correspondendo a 40% do total de postos gerados.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

49

Pode-se dizer que o desemprego minou a luta sindical nesse período

(BOITO, 2002), na medida em que atingiu setores importantes e ativos do

sindicalismo combativo (por exemplo, os bancários e os metalúrgicos), mas

contribuiu também para a formação de novas resistências, como exemplifica o

movimento que nos propomos aqui analisar. Isto significa que, ao mesmo

tempo em que o neoliberalismo atingiu diretamente as classes trabalhadoras e

provocou o recuo de suas organizações representativas frente ao temor do

desemprego, as suas consequências desencadearam ou reativaram novas

formas de resistência e organização dos trabalhadores. A primeira organização

do MTD, no estado do Rio Grande do Sul, gestou-se, então, nessa conjuntura

adversa para o movimento operário e sindical.

Com a vitória de Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2003,

configurou-se uma nova conjuntura, marcada, de um lado, por certas

expectativas em relação ao seu governo, considerado por alguns como um

“governo em disputa” e, de outro lado, pelas contradições e impasses

vivenciados pelos movimentos sociais e sindicais, frente às medidas tomadas

pelo presidente. De certo modo, as políticas voltadas para os direitos dos

trabalhadores seguiram um movimento contraditório, na medida em que, em

alguns casos, ampliou tais direitos e, em outros, provocou uma deterioração

dos mesmos. Movimento semelhante ocorreu em relação à melhoria dos

indicadores do mercado de trabalho, como a diminuição do desemprego, que

acompanhou, em contrapartida, a intensificação da precarização do trabalho.

No que diz respeito às lutas sociais, a década de 2000 caracterizou-se,

segundo alguns autores, pela “acomodação política” do movimento sindical e

popular (GALVÃO, BOITO, MARCELINO, 2011); acomodação que tampouco

significou a ausência de mobilizações junto às bases sociais, mas sim uma

tendência, por parte das cúpulas dos movimentos, a evitar o confronto com o

governo.

Parte significativa da trajetória do movimento de desempregados aqui

analisado inseriu-se, portanto, nessa conjuntura complexa. A proposta de

comunicação que ora apresentamos pauta-se em uma pesquisa de pós-

doutorado, ainda em curso, que tem como objeto a trajetória política do

Movimento dos Trabalhadores Desempregados do Rio Grande do Sul

(MTD/RS). O presente estudo pauta-se em uma pesquisa documental,

50

bibliográfica e empírica. Esta última, realizada junto ao MTD/RS, consistiu, por

um lado, na realização de entrevistas qualitativas com membros que

pertenciam à Coordenação Executiva e Estadual, bem como com lideranças

intermediárias (responsáveis por empreendimentos produtivos e

coordenadores de núcleos de bairros) e, por outro, na aplicação de um

questionário semi-aberto com uma pequena parcela da base social.

Pretendemos discutir no GT alguns dos resultados alcançados, até o

momento, com o desenvolvimento da pesquisa e que se referem às mudanças

e/ou continuidades observadas nas reivindicações, na base social e nas formas

de organização do MTD. Para isso, o texto está dividido em quatro partes: na

primeira procuramos apresentar alguns traços dos governos de Fernando

Henrique Cardoso (FHC) e Lula da Silva, especialmente os que se referem aos

indicadores do mercado de trabalho e às políticas relativas ao direito do

trabalho; na segunda discutimos a formação, os principais antecedentes, as

primeiras reivindicações e experiências de luta do MTD/RS; na terceira parte

discutimos a reorientação das formas de organização e as reformulações das

demandas elaboradas pelo movimento ao longo da sua trajetória e analisamos

as características da sua base social, indicando, por ora, algumas hipóteses

para a configuração que esta apresenta, especialmente, a sua feminização; na

última parte discutimos, brevemente, os efeitos das mudanças na correlação de

forças na esfera estadual e federal sobre o movimento, como por exemplo, a

repressão exercida pela governadora Yeda Crucius durante o seu mandato

(2007-2010).

Anos 2000: do desemprego generalizado ao crescimento do

emprego e à continuidade da flexibilização

O Brasil adentrou o século XXI com um grande contingente de

desempregados e com uma reduzida participação do assalariamento formal. A

título de comparação, o país tinha 2 milhões de desempregados em 1989 e

alcançou cerca de 11,4 milhões, em 2000, segundo o Censo Demográfico do

IBGE (DIEESE, 2002, p.2). Isto significa que no transcurso de uma década

surgiram mais de 9 milhões de desempregados. Somava-se a esse grave

quadro, a predominância de formas instáveis de inserção no mercado de

trabalho, pois de um total de 75 milhões de pessoas que compunham a PEA

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

51

(População Economicamente Ativa), em 2000, somente 36% (em torno de 27

milhões) tinham carteira assinada (DIEESE, 2002, p.2). Mais da metade dos

trabalhadores estava completamente excluída da proteção dos direitos sociais

e trabalhistas, representando em números absolutos, 48 milhões de pessoas!

Em contrapartida, o país encerrou a década apresentando um

cenário diferente. Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílios – Pnad/IBGE) para o ano de 2009, indicavam que do total de 101

milhões de pessoas que compunham a PEA, aproximadamente 92% estava

ocupada (92,5 milhões) e 8,3% desocupada (8,4 milhões) (DIEESE, 2012,

p.57). Redução semelhante observou-se nos levantamentos feitos pelo

DIEESE em cinco regiões metropolitanas (Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife,

Salvador e São Paulo) e no Distrito Federal. Outro indicador importante refere-

se à expansão do assalariamento formal. Apesar da existência de uma alta

porcentagem de empregos informais no país, a formalização expandiu-se,

contemplando 51,8% do total de ocupações das principais regiões

metropolitanas (DIEESE, 2012, p.165).

As alterações observadas entre o início e o final dos anos 2000,

segundo os dados acima, mostram que o mercado de trabalho brasileiro não

apresentou uma trajetória linear ao longo desses anos, especialmente em

relação aos indicadores sobre desemprego, emprego e informalidade. A

década pode ser dividida em dois momentos distintos, caracterizados,

respectivamente, por um aumento recorde e generalizado das taxas de

desemprego (especialmente em 2003) e pela posterior redução destas taxas

(2006 a 2010), ao ponto de alguns segmentos e regiões terem se aproximado,

em 2011, a uma situação de “pleno emprego” (KREIN; SANTOS, 2012, p.92).

Para compreendermos como ocorreram tais alterações, retomamos

brevemente algumas características do período, tendo como “pano de fundo”

os anos de 1990.

Após dez anos de implantação e consolidação do modelo político

econômico neoliberal, o país refletia no início dos anos 2000 os impactos

sociais e econômicos que as políticas implementadas na década anterior

haviam produzido. À frente da Presidência, Fernando Henrique Cardoso (1995-

2002) deu continuidade aos processos de privatização, de abertura do mercado

nacional e financeiro, bem como impulsionou a desregulamentação do

52

mercado de trabalho por meio da reforma trabalhista. Cada uma dessas

medidas, inclusive combinadas com novos métodos de organização do

trabalho e inovações tecnológicas introduzidas pelas empresas, contribuiu para

o aumento do desemprego – como exemplificam os setores bancários,

metalúrgicos, têxteis, calçados, cujos postos de trabalho reduziram-se

significativamente. O nível de emprego industrial, quando comparado com o

final dos anos de 1980, diminuiu acima de 30% em vários subsetores (DIEESE,

2002), indicando o processo de desindustrialização em curso.

Sob o governo FHC ganhou força a reforma da legislação trabalhista

(GALVÃO, 2007) e, por consequência, uma maior desregulamentação do

mercado de trabalho. Aqui cabe ressaltar uma característica do mercado de

trabalho brasileiro anterior à aplicação das políticas neoliberais, qual seja: o

seu caráter pouco regulamentado. Neste caso, chama a atenção que entre as

particularidades do processo de flexibilização dos direitos trabalhistas no Brasil

destacaram-se o seu caráter tardio e a lentidão na sua implementação

(GALVÃO, 2007; BOITO JR., 1999). As facilidades para se demitir e a

existência de formas de contratação bastante flexíveis contribuíram para que

as primeiras reformas neoliberais realizadas se direcionassem para outras

áreas. Priorizou-se, então, a aplicação das reformas administrativa e

previdenciária, bem como a abertura do mercado por meio da redução das

tarifas aduaneiras. De acordo com a afirmação de Armando Boito Jr. (1999, p.

93): “na realidade, o neoliberalismo brasileiro deparou-se com um mercado de

trabalho muito menos regulamentado do que aquele com o qual tiveram de

tratar os governos neoliberais nos países desenvolvidos” (BOITO JR., 1999, p.

93).

Tal reforma era defendida por entidades patronais devido à excessiva e

rígida regulação estatal do mercado de trabalho. A rigidez20 manifestar-se-ia no

detalhismo da legislação e nos altos encargos sociais: no primeiro caso, a

excessiva regulação tornaria a contratação formal onerosa e impediria a

                                                            20 Duas posições favoráveis à flexibilização no debate brasileiro dos anos de 1990 são discutidas em detalhe por Krein, Santos e Nunes (2012). Apresentamos acima uma das explicações da rigidez do mercado de trabalho exposta por uma dessas posições, por nos parecer a que mais se difundiu e, segundo os autores, a que se ajustou nitidamente aos preceitos do neoliberalismo, encontrando respaldo nas principais entidades empresariais e em organismos multilaterais, como FMI (Fundo Monetário Internacional), Banco Mundial e OMC (Organização Mundial do Comércio).

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

53

negociação direta entre as partes, provocando o desemprego e a

informalidade; no segundo, a obrigatoriedade e a determinação por lei das

alíquotas impediam a competitividade interna e internacional das empresas, o

que combinado com o alto custo dos encargos, se repercutiam em salários

baixos para os trabalhadores (KREIN; SANTOS; NUNES, 2012). Para

combater tal rigidez seria necessário, na opinião das entidades patronais,

flexibilizar os contratos de trabalho (aumentando a produtividade e

competitividade das empresas e fomentando a geração de empregos);

estimular a negociação direta entre trabalhadores e empregadores (reduzindo a

intervenção do Estado, que passaria a ter como única função assegurar o

funcionamento do mercado); como também limitar a ação da Justiça do

Trabalho na resolução de conflitos21.

Em síntese, a rigidez do mercado de trabalho brasileiro e o elevado

custo da força de trabalho tornaram-se os principais argumentos que

respaldaram as ações governamentais, no sentido de colocar em prática

políticas de redução dos custos do trabalho e contenção dos salários e

benefícios. O que estava implícito especialmente no que se convencionou

chamar “custo Brasil”, era a responsabilização do próprio trabalhador pela sua

situação de desemprego, pois para o emprego aumentar caberia ao

desempregado aceitar salários e condições de trabalho abaixo do estabelecido

legalmente. Tratava-se de transferir para os indivíduos a responsabilidade do

governo pelo alto nível do desemprego – transferência também realizada em

momentos anteriores, mas com base no argumento que culpabilizava a falta de

qualificação profissional dos trabalhadores (POCHMANN, 2003).

Nesse sentido, as duas principais políticas adotadas pelo governo

foram a desindexação salarial (MP 1.079/95), pondo fim à política salarial de

reajuste automático que perdurou durante 30 anos (1964 a 1994), e a

flexibilização do mercado de trabalho (POCHMANN, 2003). Anunciada como

parte de um pacote de “combate ao desemprego”, a flexibilização dos contratos

                                                            21 Enquanto no primeiro mandato do governo FHC aprovou-se, por meio da Portaria 865/96, a proibição dos fiscais do Ministério do Trabalho de autuarem empresas que descumprissem cláusulas acordadas coletivamente (GALVÃO, 2007), interferindo diretamente na fiscalização do trabalho, outras medidas aprovadas no segundo mandato, como a eliminação da figura do juiz classista (EC n.24/99) e a instituição das comissões de conciliação prévia (Lei 9.958/2000), buscaram estimular o emprego de “(...) mecanismos extrajudiciais de solução dos conflitos” (GALVÃO, 2007, p. 224), e diminuir a recorrência à Justiça do Trabalho.

54

de trabalho efetivou-se com a Lei 9.601/98, que instituiu os contratos flexíveis

por meio das seguintes medidas: extensão do contrato de trabalho por prazo

determinado para qualquer setor ou ramo de atividade (sob essa modalidade

de contratação os empregadores passavam a depositar somente 2% do salário

– não mais 8% – ao FGTS, reduzindo os benefícios recebidos pelos

trabalhadores); banco de horas; contratação em tempo parcial (MP 1.709 –

4/98); e suspensão do contrato de trabalho por um período de dois a cinco

meses, o que excluía das estatísticas de desemprego o trabalhador com

contrato suspenso (GALVÃO, 2007). No segundo mandato do governo FHC, a

flexibilização dos contratos estendeu-se ao serviço público com a aprovação de

leis destinadas a facilitar a demissão dos funcionários públicos e a modificar a

sua forma de contratação – por exemplo, a possibilidade dos contratos serem

realizados conforme as normas da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).

Alguns autores (POCHMANN, 2003; KREIN; SANTOS; NUNES, 2012)

destacam que as modificações introduzidas ao longo dos dois mandatos de

FHC nas leis de proteção ao trabalho não significaram uma ampla reforma do

arcabouço legal, contudo, as medidas pontuais introduzidas produziram

alterações substantivas que ampliaram e aprofundaram a flexibilização

contratual, salarial, da jornada de trabalho e das demissões.

Cabe ressaltar que as mudanças introduzidas nas relações de trabalho

não proporcionaram os resultados propagandeados pelos defensores da

reforma trabalhista em termos de diminuição do desemprego, como tampouco

foram acompanhadas por um significativo crescimento econômico22 (GALVÃO,

2007). Além da perda de direitos trabalhistas e da deterioração das relações de

trabalho, o desemprego manteve-se em níveis elevados, como se generalizou

para o conjunto da sociedade, atingindo, especialmente, pessoas com mais de

oito anos de escolaridade, com mais idade (acima de 49 anos), mulheres e

chefes de família. Embora não estivessem imunes ao desemprego,

trabalhadores com menor nível de educação formal, mais jovens, homens e

não chefes de família passaram a ser menos acometidos (POCHMANN, 2003,

p.104); a maior incidência da desocupação entre os mais escolarizados

contrapunha-se, nesse caso, à associação entre maior escolaridade e maiores                                                             22 As taxas de crescimento econômico durante os mandatos de FHC giraram em torno de 2,5% (DIESSE, 2002, p. 2).

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

55

chances de reinserção no mercado de trabalho, como proposto pelos adeptos

da teoria do capital humano.

No que diz respeito à relação entre desempregados e renda, Márcio

Pochmann (2006, p. 64) mostra que o desemprego afetava, em 2002,

especialmente as famílias de baixa renda, cujo rendimento familiar per capita

era inferior a R$163,00 mensais 23 . Do total de desempregados, 62%

pertenciam a famílias de baixa renda, enquanto 32,4% e 5,6% provinham,

respectivamente, da classe média e classe média alta.

Não por acaso, durante a campanha eleitoral de 2002, o tema do

desemprego esteve presente na agenda dos candidatos à Presidência. Dentre

estes, Lula propôs no documento “Mais e melhores empregos” a criação de 10

milhões de postos de trabalho no seu governo, pautando-se, para isso, em uma

política de emprego cujos eixos centrais seriam: a) recuperação do crescimento

econômico em 5% ao ano; b) redução de 10% da jornada de trabalho e das

horas extras; c) introdução de políticas públicas que permitissem retirar do

mercado de trabalho pessoas que não deveriam estar (como é o caso de

crianças, adolescentes e aposentados) (POCHMANN, 2003).

Eleito com mais de 65% dos votos, o presidente Lula enfrentou, em

2003, os piores índices de desemprego registrados pelos institutos de

pesquisa, ao mesmo tempo em que adotou uma política macroeconômica de

natureza ortodoxa, cujas principais medidas consistiram no aumento da taxa de

juros, no superávit primário elevado e no corte do gasto público (POCHMANN,

2003, p. 113). Além disso, o governo realizou já no início do seu primeiro

mandato a reforma previdenciária do funcionalismo público, reduzindo os

direitos trabalhistas desse setor. Essa reforma pôs fim à integralidade e à

paridade dos servidores públicos com a fixação de um limite a ser percebido a

título de proventos de aposentadoria; aumentou o limite de idade para a

aposentadoria; determinou a criação de fundos de pensão complementares; e

                                                            23 Valores em reais de setembro de 2002 (POCHMANN, 2006, p.64). Em 2002, o salário mínimo vigente, no valor de R$ 200,00, correspondia 5,6 vezes menos ao que deveria ser, isto é, R$ 1.129,18, segundo as estimativas do DIEESE (DIEESE, 2002, p.4). Apesar de referir-se aos anos de 1990, a maior expansão dos trabalhos sem remuneração, comparados com as outras ocupações, ajuda a compreender a deterioração das condições de vida de parcela dos trabalhadores no início do século XXI. Na década de 1990 os trabalhos sem remuneração cresceram, em média, 7,8% ao ano, enquanto as ocupações com até 1,5 salários mínimos retraíram 0,1% e entre 1,5 a 3 salários mínimos cresceram 2,7% (POCHMANN, 2012, p.31-32).

56

instituiu a cobrança previdência para os inativos (KREIN; SANTOS; NUNES,

2012). A aprovação da reforma da previdência colocou em xeque as

aspirações de uma parcela dos trabalhadores que projetavam na figura do

novo presidente a preservação e a ampliação dos seus direitos, ao mesmo

tempo em que obteve o apoio de uma parcela da população que viram nela o

fim dos privilégios (ao contrário de direitos) gozados pelo funcionalismo público.

Em relação à reforma trabalhista, o governo Lula aprovou medidas que

deram continuidade à flexibilização da legislação trabalhista praticada durante

os anos de 1990 (GALVÃO; BOITO; MARCELINO, 2011). A aprovação de

medidas flexibilizantes, conforme ressalta Galvão (2012), ocorreu em um ritmo

menor que o observado no governo FHC e contemplou mudanças pontuais,

realizadas na legislação ordinária (sem envolver mudanças constitucionais) e

voltadas para públicos-alvo (jovens ingressantes no mercado de trabalho,

pequenas e micro empresas, etc.).

Entre essas leis encontram-se: a Nova Lei de Falências e de

Recuperação Judicial (Lei n.11.101/2005), que desregulamentou o direito de

privilegiar, em caso de falência de empresa, os salários e indenizações devidos

aos trabalhadores, como previa a CLT, além de estabelecer outras medidas24;

o Programa Nacional de Primeiro Emprego (PNPE – Lei 10.748/03 e

10.940.04, regulamentada pelo Decreto 5.199/04), que concedeu incentivos

fiscais para empresas que contratassem jovens, por um período mínimo de 12

meses desde que não ultrapassasse os 20% do total de contratados, nem

utilizasse essa forma de contratação para substituir os demais trabalhadores; o

Contrato de Trabalhador Rural Por Pequeno Prazo (Lei n.11.718/2008), que

permitiu a contratação sem registro em carteira de trabalhadores rurais para

serviços de até 2 meses de duração; o Super Simples (LC 123/2006), que

simplificou ainda mais as rotinas trabalhistas das micro e pequenas empresas,

por exemplo, dispensando-as de fixar quadro de trabalho, anotar férias dos

empregados, possuir Livro de Inspeção do Trabalho, entre outras medidas

(KREIN; SANTOS; NUNES, 2012).

                                                            24 Não cabe ao escopo desse estudo, mas seria interessante compreender qual tem sido o impacto dessa lei para as experiências de recuperação e gestão de empresas sob o controle dos trabalhadores (por exemplo, as fábricas recuperadas), que utilizam os créditos trabalhistas que lhes são devidos para a aquisição de fábricas em situação falimentar. Para uma compreensão sobre essas experiências, ver o interessante artigo de Angela Araújo (2009) sobre duas fábricas recuperadas inseridas no setor rural e urbano.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

57

A aprovação das medidas citadas seguiu uma lógica flexibilizadora, na

medida em que reduziu direitos trabalhistas e favoreceu a redução de custos e

incentivos fiscais para estimular a contratação. No entanto, outras iniciativas

tomadas durante o governo Lula proporcionaram a defesa dos direitos dos

trabalhadores, seja por meio da retirada de pauta de projetos do Congresso

Nacional, seja pela aprovação de políticas específicas. No primeiro caso,

destacam-se a retirada do projeto que previa a prevalência do negociado sobre

o legislado e o veto à Emenda n.3 da Super Receita, que proibia o auditor fiscal

de multar empresas por manter relação de emprego disfarçada. No segundo

encontram-se a aplicação de uma política de valorização do salário mínimo; a

ampliação do seguro desemprego para 7 meses aos setores mais atingidos

com a crise de 2008/2009; a regulamentação do estágio (de modo que fosse

assegurado ao estagiário o pagamento de férias e uma jornada de trabalho de

até 6 horas diárias); o cancelamento de subsídios nas contribuições sociais

para contratação por prazo determinado; e a extensão do direito de recolher a

contribuição social ao INSS para o micro empreendedor (autônomo ou

empreendedor individual).

Ao contrário de uma defesa declaradamente aberta da flexibilização

trabalhista, como se viu durante os anos de 1990, o governo Lula recorreu a

uma defesa parcial (GALVÃO, 2012), realizando alterações pontuais na

legislação do trabalho que significaram um recuo no caráter protecionista da

legislação trabalhista, como introduziu medidas no sentido de ampliar ou

preservar alguns direitos. Em meio a esse posicionamento ambivalente, para

alguns autores predominou uma tendência ao aprofundamento da flexibilização

do trabalho (KREIN; SANTOS; NUNES, 2012). Tendência que se observa na

remuneração variável, na jornada flexível, nas formas de contratação, na

continuidade da terceirização e nas propostas de limitação do direito de greve.

Enquanto o tratamento dispensado aos direitos do trabalho esteve

marcado por essa contradição, a partir de 2004 o mercado de trabalho passou

por mudanças importantes relativas ao aumento da formalização do trabalho e

do emprego. Entre os fatores que possibilitaram uma melhora nos indicadores

do mercado de trabalho destacam-se o crescimento da economia brasileira, a

um nível superior ao verificado entre 1990-2002, e a implementação de

políticas de transferência de renda, de valorização do salário mínimo e de

58

acesso ao crédito (KREIN; SANTOS, 2012). O aumento do ritmo do

crescimento econômico e a aplicação desse conjunto de políticas públicas

incidiram positivamente sobre o poder de compra dos salários, o crescimento

do emprego e as oportunidades ocupacionais.

De acordo com dados disponibilizados pelo DIEESE para o conjunto

das regiões metropolitanas pesquisadas, entre 1999-2009, o desemprego

reduziu de 20,2% para 14,2%, correspondendo a uma queda de 30%.

Desagregando esses dados relativos ao desemprego total, observa-se uma

diminuição de aproximadamente 45% do desemprego oculto pelo trabalho

precário e pelo desalento e de 20% do desemprego aberto (DIEESE, 2012,p.

58; 63). A significativa redução do desemprego oculto parece corroborar o

argumento de Krein e Santos (2012), segundo os quais, a partir de meados dos

anos 2000, modificou-se a composição dos trabalhadores em busca de

trabalho, isto é, a maioria correspondia a trabalhadores ocupados à procura de

uma melhor ocupação. De acordo com a explicação desses autores:

“Considerando os mais de 15 milhões de empregados

assalariados informais, esse contexto de ampliação de oportunidades

de emprego permitiu que uma maior proporção de desempregados não

aceitasse ocupar um posto de trabalho informal e sem proteção social,

e que os trabalhadores já ocupados (e sem registro) tentassem

aproveitar as melhores oportunidades para encontrar um emprego

formal e protegido pela legislação trabalhista e pela previdência social.

Quer dizer: a forte ampliação do emprego e a queda do desemprego

reverteram uma situação muito comum até 2003, na qual os

trabalhadores aceitavam qualquer tipo de trabalho e vínculo trabalhista,

em um contexto de desemprego recorde, o que ampliava a participação

do trabalho informal e precário” (KREIN; SANTOS, 2012, p. 97.

Tradução livre).

De um modo geral o desemprego reduziu-se em todos os segmentos, a

ocupação cresceu, especialmente por meio da geração de postos de trabalho

protegidos que possibilitaram uma expansão da formalização, e o perfil da

maior parte dos desempregados caracterizou-se por uma população jovem,

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

59

que ocupava na família a posição de filho, com o Ensino Médio incompleto

(DIEESE, 2012).Tais mudanças, analisadas a partir de uma perspectiva

histórica, representam uma melhoria nos indicadores do mercado de trabalho

nos anos 2000, sobretudo se comparados aos da década de 1990; além disso,

colocam em xeque as teses propagadas nesses anos sobre a necessidade

imperativa de flexibilizar o mercado de trabalho e a impossibilidade de uma

política de valorização salarial para a geração de emprego (DIEESE, 2012;

KREIN; SANTOS, 2012).

Porém, a melhoria do comportamento do mercado de trabalho nos

últimos anos, em especial o crescimento dos empregos protegidos, isto é,

caracterizados por mecanismos legais de proteção social, não pode ofuscar ou

subestimar o fato de que o Brasil convive ainda com altas taxas de

informalidade. Para se ter uma noção, em 2009, 43,4% da população ocupada

no Distrito Federal e nas cinco regiões metropolitanas pesquisadas pelo

DIEESE, encontrava-se em ocupações informais. Estas, ademais, ganharam

novas características com as mudanças provocadas pelas novas formas de

organização da produção e do trabalho, colocadas em prática pelas empresas

de acordo com um movimento mais geral de reestruturação produtiva e

redefinição das formas de exploração da força de trabalho. Daí a importância

de metodologias estatísticas que captem as características das novas

ocupações informais e permitam refinar a própria caracterização da

informalidade no país, tal como encontramos nos levantamentos do DIEESE25.

À luz da caracterização dos governos de FHC e Lula, bem como da

configuração do mercado de trabalho brasileiro no decorrer dos anos de 1990 e

2000, passaremos a discutir propriamente a formação de uma nova forma de

organização e luta dos desempregados. A caracterização que procuramos aqui

realizar tem uma importância para a compreensão das diferentes conjunturas

                                                            25 O DIEESE, nos seus levantamentos estatísticos, parte de uma noção ampla da informalidade a fim de detectar os novos modelos de precarização surgidos no mercado de trabalho a partir da reestruturação produtiva dos anos de 1990. De acordo com esse órgão a informalidade seria composta por: emprego subcontratado, emprego ilegal, conta própria, pequenos empregadores e empregados domésticos. Merecem destaques nessa noção, a inclusão do emprego subcontratado – modalidade difundida pelas empresas que procuram reduzir os seus custos por meio da diminuição das suas obrigações legais –, como os trabalhadores independentes (por conta própria), cujas inserções no mercado de trabalho são marcadas pelo restrito acesso aos mecanismos de proteção social (DIEESE, 2012, p. 168).

60

econômica e política consolidadas ao longo desses anos, nas quais o MTD

originou-se e colocou em prática diversas ações, estratégias e formas de luta.

MTD: principais antecedentes, formação e primeiras experiências de luta

O Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), formado no

final dos anos de 1990, no Rio Grande do Sul, tornou-se a principal referência

organizativa dos trabalhadores sem emprego, especialmente no âmbito desse

estado. Os principais antecedentes da sua formação estão relacionados com

as discussões realizadas por militantes de diferentes organizações (MST, Via

Campesina, pastorais sociais da igreja católica e etc.) nucleados na Consulta

Popular26 e com a atuação da Subcomissão sobre o Desemprego, vinculada à

Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio

Grande do Sul.

Nesse período, as discussões realizadas no interior da Consulta

Popular, debatiam o abandono de um horizonte político revolucionário pela

esquerda partidária, especialmente pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o

alarmante crescimento do desemprego e os limites das lutas voltadas para a

conquista da moradia. Para os militantes nucleados nessa organização, a

conjuntura política e econômica colocava desafios aos setores populares

urbanos, expostos a condições de vida e trabalho cada vez mais deterioradas.

O desemprego, na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), vinha

atingindo níveis elevados, ao ponto de ter alcançado, em 1999, 19%, o que

correspondia a um total de 316 mil pessoas sem emprego27 (BASTOS, 2011, p.

186).

Embora uma parcela desses setores fosse organizada pelos

movimentos por moradia, a principal crítica direcionada a estes últimos pelos

                                                            26 Impulsionada pelo MST e criada em 1997, a Consulta Popular é uma organização política que se originou a partir da crítica à primazia eleitoral e ao rebaixamento dos programas políticos que passaram a ser praticados pela esquerda partidária, descrente dos projetos políticos revolucionários. Defendendo a retomada dos trabalhos de base, a Consulta Popular aglutinou militantes de diversos movimentos e organizações sociais, tendo como principal proposta construir um Projeto Popular Para o Brasil em contraposição ao neoliberalismo. Para maiores informações ver site: http://www.consultapopular.org.br

27 A título de comparação, em 1993, a taxa de desemprego total na RMPA era de 12,2% e atingia um total de 174 mil pessoas (BASTOS, 2011, p. 186).

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

61

integrantes da Consulta Popular relacionava-se à dificuldade, uma vez

conquistada a habitação, de manter a organização para uma luta política;

somava-se a essa crítica um diagnóstico sobre a ação sindical, cuja força

política demonstrada em décadas anteriores encontrava-se enfraquecida.

Por isso, resultou desses debates a decisão de designar a um grupo de

militantes a tarefa de elaborar estratégias para a constituição de um movimento

social urbano comprometido com duas reivindicações principais, a saber,

trabalho e moradia, e que se somasse à construção de um “Projeto Popular

para o Brasil”, com o objetivo de disputar um projeto de sociedade, tal como

proposto pela Consulta Popular (MTE, 2007). Isso significa que o surgimento

de um movimento social de desempregados, no caso o MTD, não se deu

espontaneamente, pois a sua origem, formas de ação e reivindicações foram

concebidas e articuladas por militantes, com diferentes experiências de luta,

não necessariamente desempregados.

Em relação ao outro antecedente mencionado, a Subcomissão sobre o

Desemprego, a sua constituição visava analisar a situação de desemprego no

estado e propor políticas públicas, como também era presidida pelo deputado

petista Roque Grazzioti, conhecido como Padre “Roque” e pela sua

proximidade com os movimentos sociais (MANGUEIRA, 2006). A Subcomissão

reuniu, no período de 1999 a 2000, desempregados, políticos e várias

entidades locais, como a Pastoral Operária, a CUT e a Federação dos

Metalúrgicos, e produziu dois projetos de lei propondo: a extensão da jornada

de trabalho dos bancos com a finalidade de gerar empregos no setor e a

criação de um Programa de Frentes Emergenciais de Trabalho, isto é, postos

de trabalho comunitários que assegurariam aos beneficiários uma bolsa-auxílio

no valor de um salário mínimo, cesta básica, vale-transporte e qualificação

profissional durante 6 meses (MTD, 2007; FILHO, 2009).

A partir das discussões realizadas nos dois espaços mencionados e do

trabalho desenvolvido pelo grupo de militantes selecionado organizaram-se

várias ações. Uma delas consistiu na aplicação de um questionário com

aproximadamente dois mil desempregados (MTE, 2007) com o objetivo de

identificar o interesse destes em se engajar em um movimento de

desempregados e em ocupações de terras e acampamentos de “lona preta”

62

(em uma clara referência aos barracos construídos pelo MST). Na ocasião, a

maior parte dos consultados demonstrou a sua predisposição por essa forma

de engajamento e de luta. Outra ação consistiu na elaboração de duas

Cartilhas dos Desempregados. A primeira intitulada Cartilha do Militante

indicava orientações a respeito do trabalho de base e da organização que

deveriam ser desenvolvidos junto aos desempregados, como também os

princípios do movimento a ser constituído, tais como:

Que a luta não seja apenas por resolver problemas emergenciais, mas que seja uma luta por uma sociedade justa, pois sabemos que no atual sistema capitalista e neoliberal não conseguimos a valorização do trabalho e da produção. Portanto, lutamos por uma sociedade e um novo sistema econômico onde a prioridade seja o ser humano.

Que o movimento dos desempregados seja um movimento de massas, autônomo, para conquistarmos direitos básicos como comida, casa, trabalho e transformação social (CARTILHA DOS DESEMPREGADOS, 2000).

Na segunda cartilha, intitulada Desafios dos Trabalhadores

Desempregados, apareceriam pela primeira vez duas propostas de

reivindicação que seriam posteriormente reelaboradas: a criação de uma

“agrovila” e das “Frentes de Trabalho Com Distribuição de Renda”. As Frentes

corresponderiam a uma demanda emergencial e imediata; por meio delas o

trabalho seria prestado diretamente ao poder público ou para as comunidades

e os trabalhadores teriam a sua jornada distribuída da seguinte forma: três dias

de trabalho efetivo, um dia para qualificação profissional e um dia para resgate

de valores sociais e humanos. A “agrovila” corresponderia a uma solução para

o trabalho e a moradia, pois cada família participante teria o direito a um lote de

terra, no qual poderia construir sua casa, produzir alimentos para a

sobrevivência ou para a venda, como desenvolver coletivamente outras formas

de trabalho que assegurassem uma renda (por exemplo, cooperativas).

Com base nessas ações e no trabalho de base que vinha sendo

desenvolvido junto aos desempregados de diferentes regiões, o movimento

apareceu na cena pública, em maio de 2000, quando ocupou um terreno da

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

63

multinacional General Motors, na cidade de Gravataí. Essa ocupação, que

contou com a participação de 200 famílias (MTE, 2007), pode ser considerada

a fundação oficial do movimento.

O que naquelas cartilhas apareciam como propostas de reivindicação

terminaram tornando-se uma das principais bandeiras do movimento: as

Frentes Emergenciais de Trabalho e os “Assentamentos Rururbanos”. Após um

ano do surgimento oficial do movimento e da ocupação mantida pelas 200

famílias, aprovou-se a Lei Estadual das Frentes Emergenciais de Trabalho (Lei

n.11.628, de 14/05/01), que estabeleceu a implementação das Frentes com

base no orçamento estadual anual (MTD, 2007). A regulamentação da lei seria

vista, então, como uma das primeiras conquistas do MTD. Os beneficiários do

programa passaram a prestar serviços eventuais para o governo, como lavar

colégios, limpar arroios, reflorestar margens de córregos, entre outros.

A proposta dos assentamentos rururbanos relacionava-se diretamente

com a negação do emprego assalariado feita originalmente pelo movimento,

que propunha, em contrapartida, o trabalho coletivo baseado na autogestão;

isto é, almejava-se desenvolver, coletivamente, com as famílias assentadas,

atividades agropecuárias e empreendimentos específicos do setor urbano

(como uma metalúrgica, fábrica de tijolos, entre outros) cuja produção pudesse

ser compartilhada pelos próprios produtores e destinada para a venda no

mercado. Com essa proposta o movimento visava reintegrar trabalhadores

urbanos, em situação de desemprego ou subemprego, como também retirá-los

das periferias das grandes cidades e das péssimas condições de moradia.

Esse novo tipo de assentamento deveria estar localizado em áreas

rurais ou urbanas de ocupação extensiva e/ou em áreas de extensão rural

próximas aos grandes centros urbanos, a fim de permitir que um membro da

família assentada mantivesse vínculos de trabalho no setor urbano. Apesar da

crítica ao emprego assalariado e da proposta original formulada pelo

movimento, havia um reconhecimento da necessidade de algum membro da

família dar continuidade a certos trabalhos (como os “bicos”), que supririam

necessidades imediatas.

De acordo com a versão final do “Projeto de Assentamento Rururbano”

(setembro de 2001) apresentado ao governo estadual, o seu público alvo eram

64

as famílias ou indivíduos de origem urbana ou rural que atendessem os

seguintes critérios: não possuir imóvel; não ser funcionário público; estar

excluído do mercado de trabalho; estar organizado em grupo ou em movimento

social; ter uma renda familiar de no máximo dois salários mínimos; ter pelo

menos 50% da força de trabalho familiar desenvolvendo atividade agropastoril

no assentamento. Além desses requisitos, teriam prioridade as famílias

maiores, organizadas há mais tempo e cujos membros estivessem afastados

do mercado de trabalho por um período maior que os outros participantes.

Em maio de 2001, após um ano de experiência do primeiro

acampamento e quando o petista Olívio Dutra (1999 - 2002) estava à frente do

governo estadual, o MTD conquistou o seu primeiro assentamento, localizado

no município de Eldorado do Sul, e denominado Belo Monte (MTE, 2007, p.

48). Nele viviam, em 2012, cerca de 50 famílias, sendo que a área estava

dividida em lotes de 20 x 50 metros destinados às residências e em lotes de

4,3 hectares voltados para a produção.

Desse modo, nos primeiros anos do movimento as principais

reivindicações concentraram-se nas Frentes Emergenciais de Trabalho e nos

Assentamentos Rururbanos. Entre 2000 e 2002, além de outras ocupações de

terras realizadas poucos meses depois da primeira ocupação, os esforços do

MTD direcionaram-se para a organização dos assentados e dos

empreendimentos autogestivos (por exemplo: a horta comunitária, a fábrica de

tijolos, a padaria, entre outros) no interior do primeiro assentamento

conquistado. Esse é o período no qual se estabelece, então, o eixo de luta do

MTD, qual seja: “Trabalho, Terra e Teto” (que posteriormente incorpora o lema

Educação).

Novas reivindicações e estratégias de organização: a massificação e feminização do movimento

Os anos seguintes que, a título indicativo poderíamos caracterizar

como uma segunda fase da trajetória do movimento (2003 a 2006),

corresponde ao período em que este adotou como estratégia construir núcleos

de base nos bairros da periferia, com o objetivo de massificar-se e tornar-se

uma referência política no estado. Os núcleos de base não correspondiam a

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

65

uma nova forma de organização posta em prática, uma vez que já nas

Cartilhas dos Desempregados afirmava-se que tais núcleos eram o “alicerce do

movimento” e, por meio deles deveriam organizar-se todos os integrantes. O

que nos parece ter diferenciado os primeiros núcleos de base dos constituídos

nessa nova fase (também denominados como núcleos de bairro) foi a sua

composição: inicialmente havia uma presença maior de famílias, inclusive pelo

fato das primeiras mobilizações terem se direcionado para a formação e

organização do acampamento, enquanto nesse momento posterior os núcleos

contaram sobretudo com a participação das mulheres.

Outra característica refere-se a uma nova reivindicação formulada após

as primeiras experiências com as Frentes Emergenciais de Trabalho: a

conformação de Grupos de Produção em diversas áreas produtivas

(confecção, artesanato, padarias, agricultura urbana), com o objetivo de não

realizar serviços temporários para o estado, mas sim uma atividade

permanente relacionada com a experiência profissional dos participantes e por

um tempo maior aos seis meses de duração das Frentes (CIMI BRASIL, 2004).

Se a princípio as Frentes foram reivindicadas pelo movimento de acordo com

uma proposta de “disputar as verbas públicas”, Deise Ferraz (2010) observou

que as experiências de trabalho dos integrantes beneficiados evidenciaram o

risco do programa tornar-se um substituto à contratação de funcionários

públicos para a realização dos serviços prestados. A concretização da nova

proposta exigiu, contudo, a organização de mobilizações para pressionar o

governo a destinar os subsídios das Frentes aos membros dos Grupos de

Produção.

O êxito da massificação nos centros urbanos ocorreu de um modo

desfavorável aos assentamentos, especialmente o de Belo Monte, que sofreu

também as consequências da sua regularização pelo governo de Germano

Rigotto (PMDB [Partido do Movimento Democrático do Brasil], 2003-2006) e do

deslocamento de importantes lideranças para outros espaços. Por um lado, a

regularização do assentamento de Belo Monte como rural – e não como

rururbano –, interferiu na continuidade dos empreendimentos coletivos, uma

vez que o acesso às políticas de financiamento disponibilizadas pelo governo

deveria ser pleiteado individualmente ou por cada família. Por outro lado, a

66

saída de dirigentes para outras frentes do movimento e, inclusive, para ocupar

cargos no âmbito do governo federal (presidido por Lula), repercutiu sobre o

conjunto dos assentados, que não tinha consolidado ainda a sua experiência

de vida e de trabalho no interior do assentamento.

Os trabalhadores assentados em Belo Monte que responderam ao

questionário semi-aberto (aplicado durante a pesquisa de campo)

apresentaram não apenas queixas a esse processo, mas explicitaram a

despolitização e o individualismo que passaram a caracterizar parte dos

assentados em contraste ao coletivismo, à solidariedade e à participação

existentes no acampamento.

Em relação à massificação, deve ser destacada a feminização da base

social, pois embora as mulheres tenham sempre apresentado uma expressiva

participação, passaram a representar 90% da base social, inclusive devido a

sua maior predisposição a participar dos núcleos de bairro em relação ao

público masculino. A predominância feminina que passou a caracterizar a

organização merece aqui uma análise mais detida. Três elementos nos

parecem importantes para a compreensão dessa composição social que

configurou uma militância praticamente feminina: a ênfase dada à organização

dos núcleos de bairro, a informalidade e a difusão das formas precárias de

trabalho.

De acordo com o depoimento de um dos coordenadores estaduais

entrevistado, os núcleos de bairro responderam a uma demanda das mulheres

referente à necessidade de uma complementação da renda familiar. O acesso

aos subsídios das Frentes Emergenciais de Trabalho, as atividades

desenvolvidas nos Grupos de Produção e, mais recentemente a obtenção dos

alimentos do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), teriam contribuído,

portanto, para assegurar esse complemento. Provavelmente, os núcleos de

bairro, como uma forma de organização, tenha atraído um perfil de

desempregada que conta possivelmente com outras fontes de sobrevivência

(como a realização de trabalhos precários, a renda de outros familiares ou

benefícios sociais).

O estudo realizado por Raul Bastos (2011) sobre o mercado de

trabalho na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA) nos oferece algumas

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

67

pistas relevantes para a compreensão desse perfil. Ao analisar estatísticas

levantadas pela PED-RMPA, nos anos de 1999 e 2009, Bastos apresenta uma

melhoria na evolução dos indicadores do mercado de trabalho da região,

corroborando uma tendência mais geral observada em outras regiões (como a

redução do desemprego de homens e mulheres). No entanto, em um exame

mais pormenorizado dos dados, o autor mostra a continuidade de algumas

assimetrias entre trabalhadores dos dois sexos, a despeito de um quadro de

melhoria geral. Em relação aos homens, em 2009 as mulheres permaneciam

sendo as mais atingidas pelo desemprego e estiveram expostas a uma

retração menos intensa deste último, quando comparada à diminuição do

desemprego masculino entre 1999 e 2009 28 . Comportamento semelhante

apareceu no maior tempo médio de procura por trabalho despendido pelas

desempregadas (7,7 meses em contraposição aos 6,1 meses despendidos

pelos homens) (BASTOS, 2011, p. 196).

Além disso, Barros argumenta que indivíduos em desemprego oculto

permaneciam mais tempo na condição de desempregados, por sobreviverem

de trabalhos precários e por estarem em uma situação de pouca expectativa

em relação à obtenção de um emprego. As principais fontes de sobrevivência

desses indivíduos acometidos pelo desemprego oculto pelo trabalho precário

seriam, em 2009, os próprios trabalhos ocasionais (98%), como o apoio de

outras pessoas da família que trabalham (54,8%). Em relação aos atingidos

pelo desemprego oculto por desalento, o seu principal meio de sobrevivência

provinha do trabalho de um membro familiar (72,2%) (BASTOS, 2011, p. 194-

195).

Os dados apresentados pelo autor atestam seu argumento sobre o

caráter multifacetado do desemprego, cuja incidência sobre os diferentes

grupos sociais se dá de modo distinto, assim como explicitam desigualdades

encontradas no mercado de trabalho que se aproximam das apresentadas por

Margareth Maruani, no seu estudo sobre as “fronteiras do desemprego”.

Nestas, de acordo com a autora, encontram-se diferentes formas de “não-

                                                            28 As taxas de desemprego em 1999 e 2009 correspondiam, respectivamente, a 21,9% e 13,5% para as mulheres e a 16,7% e 9,1% para os homens. Na comparação dos dois anos mencionados, a retração dessas taxas correspondeu a 38,4% (para as mulheres) e 45,5% (para os homens).

68

emprego”, que correspondem a situações intermediárias que circundam o

desemprego, como é o caso dos trabalhos precários e da inatividade forçada.

Apesar de Maruani referir-se à França, o seu alerta para a

heterogeneidade do desemprego contemporâneo e, em especial, para a

presença cada vez maior das mulheres nessas situações fronteiriças, oferecem

aportes para a nossa análise. Conforme é destacado, a feminização das

margens do desemprego contribui para a sua própria invisibilidade, uma vez

que este é socialmente mais tolerável quando são as mulheres as principais

acometidas. Em outras palavras, “(...) a seletividade do desemprego reativa as

desigualdades sociais mais clássicas – o sexo, as classes sociais, a

nacionalidade –” (MARUANI, 2002, p.29); por isso a existência de certos níveis

de tolerância social em relação ao desemprego que não somente se baseiam

em critérios sociais implícitos, mas variam de acordo com o “sexo” atingido.

De um total de 12 pessoas 29 (11 mulheres e 1 homem) que

responderam ao questionário aplicado e participavam de núcleos de bairro e/ou

diferentes empreendimentos desenvolvidos pelo movimento, como uma

associação de reciclagem de lixo, uma padaria e uma confecção, os dados

revelam a predominância de desempregados com uma trajetória profissional

marcada pela realização de trabalhos informais e precários. Considerando que

todas as pessoas entrevistadas declararam ter realizado em vários momentos

da vida diferentes tipos de bico (como faxinas, passar roupa, babá, servente de

pedreiro, serviços de panfletagem), 33% declararam que nunca tinham sido

registradas, enquanto 33% tiveram o seu último registro na carteira há mais de

8 anos. Se desconsiderarmos os três integrantes que trabalhavam na

reciclagem de lixo, 5 pessoas estavam desempregadas há mais de 7 anos.

Além disso, dois dados merecem ser ainda destacados: 7 entrevistadas, mais

da metade da amostra (58,3%), tinham uma renda mensal familiar de 1 salário

mínimo e meio e 9 (75%) recebiam o Programa Bolsa Família.

Embora o número de entrevistados não nos permita fazer

generalizações para o conjunto do movimento, que está organizado em 13

municípios do estado, ele nos dá uma dimensão do perfil de desempregado, ou

                                                            29 Não foram contabilizados nesses dados os membros do assentamento.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

69

melhor, da desempregada presente na base social. Tal perfil, embora possa

ser encontrado entre as pessoas acampadas ou assentadas, seria

característico de mulheres com pouca experiência no mercado de trabalho

formal, atingidas pelo desemprego oculto e a sua renda provém de uma

combinação entre diferentes tipos de trabalho irregulares, benefícios sociais

(como o Bolsa Família ou o PAA) e ajudas familiares. Essa caracterização, de

certa maneira, vai ao encontro da análise feita por Carolina Filho (2009) sobre

o MTD localizado na cidade de Campinas (SP). Segundo esta autora, o

movimento era constituído por trabalhadores desempregados originários do

setor informal, com experiências anteriores de trabalhos precários, desprovidos

da cobertura dos direitos trabalhistas, como também com poucas expectativas

de retorno ao mercado formal de trabalho devido à sua longa permanência na

situação de desemprego.

A presença destacável das mulheres na base social do movimento

pode indicar alguns obstáculos que permaneceram impedindo o acesso delas a

postos de trabalho formais, mesmo em uma conjuntura na qual o mercado de

trabalho deu sinais de uma estruturação. Aqui nos referimos não somente às

segregações sexistas sob as quais se baseiam alguns critérios de seleção para

uma oferta de trabalho, mas também ao papel social atribuído às mulheres em

relação às tarefas domésticas e aos cuidados dos filhos e idosos; papel que

parece ter adquirido uma nova dimensão frente à dificuldade de acesso a

determinados serviços públicos, reduzidos ou privatizados nos últimos anos.

A repressão e o recuo do movimento

A última fase relativa aos anos de 2007-2010 representou o momento

de maior repressão sofrida pelo MTD no decorrer da sua história; o governo

estadual, sob o comando de Yeda Crucius (2007-2010), filiada ao PSDB

(Partido da Social Democracia Brasileira), recusou-se a dar continuidade à

aplicação da lei estadual das Frentes de Trabalho, a atender as reivindicações

dos desempregados mobilizados, como reprimiu violentamente as

manifestações e protestos, inclusive prendendo militantes. Embora essa

política repressiva não tenha alterado significativamente a composição da base

social, provocou, segundo uma das lideranças entrevistada, a desarticulação e

70

o recuo do movimento, pelo fato deste não ter obtido nenhuma conquista junto

ao governo estadual. Para se ter uma ideia do posicionamento estabelecido

pelo governo, a lei que assegurava as Frentes de Trabalho e era considerada

um suporte fundamental para os desempregados não foi efetuada em nenhum

momento ao longo do mandato do PSDB (FERRAZ, 2010).

É importante perceber que se desde a fase anterior, com o início do

mandato de Germano Rigotto do PMDB, houve uma mudança na correlação de

forças no âmbito do governo estadual do Rio Grande do Sul, tal modificação

intensificou-se quando o PSDB ganhou pela primeira vez, em 2007, o pleito

para a escolha do governo desse estado. No âmbito estadual o jogo político

tornou-se paulatinamente desfavorável para o MTD que passou a não ter nem

mesmo um espaço de negociação junto à governadora.

Ao longo da sua trajetória o movimento buscou constantemente

respostas para a geração de renda aos desempregados. No bojo dessa

conjuntura adversa, o MTD recorreu aos canais de negociação junto aos

poderes municipais e federal, propondo a criação de uma lei que assegurasse

maquinários e infraestrutura para empreendimentos produtivos

autogestionários,já que uma das dificuldades encontradas no desenvolvimento

dos Grupos de Produção era justamente a impossibilidade de dar continuidade

aos mesmos por conta dos custos que envolviam obter e manter os meios de

produção. Daí a proposta dos Pontos Populares de Trabalho, cuja elaboração

fundamentou-se nas experiências dos coletivos de trabalho existentes na

cidade de Caxias do Sul, no qual o município concedeu maquinários,

equipamentos de proteção e matéria-prima aos desempregados, para que

estes desenvolvessem, por um determinado período, empreendimentos

autogestivos.

Nessa última fase, a desfavorável relação de forças vivida pelo

movimento no âmbito estadual não se reproduziu na esfera federal. Sob o

governo Lula o movimento começou a participar de canais institucionais no

âmbito do poder executivo. O desenvolvimento da pesquisa não nos permite

apontar se essa participação possibilitou o acesso diferenciado a recursos ou a

políticas sociais disponibilizadas pelo governo, embora tenha exercido um

impacto político sobre a organização, se considerarmos a saída, em 2011, de

vários membros da Coordenação Estadual. Estes, assinaram em conjunto com

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

71

um grupo de militantes do MST, da Consulta Popular e da Via Campesina, uma

carta pública, na qual explicitavam a sua saída desses movimentos e as

causas que a motivaram. Nesse grupo encontravam-se 16 militantes do MTD,

dos quais 12 eram do MTD/RS. Na carta, uma crítica apontada ao MTD referia-

se à restrição das suas ações, que teriam se limitado a reivindicar políticas

compensatórias.

Resultados provisórios

A realização da pesquisa com o MTD permitiu compreender que,

embora esse movimento não tenha obtido uma expressiva capacidade

organizativa dos desempregados em âmbito nacional, inclusive nos períodos

de altos índices de desemprego, essa lacuna na esfera nacional não se

repercutiu necessariamente no plano estadual; a trajetória da organização

gaúcha, o seu reconhecimento político e a sua capacidade organizativa em

diversas cidades mostraram, ao contrário, a importância e a expressividade

alcançadas pelo movimento no interior do estado.

Ao longo desses treze anos de existência o MTD expandiu-se para 13

municípios do estado e conseguiu conquistar 6 assentamentos em diferentes

cidades, além de organizar 2.000 famílias. Se tais dados indicam a capacidade

organizativa construída durante esse período no Rio Grande do Sul, a pesquisa

revelou ainda que a trajetória do MTD pode ser dividida, de um modo geral, em

três fases distintas, relacionadas às estratégias e ao tipo de reivindicação

privilegiado nas lutas e às mudanças na correlação de forças com a ascensão

de diferentes governos estaduais.

Podemos apontar que especialmente a partir de 2003 o MTD deparou-

se com diferentes desafios frente às mudanças na conjuntura política e

econômica que o levaram a priorizar ações mais reivindicativas e, em alguns

casos, defensivas, nas quais preponderaram demandas imediatas da sua base

social. Ao mesmo tempo em que houve uma reformulação das reivindicações

no decorrer dos anos, os acampamentos e os assentamentos rururbanos não

receberam a mesma atenção observada nos primeiros anos de mobilização,

seja enquanto uma forma de organização estratégica dos desempregados

72

(ocupação), seja como uma reivindicação que articulava os principais eixos de

luta da organização (Trabalho, Terra e Teto).

Por último, cabe aqui apontarmos um possível diferencial no

engajamento das mulheres que se encontram organizadas nos núcleos de

bairro em relação às acampadas ou assentadas. No primeiro caso, a militância

é uma atividade que se combina ou pode ser articulada com outras, inclusive

com as tarefas domésticas e trabalhos ocasionais, sem envolver os familiares.

Em contrapartida, o acampamento implica o envolvimento da família, cuja

participação tende a ser mais orgânica e de tempo integral, justamente porque

se encontram no mesmo espaço o local de moradia, de formação, de

organização política e de luta. Sem contar que o acampado é, por si mesmo,

um símbolo de resistência, pois provém da sua permanência no acampamento

parte substantiva da pressão a ser exercida sobre o governo. Por essas

características, o acampamento exige, talvez mais que os outros espaços de

organização, um profundo trabalho de formação e politização a fim de

assegurar o engajamento dos trabalhadores durante a ocupação, bem como

depois dela, com a conquista do assentamento. As conquistas obtidas pelo

movimento pouco tempo após a sua fundação oficial, como o assentamento de

Belo Monte, parecem demonstrar que se a ocupação como uma estratégia de

organização não possibilitava a massificação do movimento, baseava-se em

uma proposta que atendia aos interesses de uma parcela importante dos

desempregados, que historicamente estiveram excluídos da cobertura dos

direitos trabalhistas e sociais.

Bibliografia

ARAÚJO, Angela. Empresas recuperadas pelos trabalhadores: entre o rural e

o urbano. In: ARAÚJO, Angela; OLIVEIRA, Roberto Véras. Formas de

trabalho no capitalismo atual. Condição precária e possibilidades de

reinvenção. São Paulo: Annablume, 2009.

BASTOS, Raul Luís Assumpção. Desemprego na Região Metropolitana de

Porto Alegre: aspectos da experiência dos anos 2000. Revista ABET, vol.X,

n. 2, jul./dez. 2011.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

73

BOITO Jr.; Armando. Neoliberalismo e relações de classe no Brasil. Ideias,

ano 9 (1), 2002.

BOITO JÚNIOR, Armando. Política neoliberal e sindicalismo no Brasil.

São Paulo: Editora Xamã, 1999.

CMI Brasil. Conheça as Frentes de Trabalho. 2004. Disponível no site:

http://www.midiaindependente.org/pt/red/2004/06/284854.shtml

DIEESE. A situação do trabalho no Brasil na primeira década dos anos

2000. São Paulo: DIEESE, 2012.

DIEESE. Mercado de trabalho metropolitano em 2010. Sistema de Pesquisa

e Emprego, 2011.

DIEESE. Mercado de trabalho Brasileiro: evolução recente e desafios. São

Bernardo do Campo, 2010, Disponível em:

http://www.dieese.org.br/ped/mercadoTrabalhoEvolucaoDesafiostexto2010.pd

f

DIEESE. O agravamento do desemprego no Brasil. Informativo Eletrônico

do DIEESE, ano 3, n.28, julho 2002.

FERRAZ, Deise. A sociabilidade pelo trabalho, as contradições vivenciadas

pelo movimento. In: FERRAZ, Deise. Desemprego, exército de reserva,

mercado formal-informal: rediscutindo categorias. Tese de doutorado

(Doutorado em Administração) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

Porto Alegre, 2010.

FILHO, Carolina. Desemprego e organização dos trabalhadores: o caso

do MTD. Relatório de Iniciação Científica. Campinas, 2009. 20p.

GALVÃO, Andréia.A reconfiguração do movimiento sindical no governo Lula.

In: BOITO Jr.; Armando; GALVÃO, Andréia (Org.) Política e classes sociais

no Brasil dos ano 2000. São Paulo: Alameda, 2012.

GALVÃO, Andréia. Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil. Rio de

Janeiro: Revan, 2007.

GALVÃO, Andréia; BOITO, Armando; MARCELINO, Paula. Brasil: o

movimento sindical e popular na década de dois mil. In: MODONESI,

Massimo; REBÓN, Julián (Comp.). Una década enmovimiento: luchas

74

populares en América Latina enelamanecerdelsiglo XXI. Buenos Aires:

PrometeoLibros/CLACSO, 2011.

KREIN, Dari José.; SANTOS, Anselmo Luis dos. La formalización del trabajo

en Brasil. El crecimiento económico y los efectivos de las políticas laborales.

Nueva Sociedade, Buenos Aires, n.239, maio/junio, 2012.

KREIN, Dari José; SANTOS, Anselmo Luis dos; NUNES, Bartira Tardelli.

Trabalho no Governo Lula: avanços e contradições. Texto para

discussão. IE/UNICAMP, n. 201, fev. 2012.

MANGUEIRA, Sérgio Augusto. Assentamentos rururbanos: Um estudo da

relação entre o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o

Movimento de Trabalhadores Desempregados (MTD) no Brasil. Trabalho

apresentado no VII Congresso Latinoamericano de Sociologia Rural. 2006.

MARUANI, M. Les mécomptes du chômage. Paris : Bayard, 2002.

MTD. Cartilha dos Desempregados. Cartilha do Militante, N.01, Porto

Alegre, 2000.

MTD. Cartilha dos Desempregados. Desafio dos Trabalhadores

Desempregados, N.02, Porto Alegre, 2000a.

MTD. Denúncias de Agressão aos Direitos Humanos. Porto Alegre. 2007.

MTD. Fome Zero é Trabalho.(s/data).

MTD. I Encontro Nacional do MTD. Porto Alegre, 2007a (mimeo).

MTD. Princípios do Movimento dos Trabalhadores Desempregados.

(s/data). Mimeo.

MTE. Cidadania. Movimento dos Trabalhadores Desempregados.

Conquistando direitos, construindo cidadania. Porto Alegre: Camp, 2007a.

MTE. Educação e Trabalho. Educação popular e movimentos sociais. Porto

Alegre: Camp, 2007.

POCHMANN, Márcio. Desempleo y políticas de empleo: los retos del gobierno

de Lula. Nueva Sociedade, Buenos Aires, 2003.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

75

POCHMANN, Márcio. Desempregados do Brasil. In: ANTUNES, Ricardo.

Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo: Editora Boitempo.

2006.

POCHMANN, Márcio. Informalidade Reconfigurada. Revista Fórum. 13

agosto 2007. Disponível em: www.revistaforum.com.br

POCHMANN, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide

brasileira. São Paulo Editora Boitempo, 2012.

ID 392

TÍTULO: Sindicalização Rural no Governo João Goulart: uma aproximação

AUTORES: Natália Cristina Granato (POSTER)

76

ID 40

O LUGAR DA AUSÊNCIA: LUTA DE CLASSES E DIREITOS NA

FRUTICULTURA IRRIGADA DO SÃO FRANCISCO

José Fernando Souto Jr (FAPESB)

Guilherme José Mota Silva (FAPESB)

RESUMO

Esse trabalho é resultado da pesquisa desenvolvida com o apoio do CNPq,

edital 02/2010, projeto Ação Sindical no Vale do São Francisco (1990-2008),

encerrado em 2012. O objetivo é analisar as ações das organizações de

interesses em torno da fruticultura irrigada, que estabeleceu e desenvolveu um

“modelo de desenvolvimento” voltado para a produção de frutas com alto valor

agregado com vistas ao mercado externo. Este “modelo” foi pautado, num

primeiro momento, pelos interesses empresariais, que obtiveram forte apoio do

Estado na construção de toda a infraestrutura de produção e financiamento das

culturas de uva, manga, etc. Até 1994 o modelo de desenvolvimento da

fruticultura irrigada funcionou sem a necessidade de estabelecer um consenso

com os trabalhadores. O indicador para essa afirmação foram as várias

denúncias publicadas pela imprensa sobre as péssimas condições de trabalho

e descumprimentos de leis trabalhistas, que resultaram em greves nos anos de

1994 e 1996. Foi a partir de 1994 que os sindicatos e as organizações

empresariais construíram a primeira convenção coletiva de trabalho, válida

para diversos sindicatos localizados no Submédio Vale do São Francisco, entre

os estados da Bahia e Pernambuco, inaugurando uma forma de negociação

baseada em convenções coletivas anuais.

Palavras-chave: sindicatos, desenvolvimento regional, fruticultura irrigada,

assalariados rurais.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

77

Introdução

Ao chegar a Petrolina e a Juazeiro no início de 2008, as imagens

difundidas por grupos sociais os mais diversos pintavam o Vale do São

Francisco como uma região próspera, que mesmo localizada na adversidade

do semiárido nordestino, se mostrava como grande geradora de riqueza,

principalmente por conta da fruticultura irrigada. Em setembro de 2010, a

revista semanal Veja trouxe uma matéria ilustrativa dessas imagens

construídas no e para o Vale, a reportagem tinha o título de “O milagre do São

Francisco”30. Anunciava que se cultivava na região “1 milhão de toneladas de

frutas, com safras avaliadas em 1,3 bilhão de dólares”. O produto interno bruto

da cidade de Petrolina era de 1,9 bilhão de dólares, o crescimento econômico

anual superara a média nacional com 4,7% e a renda per capita anual chegava

a R$ 7.200,00.

Tudo leva a crer que imagens como estas são difundidas por grupos

sociais os mais diferentes ao longo do tempo, desde os mais favorecidos por

toda a cadeia produtiva movimentada pela fruticultura irrigada, até os grupos

que menos tiram proveito dessa riqueza produzida. Mas é evidente que a

classe dominante difunde e se beneficia com a imagem do semiárido como um

oásis, pois tal imagem cumpre um papel fundamental na atração de novos

investimentos, o que incrementa as forças produtivas locais, da mesma forma

que é mobilizador de um quantitativo de imigrantes que chegam à região como

força de trabalho, atraídos pela possibilidade de prosperidade.

Esses contingentes populacionais se deslocam para o Vale para dar

suporte à toda a cadeia produtiva da fruticultura irrigada, que emprega desde

trabalhadores que cuidam das plantações de frutas até a mão de obra

especializada para as empresas de fertilizantes, máquinas agrícolas, utensílios

para irrigação etc. Cerca de 60% da população de quase 300.000 habitantes

de Petrolina, estimativa da Polícia Civil de Pernambuco, é formada por

imigrantes.

Diante de imagens tão prósperas, uma pergunta surgiu: onde estão as

contradições desse desenvolvimento? A primeira indagação tentava entender o

                                                            30 Revista Veja, 1º de setembro de 2010, p. 101.

78

sentido, do ponto de vista da sociologia do trabalho, das contradições que

poderiam existir entre as imagens desse pedaço do Vale do São Francisco

como oásis de riqueza. Porém, e a situação de vida dos trabalhadores da

fruticultura?

Este texto trata da reflexão sobre o desenvolvimento das lutas dos

trabalhadores rurais do Vale do São Francisco, que nos anos 1990 obtiveram

importantes vitórias, organizando o movimento sindical e negociando, desde

1994, uma convenção coletiva para os sindicatos da região. Tal estudo foi

ilustrativo de uma perspectiva diferente com relação às ideias que exaltam o

desenvolvimento de Juazeiro e Petrolina.

O texto está dividido em três partes principais: na primeira, baseado em

estudos desenvolvidos por outros autores sobre o Vale do São Francisco,

procuramos mostrar como a articulação da classe dominante local com setores

da classe dominante do Sul e Sudeste, pôde se utilizar do aparato do Estado

para fomentar um modelo de acumulação que lhes permitiu níveis de

competitividade globais, utilizando-se de subsídios, de infraestrutura e,

também, das instituições que vão produzir o conhecimento técnico-científico

necessário para garantir a reprodução do modelo de acumulação desse

capitalismo agroindustrial; em um segundo momento, faremos uma

caracterização do sindicalismo rural; como terceiro ponto discutiremos o papel

e as estratégias que os sindicatos rurais desenvolveram para enfrentar a

exploração do trabalho que se dava sem o respeito mínimo às regras do

modelo de acumulação capitalista.

Metodologia

Esta pesquisa abordou a relação entre aspectos que demandaram uma

análise qualitativa dos dados. Foi dada ênfase na análise de documentos

produzidos no âmbito do poder público, das entidades patronais e pelos

próprios sindicatos e outros atores envolvidos (informativos, website e outras

formas de divulgação).

Num primeiro momento foi realizado um levantamento bibliográfico

enfatizando os aspectos relacionados ao tema de pesquisa; foram levados em

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

79

consideração os aspectos socioeconômicos da região. Foram selecionadas

matérias publicadas pelos principais jornais diários do estado de Pernambuco e

Bahia. Foram realizadas análises de documentos das organizações de

interesses a partir dos seus arquivos. Estes foram catalogados e digitalizados

para a pesquisa como ofícios, atas de assembleias extraordinárias e ordinárias,

atas de reuniões de diretorias, etc.

No âmbito dos instrumentos utilizados, a pesquisa contou com 15

entrevistas gravadas em vídeo e áudio com roteiro semiestruturado e também

abertas. Utilizou-se de forma complementar a história oral para compor a

história dos sindicatos pesquisados, a partir dos atores sociais selecionados.

As organizações de interesses aqui selecionadas foram escolhidaspor

terem tido um papel predominante na construção dos interesses de

trabalhadores e dos empresários na produção de frutas, e em razão também

de terem suas atuações nos limites geográficos do Submédio Vale do São

Francisco. Foram elas:Associação dos Exportadores de Hortifrutigranjeiros e

Derivados do Vale do São Francisco – VALEXPORT, Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Lagoa Grande, Sindicato dos Trabalhadores Rurais

de Santa Maria da Boa Vista, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Petrolina

e Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Juazeiro.

Os investimentos estatais impulsionam o capitalismo no semiárido

O Vale é uma das regiões agrícolas mais dinâmicas do país. Os estudos

retratam a convergência dos fatores climáticos e também do papel do Estado

como promotor desse desenvolvimento. Segundo Silva (2009: 80), os

investimentos capitaneados pelo Estado para a construção de grandes projetos

de irrigação nos anos 1970, associados aos incentivos fiscais e financeiros de

agências governamentais como a Superintendência de Desenvolvimento do

Nordeste (SUDENE) e o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), propiciaram a

construção de uma infraestrutura para a irrigação e, ao mesmo tempo, linhas

de crédito que facilitaram as iniciativas capitalistas. Outros órgãos do Estado

como a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco

80

(CODEVASF) e a Companhia hidroelétrica do São Francisco (CHESF) atuaram

como elementos propulsores do desenvolvimento. Essa atuação pode ser

considerada como uma atuação de classe, no caso, da classe dominante, que

articulou o desenvolvimento do capitalismo no Vale com uma base técnica bem

definida.

Oliveira (1981: 101) ao analisar o papel da Sudene, associou a criação

desta aos novos marcos capitalistas que estimularam um modelo de

desenvolvimento para o Nordeste a partir dos anos 1950, mas favorecendo

uma enorme concentração de capital e desarticulando as classe dominante

local, intensificando assim uma lógica de produção de mercadorias. Ao mesmo

tempo, é possível se utilizar dessa análise e afirmar que a inciativa capitalista

na região foi dependente do Estado, este o principal agente do

desenvolvimento da região, seja pela renúncia fiscal em forma de incentivos,

seja pelo crédito que financiou e financia a produção, seja pela total construção

da infraestrutura da região e de sua base técnica. Por vezes o Estado foi

responsável por todas essas partes de uma só vez.

Interessada em desenvolver o potencial agrícola do submédio São

Francisco, as classe dominante local se associou com a classe dominante

nacional para, por intermédio do Estado, nos anos 1950, patrocinar as

primeiras iniciativas de pesquisa e de apoio técnico que partiram da Comissão

do Vale do São Francisco (CVSF). Nesse período também ocorreram

investimentos públicos que visavam ampliar a infraestrutura de transportes,

comunicação e energia. As primeiras iniciativas de produção surgiram no início

da década de 1960, com a implantação de duas estações experimentais de

áreas de irrigação que viriam a se tornar o Projeto Piloto de Bebedouro e o

Perímetro Irrigado de Mandacaru (CORDEIRO NETO & ALVES, 2009).

A Sudene cumpriu com o papel de garantir apoio e orientação técnica

aos colonos que se propuseram a assumir os primeiros lotes. Também foi

responsável pela elaboração do Plano Diretor de Irrigação do Submédio São

Francisco e da gestão dos incentivos fiscais. A partir de então a região tornou-

se um pólo de atração de investimentos privados que vinham principalmente do

Sul e Sudeste do Brasil e encontravam a infraestrutura preparada. A entrada

progressiva desses novos atores significou uma ruptura com o passado

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

81

agrícola da região e desencadeou uma abertura para novos empreendimentos

se utilizando dos recursos naturais do território (SILVA, 2009). É possível

perguntar: quem eram os antigos produtores responsáveis pelo passado

agrícola da região? Qual foi o custo para os antigos atores com a chegada dos

novos atores? Quais os grupos locais que se articularam com a classe

dominante do Sul e Sudeste? Essas perguntas ficarão sem resposta, por

enquanto.

Mas, o desenvolvimento da região não se deu sem que se pensasse em

instituições que fossem capazes de construir e reproduzir um conhecimento

técnico-científico que garantisse a sua aplicabilidade para esse capitalismo que

se colocava como novo e modernizador da região. Além disso, era necessário

produzir uma mão de obra especializada para a produção da lavoura e que

difundisse os valores de uma agricultura moderna. Foi em dezembro de 1960

que surgiu a Faculdade de Agronomia da UNEB, que cumpriu esse papel.

A partir de 1974 com a criação da CODEVASF e tendo como positivas,

pela ótica da geração de produção de valor, as experiências nas estações

experimentais de irrigação, iniciou-se a implementação dos demais perímetros

públicos de irrigação. Em 1975, já havia a compreensão de diversificar a

produção do Vale e também a sua base técnica com o intuito de aumentar a

intensificação da geração de valor e, ao mesmo tempo, ficar menos

dependente de determinadas variedades de mercadorias. Não por acaso, esse

ano deu início às atividades da Empresa Brasileira de Agropecuária - Embrapa

Semiárido, que foi capaz de fornecer o conhecimento técnico-científico para o

pioneirismo da fruticultura. Todos esses foram investimentos estatais. Diante

disso, a produção original que era principalmente voltada ao cultivo de cebola

foi diversificada e substituída por culturas de maior valor comercial, a exemplo

da melancia, melão e, principalmente, o tomate. Nesse período ainda eram

inexpressivas as áreas com cultivo de manga e uva, que a partir de meados da

década de 1980 tornaram-se a principal atividade produtiva agrícola do Vale.

Não é de se estranhar que a crise, que afetou o Estado brasileiro de

meados da década de 1980 até meados de 90, atingiu diretamente esse

modelo agroindustrial, que tinha o Estado como protagonista das principais

82

iniciativas. O financiamento estatal que até então foi propulsor de todo o

desenvolvimento agrícola tornou-se escasso. A necessidade de ampliação de

lucros abriu espaço para a fruticultura irrigada, que passou a ocupar o lugar

das culturas de ciclos curtos nos perímetros irrigados. Essas mudanças

levaram a um processo de exclusão de grande parte dos produtores, além de

um processo de concentração de terras nas mãos daqueles que estavam mais

capacitados técnica e financeiramente para a atividade frutícola (SILVA, 2009).

As transformações na base produtiva, tendo como locomotiva a

fruticultura, promoveu um processo de reestruturação da agricultura irrigada no

submédio São Francisco. Ao mesmo tempo em que intensificou a substituição

dos pequenos produtores pelos grandes empresários fruticultores, que

automatizaram a produção e a redução dos níveis de emprego e deterioração

das condições de trabalho (CORDEIRO NETO & ALVES, 2009, p.345 apud

SILVA, 2001).

A lembrança pode parecer exagerada, mas a analogia pode ser útil;

parece haver um tom da “Assim chamada acumulação primitiva” quando

pensamos na situação do Vale. Segundo Marx (1978), o que caracteriza a

acumulação primitiva é que a criação da relação-capital se dá pelo processo de

separação de trabalhador da propriedade das condições de seu trabalho. Esse

processo se dá de duas formas. Primeiro, pela transformação dos meios

sociais de subsistência e de produção em capital; em segundo lugar, os

produtores diretos, no caso os pequenos produtores, transformam-se em

trabalhadores assalariados. Ainda segundo Marx, o ponto de partida do

desenvolvimento que produziu tanto o trabalhador assalariado quanto o

capitalista foi a servidão do trabalhador.

No caso do Vale, alguns fatores permitiram uma enorme capacidade de

acumulação de capital, entre eles: a) a construção de toda infraestrutura por

parte do Estado; b) o financiamento da produção a juros subsidiados pelo

Estado; c) a criação e estruturação de instituições científicas, também por parte

do Estado, capazes de oferecer a custo zero ao empresariado, uma matriz de

conhecimento técnico-científico capaz de renovar a base técnica de produção e

permitir a reprodução do capital e sua competitividade num plano internacional;

d) a ausência de quaisquer mecanismos que assegurassem de forma eficaz o

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

83

cumprimento da legislação trabalhista no campo, deixando os trabalhadores

literalmente à deriva enquanto a acumulação se dava desenfreada; e) junto ao

total desrespeito aos limites sobre as condições em que o trabalho era

desenvolvido, acrescente-se ai o trabalho infantil e até o trabalho escravo, as

enormes levas de trabalhadores que chegavam à região e, sem nenhuma

proteção do Estado, ingressavam como parte de um exército industrial de

reserva, colaborando para manter sempre em níveis baixos os custos da

reprodução da força de trabalho; por fim, f) a expropriação da base fundiária do

produtor rural, do camponês, dos índios, dos quilombolas, formou a base de

todo o processo.

Nessas bases favoráveis à acumulação, no final da década de 1980

aconteceram as primeiras exportações das frutas do Vale. Sendo estas em

quantidades reduzidas, no entanto, suficientes para despertar o interesse do

empresariado, que percebeu também a necessidade de se organizar para que

pudesse competir e disputar o mercado externo, agora numa disputa do local

para o global. Foi criada, então, em 1988, a Associação dos Exportadores de

Hortifrutigranjeiros e Derivados do Vale do São Francisco - VALEXPORT.

A criação da VALEXPORT é significativa da inserção dos grupos

dominantes locais, já associados aos grupos dominantes nacionais, ao

capitalismo internacional. A face mais moderna do Vale convive lado a lado

com as formas mais precárias de produção. Desde então, a fruticultura seguiu

em ascensão e hoje tem uma participação significativa no valor total das

exportações de frutas brasileiras, alcançando o índice de quase 40% de toda a

exportação31 do país.

Combinando enormes investimentos estatais e uma iniciativa privada

dependente do Estado, somados às ótimas condições naturais e, sobretudo, à

acumulação que se desenvolve em função das péssimas condições de trabalho

e da consequente baixa remuneração dos milhares de trabalhadores, surgiu

esse “oásis” em meio ao semiárido nordestino. Por outro lado, a implantação

da fruticultura inviabilizou o cultivo dos pequenos produtores, devido,

                                                            31 Fonte: Agrianual (2001-2008); Aliceweb (2008) Disponível em: <http://aliceweb.desenvolvimento.gov.br/consulta>

84

principalmente, aos altos custos de produção e a falta de competitividade com

as grandes empresas agrícolas. Dessa forma, desenvolveu-se uma

proletarização dos pequenos proprietários ao mesmo tempo em que o capital

completava, cada vez mais rápido, novos ciclos de acumulação.

Cavalcanti (1997: 79) ressalta: “desde o fim dos anos 80 o Vale do São

Francisco passou a se distinguir por sua produção e pelos vínculos que

estabelece com o mercado global”. Percebe-se um aumento na oferta de

empregos, principalmente durante os anos 1990, impulsionada pelos produtos

destinados à exportação. Para Silva (2009: 84), a exportação de frutas se

consolidou em 1997 e a manga e a uva passaram a contribuir “com mais de

90% do volume de exportações [de frutas] do país”.

Cavalcanti (2003: 05) afirma que a modernização da região garantiu “às

empresas privadas um lugar privilegiado na condução da transformação dos

espaços locais e no estabelecimento de elos com novas cadeias

agroalimentares”. Por outro lado, os trabalhadores ficaram soltos à sua própria

sorte, numa região em que o desenvolvimento contrasta com os altos níveis de

pobreza e analfabetismo. Segundo Araújo (2000), utilizando pesquisa do IPEA

de 1993, 55% (17,3 milhões) dos indigentes estavam no Nordeste. Destes,

mais de 10 milhões estavam na zona rural. Era possível supor que o esforço

para a industrialização visava diminuir as desigualdades. No entanto, diante de

tamanha desigualdade, as possibilidades de intensificação da exploração do

trabalho seriam ainda maiores.

Foi aqui que o papel desempenhado pelos sindicatos funcionou como

um freio à exploração que permitia, até o início dos anos 1990, uma

acumulação desenfreada de capital pelo patronato, às custas do trabalho

infantil e do não cumprimento dos direitos, da exposição aos perigos de morte,

seja na forma em que o transporte era utilizado até o trabalho ou mesmo na

ausência de equipamentos para aplicação do agrotóxico, etc. Paradoxalmente,

a saída dessa condição foi possibilitada pela inserção dos trabalhadores

assalariados dentro de um padrão de exploração baseado nas definições do

direito burguês.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

85

O Movimento sindical rural

Fundado em 27 de julho de 1963, o STR Petrolina tem sua história

associada ao avanço da organização dos trabalhadores rurais no campo e aos

esforços da Igreja Católica para organizar o movimento sindical. Tal fato não é

distinto do que vários autores têm destacado da história do sindicalismo rural,

estabelecendo uma relação direta entre a organização da classe trabalhadora e

a expansão do sindicalismo rural em associação com a Igreja Católica. Em

outros casos o Partido Comunista Brasileiro foi um ator importante

(FAVARETO, 2006; NOVAES, 1991; MEDEIROS, 1988; MEDEIROS &

SORIANO, 1983; COSTA & MARINHO, 2008). No caso de Petrolina, o Padre

Mansueto de Lavour foi uma personalidade de destaque no apoio direto ao

movimento.

Segundo Novaes (1991), a especificidade do sindicalismo rural brasileiro

está no fato de que várias categorias estão sob o guarda-chuvas do termo

rural. Assalariados, pequenos proprietários rurais, posseiros, pescadores, sem

terra etc. estão no mesmo sindicato. O resultado de tamanha diversidade seria

uma complexa teia de interesses que dificultaria a construção da unidade dos

trabalhadores rurais. A autora destacou o papel importante que a CONTAG

(Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) teve na construção

da unidade entre os rurais e a diversidade de movimentos que surgem com o

advento do novo sindicalismo.

Costa & Marinho (2008) analisam a construção institucional do moderno

sindicalismo rural brasileiro analisando diversas portarias e leis que trataram do

assunto em sucessivos governos. Para os autores, o resultado foi um modelo

de sindicalismo que se desenvolveu como resultado dos embates entre

comunistas, trabalhistas, católicos e o Estado como agente ativo na disputa. O

destaque desse processo foi o que os autores denominaram de “herança de

uma história desagregada e episódica” (2008: 125) que teve seu ponto alto na

criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

(CONTAG).

Os sindicatos rurais são produtos dessa diversidade de categorias como

assalariados, ribeirinho, pequenos agricultores, assentados, pescadores etc.

86

Destacaram-se por absorver essa diversidade no campo. Desde os anos 1970

vários sindicatos da região do vale destacavam-se por formar um pólo sindical

com o objetivo de organizar a luta contra os desmandos da CHESF. Essa

organização teve início quando produtores ribeirinhos foram retirados das

terras que ocupavam por conta da criação de grandes barragens para as

hidroelétricas. A Igreja foi um ator importante para organização (IULIANELLI,

2000; RIBEIRO, 2002; ARAÚJO, 1990; ARAÚJO, NETO & LIMA, 2000).

Lugar especial para o ponto de partida dessa análise tem o STR de

Petrolina. Em princípios de 1990 predominava um movimento orientado para os

interesses dos pequenos produtores rurais. Estes definiam e davam o norte da

ação sindical. Atualmente tem sua maior força entre os assalariados. Como

paralelo, nessa mesma época, o sindicalismo urbano iniciava sua longa crise

de existência, ocasionada pelas mudanças na organização dos ambientes de

trabalho, o que se convencionou de chamar reestruturação produtiva. Tais

mudanças puseram em xeque o modelo exitoso de ação sindical dos anos

1980, caracterizado pela forte mobilização de trabalhadores associada ao

enfrentamento com os patrões e o Estado, o chamado “novo sindicalismo”.

De ladeira abaixo, o sindicalismo urbano foi obrigado a se questionar e,

ao mesmo tempo, modificar e abrir mão de suas bandeiras de luta mais

valiosas, tais como a luta contra a estrutura e o imposto sindical; os processos

representativos internos, com ênfase na legitimidade da representação política

e suas formas de organização política; o assistencialismo e a prestação de

serviços assistenciais; ao mesmo tempo teve que lidar com a crescente

terceirização dos serviços; grandes demissões; privatização de empresas

estatais, implantação de políticas neoliberais, entre outros (SANTANA, 1999 e

2003; MATTOS, 1998; OLIVEIRA, 2002; RAMALHO & SANTANA, 2003).

Enquanto o sindicalismo urbano mergulhava numa fase de intensas

dificuldades, por outro lado, o Vale do São Francisco iria dar início a uma das

mais ativas e eficazes disputas no campo sindical contra o patronato da

fruticultura irrigada. Dentro da diversidade de categorias que compunham o

sindicato rural, o ponto crucial da organização do movimento foram os

trabalhadores assalariados. Mesmo com um número expressivo de

trabalhadores nessa condição no início dos anos 1990, o STR de Petrolina e os

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

87

demais sindicatos da região não desenvolviam uma só ação para essa

categoria.

Cavalcanti (1997: 85-86) apontou que na segunda metade dos anos

1990 não havia dados objetivos ou mesmo confiáveis para o tamanho da força

de trabalho ocupada na fruticultura. Utilizando os números de relatórios oficiais

constatou haver variações. Seu palpite foi de que os números apresentados em

relatórios fossem inferiores ao número real. Para Petrolina e Juazeiro, por

exemplo, sua estimativa era de que existissem de 20 a 30 mil trabalhadores. Já

para o setor de serviços, os relatórios da CODEVASF para o ano de 1996

indicavam que o número de empregos indiretos tenderia a ser maior. A

imprecisão dos números, segundo a autora, devia-se a dois fatores: “às formas

precárias de recrutamento e remuneração da mão-de-obra” e, em segundo

lugar, a sazonalidade na contratação de mão-de-obra em certas fases da

produção e colheita.

Cordeiro Neto e Alves (2009: 351), utilizando-se da Relação Anual de

Informações Sociais – RAIS, do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, afirmam que

o número de empregos formais no ano 2000 em Juazeiro e Petrolina, chegava aos

42.869. Citando o número de pessoas ocupadas pelo censo agropecuário de 1985

chegou-se a um total de 55.115 pessoas ocupadas. No senso de 1995-96 esse

número chegou 62.244 (TARGINO; MOREIRA & FIGUEIREDO, 2004, p. 133 Apud

CORDEIRO NETO e ALVES, 2009, p. 347).

Apesar desses números expressivos, como já indicamos, a ação política

dos STRs estava direcionada para os pequenos produtores. A organização dos

assalariados aconteceu por uma iniciativa da FETAPE, que em 1989 decidiu

enviar para a região uma advogada, Dr.ª Cida Pedrosa, especialista em Direito

do Trabalho e com experiência na organização do movimento sindical rural na

cana-de-açúcar. Com a sua vinda foram beneficiados diretamente os STRs de

Petrolina e Santa Maria da Boa Vista, cidades do semiárido pernambucano

com grande número de assalariados na fruticultura irrigada.

Esse deslocamento da Zona da Mata para a fronteira de Pernambuco

com a Bahia, o Semiárido de Pernambuco, de um quadro importante da

FETAPE, permitiu algumas mudanças importantes e visava duas coisas

inicialmente. Em primeiro lugar, preservar a vida da Dr.ª Cida Pedrosa, que

teve o companheiro assassinado em 13 de dezembro de 1988, na Zona da

88

Mata de Pernambuco, quando militavam no movimento sindical na cana-de-

açúcar. Três meses antes ela havia sofrido uma tentativa de assassinato e,

desde então, estava jurada de morte. Em segundo lugar, o objetivo era que

Cida Pedrosa pudesse orientar os sindicalistas com base na experiência

adquirida na Zona da Mata com mobilização e questões de assalariados.

Em reunião na FETAPE com representantes dos STRs de Petrolina,

Santa Maria da Boa Vista, Óroco e Afrânio, ficou decidido que Cida Pedrosa

iria para o semiárido. A ida da advogada para o interior era ilustrativa das

condições materiais dos sindicatos. Sua carteira de trabalho foi assinada pela

FETAPE, em 01/04/1989, e a maior parte do seu salário também foi pago pela

federação. Ficou decidido que os sindicatos contribuíssem para o salário da

advogada. O STR de Petrolina passou a pagar ½ salário mínimo mensal; o

STR de Santa Maria da Boa Vista pagava 25% do salário mínimo e o STR de

Afrânio pagava 15% de um salário mínimo. O acordo visava estabelecer uma

relação de trabalho justa dentro das condições possíveis dos sindicatos. O

acordo também denunciava a fragilidade financeira dos STRs, que

funcionavam fundamentalmente por conta das contribuições da agricultura

familiar. Para iniciar seus trabalhos, Cida Pedrosa decidiu assinar suas

petições e demais documentos como Maria Aparecida Pedrosa Bezerra, seu

nome de batismo. O intuito foi despistar, ainda que momentaneamente, seus

possíveis assassinos.

A estratégia de atuação no Vale do São Francisco

Segundo Cida Pedrosa, num primeiro momento, cabia descobrir e

entender a estrutura de produção do Vale. Quem eram esses trabalhadores? O

que produziam? De onde vinham? Onde encontrá-los? Como ganhar a

confiança deles? Por outro lado, como organizar os assalariados, já que as

diretorias dos STRs estavam nas mãos dos pequenos produtores, alguns deles

empregadores de assalariados?

O primeiro passo foi encontrar esses trabalhadores. O STR passou a

procurar por eles nas periferias da cidade e, ao encontrá-los, decidiram fazer

reuniões aos sábados e domingos. Buscaram assim descobrir qual era o tipo

de assalariamento e qual o perfil desses trabalhadores; quais os direitos que

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

89

eram cumpridos e quais eram sonegados? Após isso, iniciaram uma estratégia

de realizar cursinhos para ensinar aos trabalhadores se apropriarem de seus

direitos. Procuravam trabalhadores que pudessem difundir o que haviam

aprendido nos cursinhos dentro das empresas. Os trabalhos renderam seus

primeiros frutos no em Santa Maria da Boa Vista, no antigo distrito de Lagoa

Grande, onde estavam localizadas as principais empresas e fazendas

produtoras de fruta com o maior contingente de trabalhadores.

Em 1992, três anos após o início das atividades, foi realizada a primeira

assembleia no distrito de Izacolândia, na periferia de Petrolina, com a

participação de 700 trabalhadores assalariados. Nesse mesmo ano iniciaram

as primeiras interlocuções com as grandes empresas. Como resultado as

primeiras carteiras de trabalho foram assinadas. Como foi dito antes, o sentido

dessa luta foi, fundamentalmente, para reivindicar o cumprimento de direitos.

Como primeira ação estava a reivindicação, ou melhor, a exigência de que os

trabalhadores tivessem seus direitos fundamentais assegurados. O primeiro

deles foi a carteiras de trabalho assinada. Essa primeira ação foi a garantia, o

passaporte, para a modernização das relações de trabalho na fruticultura

irrigada.

É possível refletir sobre todo tipo de desmando que existiu em

consequência da ausência do cumprimento de direitos. Os assalariados

estavam entregues à sua própria sorte. Notícias dos principais jornais da época

relataram que os trabalhadores eram transportados em cima de carrocerias de

caminhões 32 , quase não havia ônibus33 . Outros registros apontam a Sub-

Delegacia Regional do Trabalho autuando mais de 20 empresas. Entre elas,

algumas empregavam menores de 14 anos de idade34. Outra reportagem sobre

o trabalho infantil tinha o seguinte título: “Sobreviventes da roça: a presença de

                                                            32 “Três mortos e 7 feridos em capotamento de caminhão”. Jornal do Commercio. Recife, 03 de junho de 1997.

33Jornal do Commercio. Recife, 20 de agosto de 1996. Terça-feira.

34 “DRT notifica empresas com irregularidades”. Jornal do Commercio. Recife, sem data (provavelmente de 1994).

90

menores nos projetos Nilo Coelho e Bebedouro, em Petrolina, pode chegar a

40%”35.

A denúncia e o enfrentamento proposto pelos STRs de Petrolina e Santa

Maria da Boa Vista fizeram com que os sindicatos passassem a existir dentro

das grandes empresas para os assalariados. O primeiro sintoma disso foi que

os trabalhadores passaram a procurar os sindicatos quando eram demitidos.

Antes eles procuravam, individualmente, a advogados. Os sindicatos passaram

a mediar a relação trabalho. Se tornavam o meio de ligação entre os

trabalhadores.

Uma cartilha sobre a campanha salarial de 1994 trazia a seguinte lista

de reinvindicações: 1. Salário justo; 2. Melhores condições de trabalho; 3.

Transporte seguro e gratuito; 4. Assinatura da carteira de trabalho; 5. Fim da

exploração da mão-de-obra da criança e do adolescente36.

Mas fazer o patronato sentar a mesa para negociar com os

trabalhadores não foi fácil. Habituados a mandar e desmandar em suas

propriedades, não admitiam que tivessem que sentar à mesa para negociar. O

processo foi adiante porque as grandes empresas foram as primeiras a ceder,

talvez por não querer ver seus nomes associados à escândalos sobre a

exploração de trabalho. Em segundo lugar, a conjuntura política foi favorável. A

Delegacia Regional do Trabalho, em Recife, e a Sub-Delegacia Regional, em

Petrolina, somaram esforços e foram sensíveis às denúncias pronunciadas

pelos sindicatos. Em ofício assinado pelos três principais sindicatos do Vale em

Pernambuco, estes faziam uma denúncia citando mais de dez

empresas/fazendas de produção de frutas, denunciando a falta de registro das

carteiras de trabalho; o transporte sem segurança e das péssimas condições

de higiene e saúde. Por fim, solicitavam a participação da DRT em visita de

fiscalização a essas fazendas37.

                                                            35 “Sobreviventes da roça: a presença de menores nos projetos Nilo Coelho e Bebedouro, em Petrolina, pode chegar a 40%”. Jornal do Commercio. Recife, sem data (provavelmente de 1994).

36 Campanha Salarial. Trabalhadores Rurais do Vale do São Francisco. Informe nº 1.

37 Ofício nº 22/93. Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Petrolina e Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco. Petrolina, 13 de agosto de 1993.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

91

O papel de fiscalização da DRT ajudou a constranger uma parcela do

patronato que não estava disposta a negociar. Durante dois meses os patrões

sentaram à mesa de negociações com os trabalhadores. Foi a primeira vez que

sentaram à mesa em pé de igualdade com os trabalhadores. Não por acaso, as

negociações foram as mais demoradas entre todas as convenções até os dias

de hoje.

Segundo Cida Pedrosa,

Porque nesse processo de conhecimento a gente descobriu quem é que

trabalhava, então quem trabalhava? Mulheres! Muitas mulheres. O raleamento de

uva é um trabalho muito feito por mulheres, tem uma mão de obra assalariada de

mulheres muito grande e é um trabalho delicado, não é o trabalho da cana, é um

trabalho de processamento delicado; muitos jovens estudantes, gente muito jovem

trabalha lá, e a gente descobriu que o grande cancro era o agrotóxico, além de

todos eles, era o agrotóxico, deixava as pessoas doentes e essa coisa dessa mão

de obra feminina e jovem e aí a gente põe na convenção coletiva algumas

guaridas para as mulheres e pros jovens que foram de muito difícil entendimento,

a gente coloca o Estatuto da Criança e do Adolescente, que era uma coisa nova

de 89, dentro da convenção, coloca o direito do jovem no dia da prova faltar o

trabalho para estudar, isso foi um rolo, mas é porque direitos sociais, às vezes são

mais complexos do que direitos econômicos, ou seja, que tem um rebatimento

econômico muito grande, mas é muito difícil para o patronato entender isso, né,

então, quando a gente assinou a convenção em fevereiro, final de janeiro, que o

carnaval nessa época foi no final de janeiro, e quando a gente assinou a

convenção oficialmente pro nível de importância disso o Walter Barelli, era

ministro do trabalho na época e veio assinar como testemunha da convenção38.

A revolução deste testemunho não foi para subverter a ordem burguesa,

pelo contrário, foi de inserção nela por aqueles que estavam forçosamente de

fora. O marco da modernização das relações capital-trabalho no Vale, foi a

institucionalização das convenções coletivas de trabalho, que incluiu pela

primeira vez o trabalho assalariado na fruticultura como elemento importante no

processo de acumulação que se desenvolvia.

A pauta negociada denuncia as condições de trabalho e os abusos a

que os trabalhadores estavam submetidos. A presença do ministro do Trabalho

                                                            38 Entrevista de Cida Pedrosa. Recife, 16/12/2011.

92

como testemunha da assinatura da convenção foi significativo do início dessa

modernização, que chegou bastante atrasada ao Vale, e aconteceu por causa

dos esforços de homens e mulheres que ficaram de fora da festa promovida

pelas classes dominantes utilizando o aparelho do Estado a seu favor.

Os trabalhadores contaram apenas com uma conjuntura política

favorável à sua organização, pois o Estado esteve mais presente pela

presença dos agentes da DRT, que não se eximiram de cumprir com o seu

trabalho. Por outro lado, a Igreja Católica foi um ator importante nesse

processo, chegando a ajudar a financiar a campanha salarial39. No entanto,

havia tendências diferentes da Igreja envolvidas. A Igreja Católica da Bahia,

tida na época como progressista e a Igreja Católica de Pernambuco, tida como

conservadora.

A primeira convenção coletiva de trabalho da fruticultura, que podemos

ver como marco do início da modernização das relações de trabalho no Vale do

São Francisco, foi negociada apenas para os limites territoriais de Petrolina e

Santa Maria da Boa Vista, apesar da produção de frutas envolver outras

cidades, inclusive, do Estado da Bahia, como Juazeiro, Sobradinho e Sento Sé.

A justificativa foi que os sindicatos bahianos não aderiram tão fácil ao

movimento como se esperava. No entanto, não havia muitas saídas para eles,

a entrada desses sindicatos deveria acontecer, mais cedo ou mais tarde, pois

as mesmas fazendas que produziam frutas de um lado do rio, Pernambuco,

produzem também do outro lado, Bahia.

Naturalmente eles vão ter que vir, porque se não vai criar uma... veja as mesmas

empresas que estão de um lado, estão do outro, vai ser uma consequência, é

tanto que quando a gente assinou a convenção algumas empresas passaram a

assumir a convenção de Pernambuco lá [Bahia], mesmo sem lá ter porque se não

ia criar um conflito interno da bexiga, né? (...) Olhe, juro por Deus, não conseguia

engrenar a Bahia, não conseguia, e a gente chegou a ter uma conversa com a

federação da Bahia, que era boa, mas a federação não assumiu, feito a federação

de Pernambuco assumiu, se os sindicatos de lá eram ruins a federação tinha que

ter assumido, né, o sindicato de Petrolina, Santa Maria, não tinha experiência, a

                                                            39 Ofício da Coordenadoria Ecumênica de Serviço - CESE para o STR de Petrolina. Salvador, 07 de fevereiro de 1994.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

93

federação me enviou, mandou reforço, pra assumir, não é pra assumir, pra ajudar,

pra colaborar com quem ainda não tá no processo40.

Entre as principais conquistas da primeira convenção estavam: o ponto

mais evidente foi a mudança dos meios de transportes, de caminhão passaram

a ser transportados em ônibus, de forma gratuita; pagamento de salário mínimo

mais acréscimo de 20%; licença gestante de trinta dias a mais do que o

previsto em lei; afastamento das mulheres grávidas da cultura do agrotóxico;

benefício de faltar ao trabalho nos dias de prova para o caso do trabalhador

estudante41.

Uma nova fase foi aberta com a assinatura da primeira convenção. Em

consequência disso, outra estratégia deveria ser adotada para o novo momento

pós-assinatura da convenção: garantir o cumprimento do que havia sido

assinado. Esta era a meta a ser perseguida. A preocupação comum aos

trabalhadores naquele momento era que as grandes empresas pareciam não

ter problemas em se adaptar às novas regras do jogo, regras estas que não

haviam sido feitas apenas por elas e pra elas. No entanto, pequenas e médias

empresas eram as que preocupavam.

O ano de 1994 que apareceram os primeiros registros de greve no Vale,

especificamente em Santa Maria da Boa Vista e Petrolina. Em matéria

publicada pelo Jornal do Commercio com o título: “No sertão a história é outra”,

a imprensa destacou o papel ativo do movimento sindical.

As negociações dos trabalhadores rurais de Petrolina e Santa Maria da Boa Vista,

iniciadas ontem, já estão sendo consideradas um fato histórico no Vale do São

Francisco. Pela primeira vez, os trabalhadores organizaram-se para dar início a

uma campanha salarial na região, apresentando, inclusive, uma pauta de

reivindicações contendo 67 itens a serem analisados pelos patrões. Estes foram

pegos de surpresa, pois a classe, apesar de existirem os sindicatos patronais,

continua desorganizada42.

                                                            40 Entrevista de Cida Pedrosa. Recife, 16/12/2011.

41 Convenção Coletiva de Trabalho. Trabalhadores Rurais: Petrolina-PE e Santa Maria da Boa Vista-PE. Fevereiro de 1994.

42Jornal do Commercio. Recife, 18 de janeiro de 1994, terça feira.

94

Para o Diário de Pernambuco,

Por nunca terem enfrentado um dissídio coletivo, os empresários rurais do Vale do

São Francisco não estão organizados, em seus sindicatos, o que dificultou as

primeiras negociações. Enquanto os sindicatos de Petrolina e Santa Maria da Boa

Vista possuem cerca de 15 000 filiados, o sindicato patronal, em Petrolina, tem

apenas 400 associados e o de Santa Maria, 35043.

A desorganização patronal estava associada à cultura dos proprietários

rurais, que não estavam abertos às negociações, intensificou a publicidade ao

movimento. A dificuldade para as negociações foi tamanha que teve a atenção

e participação direta do Delegado Regional do Trabalho no Estado de

Pernambuco, Amaro Gantóis. Em outubro do mesmo ano foi a vez do Sindicato

dos Trabalhadores Rurais de Lagoa Grande, que era o antigo distrito de Santa

Maria da Boa Vista, agora emancipada, de realizar a primeira greve de 24

horas para conseguir negociar com os patrões44.

Mas a desorganização do empresariado parecia ser apenas no que diz

respeito às relações de trabalho. Foram pegos de surpresa, mas estavam bem

organizados para defender seus interesses junto ao Estado ou mesmo para

lidar com a exportação de frutas. A situação revela todo o desleixo da classe

dominante para com as relações de trabalho e, ao mesmo tempo, o fato é

significativo do seu desprezo como classe para com aqueles que, ao seu modo

de ver o mundo, são apenas pobres trabalhadores rurais. Jamais pensaram

que estes poderiam um dia exigir o cumprimento de direitos básicos esticar um

pouco mais nos 20% de acréscimo do salário mínimo ou mesmo nos 30 dias a

mais de licença maternidade. É de se supor que não esperavam serem

atingidos pelo movimento sindical.

Para a presidente do STR de Santa Maria da Boa Vista, Gil:

Eu acho que naquela época eles já estavam bem organizados, mas é claro que

ele tinha que fazer a vez dele, né. Porque o que é que o patronato usava naquele

momento, era que os trabalhadores que precisava sentar pra conversar, pra

chegar a um consenso porque perdia os dois, perdia o patrão e perdia o

                                                            43Diário de Pernambuco. Recife, quarta-feira, 19 de janeiro de 1994.

44Jornal do Commercio. Recife, 11 de outubro de 1994, terça-feira.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

95

trabalhador, que claro que a gente sabe que só quem perdia é o trabalhador,

porque ao mesmo tempo que estava na greve, deixa eu te dar um exemplo, parou

100%, né? Tá lá parado os trabalhadores, mas a uva que tava pra colher, o patrão

não deixou de colher porque os funcionários da empresa é que estavam em greve,

mas aí ele pagava um terceiro e botava pra colher a uva45.

Segundo Cida Pedrosa,

Isso foi a grande dificuldade da negociação, porque eles não tinham

representação, veja, por que que durou dois meses? Eles eram organizados sim,

enquanto força econômica, isso eles eram organizados, pra exportar, pra tudo,

mas eles não tinham um sindicato da categoria, “Produtores do Vale do São

Francisco”, como é que você vai pra mesa de negociação? Dois sindicatos

negociam, ou um sindicato ou federações, você tem duas instituições que

representam e negociam, não é assim? Você tem a interlocução posta, nós não

tínhamos a interlocução posta, isso foi a grande discussão jurídica nossa, a quem

notificar, porque pra você deflagrar a greve e deflagrar o processo de negociação,

você tem que notificar um sindicato dizendo “nós trabalhadores tais, do sindicato

tal, queremos negociar essa pauta”, você oficia, você manda um oficio e dá tantos

dias pra eles responderem, ou seja, legalmente para uma convenção existir você

tem um processo preparatório, isso foi uma das nossas grandes discussões: quem

notificar? O sindicato rural velho de Petrolina, que nasceu com o mesmo tempo do

sindicato de trabalhadores rurais de Petrolina, não representava o Vale, não

representava a Milano, não representava nenhuma delas, a empresa de Aristeu,

não representava por quê? Porque quem era que tava nesse sindicato rural, os

chamados proprietários de área de sequeiro, que tinha aquele monte de terra, 400

hectares, entendeu, os cabras do sequeiro estavam alí, os velhinhos, do

chapeuzinho que tem na feira, que tem uma vaca, isso não representava aquela

outra produção de Petrolina, aí o que é que veio, por isso que as costura foram

muito paralelas, porque na medida em que Gualberto, na mesa de negociação, e

Aristeu apareciam, eles ficavam, me desculpe a expressão, “torando”, porque eles

também não representavam ninguém, eles estavam organizados pra produção,

pra terem lá na mesa grandes advogados (...) levaram como economista pra

negociação, então assim, eles tinham como bancar o aparato pra negociação,

mas eles não tinham uma organização sindical que representasse os mesmos46.

                                                            45 Entrevista de Gil (Maria Gilvaneide Pereira dos Santos). Santa Maria da Boa Vista, 11/07/2011.

46 Entrevista de Cida Pedrosa. Recife, 16/12/2011.

96

Esse depoimento revela que a questão doméstica, relação de trabalho,

não era motivo de preocupação. Pelo contrário, a manutenção nas bases em

que estava acontecendo só beneficiava a classe dominante, que tinha

assegurada para si o total e irrestrito passe livre para acumular. Suas

preocupações estavam voltadas como agente político para reivindicar

facilidades do Estado e negociar com o capital internacional. Trabalho não era

uma pauta a classe dominante.

Considerações finais

A ação em conjunto dos sindicatos rurais tem sido uma política

defendida e estimulada pela Federação dos Trabalhadores Rurais de

Pernambuco – FETAPE, ligada à CONTAG. Assim, o Estado de Pernambuco

foi dividido em áreas geográficas e nelas são desenvolvidas ações conjuntas

entre os sindicatos rurais localizados nas respectivas micro regiões.

As informações obtidas pela pesquisa até agora revelam que essa

experiência foi importante para a construção da unidade em torno da

preparação da primeira Convenção Coletiva dos Trabalhadores Rurais do Vale

do São Francisco, que data de 1994 e foi realizada pelos STRs de Petrolina e

de Santa Maria da Boa Vista47. Os trabalhadores da Bahia não demoraram

muito para perceberem que muitas empresas produziam em várias cidades do

Vale. A iniciativa foi agir conjuntamente com os sindicatos localizados na Bahia.

A experiência acumulada pelo pólo foi transpassada para fora das suas bases

territoriais, dirigindo-se para as cidades da Bahia, construindo a unidade em

torno das convenções coletivas entre os sindicatos de Pernambuco e Bahia.

Atualmente onze sindicatos participam da campanha salarial unificada

em 2012 entre os estados da Bahia e Pernambuco48, perfazendo um total de

                                                            47 Convenção Coletiva de Trabalho. Trabalhadores Rurais: Petrolina-PE e Santa Maria da Boa Vista-PE. Fevereiro de 1994.

48 Participam da construção e negociação da convenção coletiva, os seguintes sindicatos de trabalhadores rurais (STRs): Petrolina – PE, Santa Maria da Boa Vista – PE, Belém do São Francisco – PE, Lagoa Grande – PE, Cabrobó – PE, Juazeiro – BA, Casa Nova – BA, Sento Sé – BA, Sobradinho – BA, Curaça – BA e Abaré – BA. Também estão as negociações: Federação dos Trabalhadores Rurais de Pernambuco – FETAPE, que assume um papel de protagonista; a Federação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – FETAG e a Central Única dos Trabalhadores – CUT.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

97

cerca de 60 000 trabalhadores rurais, segundo informações do STR de

Petrolina.

O processo de negociação costuma ser tenso. Assumem a frente das

negociações os advogados da FETAPE, FETAG e dos sindicatos patronais. São os

mediadores desse processo. A questão salarial tem sido o ponto de destaque e o que,

de forma mais intensa, mobiliza as bases. É a grande quantidade de assalariados na

região que trouxe força aos sindicatos, foram com as greves, no geral bastante

reprimidas pela polícia, que conseguiram sentar com os patrões para negociar.

Segundo as lideranças sindicais do STR de Petrolina, a primeira convenção

coletiva de trabalho deles foi a primeira do setor de frutas do Brasil, eles a chamaram

de “salada de frutas”. Nas primeiras convenções os principais ganhos salariais eram

em torno de 10% acima do salário mínimo. Mas ao longo do tempo os sindicalistas

perderam essa margem de ganho e na convenção coletiva de 2009 o sindicato

barganhou R$ 11,00 reais acima do mínimo, e não levou.

Por outro lado, as convenções tem significado um avanço para os

trabalhadores rurais. A partir delas e das mobilizações, conquistaram o direito de ter

carteira de trabalho assinada, transporte em ônibus para as fazendas. Os críticos

atuais do movimento chamam atenção para as condições dos ônibus; têm conseguido

a duras penas que os trabalhadores não tenham descontados o transporte dos seus

salários, além dos dias que por ventura faltem ao trabalho para tratar de doença,

aposentadoria etc, todos os casos previstos em lei; também continuam lutando por

maior segurança na utilização de agrotóxicos.

Bibliografia

ARAÚJO, Maria Lia Corrêa de; NETO, Magda de Caldas & LIMA, Ana Elisa

Vasconcelos. (2000), Sonhos submersos ou desenvolvimento? Impactos

sociais da barragem de Itaparica. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora

Massangana.

__________. (1990), Na margem do lago: um estudo do sindicalismo rural.

Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana.

ARAÚJO, Tânia Barcelar de. (2000), Nordeste, Nordestes, que Nordeste?

Mimeo.

98

CAVALCANTI, Josefa Salete Barbosa. (1997), Frutas para o mercado

global. Estudos Avançados 11 (29).

__________. (2003), Os trabalhadores no contexto da globalização dos

alimentos. GT Anpocs Trabalhadores, Sindicatos e a Nova Questão Social

Seminário Intermediário. USP.

__________. & PIRES, Luiza Lins e Silva. (2009), Cooperativismo,

fruticultura e dinâmicas sociais rurais: uma nova onda de cooperativas no

Vale do São Francisco. In. SILVA, Aldenor Gomes da; CAVALCANTI,

Josefa Salete B.; WANDERLEY, Maria de Nazareth B. (Orgs).

Diversificação dos espaços rurais e dinâmicas territoriais no Nordeste do

Brasil. João Pessoa: Editora Zarinha Centro de Cultura.

CORDEIRO NETO, José Raimundo; ALVES, Christiane Luci Bezerra.

Ruralidade no vale do submédio São Francisco: observações a partir da

evolução econômica do pólo Juazeiro-BA – Petrolina-PE. Revista IDeAS –

Interfaces em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Rio de Janeiro –

RJ, v. 3, n. 2, p. 324-361, jul./dez. 2009.

CORREIA; R. C.; ARAÚJO, J. L. P.; CAVALCANTI, E. B. (2001), A

fruticultura como vetor de desenvolvimento: o caso dos municípios de

Petrolina (PE) e Juazeiro (BA).

COSTA, Luiz Flávio de Carvalho & MARINHO, Ricardo José de Azevedo.

(2008), A formação do moderno sindicalismo dos trabalhadores rurais no

Brasil. In COSTA, Luiz Flávio de Carvalho, FLEXOR, Georges & SANTOS,

Raimundo. (Orgs.), Mundo rural brasileiro: ensaios interdisciplinares. Rio de

Janeiro: Edur/UFRRJ e MAUAD X.

Desenvolvimento Territorial e Convivência com o Semi-Árido

Brasileiro - Experiências de Aprendizagem. Relatório Final Empresa

Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa. Organização das Nações

Unidas para a Agricultura e a Alimentação – FAO; Fundação de Apoio à

Pesquisa e ao Agronegócio – FAGRO.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

99

FAVARETO, Arilson. (2006), Agricultores, trabalhadores: os trinta anos do

sindicalismo rural no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 21.

Nº. 62. ANPOCS/ RelumeDumará, São Paulo.

FRY, Peter. (2001), feijoada e soul food 25 anos depois. In. ESTERCI,

Neide. FRY, Peter & GOLDENBERG, Mírian. (Orgs.), Fazendo Antropologia

no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A.

GIL, Antônio Carlos. (2000), Métodos e técnicas de pesquisa social. São

Paulo: Atlas.

HAGUETTE, Maria Teresa Frota. (2003), Metodologias qualitativas na

sociologia. 9ª edição. Petrópolis: Editora Vozes.

IULIANELLI, Jorge Atílio S. (2000), O gosto bom do bode: juventude,

sindicalismo, reassentamento e narcotráfico no Submédio. In. IULIANELLI,

Jorge Atílio S. & RIBEIRO, Ana Maria Motta (Orgs.), Narcotráfico e violência

no campo. Rio de Janeiro: KOINONIA/DP&A.

LIMA, João Policarpo Rodrigues; MIRANDA, Érico Alberto de A. (2001),

Fruticultura irrigada no Vale do São Francisco: incorporação tecnológica,

competitividade e sustentabilidade. Revista Econômica do Nordeste.

Fortaleza. V 32.

MALAGODI, Edgard. (2004), O sindicato rural e seus parceiros. In.

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel (Org.). Globalização e

desenvolvimento sustentável: dinâmicas sociais rurais no Nordeste

brasileiro. PP: 161-171.

MARINOZZI, G.; CORREIA, R.C. (1999), Dinâmicas da agricultura irrigada

do Pólo Juazeiro – BA/ Petrolina – PE. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE

ECONOMIA E SOCIOLOGIA RURAL, 37, 1999, Foz do Iguaçu. Anais...

Brasília: SOBER. CD-ROM.

MARX, Karl. (1978), O Capital. Coleção Os economistas. São Paulo: Abril

Cultural. Volume 1, tomo 2. PP: 261-294.

MATTOS, Marcelo Badaró. (1998), “Classes Sociais e Luta de Classes”. In.

Marcelo Badaró Mattos (Org). História: pensar e Fazer. Rio de Janeiro:

Laboratório Dimensões da História – UFF.

100

_________. (2002), Trabalhadores e Sindicatos no Brasil. Rio de Janeiro:

Vício de Leitura.

MEDEIROS, LeonildeServolo de. (1997), Trabalhadores rurais, agricultura

familiar e organização sindical. São Paulo em Perspectiva.São Paulo:

Fundação SEADE, v.11, n.2, p.65-72, abr./jun.

_________. (1994), Desafios do sindicalismo rural nos anos 90. DEBATE

(CESE), ano 4, n.3, p. 69-79, maio.

__________. (1988), Resenha - De corpo e alma: catolicismo, classes

sociais e conflitos no campo. Temas Rurais., ano 1, v.V.1, n.1 e 2, p.163-

169, jul./dez.

__________. (1983), & SORIANO, Joaquim Calheiros. Reflexões sobre o

sindicalismo rural brasileiro: a CONTAG. São Paulo: SBPC, 30 p.

__________. (1980), CONTAG: um balanço. Botucatu, SP: s.ed, 1980.

MICHEL, Maria Helena. (2009), Metodologia e pesquisa científica em

ciências sociais. 2ª edição. São Paulo: Atlas.

NOVAES, Regina Reyes. (1991), “Continuidades e rupturas no sindicalismo

rural”. In. Armando Boito (org.), O sindicalismo brasileiro nos anos oitenta.

Rio de Janeiro : Paz e Terra.

OLIVEIRA, Francisco de (1981), Elegia para uma re(li)gião: Nordeste,

Sudene, Planejamento e Conflito de Classes. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz

e Terra.

OLIVEIRA, Brigitte R. B. de. (2007), Análise do processo de formação de

estratégias internacionais da fruticultura brasileira: o caso do Grupo Fruitfort.

Orientador: Walter Fernando Araújo Moraes. Recife: UFPE. Dissertação de

mestrado (Mestrado em Administração).

OLIVEIRA, Lúcia Marisy Souza Ribeiro de. (1998), Dois anos em um: a

realidade do cotidiano feminino. Secretaria do Trabalho e Ação Social –

SETRAS.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

101

OLIVEIRA, Roberto Véras. (2002), Sindicalismo e sindicatos no Brasil:

atualizações do novo sindicalismo ao sindicato cidadão. Tese (Doutorado em

Sociologia). Universidade de São Paulo – USP, São Paulo.

RAMALHO, José Ricardo & SANTANA, Marco Aurélio. (2003), Além da

fábrica: trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. São Paulo.

Boitempo Editorial.

_________. (2004), Sociologia do trabalho. Rio de Janeiro. Jorge Zahar

Editor.

RIBEIRO, Ana Maria Motta. (2002), “Sindicalismo, barragens e narcotráfico”.

In. COSTA, Luiz Flávio de Carvalho & MOREIRA, Roberto José. (Orgs.),

Mundo Rural e Cultura. Rio de Janeiro: MAUAD.

RODRIGUES, Victor de Oliveira (2009), Globalização da agricultura e

mudança no mundo do trabalho: os trabalhadores rurais do Vale do São

Francisco. Orientadora: Josefa Salete Barbosa Cavalcanti. Recife: UFPE.

Monografia (Graduação em Ciências Sociais).

SANTANA, Marco Aurélio. (1999), “Política e história em disputa: o ‘novo

sindicalismo’ e a idéia da ruptura com o passado”, In. RODRIGUES, Iram

Jácome (org), O novo sindicalismo vinte anos depois. Petrópolis: Vozes; São

Paulo: EDUC/Unitrabalho. pp. 133-162.

_________. (2003), “Trabalhadores em movimento: o sindicalismo brasileiro

nos anos 1980/1990”. In: Jorge Ferreira; Lucília Neves. (Org.). O Brasil

Republicano - O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em

fins do século XX. 1 ed. Rio de Janeiro. v. 4, p. 283-313.

SILVA, Pedro Carlos Gama da. (2009), “Dinâmica e crise da fruticultura

irrigada no Vale do São Francisco”. In. SILVA, Aldenor Gomes da;

CAVALCANTI, Josefa Salete B.; WANDERLEY, Maria de Nazareth B.

(Orgs). Diversificação dos espaços rurais e dinâmicas territoriais no

Nordeste do Brasil. João Pessoa: Editora Zarinha Centro de Cultura.

__________. (2001), Articulação dos interesses públicos e privados no pólo

Petrolina-PE/Juazeiro-BA: em busca de espaço no mercado globalizado de

102

frutas frescas. 2001. 245f. Tese (Doutorado em Economia) – Instituto de

Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

SOUZA, Gustavo H. F. de; BRITO, Ricardo A. L.; NETO, José Dantas Neto;

SOARES, José M.; NASCIMENTO, Tarcizio Nascimento. (2001),

Desempenho do distrito de irrigação senador Nilo Coelho. Revista Brasileira

de Engenharia Agrícola e Ambiental. v.5. n.2.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

103

ID 459

PRECARIEDADE LABORAL E SEUS EFEITOS:Trajetórias, organização e

ação coletiva em Portugal

Dora Fonseca

RESUMO

Este trabalho pretende explorar quais as implicações resultantes das mudanças de largo espectro que atingem o mundo do trabalho na época atual. Essas implicações serão discutidas tendo em linha de conta, em primeiro lugar, a forma que tomou a reestruturação produtiva que teve por objetivo a reposição dos patamares de acumulação; segundo, o impacto destas transformações sobre o trabalho e emprego; em terceiro lugar, o nexo de causalidade entre estas e a crise que se produziu no seio do movimento sindical; e, por fim, os impactos ao nível da ação coletiva no quadro da ascensão das políticas de austeridade, tendo como referência central o contexto português.

PALAVRAS-CHAVE: Precaridade laboral. Movimento Sindical. Crise. Ação coletiva.

104

1. INTRODUÇÂO: Um novo mundo do trabalho

Sob o capitalismo, o trabalho deixa de ser realização de si,

desumaniza-se, transforma-se em meio em vez de ser um fim. Enquanto

atividade vital configura-se como trabalho estranhado. A lógica do sistema

produtor de mercadorias desemboca num processo destrutivo que culmina

numa “sociedade dos excluídos e dos precarizados” que se expande

globalmente (ANTUNES, 2009). Nem o centro do sistema produtor de

mercadorias se encontra a salvo e é também fustigado pelas dinâmicas

atuantes. O trabalho humano complexifica-se e exprime-se de formas

paradoxais, emancipando e alienando, verificando-se, à escala global, uma

ação destrutiva contra a força humana de trabalho, que se encontra hoje na

condição de precarizadaou excluída (IDEM).

A partir da segunda metade do século XX, e em particular a partir dos

anos 1970, é implementado um processo de reestruração em escala global que

visava tanto a recuperação do padrão de acumulação prévio como a reposição

da hegemonia perdida no interior do espaço produtivo, utilizando-se para isso

de novas e velhas modalidades de trabalho. A introdução das novas

tecnologias no processo produtivo produziu a transformação radical da sua

organização. Ocorre a acentuada perda de peso do trabalho industrial nas

sociedades avançadas e a expansão do papel que a ciência, a tecnologia e a

informação desempenham na produção. Autores como Manuel Castells falam

da emergência de uma “Economia Informacional”49, no quadro da qual a “fonte

essencial do incremento da produtividade consiste na capacidade de criar novo

conhecimento e aplicá-lo ao conjunto da atividade humana mediante

                                                            49 A economia informacional caracteriza‐se, segundo Castells (1992), por cinco traços fundamentais que 

se articulam de forma sistémica: 1) produtividade e crescimento económico cada vez mais dependentes 

da aplicação da ciência e da tecnologia ao processo produtivo, bem como da qualidade da informação e 

da gestão no conjunto da atividade económica; 2) transição, nas sociedades avançadas, das atividades 

de  produção material  a  atividades  de  processamento  de  informação;  3)  transformação  profunda  na 

organização da atividade económica, assistindo‐se a uma passagem da produção de massa uniformizada 

à produção flexível, implicando, em termos organizativos, o declínio das grandes organizações verticais 

em  benefício  das  redes  de  conexões  horizontais  entre  unidades  económicas  descentralizadas;  4)  o 

capital, a produção, a gestão, os mercados, a força de trabalho, a informação e a tecnologia organizam‐

se em  fluxos que ultrapassam as  fronteiras nacionais; 5) ocorrência das  transformações económicas e 

organizativas em simultâneo à revolução tecnológica centrada nas tecnologias de informação. 

 

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

105

dispositivos tecnológicos e organizativos destinados, principalmente, ao

tratamento da informação” (CASTELLS, 1992, p.10).Paralelamente, a

introdução em massa da força de trabalho feminina no processo de produção

intensifica-se e adquire um novo significado ao acarretar a desvalorização da

força de trabalho no geral, potenciando as assimetrias salariais em termos de

género (HIRATA, 2001), o que permite falar de um exército industrial de

reserva predominantemente feminino (CASACA, 2009).

Com o final do período de expansão do pós-guerra emerge um novo

paradigma produtivo, a acumulação flexível,que se apresenta como a resposta

possível face à manifesta incapacidade do fordismo e do keynesianismoem

conterem as contradições do capitalismo (HARVEY, 1992). Em resposta à

intensificação da competição promovida por um quadro de crescimento

económico, são impulsionadas medidas de racionalização, reestruturação e

intensificação do controle do trabalho, que vêm implicar níveis relativamente

altos de desemprego estrutural e o retrocesso do poder sindical (IDEM). Assim,

a partir dos anos 1980, as novas estratégias empresariais direcionam-se para a

flexibilidade, em que às transformações na organização do trabalho

(flexibilidade interna) somam-se estratégias de flexibilidade externa

(organização do trabalho em rede, força de trabalho maleável, busca de

recursos externos à empresa), o que vem transferir o fardo da incerteza para

os assalariados e para outros provedores de serviços (BOLTANSKI e

CHIAPELLO, 2005).

A emergência de novas estratégias de organização do trabalho

refletem-se no fim do pleno emprego - tradicionalmente associado ao

compromisso fordista e à plenitude do Estado – Providência - e na emergência

de novas formas de emprego como o trabalho a tempo parcial, o trabalho

domiciliário e o trabalho cívico (BECK, 2000). Os sectores do trabalho flexível e

do trabalho precário são os que apresentam um índice de crescimento mais

elevado, caracterizando-se as novas formas de emprego pela informalidade e

pela individualização. A reestruturação da produção e a introdução de novas

tecnologias no processo produtivo abriram o caminho à formação de largos

contingentes de “dispensáveis” que associada à erosão do Estado social – pois

o solapamento do modelo de regulação social democrático pela (des)regulação

106

neoliberal é uma das tendências num contexto de crise estrutural do capital

(ANTUNES, 2000) - acarreta consequências sociais sérias.

Neste quadro, o compromisso económico-político do “cidadão

trabalhador” começa a erodir-se e emerge um sistema de subemprego

desestandardizado, fragmentado e plural, com formas de trabalho retribuído

altamente flexíveis, descentralizadas temporal e espacialmente, e

desregulamentadas (IDEM). Tal como é frisado por Antunes, “o mundo do

trabalho atual tem recusado os trabalhadores herdeiros da “cultura fordista”,

fortemente especializados, que são substituídos pelos trabalhadores

‘polivalentes e multifuncionais’ da eratoyotista” (2009, p. 52). O sector informal

é alvo de crescimento expressivo e ganha terreno ao sistema regulamentado e

seguro das relações laborais, configurando-se um cenário de “brasileirização

do ocidente” (BECK, 2000; COSTA, 2008).

A classe trabalhadora da contemporaneidade apresenta uma nova

morfologia dado o seu carácter heterogéneo e multifacetado decorrente do

processo de internacionalização do capital, em que às clivagens habituais se

somam estratificações e fragmentações, conduzindo á elaboração de uma

conceção ampliada de trabalho que é marcada por um traço de superfluidade,

de que são exemplo os setores precarizados da classe-que-vive-do-trabalho,

cujo cotidiano é moldado pela ameaça do desemprego estrutural, e que

compõem o segmento dos novos proletários do mundo (IDEM). A liofilização

organizacional (CASTILLO, 1996) cria a necessidade de um “novo tipo de

trabalho”, fundamentado na desespecialização multifuncional, no trabalho

polivalente, na intensificação dos ritmos e processos de trabalho, em que a

figura do “colaborador” assume um papel central (ANTUNES, 2009). O

contexto é de um processo de precarização estrutural do trabalho que é

complementado pelas tendências de flexibilização da legislação laboral, das

leis que protegem o elo mais fraco de um contrato desigual: o trabalhador.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

107

2. Efeitos sobre o sindicalismo

O contexto de alterações na configuração do mundo do trabalho tem

repercussões profundas ao nível do movimento sindical. Este encontra-se em

crise em resultado de mudanças que têm vindo a afetar a sua coerência interna

e que despoletam uma série de “pressões centrífugas”, podendo, nesse

sentido, falar-se de uma crise estrutural (SANTOS e COSTA, 2004; COSTA,

2008; HYMAN, 1994, 2005; MOODY, 1997; WATERMAN, 2004).

As razões que estão na génese da crise do sindicalismo são de várias

ordens. A acentuada burocratização e profissionalização do sindicalismo

distanciaram os representantes sindicais dos trabalhadores, culminando em

uma acentuada desfiliação e na erosão do poder combativo dos sindicatos

(ANTUNES, 1995; BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005). A solidariedade sindical

debilita-se em resultado da dispersão da produção e da maior mobilidade do

capital internacional. A desregulamentação cada vez mais intensa das relações

laborais conduziu a formas de flexibilização que, para além de acabarem por

trazer sempre acopladas diferentes formas de precarização, subtraem poder

negocial aos sindicatos e os debilitam estrategicamente. A expansão do

terceiro sector e retração do sector industrial fomentadas pelos avanços

tecnológicos acarretaramuma redução do número dos postos de trabalho,

significativa e generalizada, afetando especialmente o sector industrial,

tradicionalmente de forte sindicalização (VISSER, 1994), o que vem colocar em

cheque o sindicalismo de base operária tradicional.Concomitantemente, o

processo de globalização, ao implicar a reorganização dos espaços

económicos, reflete-se no deslocamento do enfoque dos espaços nacionais

para os internacionais e destabiliza o modelo sindical vigente, uma vez que

este último estabelece como espaço privilegiado de ação o espaço nacional

(HYMAN, 2005; MOODY, 1997; WATERMAN, 2004).

As novas técnicas de gestão traduzem-se em estratégias hostis ao

sindicalismo e à prática da negociação coletiva. A precarização do trabalho, o

medo do desemprego, a restruturação produtiva (outsourcing, deslocação das

unidades produtivas, criação de estruturas subsidiárias onde não raramente,

não existe uma tradição sindicalista) e a mobilidade da força de trabalho

108

contribuem para o esmorecimento da vontade dos trabalhadores em se

organizarem (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005). A transferência do palco de

negociações para as empresas vem colocar duras restrições à atuação dos

sindicatos e facilitar a impregnação das suas estratégias por tendências

neocorporativistas e de “parceria social” (MOODY, 1997), o que compromete a

sua essência combativa. A negociação coletiva ligada às condições de trabalho

passou a dominar as agendas sindicais em detrimento da formulação de

respostas às estratégias governamentais e dos empregadores, relegando para

segundo plano a existência de uma agenda sindical autónoma. A autonomia

sindical é minada pelo enfoque em diretivas macroeconómicas políticas,

conferindo prioridade ao “economismo político” (HYMAN, 1994). A nova

orientação estratégica obriga o sindicalismo de “classe” a debater-se com

inúmeros problemas e fragilidades potenciados pela mitigação das lutas da

classe trabalhadora pelo capitalismo, bem como pela submissão destas

estruturas à posição de instrumentos da ação reguladora do Estado

(ESTANQUE, 2006). Apoiando-se no envolvimento manipulatório, o modelo de

acumulação flexível instaurado busca a adesão de fundo dos trabalhadores ao

projeto do capital, para dessa forma o viabilizar (ANTUNES, 2000). As

consequências destes processos para a solidariedade e ação sindicais são

drásticas.

Uma série de fatores que emanam da reorganização do processo

produtivo 50 produzem fragmentação da classe trabalhadora e refletem-se

negativamente sobre a solidariedade sindical, “debilitando-a”. As novas formas

de organização do trabalho promovem o individualismo e fomentam a

competitividade entre trabalhadores. Por um lado, acentua-se a tendência da

construção de uma solidariedade relativa à empresa e, por outro, intensificam-

se as políticas de repressão sindical que restringem a militância sindical e

corrompem a solidariedade entre trabalhadores (VISSER, 1994). A emergência

                                                            50São considerados os seguintes fatores: a dispersão da produção; a redução da dimensão das unidades fabris e o aumento da produção em pequenas empresas; a maior mobilidade do capital internacional; a tendência de realização de acordos entre empresas e locais de produção; flexibilização da produção e das normas que regulamentam as carreiras dos trabalhadores; e a maior heterogeneidade da força de trabalho em virtude do aparecimento de novas profissões e da maior presença da mulher e dos imigrantes no conjunto da força de trabalho disponível. 

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

109

de formas atípicas de trabalho conduz à unilateralidade e individuação das

relações de trabalho e constitui um forte obstáculo à integração desses

segmentos de trabalhadores nas organizações sindicais. Estas privilegiam a

dimensão da categoria profissional, o que espelha a redução da capacidade de

representação dos sindicatos (BIHR, 1991; HYMAN). Assim, ao mesmo tempo

que se assiste à diminuição do contingente de trabalhadores estáveis, os

números de trabalhadores submetidos a condições cada vez mais precárias

são alvo de um crescimento surpreendente, refletindo-se numa redução da

força sindical, historicamente ligada aos primeiros e que marginaliza os

segundos (ANTUNES, 1995).

A velocidade de crescimento e prevalência cada vez mais elevadas

apresentadas pelo setor informal e do trabalho precário, concomitantemente

com a redução da capacidade organizativa do sector formal, implicam que a

estabilização do sector formal e a avaliação da força do sindicalismo estarão

em parte dependentes da capacidade de organização em torno dos “novos”

contingentes de trabalhadores. Assim, é exigida às estruturas sindicais a

reformulação dos seus objetivos e a reestruturação dos canais de comunicação

e de tomada de decisão (de índole hierarquizada e burocrática), caminhando

no sentido de um sindicalismo do tipo horizontal, ao mesmo tempo que são

reavaliadas as formas de luta e de ação coletiva para que se adaptem às

especificidades do contexto atual e recuperem a sua eficácia (COSTA, 2008;

HYMAN, 1994). A nova morfologia do trabalho, apesar dos efeitos negativos

que inflige sobre o movimento sindical, não impõe o fim dos tradicionais órgãos

de representação dos trabalhadores, significando um novo desenho das formas

de representação das forças sociais do trabalho (ANTUNES, 2009). A

representação dos trabalhadores precários por parte das estruturas sindicais

reveste-se de dificuldades e de uma temporalidade próprias, representando

uma fonte de tensões no interior destas estruturas. (BÉROUD, 2009). Nesse

sentido, é necessário que esta questão ganhe carácter prioritário, refletindo-se

em mudanças no discurso sindical e em formas de ação mais adequadas.

110

3. Precarização do trabalho e a nova questão salarial: que

consequências?

A precariedade laboral reflete-se sobre a vida dos indivíduos,

configurando uma condição que define a identidade e o modo de vida e que

transpõe os limites da esfera do trabalho. Os problemas associados ao trabalho

precário são inúmeros - os salários baixos, os tempos e intensidade do

trabalho, instabilidade laboral, entre muitos outros – e sua expansão

desestrutura a universalidade atribuída à condição salarial moderna,

redefinindo tanto as suas características como os limites, retirando-lhe o

estatuto de norma e dissolvendo o vínculo que a associava à ideia de

progresso que dominou grande parte do século XX. Um dos aspetos que

assume maior preponderância no contexto atual é a forma como o estatuto

precário de emprego limita o acesso aos direitos sociais e influi negativamente

sobre a constituição da identidade social.

A precariedade pode derivar, segundo Serge Paugam (2000), por um

lado, do tipo de relação com o emprego e, por outro, do tipo de relação com o

trabalho. A primeira, a relação com o emprego, inscreve-se na lógica de

proteção do Estado – providência que assegura aos cidadãos o acesso a

direitos sociais em função da sua contribuição em termos da atividade

produtiva, mas também em função do princípio da cidadania. A segunda

insere-se na lógica produtiva da sociedade industrial, na medida em que esta

faz de cada indivíduo um produtor potencial que adquire a sua identidade e o

sentimento de ser útil por meio do princípio de complementaridade de funções,

reportando-se à verificação de más condições de trabalho e de salários baixos.

Esta definição de precariedade depende da especificidade das realidades

nacionais. Nesse sentido ser precário no Brasil ou em Portugal será diferente

de ser precário, por exemplo, no Reino Unido.

A precariedade profissional deve ser analisada nestas duas vertentes

que são também as duas dimensões fundamentais da integração profissional,

por meio das quais é construída a subjetividade do trabalhador. A divisão

apresentada é pertinente na medida em que a análise da relação com o

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

111

trabalho permite apreender as dimensões de satisfação ou de insatisfação dos

assalariados relativamente ao exercício de uma determinada função, enquanto

a análise da relação com o emprego permite distinguir os assalariados segundo

o grau de estabilidade no que diz respeito à situação profissional, sendo a

estabilidade definida pela natureza do contrato de trabalho. A precariedade do

emprego torna mais provável a verificação da precariedade das condições de

vida e, tendo em conta a forma durável que assume atualmente (fruto de uma

imposição alheia à vontade do trabalhador), configura uma forma de

exploração.

Nos últimos anos, a estratégia de diminuição dos custos do trabalho

com vista à diminuição dos números do desemprego – sob argumento que tal

estimulará a criação de novos postos de trabalho no contexto de crise

económica como o enfrentado hoje em dia na zona Euro – é um recurso cada

vez mais adotado pelas empresas, grandes grupos económicos e, até mesmo,

pelo Estado. No entanto, este tipo de políticas apenas têm contribuído

ativamente para a criação de um número cada vez maior de empregos de

estatuto precário. Isto não significa apenas que os novos empregos criados são

precários, mas também que se verifica uma tendência de precarização dos já

existentes. A inserção no mercado de trabalho rege-se cada vez mais pelo

conceito de empregabilidade que, por um lado, traduz a exigência de novas

qualificações para o mundo do trabalho, e por outro, tende a ocultar “que seu

substrato estrutural-organizacional, o toyotismo, possui como lógica interna a

produção enxuta e uma dinâmica social de exclusão que perpassa o mundo do

trabalho”, configurando, nesse sentido, uma operação ideológica por meio da

qual a crescente polivalência do homem – trabalhador (no âmbito das novas

habilidades cognitivas e comportamentais exigidas) acaba por redundar no

estranhamento e na alienação e no acentuar da instrumentalidade incorporada

pelo trabalhador (ALVES, 2007, p. 245).

A precariedade corresponde ao alargamento da zona intermediária

entre o emprego estável e o desemprego, e reforça a flexibilidade na periferia

do mercado de trabalho. Para certas categorias de trabalhadores é grande o

risco de se manterem de forma durável nesse segmento periférico e de

conhecerem temporariamente várias experiências de desemprego. Castel

112

(2010, p. 29) afirma que nas últimas décadas tem vindo a desenhar-se uma

“zona híbrida da vida social entre trabalho e não trabalho, segurança e

assistência, integração e desfiliação”, onde faltaram as condições para o

indivíduo construir a sua independência económica e social. Nesse sentido o

autor fala de uma modernidade tardia permeada de “zonas cinzentas”.

A zona intermediária mencionada não pode ser desligada da

construção de um profundo sentimento de incerteza no que diz respeito à

forma como o futuro é representado e à influência que pode ser exercida sobre

ele. No início dos anos 1970, a sociedade no seu todo estava comprometida

com uma dinâmica crescente que associava o desenvolvimento económico e o

aperfeiçoamento social, o progresso e a melhoria das condições de vida.

Reinava a crença inabalável de que o futuro seria sempre melhor que o

passado e o presente. Foi também esta ideia que sustentou as perspetivas de

mobilidade ascendente partilhadas por vários segmentos da população

(especialmente, os jovens), fundadas na crença que os filhos terão sempre

melhores condições de vida que os seus pais. Com base nestas convicções

era possível construir projetos de vida, trajetórias, que partilhavam o facto de

serem de “signo ascendente”.

Multiplicam-se os indícios que demonstram que, após um período

marcado por uma mobilidade ascendente sustentada e considerável, entramos

agora numa dinâmica de mobilidade descendente. O período atual é marcado

pelo abandono do modo de produção e de regulação próprios do período

histórico do capitalismo industrial, bem como da gestão regulada das

desigualdades sociais que havia sido alcançada. O compromisso social do

capitalismo industrial tem por base a existência de possibilidades concretas da

melhoria da situação de cada categoria social por meio da consolidação de um

conjunto de conquistas, com destaque para o salário mínimo e a indexação

segundo o crescimento, um direito de trabalho que protege contra as

arbitrariedades patronais e um sistema de proteção contra os principais

avatares da existência. O conjunto da sociedade encontrava-se envolvido em

sistemas de regulações coletivas que preservavam uma certa redistribuição

dos recursos e, mais do que isso, garantiam proteções estendidas a maioria

dos cidadãos. Existia, portanto, uma lógica de compromisso social que envolvia

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

113

e harmonizava interesses antagónicos. O modelo de regulação

socioeconómica, centrado numa forma de subordinação estandardizada e na

institucionalização dos atores coletivos no quadro do Estados nacionais, em

que se baseou o direito do trabalho desde o início do século XX, encontra-se

claramente em crise (SUPIOT, 1999), colocando em xeque toda uma forma de

organização social.

A consistência da sociedade salarial dependia da inscrição dos seus

membros em coletivos. Com o compromisso construído na esteira do Estado

social “o assalariado deixou de ser um indivíduo isolado, individualizado”

(CASTEL, 2010, p. 24). O trabalhador estava inscrito no sistema de garantias

coletivas do estatuto do emprego e da proteção social. O capitalismo pós –

industrial vem alterar radicalmente o equilíbrio encontrado. Intensificam-se as

dinâmicas de descoletivização e de individuação, e é no interior destas que

situamos o problema levantado pela precarização das relações laborais. A

dinâmica de individuação tem efeitos contrastantes: maximiza as possibilidades

de alguns indivíduos ao mesmo tempo que invalida as de outros. Em última

instância tende a cindir dois perfis de indivíduos: os que têm à sua disposição

todos os recursos e os a quem faltam os meios para realizarem as suas

aspirações sociais (IDEM). Constata-se, para além de um efetivo aumento das

desigualdades, o seu agravamento pela transformação do regime de proteção

enquadrado pela sociedade salarial, passando a existir formas inferiores de

proteção.

Os efeitos ao nível da reconfiguração profunda que se produz na

organização do trabalho e nas carreiras profissionais são preocupantes. No

plano da organização do trabalho assiste-se à individualização crescente das

tarefas que vem exigir mobilidade, adaptabilidade e responsabilidade aos

colaboradores. Ora, este suposto dinamismo exerce uma pressão muito forte

sobre a maioria dos setores da organização do trabalho. Os bastiões da era

taylorista (principalmente a grande industria transformadora) são

completamente reconfigurados em função das novas exigências e sob a

pressão dos novos princípios de organização. As empresas passam a recorrer

de forma generalizada à utilização de trabalhadores temporários e de

114

contratados a termo em detrimento dos contratos sem termo, e a terceirização

é praticada em grande escala.

As repercussões destas transformações são evidentes: os antigos

coletivos de trabalho deixam de funcionar e os trabalhadores passam a estar

em competição constante entre si, desestabilizando a estrutura das

solidariedades operárias. As regulações coletivas destinadas a dominar todos

os avatares da existência caminham a passos largos para a extinção, deixando

os indivíduos praticamente entregues à sua sorte. A referência ao risco torna-

se por isso omnipresente e “desemboca numa representação totalizadora da

sociedade contemporânea como uma sociedade do risco, o que é outra

maneira de dizer que vivemos tempos incertos”, verificando-se a fragilização da

mutualização de todos os riscos (IDEM, p. 30). Convém ainda referir que a

precarização do trabalho ameaça a sustentabilidade do sistema de proteção

social, uma vez que este último se baseia amplamente nas cotizações salariais.

Neste quadro, a proliferação de riscos de várias ordens contribui para

o questionamento das competências e capacidades do Estado social para lidar

com a emergência do novo panorama pautado pela amplificação das

desigualdades sociais e pela expansão da precariedade laboral. Esta última,

em vez de constituir um registo transitório, parece assumir um caráter

permanente, formando-se uma espécie de infra salariato no interior do

salariato. Este quadro corresponde à emergência de uma sociedade do risco,

cuja especificidade reside no facto de ser colocada de parte qualquer

recuperação das certezas oferecidas pela sociedade salarial (BECK, 1998,

2000).

De uma forma geral, podemos dizer que estamos perante a

implantação de um novo regime em que proliferam formas diversas de

subemprego – não estandardizado e fragmentado -, caracterizadas pela

elevada flexibilidade, intensidade temporal e descentralização geográfica, e em

que é notória a ausência de regulamentação no que toca à proteção do

trabalhador. A pressão que as taxas de desemprego elevadas exercem neste

ponto é enorme: o desemprego estrutural é o argumento legitimador da

flexibilização do direito do trabalho e da emergência de formas atípicas de

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

115

emprego. Nesse sentido, o trabalho precário situa-se no espaço de

desestruturação das fronteiras entre o trabalho e o não – trabalho.

4. A precarização do trabalho em Portugal

A expansão da precariedade laboral em Portugal tem sido notória

desde há alguns anos a esta parte. A grave crise económica que se vive

redunda em estagnação e retrocesso das condições de vida das camadas

médias da população que, ao longo das últimas duas décadas, vinham

conquistando e incorporando padrões de vida e de consumo que se afastavam

cada vez mais das características de um proletariado fabril. Esta ascensão foi

consequência do crescimento económico, sustentado ou não, proporcionado

pela adesão à CEE (Comunidade Económica Europeia) em 1986, a agora

União Europeia (EU). Também as classes mais baixas da população veem

agravadas as suas condições de vida e são conduzidas para posições

próximas ou abaixo do limiar da pobreza. Este quadro, em conjunto com outros

aspetos, deita por terra as aspirações de Portugal à etiqueta de “país central” e

consolida a sua posição como país semi-periférico. Em matéria laboral, este

país do sul da Europa aproxima-se daquilo que se pensava ser apanágio

apenas dos países outrora colonizados e depois subdesenvolvidos: as relações

de produção capitalistas tendem a reproduzir as bases materiais da produção

massificada do trabalho barato e superexplorado (BRAGA, 2012). O modelo

económico que agora é, não proposto, mas imposto aos países que se situam

na chamada cauda da Europa, entre os quais Portugal, assenta em políticas de

baixo preço da força de trabalho e de aprofundamento da precarização do

trabalho e do emprego.

Estas tendências têm reflexos evidentes sobre a legislação laboral,

moldando-a ao sabor dos seus intentos, de forma a suprir as necessidades da

ordem neoliberal em ascensão. Em Portugal, de acordo com o estudo realizado

por Rosa e colaboradores (2003) 51 , existem três formas jurídicas que

                                                            51 O estudo coordenado por Maria Teresa Serôdio Rosa foi realizado entre Outubro 1999 e Dezembro de 

2000, mas a sua atualidade mantém‐se no que diz respeito à definição jurídica das categorias de 

trabalho precário, bem como relativamente aos efeitos do emprego precário sobre os trabalhadores. 

Acresce ainda o facto de fornecer uma interessante e válida base de comparação relativamente à 

situação atual.   

116

conformam modalidades de trabalho precário: os contratos a termo (certo ou

incerto), o trabalho temporário e o falso trabalho independente ou por conta

própria (comummente referenciado como falsos recibos verdes). Abordaremos

as três de forma tão sintética quanto possível.

O contrato a termo foi criado para suprir as necessidades de

substituição temporária de um trabalhador efetivo ou para fazer face ao

acréscimo excecional do volume de trabalho, podendo configurar também uma

medida excecional de combate ao desemprego. Atualmente é prática corrente

e corresponde à grande maioria das situações de contratação pois os custos

para a entidade contratante são menores (ao nível, por exemplo, das

compensações por despedimento). Os trabalhadores temporários são

abrangidos por uma relação contratual triangular: trabalhador – empresa de

trabalho temporário (ETT) - empresa utilizadora do serviço. O trabalhador não

possui qualquer vínculo com a empresa utilizadora do serviço que presta, no

entanto encontra-se sujeito às normas de trabalho e disciplinares desta. Dado

que o seu contrato é com a ETT e esta se apropria de uma grande parte do

salário do trabalhador, a remuneração é por norma muito baixa. A proteção no

desemprego e na doença são inexistente e os trabalhadores são submetidos a

condições de elevada precarização, com exacerbamento da instabilidade

económica e da vida profissional e pessoal, tendo impactos óbvios na saúde e

qualidade de vida do trabalhador. Os falsos trabalhadores independentes ou

falsos recibos verdes destacam-se por exercerem a sua atividade

completamente à margem de qualquer integração nos quadros da empresa ou

entidade à qual prestam um serviço. Na grande maioria das vezes o trabalho

independente corresponde a uma relação de trabalho dependente (por conta

de outrem), mas o trabalhador não acede direitos e garantias associados a

uma relação de trabalho dependente. Os trabalhadores a recibos verde são,

em termos legais, “patrões deles próprios” e, nessa medida, os encargos que

asseguram o acesso às prestações sociais ficam à responsabilidade do próprio

trabalhador.

Estas modalidades contratuais têm, cada uma à sua maneira,

fomentado a precarização generalizada do trabalho e do emprego e a erosão

da condição salarial a um ritmo acelerado. Desde os anos 1980 têm vindo a ser

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

117

impulsionadas formas de emprego que se destacam pela facilidade de

desvinculação da relação contratual que permitem, bem como por “aliviarem”

os encargos que deveriam ser assumidos pela entidade empregadora, com

clara desvantagem para os trabalhadores. A generalização de modalidades

contratuais associadas a formas inferiores de proteção ocorre a par do

agravamento de mais uma crise do capital e mascara-se de instrumento de luta

contra o desemprego. Por outro lado, estamos cada vez mais perante quadros

legais (vejam-se as recentes alterações ao Código do Trabalho Português) que

legitimam o recurso à contratação por períodos cada vez mais curtos, com o

consequente aumento da insegurança e desproteção do trabalhador.

Este quadro de precarização intensa das relações laborais, em

conjunto com a reconfiguração produzida pela reestruturação produtiva,

desemboca na permeação e transformação das trajetórias profissionais, e das

expectativas construídas em torno destas, pelos efeitos devastadores da

precariedade laboral. É possível falar de um modelo biográfico e de carreiras

profissionais descontínuas que deixam de estar inscritas nas regulações

coletivas do trabalho estável. Esta descontinuidade das trajetórias e a fluidez

dos percursos, para além das consequências desestruturantes ao nível das

expectativas e projetos construídos pelo indivíduo trabalhador, repercutem-se

na desestabilização do próprio estatuto do emprego (BECK, 1998).

Durante o último ano, o conjunto da sociedade europeia, e em

particular a portuguesa, viu-se assolada pelo espectro da austeridade. Para

Ferreira (2012), austeridade significa o processo de implementação de políticas

e de medidas económicas que conduzem à disciplina, ao rigor e à contenção

económica, social e cultural, e a sua especificidade advém do reconhecimento

de ser através dos indivíduos e das suas privações subjetivas e objetivas que

se encontram as soluções para a crise composta pelos mercados financeiros,

défice público do Estado e modelos e económicos e sociais seguidos nos

últimos anos. Esta crise tem vindo a ser utilizada como mais uma oportunidade

de subordinar os trabalhadores individuais, os governos e mesmo sociedade

inteiras ao ritmo dos mercados do capitalismo global. Ora, neste quadro, a

situação de todos os trabalhadores, e em particular a dos precários, conhece o

exacerbamento da sua gravidade. Confirmam-se os piores receios das classes

118

trabalhadoras: cortes salariais, perda de benefícios, recuo acentuado dos

direitos laborais e supressão de formas de conflito e de regulação laboral,

despedimentos em massa. Estabelece-se um modelo político – económico que

procede “à implementação de um arrojado projeto de erosão dos direitos

sociais e de liberalização económica da sociedade” e que produz “uma

perturbação coletiva dos padrões institucionais e individuais” (IDEM, p. 13). Tal

significa que quaisquer certezas ou projetos que os indivíduos pudessem ter

ficam agora em suspenso pois o modelo de sociedade que conhecíamos está

em vias de desaparecimento.

As trajetórias de vida precárias ou precarizantes caracterizam-se,

portanto, pela incerteza, pelo aumento e diversificação dos riscos, pela falta de

perspetivas de futuro (em particular das gerações mais jovens), ditada pela

falta de emprego, pela extrema dificuldade de autonomização pessoal e,

consequentemente, a diminuição das probabilidades de um futuro sustentável,

estável e previsível. Está cada vez mais em causa “a capacidade de viver o

presente e poder planear o futuro com um nível módico de segurança e

previsibilidade” (ALVES, BATISTA, CARMO, 2011, p. 2). Nesse sentido, o risco

eminente de ficar sem trabalho é omnipresente e marca a reflexividade do

indivíduo, constrangendo-o nas suas escolhas e na projeção do futuro. Por

isso, a precariedade transcende a questão laboral, expandindo-se pelas várias

dimensões da vida social e acabando por configurar um modo de vida que,

apesar de se generalizar, atinge sobretudo a população mais jovem.

5. Precariedade, austeridade e ação coletiva

As linhas precedentes traçam um quadro negro e de gritante

retrocesso que, até há bem pouco tempo, fazendo jus aos brandos costumes

do povo português, era imposto de forma relativamente incólume, despoletando

agitações que pouco ou nada abalaram o poder. Estas últimas não

conseguiram constituir-se como atores coletivos com um mínimo de

organização e ancoragem ideológica que lhes permitissem disputar as

orientações políticas, económicas e sociais em torno das quais se verifica o

presente embate. Este “fracasso” é apenas relativo se considerarmos que,

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

119

apesar da escassez de mudanças de facto no interior das instituições e sistema

político, se operaram mudanças ao nível da hegemonia do discurso dominante.

O movimento sindical e os movimentos sociais de combate à precariedade e

anti-austeridade têm-se deparado tanto com dificuldades como janelas de

oportunidade em resultado do período de grande instabilidade, tanto política

como económica, que se vive em Portugal.

Contrariamente ao que se poderia pensar, o aumento de exploração

que acompanha a precarização das relações laborais não é correlativo do

desenvolvimento da consciência de classe esperada ou desejada. Antes pode

ser um obstáculo. Como refere Alves, “as novas clivagens salariais implodem o

núcleo orgânico do salariato organizado de base fordista-keynesiano, agentes

do movimento sindical e político da classe do proletariado” (2007, p. 88-89). No

plano político-ideológico, o surgimento do salariato precário significa a perda

relativa do referencial orgânico de classe, principalmente quando falamos de

um contingente de trabalhadores precários com elevadas qualificações

escolares e profissionais, confinado a ocupações mal remuneradas e regra

geral no setor dos serviços, esbatendo-se a visão dos interesses históricos de

classe. Também Antunes (2000) refere as implicações da crise que se abateu

sobre o movimento operário e sindical, considerando que esta afetou tanto a

forma de ser (materialidade) da classe trabalhadora, quanto as esferas

subjetiva, política e ideológica inerentes às ações e práticas concretas.

A integração e participação dos trabalhadores precarizados no

movimento sindical é um problema de fundo para o qual contribuem vários

fatores que relevam tanto das dinâmicas de individuação e de precarização dos

vínculos laborais como da própria estrutura das organizações sindicais. A crise

do movimento sindical a que nos referimos anteriormente tem uma importância

cabal neste ponto, uma vez que, dado o ritmo das mudanças em curso, as

estruturas sindicais não estarão plenamente sintonizadas com as novas

realidades laborais, principalmente no que diz respeito às modalidades

precárias de contrato de trabalho, domínio em que persistem realidades

ocultadas por subterfúgios legais.

120

Os trabalhadores precários criticam e denunciam o que consideram ser

o alheamento e desadequação das estruturas sindicais face às realidades

emergentes. Esta insatisfação produz o afastamento destes trabalhadores

relativamente às estruturas e discurso sindicais, e que tem expressão nos

índices de sindicalização. O estudo de Rosa e colaboradores (2003) citado

anteriormente revela que, no início dos anos 2000, já eram bem patentes as

tendências que se acentuaram ao longo da última década e que revelam as

dificuldades sentidas pelos trabalhadores precários. O estudo indica que a

sindicalização era prática comum entre os trabalhadores ditos estáveis, sendo

que a maioria (60%) podia ser enquadrada nesta situação. O valor referente ao

mesmo indicador sofria um decréscimo drástico no caso dos trabalhadores que

se encontravam em situação de precariedade, não chegando a atingir os 20%.

Tendo em conta o contexto atual, é expectável que esta situação se tenha

agravado.

Como principais razões para a não sindicalização dos trabalhadores

com vínculos contratuais precários podem ser mencionados a falta de cultura

sindical associada à falta de informação, o receio de represálias por parte dos

empregadores, bem como a descrença acerca do papel exercido pelos

sindicatos. Frases como “os sindicatos não fazem nada” acrescidas de “que

adianta agora ser sindicalizado se os patrões têm a faca e o queijo na mão”

são muito frequentes e refletem o afastamento, nomeadamente dos mais

jovens, relativamente à cultura sindical. Como é referido por Estanque:

(…) a acção sindical tem sido incapaz de pôr no terreno iniciativas

que mobilizem os setores mais precários, mais carenciados e mais jovens.

Estes, deixados ao abandono e absolutamente dependentes de hierarquias

“sindicalofóbicas” e das novas formas de hiperexploração – que reinam, por

exemplo, nos call centres e em muitos outros contextos laborais onde o

contrato individual precário se tornou a regra -, simplesmente abdicam de

procurar a filiação sindical e não acreditam no sindicalismo.(ESTANQUE, 2006,

p.18).

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

121

A interação entre os fatores enunciados produziu algumas mudanças

no plano da ação coletiva referente às questões laborais, pelo que o

movimento sindical não detém mais a exclusividade nesse domínio. Sob a

influência das tendências materializadas nos novos movimentos sociais,

Portugal tem vindo a ser, nos últimos anos, palco de emergência de

movimentos ou coletivos dinamizados por trabalhadores precários (IDEM,

2011), que desempenham um papel importante ao nível da inscrição da

precariedade laboral nos domínios social e político, bem como na

desmistificação da operação ideológica por detrás da imposição da sociedade

da austeridade (FERREIRA, 2012)e dos argumentos da inevitabilidade das

transformações em curso.

O movimento de combate à precariedade (animado por diversas

organizações e coletivos como os Precários Inflexíveis, o Ferve ou a plataforma

MayDay) reclama, de uma forma geral, o reconhecimento da centralidade do

problema da precariedade na sociedade contemporânea e procuram

impulsionar a adoção de medidas concretas no âmbito do seu combate. Ao dar

visibilidade ao fenómeno da precariedade laboral suscitou um debate e reflexão

amplos acerca do carácter central do trabalho nas experiências individuais e

coletivas, e desencobriram a dupla dimensão que este comporta - a

precariedade não se reporta apenas à questão laboral, é também precariedade

da vida -, reforçando ainda mais a ideia de que estamos perante um fenómeno

complexo e extremamente heterogéneo. A luta contra a precariedade não se

restringe à luta pelo trabalho digno, é também uma luta pelo direito à vida, ou

melhor dizendo, pelo direito a uma vida com qualidade e dignidade.

Ao movimento de combate à precariedade somou-se, no primeiro

trimestre de 2011, mais concretamente a 12 de Março52, um novo protagonista:

o movimento anti-austeridade. Esta primeira “aparição, ainda que incipiente,

logrou o alegado “despertar” da sociedade civil ou, pelo menos, de uma parte

desta. Esquecendo a preocupação com a identificação de mudanças

institucionais diretamente promovidas pelo protesto, este último preparou o

                                                            52 O protesto ficou conhecido como “Geração À Rasca” e incidiu, em particular, sobre o esgotamento do 

regime democrático, a crise económica, o desemprego e a ausência de perspetivas de futuro. 

122

terreno para um ciclo de mobilização intenso e protagonizado pelos

movimentos anti-austeridade e sindical. Estes conseguiram colocar nas ruas de

várias cidades do país centenas de milhar de pessoas que exigiam a demissão

do governo e o fim do programa de assistência financeira a que o país se

encontra sujeito. O movimento anti-austeridade, com destaque para o seu

grande protagonista, o “Que Se Lixe a Troika”53 (QSLT), surge como reação à

imposição da austeridade cega pelo governo de coligação PSD/CDS-PP54.

O ano de 2012 e o primeiro semestre de 2013 foram o período em que

a contestação subiu de tom e a oposição à imposição de uma sociedade da

austeridade ganhou força. Amplos setores da sociedade civil, em conjunto com

o movimento sindical, mobilizaram-se e a contestação não esmoreceu desde

então. Sucederam-se, desde Março de 2011, 4 greves gerais (em 24 de

Novembro de 2011, 14 de Novembro de 2012, 22 de Março e 27 de Junho de

2013), inúmeras greves setoriais, ações de luta, entre outras. No entanto,

apesar do crescendo de mobilização, a política de austeridade continuou a sua

escalada até níveis insustentáveis.

Tendo em conta a acelerada deterioração das relações de trabalho, o

cenário de precarização generalizada e a amplificação da crise no território

europeu, o campo empírico suscita várias questões no que concerne os

contornos da ação levada a cabo pelos dois atores referidos. Em particular,

questiona-se a possibilidade destes enveredarem por uma estratégia de

“unidade na ação” ou de articulação, voltada para o combate às mudanças que

estão a ser impostas no quadro das sociedades da austeridade e que

comportam o agravamento da precariedade laboral.

As características organizacionais diferenciadas que caracterizam os

movimentos sociais e os sindicatos colocam questões que têm impacto sobre a

natureza da relação estabelecida. A cooperação com estruturas verticais e

hierárquicas como os sindicatos pode implicar a mudança no sentido de um

maior grau de formalização por parte dos movimentos sociais em questão. As

                                                            53 Nome dado à tríade FMI‐BCE‐CE – respetivamente, Fundo Monetário Internacional, Banco Central 

Europeu e Comissão Europeia ‐, responsável pelo programa de assistência financeira a Portugal. 

54 Respetivamente, Partido Social Democrata e Partido do Centro Democrático Social. 

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

123

lideranças não definidas ou intercambiáveis tanto do movimento de combate à

precariedade como do anti-austeridade têm despertado atitudes de

desconfiança por parte do movimento sindical. Como a definição dos seus

porta-vozes obedece a uma lógica rotativa, não é raro o desenvolvimento, por

lideranças sindicais, de atitudes desconfiança em relação às organizações que

integram ambos os movimentos. A tomada de decisão em estruturas informais

não segue procedimentos rigorosos definidos estatutariamente, variando,

portanto, de acordo com os envolvidos, tornando o processo e os resultados

mais imprevisíveis. Além disso, códigos de linguagem e discurso nas

organizações informais são mais instáveis, colocando barreiras de

comunicação.

A disseminação do movimento anti-austeridade e amplo apoio social

que tem recebido chamaram a atenção do movimento sindical. Sindicatos e

centrais sindicais, em particular a CGTP 55 , foram surpreendidos pela

capacidade de mobilização demonstrada. Apesar das grandes diferenças em

relação à cultura organizacional, modos de ação e estratégias e, em termos

ideológicos, o movimento operário teve de reconhecer o impacto alcançado e

acabou por expressar seu apoio ao movimento anti-austeridade. Relativamente

à primeira mobilização deste ciclo, a do dia 12 de março, que classificámos

como “insipiente”, a central sindical nunca formalizou o seu apoio. A

"espontaneidade" atribuída à mobilização contrastava com a forte organização

do movimento sindical e, nesse sentido, o sindicalismo optou por distanciar-se

do mesmo. Além disso, a ideia que a mobilização de 12 de março havia sido

organizada por setores da classe média implicou a sua identificação com

expressões de radicalismo de classe média, colidindo com os princípios

ideológicos do movimento operário. Em causa estavam as dicotomias

revolução versus reformismo, e ação instrumental versus ação expressiva.

Mais tarde, já em 2012 e 2013, com o crescimento da contestação à

austeridade (que incluiu duas grandes manifestações, a 15 de Setembro de

2012 e a 2 de Março de 2013), o posicionamento do movimento sindical, mais

concretamente da CGTP, mudou radicalmente, no sentido da formalização do

apoio às mobilizações da sociedade civil.                                                             55 Confederação Geral de Trabalhadores Portugueses. 

124

O agravamento da crise foi determinante para esta mudança. A CGTP

reconheceu o potencial destas mobilizações relativamente à formação de uma

frente popular que visasse rejeitar a austeridade, ou melhor, de um bloco

contra-hegemónico capaz de desconstruir o consenso em torno da

inevitabilidade da austeridade. Tendo em conta estes elementos, as

possibilidades de cooperação entre estes atores multiplicam-se muito embora

persistam, de ambas as partes, reservas que relevam dos âmbitos

organizacional e estratégico, bem como ideológico.

6. Conclusão

As mudanças resultantes da reestruturação produtiva e da aplicação

das novas tendências de organização do trabalho transformaram de forma

inequívoca a configuração das relações laborais e do mundo do trabalho no

seu todo. Tiveram um impacto marcadamente negativo no movimento sindical,

que tem vindo a demonstrar dificuldades crescentes em lidar e atuar no

contexto presente, situação que é agravada pela crise que se vive um pouco

por toda a parte, com destaque para a zona Euro, que a vive com grande

intensidade. Em particular, a flexibilização e precarização do trabalho e do

emprego, as novas técnicas de gestão, os índices elevados de desemprego

estrutural e a mobilidade da força de trabalho, entre outros fatores, subtraem

poder negocial aos sindicatos, debilitando-os e comprometendo a essência

combativa que os caracterizava, e, de uma forma geral, contribuem para o

esmorecimento da vontade dos trabalhadores em se organizarem. A atual

orientação estratégica do movimento sindical tem tradução na submissão das

suas estruturas à posição de instrumentos da ação reguladora do Estado.

Não restam dúvidas que nova conjuntura potencia a fragmentação da

classe trabalhadora e tem efeitos extremamente negativos sobre a

solidariedade sindical, uma vez que promove ativamente o individualismo e

fomenta a competitividade entre trabalhadores. A nova morfologia do trabalho

significa um novo desenho das formas de representação das forças sociais do

trabalho, como refere Ricardo Antunes. E, no meio da tempestade que assola a

organização coletiva dos trabalhadores, a situação que atinge os trabalhadores

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

125

precarizados merece destaque. São visíveis as dificuldades das estruturas

sindicais no que toca a representação deste setor da força de trabalho. Daí ser

necessário que esta questão assuma caráter prioritário, refletindo-se numa

mudança do discurso sindical e das formas de ação, adequando-os às novas

realidades.

Todas as questões referentes às transformações em curso e à crise do

sindicalismo são amplificadas quando se fala de trabalhadores precários. Para

além da descrença acerca da efetividade e pertinência da ação sindical, estes

trabalhadores encontram-se sujeitos a dificuldades acrescidas no que diz

respeito à filiação sindical. Aqui entram em jogo dois tipos de variáveis: por um

lado, a natureza do vínculo contratual (precário) que os abrange e as trajetórias

profissionais incertas e descontínuas; e, por outro, o receio das represálias

dirigidas pelas entidades empregadoras normalmente hostis ao exercício da

atividade sindical. É facto que, no contexto atual, ambas as variáveis se

exacerbam no sentido negativo: cada vez mais os vínculos são precários e as

trajetórias incertas, e acentuam-se os obstáculos à atividade sindical bem como

as atitudes negativas dos empregadores face às mesmas. Por isso, e também

devido à descrença no papel dos sindicatos e acerca da sua adequação às

novas realidades laborais, são cada vez mais aqueles que se aproximam de

outras formas de organização e ação coletiva.

As novas formas de organização e ação coletiva afastam-se da

tradição sindicalista e do movimento operário. Buscam a autonomia face à

esfera institucional e procuram fugir aos perigos da burocracia. Entre elas são

comuns os sentimentos de desconfiança e de descrença no que concerne as

estratégias e ação sindicais. Sublinham o desajustamento e algum alheamento

das mesmas face às especificidades do trabalho e do emprego precários. O

movimento sindical, muito embora nos últimos tempos venha exibindo uma

maior motivação para a abertura e para a incorporação de novas questões e

lutas, continua a centrar-se nos seus objetivos, linguagem e estratégias muito

próprias, como a manutenção das convenções coletivas de trabalho, dos

contratos a termo (certo ou incerto), a luta pelos aumentos salariais, entre

muitas outras. Contudo, é inegável que no centro deste discurso esteve sempre

a luta pelo direito ao trabalho e pelo trabalho digno/decente e a recusa do

126

ideário austeritário. A forma como estas questões são colocadas pelos dois

atores difere. Apesar da linguagem utilizada por ambos tender a aproximar-se

neste momento de aguda crise económica e social, em que a contestação ao

governo e à política de austeridade cresce de dia para dia, prevalecem aspetos

que produzem uma diferenciação identitária mais ou menos forte e que

contribuem para a manutenção de um certo distanciamento entre estes

movimentos e o movimento sindical, minando a identificação dos primeiros com

os segundos. Em suma, o contexto atual, representativo de inúmeras

mutações, está a colocar à prova o movimento sindical e o conjunto da

sociedade civil.

Referências

ALVES, Bruno Almeida; CANTANTE, Frederico; BAPTISTA, Inês; CARMO,

Renato Miguel do. Jovens em Transições Precárias.Trabalho, Quotidiano e

Futuro. Lisboa: Editora Mundos Sociais, 2011.

ALVES, Giovanni. Dimensões da Reestruturação Produtiva: Ensaios de

Sociologia do Trabalho. 2. ed. Londrina: Editora Praxis, 2007.

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho?Ensaios sobre as Metamorfoses e a

Centralidade do Mundo do Trabalho. São Paulo: Ed. Cortez / Ed. Unicamp,

1995.

_______________. Trabalho e precarização numa ordem neoliberal. In. Pablo

Gentil, Gaudêncio Frigotto. (Org.). A Cidadania Negada - Políticas de

Exclusão na Educação e no Trabalho. Buenos Aires: Coleção Grupos de

Trabalho - CLACSO, 2000, v. 1, p. 35-48.

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

127

_______________. O Trabalho, Sua Morfologia e a Era da Precarização

Estrutural.Theomai, p. 47-57, 1º semestre, 2009. Disponível em

http://www.revista-theomai.unq.edu.ar/numero19/ArtAntunes.pdf. Acessadoem

27 Jul. 2013.

BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad.

Barcelona: Paidós, 1998.

___________. The Brave New World of Work.Cambridge: Polity Press, 2000.

BÉROUD, Sophie. Organiser les inorganisés: Dês expérimentations syndicales

entre renouveau de pratiques et échec de la syndicalisation.Politix, vol. 22, n.

85, p. 127-146, 2009.

BIHR, Alain. Du “grand soir” à “l´alternative”: le movement ouvrier européen

en crise. Paris: Editions Ouvrières, 1991.

BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Eve.The New Spirit of Capitalism.London:

Verso, 2005.

BRAGA, Ruy. Brazilian labour relations in Lula’s era: telemarketing and their

unions. In: MOSOETSA, Sarah; WILLIAMS, Michelle (Eds.). Labour in the

Global South:Challenges and alternatives for workers. Geneva:

InternationalLabour Office, 2012. p. 109-124.

CASACA, SaraF. Revisitando as teorias sobre a divisão sexual do trabalho.

SOCIUS. Lisboa, n. 4, 2009.

CASTEL, Robert. El ascenso de las incertidumbres. Trabajo, protecciones,

estatuto del individuo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2010.

128

CASTELLS, Manuel. A Economia Informacional. A Nova Divisão Internacional

do Trabalho e o Projeto Socialista. Cadernos CRH. Salvador, n. 17, p. 5 – 34,

1992.

CASTILLO, Juan J.: Sociología del Trabajo. CIS: Madrid, 1996.

COSTA, Hermes Augusto. Sindicalismo Global ou Metáfora

adiada:Discursos e Práticas Transnacionais da CGTP e CUT. Porto: Edições

Afrontamento, 2008.

ESTANQUE, Elísio. A questão social e a democracia no início do século XXI.

Revista Finisterra. Lisboa, vol. 55-56-57, 2006.

________________. Informalidades, precariedades e ação colectiva: luta

sindical ou novos movimentos sociolaborais? In: VÉRAS DE OLIVEIRA,

Roberto; GOMES, Darcilena; TARGINO, Ivan (Org.) Marchas e

Contramarchas da Informalidade no Trabalho:das origens às novas

abordagens. João Pessoa: Editora Universitária, 2011. p. 377-408.

FERREIRA, António Casimiro. Sociedade de Austeridade e direito do

trabalho de exceção. Porto: Vida Económica – Editorial SA, 2012.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: Uma Pesquisa Sobre as Origens

da Mudança Cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

HIRATA, Helena. Globalização e Divisão Sexual do Trabalho. Cadernos

PAGU. Campinas, 17/18, p. 139-156, 2001.

HYMAN, Richard. Changing Trade Union Identities and Strategies. In:HYMAN,

Richard; FERNER, Anthony (Org.). New Frontiers in European Industrial

Relations.Oxford: Blackwell, 1994. p. 108-139.

______________. Europeização ou erosão das relações laborais?. In:

ESTANQUE, Elísio Estanque; MELLO E SILVA, Leonardo; VERAS, Roberto,

GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ

129

FERREIRA, António Casimiro; COSTA, Hermes Augusto (Org.). Mudanças no

Trabalho e Acção Sindical: Brasil e Portugal no Contexto da

Transnacionalização. São Paulo: Cortez Editora, 2005. p. 15-44.

MOODY, Kim. Workers in a Lean World.London, New York: Verso, 1997.

PAUGAM, Serge. Le salarié de la precarité:Les nouvelles formes de

l’intégration professionnelle. Paris :PressesUniversitaires de France (PUF),

2000.

ROSA, Maria Teresa Serôdio (Coord.). Trabalho Precário.Perspectivas de

Superação. Lisboa: Observatório do Emprego e Formação Profissional, 2003.

SANTOS, Boaventura de Sousa; COSTA, Hermes Augusto. Introdução: para

ampliar o cânone do internacionalismo operário. In:SANTOS, Boaventura de

Sousa (Org.). Trabalhar o Mundo: Os Caminhos do Novo Internacionalismo

Operário. Porto: Edições Afrontamento, 2004. p. 17-61.

SUPIOT, Alain. Au – delà de l’emploi.Transformations du travail et devenir du

droit du travail en Europe. Paris : Flammarion, 1999.

VISSER, Jelle. European Trade Unions: the Transition Years. In:HYMAN,

Richard; FERNER, Anthony (Org.). New Frontiers in European Industrial

Relations.Oxford: Blackwell, 1994. p. 80-105.

WATERMAN, Peter. Emancipar o Internacionalismo Operário. In:SANTOS,

Boaventura de Sousa (Org.). Trabalhar o Mundo: Os Caminhos do Novo

Internacionalismo Operário. Porto: Edições Afrontamento, 2004. p. 337-378.