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ID 312
CLASSE E GÊNERO NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA SINDICAL PARA ASSALARIADOS RURAIS
Camilla de Almeida Silva Guilherme José Mota Silva José Fernando Souto Júnior Resumo: O Submédio São Francisco se destaca por seu dinamismo econômico associado à fruticultura irrigada, como um dos maiores produtores de frutas no país. O aumento do número de trabalhadores rurais assalariados em consequência da fruticultura irrigada garantiu a inserção de muitas mulheres nesse mercado de trabalho. A partir de então, a participação destas nas organizações sindicais da região tem se mostrado bastante significativa, pautando também políticas sindicais voltadas ao sexo feminino. Assim, temos como objetivo neste artigo a compreensão do papel desempenhado pelas mulheres nesse mercado de trabalho específico, problematizando como esta condição possibilita a constituição de uma experiência de classe singular. Objetivamos ainda discutir o processo de organização das mulheres no movimento sindical dos trabalhadores rurais, e como isso possibilitou a inserção de demandas e reivindicações específicas das trabalhadoras. Para o desenvolvimento deste trabalho foi utilizada a metodologia qualitativa, privilegiando a análise documental, sobretudo as convenções coletivas de trabalho (CCT), e entrevistas semiestruturadas. A análise do processo de desenvolvimento das CCT negociadas no Vale permite a percepção da ampliação das garantias de direitos às trabalhadoras, podendo ser compreendida tanto pelo grande número de mulheres contratadas pelas empresas fruticultoras, como também pelo ingresso destas nos sindicatos.
Palavras-chave: Sindicalismo rural; Trabalho; Mulheres; Gênero; Assalariadas.
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1. Introdução
As reflexões apresentadas neste trabalho envolvem a discussão dos
resultados obtidos nas pesquisas sobre as organizações sindicais de
trabalhadores rurais na região do Vale do São Francisco, iniciada em 2008 com
o apoio da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de
Pernambuco (FACEPE), tendo continuidade, em 2010, com financiamento do
CNPq para o projeto “Ação Sindical no Vale do São Francisco (1990 – 2008)”,
sob coordenação do professor Dr. José Fernando Souto Junior.
O desdobramento das pesquisas sobre as organizações sindicais no
Vale do São Francisco deram margem a uma análise da organização e
demandas de gênero ao mesmo tempo em que procurou evidenciar os conflitos
entre capital e trabalho, como possibilitadores da construção e
desenvolvimento de uma política sindical voltada aos assalariados e
assalariadas da fruticultura irrigada na região do Submédio Vale São Francisco,
em meados da década de 1990.
Para esta sistematização nos detivemos a uma análise de como as
especificidades das mulheres nas relações de trabalho que se estabelecem na
fruticultura possibilitam a constituição de uma “consciência de classe”
(THOMPSON, 2011). Nesse sentido, buscamos evidenciar como as cláusulas
específicas às mulheres na convenção coletiva de trabalho (CCT) da
fruticultura irrigada no Vale do São Francisco são reveladoras de acúmulo e
articulação que expressam uma consciência de classe nos moldes do que
discute Edward P. Thompson.
Nesta análise será enfatizada a ação conjunta dos Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais de Petrolina/PE e o de Juazeiro/BA. Temos como
objetivo discutir o processo de organização das mulheres no movimento
sindical rural e como isso possibilitou a inserção de demandas e reivindicações
específicas das trabalhadoras. Para tal, buscamos compreender o papel
desempenhado pelas mulheres na produção de frutas em grande escala para
exportação, problematizando como esta condição possibilitou a constituição de
uma experiência de classe diferenciada.
O marco temporal deste trabalho foi delimitado entre os anos 1994 até
2010. A razão dessa delimitação é que o ano de 1994 foi um marco para o
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início das negociações que resultaram na primeira Convenção Coletiva de
Trabalho dos Trabalhadores Assalariados da Fruticultura Irrigada.
As argumentações desse trabalho serão desenvolvidas numa análise
que procura demonstrar como a partir de uma política estatal para o
desenvolvimento da região do Vale do São Francisco, modernizaram-se os
modelos produtivos agrícolas locais, possibilitando a emergência de um polo
agrícola, que tem como principal expoente a fruticultura irrigada voltada à
exportação. Este fato repercute também nas relações de trabalho, integrando
milhares de trabalhadores e trabalhadoras, principalmente mulheres, ao
mercado formal de trabalho.
Por fim, tentamos demonstrar como a participação feminina garantiu a
inserção de uma pauta política que levou em consideração os direitos das
mulheres nas CCT, e como esse processo de acúmulo e organização da classe
trabalhadora possibilitou a constituição de uma consciência de classe.
2. Metodologia
A pesquisa sobre o estudo das relações entre classe e gênero na ação
sindical do Vale do São Francisco no pólo Petrolina/PE–Juazeiro/BA destaca
as mulheres trabalhadoras rurais e sindicalistas como sujeitos na análise desse
estudo.
Nesse sentido, os resultados dessetrabalho são frutos de uma análise
qualitativa dos dados levantados no decorrer das pesquisas. Num primeiro
momento foi realizado um levantamento bibliográfico enfatizando os aspectos
relacionados à temática da pesquisa; sendo levados em consideração os
aspectos socioeconômicos da região do Submédio Vale do São Francisco, bem
como temas correlatos à sociologia do trabalho e às relações de gênero.
A partir da coleta de dados nos noticiários locais,Gazzeta do São
Francisco, em Petrolina/PE, e Diário da Região, em Juazeiro/BA, buscamos
publicações que pudessem contribuir com a pesquisa sobre os sindicatos de
trabalhadores rurais estudados. Nos acervos dos sindicatos supracitados,
coletamos informações de documentos arquivados, tais como as atas,
periódicos e, principalmente, as convenções coletivas de trabalho.
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Na análise documental das Convenções Coletivas de Trabalho (CCT)
da fruticultura irrigada, atentamos para as conquistas da classe trabalhadora a
cada ano, enfatizando as cláusulas específicas às trabalhadoras do sexo
feminino. Também nos utilizamos de 16 entrevistas semiestruturadas e
abertas, com lideranças e dirigentes sindicais, além de autoridades do poder
público que atuaram nas negociações das convenções, a fim de suprir a
lacunas deixadas pela análise documental, com a história oral.
3. Análise
Contradições do Capital: O Vale do São Francisco
De acordo com os dados do IBGE e do Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE), a região do Submédio Vale do São Francisco apresenta um
crescimento populacional acima da média da região Nordeste. No período de
2000 a 2007, de acordo com o MTE, Petrolina/PE chegou a contabilizar um
crescimento populacional de 22,78%1. Noticiários da região divulgaram dados
do IBGE (2010) que apontam o município como detentor do terceiro maior PIB
agrícola do país, em torno de R$ 658 milhões.2
O pólo Petrolina-Juazeiro constitui o exemplo mais expressivo dos
impactosmodernizadores da agricultura irrigada nordestina, podendo ser
considerada uma das regiões agrícolas mais dinâmicas do Nordeste, devido,
principalmente, aos investimentos estatais na década de 1970, que tinham
como objetivo o desenvolvimento de projetos empresariais com a introdução
dos sistemas de irrigação.
Além disso, a participação estatal no desenvolvimento da região vai de
empresas públicas com mega projetos, como a CHESF, a Universidades como
a Universidade Estadual da Bahia - UNEB e, mais recentemente, a
Universidade Federal do Vale do São Francisco – Univasf. Agências de
desenvolvimento como Codevasf, empresas de pesquisa como a Embrapa
também fazem parte das políticas de estado para a região.
1 Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Sertão do São Francisco – PE. Disponível em: <http://sit.mda.gov.br/download/ptdrs/ptdrs_qua_territorio083.pdf>. Acesso em 23 de julho de 2013. 2Blog do Meireles. Disponível em: <http://blogdomeireles.com.br/?p=18043> Acesso em: 23 de julho de 2013.
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Como uma peculiaridade em meio ao sertão nordestino, o Vale
destacou-se durante os anos 1990 como o maior produtor e exportador de
frutas e verduras de alta qualidade no país. Os principais cultivos incluem a
manga e a uva, vendidas ainda “frescas” para a Europa e Estados Unidos,
além de outros cultivos que são destinados ao mercado nacional, como a
banana, côco, maracujá, e a acerola (DAMIANI, 2003).
As transformações na base produtiva, tendo como locomotiva a
fruticultura, promoveu um processo de reestruturação da agricultura irrigada no
submédio São Francisco. Ao mesmo tempo em que intensificou a substituição
dos pequenos produtores pelos grandes empresários fruticultores, da
automação da produção, levou a redução dos níveis de emprego e deteriorou
as condições de trabalho (CORDEIRO NETO & ALVES, 2009, p.345 apud
SILVA, 2001).
A relação de trabalho que anteriormente se dava no âmbito da
agricultura familiar, da agricultura de sequeiro, ou de fundos de pasto, deu
lugar à implantação de grandes empresas fruticultoras. Com a modernização
das relações de produção, o trabalho rural também passou por reestruturações,
assumindo características típicas do assalariamento, a exemplo de jornadas
fixas de trabalho e grande controle tanto em relação à produtividade, quanto na
qualidade do serviço.
Relações de trabalho no Vale do São Francisco: a “qualificação” do
trabalho feminino
O crescimento da agricultura irrigada, entre o final da década de 1980 e
início da década de 1990, produziu uma variedade de efeitos, dentre os quais a
geração de empregos, passando a atrair trabalhadores oriundos de áreas
distintas do Nordeste e até mesmo de outras regiões. Nesse período, a região
do submédio Vale do São Francisco foi transformada numa das poucas áreas
do Nordeste onde a taxa de imigração superava a taxa de emigração
(DAMIANI, 2003).
Esta atração populacional se dava em decorrência de uma imagem do
Vale do São Francisco propagada como sinônimo de um intenso crescimento
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econômico, que ofertava melhores condições de vida e trabalho aos migrantes,
além de grandes oportunidades de negócios para o empresariado.
Nesse contexto, as mulheres representavam uma quantidade bastante
significativa de força de trabalho a ser empregada no nascente mercado de
produção frutícola.De acordo com Cavalcanti (2012: 78),
sessenta e cinco por cento dos trabalhadores são mulheres. Dos 31 mil trabalhadores associados ao sindicato, 20.025 são mulheres. A ampla maioria de mulheres filiadas está ligada à absorção da mão de obra feminina pela cultura da uva (CAVALCANTI, 2012:78 apud SILVA, 2012).
Estes números, muito embora estejam aquém da real quantidade de
trabalhadores envolvidos na fruticultura, evidenciam o grau de informalidade e
falta de registro oficial daqueles que efetivamente trabalham na região.
Na produção defrutas para exportação há uma forte distinção da força
de trabalho entre homens e mulheres por tipo de cultura. Os homens são
predominantes nas fazendas de produção de manga para exportação,
enquanto que a “delicadeza” atribuída à mulher garante às trabalhadoras uma
maior possibilidade de emprego nos parreirais.
A “feminização” do trabalho na viticultura se dá pela preferência em
empregar as trabalhadoras rurais devido ao caráter artesanal da produção, o
que exige mais “delicadeza” e “precisão” no cultivo, sendo esta argumentação
o principal apontamento nos discursos dos produtores, que também é
reforçado entre os trabalhadores e os sindicalistas, como se esta fosse a única
condição para o trabalho assalariado do sexo feminino.
Não é porque os patrões são bons não, é por que o trabalho da uva ele é muito delicado, e aí ele é mais feito pela mão feminina, por exemplo, ralear uva, raleia mais as mulheres,né? Queaquela parte difícil, todo trabalho da uva é um trabalho delicado, e as mulheres é quem mais têm facilidade para fazer isso, é uma mão de obra especializada digamos, né? Eaí elas dão conta do recado por que mulher é muito inteligente mesmo, a verdade é essa, né?(...) Assim, é um trabalho qualificado e tem a ver muito com a delicadeza da mão, não sei (Rita Maria Rosa da Silva – Assessora da FETAPE/Polo Petrolina)3.
3 Entrevista realizada em Petrolina/PE, dia 21 de agosto de 2012.
8
Desse modo, a viticultura emprega, em sua maioria, as trabalhadoras
do sexo feminino, contribuindo assim para o estigma que trata da construção
social do sexo feminino como o “sexo frágil” (MOURA, 1999), qualificado
apenas para o exercício do trabalho “leve”, “fácil” e com pouco advento
tecnológico empregado na produção.
A qualificação do trabalho feminino está associada às habilidades
“naturais”, como a “delicadeza” e a “sensibilidade”. Entretanto, esse tipo de
“qualificação”, que também está ligada à esfera reprodutiva e à feminilidade,
não possui prestígio e status de qualificação para o mundo do trabalho. Assim,
quando muito, a qualificação é classificada apenas como “qualidade feminina”,
e mesmo que sejam vantajosas para o processo produtivo, não se traduz como
carreira, e tampouco está imbuída de acréscimo salarial (KERGOAT, 1989).
Entretanto, em oposição à “qualificação do trabalho feminino”, os
setores mais modernizados da produção, que exigem treinamento e
qualificação são masculinizados. Ângela Araújo (2005: 93) destaca que
pesquisas realizadas em diferentes ramos industriais demonstraram
a ocorrência de um processo semelhante de masculinização dos setores modernizados através da introdução de equipamentos de última geração ou da complexificação de tarefas diante da aproximação entre operação, inspeção de qualidade e manutenção, processos que exigem treinamento e novas qualificações (ARAÚJO, 2005: 93).
Na irrigação, de acordo com Cavalcanti (2003), quanto mais sofisticada
é a tecnologia empregada na realização de uma tarefa, menos mulheres
participam dela. Dessa maneira, a autora afirma haver uma não qualificação de
mulheres em atividades que não sejam aquelas tipicamente condizentes com
as “características” atribuídas ao sexo feminino.
Sendo assim, tal naturalização chega a limitar a participação das
trabalhadoras rurais em outras atividades do processo produtivo, tendo em
vista que as atividades desenvolvidas na irrigação dividem homens e mulheres
de acordo com suas características físicas e fisiológicas, com base na
construção social da feminilidade e da masculinidade, restando às mulheres as
“tarefas leves” do raleio e colheita da uva e os packinghouses.
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A Divisão Sexual do Trabalho como conceito
A divisão sexual do trabalho é associada à divisão do trabalho social
decorrente das relações sociais entre os sexos, e caracteriza a designação
prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva,
e simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor
social adicionado (HIRATA; KERGOAT, 2007).
Nesta perspectiva, há uma necessidade em transcender o “plano
conceitual” da divisão sexual do trabalho a partir de novas configurações
propostas por Hirata e Kergoat (2007: 598) no sentido de pensar o trabalho
assalariado das mulheres na fruticultura irrigada no Vale do São Francisco com
caráter “doméstico” e “artesanal”.
depois que ‘a família’, na forma de entidade natural, biológica, se esfacelou para ressurgir prioritariamente como lugar de exercício de um trabalho, foi a vez de implodir a esfera do trabalho assalariado, pensado até então apenas em torno do trabalho produtivo e da figura do trabalhador masculino, qualificado, branco (HIRATA; KERGOAT, 2007: 598).
Dessa forma, propõe-se a distinção dos princípios da divisão sexual do
trabalho em dois princípios organizadores, quais são: o princípio da separação
(que firma a existência, substancialmente, de trabalhos de homens e trabalhos
de mulheres), e o princípio hierárquico (em que há uma “valoração do
trabalho”, no sentido de que um trabalho de homem “vale” mais do que um
trabalho de mulher).
Para Hirata e Kergoat (2007: 599), essa legitimação não
necessariamente significa que a divisão sexual do trabalho seja um dado
imutável. Inversamente, as modalidades da divisão sexual do trabalho passam
por variações temporais e espaciais, e não consistem em uma única forma de
divisão do trabalho, mas se articulam a outras. O principal elemento em
comum, em todas as variações dessa categorização estaria na hierarquização
do trabalho conforme o sexo de quem o realiza.
Assim, mesmo que o agrupamento entre os sexos não consista na
única forma de divisão do trabalho em uma sociedade ou cultura, e tampouco
seja exclusivamente ocidental, a grande importância da divisão do trabalho
entre os sexos torna-se visível pela capacidade de dar notoriedade às relações
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sociais. Nesse sentido, “a divisão sexual do trabalho é o suporte empírico que
permite a medição entre relações sociais (abstratas) e práticas sociais
(concretas)” (MARCONDES et al, 2003 apud HIRATA: KERGOAT, 1998:95).
A hierarquia que organiza, pela “valoração”, as diferenças entre os
trabalhos realizados por homens e por mulheres, possibilita o não
reconhecimento dos trabalhos que ocorrem na esfera doméstica e são
relacionados ao mundo privado. Atribui-se às mulheres o cuidado com a casa e
com as pessoas que nela vivem, mas não se considera trabalho, já que estas
são “apenas” atividades de manutenção para a realização do trabalho
produtivo, que é realizado em espaço público e assalariado.
Um dos principais elementos organizadores da atribuição de hierarquia
e valor que legitima o que seria o “verdadeiro trabalho” é a separação entre o
trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo. Entretanto, ao transcender a esfera
doméstica, o trabalho feminino é acrescido de “valor” em quais aspectos?
O trabalho “produtivo” e a identidade da trabalhadora continuam a ser
de mulher, e enquanto mulher, o seu lugar permanece ligado à casa e à
maternidade. No momento em que estas mulheres passam a transitar nos
espaços públicos, por mais que haja uma conscientização da opressão da
desigualdade da divisão do trabalho doméstico, constata-se que mesmo
conscientes dessa desigualdade, militantes e sindicalistas continuam a se
incumbir do essencial desse trabalho reprodutivo (HIRATA; KERGOAT, 2007:
607).
Nas entrevistas realizadas com sindicalistas do sexo feminino, nos
sindicatos dos trabalhadores rurais pesquisados, percebemos que a fala de
algumas dessas mulheres sindicalistas revela certo ressentimento em não ter
reproduzido as atividades designadas à mulher no âmbito privado familiar.
Eu sofro muito porque foi... Hoje eu não posso tá muito perto dele [o companheiro], assim, toda hora eu to distante, ele precisa muito de mim hoje.(...) O movimento [sindical] é meio, nesse ponto aí...Eu gosto muito dele, mas ele é meio ingrato. Ingratoassim, porque a gente deixa até, né? Mas eu gosto desse movimento ingrato. Ele [o companheiro] não tem a visão hoje e eu não tenho como tá bem perto dele toda hora que ele precise. Mastem uma pessoa que fica lá e ele disse que é melhor do que eu, às vezes. Porque eu fico daqui pracolá, não paro, fazendo uma coisa, fazendo outra, e essa pessoa
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se dedica (Maria das Dores Aires da Silva, sindicalista – STR Lagoa Grande)4.
O movimento sindical é associado a um “movimento ingrato”, porque a
sindicalista ao transcender a esfera doméstica, mesmo consciente das amarras
que a prendem ao seio da família, não se desvinculou de seu papel doméstico.
Para suprir o seu lugar de ausência, as tarefas domésticas foram delegadas a
uma outra pessoa, geralmente mais jovem e do sexo feminino.
A inserção da mulher no “setor produtivo” do trabalho mantém ainda
uma ligação com a esfera privada. No Vale, a característica que confere à
mulher uma maior possibilidade de trabalho na viticultura e
nospackinghousesestá ligada ao fato de ter uma mão de obra “especializada”
em realizar tarefas tipicamente associadas ao universo feminino – a poda, a
colheita e o raleio do processo delicado que é o cultivo da uva.
Entretanto, é importante que haja uma articulação entre as esferas do
trabalho doméstico e assalariado (reprodução e produção), no sentido de,
como defende Kergoat (1987: 89), não se considerar a indissociabilização
dessa dicotomia.
por não se considerar o conjunto produção/reprodução como um todo indissociável, tudo se passa como se devêssemos encontrar um princípio de coerência único, e que essa coerência devesse ser relacionada a um lugar institucional: a família ou a fábrica. O que é apenas, no fim das contas, uma das maneiras de pôr em funcionamento a dicotomia clássica: aos homens, o trabalho assalariado – e quando as mulheres inserem-se positivamente nesse espaço, isto continua a ser considerado como excepcional – às mulheres, a família: lugar de enclausuramento e de opressão; lugar fechado (KERGOAT, 1987: 89).
A análise do gênero (sexo) e da classe deve estar articulada, de modo
que, assim como produção e reprodução, o âmbito da casa e do trabalho sejam
espaços de interação através de relações sociais fundamentais. A noção de
“uniformidade” da classe trabalhadora trata de ocultar uma importante diferença
no mundo do trabalho com relação ao sexo dos trabalhadores, já que as
mulheres se tornam invisíveis quando analisada a classe como um todo
(SOUZA-LOBO, 2011).
4Entrevista realizada em Lagoa Grande/PE, dia 08 de Julho de 2011.
12
Assim, atentamos para o fato de que não se pode compreender o
trabalho assalariado feminino a partir da uniformidade da noção de classe, mas
tomando o gênero e as experiências singulares de classe que esta condição
acarreta às trabalhadoras. Nesse sentido, adotamos a perspectiva de E. P.
Thompson (2011: 9-10) que compreende a classe como um fenômeno histórico
e processual, e as experiências atreladas a ela determinadas pelas relações de
produção.
A ação sindical no Vale do São Francisco e a inserção de
assalariadas e assalariados rurais ao mundo dos direitos
A atuação dos sindicatos tomados como referências neste estudo (o
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Petrolina/PE e o Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Juazeiro/BA) data de período anterior à ascensão da
fruticultura irrigada. O STR Petrolina, por exemplo, foi fundado no início da
década de 19605.
Percebe-se que até o momento de ascensão da fruticultura irrigada no
Vale do São Francisco, no final da década de 1980 e início da década de 1990,
a atuação dos sindicatos foi essencialmente voltada aos pequenos produtores
da agricultura familiar. De acordo com Damiani (2001: 23), a mudança no perfil
de atuação dos sindicatos foi resultado do estabelecimento de empresas de
agricultura irrigada com um grande número de funcionários assalariados.
Paulo José Mendes, auditor fiscal do Ministério do Trabalho, que atuou
como subdelegado regional do trabalho em Petrolina/PE no período das
primeiras negociações da convenção coletiva, relata as dificuldades na
modificação dessa orientação das atividades sindicais:
O sindicato que antes via apenas a pequena produção, os trabalhadores de sequeiro, que era a representação deles, encontrasse algo novo, que era a relação de trabalho vinculada, isso criou uma dificuldade de intervenção de ordem política para fazer com que o sindicato dos trabalhadores compreendesse que eles tinham que olhar esse lado dos trabalhadores com mão de obra
5 Histórico do sindicato. Disponível em: http://strpetrolina.com.br/institucional. Acesso em: 22/07/2013.
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vinculada. (Paulo José Mendes de Oliveira, Auditor fiscal do Ministério do Trabalho).6
A partir de uma nova orientação de atuação política voltada aos
assalariados rurais da fruticultura, o número de associados e,
consequentemente, a arrecadação do sindicato, expandiu consideravelmente.
Até o início da década de 1990 eram poucos os associados, e estes em grande
parte eram pequenos produtores de áreas de sequeiro. O ingresso da categoria
dos assalariados rurais refletiu além de uma maior arrecadação das
organizações sindicais, na modificação de suas estruturas físicas e, sobretudo,
de suas atuações.
O diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Petrolina na época,
Francisco Pascoal (Chicou), relatou tais mudanças com o início da luta sindical
junto aos assalariados:
Pra você ter ideia, o sindicato não tinha uma bicicleta pra andar, depois que os trabalhadores começaram a acreditar e pagar ao sindicato, com menos de três meses a gente já tinha comprado um carro pra o sindicato. Então o sindicato foi crescendo dentro dessa luta, tanto na política de assalariado como na política de agricultura familiar. (Francisco Pascoal Cipriano da Silva, sindicalista)7.
Nos primeiros anos da década de 1990, teve início a atuação dos
Sindicatos junto aos assalariados rurais. Primeiramente, na margem
pernambucana do Submédio São Francisco, essa atuação consistiu apenas em
reuniões nos bairros periféricos das cidades de Petrolina e nos distritos de
Vermelhos, Izacolândia e Lagoa Grande, onde residia grande parte dos
trabalhadores assalariados das empresas fruticultoras.
Essas reuniões tinham como objetivo a aproximação entre as
organizações sindicais e os trabalhadores, e possibilitavam também aos
sindicalistas o entendimento de como se estabeleciam as relações de trabalho
naquele momento na fruticultura irrigada.
Os espaços de diálogo entre sindicatos e trabalhadores também
contribuíram para uma aproximação destes com as garantias que a legislação
trabalhista lhes assegurava. Assim como também proporcionava aos
trabalhadores que participavam das reuniões o repassasse desse
6Entrevista realizada em Recife/PE, dia 30 de Abril de 2012. 7 Entrevista realizada em Petrolina/PE, dia 09 de Dezembro de 2011.
14
conhecimento nas empresas em que trabalhavam, contribuindo para o
processo de conscientização dos assalariados rurais a respeito dos seus
direitos e da crescente representação sindical.
A advogada da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado
de Pernambuco (FETAPE), no início da década de 1990, Cida Pedrosa,
evidenciou como aconteceu essa articulação inicial entre trabalhadores e
sindicatos, destacando as iniciativas de conscientização dos trabalhadores
quanto aos seus direitos.
Primeiro era conhecer que assalariamento era esse, como é que se davam as relações de trabalho, quem é que eles empregavam, os níveis de direitos cumpridos, e aí a gente foi criando um grupinho e começou a fazer uma coisa que a gente fazia na igreja, eu, no caso que vinha com essa experiência, que era fazer os cursinhos, os cursinhos é as pessoas se apropriarem dos seus direitos e levarem isso para a empresa, então juntar grupos de seis, sete, oito apresentar o que são os direito do trabalho, direito a carteira assinada, a questão do agrotóxico, das férias, do entender eu tenho esses direitos e tenho direito a cobrar isso, e aí fomos criando representantes por estrutura (Maria Aparecida Pedrosa Bezerra, advogada).8
Cida Pedrosa evidenciou ainda a necessidade dos sindicatos, naquele
momento, conhecerem quem eram esses trabalhadores assalariados e como
se dava as relações de trabalho nas empresas. Segundo a advogada:
Quem trabalhava? Mulheres! Muitas mulheres. O raleamento de uva
é um trabalho muito feito por mulheres, tem uma mão de obra
assalariada de mulheres muito grande e é um trabalho delicado. Não
é o trabalho da cana, é um trabalho de processamento delicado;
muitos jovens estudantes, gente muito jovem trabalha lá, e a gente
descobriu que o grande cancro era o agrotóxico, além de todos eles,
era o agrotóxico. Deixavaas pessoas doentes e essa coisa dessa
mão de obra feminina e jovem e aí a gente põe na convenção coletiva
algumas guaridas para as mulheres e pros jovens que foram de muito
difícil entendimento(Maria Aparecida Pedrosa Bezerra, advogada).
Todo esse trabalho, iniciado em 1990, de reuniões de aproximação e
reconhecimento junto à base, de fiscalização das empresas e da própria
compreensão interna dos sindicatos sobre necessidade da luta com a 8 Entrevista realizada em Recife/PE, dia 16 de dezembro de 2011.
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categoria, tem como consequência a assinatura da primeira convenção coletiva
de trabalho dos assalariados rurais do Vale do São Francisco no início do ano
de 1994.
A primeira convenção coletiva de trabalho da fruticultura foi negociada
apenas entre os sindicatos de Petrolina e Santa Maria da Boa Vista. Ainda que
houvesse assalariamento de trabalhadores na margem baiana do submédio
Vale do São Francisco, os sindicatos baianos, nesse primeiro momento não
aderiram às negociações, o que aconteceu apenas anos depois, em 1997.
Dentre as conquistas da primeira convenção coletiva, o movimento das
mulheres trabalhadoras rurais alcançou aquela, que sem dúvidas, está
intrínseca às discussões de gênero em todas as instâncias sindicais: a
igualdade salarial9. Entretanto, isso não aparece explícito na convenção como
uma conquista das trabalhadoras, constando apenas como a garantia de um
salário unificado para toda a categoria.
Dentre as sessenta e uma cláusulas aprovadas nesta primeira
convenção, quatro são especificamente voltadas à trabalhadora rural. Quais
são: garantia de estabilidadeno emprego à trabalhadora gestante, e a
adequação desta a um trabalho condizente com sua condição, recebendo o
mesmo salário. Além da estabilidade, essa mesma cláusula reforça o direito
legal da trabalhadora assalariada ao salário-maternidade, conforme a
constituição federal; direito a creche no local de trabalho; garantia de meia hora
de descanso em cada turno de trabalho durante o período de amamentação
até que o filho complete seis meses; e por fim, em caso de aborto não
criminoso, direito a duas semanas de repouso.
A análise dessas cláusulas revela como as conquistas neste primeiro
momento ainda estão relacionadas às questões domesticas vinculadas a
mulher, sobretudo, à maternidade. Garantindo, dessa forma, a possibilidade de
que a mulher continue a exercer suas funções profissionais concomitantemente
às atribuições domésticas.
No ano seguinte foram negociadas mais quatro novas cláusulas, e
dentre elas, uma é específica à saúde da mulher trabalhadora rural. Esta
cláusula asseguraà trabalhadora a liberação de um dia por ano para a
9 Cláusula 1ª da CCT de 1994 (salário unificado).
16
realização de exames preventivos ginecológicos; para as trabalhadoras com
mais de 40 anos é garantido um dia por semestre.
Chama atenção que cláusulas específicas sobre o trabalho assalariado
feminino só aparecem na CCT de 1997, convenção que marca a unificação das
negociações entre sindicatos baianos e pernambucanos. Essas são as
cláusulas 64ª e 65ª: a primeira determina que o trabalho da mulher seja
executado de acordo com suas peculiaridades físicas e fisiológicas. Já pela
cláusula seguinte, fica proibido qualquer tipo de discriminação ou esterilização
para permanência do emprego, sendo cabíveis de penalidade também aqueles
empregados que comprovadamente seja agente de assédio sexual à mulher
trabalhadora.
Diferentemente das demais, estas novas cláusulas revelam
características diferenciadas. Apesar de específicas à mulher, estão
diretamente vinculadas à esfera do trabalho, respeitando as especificidades da
mulher, mas não necessariamente vinculando-a ao âmbito doméstico.
Além das assembleias de construção das pautas e dos momentos de
negociações das convenções coletivas, as trabalhadoras e sindicalistas
participam também de outros espaços de militância e luta pela garantia dos
direitos das mulheres.
A relatoria do I Encontro de Capacitação de Mulheres Assalariadas
Rurais do Vale do São Francisco, realizado nos dias 11 e 12 de novembro de
1999, em Petrolina, demonstra que o encontro teve como objetivos: a avaliação
da situação das mulheres assalariadas rurais, e os problemas diários no
ambiente de trabalho e com a família; esclarecimento sobre os direitos da
mulher garantidos na Constituição Federal de 1988 e na Convenção Coletiva; e
o fortalecimento da organização das mulheres trabalhadoras rurais do Vale do
São Francisco. Neste encontro estiveram presentes, representantes dos
Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de Petrolina, Lagoa Grande, Santa Maria
da Boa Vista, em Pernambuco, e de Juazeiro, na Bahia.
As trabalhadoras denunciavam o não cumprimento de cláusulas
acordadas nas convenções coletivas de trabalho como, por exemplo, a
dificuldade em conseguir afastamento nas empresas, no período de
amamentação, principalmente, na época de colheita. Também foi relatada a
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17
discriminação e exploração no local de trabalho, chamando atenção para os
casos de assédio sexual cometido pelos chefes ou patrões10.
Em matéria publicada pelo jornal Gazzeta do São Francisco, com o
título “Mulheres reivindicam salário maternidade”, a imprensa local noticiou a
ocupação da sede do INSS em Petrolina.
A Federação dos Trabalhadores em Agricultura do Estado de Pernambuco promoveu na terça-feira, 14, uma manifestação com cerca de duzentas trabalhadoras rurais que reivindicaram em frente à sede do INSS em Petrolina o direito a assistência maternidade. Elas entregaram um documento a gerencia do órgão pedindo melhoria nos serviços prestados. Segundo as trabalhadoras rurais este direito não está sendo cumprido, visto as dificuldades que as gestantes encontram na hora de pedir o benefício11.
Dessa forma,enfatizamos a importância das assembleias, das reuniões
de bairros, dos atos públicos, das assembleias de construção e negociação da
CCT e dos demais espaços sindicais como um possibilitadores de uma
articulação de interesses e identidades de classe.
A partir dessa articulação de interesses e identidades, e da
compreensão de que estas são diversas, inclusive dentro da perspectiva do
gênero, se faz possível a construção de pautas e bandeiras especificas que se
articulam e que possuem um pano fundo comum que é a oposição aos
interesses de outros sujeitos, no caso a classe patronal.
Para E. P. Thompson,
A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus (THOMPSON, 2011).
Pensar a classe como um fenômeno processual, não limitando a
análise a uma perspectiva estruturalista nos permite compreender de que
forma as especificidades das mulheres nas relações de trabalho que se
estabelecem na fruticultura irrigada possibilitam a constituição de uma
“consciência de classe” (THOMPSON, 2011).
10Relatório do I Encontro de capacitação de mulheres assalariadas rurais do Vale do São Francisco. Petrolina/PE, 11 e 12 de novembro de 1999. 11Gazzeta do São Francisco. Petrolina/PE, 19 a 25 de março de 2000.
18
As cláusulas específicas às mulheres na convenção coletiva da
fruticultura irrigada no Vale do São Francisco são reveladoras desse acúmulo e
articulação da classe trabalhadora. No processo de construção, negociação e
defesa dessas cláusulas é que se objetivam as singularidades das experiências
de classe dessas mulheres.
4. Considerações Finais
A atuação conjunta dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais no Vale
do São Francisco, como uma política estimulada pela Federação dos
Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (FETAPE), foi uma
condição importante para a articulação entre trabalhadores e sindicatos,
culminando na construção da primeira convenção coletiva no ano de 1994,
inserindo milhares de trabalhadores e trabalhadoras assalariadas ao “mundo
dos direitos”.
Primeiramente devemos perceber a influência da fruticultura irrigada, e
do processo de desenvolvimento da região na organização dos Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais do Vale do São Francisco. No inicio da década de 1990,
a ação sindical se volta para políticas que assegurassem melhorias na
qualidade de vida e trabalho dos assalariados e assalariadas rurais.
Dentro desse panorama, sobressai a participação da mulher tanto no
mercado de trabalho, quanto no movimento sindical, evidenciando as suas
influências quando analisada a política sindical, que em grande medida busca
assegurar o direito da mulher trabalhadora rural assalariada.Devemos ainda
atentar para tal processo de articulação de interesses e identidades, ao
reconhecimento dos direitos no ambiente de trabalho como espaço de
reafirmação da trabalhadora do sexo feminino.
Entretanto, não podemos deixar observar que este processo é também
repleto de contradições e debilidades, seja no processo de construção de um
discurso sindical voltado às mulheres, seja na garantia do cumprimento das
cláusulas estabelecidas na convenção.
O discurso sindical apresenta-se contraditório no sentido de que os
sindicalistas também reafirmam o lugar da mulher notrabalho a partir da
construção social e cultural do gênero, que imputa a delicadezacomo uma
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característica essencialmente feminina, ou como uma“qualificação” condicional
para a garantia de emprego das mulheres na viticultura. Isso se revela,
inclusive, na fala de sindicalistas do sexo feminino.
Porque assim, a uva ela tem uma mão de obra que ela é mais delicada, né? (...) Não estou discriminando a mão de obra masculina, mas a uva, ela tem um pelinho, ela tem uma massinha que não pode ser tirada. (...) Porque a mão de obra é mais delicada, a uva, ela exige delicadeza na sua mão de obra. É diferente da manga. A manga, você cortou, jogou alí no contentor, então é aquela coisa mais grosseira. (...) Mas no caso da uva tem que ser mais delicada, não pode ser pegada como se tivesse pegando um cacho de flor de manga, né? E a gente percebe que não é só 70%, nos packingshouses, eles, muitas das vezes, tem 90% [de mulheres] (Maria Joelma da Silva, sindicalista)12.
Recorrentemente, são atribuídas outras “características” ao sexo
feminino, no sentido de conferir ao trabalho feminino qualidades que garantem
a inserção das mulheres nestes postos de trabalho.
As mulheres são mais educadas, as mulheres aprendem mais rápido, as mulheres não são rebeldes, (...) a mulher é mais pontual, as mulheres elas tem mais jeito para o trabalho muito doméstico que é uva, muito artesanal. Elaé mais preocupada com horário de sair, com o horário de chegar, e ela está ali por uma questão muito séria, que é a necessidade de casa. Ela não está lá porque gosta de estar lá, ela está porque ta passando precisão (Josefa Rita, sindicalista).13
As características associadas ao sexo feminino que são apontadas
pela sindicalista, como por exemplo, a não rebeldia, a educação, a
pontualidade, e responsabilidade com o trabalho, são reveladoras de uma
submissão justificada na necessidade de manutenção do lar, e nesse contexto,
também do ponto de vista econômico. O assalariamento, neste sentido,
transfere para a mulher a condição de “chefe da casa”, já que ela passa a ser
responsável pelo orçamento doméstico, mas não necessariamente, ela será
“chefe da família” (WOORTMAN, 1987: 67-68).
Apesar dos significativos avanços,“falta ainda muita conscientização e
união entre as próprias mulheres”, como já evidenciavam as trabalhadoras e
sindicalistas em 1999 durante o I Encontro de Capacitação de Mulheres
Assalariadas Rurais. Oamadurecimento de um discurso que resignifique o
12 Entrevista realizada em Petrolina/PE, sem data. 13 Entrevista realizada em Sobradinho/BA, dia 17 de julho de 2013.
20
papel da mulher nesta dicotomia indissociável do trabalho doméstico e
assalariado, ainda se mostra um desafio entre trabalhadoras e militantes no
Vale do São Francisco.
Um outro empecilho aos sindicatos pode ser apontado pelas
dificuldades relatadas no cumprimento das cláusulas negociadas nas
convenções por parte das empresas. Nesse ponto, algumas cláusulas
relacionadas ao trabalho feminino tem resistência do patronato no seu
cumprimento. Dentre estas, os sindicalistas frequentemente apontam a não
existência de creches nas empresas frutícolas do Vale como o caso mais
ilustrativo.
O jornal local Gazzeta do São Francisco de novembro de 2007
publicou uma reportagem sobre a preparação dos trabalhadores rurais para a
convenção coletiva de 2008/2009, na qual destacava a fala da secretária de
Assalariados do STR Petrolina, Maria Joelma.
Por outro lado, de acordo com a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Petrolina é possível verificar o descumprimento de alguns pontos da Convenção 2007/2008. “Temos percebido muitos direitos descumpridos como a carga horária dobrada, principalmente em packinghouses. Já pegamos gente trabalhando 16 horas, quando a lei só permite 8 horas, podendo ampliar para mais duas horas, quando negociadas”, afirma a secretária de assalariados do STR Petrolina, Maria Joelma.14
Quando questionada sobre as conquistas e os avanços anuais nas
convenções, a sindicalista Maria das Dores Aires da Silva (Dorinha), aponta
também as dificuldades no cumprimento das pautas, a exemplo da creche.
Uma coisa que a gente toda vida batalhou muito e não conseguiu, assim diretamente foi a creche pra o local de trabalho, isso aí agente nunca conseguiu, foi uma luta, mas nunca conseguiu a questão de creche pra crianças. (...) Em nenhuma empresa... em nenhuma empresa. Isso aí foi uma coisa que a gente bateu, bateu, bateu, mas isso aí na realidade quando saí de um sindicato, não tem força pra outro conquistar (Maria das Dores Aires da Silva, sindicalista).15
No entanto,devemos enfatizar que as convenções tem significado um
importante avanço na luta das trabalhadoras e trabalhadores rurais. A inicial
articulação entre trabalhadores e os sindicatos, desembocou em conquistas 14Gazzeta do São Francisco. Petrolina/PE, 24 a 26 de novembro de 2007. 15 Entrevista realizada em Lagoa Grande, dia 08 de julho de 2011.
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21
para a categoria, tais como transporte realizado em ônibus para as fazendas,
piso salarial acima do salário mínimo, adicional noturno e hora extra.
Nesse sentido, o amadurecimento do debate sobre as relações de
gênero entre sindicalistas e trabalhadores, assim como também a garanta do
cumprimento das cláusulas negociadas na convenção se revelam como novos
desafios para essas organizações sindicais.
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23
ID 332
DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA NO BRASIL: DISPUTAS SINDICAIS E A MERCANTILIZAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS
Ana Paula Pegoraro, Unicamp/IE/Cesit
Resumo
O objetivo do trabalho é mostrar, desde uma perspectiva histórica, como que o desenvolvimento capitalista no Brasil consolidou uma estrutura institucional, política e social, que dentre suas diversas especificidades, tem como elemento central a mercantilização de bens públicos dentro de um sistema de proteção social que busca, por outro lado, a consolidação da cidadania.
Neste enfoque, um elemento de suma importância é a centralidade do trabalho e o papel relevante das disputas sindicais. A ideia é mostrar até que ponto os movimentos sociais, liderados pelas centrais sindicais, são importantes para legitimar, ou não, as conquistas de direitos no Brasil. A pergunta que se busca responder é: Qual o papel dos sindicatos para o movimento de mercantilização dos bens públicos?
Este trabalho tem o objetivo de captar especificidades da história do capitalismo no Brasil que expliquem a estrutura formada e as formas como o setor privado se apropriou, pouco a pouco, da prestação de bens e serviços públicos. Apesar de buscar aspectos gerais, busca-se entender o que se consolidou após anos de ditadura militar e um processo de intensa industrialização brasileira.
Palavras-chave: mercantilização, sindicalismo, Brasil.
24
Introdução
A intenção deste trabalho é delinear as características fundamentais
envolvidas no processo que ajudem a explicar a apropriação privada de bens
públicos ao longo do tempo versus a consolidação de direitos políticos civis e
sociais nos distintos períodos. Para tal discussão a análise será dividida em
quatro períodos, o primeiro período, que se estende de 1930 a 1964, conta
com a consolidação de diversos direitos civis, alguns direitos sociais e avanços
e retrocessos nos direitos políticos, neste primeiro período cabem ressaltar o
papel do Estado para a origem da estrutura sindical vigente até os dias de hoje.
O segundo período, marcado pela ditadura militar no Brasil, compreende os
anos de 1964 a 1984 em que houve grande abertura de espaços públicos para
empresas privadas a despeito da ampliação de diversos direitos sociais, no que
tange aos sindicatos este foi um período de retrocesso uma vez que o governo
proibiu as formas de organização sindical presentes até então.
O terceiro período é curto, porém relevante; trata-se do período que
culminou na Constituição Federal de 1988, em que foram consolidados
diversos direitos políticos, civis e sociais, levando tal Carta a ser conhecida
como Constituição cidadã. Além disso, este período foi também importante no
que diz repeito ao sindicalismo, dado o surgimento de um novo-sindicalismo,
fundamental para a redemocratização. Por fim, temos o período de 1988 a
2013, de democracia em conjunto com a adoção de políticas neoliberais que
pouco contribuiu para a garantia efetiva dos direitos consolidados na Carta de
1988, alguns autores afirmam que, tanto no que diz respeito às políticas sociais
quanto no sindicalismo há sinais de quão frágil é o sindicalismo brasileiro se
levarmos em conta a mercantilização das políticas públicas e o
enfraquecimento contínuo do Estado.
De 1930 a 1964: cidadania regulada
A aceleração das mudanças sociais e políticas a partir de 1930 é o
motivo para que diversos autores marquem este ano como o início de um novo
período, principalmente no que diz respeito aos direitos sociais, em que os
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25
avanços e mudanças foram significativos. Já no que tange aos direitos
políticos, a evolução é mais complexa, já que é um período de instabilidade,
alternando entre ditadura e regimes democráticos. Quanto aos direitos civis, a
progressão foi lenta, de tal forma que sua garantia continuou precária para a
maioria da população.
Para Carvalho (2008), a partir da década de 20 a oposição ao sistema
político vigente começa a ganhar força, este movimento buscava mudanças em
diversas áreas tais como: campo cultural e intelectual, educação, saúde, além
da política. Neste sentido, o autor afirma que, diferente de 1889, em que o
povo esteve ausente, houve debate a uma parte da população e o povo foi
ator, mesmo que coadjuvante, na Revolução de 1930. O regime de 1930
nasceu sob a tutela do Exercito, mas pelo menos carregava uma característica
crucial: a critica ao federalismo oligárquico. Isto é, este novo governo trazia a
esperança de centralização do poder, combate as oligarquias, reforma da
sociedade, promoção da industrialização e modernização do país.
O período de 1930 a 1937 é marcado por grande agitação política,
marcado pela amplitude e pelo grau de organização dos movimentos políticos.
Entretanto, para Carvalho (2008), a aceitação do golpe de 1937 mostrou como
os avanços democráticos ainda eram frágeis, de 1937 a 1945 o Brasil passou
por um regime ditatorial civil, sob a tutela das forças armadas, em que
manifestações políticas e imprensa eram proibidas e o governo legislava por
decreto.
O ponto crucial deste período, sem sombra de duvidas, não está nos
direitos políticos, que tiveram avanços limitados e sujeitos a sérios recuos, e
sim na grande atenção dada ao problema trabalhista e social pela liderança do
movimento desde 1930. Os avanços nos direitos sociais incluem avanços na
legislação trabalhista (salário mínimo, redução da jornada de trabalho,
regulamentação do trabalho feminino, criação da carteira de trabalho, direito de
férias),na área da previdência (criação de diversos Institutos de
Aposentadorias, apesar de ainda excluir categorias importantes de
trabalhadores). Cabe ressaltar, porém, que a política social implantada
baseava-se na concepção de privilégio e não de direito. Para o autor, entre
26
1930 e 1945 é um grande momento da legislação social, porém, por ela ter sido
introduzida em um ambiente de baixa ou nula participação política e de
precária vigência dos direitos civis, foi longe de ser uma conquista realmente
democrática, comprometendo o desenvolvimento de uma cidadania ativa.
Do ponto de vista político, a atuação na área sindical constituiu o ponto
central da estratégia do governo. Os sindicatos formados nesta época tinham
como orientação a cooperação entre operários, patrões e o Estado, de tal
forma que o sistema sindical evoluiu na direção de um corporativismo de
Estado. A luta de classes ficara menos desigual, pois a legislação trabalhista
protegia, mas a interferência do Estado constrangia com a legislação sindical,
já que as organizações operárias dependiam do Ministério do Trabalho. O
dilema era: liberdade sem proteção ou proteção sem liberdade.
Com o Estado Novo, o intervencionismo governamental foi reforçado,
aperfeiçoando a legislação sindical, da Justiça do Trabalho e do
enquadramento sindical, no que se refere à definição das categorias
econômicas e profissionais que poderiam organizar sindicatos.
Apesar do forte autoritarismo e demais pontos negativos de tal política, o
período de 1930 a 1945 deve ser destacado no que diz respeito aos avanços
dos direitos sociais, o núcleo da legislação trabalhista e previdenciária foi
implantado, de modo que nos anos seguintes foi apenas aperfeiçoamento,
racionalização e extensão da legislação a um numero maior de trabalhadores.
Analisando este período do ponto de vista da cidadania, o autor afirma
que o significado é ambíguo e complexo, uma vez que a ênfase nos direitos
sociais em detrimento aos direitos políticos e civis fez com o que os primeiros
não sejam vistos realmente como direitos. Os trabalhadores foram
incorporados à sociedade por interesse político e não pela ação sindical e
política dos trabalhadores. Para o autor a cidadania que surgiu neste período
era passiva e receptora, quando deveria ser ativa e reivindicadora.
Em 1946, a nova Constituição Federal manteve as conquistas sociais do
período anterior e avançou nos direitos civis e políticos, tais como liberdade de
imprensa, liberdade de organização política, funcionamento livre de partidos
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27
políticos e eleições para os principais cargos públicos. outro ponto importante
foi a introdução dos trabalhadores rurais, posseiros e pequenos proprietários
como atores políticos importantes no debate nacional, a despeito deste avanço,
o direito à greve para todos os trabalhadores continuou proibido.
A mobilização política deste momento lutava por “reformas de base”, tais
como reforma de estrutura agrária, fiscal, bancária e educacional, e reforma
política para ampliação dos direitos políticos. Apesar da grande mobilização
feita no período, o autor a avalia como débil e frágil, uma vez que, com o golpe,
as grandes massas não defenderam o governo, dando legitimidade ao golpe de
1964.
A análise do período que se estende de 1930 a 1964, evidencia o
primeiro ensaio de participação popular na política nacional ainda que mal
organizada e frágil. A Constituição de 1946 expandiu os direitos garantidos em
1934, ainda com exclusão dos trabalhadores rurais. A partir de 1945 a
participação do povo na política cresceu significativamente, com grandes
progressos nas eleições e com a criação de partidos, sindicatos e outras
associações, este movimento reflete o amadurecimento democrático do povo
brasileiro.
Porém, este amadurecimento democrático não foi capaz de assegurar a
consolidação da democracia no país, culminando no golpe de 1964. O
processo democrático era incipiente, não havia organizações civis fortes e
representativas.
De 1964 a 1984: modernização conservadora e o
fortalecimento do setor privado
O período de 1964 a 1984 é marcado pela estratégia de “modernização
conservadora”, cuja condução da estratégia é constituída por quatro
características centrais: Caráter regressivo do financiamento do gasto social;
Privatização do espaço público; A centralização do processo decisório;
Fragmentação institucional (Fagnani, 2005).
28
Tal caracterização explicita que a reforma dos mecanismos estatais
levou a modernização institucional, financeira e burocrática ampliando assim o
alcance da gestão governamental, o que possibilitou a expansão da oferta de
bens e serviços, sobretudo para as camadas de maior renda, através de novos
mecanismos de financiamento. Porém, tais políticas sociais atenderam, em
grande medida, as camadas de média e alta renda explicitando o caráter
conservador do período, devido à limitada capacidade de redistribuição de
renda, o que acentuou as desigualdades regionais e de renda entre os
diferentes segmentos populacionais (Fagnani, 2005).
Os quatro traços centrais deste período são, sem duvidas, fundamentais
para entender a consolidação de uma determinada estrutura de proteção social
no Brasil, mas para este trabalho destaca-se a privatização do espaço público
em um momento de total repressão dos movimentos sociais. No caso da
saúde, o setor privado se fortaleceu neste período principalmente pela forma
de financiamento do sistema, Fagnani (2005) destaca a presença de enormes
transferências de recursos públicos para o setor privado, impulsionando a
expansão capitalista no setor da saúde.
O Brasil, por ser um país de industrialização tardia, apresentava, na
década de 1960, enorme heterogeneidade social e regional, acentuada
concentração da renda, formas precárias de inserção no mercado de trabalho e
um contingente expressivo de excluídos e miseráveis, no campo e na cidade. A
dramática situação socioeconômica do Brasil eram obstáculos objetivos à
natureza das fontes de financiamento das políticas sociais.
Durante a ditadura, a estratégia do governo foi de criar mecanismos
regressivos, os quais não promoveram articulações positivas entre o
desenvolvimento econômico e a distribuição de renda. A regressividade nos
mecanismos de financiamento é reflexa da utilização, sobremaneira, de
recursos provenientes de contribuições, em detrimento de recursos de natureza
fiscal. Cabe ressaltar que as contribuições reproduzem diversas desigualdades
na sociedade, principalmente se tratando de um país com industrialização
tardia como o Brasil, mas a principal desigualdade neste período era de
acesso, uma vez que o acesso aos bens públicos era condicionado pela
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contribuição individual de trabalhadores formais, excluindo assim grande
parcela da população.
Uma das características marcantes do período de ditadura militar no
Brasil foi, sem duvida, a centralização do processo decisório no Executivo
federal, que, em um contexto político e institucional autocrático próprio do
autoritarismo, deixou a sociedade civil completamente fora do processo político
e do controle democrático sobre a ação do Estado.
No que diz respeito aos movimentos sindicais, este movimento
centralizador do Estado interrompeu e fragilizou ainda mais um longo ciclo de
movimento que a classe trabalhadora tinha construído. A destituição das
entidades sindicais inibiu a representação da classe trabalhadora na definição
dos rumos da previdência social, da política salarial e da própria Justiça do
Trabalho.
O que Fagnani (2005) chama de privatização do espaço publico nada
mais é do que a extrema permeabilidade das políticas aos interesses
particulares, empresariais e clientelistas, resultado do enfraquecimento dos
mecanismos democráticos tradicionais de representação política e de controle
social. Em diversos setores da política social poderosas alianças entre o setor
privado e o publico foram consolidadas ao longo de mais de 20 anos de
ditadura militar.
No caso da saúde, como já destacado, o setor privado se fortaleceu
neste período principalmente pela forma de financiamento do sistema. Além
disso, o autor explica, de forma simplificada, que o modelo hegemônico na
saúde, a assistência médica previdenciária, funcionava a partir do pagamento
de “unidade de serviço” ao setor privado credenciado (hospitais, laboratórios e
médicos) em todos os municípios brasileiros, via geração de fatura remetida ao
Inamps.
O principal problema deste arranjo é que o Inamps não tinha capacidade
de analisar e vistoriar a geração de tais faturas o que levou a enorme
transferência de recursos públicos para o setor privados, impulsionando a
expansão capitalista no setor da saúde.
30
Fagnani (2005:23) cita Carlos Gentille de Mello (1977) que afirma “(...)
qualquer que seja a roupagem da medicina privatizada, a sua pratica cria as
condições ideais e propicias para a mercantilização da medicina, sem que haja
qualquer possibilidade de instituir um sistema eficaz de controle e fiscalização.
Daí porque é nesse campo que tem surgido os mais graves problemas
relacionados com as mais sérias infrações éticas (...)”.
Numa revelação contundente, Reinhold Stephanes, presidente do INSS
no governo Geisel, confirmou as apreensões do sanitarista e reconheceu o
total descontrole das contas da saúde. Num trabalho escrito em 1984, o ex-
dirigente do INSS no regime militar reconheceu que a forma de apresentar
faturas e pagamentos era como “um cheque em branco” ao setor privado.
Outras práticas de privatização como, por exemplo, o uso clientelista do
espaço publico, o empreguismo, a indicação de profissionais para cargos
públicos, a expansão da infraestrutura segundo critérios eleitorais sem base
técnica, e a oferta assistencialista de bens e serviços foram observadas em
todos os outros setores de política social. Mas, o autor destaca a educação,
porque há indicações de que a privatização tenha ocorrido em todos os níveis
de ensino.
Por fim, a última característica deste período, a fragmentação
institucional, não atingiu as políticas sociais centrais, tais como previdência,
saneamento e habitação. Segundo o autor a fragmentação institucional
circunscreveu-se aos segmentos relativamente periféricos, sobretudo da
alimentação popular e da assistência social.
Os quatro traços centrais das políticas sociais adotadas neste período
refletem o movimento de modernização conservadora que marcou e definiu um
padrão de política social, o qual tem como principal reflexo o reduzido impacto
para a redução das desigualdades socioeconômicas no Brasil. De certa forma,
a privatização do espaço público teve um papel importante para acentuar as
desigualdades regionais e sociais na sociedade brasileira durante a ditadura
militar.
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Não se pode negar que a criação de novos mecanismos institucionais e
financeiros potencializou a capacidade de intervenção estatal, proporcionando
uma significativa expansão da oferta de bens e serviços. Entretanto, a forma
conservadora como a política social foi conduzida em um contexto de extrema
repressão de todos os movimentos sociais, inclusive sindicatos, consolidou um
modelo de proteção social com baixa capacidade de distribuição direta e
indireta de renda, o que, acarretou, em alguns casos, no aumento das
desigualdades sociais no Brasil.
Os mecanismos regressivos de financiamento do gasto social criados
neste período se mostraram incompatíveis com a busca pela equidade,
outrossim, o gasto foi direcionado para interesses privados, conduzindo a um
processo intenso de mercantilização dos bens públicos. Um exemplo disso foi
que a expansão da rede de saúde foi direcionada para onde estava o dinheiro
e não onde estava à doença, além da completa marginalização das ações
ligadas aos cuidados primários de saúde e atenção médica sanitária, o que
manteve altas taxas de morbidade e de mortalidade infantil e demasiada
incidência de epidemias associadas à miséria.
O período de ditadura militar foi intenso e heterogêneo, é claro não se
pode entender este período sem avanços e retrocessos deste movimento de
modernização conservadora. De 1964 a 1967, Fagnani (2005) define o período
como “Gestação da Estratégia de Modernização Conservadora”, marcada pelo
interesse em estabilizar os preços e realizar as reformas institucionais que
visavam a “modernização conservadora” no campo econômico. O principal
objetivo destas reformas era modernizar os instrumentos de gestão econômica
e de ampliar as bases de financiamento da economia e do setor público. Foi
nesta fase que surge a ideia de financiar o gasto social através das
contribuições sociais, que foi difundido para a maior parte dos setores sociais.
O segundo momento destacado por Fagnani (2005) é a “A
Modernização em Marcha (1968-1973)”, marcada pelo avanço e fortalecimento
das políticas que vinham sendo geridas no momento anterior. Nesta fase as
características apontadas se tornam evidentes e vão se consolidando. A
consolidação destas características foram possíveis dada à conjuntura
32
econômica e política desta fase, marcada pelo “milagre econômico” e
recrudescimento do autoritarismo.
Por fim, há a fase de “Esgotamento da estratégia (1980-1984)”,
determinada pelo contexto político e econômico do período. A situação política
é deteriorada pelo movimento de massa que reivindicava o restabelecimento
de eleição direta para Presidência da República.
O crescimento da inflação e a vulnerabilidade do balanço de
pagamentos marcavam a crise econômica, que tem seu ápice em 1982 com o
colapso cambial. A o contexto econômico desfavorável agravou a situação
social, que pode ser explicitada pelo aumento do desemprego, da dificuldade
de acesso aos serviços sociais e redução nos raios de manobra da intervenção
estatal nas áreas sociais (Fagnani, 2005).
O terceiro período é a “Tentativa de Mudança (1974-1979)”, em que há
algumas tentativas de reformas que visavam mudar os movimentos da fase
anterior. Os condicionantes deste período podem ser resumidos na
precariedade das condições de vida da população, no agravamento da questão
social, o que levava a oposição do regime ditatorial. No caso da saúde houve
surtos de epidemias em diversas regiões e estudos mostravam altas taxas de
mortalidade infantil.
Levando em consideração a abordagem aqui discutida sobre o período
de 1964 a 1985, fica evidente que o período autoritário brasileiro é marcado por
uma expansão da oferta de bens e serviços sociais, porém tal expansão é
excludente e limitadora às classes mais desenvolvidas da sociedade, o que
implica no agravamento da desigualdade social e regional do Brasil.
De 1985 a 1988: a Constituição Cidadã e o surgimento do
novo-sindicalismo
O período que se estende entre os anos de 1985 e 1989 é conhecido
pela transição democrática e marcado pela Constituição Federal de 1988, que
representou a etapa fundamental do projeto de reformas progressistas. A Carta
GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ
33
consolidou o fim da ditadura militar e reorganizou o Estado em bases liberais e
democráticas.
Desde a metade da década de 1970, já é possível observar a
intensificação do processo de reorganização política da sociedade civil, de tal
forma que na primeira metade da década seguinte um amplo projeto de
reforma de caráter nacional, democrático, desenvolvimentista e redistributivo já
eram desenhados pelas forças oposicionistas.
A década de 1980 foi um período de grande efervescência do
movimento sindical e outros movimentos sociais, os quais ganharam força, se
expandiram e se uniram na luta contra a ditadura militar, tendo papel atuante
com propostas e sugestões de emendas ao texto constitucional, o que garantiu
a inscrição de um conjunto de novos direitos sociais na Constituição aprovado
(Araujo e Filgueiras, 2010). A institucionalidade foi criada no Estado Novo, e se
consolidou em 1988, levando a certa relação entre Estado, sindicato, trabalho,
e a sociedade.
Os anos 80 são de grande eficiência e eficácia da ação representativa e
organizativa sindical, de acordo com Cardoso (2004) os principais vetores do
crescimento vertiginoso do movimento sindical neste período são: 1. Formas
sobreviventes da resistência ao regime militar; 2. Estrutura sindical corporativa
(imposto sindical, burocracia ágil e alianças políticas duradouras) foi mantida
intacta pelos militares; 3. Relações de trabalho eram precárias e uso predatório
da força de trabalho, sindicalismo lutava por justiça e dignidade no trabalho; 4.
Altas taxas de inflação, estagnação econômica e reestruturação industrial;5.
Crise fiscal do Estado, que diminuiu qualidade dos serviços públicos e queda
dos salários dos servidores; 6. Crise duradoura restringiu enormemente os
horizontes de cálculo dos agentes econômicos, levando à estratégia sindical do
tudo ou nada (soma zero), a ação confrontacionista mostrou-se bastante eficaz
como meio de fortalecimento de seu poder político e social;
Fagnani (2005) destaca o papel da oposição neste processo de
transição para a normalidade democrática. A principal frente de oposição foi o
Movimento Democrático Brasileiro que foi convertido em Partido, dado origem
ao PMDB, em 1979.
34
Dentre todo o movimento, o autor enfatiza a produção do documento
“Esperança e Mudança: uma Proposta de Governo para o Brasil” (PMDB,
1982), que delimita um amplo projeto de transformação de cunho nacionalista,
desenvolvimentista, democrático e igualitário. Além de consolidar diversas
agendas setoriais, as diretrizes políticas, econômicas e sociais do documento
“serviram de fio condutor das forças progressistas no longo processo de luta
que desaguou na Assembleia Nacional Constituinte; e, além disso, suas
principais bandeiras foram inscritas na Constituição de república promulgada
em 1988” (Fagnani, 2005:102).
A motivação do documento é o agravamento da situação social do país
no inicio da década de 1980, dada à crise de caráter econômico, social e
institucional. Dessa forma, o documento afirmava que a única saída para tal
crise era o restabelecimento da democracia e do Estado de Direito, dando,
assim, grande importância aos movimentos sociais e ao fortalecimento dos
partidos políticos.
No âmbito do desenvolvimento social a estratégia era promover
distribuição de renda e da riqueza social, através de dois eixos: reformas
sociais e institucionais e o conjunto de políticas públicas para redistribuição de
renda. O documento ainda contemplava diretrizes para mudanças na política
econômica e na questão do resgate da identidade nacional (Fagnani, 2005).
O período de 1985 a 1988 é caracterizado pela transição para a
democracia, porém este processo é complexo e envolve diversos aspectos, por
isso, a intenção deste trabalho á apenas esboçar os principais elementos que
determinam esse movimento. O autor destaca que houve um pacto político
conservadorem 1984 responsável pela transição, cuja representação simbólica
foi a “Aliança Democrática”, que explicitava uma série de “compromissos
impostergáveis e fundamentais com a nação brasileira” nas esferas política,
econômica e social.
Entre 1985 e 1985, a Secretaria de Planejamento da presidência da
república formulou diversos planos de desenvolvimento econômico e social
assimilando as principais bandeiras oposicionistas e reafirmando a prioridade
do enfrentamento da questão social e da reforma da política social da ditadura,
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35
dentre eles, destaca-se o “Plano de Metas”, que estabeleceu metas ambiciosas
paras os anos de 1986-1989.
O objetivo do Plano era a inclusão social e a redistribuição de renda, que
poderia ser alcançado dado um novo modelo de desenvolvimento econômico
baseado na determinação política em direcionar as opções macroeconômicas
as prioridades sociais.
Segundo o autor, para reformar da política social estabelecida a partir de
1964, era necessário que houvesse: uma revisão dos mecanismos regressivos
de financiamento e gasto social e da centralização das decisões no Executivo
federal; redução da privatização do espaço público via ampliação do controle
social; e uma reforma gerencial buscando reduzir a fragmentação institucional.
Em suma, era preciso reduzir as características consolidadas no período
anterior.
Segundo Fagnani (2005:158) “Em 1984, com a consolidação da
candidatura de Tancredo Neves, o Movimento Sanitarista teve papel decisivo
na montagem da proposta do novo governo e na construção dos consensos em
meio ao embate político da transição”. O movimento atuou de forma direta em
diversas frentes ampliando sua participação no ambiente político e
parlamentar.
Sobre o movimento de transição democrático, pode-se afirmar que
houve um movimento de propostas tanto no que se refere ao desenvolvimento
social quanto às reformas das políticas sociais. Neste sentindo Fagnani
(2005:164) afirma:
“(...) a partir de meados dos anos 70, no bojo do processo de reorganização política da sociedade civil, as forças oposicionistas construíram uma extensa agenda política, econômica e social de mudanças. Na primeira metade dos anos 80, já era possível identificar os contornos de um amplo projeto de reforma de cunho nacional, democrático, desenvolvimentista e igualitário. A construção de um efetivo Estado Social, universal, equânime, era um dos cernes desse projeto”.
Entre 1985 e 1988, setores da esquerda brasileira, representantes de
forças políticas que fizeram oposição ao regime militar e que passaram a
36
participar do processo decisório federal, tentaram programar um amplo projeto
reformista progressista. Tal tentativa começou na frente de luta nessa direção
se deu na esfera do governo da Nova República, em seguida, deslocou-se para
a Assembleia nacional Constituinte (ANC) e, por fim, resultou na promulgação
da Constituição Federal de 1988, que consolidou tais impulsos e movimentos
reformistas.
Os impulsos e movimentos reformistas de iniciativa do Executivo
Federal, que surgiram em 1985-1986 foram: a instituição do seguro-
desemprego; a reincorporação da Reforma Agrária na agenda governamental;
a reforma da Previdência Social; a Reforma Sanitária; a Reforma Educacional;
a reforma das políticas urbanas; e o reforço da alimentação popular.
Segundo Fagnani (2005), em 1987 e 1988, o projeto reformista
progressista teve como lócus a Assembléia Nacional Constituinte e, após um
longo período de discussões e disputas, suas principais bandeiras foram
inscritas na Constituição de 1988.
Dentre os conceitos introduzidos pela Constituição de 1988, dois
conceitos devem ser destacados: a seguridade social e a descentralização. O
princípio da seguridade social compreende no “conjunto de ações integradas
destinadas a assegurar direitos sociais universais nos campos da previdência,
saúde, e assistência social, independente da contribuição individual para o
financiamento dessas ações” (Fagnani, 2005:175).
Dois pressupostos básicos estão por trás deste conceito: todo cidadão é
titular de um conjunto mínimo de direitos sociais independentemente de sua
capacidade de contribuição para o financiamento dos bens e serviços; e é
responsabilidade da sociedade prover recursos para assegurar o primeiro
pressuposto.
Dessa forma, o Poder Público tinha como objetivos: a universalização da
cobertura e do atendimento, uniformidade e equivalência dos benefícios às
populações urbanas e rurais, seletividade na prestação dos benefícios e
serviços, irredutibilidade do valor dos benefícios, equidade na forma de
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37
participação no custeio, diversidade da base de financiamento, caráter
democrático e descentralização da gestão administrativa (Fagnani, 2005).
A Constituição de 1988 contemplou uma série de direitos, mas cabe
ressaltar que, para o mundo do trabalho, ela foi fundamental, pois garantiu um
conjunto de direitos trabalhistas estendidos aos trabalhadores rurais e em parte
ais empregados domésticos, também modificou a legislação sindical.
No que tange aos sindicatos, a Constituição eliminou a possibilidade de
intervenção estatal nos sindicatos, retirando da ilegalidade as Centrais
Sindicais e estabelecendo maior liberdade de organização horizontal e vertical,
reconheceu o direito de sindicalização dos funcionários públicos e previu o
direito de escolha de delegados sindicais nas empresas. Entretanto, foi mantido
o sindicato único por categoria, tendo como base territorial mínima o município,
e o chamado imposto sindical, que eram elementos centrais do modelo sindical
corporativista criado nos anos 30 (Araujo e Filgueiras, 2010).
Este período foi, sem duvida, um ponto de ruptura em meio ao
movimento anterior e que, ao mesmo tempo, sofreu um grande revés no
período seguinte. O cerne da questão aqui levantado é a importância dos
movimentos sociais, principalmente dos sindicatos, para a consolidação de
uma Constituição cidadã, que garante um conjunto vasto de direitos políticos,
civis e sociais.
Os sindicatos e demais movimentos sociais foram fundamentais para a
consolidação da Constituição de 1988, já que estes lutavam por um padrão de
proteção social universal e público. Em outras palavras, o que deve ser
ressaltado aqui é que o contexto econômico, social e político dos anos 1980
abriu espaço para que os movimentos sociais e sindicatos lutassem por um
projeto de proteção social englobando uma série de direitos sociais e diversos
setores.
Mais do que a ruptura de um movimento anterior, este período marca a
tentativa, em grande parte, vitoriosa com atuação direta do povo para a
articulação de novas relações sociais e salariais no Brasil através do controle
38
do capital por meio do Estado, inibindo os interesses privados e mercantis
sobre os bens públicos.
Neste período, as revindicações dos sindicatos buscavam mudanças no
padrão de desenvolvimento capitalista brasileiro e seus reflexos em todos os
setores sociais. Os sindicatos eram, portanto, organizações sociais que tinham,
na maioria das vezes, interesses que transcendiam o mercado de trabalho
formal, uma vez que buscavam melhorias para toda população brasileira.
Esta análise se torna ainda mais relevante ao perceber que tal
movimento foi na contra marcha de um processo de ampliada desestruturação
e incertezas que já vinha ocorrendo no mundo e que chega com maior força no
país nos anos seguintes. A adoção de políticas neoliberais ganha força nos
anos 1990 no Brasil e é, em conjunto com outros fatores, a responsável pela
mudança na orientação das políticas e, principalmente, das revindicações dos
movimentos sociais.
De 1988 a 2013: políticas neoliberais e o novo rumo dos
sindicatos
Nos anos 80, o movimento redemocratizante e a piora generalizada nas
condições socioeconômicas acabam por frear o movimento que já se constituía nos
principais países capitalistas, a adoção de políticas neoliberais. A forma tardia como a
flexibilização se consolidou no Brasil tem aspectos positivos, principalmente no que se
refere à consolidação de direitos sociais estabelecidos na Constituição de 1988.
Durante a década de 1980, um aspecto importante que deve ser destacado foi
à luta, através da CUT principalmente, para implementação de uma estratégia sindical
de combate à política de desenvolvimento pró-monopolista, pró-imperialista e pró-
latifundiária do Estado brasileiro (Boito Jr, 1999). Neste sentido, o autor afirma que:
É possível afirmar que essa concepção sindical e a estratégia
de ação a ela vinculada corporificaram uma orientação de oposição à
política de desenvolvimento pró-monopolista, pró-imperialista e pró-
latifundiaria do estado brasileiro (Boito Jr., 1999:137).
Essa proposta tinha como base a ideia de que a ação sindical iria além
da defesa dos salários e das condições de trabalho, já que apontava para a
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necessidade de uma alteração no bloco de poder, de forme que os interesses
dos trabalhadores fossem contemplados. Apesar dessa estratégia adotada, a
tendência à deterioração dos salários se confirmou na década de 1980.
Mesmo assim, a estratégia alcançou diversas vitórias, entre elas,
destaca-se o fato de que tal política:
(...) contribuiu, de modo decisivo, para a constitucionalização
de inúmeros direitos políticas, sociais e trabalhistas, como o direito de
greve, a aposentadoria por tempo de serviço e sem idade mínima, a
jornada semanal de 44 horas, a extensão da legislação trabalhistaaos
empregados domésticos e muitos outros (...)(Boito Jr., 1999:137).
Essa vitória tem um significado ainda maior quando se observa os
anos 90, isso porque, segundo Boito Jr. (1999), ela se revelou um obstáculo à
implantação do programa neoliberal no Brasil. Tendo isso em mente, destaca-
se como o quadro consolidado nos anos 1980 é revertido na década seguinte.
No Brasil, a década de 1990 é marcada por abertura comercial e
financeira, privatizações, desnacionalização dos capitais em diversos setores,
estabilização dos preços (a partir de 1994), grande fluxo de capitais, políticas
macroeconômicas restritivas (cortem de gastos do governo, altas taxas de
juros, e a redução dos reajustes salariais). Além disso, a principal característica
desta década para o período é o processo de reestruturação produtiva que, de
forma tardia, que as empresas realizaram buscando se ajustar às novas
condições da economia brasileira inserida neste novo contexto internacional
(Krein, 2007).
“O Brasil incorpora, de forma tardia e singular, a agenda da
flexibilização16das relações de trabalho. Tardia em relação aos países
centrais17,pois ela aparece com intensidade nos anos 90,3 no contexto de
16 A preferência pelo conceito de flexibilidade justifica‐se por ser este mais ajustado à realidade brasileira, que não conheceu, com exceção da previdência e dos servidores públicos, uma desregulamentação de direitos, mas assistiu à introdução de novas regulamentações que ampliaram a flexibilidade nos elementos centrais da relação de emprego.
17 O tardio da agenda liberal, como lembra Ricardo Antunes (2006), precisa ser visto como algo positivo, pois expressa a existência de um movimento de resistência da sociedade.
40
uma crise econômica, abertura comercial e financeira com valorização
cambial, redefinição do papel do Estado, reestruturação produtiva e
opção política pelo neoliberalismo. Singular, pois as especificidades
nacionais do nosso capitalismo tardio mostram que o Brasil sempre teve
um mercado de trabalho flexível, especialmente depois da ditadura
militar, permitindo ao empregador ajustar o volume e o preço da força de
trabalho às diferentes conjunturas econômicas.Portanto, diferentemente
dos países centrais, aqui a regulação social do trabalho não alcançou o
mesmo grau de proteção.” (Krein, 2007:1).
Segundo Krein (2007), houve, portanto, mudanças na estrutura das
relações de trabalho. O Estado teve seu papel invertido, através da
subordinação da política à economia, e os sindicatos foram imensamente
fragilizados, por conta da menor capacidade de intervenção na regulação e nos
rumos da sociedade.
Com tais mudanças, as negociações coletivas se tornam uma forma de
amenizar a precarização do trabalho, proteger os direitos sociais e as
conquistas dos trabalhadores. Tais negociações buscavam melhorias nas
condições de trabalho, sendo assim, os sindicatos passaram a atuar muito
mais para interesses de um grupo especifico do que para interesses coletivos
como no período anterior.
A mudança na orientação das lutas dos sindicatos é de suma
importância para este trabalho, pois o processo de mercantilização dos bens
públicos que vinha ocorrendo desde 1930, como já exposto, ganha espaço
neste contexto. Os sindicatos, que antes transcendiam o mercado de trabalho
formal em busca de avanços nas políticas sociais universais, agora focam suas
lutas em aspectos próprios do mercado de trabalho.
A década de 1990 é marcada por uma reversão na cena brasileira no que tange ao movimento sindical, principalmente a partir de 1994, com a estabilização monetária através do Plano Real. Cardoso (2004) destaca 8 principais aspectos dessa reversão:
1. Aprofundamento da redemocratização reduziu o potencial político
dos movimentos sociais de cunho contestatórios;
2. A liberação parcial instituída pela Constituição de 1988 tornou-se um
dos principais elementos de seu enfraquecimento na década de
1990;
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41
3. Reestruturação industrial facilitou a negociação entre trabalhadores e
gerencia, sem a interferência sindical. As altas taxas de rotatividade
foram trocadas por terceirizações e subcontratações;
4. Com o Plano Real houve queda na taxa de inflação, mas também um
aumento expressivo do desemprego e da informalização, o que reduz
severamente a propensão dos trabalhadores à ação coletiva.
5. Estado continuou em crise, o que levou a apatia política da
sociedade, reduzindo a capacidade de mobilização social;
6. Estratégias do tipo “soma zero” foram reduzidas pela conjuntura de:
insegurança estrutural no emprego dado pela reestruturação
industrial e econômica, fim da inflação e pleno de ajuste econômico.
7. Os altos índices de desemprego levaram a problemas de
financiamento dos sindicatos.
8. Ataque incisivo e direto do governo FHC contra a CUT e a esquerda
em geral. Um exemplo disso foi a greve dos petroleiros, em que
houve demissão de líderes sindicais e nenhuma reivindicação
atendida, lembrando piores momentos da repressão aos movimentos
operários durante a ditadura, essa ocasião representou uma grande
derrota para a CUT.
De forma geral, os salários e condições de trabalho foram alvos centrais
enquanto segurança no emprego não ganhava importância. A estabilidade no
emprego tornou-se crucial e a própria sobrevivência dos sindicatos passou a
depender dela.Apesar de haver exceções, que é o caso do setor automotivo,
houve destruições de 2 milhões de empregos formais na indústria, além de
deterioração do serviço público, pilares da organização nacional.
Cardoso (2004), ao analisar tal reversão do quadro destaca a
incapacidade dos sindicatos em unir forças e sustentar um movimento social
contra a adoção de políticas neoliberais adotadas pelo governo Fernando
Henrique Cardoso:
Os movimentos nacionalistas, de esquerda ou não, não foram
capazes de canalizar para si a insatisfação popular e fazer disso
movimento sustentado de resistência à privatização de antigos bastiões
42
do movimento sindical brasileiro. Mais do que isso, em vários casos a
privatização levou à perda de poder por parte de direções cutistas para
entidades concorrentes, com destaque para a Força Sindical. (Cardoso,
2004:46)
Neste sentido, o autor afirma que, ao longo da década de 1990, o
neoliberalismo parece ter vencido não apenas uma batalha, mas a guerra
política e ideológica. Porém tal pessimismo e sensação de derrota irreversível
estão diretamente relacionados com a referência adotada: os anos 80,
marcado pelo fortalecimento do movimento sindical.
Na década de 1990, um dos reflexos das profundas mudanças nas bases da
ação sindical foi o deslocamento do centro da arena política brasileira. Em um
contexto completamente hostil, as centrais sindicais se mostraram incapazes
de oferecer alternativas viáveis às políticas neoliberais, as quais destruíram as
bases de sustentação do sindicalismo brasileiro.
Os traços gerais da velha estrutura corporativa ainda persistem embora a
atuação sindical tenha se deparado com novos desafios
Tendo como suporte para tal discussão o trabalho de Boito (1999) e Ferraz
(2006), destaca-se que ambos reconhecem que o sindicalismo e
movimentações nos anos 90 se fragilizam, nenhum ignora que houve
mudanças, tanto de estratégia quanto de contexto. A diferença é que o Boito
(1999) enfatiza a explicação pela mudança de estratégia adotada pela CUT,
que passou de ser um movimento confrontista para um movimento de
negociação, enquanto que Ferraz destaca a explicação pela mudança de
contexto que acarretou em demais mudanças.
De acordo com os dois autores utilizados, fica claro o enfraquecimento do
movimento sindical nos anos 90 decorrente de uma série de fatores sociais,
políticos, econômicos, conjunturais e até estruturais. Neste sentido Cardoso
(2004) afirma que o movimento sindical, representado pelas centrais, não foi
capaz de articular interesses e se organizar buscando o fortalecimento do
movimento sindical.
Na década de 1990, mudanças profundas nas bases da ação
sindical resultaram em seu deslocamento do centro da arena política
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43
brasileira. Lutando por sobreviver em um ambiente pouco amistoso, as
centrais sindicais mostraram-se incapazes de oferecer alternativas
viáveis as políticas neoliberais que erodiram suas bases de sustentação.
(Cardoso, 2004:73)
Diante de todo o exposto, dos altos e baixos vividos pelo movimento
sindical no Brasil, avanços e recuos, ascensão e declínio dos sindicatos, a
atuação destas organizações na cena política nacional continuará exercendo
seu papel de importância, não apenas para os trabalhadores, na relação
capital-trabalho, mas também nas relações que permeiam a sociedade em
geral na relação entre seus diversos atores.
Porém, cabe a reflexão do papel do sindicato no confronto à
adoção de políticas neoliberais que resultam não só na precarização do
trabalho em diversas frentes, mas também na mercantilização dos bens
públicos e, indiretamente, precariza a vida de todos os brasileiros. Os
sindicatos são atores fundamentais para a representação dos trabalhadores
frente aos diversos e poderosos interesses que se apresentam na cena
brasileira atual.
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ID 353
A MOBILIZAÇÃO DOS DESEMPREGADOS NOS ANOS 2000 AUTORES: Elaine Regina Aguiar Amorim
Resumo Em 2000, surgiu no estado do Rio Grande do Sul (RS), o Movimento
dos Trabalhadores Desempregados (MTD). O MTD/RS originou-se a partir da iniciativa de militantes nucleados na Consulta Popular e pertencentes a diversas organizações sociais e políticas. O objetivo geral que norteia o estudo que estamos desenvolvendo e que se insere em uma pesquisa mais ampla de pós-doutorado, consiste em analisar a trajetória política do MTD durante a década de 2000. Para tanto, realizamos uma pesquisa documental, bibliográfica e empírica. Esta última, realizada junto ao MTD/RS, consistiu, por um lado, na realização de entrevistas qualitativas com membros que pertenciam à Coordenação Executiva e Estadual, com lideranças intermediárias e, por outro, na aplicação de um questionário semi-aberto com uma pequena parcela da base social. Pretendemos discutir no GT alguns dos resultados alcançados, até o momento, que se referem às mudanças e/ou continuidades observadas nas reivindicações, na base social e nas formas de organização do MTD.
Palavras-chave: desemprego, neoliberalismo, flexibilização dos direitos trabalhistas, movimento de desempregados, lutas sociais.
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Introdução
A gestação do Movimento de Trabalhadores Desempregados (MTD) do
Rio Grande do Sul, no final dos anos de 1990, ocorreu em um contexto de
refluxo do movimento operário e popular. Ao contrário das inúmeras
mobilizações, das greves massivas e da significativa capacidade organizativa
do movimento operário e sindical observadas na década anterior (1980) e que
tiveram o papel de retardar a implantação do neoliberalismo no país (GALVÃO;
BOITO; MARCELINO, 2011), os anos de 1990 caracterizaram-se pela
diminuição das ações grevistas, por mudanças na prática sindical do
sindicalismo combativo e pela aplicação das políticas neoliberais.
Ao observarmos os dados sobre o mercado de trabalho brasileiro ao
longo da década de 1990 e início dos anos 2000 encontramos informações
significativas para a compreensão dos impactos das políticas neoliberais sobre
o desemprego. Se considerarmos os registros do DIEESE18, somente na região
metropolitana de São Paulo a taxa média de desemprego aumentou de 14,2%,
em 1994, para 19,3%, em 1999, e 20,4% em abril de 2002; porcentagem que
bateu recorde histórico por ter sido superior a todas as outras registradas
desde 1985, quando se iniciaram os levantamentos feitos por esse
departamento (DIEESE, 2002). A esse quadro poderíamos acrescentar, ainda,
a difusão de formas e contratos de trabalho precários e a redução do caráter
protetor da legislação trabalhista, expressos, por exemplo, no crescimento da
informalidade brasileira19 (POCHMANN, 2006).
18 A mediação oficial do desemprego nacional realizada pelo IBGE pautava-se, até 2002, em uma metodologia que considerava como desempregado somente o trabalhador que na semana anterior à pesquisa tivesse procurado emprego e não trabalhado nem mesmo 60 minutos, como também estivesse apto para ocupar imediatamente uma vaga. Disso resultava a subestimação das taxas auferidas por esse instituto. Por isso, utilizamos os dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômico (DIEESE) que, embora registre os dados relacionados somente às seis principais regiões metropolitanas do país, adota os 30 dias anteriores da pesquisa como período de referência e considera nos seus levantamentos a soma dos índices relativos ao desemprego oculto pelo trabalho precário, ao desemprego oculto pelo desalento e ao desemprego aberto.
19 Para se ter uma noção da magnitude da informalidade no Brasil 1/3 das ocupações existentes durante os anos de 1980 não tinha carteira assinada. Esta situação somente agravou-se durante a década de 1990 juntamente com o aumento do desemprego aberto e com a difusão das novas formas de trabalho precário. De acordo com Pochmann (2007, p.1) a inflexão do mercado brasileiro a partir de meados da década de 1980 teria reconfigurado a informalidade. Entre 1985 e 2005 de cada 10 postos de trabalho criado no período, seis foram assalariados (20,2 milhões) e dentre estes quatro com carteira assinada (12,7 milhões de empregos formais). Em contrapartida, o país criou um contingente adicional de 13,1 milhões de postos de trabalho não assalariados, correspondendo a 40% do total de postos gerados.
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Pode-se dizer que o desemprego minou a luta sindical nesse período
(BOITO, 2002), na medida em que atingiu setores importantes e ativos do
sindicalismo combativo (por exemplo, os bancários e os metalúrgicos), mas
contribuiu também para a formação de novas resistências, como exemplifica o
movimento que nos propomos aqui analisar. Isto significa que, ao mesmo
tempo em que o neoliberalismo atingiu diretamente as classes trabalhadoras e
provocou o recuo de suas organizações representativas frente ao temor do
desemprego, as suas consequências desencadearam ou reativaram novas
formas de resistência e organização dos trabalhadores. A primeira organização
do MTD, no estado do Rio Grande do Sul, gestou-se, então, nessa conjuntura
adversa para o movimento operário e sindical.
Com a vitória de Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2003,
configurou-se uma nova conjuntura, marcada, de um lado, por certas
expectativas em relação ao seu governo, considerado por alguns como um
“governo em disputa” e, de outro lado, pelas contradições e impasses
vivenciados pelos movimentos sociais e sindicais, frente às medidas tomadas
pelo presidente. De certo modo, as políticas voltadas para os direitos dos
trabalhadores seguiram um movimento contraditório, na medida em que, em
alguns casos, ampliou tais direitos e, em outros, provocou uma deterioração
dos mesmos. Movimento semelhante ocorreu em relação à melhoria dos
indicadores do mercado de trabalho, como a diminuição do desemprego, que
acompanhou, em contrapartida, a intensificação da precarização do trabalho.
No que diz respeito às lutas sociais, a década de 2000 caracterizou-se,
segundo alguns autores, pela “acomodação política” do movimento sindical e
popular (GALVÃO, BOITO, MARCELINO, 2011); acomodação que tampouco
significou a ausência de mobilizações junto às bases sociais, mas sim uma
tendência, por parte das cúpulas dos movimentos, a evitar o confronto com o
governo.
Parte significativa da trajetória do movimento de desempregados aqui
analisado inseriu-se, portanto, nessa conjuntura complexa. A proposta de
comunicação que ora apresentamos pauta-se em uma pesquisa de pós-
doutorado, ainda em curso, que tem como objeto a trajetória política do
Movimento dos Trabalhadores Desempregados do Rio Grande do Sul
(MTD/RS). O presente estudo pauta-se em uma pesquisa documental,
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bibliográfica e empírica. Esta última, realizada junto ao MTD/RS, consistiu, por
um lado, na realização de entrevistas qualitativas com membros que
pertenciam à Coordenação Executiva e Estadual, bem como com lideranças
intermediárias (responsáveis por empreendimentos produtivos e
coordenadores de núcleos de bairros) e, por outro, na aplicação de um
questionário semi-aberto com uma pequena parcela da base social.
Pretendemos discutir no GT alguns dos resultados alcançados, até o
momento, com o desenvolvimento da pesquisa e que se referem às mudanças
e/ou continuidades observadas nas reivindicações, na base social e nas formas
de organização do MTD. Para isso, o texto está dividido em quatro partes: na
primeira procuramos apresentar alguns traços dos governos de Fernando
Henrique Cardoso (FHC) e Lula da Silva, especialmente os que se referem aos
indicadores do mercado de trabalho e às políticas relativas ao direito do
trabalho; na segunda discutimos a formação, os principais antecedentes, as
primeiras reivindicações e experiências de luta do MTD/RS; na terceira parte
discutimos a reorientação das formas de organização e as reformulações das
demandas elaboradas pelo movimento ao longo da sua trajetória e analisamos
as características da sua base social, indicando, por ora, algumas hipóteses
para a configuração que esta apresenta, especialmente, a sua feminização; na
última parte discutimos, brevemente, os efeitos das mudanças na correlação de
forças na esfera estadual e federal sobre o movimento, como por exemplo, a
repressão exercida pela governadora Yeda Crucius durante o seu mandato
(2007-2010).
Anos 2000: do desemprego generalizado ao crescimento do
emprego e à continuidade da flexibilização
O Brasil adentrou o século XXI com um grande contingente de
desempregados e com uma reduzida participação do assalariamento formal. A
título de comparação, o país tinha 2 milhões de desempregados em 1989 e
alcançou cerca de 11,4 milhões, em 2000, segundo o Censo Demográfico do
IBGE (DIEESE, 2002, p.2). Isto significa que no transcurso de uma década
surgiram mais de 9 milhões de desempregados. Somava-se a esse grave
quadro, a predominância de formas instáveis de inserção no mercado de
trabalho, pois de um total de 75 milhões de pessoas que compunham a PEA
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(População Economicamente Ativa), em 2000, somente 36% (em torno de 27
milhões) tinham carteira assinada (DIEESE, 2002, p.2). Mais da metade dos
trabalhadores estava completamente excluída da proteção dos direitos sociais
e trabalhistas, representando em números absolutos, 48 milhões de pessoas!
Em contrapartida, o país encerrou a década apresentando um
cenário diferente. Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios – Pnad/IBGE) para o ano de 2009, indicavam que do total de 101
milhões de pessoas que compunham a PEA, aproximadamente 92% estava
ocupada (92,5 milhões) e 8,3% desocupada (8,4 milhões) (DIEESE, 2012,
p.57). Redução semelhante observou-se nos levantamentos feitos pelo
DIEESE em cinco regiões metropolitanas (Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife,
Salvador e São Paulo) e no Distrito Federal. Outro indicador importante refere-
se à expansão do assalariamento formal. Apesar da existência de uma alta
porcentagem de empregos informais no país, a formalização expandiu-se,
contemplando 51,8% do total de ocupações das principais regiões
metropolitanas (DIEESE, 2012, p.165).
As alterações observadas entre o início e o final dos anos 2000,
segundo os dados acima, mostram que o mercado de trabalho brasileiro não
apresentou uma trajetória linear ao longo desses anos, especialmente em
relação aos indicadores sobre desemprego, emprego e informalidade. A
década pode ser dividida em dois momentos distintos, caracterizados,
respectivamente, por um aumento recorde e generalizado das taxas de
desemprego (especialmente em 2003) e pela posterior redução destas taxas
(2006 a 2010), ao ponto de alguns segmentos e regiões terem se aproximado,
em 2011, a uma situação de “pleno emprego” (KREIN; SANTOS, 2012, p.92).
Para compreendermos como ocorreram tais alterações, retomamos
brevemente algumas características do período, tendo como “pano de fundo”
os anos de 1990.
Após dez anos de implantação e consolidação do modelo político
econômico neoliberal, o país refletia no início dos anos 2000 os impactos
sociais e econômicos que as políticas implementadas na década anterior
haviam produzido. À frente da Presidência, Fernando Henrique Cardoso (1995-
2002) deu continuidade aos processos de privatização, de abertura do mercado
nacional e financeiro, bem como impulsionou a desregulamentação do
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mercado de trabalho por meio da reforma trabalhista. Cada uma dessas
medidas, inclusive combinadas com novos métodos de organização do
trabalho e inovações tecnológicas introduzidas pelas empresas, contribuiu para
o aumento do desemprego – como exemplificam os setores bancários,
metalúrgicos, têxteis, calçados, cujos postos de trabalho reduziram-se
significativamente. O nível de emprego industrial, quando comparado com o
final dos anos de 1980, diminuiu acima de 30% em vários subsetores (DIEESE,
2002), indicando o processo de desindustrialização em curso.
Sob o governo FHC ganhou força a reforma da legislação trabalhista
(GALVÃO, 2007) e, por consequência, uma maior desregulamentação do
mercado de trabalho. Aqui cabe ressaltar uma característica do mercado de
trabalho brasileiro anterior à aplicação das políticas neoliberais, qual seja: o
seu caráter pouco regulamentado. Neste caso, chama a atenção que entre as
particularidades do processo de flexibilização dos direitos trabalhistas no Brasil
destacaram-se o seu caráter tardio e a lentidão na sua implementação
(GALVÃO, 2007; BOITO JR., 1999). As facilidades para se demitir e a
existência de formas de contratação bastante flexíveis contribuíram para que
as primeiras reformas neoliberais realizadas se direcionassem para outras
áreas. Priorizou-se, então, a aplicação das reformas administrativa e
previdenciária, bem como a abertura do mercado por meio da redução das
tarifas aduaneiras. De acordo com a afirmação de Armando Boito Jr. (1999, p.
93): “na realidade, o neoliberalismo brasileiro deparou-se com um mercado de
trabalho muito menos regulamentado do que aquele com o qual tiveram de
tratar os governos neoliberais nos países desenvolvidos” (BOITO JR., 1999, p.
93).
Tal reforma era defendida por entidades patronais devido à excessiva e
rígida regulação estatal do mercado de trabalho. A rigidez20 manifestar-se-ia no
detalhismo da legislação e nos altos encargos sociais: no primeiro caso, a
excessiva regulação tornaria a contratação formal onerosa e impediria a
20 Duas posições favoráveis à flexibilização no debate brasileiro dos anos de 1990 são discutidas em detalhe por Krein, Santos e Nunes (2012). Apresentamos acima uma das explicações da rigidez do mercado de trabalho exposta por uma dessas posições, por nos parecer a que mais se difundiu e, segundo os autores, a que se ajustou nitidamente aos preceitos do neoliberalismo, encontrando respaldo nas principais entidades empresariais e em organismos multilaterais, como FMI (Fundo Monetário Internacional), Banco Mundial e OMC (Organização Mundial do Comércio).
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negociação direta entre as partes, provocando o desemprego e a
informalidade; no segundo, a obrigatoriedade e a determinação por lei das
alíquotas impediam a competitividade interna e internacional das empresas, o
que combinado com o alto custo dos encargos, se repercutiam em salários
baixos para os trabalhadores (KREIN; SANTOS; NUNES, 2012). Para
combater tal rigidez seria necessário, na opinião das entidades patronais,
flexibilizar os contratos de trabalho (aumentando a produtividade e
competitividade das empresas e fomentando a geração de empregos);
estimular a negociação direta entre trabalhadores e empregadores (reduzindo a
intervenção do Estado, que passaria a ter como única função assegurar o
funcionamento do mercado); como também limitar a ação da Justiça do
Trabalho na resolução de conflitos21.
Em síntese, a rigidez do mercado de trabalho brasileiro e o elevado
custo da força de trabalho tornaram-se os principais argumentos que
respaldaram as ações governamentais, no sentido de colocar em prática
políticas de redução dos custos do trabalho e contenção dos salários e
benefícios. O que estava implícito especialmente no que se convencionou
chamar “custo Brasil”, era a responsabilização do próprio trabalhador pela sua
situação de desemprego, pois para o emprego aumentar caberia ao
desempregado aceitar salários e condições de trabalho abaixo do estabelecido
legalmente. Tratava-se de transferir para os indivíduos a responsabilidade do
governo pelo alto nível do desemprego – transferência também realizada em
momentos anteriores, mas com base no argumento que culpabilizava a falta de
qualificação profissional dos trabalhadores (POCHMANN, 2003).
Nesse sentido, as duas principais políticas adotadas pelo governo
foram a desindexação salarial (MP 1.079/95), pondo fim à política salarial de
reajuste automático que perdurou durante 30 anos (1964 a 1994), e a
flexibilização do mercado de trabalho (POCHMANN, 2003). Anunciada como
parte de um pacote de “combate ao desemprego”, a flexibilização dos contratos
21 Enquanto no primeiro mandato do governo FHC aprovou-se, por meio da Portaria 865/96, a proibição dos fiscais do Ministério do Trabalho de autuarem empresas que descumprissem cláusulas acordadas coletivamente (GALVÃO, 2007), interferindo diretamente na fiscalização do trabalho, outras medidas aprovadas no segundo mandato, como a eliminação da figura do juiz classista (EC n.24/99) e a instituição das comissões de conciliação prévia (Lei 9.958/2000), buscaram estimular o emprego de “(...) mecanismos extrajudiciais de solução dos conflitos” (GALVÃO, 2007, p. 224), e diminuir a recorrência à Justiça do Trabalho.
54
de trabalho efetivou-se com a Lei 9.601/98, que instituiu os contratos flexíveis
por meio das seguintes medidas: extensão do contrato de trabalho por prazo
determinado para qualquer setor ou ramo de atividade (sob essa modalidade
de contratação os empregadores passavam a depositar somente 2% do salário
– não mais 8% – ao FGTS, reduzindo os benefícios recebidos pelos
trabalhadores); banco de horas; contratação em tempo parcial (MP 1.709 –
4/98); e suspensão do contrato de trabalho por um período de dois a cinco
meses, o que excluía das estatísticas de desemprego o trabalhador com
contrato suspenso (GALVÃO, 2007). No segundo mandato do governo FHC, a
flexibilização dos contratos estendeu-se ao serviço público com a aprovação de
leis destinadas a facilitar a demissão dos funcionários públicos e a modificar a
sua forma de contratação – por exemplo, a possibilidade dos contratos serem
realizados conforme as normas da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
Alguns autores (POCHMANN, 2003; KREIN; SANTOS; NUNES, 2012)
destacam que as modificações introduzidas ao longo dos dois mandatos de
FHC nas leis de proteção ao trabalho não significaram uma ampla reforma do
arcabouço legal, contudo, as medidas pontuais introduzidas produziram
alterações substantivas que ampliaram e aprofundaram a flexibilização
contratual, salarial, da jornada de trabalho e das demissões.
Cabe ressaltar que as mudanças introduzidas nas relações de trabalho
não proporcionaram os resultados propagandeados pelos defensores da
reforma trabalhista em termos de diminuição do desemprego, como tampouco
foram acompanhadas por um significativo crescimento econômico22 (GALVÃO,
2007). Além da perda de direitos trabalhistas e da deterioração das relações de
trabalho, o desemprego manteve-se em níveis elevados, como se generalizou
para o conjunto da sociedade, atingindo, especialmente, pessoas com mais de
oito anos de escolaridade, com mais idade (acima de 49 anos), mulheres e
chefes de família. Embora não estivessem imunes ao desemprego,
trabalhadores com menor nível de educação formal, mais jovens, homens e
não chefes de família passaram a ser menos acometidos (POCHMANN, 2003,
p.104); a maior incidência da desocupação entre os mais escolarizados
contrapunha-se, nesse caso, à associação entre maior escolaridade e maiores 22 As taxas de crescimento econômico durante os mandatos de FHC giraram em torno de 2,5% (DIESSE, 2002, p. 2).
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chances de reinserção no mercado de trabalho, como proposto pelos adeptos
da teoria do capital humano.
No que diz respeito à relação entre desempregados e renda, Márcio
Pochmann (2006, p. 64) mostra que o desemprego afetava, em 2002,
especialmente as famílias de baixa renda, cujo rendimento familiar per capita
era inferior a R$163,00 mensais 23 . Do total de desempregados, 62%
pertenciam a famílias de baixa renda, enquanto 32,4% e 5,6% provinham,
respectivamente, da classe média e classe média alta.
Não por acaso, durante a campanha eleitoral de 2002, o tema do
desemprego esteve presente na agenda dos candidatos à Presidência. Dentre
estes, Lula propôs no documento “Mais e melhores empregos” a criação de 10
milhões de postos de trabalho no seu governo, pautando-se, para isso, em uma
política de emprego cujos eixos centrais seriam: a) recuperação do crescimento
econômico em 5% ao ano; b) redução de 10% da jornada de trabalho e das
horas extras; c) introdução de políticas públicas que permitissem retirar do
mercado de trabalho pessoas que não deveriam estar (como é o caso de
crianças, adolescentes e aposentados) (POCHMANN, 2003).
Eleito com mais de 65% dos votos, o presidente Lula enfrentou, em
2003, os piores índices de desemprego registrados pelos institutos de
pesquisa, ao mesmo tempo em que adotou uma política macroeconômica de
natureza ortodoxa, cujas principais medidas consistiram no aumento da taxa de
juros, no superávit primário elevado e no corte do gasto público (POCHMANN,
2003, p. 113). Além disso, o governo realizou já no início do seu primeiro
mandato a reforma previdenciária do funcionalismo público, reduzindo os
direitos trabalhistas desse setor. Essa reforma pôs fim à integralidade e à
paridade dos servidores públicos com a fixação de um limite a ser percebido a
título de proventos de aposentadoria; aumentou o limite de idade para a
aposentadoria; determinou a criação de fundos de pensão complementares; e
23 Valores em reais de setembro de 2002 (POCHMANN, 2006, p.64). Em 2002, o salário mínimo vigente, no valor de R$ 200,00, correspondia 5,6 vezes menos ao que deveria ser, isto é, R$ 1.129,18, segundo as estimativas do DIEESE (DIEESE, 2002, p.4). Apesar de referir-se aos anos de 1990, a maior expansão dos trabalhos sem remuneração, comparados com as outras ocupações, ajuda a compreender a deterioração das condições de vida de parcela dos trabalhadores no início do século XXI. Na década de 1990 os trabalhos sem remuneração cresceram, em média, 7,8% ao ano, enquanto as ocupações com até 1,5 salários mínimos retraíram 0,1% e entre 1,5 a 3 salários mínimos cresceram 2,7% (POCHMANN, 2012, p.31-32).
56
instituiu a cobrança previdência para os inativos (KREIN; SANTOS; NUNES,
2012). A aprovação da reforma da previdência colocou em xeque as
aspirações de uma parcela dos trabalhadores que projetavam na figura do
novo presidente a preservação e a ampliação dos seus direitos, ao mesmo
tempo em que obteve o apoio de uma parcela da população que viram nela o
fim dos privilégios (ao contrário de direitos) gozados pelo funcionalismo público.
Em relação à reforma trabalhista, o governo Lula aprovou medidas que
deram continuidade à flexibilização da legislação trabalhista praticada durante
os anos de 1990 (GALVÃO; BOITO; MARCELINO, 2011). A aprovação de
medidas flexibilizantes, conforme ressalta Galvão (2012), ocorreu em um ritmo
menor que o observado no governo FHC e contemplou mudanças pontuais,
realizadas na legislação ordinária (sem envolver mudanças constitucionais) e
voltadas para públicos-alvo (jovens ingressantes no mercado de trabalho,
pequenas e micro empresas, etc.).
Entre essas leis encontram-se: a Nova Lei de Falências e de
Recuperação Judicial (Lei n.11.101/2005), que desregulamentou o direito de
privilegiar, em caso de falência de empresa, os salários e indenizações devidos
aos trabalhadores, como previa a CLT, além de estabelecer outras medidas24;
o Programa Nacional de Primeiro Emprego (PNPE – Lei 10.748/03 e
10.940.04, regulamentada pelo Decreto 5.199/04), que concedeu incentivos
fiscais para empresas que contratassem jovens, por um período mínimo de 12
meses desde que não ultrapassasse os 20% do total de contratados, nem
utilizasse essa forma de contratação para substituir os demais trabalhadores; o
Contrato de Trabalhador Rural Por Pequeno Prazo (Lei n.11.718/2008), que
permitiu a contratação sem registro em carteira de trabalhadores rurais para
serviços de até 2 meses de duração; o Super Simples (LC 123/2006), que
simplificou ainda mais as rotinas trabalhistas das micro e pequenas empresas,
por exemplo, dispensando-as de fixar quadro de trabalho, anotar férias dos
empregados, possuir Livro de Inspeção do Trabalho, entre outras medidas
(KREIN; SANTOS; NUNES, 2012).
24 Não cabe ao escopo desse estudo, mas seria interessante compreender qual tem sido o impacto dessa lei para as experiências de recuperação e gestão de empresas sob o controle dos trabalhadores (por exemplo, as fábricas recuperadas), que utilizam os créditos trabalhistas que lhes são devidos para a aquisição de fábricas em situação falimentar. Para uma compreensão sobre essas experiências, ver o interessante artigo de Angela Araújo (2009) sobre duas fábricas recuperadas inseridas no setor rural e urbano.
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A aprovação das medidas citadas seguiu uma lógica flexibilizadora, na
medida em que reduziu direitos trabalhistas e favoreceu a redução de custos e
incentivos fiscais para estimular a contratação. No entanto, outras iniciativas
tomadas durante o governo Lula proporcionaram a defesa dos direitos dos
trabalhadores, seja por meio da retirada de pauta de projetos do Congresso
Nacional, seja pela aprovação de políticas específicas. No primeiro caso,
destacam-se a retirada do projeto que previa a prevalência do negociado sobre
o legislado e o veto à Emenda n.3 da Super Receita, que proibia o auditor fiscal
de multar empresas por manter relação de emprego disfarçada. No segundo
encontram-se a aplicação de uma política de valorização do salário mínimo; a
ampliação do seguro desemprego para 7 meses aos setores mais atingidos
com a crise de 2008/2009; a regulamentação do estágio (de modo que fosse
assegurado ao estagiário o pagamento de férias e uma jornada de trabalho de
até 6 horas diárias); o cancelamento de subsídios nas contribuições sociais
para contratação por prazo determinado; e a extensão do direito de recolher a
contribuição social ao INSS para o micro empreendedor (autônomo ou
empreendedor individual).
Ao contrário de uma defesa declaradamente aberta da flexibilização
trabalhista, como se viu durante os anos de 1990, o governo Lula recorreu a
uma defesa parcial (GALVÃO, 2012), realizando alterações pontuais na
legislação do trabalho que significaram um recuo no caráter protecionista da
legislação trabalhista, como introduziu medidas no sentido de ampliar ou
preservar alguns direitos. Em meio a esse posicionamento ambivalente, para
alguns autores predominou uma tendência ao aprofundamento da flexibilização
do trabalho (KREIN; SANTOS; NUNES, 2012). Tendência que se observa na
remuneração variável, na jornada flexível, nas formas de contratação, na
continuidade da terceirização e nas propostas de limitação do direito de greve.
Enquanto o tratamento dispensado aos direitos do trabalho esteve
marcado por essa contradição, a partir de 2004 o mercado de trabalho passou
por mudanças importantes relativas ao aumento da formalização do trabalho e
do emprego. Entre os fatores que possibilitaram uma melhora nos indicadores
do mercado de trabalho destacam-se o crescimento da economia brasileira, a
um nível superior ao verificado entre 1990-2002, e a implementação de
políticas de transferência de renda, de valorização do salário mínimo e de
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acesso ao crédito (KREIN; SANTOS, 2012). O aumento do ritmo do
crescimento econômico e a aplicação desse conjunto de políticas públicas
incidiram positivamente sobre o poder de compra dos salários, o crescimento
do emprego e as oportunidades ocupacionais.
De acordo com dados disponibilizados pelo DIEESE para o conjunto
das regiões metropolitanas pesquisadas, entre 1999-2009, o desemprego
reduziu de 20,2% para 14,2%, correspondendo a uma queda de 30%.
Desagregando esses dados relativos ao desemprego total, observa-se uma
diminuição de aproximadamente 45% do desemprego oculto pelo trabalho
precário e pelo desalento e de 20% do desemprego aberto (DIEESE, 2012,p.
58; 63). A significativa redução do desemprego oculto parece corroborar o
argumento de Krein e Santos (2012), segundo os quais, a partir de meados dos
anos 2000, modificou-se a composição dos trabalhadores em busca de
trabalho, isto é, a maioria correspondia a trabalhadores ocupados à procura de
uma melhor ocupação. De acordo com a explicação desses autores:
“Considerando os mais de 15 milhões de empregados
assalariados informais, esse contexto de ampliação de oportunidades
de emprego permitiu que uma maior proporção de desempregados não
aceitasse ocupar um posto de trabalho informal e sem proteção social,
e que os trabalhadores já ocupados (e sem registro) tentassem
aproveitar as melhores oportunidades para encontrar um emprego
formal e protegido pela legislação trabalhista e pela previdência social.
Quer dizer: a forte ampliação do emprego e a queda do desemprego
reverteram uma situação muito comum até 2003, na qual os
trabalhadores aceitavam qualquer tipo de trabalho e vínculo trabalhista,
em um contexto de desemprego recorde, o que ampliava a participação
do trabalho informal e precário” (KREIN; SANTOS, 2012, p. 97.
Tradução livre).
De um modo geral o desemprego reduziu-se em todos os segmentos, a
ocupação cresceu, especialmente por meio da geração de postos de trabalho
protegidos que possibilitaram uma expansão da formalização, e o perfil da
maior parte dos desempregados caracterizou-se por uma população jovem,
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que ocupava na família a posição de filho, com o Ensino Médio incompleto
(DIEESE, 2012).Tais mudanças, analisadas a partir de uma perspectiva
histórica, representam uma melhoria nos indicadores do mercado de trabalho
nos anos 2000, sobretudo se comparados aos da década de 1990; além disso,
colocam em xeque as teses propagadas nesses anos sobre a necessidade
imperativa de flexibilizar o mercado de trabalho e a impossibilidade de uma
política de valorização salarial para a geração de emprego (DIEESE, 2012;
KREIN; SANTOS, 2012).
Porém, a melhoria do comportamento do mercado de trabalho nos
últimos anos, em especial o crescimento dos empregos protegidos, isto é,
caracterizados por mecanismos legais de proteção social, não pode ofuscar ou
subestimar o fato de que o Brasil convive ainda com altas taxas de
informalidade. Para se ter uma noção, em 2009, 43,4% da população ocupada
no Distrito Federal e nas cinco regiões metropolitanas pesquisadas pelo
DIEESE, encontrava-se em ocupações informais. Estas, ademais, ganharam
novas características com as mudanças provocadas pelas novas formas de
organização da produção e do trabalho, colocadas em prática pelas empresas
de acordo com um movimento mais geral de reestruturação produtiva e
redefinição das formas de exploração da força de trabalho. Daí a importância
de metodologias estatísticas que captem as características das novas
ocupações informais e permitam refinar a própria caracterização da
informalidade no país, tal como encontramos nos levantamentos do DIEESE25.
À luz da caracterização dos governos de FHC e Lula, bem como da
configuração do mercado de trabalho brasileiro no decorrer dos anos de 1990 e
2000, passaremos a discutir propriamente a formação de uma nova forma de
organização e luta dos desempregados. A caracterização que procuramos aqui
realizar tem uma importância para a compreensão das diferentes conjunturas
25 O DIEESE, nos seus levantamentos estatísticos, parte de uma noção ampla da informalidade a fim de detectar os novos modelos de precarização surgidos no mercado de trabalho a partir da reestruturação produtiva dos anos de 1990. De acordo com esse órgão a informalidade seria composta por: emprego subcontratado, emprego ilegal, conta própria, pequenos empregadores e empregados domésticos. Merecem destaques nessa noção, a inclusão do emprego subcontratado – modalidade difundida pelas empresas que procuram reduzir os seus custos por meio da diminuição das suas obrigações legais –, como os trabalhadores independentes (por conta própria), cujas inserções no mercado de trabalho são marcadas pelo restrito acesso aos mecanismos de proteção social (DIEESE, 2012, p. 168).
60
econômica e política consolidadas ao longo desses anos, nas quais o MTD
originou-se e colocou em prática diversas ações, estratégias e formas de luta.
MTD: principais antecedentes, formação e primeiras experiências de luta
O Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), formado no
final dos anos de 1990, no Rio Grande do Sul, tornou-se a principal referência
organizativa dos trabalhadores sem emprego, especialmente no âmbito desse
estado. Os principais antecedentes da sua formação estão relacionados com
as discussões realizadas por militantes de diferentes organizações (MST, Via
Campesina, pastorais sociais da igreja católica e etc.) nucleados na Consulta
Popular26 e com a atuação da Subcomissão sobre o Desemprego, vinculada à
Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio
Grande do Sul.
Nesse período, as discussões realizadas no interior da Consulta
Popular, debatiam o abandono de um horizonte político revolucionário pela
esquerda partidária, especialmente pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o
alarmante crescimento do desemprego e os limites das lutas voltadas para a
conquista da moradia. Para os militantes nucleados nessa organização, a
conjuntura política e econômica colocava desafios aos setores populares
urbanos, expostos a condições de vida e trabalho cada vez mais deterioradas.
O desemprego, na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), vinha
atingindo níveis elevados, ao ponto de ter alcançado, em 1999, 19%, o que
correspondia a um total de 316 mil pessoas sem emprego27 (BASTOS, 2011, p.
186).
Embora uma parcela desses setores fosse organizada pelos
movimentos por moradia, a principal crítica direcionada a estes últimos pelos
26 Impulsionada pelo MST e criada em 1997, a Consulta Popular é uma organização política que se originou a partir da crítica à primazia eleitoral e ao rebaixamento dos programas políticos que passaram a ser praticados pela esquerda partidária, descrente dos projetos políticos revolucionários. Defendendo a retomada dos trabalhos de base, a Consulta Popular aglutinou militantes de diversos movimentos e organizações sociais, tendo como principal proposta construir um Projeto Popular Para o Brasil em contraposição ao neoliberalismo. Para maiores informações ver site: http://www.consultapopular.org.br
27 A título de comparação, em 1993, a taxa de desemprego total na RMPA era de 12,2% e atingia um total de 174 mil pessoas (BASTOS, 2011, p. 186).
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61
integrantes da Consulta Popular relacionava-se à dificuldade, uma vez
conquistada a habitação, de manter a organização para uma luta política;
somava-se a essa crítica um diagnóstico sobre a ação sindical, cuja força
política demonstrada em décadas anteriores encontrava-se enfraquecida.
Por isso, resultou desses debates a decisão de designar a um grupo de
militantes a tarefa de elaborar estratégias para a constituição de um movimento
social urbano comprometido com duas reivindicações principais, a saber,
trabalho e moradia, e que se somasse à construção de um “Projeto Popular
para o Brasil”, com o objetivo de disputar um projeto de sociedade, tal como
proposto pela Consulta Popular (MTE, 2007). Isso significa que o surgimento
de um movimento social de desempregados, no caso o MTD, não se deu
espontaneamente, pois a sua origem, formas de ação e reivindicações foram
concebidas e articuladas por militantes, com diferentes experiências de luta,
não necessariamente desempregados.
Em relação ao outro antecedente mencionado, a Subcomissão sobre o
Desemprego, a sua constituição visava analisar a situação de desemprego no
estado e propor políticas públicas, como também era presidida pelo deputado
petista Roque Grazzioti, conhecido como Padre “Roque” e pela sua
proximidade com os movimentos sociais (MANGUEIRA, 2006). A Subcomissão
reuniu, no período de 1999 a 2000, desempregados, políticos e várias
entidades locais, como a Pastoral Operária, a CUT e a Federação dos
Metalúrgicos, e produziu dois projetos de lei propondo: a extensão da jornada
de trabalho dos bancos com a finalidade de gerar empregos no setor e a
criação de um Programa de Frentes Emergenciais de Trabalho, isto é, postos
de trabalho comunitários que assegurariam aos beneficiários uma bolsa-auxílio
no valor de um salário mínimo, cesta básica, vale-transporte e qualificação
profissional durante 6 meses (MTD, 2007; FILHO, 2009).
A partir das discussões realizadas nos dois espaços mencionados e do
trabalho desenvolvido pelo grupo de militantes selecionado organizaram-se
várias ações. Uma delas consistiu na aplicação de um questionário com
aproximadamente dois mil desempregados (MTE, 2007) com o objetivo de
identificar o interesse destes em se engajar em um movimento de
desempregados e em ocupações de terras e acampamentos de “lona preta”
62
(em uma clara referência aos barracos construídos pelo MST). Na ocasião, a
maior parte dos consultados demonstrou a sua predisposição por essa forma
de engajamento e de luta. Outra ação consistiu na elaboração de duas
Cartilhas dos Desempregados. A primeira intitulada Cartilha do Militante
indicava orientações a respeito do trabalho de base e da organização que
deveriam ser desenvolvidos junto aos desempregados, como também os
princípios do movimento a ser constituído, tais como:
Que a luta não seja apenas por resolver problemas emergenciais, mas que seja uma luta por uma sociedade justa, pois sabemos que no atual sistema capitalista e neoliberal não conseguimos a valorização do trabalho e da produção. Portanto, lutamos por uma sociedade e um novo sistema econômico onde a prioridade seja o ser humano.
Que o movimento dos desempregados seja um movimento de massas, autônomo, para conquistarmos direitos básicos como comida, casa, trabalho e transformação social (CARTILHA DOS DESEMPREGADOS, 2000).
Na segunda cartilha, intitulada Desafios dos Trabalhadores
Desempregados, apareceriam pela primeira vez duas propostas de
reivindicação que seriam posteriormente reelaboradas: a criação de uma
“agrovila” e das “Frentes de Trabalho Com Distribuição de Renda”. As Frentes
corresponderiam a uma demanda emergencial e imediata; por meio delas o
trabalho seria prestado diretamente ao poder público ou para as comunidades
e os trabalhadores teriam a sua jornada distribuída da seguinte forma: três dias
de trabalho efetivo, um dia para qualificação profissional e um dia para resgate
de valores sociais e humanos. A “agrovila” corresponderia a uma solução para
o trabalho e a moradia, pois cada família participante teria o direito a um lote de
terra, no qual poderia construir sua casa, produzir alimentos para a
sobrevivência ou para a venda, como desenvolver coletivamente outras formas
de trabalho que assegurassem uma renda (por exemplo, cooperativas).
Com base nessas ações e no trabalho de base que vinha sendo
desenvolvido junto aos desempregados de diferentes regiões, o movimento
apareceu na cena pública, em maio de 2000, quando ocupou um terreno da
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63
multinacional General Motors, na cidade de Gravataí. Essa ocupação, que
contou com a participação de 200 famílias (MTE, 2007), pode ser considerada
a fundação oficial do movimento.
O que naquelas cartilhas apareciam como propostas de reivindicação
terminaram tornando-se uma das principais bandeiras do movimento: as
Frentes Emergenciais de Trabalho e os “Assentamentos Rururbanos”. Após um
ano do surgimento oficial do movimento e da ocupação mantida pelas 200
famílias, aprovou-se a Lei Estadual das Frentes Emergenciais de Trabalho (Lei
n.11.628, de 14/05/01), que estabeleceu a implementação das Frentes com
base no orçamento estadual anual (MTD, 2007). A regulamentação da lei seria
vista, então, como uma das primeiras conquistas do MTD. Os beneficiários do
programa passaram a prestar serviços eventuais para o governo, como lavar
colégios, limpar arroios, reflorestar margens de córregos, entre outros.
A proposta dos assentamentos rururbanos relacionava-se diretamente
com a negação do emprego assalariado feita originalmente pelo movimento,
que propunha, em contrapartida, o trabalho coletivo baseado na autogestão;
isto é, almejava-se desenvolver, coletivamente, com as famílias assentadas,
atividades agropecuárias e empreendimentos específicos do setor urbano
(como uma metalúrgica, fábrica de tijolos, entre outros) cuja produção pudesse
ser compartilhada pelos próprios produtores e destinada para a venda no
mercado. Com essa proposta o movimento visava reintegrar trabalhadores
urbanos, em situação de desemprego ou subemprego, como também retirá-los
das periferias das grandes cidades e das péssimas condições de moradia.
Esse novo tipo de assentamento deveria estar localizado em áreas
rurais ou urbanas de ocupação extensiva e/ou em áreas de extensão rural
próximas aos grandes centros urbanos, a fim de permitir que um membro da
família assentada mantivesse vínculos de trabalho no setor urbano. Apesar da
crítica ao emprego assalariado e da proposta original formulada pelo
movimento, havia um reconhecimento da necessidade de algum membro da
família dar continuidade a certos trabalhos (como os “bicos”), que supririam
necessidades imediatas.
De acordo com a versão final do “Projeto de Assentamento Rururbano”
(setembro de 2001) apresentado ao governo estadual, o seu público alvo eram
64
as famílias ou indivíduos de origem urbana ou rural que atendessem os
seguintes critérios: não possuir imóvel; não ser funcionário público; estar
excluído do mercado de trabalho; estar organizado em grupo ou em movimento
social; ter uma renda familiar de no máximo dois salários mínimos; ter pelo
menos 50% da força de trabalho familiar desenvolvendo atividade agropastoril
no assentamento. Além desses requisitos, teriam prioridade as famílias
maiores, organizadas há mais tempo e cujos membros estivessem afastados
do mercado de trabalho por um período maior que os outros participantes.
Em maio de 2001, após um ano de experiência do primeiro
acampamento e quando o petista Olívio Dutra (1999 - 2002) estava à frente do
governo estadual, o MTD conquistou o seu primeiro assentamento, localizado
no município de Eldorado do Sul, e denominado Belo Monte (MTE, 2007, p.
48). Nele viviam, em 2012, cerca de 50 famílias, sendo que a área estava
dividida em lotes de 20 x 50 metros destinados às residências e em lotes de
4,3 hectares voltados para a produção.
Desse modo, nos primeiros anos do movimento as principais
reivindicações concentraram-se nas Frentes Emergenciais de Trabalho e nos
Assentamentos Rururbanos. Entre 2000 e 2002, além de outras ocupações de
terras realizadas poucos meses depois da primeira ocupação, os esforços do
MTD direcionaram-se para a organização dos assentados e dos
empreendimentos autogestivos (por exemplo: a horta comunitária, a fábrica de
tijolos, a padaria, entre outros) no interior do primeiro assentamento
conquistado. Esse é o período no qual se estabelece, então, o eixo de luta do
MTD, qual seja: “Trabalho, Terra e Teto” (que posteriormente incorpora o lema
Educação).
Novas reivindicações e estratégias de organização: a massificação e feminização do movimento
Os anos seguintes que, a título indicativo poderíamos caracterizar
como uma segunda fase da trajetória do movimento (2003 a 2006),
corresponde ao período em que este adotou como estratégia construir núcleos
de base nos bairros da periferia, com o objetivo de massificar-se e tornar-se
uma referência política no estado. Os núcleos de base não correspondiam a
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65
uma nova forma de organização posta em prática, uma vez que já nas
Cartilhas dos Desempregados afirmava-se que tais núcleos eram o “alicerce do
movimento” e, por meio deles deveriam organizar-se todos os integrantes. O
que nos parece ter diferenciado os primeiros núcleos de base dos constituídos
nessa nova fase (também denominados como núcleos de bairro) foi a sua
composição: inicialmente havia uma presença maior de famílias, inclusive pelo
fato das primeiras mobilizações terem se direcionado para a formação e
organização do acampamento, enquanto nesse momento posterior os núcleos
contaram sobretudo com a participação das mulheres.
Outra característica refere-se a uma nova reivindicação formulada após
as primeiras experiências com as Frentes Emergenciais de Trabalho: a
conformação de Grupos de Produção em diversas áreas produtivas
(confecção, artesanato, padarias, agricultura urbana), com o objetivo de não
realizar serviços temporários para o estado, mas sim uma atividade
permanente relacionada com a experiência profissional dos participantes e por
um tempo maior aos seis meses de duração das Frentes (CIMI BRASIL, 2004).
Se a princípio as Frentes foram reivindicadas pelo movimento de acordo com
uma proposta de “disputar as verbas públicas”, Deise Ferraz (2010) observou
que as experiências de trabalho dos integrantes beneficiados evidenciaram o
risco do programa tornar-se um substituto à contratação de funcionários
públicos para a realização dos serviços prestados. A concretização da nova
proposta exigiu, contudo, a organização de mobilizações para pressionar o
governo a destinar os subsídios das Frentes aos membros dos Grupos de
Produção.
O êxito da massificação nos centros urbanos ocorreu de um modo
desfavorável aos assentamentos, especialmente o de Belo Monte, que sofreu
também as consequências da sua regularização pelo governo de Germano
Rigotto (PMDB [Partido do Movimento Democrático do Brasil], 2003-2006) e do
deslocamento de importantes lideranças para outros espaços. Por um lado, a
regularização do assentamento de Belo Monte como rural – e não como
rururbano –, interferiu na continuidade dos empreendimentos coletivos, uma
vez que o acesso às políticas de financiamento disponibilizadas pelo governo
deveria ser pleiteado individualmente ou por cada família. Por outro lado, a
66
saída de dirigentes para outras frentes do movimento e, inclusive, para ocupar
cargos no âmbito do governo federal (presidido por Lula), repercutiu sobre o
conjunto dos assentados, que não tinha consolidado ainda a sua experiência
de vida e de trabalho no interior do assentamento.
Os trabalhadores assentados em Belo Monte que responderam ao
questionário semi-aberto (aplicado durante a pesquisa de campo)
apresentaram não apenas queixas a esse processo, mas explicitaram a
despolitização e o individualismo que passaram a caracterizar parte dos
assentados em contraste ao coletivismo, à solidariedade e à participação
existentes no acampamento.
Em relação à massificação, deve ser destacada a feminização da base
social, pois embora as mulheres tenham sempre apresentado uma expressiva
participação, passaram a representar 90% da base social, inclusive devido a
sua maior predisposição a participar dos núcleos de bairro em relação ao
público masculino. A predominância feminina que passou a caracterizar a
organização merece aqui uma análise mais detida. Três elementos nos
parecem importantes para a compreensão dessa composição social que
configurou uma militância praticamente feminina: a ênfase dada à organização
dos núcleos de bairro, a informalidade e a difusão das formas precárias de
trabalho.
De acordo com o depoimento de um dos coordenadores estaduais
entrevistado, os núcleos de bairro responderam a uma demanda das mulheres
referente à necessidade de uma complementação da renda familiar. O acesso
aos subsídios das Frentes Emergenciais de Trabalho, as atividades
desenvolvidas nos Grupos de Produção e, mais recentemente a obtenção dos
alimentos do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), teriam contribuído,
portanto, para assegurar esse complemento. Provavelmente, os núcleos de
bairro, como uma forma de organização, tenha atraído um perfil de
desempregada que conta possivelmente com outras fontes de sobrevivência
(como a realização de trabalhos precários, a renda de outros familiares ou
benefícios sociais).
O estudo realizado por Raul Bastos (2011) sobre o mercado de
trabalho na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA) nos oferece algumas
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67
pistas relevantes para a compreensão desse perfil. Ao analisar estatísticas
levantadas pela PED-RMPA, nos anos de 1999 e 2009, Bastos apresenta uma
melhoria na evolução dos indicadores do mercado de trabalho da região,
corroborando uma tendência mais geral observada em outras regiões (como a
redução do desemprego de homens e mulheres). No entanto, em um exame
mais pormenorizado dos dados, o autor mostra a continuidade de algumas
assimetrias entre trabalhadores dos dois sexos, a despeito de um quadro de
melhoria geral. Em relação aos homens, em 2009 as mulheres permaneciam
sendo as mais atingidas pelo desemprego e estiveram expostas a uma
retração menos intensa deste último, quando comparada à diminuição do
desemprego masculino entre 1999 e 2009 28 . Comportamento semelhante
apareceu no maior tempo médio de procura por trabalho despendido pelas
desempregadas (7,7 meses em contraposição aos 6,1 meses despendidos
pelos homens) (BASTOS, 2011, p. 196).
Além disso, Barros argumenta que indivíduos em desemprego oculto
permaneciam mais tempo na condição de desempregados, por sobreviverem
de trabalhos precários e por estarem em uma situação de pouca expectativa
em relação à obtenção de um emprego. As principais fontes de sobrevivência
desses indivíduos acometidos pelo desemprego oculto pelo trabalho precário
seriam, em 2009, os próprios trabalhos ocasionais (98%), como o apoio de
outras pessoas da família que trabalham (54,8%). Em relação aos atingidos
pelo desemprego oculto por desalento, o seu principal meio de sobrevivência
provinha do trabalho de um membro familiar (72,2%) (BASTOS, 2011, p. 194-
195).
Os dados apresentados pelo autor atestam seu argumento sobre o
caráter multifacetado do desemprego, cuja incidência sobre os diferentes
grupos sociais se dá de modo distinto, assim como explicitam desigualdades
encontradas no mercado de trabalho que se aproximam das apresentadas por
Margareth Maruani, no seu estudo sobre as “fronteiras do desemprego”.
Nestas, de acordo com a autora, encontram-se diferentes formas de “não-
28 As taxas de desemprego em 1999 e 2009 correspondiam, respectivamente, a 21,9% e 13,5% para as mulheres e a 16,7% e 9,1% para os homens. Na comparação dos dois anos mencionados, a retração dessas taxas correspondeu a 38,4% (para as mulheres) e 45,5% (para os homens).
68
emprego”, que correspondem a situações intermediárias que circundam o
desemprego, como é o caso dos trabalhos precários e da inatividade forçada.
Apesar de Maruani referir-se à França, o seu alerta para a
heterogeneidade do desemprego contemporâneo e, em especial, para a
presença cada vez maior das mulheres nessas situações fronteiriças, oferecem
aportes para a nossa análise. Conforme é destacado, a feminização das
margens do desemprego contribui para a sua própria invisibilidade, uma vez
que este é socialmente mais tolerável quando são as mulheres as principais
acometidas. Em outras palavras, “(...) a seletividade do desemprego reativa as
desigualdades sociais mais clássicas – o sexo, as classes sociais, a
nacionalidade –” (MARUANI, 2002, p.29); por isso a existência de certos níveis
de tolerância social em relação ao desemprego que não somente se baseiam
em critérios sociais implícitos, mas variam de acordo com o “sexo” atingido.
De um total de 12 pessoas 29 (11 mulheres e 1 homem) que
responderam ao questionário aplicado e participavam de núcleos de bairro e/ou
diferentes empreendimentos desenvolvidos pelo movimento, como uma
associação de reciclagem de lixo, uma padaria e uma confecção, os dados
revelam a predominância de desempregados com uma trajetória profissional
marcada pela realização de trabalhos informais e precários. Considerando que
todas as pessoas entrevistadas declararam ter realizado em vários momentos
da vida diferentes tipos de bico (como faxinas, passar roupa, babá, servente de
pedreiro, serviços de panfletagem), 33% declararam que nunca tinham sido
registradas, enquanto 33% tiveram o seu último registro na carteira há mais de
8 anos. Se desconsiderarmos os três integrantes que trabalhavam na
reciclagem de lixo, 5 pessoas estavam desempregadas há mais de 7 anos.
Além disso, dois dados merecem ser ainda destacados: 7 entrevistadas, mais
da metade da amostra (58,3%), tinham uma renda mensal familiar de 1 salário
mínimo e meio e 9 (75%) recebiam o Programa Bolsa Família.
Embora o número de entrevistados não nos permita fazer
generalizações para o conjunto do movimento, que está organizado em 13
municípios do estado, ele nos dá uma dimensão do perfil de desempregado, ou
29 Não foram contabilizados nesses dados os membros do assentamento.
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melhor, da desempregada presente na base social. Tal perfil, embora possa
ser encontrado entre as pessoas acampadas ou assentadas, seria
característico de mulheres com pouca experiência no mercado de trabalho
formal, atingidas pelo desemprego oculto e a sua renda provém de uma
combinação entre diferentes tipos de trabalho irregulares, benefícios sociais
(como o Bolsa Família ou o PAA) e ajudas familiares. Essa caracterização, de
certa maneira, vai ao encontro da análise feita por Carolina Filho (2009) sobre
o MTD localizado na cidade de Campinas (SP). Segundo esta autora, o
movimento era constituído por trabalhadores desempregados originários do
setor informal, com experiências anteriores de trabalhos precários, desprovidos
da cobertura dos direitos trabalhistas, como também com poucas expectativas
de retorno ao mercado formal de trabalho devido à sua longa permanência na
situação de desemprego.
A presença destacável das mulheres na base social do movimento
pode indicar alguns obstáculos que permaneceram impedindo o acesso delas a
postos de trabalho formais, mesmo em uma conjuntura na qual o mercado de
trabalho deu sinais de uma estruturação. Aqui nos referimos não somente às
segregações sexistas sob as quais se baseiam alguns critérios de seleção para
uma oferta de trabalho, mas também ao papel social atribuído às mulheres em
relação às tarefas domésticas e aos cuidados dos filhos e idosos; papel que
parece ter adquirido uma nova dimensão frente à dificuldade de acesso a
determinados serviços públicos, reduzidos ou privatizados nos últimos anos.
A repressão e o recuo do movimento
A última fase relativa aos anos de 2007-2010 representou o momento
de maior repressão sofrida pelo MTD no decorrer da sua história; o governo
estadual, sob o comando de Yeda Crucius (2007-2010), filiada ao PSDB
(Partido da Social Democracia Brasileira), recusou-se a dar continuidade à
aplicação da lei estadual das Frentes de Trabalho, a atender as reivindicações
dos desempregados mobilizados, como reprimiu violentamente as
manifestações e protestos, inclusive prendendo militantes. Embora essa
política repressiva não tenha alterado significativamente a composição da base
social, provocou, segundo uma das lideranças entrevistada, a desarticulação e
70
o recuo do movimento, pelo fato deste não ter obtido nenhuma conquista junto
ao governo estadual. Para se ter uma ideia do posicionamento estabelecido
pelo governo, a lei que assegurava as Frentes de Trabalho e era considerada
um suporte fundamental para os desempregados não foi efetuada em nenhum
momento ao longo do mandato do PSDB (FERRAZ, 2010).
É importante perceber que se desde a fase anterior, com o início do
mandato de Germano Rigotto do PMDB, houve uma mudança na correlação de
forças no âmbito do governo estadual do Rio Grande do Sul, tal modificação
intensificou-se quando o PSDB ganhou pela primeira vez, em 2007, o pleito
para a escolha do governo desse estado. No âmbito estadual o jogo político
tornou-se paulatinamente desfavorável para o MTD que passou a não ter nem
mesmo um espaço de negociação junto à governadora.
Ao longo da sua trajetória o movimento buscou constantemente
respostas para a geração de renda aos desempregados. No bojo dessa
conjuntura adversa, o MTD recorreu aos canais de negociação junto aos
poderes municipais e federal, propondo a criação de uma lei que assegurasse
maquinários e infraestrutura para empreendimentos produtivos
autogestionários,já que uma das dificuldades encontradas no desenvolvimento
dos Grupos de Produção era justamente a impossibilidade de dar continuidade
aos mesmos por conta dos custos que envolviam obter e manter os meios de
produção. Daí a proposta dos Pontos Populares de Trabalho, cuja elaboração
fundamentou-se nas experiências dos coletivos de trabalho existentes na
cidade de Caxias do Sul, no qual o município concedeu maquinários,
equipamentos de proteção e matéria-prima aos desempregados, para que
estes desenvolvessem, por um determinado período, empreendimentos
autogestivos.
Nessa última fase, a desfavorável relação de forças vivida pelo
movimento no âmbito estadual não se reproduziu na esfera federal. Sob o
governo Lula o movimento começou a participar de canais institucionais no
âmbito do poder executivo. O desenvolvimento da pesquisa não nos permite
apontar se essa participação possibilitou o acesso diferenciado a recursos ou a
políticas sociais disponibilizadas pelo governo, embora tenha exercido um
impacto político sobre a organização, se considerarmos a saída, em 2011, de
vários membros da Coordenação Estadual. Estes, assinaram em conjunto com
GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ
71
um grupo de militantes do MST, da Consulta Popular e da Via Campesina, uma
carta pública, na qual explicitavam a sua saída desses movimentos e as
causas que a motivaram. Nesse grupo encontravam-se 16 militantes do MTD,
dos quais 12 eram do MTD/RS. Na carta, uma crítica apontada ao MTD referia-
se à restrição das suas ações, que teriam se limitado a reivindicar políticas
compensatórias.
Resultados provisórios
A realização da pesquisa com o MTD permitiu compreender que,
embora esse movimento não tenha obtido uma expressiva capacidade
organizativa dos desempregados em âmbito nacional, inclusive nos períodos
de altos índices de desemprego, essa lacuna na esfera nacional não se
repercutiu necessariamente no plano estadual; a trajetória da organização
gaúcha, o seu reconhecimento político e a sua capacidade organizativa em
diversas cidades mostraram, ao contrário, a importância e a expressividade
alcançadas pelo movimento no interior do estado.
Ao longo desses treze anos de existência o MTD expandiu-se para 13
municípios do estado e conseguiu conquistar 6 assentamentos em diferentes
cidades, além de organizar 2.000 famílias. Se tais dados indicam a capacidade
organizativa construída durante esse período no Rio Grande do Sul, a pesquisa
revelou ainda que a trajetória do MTD pode ser dividida, de um modo geral, em
três fases distintas, relacionadas às estratégias e ao tipo de reivindicação
privilegiado nas lutas e às mudanças na correlação de forças com a ascensão
de diferentes governos estaduais.
Podemos apontar que especialmente a partir de 2003 o MTD deparou-
se com diferentes desafios frente às mudanças na conjuntura política e
econômica que o levaram a priorizar ações mais reivindicativas e, em alguns
casos, defensivas, nas quais preponderaram demandas imediatas da sua base
social. Ao mesmo tempo em que houve uma reformulação das reivindicações
no decorrer dos anos, os acampamentos e os assentamentos rururbanos não
receberam a mesma atenção observada nos primeiros anos de mobilização,
seja enquanto uma forma de organização estratégica dos desempregados
72
(ocupação), seja como uma reivindicação que articulava os principais eixos de
luta da organização (Trabalho, Terra e Teto).
Por último, cabe aqui apontarmos um possível diferencial no
engajamento das mulheres que se encontram organizadas nos núcleos de
bairro em relação às acampadas ou assentadas. No primeiro caso, a militância
é uma atividade que se combina ou pode ser articulada com outras, inclusive
com as tarefas domésticas e trabalhos ocasionais, sem envolver os familiares.
Em contrapartida, o acampamento implica o envolvimento da família, cuja
participação tende a ser mais orgânica e de tempo integral, justamente porque
se encontram no mesmo espaço o local de moradia, de formação, de
organização política e de luta. Sem contar que o acampado é, por si mesmo,
um símbolo de resistência, pois provém da sua permanência no acampamento
parte substantiva da pressão a ser exercida sobre o governo. Por essas
características, o acampamento exige, talvez mais que os outros espaços de
organização, um profundo trabalho de formação e politização a fim de
assegurar o engajamento dos trabalhadores durante a ocupação, bem como
depois dela, com a conquista do assentamento. As conquistas obtidas pelo
movimento pouco tempo após a sua fundação oficial, como o assentamento de
Belo Monte, parecem demonstrar que se a ocupação como uma estratégia de
organização não possibilitava a massificação do movimento, baseava-se em
uma proposta que atendia aos interesses de uma parcela importante dos
desempregados, que historicamente estiveram excluídos da cobertura dos
direitos trabalhistas e sociais.
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ID 392
TÍTULO: Sindicalização Rural no Governo João Goulart: uma aproximação
AUTORES: Natália Cristina Granato (POSTER)
76
ID 40
O LUGAR DA AUSÊNCIA: LUTA DE CLASSES E DIREITOS NA
FRUTICULTURA IRRIGADA DO SÃO FRANCISCO
José Fernando Souto Jr (FAPESB)
Guilherme José Mota Silva (FAPESB)
RESUMO
Esse trabalho é resultado da pesquisa desenvolvida com o apoio do CNPq,
edital 02/2010, projeto Ação Sindical no Vale do São Francisco (1990-2008),
encerrado em 2012. O objetivo é analisar as ações das organizações de
interesses em torno da fruticultura irrigada, que estabeleceu e desenvolveu um
“modelo de desenvolvimento” voltado para a produção de frutas com alto valor
agregado com vistas ao mercado externo. Este “modelo” foi pautado, num
primeiro momento, pelos interesses empresariais, que obtiveram forte apoio do
Estado na construção de toda a infraestrutura de produção e financiamento das
culturas de uva, manga, etc. Até 1994 o modelo de desenvolvimento da
fruticultura irrigada funcionou sem a necessidade de estabelecer um consenso
com os trabalhadores. O indicador para essa afirmação foram as várias
denúncias publicadas pela imprensa sobre as péssimas condições de trabalho
e descumprimentos de leis trabalhistas, que resultaram em greves nos anos de
1994 e 1996. Foi a partir de 1994 que os sindicatos e as organizações
empresariais construíram a primeira convenção coletiva de trabalho, válida
para diversos sindicatos localizados no Submédio Vale do São Francisco, entre
os estados da Bahia e Pernambuco, inaugurando uma forma de negociação
baseada em convenções coletivas anuais.
Palavras-chave: sindicatos, desenvolvimento regional, fruticultura irrigada,
assalariados rurais.
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77
Introdução
Ao chegar a Petrolina e a Juazeiro no início de 2008, as imagens
difundidas por grupos sociais os mais diversos pintavam o Vale do São
Francisco como uma região próspera, que mesmo localizada na adversidade
do semiárido nordestino, se mostrava como grande geradora de riqueza,
principalmente por conta da fruticultura irrigada. Em setembro de 2010, a
revista semanal Veja trouxe uma matéria ilustrativa dessas imagens
construídas no e para o Vale, a reportagem tinha o título de “O milagre do São
Francisco”30. Anunciava que se cultivava na região “1 milhão de toneladas de
frutas, com safras avaliadas em 1,3 bilhão de dólares”. O produto interno bruto
da cidade de Petrolina era de 1,9 bilhão de dólares, o crescimento econômico
anual superara a média nacional com 4,7% e a renda per capita anual chegava
a R$ 7.200,00.
Tudo leva a crer que imagens como estas são difundidas por grupos
sociais os mais diferentes ao longo do tempo, desde os mais favorecidos por
toda a cadeia produtiva movimentada pela fruticultura irrigada, até os grupos
que menos tiram proveito dessa riqueza produzida. Mas é evidente que a
classe dominante difunde e se beneficia com a imagem do semiárido como um
oásis, pois tal imagem cumpre um papel fundamental na atração de novos
investimentos, o que incrementa as forças produtivas locais, da mesma forma
que é mobilizador de um quantitativo de imigrantes que chegam à região como
força de trabalho, atraídos pela possibilidade de prosperidade.
Esses contingentes populacionais se deslocam para o Vale para dar
suporte à toda a cadeia produtiva da fruticultura irrigada, que emprega desde
trabalhadores que cuidam das plantações de frutas até a mão de obra
especializada para as empresas de fertilizantes, máquinas agrícolas, utensílios
para irrigação etc. Cerca de 60% da população de quase 300.000 habitantes
de Petrolina, estimativa da Polícia Civil de Pernambuco, é formada por
imigrantes.
Diante de imagens tão prósperas, uma pergunta surgiu: onde estão as
contradições desse desenvolvimento? A primeira indagação tentava entender o
30 Revista Veja, 1º de setembro de 2010, p. 101.
78
sentido, do ponto de vista da sociologia do trabalho, das contradições que
poderiam existir entre as imagens desse pedaço do Vale do São Francisco
como oásis de riqueza. Porém, e a situação de vida dos trabalhadores da
fruticultura?
Este texto trata da reflexão sobre o desenvolvimento das lutas dos
trabalhadores rurais do Vale do São Francisco, que nos anos 1990 obtiveram
importantes vitórias, organizando o movimento sindical e negociando, desde
1994, uma convenção coletiva para os sindicatos da região. Tal estudo foi
ilustrativo de uma perspectiva diferente com relação às ideias que exaltam o
desenvolvimento de Juazeiro e Petrolina.
O texto está dividido em três partes principais: na primeira, baseado em
estudos desenvolvidos por outros autores sobre o Vale do São Francisco,
procuramos mostrar como a articulação da classe dominante local com setores
da classe dominante do Sul e Sudeste, pôde se utilizar do aparato do Estado
para fomentar um modelo de acumulação que lhes permitiu níveis de
competitividade globais, utilizando-se de subsídios, de infraestrutura e,
também, das instituições que vão produzir o conhecimento técnico-científico
necessário para garantir a reprodução do modelo de acumulação desse
capitalismo agroindustrial; em um segundo momento, faremos uma
caracterização do sindicalismo rural; como terceiro ponto discutiremos o papel
e as estratégias que os sindicatos rurais desenvolveram para enfrentar a
exploração do trabalho que se dava sem o respeito mínimo às regras do
modelo de acumulação capitalista.
Metodologia
Esta pesquisa abordou a relação entre aspectos que demandaram uma
análise qualitativa dos dados. Foi dada ênfase na análise de documentos
produzidos no âmbito do poder público, das entidades patronais e pelos
próprios sindicatos e outros atores envolvidos (informativos, website e outras
formas de divulgação).
Num primeiro momento foi realizado um levantamento bibliográfico
enfatizando os aspectos relacionados ao tema de pesquisa; foram levados em
GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ
79
consideração os aspectos socioeconômicos da região. Foram selecionadas
matérias publicadas pelos principais jornais diários do estado de Pernambuco e
Bahia. Foram realizadas análises de documentos das organizações de
interesses a partir dos seus arquivos. Estes foram catalogados e digitalizados
para a pesquisa como ofícios, atas de assembleias extraordinárias e ordinárias,
atas de reuniões de diretorias, etc.
No âmbito dos instrumentos utilizados, a pesquisa contou com 15
entrevistas gravadas em vídeo e áudio com roteiro semiestruturado e também
abertas. Utilizou-se de forma complementar a história oral para compor a
história dos sindicatos pesquisados, a partir dos atores sociais selecionados.
As organizações de interesses aqui selecionadas foram escolhidaspor
terem tido um papel predominante na construção dos interesses de
trabalhadores e dos empresários na produção de frutas, e em razão também
de terem suas atuações nos limites geográficos do Submédio Vale do São
Francisco. Foram elas:Associação dos Exportadores de Hortifrutigranjeiros e
Derivados do Vale do São Francisco – VALEXPORT, Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Lagoa Grande, Sindicato dos Trabalhadores Rurais
de Santa Maria da Boa Vista, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Petrolina
e Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Juazeiro.
Os investimentos estatais impulsionam o capitalismo no semiárido
O Vale é uma das regiões agrícolas mais dinâmicas do país. Os estudos
retratam a convergência dos fatores climáticos e também do papel do Estado
como promotor desse desenvolvimento. Segundo Silva (2009: 80), os
investimentos capitaneados pelo Estado para a construção de grandes projetos
de irrigação nos anos 1970, associados aos incentivos fiscais e financeiros de
agências governamentais como a Superintendência de Desenvolvimento do
Nordeste (SUDENE) e o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), propiciaram a
construção de uma infraestrutura para a irrigação e, ao mesmo tempo, linhas
de crédito que facilitaram as iniciativas capitalistas. Outros órgãos do Estado
como a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco
80
(CODEVASF) e a Companhia hidroelétrica do São Francisco (CHESF) atuaram
como elementos propulsores do desenvolvimento. Essa atuação pode ser
considerada como uma atuação de classe, no caso, da classe dominante, que
articulou o desenvolvimento do capitalismo no Vale com uma base técnica bem
definida.
Oliveira (1981: 101) ao analisar o papel da Sudene, associou a criação
desta aos novos marcos capitalistas que estimularam um modelo de
desenvolvimento para o Nordeste a partir dos anos 1950, mas favorecendo
uma enorme concentração de capital e desarticulando as classe dominante
local, intensificando assim uma lógica de produção de mercadorias. Ao mesmo
tempo, é possível se utilizar dessa análise e afirmar que a inciativa capitalista
na região foi dependente do Estado, este o principal agente do
desenvolvimento da região, seja pela renúncia fiscal em forma de incentivos,
seja pelo crédito que financiou e financia a produção, seja pela total construção
da infraestrutura da região e de sua base técnica. Por vezes o Estado foi
responsável por todas essas partes de uma só vez.
Interessada em desenvolver o potencial agrícola do submédio São
Francisco, as classe dominante local se associou com a classe dominante
nacional para, por intermédio do Estado, nos anos 1950, patrocinar as
primeiras iniciativas de pesquisa e de apoio técnico que partiram da Comissão
do Vale do São Francisco (CVSF). Nesse período também ocorreram
investimentos públicos que visavam ampliar a infraestrutura de transportes,
comunicação e energia. As primeiras iniciativas de produção surgiram no início
da década de 1960, com a implantação de duas estações experimentais de
áreas de irrigação que viriam a se tornar o Projeto Piloto de Bebedouro e o
Perímetro Irrigado de Mandacaru (CORDEIRO NETO & ALVES, 2009).
A Sudene cumpriu com o papel de garantir apoio e orientação técnica
aos colonos que se propuseram a assumir os primeiros lotes. Também foi
responsável pela elaboração do Plano Diretor de Irrigação do Submédio São
Francisco e da gestão dos incentivos fiscais. A partir de então a região tornou-
se um pólo de atração de investimentos privados que vinham principalmente do
Sul e Sudeste do Brasil e encontravam a infraestrutura preparada. A entrada
progressiva desses novos atores significou uma ruptura com o passado
GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ
81
agrícola da região e desencadeou uma abertura para novos empreendimentos
se utilizando dos recursos naturais do território (SILVA, 2009). É possível
perguntar: quem eram os antigos produtores responsáveis pelo passado
agrícola da região? Qual foi o custo para os antigos atores com a chegada dos
novos atores? Quais os grupos locais que se articularam com a classe
dominante do Sul e Sudeste? Essas perguntas ficarão sem resposta, por
enquanto.
Mas, o desenvolvimento da região não se deu sem que se pensasse em
instituições que fossem capazes de construir e reproduzir um conhecimento
técnico-científico que garantisse a sua aplicabilidade para esse capitalismo que
se colocava como novo e modernizador da região. Além disso, era necessário
produzir uma mão de obra especializada para a produção da lavoura e que
difundisse os valores de uma agricultura moderna. Foi em dezembro de 1960
que surgiu a Faculdade de Agronomia da UNEB, que cumpriu esse papel.
A partir de 1974 com a criação da CODEVASF e tendo como positivas,
pela ótica da geração de produção de valor, as experiências nas estações
experimentais de irrigação, iniciou-se a implementação dos demais perímetros
públicos de irrigação. Em 1975, já havia a compreensão de diversificar a
produção do Vale e também a sua base técnica com o intuito de aumentar a
intensificação da geração de valor e, ao mesmo tempo, ficar menos
dependente de determinadas variedades de mercadorias. Não por acaso, esse
ano deu início às atividades da Empresa Brasileira de Agropecuária - Embrapa
Semiárido, que foi capaz de fornecer o conhecimento técnico-científico para o
pioneirismo da fruticultura. Todos esses foram investimentos estatais. Diante
disso, a produção original que era principalmente voltada ao cultivo de cebola
foi diversificada e substituída por culturas de maior valor comercial, a exemplo
da melancia, melão e, principalmente, o tomate. Nesse período ainda eram
inexpressivas as áreas com cultivo de manga e uva, que a partir de meados da
década de 1980 tornaram-se a principal atividade produtiva agrícola do Vale.
Não é de se estranhar que a crise, que afetou o Estado brasileiro de
meados da década de 1980 até meados de 90, atingiu diretamente esse
modelo agroindustrial, que tinha o Estado como protagonista das principais
82
iniciativas. O financiamento estatal que até então foi propulsor de todo o
desenvolvimento agrícola tornou-se escasso. A necessidade de ampliação de
lucros abriu espaço para a fruticultura irrigada, que passou a ocupar o lugar
das culturas de ciclos curtos nos perímetros irrigados. Essas mudanças
levaram a um processo de exclusão de grande parte dos produtores, além de
um processo de concentração de terras nas mãos daqueles que estavam mais
capacitados técnica e financeiramente para a atividade frutícola (SILVA, 2009).
As transformações na base produtiva, tendo como locomotiva a
fruticultura, promoveu um processo de reestruturação da agricultura irrigada no
submédio São Francisco. Ao mesmo tempo em que intensificou a substituição
dos pequenos produtores pelos grandes empresários fruticultores, que
automatizaram a produção e a redução dos níveis de emprego e deterioração
das condições de trabalho (CORDEIRO NETO & ALVES, 2009, p.345 apud
SILVA, 2001).
A lembrança pode parecer exagerada, mas a analogia pode ser útil;
parece haver um tom da “Assim chamada acumulação primitiva” quando
pensamos na situação do Vale. Segundo Marx (1978), o que caracteriza a
acumulação primitiva é que a criação da relação-capital se dá pelo processo de
separação de trabalhador da propriedade das condições de seu trabalho. Esse
processo se dá de duas formas. Primeiro, pela transformação dos meios
sociais de subsistência e de produção em capital; em segundo lugar, os
produtores diretos, no caso os pequenos produtores, transformam-se em
trabalhadores assalariados. Ainda segundo Marx, o ponto de partida do
desenvolvimento que produziu tanto o trabalhador assalariado quanto o
capitalista foi a servidão do trabalhador.
No caso do Vale, alguns fatores permitiram uma enorme capacidade de
acumulação de capital, entre eles: a) a construção de toda infraestrutura por
parte do Estado; b) o financiamento da produção a juros subsidiados pelo
Estado; c) a criação e estruturação de instituições científicas, também por parte
do Estado, capazes de oferecer a custo zero ao empresariado, uma matriz de
conhecimento técnico-científico capaz de renovar a base técnica de produção e
permitir a reprodução do capital e sua competitividade num plano internacional;
d) a ausência de quaisquer mecanismos que assegurassem de forma eficaz o
GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ
83
cumprimento da legislação trabalhista no campo, deixando os trabalhadores
literalmente à deriva enquanto a acumulação se dava desenfreada; e) junto ao
total desrespeito aos limites sobre as condições em que o trabalho era
desenvolvido, acrescente-se ai o trabalho infantil e até o trabalho escravo, as
enormes levas de trabalhadores que chegavam à região e, sem nenhuma
proteção do Estado, ingressavam como parte de um exército industrial de
reserva, colaborando para manter sempre em níveis baixos os custos da
reprodução da força de trabalho; por fim, f) a expropriação da base fundiária do
produtor rural, do camponês, dos índios, dos quilombolas, formou a base de
todo o processo.
Nessas bases favoráveis à acumulação, no final da década de 1980
aconteceram as primeiras exportações das frutas do Vale. Sendo estas em
quantidades reduzidas, no entanto, suficientes para despertar o interesse do
empresariado, que percebeu também a necessidade de se organizar para que
pudesse competir e disputar o mercado externo, agora numa disputa do local
para o global. Foi criada, então, em 1988, a Associação dos Exportadores de
Hortifrutigranjeiros e Derivados do Vale do São Francisco - VALEXPORT.
A criação da VALEXPORT é significativa da inserção dos grupos
dominantes locais, já associados aos grupos dominantes nacionais, ao
capitalismo internacional. A face mais moderna do Vale convive lado a lado
com as formas mais precárias de produção. Desde então, a fruticultura seguiu
em ascensão e hoje tem uma participação significativa no valor total das
exportações de frutas brasileiras, alcançando o índice de quase 40% de toda a
exportação31 do país.
Combinando enormes investimentos estatais e uma iniciativa privada
dependente do Estado, somados às ótimas condições naturais e, sobretudo, à
acumulação que se desenvolve em função das péssimas condições de trabalho
e da consequente baixa remuneração dos milhares de trabalhadores, surgiu
esse “oásis” em meio ao semiárido nordestino. Por outro lado, a implantação
da fruticultura inviabilizou o cultivo dos pequenos produtores, devido,
31 Fonte: Agrianual (2001-2008); Aliceweb (2008) Disponível em: <http://aliceweb.desenvolvimento.gov.br/consulta>
84
principalmente, aos altos custos de produção e a falta de competitividade com
as grandes empresas agrícolas. Dessa forma, desenvolveu-se uma
proletarização dos pequenos proprietários ao mesmo tempo em que o capital
completava, cada vez mais rápido, novos ciclos de acumulação.
Cavalcanti (1997: 79) ressalta: “desde o fim dos anos 80 o Vale do São
Francisco passou a se distinguir por sua produção e pelos vínculos que
estabelece com o mercado global”. Percebe-se um aumento na oferta de
empregos, principalmente durante os anos 1990, impulsionada pelos produtos
destinados à exportação. Para Silva (2009: 84), a exportação de frutas se
consolidou em 1997 e a manga e a uva passaram a contribuir “com mais de
90% do volume de exportações [de frutas] do país”.
Cavalcanti (2003: 05) afirma que a modernização da região garantiu “às
empresas privadas um lugar privilegiado na condução da transformação dos
espaços locais e no estabelecimento de elos com novas cadeias
agroalimentares”. Por outro lado, os trabalhadores ficaram soltos à sua própria
sorte, numa região em que o desenvolvimento contrasta com os altos níveis de
pobreza e analfabetismo. Segundo Araújo (2000), utilizando pesquisa do IPEA
de 1993, 55% (17,3 milhões) dos indigentes estavam no Nordeste. Destes,
mais de 10 milhões estavam na zona rural. Era possível supor que o esforço
para a industrialização visava diminuir as desigualdades. No entanto, diante de
tamanha desigualdade, as possibilidades de intensificação da exploração do
trabalho seriam ainda maiores.
Foi aqui que o papel desempenhado pelos sindicatos funcionou como
um freio à exploração que permitia, até o início dos anos 1990, uma
acumulação desenfreada de capital pelo patronato, às custas do trabalho
infantil e do não cumprimento dos direitos, da exposição aos perigos de morte,
seja na forma em que o transporte era utilizado até o trabalho ou mesmo na
ausência de equipamentos para aplicação do agrotóxico, etc. Paradoxalmente,
a saída dessa condição foi possibilitada pela inserção dos trabalhadores
assalariados dentro de um padrão de exploração baseado nas definições do
direito burguês.
GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ
85
O Movimento sindical rural
Fundado em 27 de julho de 1963, o STR Petrolina tem sua história
associada ao avanço da organização dos trabalhadores rurais no campo e aos
esforços da Igreja Católica para organizar o movimento sindical. Tal fato não é
distinto do que vários autores têm destacado da história do sindicalismo rural,
estabelecendo uma relação direta entre a organização da classe trabalhadora e
a expansão do sindicalismo rural em associação com a Igreja Católica. Em
outros casos o Partido Comunista Brasileiro foi um ator importante
(FAVARETO, 2006; NOVAES, 1991; MEDEIROS, 1988; MEDEIROS &
SORIANO, 1983; COSTA & MARINHO, 2008). No caso de Petrolina, o Padre
Mansueto de Lavour foi uma personalidade de destaque no apoio direto ao
movimento.
Segundo Novaes (1991), a especificidade do sindicalismo rural brasileiro
está no fato de que várias categorias estão sob o guarda-chuvas do termo
rural. Assalariados, pequenos proprietários rurais, posseiros, pescadores, sem
terra etc. estão no mesmo sindicato. O resultado de tamanha diversidade seria
uma complexa teia de interesses que dificultaria a construção da unidade dos
trabalhadores rurais. A autora destacou o papel importante que a CONTAG
(Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) teve na construção
da unidade entre os rurais e a diversidade de movimentos que surgem com o
advento do novo sindicalismo.
Costa & Marinho (2008) analisam a construção institucional do moderno
sindicalismo rural brasileiro analisando diversas portarias e leis que trataram do
assunto em sucessivos governos. Para os autores, o resultado foi um modelo
de sindicalismo que se desenvolveu como resultado dos embates entre
comunistas, trabalhistas, católicos e o Estado como agente ativo na disputa. O
destaque desse processo foi o que os autores denominaram de “herança de
uma história desagregada e episódica” (2008: 125) que teve seu ponto alto na
criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
(CONTAG).
Os sindicatos rurais são produtos dessa diversidade de categorias como
assalariados, ribeirinho, pequenos agricultores, assentados, pescadores etc.
86
Destacaram-se por absorver essa diversidade no campo. Desde os anos 1970
vários sindicatos da região do vale destacavam-se por formar um pólo sindical
com o objetivo de organizar a luta contra os desmandos da CHESF. Essa
organização teve início quando produtores ribeirinhos foram retirados das
terras que ocupavam por conta da criação de grandes barragens para as
hidroelétricas. A Igreja foi um ator importante para organização (IULIANELLI,
2000; RIBEIRO, 2002; ARAÚJO, 1990; ARAÚJO, NETO & LIMA, 2000).
Lugar especial para o ponto de partida dessa análise tem o STR de
Petrolina. Em princípios de 1990 predominava um movimento orientado para os
interesses dos pequenos produtores rurais. Estes definiam e davam o norte da
ação sindical. Atualmente tem sua maior força entre os assalariados. Como
paralelo, nessa mesma época, o sindicalismo urbano iniciava sua longa crise
de existência, ocasionada pelas mudanças na organização dos ambientes de
trabalho, o que se convencionou de chamar reestruturação produtiva. Tais
mudanças puseram em xeque o modelo exitoso de ação sindical dos anos
1980, caracterizado pela forte mobilização de trabalhadores associada ao
enfrentamento com os patrões e o Estado, o chamado “novo sindicalismo”.
De ladeira abaixo, o sindicalismo urbano foi obrigado a se questionar e,
ao mesmo tempo, modificar e abrir mão de suas bandeiras de luta mais
valiosas, tais como a luta contra a estrutura e o imposto sindical; os processos
representativos internos, com ênfase na legitimidade da representação política
e suas formas de organização política; o assistencialismo e a prestação de
serviços assistenciais; ao mesmo tempo teve que lidar com a crescente
terceirização dos serviços; grandes demissões; privatização de empresas
estatais, implantação de políticas neoliberais, entre outros (SANTANA, 1999 e
2003; MATTOS, 1998; OLIVEIRA, 2002; RAMALHO & SANTANA, 2003).
Enquanto o sindicalismo urbano mergulhava numa fase de intensas
dificuldades, por outro lado, o Vale do São Francisco iria dar início a uma das
mais ativas e eficazes disputas no campo sindical contra o patronato da
fruticultura irrigada. Dentro da diversidade de categorias que compunham o
sindicato rural, o ponto crucial da organização do movimento foram os
trabalhadores assalariados. Mesmo com um número expressivo de
trabalhadores nessa condição no início dos anos 1990, o STR de Petrolina e os
GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ
87
demais sindicatos da região não desenvolviam uma só ação para essa
categoria.
Cavalcanti (1997: 85-86) apontou que na segunda metade dos anos
1990 não havia dados objetivos ou mesmo confiáveis para o tamanho da força
de trabalho ocupada na fruticultura. Utilizando os números de relatórios oficiais
constatou haver variações. Seu palpite foi de que os números apresentados em
relatórios fossem inferiores ao número real. Para Petrolina e Juazeiro, por
exemplo, sua estimativa era de que existissem de 20 a 30 mil trabalhadores. Já
para o setor de serviços, os relatórios da CODEVASF para o ano de 1996
indicavam que o número de empregos indiretos tenderia a ser maior. A
imprecisão dos números, segundo a autora, devia-se a dois fatores: “às formas
precárias de recrutamento e remuneração da mão-de-obra” e, em segundo
lugar, a sazonalidade na contratação de mão-de-obra em certas fases da
produção e colheita.
Cordeiro Neto e Alves (2009: 351), utilizando-se da Relação Anual de
Informações Sociais – RAIS, do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, afirmam que
o número de empregos formais no ano 2000 em Juazeiro e Petrolina, chegava aos
42.869. Citando o número de pessoas ocupadas pelo censo agropecuário de 1985
chegou-se a um total de 55.115 pessoas ocupadas. No senso de 1995-96 esse
número chegou 62.244 (TARGINO; MOREIRA & FIGUEIREDO, 2004, p. 133 Apud
CORDEIRO NETO e ALVES, 2009, p. 347).
Apesar desses números expressivos, como já indicamos, a ação política
dos STRs estava direcionada para os pequenos produtores. A organização dos
assalariados aconteceu por uma iniciativa da FETAPE, que em 1989 decidiu
enviar para a região uma advogada, Dr.ª Cida Pedrosa, especialista em Direito
do Trabalho e com experiência na organização do movimento sindical rural na
cana-de-açúcar. Com a sua vinda foram beneficiados diretamente os STRs de
Petrolina e Santa Maria da Boa Vista, cidades do semiárido pernambucano
com grande número de assalariados na fruticultura irrigada.
Esse deslocamento da Zona da Mata para a fronteira de Pernambuco
com a Bahia, o Semiárido de Pernambuco, de um quadro importante da
FETAPE, permitiu algumas mudanças importantes e visava duas coisas
inicialmente. Em primeiro lugar, preservar a vida da Dr.ª Cida Pedrosa, que
teve o companheiro assassinado em 13 de dezembro de 1988, na Zona da
88
Mata de Pernambuco, quando militavam no movimento sindical na cana-de-
açúcar. Três meses antes ela havia sofrido uma tentativa de assassinato e,
desde então, estava jurada de morte. Em segundo lugar, o objetivo era que
Cida Pedrosa pudesse orientar os sindicalistas com base na experiência
adquirida na Zona da Mata com mobilização e questões de assalariados.
Em reunião na FETAPE com representantes dos STRs de Petrolina,
Santa Maria da Boa Vista, Óroco e Afrânio, ficou decidido que Cida Pedrosa
iria para o semiárido. A ida da advogada para o interior era ilustrativa das
condições materiais dos sindicatos. Sua carteira de trabalho foi assinada pela
FETAPE, em 01/04/1989, e a maior parte do seu salário também foi pago pela
federação. Ficou decidido que os sindicatos contribuíssem para o salário da
advogada. O STR de Petrolina passou a pagar ½ salário mínimo mensal; o
STR de Santa Maria da Boa Vista pagava 25% do salário mínimo e o STR de
Afrânio pagava 15% de um salário mínimo. O acordo visava estabelecer uma
relação de trabalho justa dentro das condições possíveis dos sindicatos. O
acordo também denunciava a fragilidade financeira dos STRs, que
funcionavam fundamentalmente por conta das contribuições da agricultura
familiar. Para iniciar seus trabalhos, Cida Pedrosa decidiu assinar suas
petições e demais documentos como Maria Aparecida Pedrosa Bezerra, seu
nome de batismo. O intuito foi despistar, ainda que momentaneamente, seus
possíveis assassinos.
A estratégia de atuação no Vale do São Francisco
Segundo Cida Pedrosa, num primeiro momento, cabia descobrir e
entender a estrutura de produção do Vale. Quem eram esses trabalhadores? O
que produziam? De onde vinham? Onde encontrá-los? Como ganhar a
confiança deles? Por outro lado, como organizar os assalariados, já que as
diretorias dos STRs estavam nas mãos dos pequenos produtores, alguns deles
empregadores de assalariados?
O primeiro passo foi encontrar esses trabalhadores. O STR passou a
procurar por eles nas periferias da cidade e, ao encontrá-los, decidiram fazer
reuniões aos sábados e domingos. Buscaram assim descobrir qual era o tipo
de assalariamento e qual o perfil desses trabalhadores; quais os direitos que
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89
eram cumpridos e quais eram sonegados? Após isso, iniciaram uma estratégia
de realizar cursinhos para ensinar aos trabalhadores se apropriarem de seus
direitos. Procuravam trabalhadores que pudessem difundir o que haviam
aprendido nos cursinhos dentro das empresas. Os trabalhos renderam seus
primeiros frutos no em Santa Maria da Boa Vista, no antigo distrito de Lagoa
Grande, onde estavam localizadas as principais empresas e fazendas
produtoras de fruta com o maior contingente de trabalhadores.
Em 1992, três anos após o início das atividades, foi realizada a primeira
assembleia no distrito de Izacolândia, na periferia de Petrolina, com a
participação de 700 trabalhadores assalariados. Nesse mesmo ano iniciaram
as primeiras interlocuções com as grandes empresas. Como resultado as
primeiras carteiras de trabalho foram assinadas. Como foi dito antes, o sentido
dessa luta foi, fundamentalmente, para reivindicar o cumprimento de direitos.
Como primeira ação estava a reivindicação, ou melhor, a exigência de que os
trabalhadores tivessem seus direitos fundamentais assegurados. O primeiro
deles foi a carteiras de trabalho assinada. Essa primeira ação foi a garantia, o
passaporte, para a modernização das relações de trabalho na fruticultura
irrigada.
É possível refletir sobre todo tipo de desmando que existiu em
consequência da ausência do cumprimento de direitos. Os assalariados
estavam entregues à sua própria sorte. Notícias dos principais jornais da época
relataram que os trabalhadores eram transportados em cima de carrocerias de
caminhões 32 , quase não havia ônibus33 . Outros registros apontam a Sub-
Delegacia Regional do Trabalho autuando mais de 20 empresas. Entre elas,
algumas empregavam menores de 14 anos de idade34. Outra reportagem sobre
o trabalho infantil tinha o seguinte título: “Sobreviventes da roça: a presença de
32 “Três mortos e 7 feridos em capotamento de caminhão”. Jornal do Commercio. Recife, 03 de junho de 1997.
33Jornal do Commercio. Recife, 20 de agosto de 1996. Terça-feira.
34 “DRT notifica empresas com irregularidades”. Jornal do Commercio. Recife, sem data (provavelmente de 1994).
90
menores nos projetos Nilo Coelho e Bebedouro, em Petrolina, pode chegar a
40%”35.
A denúncia e o enfrentamento proposto pelos STRs de Petrolina e Santa
Maria da Boa Vista fizeram com que os sindicatos passassem a existir dentro
das grandes empresas para os assalariados. O primeiro sintoma disso foi que
os trabalhadores passaram a procurar os sindicatos quando eram demitidos.
Antes eles procuravam, individualmente, a advogados. Os sindicatos passaram
a mediar a relação trabalho. Se tornavam o meio de ligação entre os
trabalhadores.
Uma cartilha sobre a campanha salarial de 1994 trazia a seguinte lista
de reinvindicações: 1. Salário justo; 2. Melhores condições de trabalho; 3.
Transporte seguro e gratuito; 4. Assinatura da carteira de trabalho; 5. Fim da
exploração da mão-de-obra da criança e do adolescente36.
Mas fazer o patronato sentar a mesa para negociar com os
trabalhadores não foi fácil. Habituados a mandar e desmandar em suas
propriedades, não admitiam que tivessem que sentar à mesa para negociar. O
processo foi adiante porque as grandes empresas foram as primeiras a ceder,
talvez por não querer ver seus nomes associados à escândalos sobre a
exploração de trabalho. Em segundo lugar, a conjuntura política foi favorável. A
Delegacia Regional do Trabalho, em Recife, e a Sub-Delegacia Regional, em
Petrolina, somaram esforços e foram sensíveis às denúncias pronunciadas
pelos sindicatos. Em ofício assinado pelos três principais sindicatos do Vale em
Pernambuco, estes faziam uma denúncia citando mais de dez
empresas/fazendas de produção de frutas, denunciando a falta de registro das
carteiras de trabalho; o transporte sem segurança e das péssimas condições
de higiene e saúde. Por fim, solicitavam a participação da DRT em visita de
fiscalização a essas fazendas37.
35 “Sobreviventes da roça: a presença de menores nos projetos Nilo Coelho e Bebedouro, em Petrolina, pode chegar a 40%”. Jornal do Commercio. Recife, sem data (provavelmente de 1994).
36 Campanha Salarial. Trabalhadores Rurais do Vale do São Francisco. Informe nº 1.
37 Ofício nº 22/93. Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Petrolina e Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco. Petrolina, 13 de agosto de 1993.
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91
O papel de fiscalização da DRT ajudou a constranger uma parcela do
patronato que não estava disposta a negociar. Durante dois meses os patrões
sentaram à mesa de negociações com os trabalhadores. Foi a primeira vez que
sentaram à mesa em pé de igualdade com os trabalhadores. Não por acaso, as
negociações foram as mais demoradas entre todas as convenções até os dias
de hoje.
Segundo Cida Pedrosa,
Porque nesse processo de conhecimento a gente descobriu quem é que
trabalhava, então quem trabalhava? Mulheres! Muitas mulheres. O raleamento de
uva é um trabalho muito feito por mulheres, tem uma mão de obra assalariada de
mulheres muito grande e é um trabalho delicado, não é o trabalho da cana, é um
trabalho de processamento delicado; muitos jovens estudantes, gente muito jovem
trabalha lá, e a gente descobriu que o grande cancro era o agrotóxico, além de
todos eles, era o agrotóxico, deixava as pessoas doentes e essa coisa dessa mão
de obra feminina e jovem e aí a gente põe na convenção coletiva algumas
guaridas para as mulheres e pros jovens que foram de muito difícil entendimento,
a gente coloca o Estatuto da Criança e do Adolescente, que era uma coisa nova
de 89, dentro da convenção, coloca o direito do jovem no dia da prova faltar o
trabalho para estudar, isso foi um rolo, mas é porque direitos sociais, às vezes são
mais complexos do que direitos econômicos, ou seja, que tem um rebatimento
econômico muito grande, mas é muito difícil para o patronato entender isso, né,
então, quando a gente assinou a convenção em fevereiro, final de janeiro, que o
carnaval nessa época foi no final de janeiro, e quando a gente assinou a
convenção oficialmente pro nível de importância disso o Walter Barelli, era
ministro do trabalho na época e veio assinar como testemunha da convenção38.
A revolução deste testemunho não foi para subverter a ordem burguesa,
pelo contrário, foi de inserção nela por aqueles que estavam forçosamente de
fora. O marco da modernização das relações capital-trabalho no Vale, foi a
institucionalização das convenções coletivas de trabalho, que incluiu pela
primeira vez o trabalho assalariado na fruticultura como elemento importante no
processo de acumulação que se desenvolvia.
A pauta negociada denuncia as condições de trabalho e os abusos a
que os trabalhadores estavam submetidos. A presença do ministro do Trabalho
38 Entrevista de Cida Pedrosa. Recife, 16/12/2011.
92
como testemunha da assinatura da convenção foi significativo do início dessa
modernização, que chegou bastante atrasada ao Vale, e aconteceu por causa
dos esforços de homens e mulheres que ficaram de fora da festa promovida
pelas classes dominantes utilizando o aparelho do Estado a seu favor.
Os trabalhadores contaram apenas com uma conjuntura política
favorável à sua organização, pois o Estado esteve mais presente pela
presença dos agentes da DRT, que não se eximiram de cumprir com o seu
trabalho. Por outro lado, a Igreja Católica foi um ator importante nesse
processo, chegando a ajudar a financiar a campanha salarial39. No entanto,
havia tendências diferentes da Igreja envolvidas. A Igreja Católica da Bahia,
tida na época como progressista e a Igreja Católica de Pernambuco, tida como
conservadora.
A primeira convenção coletiva de trabalho da fruticultura, que podemos
ver como marco do início da modernização das relações de trabalho no Vale do
São Francisco, foi negociada apenas para os limites territoriais de Petrolina e
Santa Maria da Boa Vista, apesar da produção de frutas envolver outras
cidades, inclusive, do Estado da Bahia, como Juazeiro, Sobradinho e Sento Sé.
A justificativa foi que os sindicatos bahianos não aderiram tão fácil ao
movimento como se esperava. No entanto, não havia muitas saídas para eles,
a entrada desses sindicatos deveria acontecer, mais cedo ou mais tarde, pois
as mesmas fazendas que produziam frutas de um lado do rio, Pernambuco,
produzem também do outro lado, Bahia.
Naturalmente eles vão ter que vir, porque se não vai criar uma... veja as mesmas
empresas que estão de um lado, estão do outro, vai ser uma consequência, é
tanto que quando a gente assinou a convenção algumas empresas passaram a
assumir a convenção de Pernambuco lá [Bahia], mesmo sem lá ter porque se não
ia criar um conflito interno da bexiga, né? (...) Olhe, juro por Deus, não conseguia
engrenar a Bahia, não conseguia, e a gente chegou a ter uma conversa com a
federação da Bahia, que era boa, mas a federação não assumiu, feito a federação
de Pernambuco assumiu, se os sindicatos de lá eram ruins a federação tinha que
ter assumido, né, o sindicato de Petrolina, Santa Maria, não tinha experiência, a
39 Ofício da Coordenadoria Ecumênica de Serviço - CESE para o STR de Petrolina. Salvador, 07 de fevereiro de 1994.
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93
federação me enviou, mandou reforço, pra assumir, não é pra assumir, pra ajudar,
pra colaborar com quem ainda não tá no processo40.
Entre as principais conquistas da primeira convenção estavam: o ponto
mais evidente foi a mudança dos meios de transportes, de caminhão passaram
a ser transportados em ônibus, de forma gratuita; pagamento de salário mínimo
mais acréscimo de 20%; licença gestante de trinta dias a mais do que o
previsto em lei; afastamento das mulheres grávidas da cultura do agrotóxico;
benefício de faltar ao trabalho nos dias de prova para o caso do trabalhador
estudante41.
Uma nova fase foi aberta com a assinatura da primeira convenção. Em
consequência disso, outra estratégia deveria ser adotada para o novo momento
pós-assinatura da convenção: garantir o cumprimento do que havia sido
assinado. Esta era a meta a ser perseguida. A preocupação comum aos
trabalhadores naquele momento era que as grandes empresas pareciam não
ter problemas em se adaptar às novas regras do jogo, regras estas que não
haviam sido feitas apenas por elas e pra elas. No entanto, pequenas e médias
empresas eram as que preocupavam.
O ano de 1994 que apareceram os primeiros registros de greve no Vale,
especificamente em Santa Maria da Boa Vista e Petrolina. Em matéria
publicada pelo Jornal do Commercio com o título: “No sertão a história é outra”,
a imprensa destacou o papel ativo do movimento sindical.
As negociações dos trabalhadores rurais de Petrolina e Santa Maria da Boa Vista,
iniciadas ontem, já estão sendo consideradas um fato histórico no Vale do São
Francisco. Pela primeira vez, os trabalhadores organizaram-se para dar início a
uma campanha salarial na região, apresentando, inclusive, uma pauta de
reivindicações contendo 67 itens a serem analisados pelos patrões. Estes foram
pegos de surpresa, pois a classe, apesar de existirem os sindicatos patronais,
continua desorganizada42.
40 Entrevista de Cida Pedrosa. Recife, 16/12/2011.
41 Convenção Coletiva de Trabalho. Trabalhadores Rurais: Petrolina-PE e Santa Maria da Boa Vista-PE. Fevereiro de 1994.
42Jornal do Commercio. Recife, 18 de janeiro de 1994, terça feira.
94
Para o Diário de Pernambuco,
Por nunca terem enfrentado um dissídio coletivo, os empresários rurais do Vale do
São Francisco não estão organizados, em seus sindicatos, o que dificultou as
primeiras negociações. Enquanto os sindicatos de Petrolina e Santa Maria da Boa
Vista possuem cerca de 15 000 filiados, o sindicato patronal, em Petrolina, tem
apenas 400 associados e o de Santa Maria, 35043.
A desorganização patronal estava associada à cultura dos proprietários
rurais, que não estavam abertos às negociações, intensificou a publicidade ao
movimento. A dificuldade para as negociações foi tamanha que teve a atenção
e participação direta do Delegado Regional do Trabalho no Estado de
Pernambuco, Amaro Gantóis. Em outubro do mesmo ano foi a vez do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Lagoa Grande, que era o antigo distrito de Santa
Maria da Boa Vista, agora emancipada, de realizar a primeira greve de 24
horas para conseguir negociar com os patrões44.
Mas a desorganização do empresariado parecia ser apenas no que diz
respeito às relações de trabalho. Foram pegos de surpresa, mas estavam bem
organizados para defender seus interesses junto ao Estado ou mesmo para
lidar com a exportação de frutas. A situação revela todo o desleixo da classe
dominante para com as relações de trabalho e, ao mesmo tempo, o fato é
significativo do seu desprezo como classe para com aqueles que, ao seu modo
de ver o mundo, são apenas pobres trabalhadores rurais. Jamais pensaram
que estes poderiam um dia exigir o cumprimento de direitos básicos esticar um
pouco mais nos 20% de acréscimo do salário mínimo ou mesmo nos 30 dias a
mais de licença maternidade. É de se supor que não esperavam serem
atingidos pelo movimento sindical.
Para a presidente do STR de Santa Maria da Boa Vista, Gil:
Eu acho que naquela época eles já estavam bem organizados, mas é claro que
ele tinha que fazer a vez dele, né. Porque o que é que o patronato usava naquele
momento, era que os trabalhadores que precisava sentar pra conversar, pra
chegar a um consenso porque perdia os dois, perdia o patrão e perdia o
43Diário de Pernambuco. Recife, quarta-feira, 19 de janeiro de 1994.
44Jornal do Commercio. Recife, 11 de outubro de 1994, terça-feira.
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trabalhador, que claro que a gente sabe que só quem perdia é o trabalhador,
porque ao mesmo tempo que estava na greve, deixa eu te dar um exemplo, parou
100%, né? Tá lá parado os trabalhadores, mas a uva que tava pra colher, o patrão
não deixou de colher porque os funcionários da empresa é que estavam em greve,
mas aí ele pagava um terceiro e botava pra colher a uva45.
Segundo Cida Pedrosa,
Isso foi a grande dificuldade da negociação, porque eles não tinham
representação, veja, por que que durou dois meses? Eles eram organizados sim,
enquanto força econômica, isso eles eram organizados, pra exportar, pra tudo,
mas eles não tinham um sindicato da categoria, “Produtores do Vale do São
Francisco”, como é que você vai pra mesa de negociação? Dois sindicatos
negociam, ou um sindicato ou federações, você tem duas instituições que
representam e negociam, não é assim? Você tem a interlocução posta, nós não
tínhamos a interlocução posta, isso foi a grande discussão jurídica nossa, a quem
notificar, porque pra você deflagrar a greve e deflagrar o processo de negociação,
você tem que notificar um sindicato dizendo “nós trabalhadores tais, do sindicato
tal, queremos negociar essa pauta”, você oficia, você manda um oficio e dá tantos
dias pra eles responderem, ou seja, legalmente para uma convenção existir você
tem um processo preparatório, isso foi uma das nossas grandes discussões: quem
notificar? O sindicato rural velho de Petrolina, que nasceu com o mesmo tempo do
sindicato de trabalhadores rurais de Petrolina, não representava o Vale, não
representava a Milano, não representava nenhuma delas, a empresa de Aristeu,
não representava por quê? Porque quem era que tava nesse sindicato rural, os
chamados proprietários de área de sequeiro, que tinha aquele monte de terra, 400
hectares, entendeu, os cabras do sequeiro estavam alí, os velhinhos, do
chapeuzinho que tem na feira, que tem uma vaca, isso não representava aquela
outra produção de Petrolina, aí o que é que veio, por isso que as costura foram
muito paralelas, porque na medida em que Gualberto, na mesa de negociação, e
Aristeu apareciam, eles ficavam, me desculpe a expressão, “torando”, porque eles
também não representavam ninguém, eles estavam organizados pra produção,
pra terem lá na mesa grandes advogados (...) levaram como economista pra
negociação, então assim, eles tinham como bancar o aparato pra negociação,
mas eles não tinham uma organização sindical que representasse os mesmos46.
45 Entrevista de Gil (Maria Gilvaneide Pereira dos Santos). Santa Maria da Boa Vista, 11/07/2011.
46 Entrevista de Cida Pedrosa. Recife, 16/12/2011.
96
Esse depoimento revela que a questão doméstica, relação de trabalho,
não era motivo de preocupação. Pelo contrário, a manutenção nas bases em
que estava acontecendo só beneficiava a classe dominante, que tinha
assegurada para si o total e irrestrito passe livre para acumular. Suas
preocupações estavam voltadas como agente político para reivindicar
facilidades do Estado e negociar com o capital internacional. Trabalho não era
uma pauta a classe dominante.
Considerações finais
A ação em conjunto dos sindicatos rurais tem sido uma política
defendida e estimulada pela Federação dos Trabalhadores Rurais de
Pernambuco – FETAPE, ligada à CONTAG. Assim, o Estado de Pernambuco
foi dividido em áreas geográficas e nelas são desenvolvidas ações conjuntas
entre os sindicatos rurais localizados nas respectivas micro regiões.
As informações obtidas pela pesquisa até agora revelam que essa
experiência foi importante para a construção da unidade em torno da
preparação da primeira Convenção Coletiva dos Trabalhadores Rurais do Vale
do São Francisco, que data de 1994 e foi realizada pelos STRs de Petrolina e
de Santa Maria da Boa Vista47. Os trabalhadores da Bahia não demoraram
muito para perceberem que muitas empresas produziam em várias cidades do
Vale. A iniciativa foi agir conjuntamente com os sindicatos localizados na Bahia.
A experiência acumulada pelo pólo foi transpassada para fora das suas bases
territoriais, dirigindo-se para as cidades da Bahia, construindo a unidade em
torno das convenções coletivas entre os sindicatos de Pernambuco e Bahia.
Atualmente onze sindicatos participam da campanha salarial unificada
em 2012 entre os estados da Bahia e Pernambuco48, perfazendo um total de
47 Convenção Coletiva de Trabalho. Trabalhadores Rurais: Petrolina-PE e Santa Maria da Boa Vista-PE. Fevereiro de 1994.
48 Participam da construção e negociação da convenção coletiva, os seguintes sindicatos de trabalhadores rurais (STRs): Petrolina – PE, Santa Maria da Boa Vista – PE, Belém do São Francisco – PE, Lagoa Grande – PE, Cabrobó – PE, Juazeiro – BA, Casa Nova – BA, Sento Sé – BA, Sobradinho – BA, Curaça – BA e Abaré – BA. Também estão as negociações: Federação dos Trabalhadores Rurais de Pernambuco – FETAPE, que assume um papel de protagonista; a Federação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – FETAG e a Central Única dos Trabalhadores – CUT.
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97
cerca de 60 000 trabalhadores rurais, segundo informações do STR de
Petrolina.
O processo de negociação costuma ser tenso. Assumem a frente das
negociações os advogados da FETAPE, FETAG e dos sindicatos patronais. São os
mediadores desse processo. A questão salarial tem sido o ponto de destaque e o que,
de forma mais intensa, mobiliza as bases. É a grande quantidade de assalariados na
região que trouxe força aos sindicatos, foram com as greves, no geral bastante
reprimidas pela polícia, que conseguiram sentar com os patrões para negociar.
Segundo as lideranças sindicais do STR de Petrolina, a primeira convenção
coletiva de trabalho deles foi a primeira do setor de frutas do Brasil, eles a chamaram
de “salada de frutas”. Nas primeiras convenções os principais ganhos salariais eram
em torno de 10% acima do salário mínimo. Mas ao longo do tempo os sindicalistas
perderam essa margem de ganho e na convenção coletiva de 2009 o sindicato
barganhou R$ 11,00 reais acima do mínimo, e não levou.
Por outro lado, as convenções tem significado um avanço para os
trabalhadores rurais. A partir delas e das mobilizações, conquistaram o direito de ter
carteira de trabalho assinada, transporte em ônibus para as fazendas. Os críticos
atuais do movimento chamam atenção para as condições dos ônibus; têm conseguido
a duras penas que os trabalhadores não tenham descontados o transporte dos seus
salários, além dos dias que por ventura faltem ao trabalho para tratar de doença,
aposentadoria etc, todos os casos previstos em lei; também continuam lutando por
maior segurança na utilização de agrotóxicos.
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103
ID 459
PRECARIEDADE LABORAL E SEUS EFEITOS:Trajetórias, organização e
ação coletiva em Portugal
Dora Fonseca
RESUMO
Este trabalho pretende explorar quais as implicações resultantes das mudanças de largo espectro que atingem o mundo do trabalho na época atual. Essas implicações serão discutidas tendo em linha de conta, em primeiro lugar, a forma que tomou a reestruturação produtiva que teve por objetivo a reposição dos patamares de acumulação; segundo, o impacto destas transformações sobre o trabalho e emprego; em terceiro lugar, o nexo de causalidade entre estas e a crise que se produziu no seio do movimento sindical; e, por fim, os impactos ao nível da ação coletiva no quadro da ascensão das políticas de austeridade, tendo como referência central o contexto português.
PALAVRAS-CHAVE: Precaridade laboral. Movimento Sindical. Crise. Ação coletiva.
104
1. INTRODUÇÂO: Um novo mundo do trabalho
Sob o capitalismo, o trabalho deixa de ser realização de si,
desumaniza-se, transforma-se em meio em vez de ser um fim. Enquanto
atividade vital configura-se como trabalho estranhado. A lógica do sistema
produtor de mercadorias desemboca num processo destrutivo que culmina
numa “sociedade dos excluídos e dos precarizados” que se expande
globalmente (ANTUNES, 2009). Nem o centro do sistema produtor de
mercadorias se encontra a salvo e é também fustigado pelas dinâmicas
atuantes. O trabalho humano complexifica-se e exprime-se de formas
paradoxais, emancipando e alienando, verificando-se, à escala global, uma
ação destrutiva contra a força humana de trabalho, que se encontra hoje na
condição de precarizadaou excluída (IDEM).
A partir da segunda metade do século XX, e em particular a partir dos
anos 1970, é implementado um processo de reestruração em escala global que
visava tanto a recuperação do padrão de acumulação prévio como a reposição
da hegemonia perdida no interior do espaço produtivo, utilizando-se para isso
de novas e velhas modalidades de trabalho. A introdução das novas
tecnologias no processo produtivo produziu a transformação radical da sua
organização. Ocorre a acentuada perda de peso do trabalho industrial nas
sociedades avançadas e a expansão do papel que a ciência, a tecnologia e a
informação desempenham na produção. Autores como Manuel Castells falam
da emergência de uma “Economia Informacional”49, no quadro da qual a “fonte
essencial do incremento da produtividade consiste na capacidade de criar novo
conhecimento e aplicá-lo ao conjunto da atividade humana mediante
49 A economia informacional caracteriza‐se, segundo Castells (1992), por cinco traços fundamentais que
se articulam de forma sistémica: 1) produtividade e crescimento económico cada vez mais dependentes
da aplicação da ciência e da tecnologia ao processo produtivo, bem como da qualidade da informação e
da gestão no conjunto da atividade económica; 2) transição, nas sociedades avançadas, das atividades
de produção material a atividades de processamento de informação; 3) transformação profunda na
organização da atividade económica, assistindo‐se a uma passagem da produção de massa uniformizada
à produção flexível, implicando, em termos organizativos, o declínio das grandes organizações verticais
em benefício das redes de conexões horizontais entre unidades económicas descentralizadas; 4) o
capital, a produção, a gestão, os mercados, a força de trabalho, a informação e a tecnologia organizam‐
se em fluxos que ultrapassam as fronteiras nacionais; 5) ocorrência das transformações económicas e
organizativas em simultâneo à revolução tecnológica centrada nas tecnologias de informação.
GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ
105
dispositivos tecnológicos e organizativos destinados, principalmente, ao
tratamento da informação” (CASTELLS, 1992, p.10).Paralelamente, a
introdução em massa da força de trabalho feminina no processo de produção
intensifica-se e adquire um novo significado ao acarretar a desvalorização da
força de trabalho no geral, potenciando as assimetrias salariais em termos de
género (HIRATA, 2001), o que permite falar de um exército industrial de
reserva predominantemente feminino (CASACA, 2009).
Com o final do período de expansão do pós-guerra emerge um novo
paradigma produtivo, a acumulação flexível,que se apresenta como a resposta
possível face à manifesta incapacidade do fordismo e do keynesianismoem
conterem as contradições do capitalismo (HARVEY, 1992). Em resposta à
intensificação da competição promovida por um quadro de crescimento
económico, são impulsionadas medidas de racionalização, reestruturação e
intensificação do controle do trabalho, que vêm implicar níveis relativamente
altos de desemprego estrutural e o retrocesso do poder sindical (IDEM). Assim,
a partir dos anos 1980, as novas estratégias empresariais direcionam-se para a
flexibilidade, em que às transformações na organização do trabalho
(flexibilidade interna) somam-se estratégias de flexibilidade externa
(organização do trabalho em rede, força de trabalho maleável, busca de
recursos externos à empresa), o que vem transferir o fardo da incerteza para
os assalariados e para outros provedores de serviços (BOLTANSKI e
CHIAPELLO, 2005).
A emergência de novas estratégias de organização do trabalho
refletem-se no fim do pleno emprego - tradicionalmente associado ao
compromisso fordista e à plenitude do Estado – Providência - e na emergência
de novas formas de emprego como o trabalho a tempo parcial, o trabalho
domiciliário e o trabalho cívico (BECK, 2000). Os sectores do trabalho flexível e
do trabalho precário são os que apresentam um índice de crescimento mais
elevado, caracterizando-se as novas formas de emprego pela informalidade e
pela individualização. A reestruturação da produção e a introdução de novas
tecnologias no processo produtivo abriram o caminho à formação de largos
contingentes de “dispensáveis” que associada à erosão do Estado social – pois
o solapamento do modelo de regulação social democrático pela (des)regulação
106
neoliberal é uma das tendências num contexto de crise estrutural do capital
(ANTUNES, 2000) - acarreta consequências sociais sérias.
Neste quadro, o compromisso económico-político do “cidadão
trabalhador” começa a erodir-se e emerge um sistema de subemprego
desestandardizado, fragmentado e plural, com formas de trabalho retribuído
altamente flexíveis, descentralizadas temporal e espacialmente, e
desregulamentadas (IDEM). Tal como é frisado por Antunes, “o mundo do
trabalho atual tem recusado os trabalhadores herdeiros da “cultura fordista”,
fortemente especializados, que são substituídos pelos trabalhadores
‘polivalentes e multifuncionais’ da eratoyotista” (2009, p. 52). O sector informal
é alvo de crescimento expressivo e ganha terreno ao sistema regulamentado e
seguro das relações laborais, configurando-se um cenário de “brasileirização
do ocidente” (BECK, 2000; COSTA, 2008).
A classe trabalhadora da contemporaneidade apresenta uma nova
morfologia dado o seu carácter heterogéneo e multifacetado decorrente do
processo de internacionalização do capital, em que às clivagens habituais se
somam estratificações e fragmentações, conduzindo á elaboração de uma
conceção ampliada de trabalho que é marcada por um traço de superfluidade,
de que são exemplo os setores precarizados da classe-que-vive-do-trabalho,
cujo cotidiano é moldado pela ameaça do desemprego estrutural, e que
compõem o segmento dos novos proletários do mundo (IDEM). A liofilização
organizacional (CASTILLO, 1996) cria a necessidade de um “novo tipo de
trabalho”, fundamentado na desespecialização multifuncional, no trabalho
polivalente, na intensificação dos ritmos e processos de trabalho, em que a
figura do “colaborador” assume um papel central (ANTUNES, 2009). O
contexto é de um processo de precarização estrutural do trabalho que é
complementado pelas tendências de flexibilização da legislação laboral, das
leis que protegem o elo mais fraco de um contrato desigual: o trabalhador.
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107
2. Efeitos sobre o sindicalismo
O contexto de alterações na configuração do mundo do trabalho tem
repercussões profundas ao nível do movimento sindical. Este encontra-se em
crise em resultado de mudanças que têm vindo a afetar a sua coerência interna
e que despoletam uma série de “pressões centrífugas”, podendo, nesse
sentido, falar-se de uma crise estrutural (SANTOS e COSTA, 2004; COSTA,
2008; HYMAN, 1994, 2005; MOODY, 1997; WATERMAN, 2004).
As razões que estão na génese da crise do sindicalismo são de várias
ordens. A acentuada burocratização e profissionalização do sindicalismo
distanciaram os representantes sindicais dos trabalhadores, culminando em
uma acentuada desfiliação e na erosão do poder combativo dos sindicatos
(ANTUNES, 1995; BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005). A solidariedade sindical
debilita-se em resultado da dispersão da produção e da maior mobilidade do
capital internacional. A desregulamentação cada vez mais intensa das relações
laborais conduziu a formas de flexibilização que, para além de acabarem por
trazer sempre acopladas diferentes formas de precarização, subtraem poder
negocial aos sindicatos e os debilitam estrategicamente. A expansão do
terceiro sector e retração do sector industrial fomentadas pelos avanços
tecnológicos acarretaramuma redução do número dos postos de trabalho,
significativa e generalizada, afetando especialmente o sector industrial,
tradicionalmente de forte sindicalização (VISSER, 1994), o que vem colocar em
cheque o sindicalismo de base operária tradicional.Concomitantemente, o
processo de globalização, ao implicar a reorganização dos espaços
económicos, reflete-se no deslocamento do enfoque dos espaços nacionais
para os internacionais e destabiliza o modelo sindical vigente, uma vez que
este último estabelece como espaço privilegiado de ação o espaço nacional
(HYMAN, 2005; MOODY, 1997; WATERMAN, 2004).
As novas técnicas de gestão traduzem-se em estratégias hostis ao
sindicalismo e à prática da negociação coletiva. A precarização do trabalho, o
medo do desemprego, a restruturação produtiva (outsourcing, deslocação das
unidades produtivas, criação de estruturas subsidiárias onde não raramente,
não existe uma tradição sindicalista) e a mobilidade da força de trabalho
108
contribuem para o esmorecimento da vontade dos trabalhadores em se
organizarem (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005). A transferência do palco de
negociações para as empresas vem colocar duras restrições à atuação dos
sindicatos e facilitar a impregnação das suas estratégias por tendências
neocorporativistas e de “parceria social” (MOODY, 1997), o que compromete a
sua essência combativa. A negociação coletiva ligada às condições de trabalho
passou a dominar as agendas sindicais em detrimento da formulação de
respostas às estratégias governamentais e dos empregadores, relegando para
segundo plano a existência de uma agenda sindical autónoma. A autonomia
sindical é minada pelo enfoque em diretivas macroeconómicas políticas,
conferindo prioridade ao “economismo político” (HYMAN, 1994). A nova
orientação estratégica obriga o sindicalismo de “classe” a debater-se com
inúmeros problemas e fragilidades potenciados pela mitigação das lutas da
classe trabalhadora pelo capitalismo, bem como pela submissão destas
estruturas à posição de instrumentos da ação reguladora do Estado
(ESTANQUE, 2006). Apoiando-se no envolvimento manipulatório, o modelo de
acumulação flexível instaurado busca a adesão de fundo dos trabalhadores ao
projeto do capital, para dessa forma o viabilizar (ANTUNES, 2000). As
consequências destes processos para a solidariedade e ação sindicais são
drásticas.
Uma série de fatores que emanam da reorganização do processo
produtivo 50 produzem fragmentação da classe trabalhadora e refletem-se
negativamente sobre a solidariedade sindical, “debilitando-a”. As novas formas
de organização do trabalho promovem o individualismo e fomentam a
competitividade entre trabalhadores. Por um lado, acentua-se a tendência da
construção de uma solidariedade relativa à empresa e, por outro, intensificam-
se as políticas de repressão sindical que restringem a militância sindical e
corrompem a solidariedade entre trabalhadores (VISSER, 1994). A emergência
50São considerados os seguintes fatores: a dispersão da produção; a redução da dimensão das unidades fabris e o aumento da produção em pequenas empresas; a maior mobilidade do capital internacional; a tendência de realização de acordos entre empresas e locais de produção; flexibilização da produção e das normas que regulamentam as carreiras dos trabalhadores; e a maior heterogeneidade da força de trabalho em virtude do aparecimento de novas profissões e da maior presença da mulher e dos imigrantes no conjunto da força de trabalho disponível.
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109
de formas atípicas de trabalho conduz à unilateralidade e individuação das
relações de trabalho e constitui um forte obstáculo à integração desses
segmentos de trabalhadores nas organizações sindicais. Estas privilegiam a
dimensão da categoria profissional, o que espelha a redução da capacidade de
representação dos sindicatos (BIHR, 1991; HYMAN). Assim, ao mesmo tempo
que se assiste à diminuição do contingente de trabalhadores estáveis, os
números de trabalhadores submetidos a condições cada vez mais precárias
são alvo de um crescimento surpreendente, refletindo-se numa redução da
força sindical, historicamente ligada aos primeiros e que marginaliza os
segundos (ANTUNES, 1995).
A velocidade de crescimento e prevalência cada vez mais elevadas
apresentadas pelo setor informal e do trabalho precário, concomitantemente
com a redução da capacidade organizativa do sector formal, implicam que a
estabilização do sector formal e a avaliação da força do sindicalismo estarão
em parte dependentes da capacidade de organização em torno dos “novos”
contingentes de trabalhadores. Assim, é exigida às estruturas sindicais a
reformulação dos seus objetivos e a reestruturação dos canais de comunicação
e de tomada de decisão (de índole hierarquizada e burocrática), caminhando
no sentido de um sindicalismo do tipo horizontal, ao mesmo tempo que são
reavaliadas as formas de luta e de ação coletiva para que se adaptem às
especificidades do contexto atual e recuperem a sua eficácia (COSTA, 2008;
HYMAN, 1994). A nova morfologia do trabalho, apesar dos efeitos negativos
que inflige sobre o movimento sindical, não impõe o fim dos tradicionais órgãos
de representação dos trabalhadores, significando um novo desenho das formas
de representação das forças sociais do trabalho (ANTUNES, 2009). A
representação dos trabalhadores precários por parte das estruturas sindicais
reveste-se de dificuldades e de uma temporalidade próprias, representando
uma fonte de tensões no interior destas estruturas. (BÉROUD, 2009). Nesse
sentido, é necessário que esta questão ganhe carácter prioritário, refletindo-se
em mudanças no discurso sindical e em formas de ação mais adequadas.
110
3. Precarização do trabalho e a nova questão salarial: que
consequências?
A precariedade laboral reflete-se sobre a vida dos indivíduos,
configurando uma condição que define a identidade e o modo de vida e que
transpõe os limites da esfera do trabalho. Os problemas associados ao trabalho
precário são inúmeros - os salários baixos, os tempos e intensidade do
trabalho, instabilidade laboral, entre muitos outros – e sua expansão
desestrutura a universalidade atribuída à condição salarial moderna,
redefinindo tanto as suas características como os limites, retirando-lhe o
estatuto de norma e dissolvendo o vínculo que a associava à ideia de
progresso que dominou grande parte do século XX. Um dos aspetos que
assume maior preponderância no contexto atual é a forma como o estatuto
precário de emprego limita o acesso aos direitos sociais e influi negativamente
sobre a constituição da identidade social.
A precariedade pode derivar, segundo Serge Paugam (2000), por um
lado, do tipo de relação com o emprego e, por outro, do tipo de relação com o
trabalho. A primeira, a relação com o emprego, inscreve-se na lógica de
proteção do Estado – providência que assegura aos cidadãos o acesso a
direitos sociais em função da sua contribuição em termos da atividade
produtiva, mas também em função do princípio da cidadania. A segunda
insere-se na lógica produtiva da sociedade industrial, na medida em que esta
faz de cada indivíduo um produtor potencial que adquire a sua identidade e o
sentimento de ser útil por meio do princípio de complementaridade de funções,
reportando-se à verificação de más condições de trabalho e de salários baixos.
Esta definição de precariedade depende da especificidade das realidades
nacionais. Nesse sentido ser precário no Brasil ou em Portugal será diferente
de ser precário, por exemplo, no Reino Unido.
A precariedade profissional deve ser analisada nestas duas vertentes
que são também as duas dimensões fundamentais da integração profissional,
por meio das quais é construída a subjetividade do trabalhador. A divisão
apresentada é pertinente na medida em que a análise da relação com o
GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ
111
trabalho permite apreender as dimensões de satisfação ou de insatisfação dos
assalariados relativamente ao exercício de uma determinada função, enquanto
a análise da relação com o emprego permite distinguir os assalariados segundo
o grau de estabilidade no que diz respeito à situação profissional, sendo a
estabilidade definida pela natureza do contrato de trabalho. A precariedade do
emprego torna mais provável a verificação da precariedade das condições de
vida e, tendo em conta a forma durável que assume atualmente (fruto de uma
imposição alheia à vontade do trabalhador), configura uma forma de
exploração.
Nos últimos anos, a estratégia de diminuição dos custos do trabalho
com vista à diminuição dos números do desemprego – sob argumento que tal
estimulará a criação de novos postos de trabalho no contexto de crise
económica como o enfrentado hoje em dia na zona Euro – é um recurso cada
vez mais adotado pelas empresas, grandes grupos económicos e, até mesmo,
pelo Estado. No entanto, este tipo de políticas apenas têm contribuído
ativamente para a criação de um número cada vez maior de empregos de
estatuto precário. Isto não significa apenas que os novos empregos criados são
precários, mas também que se verifica uma tendência de precarização dos já
existentes. A inserção no mercado de trabalho rege-se cada vez mais pelo
conceito de empregabilidade que, por um lado, traduz a exigência de novas
qualificações para o mundo do trabalho, e por outro, tende a ocultar “que seu
substrato estrutural-organizacional, o toyotismo, possui como lógica interna a
produção enxuta e uma dinâmica social de exclusão que perpassa o mundo do
trabalho”, configurando, nesse sentido, uma operação ideológica por meio da
qual a crescente polivalência do homem – trabalhador (no âmbito das novas
habilidades cognitivas e comportamentais exigidas) acaba por redundar no
estranhamento e na alienação e no acentuar da instrumentalidade incorporada
pelo trabalhador (ALVES, 2007, p. 245).
A precariedade corresponde ao alargamento da zona intermediária
entre o emprego estável e o desemprego, e reforça a flexibilidade na periferia
do mercado de trabalho. Para certas categorias de trabalhadores é grande o
risco de se manterem de forma durável nesse segmento periférico e de
conhecerem temporariamente várias experiências de desemprego. Castel
112
(2010, p. 29) afirma que nas últimas décadas tem vindo a desenhar-se uma
“zona híbrida da vida social entre trabalho e não trabalho, segurança e
assistência, integração e desfiliação”, onde faltaram as condições para o
indivíduo construir a sua independência económica e social. Nesse sentido o
autor fala de uma modernidade tardia permeada de “zonas cinzentas”.
A zona intermediária mencionada não pode ser desligada da
construção de um profundo sentimento de incerteza no que diz respeito à
forma como o futuro é representado e à influência que pode ser exercida sobre
ele. No início dos anos 1970, a sociedade no seu todo estava comprometida
com uma dinâmica crescente que associava o desenvolvimento económico e o
aperfeiçoamento social, o progresso e a melhoria das condições de vida.
Reinava a crença inabalável de que o futuro seria sempre melhor que o
passado e o presente. Foi também esta ideia que sustentou as perspetivas de
mobilidade ascendente partilhadas por vários segmentos da população
(especialmente, os jovens), fundadas na crença que os filhos terão sempre
melhores condições de vida que os seus pais. Com base nestas convicções
era possível construir projetos de vida, trajetórias, que partilhavam o facto de
serem de “signo ascendente”.
Multiplicam-se os indícios que demonstram que, após um período
marcado por uma mobilidade ascendente sustentada e considerável, entramos
agora numa dinâmica de mobilidade descendente. O período atual é marcado
pelo abandono do modo de produção e de regulação próprios do período
histórico do capitalismo industrial, bem como da gestão regulada das
desigualdades sociais que havia sido alcançada. O compromisso social do
capitalismo industrial tem por base a existência de possibilidades concretas da
melhoria da situação de cada categoria social por meio da consolidação de um
conjunto de conquistas, com destaque para o salário mínimo e a indexação
segundo o crescimento, um direito de trabalho que protege contra as
arbitrariedades patronais e um sistema de proteção contra os principais
avatares da existência. O conjunto da sociedade encontrava-se envolvido em
sistemas de regulações coletivas que preservavam uma certa redistribuição
dos recursos e, mais do que isso, garantiam proteções estendidas a maioria
dos cidadãos. Existia, portanto, uma lógica de compromisso social que envolvia
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113
e harmonizava interesses antagónicos. O modelo de regulação
socioeconómica, centrado numa forma de subordinação estandardizada e na
institucionalização dos atores coletivos no quadro do Estados nacionais, em
que se baseou o direito do trabalho desde o início do século XX, encontra-se
claramente em crise (SUPIOT, 1999), colocando em xeque toda uma forma de
organização social.
A consistência da sociedade salarial dependia da inscrição dos seus
membros em coletivos. Com o compromisso construído na esteira do Estado
social “o assalariado deixou de ser um indivíduo isolado, individualizado”
(CASTEL, 2010, p. 24). O trabalhador estava inscrito no sistema de garantias
coletivas do estatuto do emprego e da proteção social. O capitalismo pós –
industrial vem alterar radicalmente o equilíbrio encontrado. Intensificam-se as
dinâmicas de descoletivização e de individuação, e é no interior destas que
situamos o problema levantado pela precarização das relações laborais. A
dinâmica de individuação tem efeitos contrastantes: maximiza as possibilidades
de alguns indivíduos ao mesmo tempo que invalida as de outros. Em última
instância tende a cindir dois perfis de indivíduos: os que têm à sua disposição
todos os recursos e os a quem faltam os meios para realizarem as suas
aspirações sociais (IDEM). Constata-se, para além de um efetivo aumento das
desigualdades, o seu agravamento pela transformação do regime de proteção
enquadrado pela sociedade salarial, passando a existir formas inferiores de
proteção.
Os efeitos ao nível da reconfiguração profunda que se produz na
organização do trabalho e nas carreiras profissionais são preocupantes. No
plano da organização do trabalho assiste-se à individualização crescente das
tarefas que vem exigir mobilidade, adaptabilidade e responsabilidade aos
colaboradores. Ora, este suposto dinamismo exerce uma pressão muito forte
sobre a maioria dos setores da organização do trabalho. Os bastiões da era
taylorista (principalmente a grande industria transformadora) são
completamente reconfigurados em função das novas exigências e sob a
pressão dos novos princípios de organização. As empresas passam a recorrer
de forma generalizada à utilização de trabalhadores temporários e de
114
contratados a termo em detrimento dos contratos sem termo, e a terceirização
é praticada em grande escala.
As repercussões destas transformações são evidentes: os antigos
coletivos de trabalho deixam de funcionar e os trabalhadores passam a estar
em competição constante entre si, desestabilizando a estrutura das
solidariedades operárias. As regulações coletivas destinadas a dominar todos
os avatares da existência caminham a passos largos para a extinção, deixando
os indivíduos praticamente entregues à sua sorte. A referência ao risco torna-
se por isso omnipresente e “desemboca numa representação totalizadora da
sociedade contemporânea como uma sociedade do risco, o que é outra
maneira de dizer que vivemos tempos incertos”, verificando-se a fragilização da
mutualização de todos os riscos (IDEM, p. 30). Convém ainda referir que a
precarização do trabalho ameaça a sustentabilidade do sistema de proteção
social, uma vez que este último se baseia amplamente nas cotizações salariais.
Neste quadro, a proliferação de riscos de várias ordens contribui para
o questionamento das competências e capacidades do Estado social para lidar
com a emergência do novo panorama pautado pela amplificação das
desigualdades sociais e pela expansão da precariedade laboral. Esta última,
em vez de constituir um registo transitório, parece assumir um caráter
permanente, formando-se uma espécie de infra salariato no interior do
salariato. Este quadro corresponde à emergência de uma sociedade do risco,
cuja especificidade reside no facto de ser colocada de parte qualquer
recuperação das certezas oferecidas pela sociedade salarial (BECK, 1998,
2000).
De uma forma geral, podemos dizer que estamos perante a
implantação de um novo regime em que proliferam formas diversas de
subemprego – não estandardizado e fragmentado -, caracterizadas pela
elevada flexibilidade, intensidade temporal e descentralização geográfica, e em
que é notória a ausência de regulamentação no que toca à proteção do
trabalhador. A pressão que as taxas de desemprego elevadas exercem neste
ponto é enorme: o desemprego estrutural é o argumento legitimador da
flexibilização do direito do trabalho e da emergência de formas atípicas de
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115
emprego. Nesse sentido, o trabalho precário situa-se no espaço de
desestruturação das fronteiras entre o trabalho e o não – trabalho.
4. A precarização do trabalho em Portugal
A expansão da precariedade laboral em Portugal tem sido notória
desde há alguns anos a esta parte. A grave crise económica que se vive
redunda em estagnação e retrocesso das condições de vida das camadas
médias da população que, ao longo das últimas duas décadas, vinham
conquistando e incorporando padrões de vida e de consumo que se afastavam
cada vez mais das características de um proletariado fabril. Esta ascensão foi
consequência do crescimento económico, sustentado ou não, proporcionado
pela adesão à CEE (Comunidade Económica Europeia) em 1986, a agora
União Europeia (EU). Também as classes mais baixas da população veem
agravadas as suas condições de vida e são conduzidas para posições
próximas ou abaixo do limiar da pobreza. Este quadro, em conjunto com outros
aspetos, deita por terra as aspirações de Portugal à etiqueta de “país central” e
consolida a sua posição como país semi-periférico. Em matéria laboral, este
país do sul da Europa aproxima-se daquilo que se pensava ser apanágio
apenas dos países outrora colonizados e depois subdesenvolvidos: as relações
de produção capitalistas tendem a reproduzir as bases materiais da produção
massificada do trabalho barato e superexplorado (BRAGA, 2012). O modelo
económico que agora é, não proposto, mas imposto aos países que se situam
na chamada cauda da Europa, entre os quais Portugal, assenta em políticas de
baixo preço da força de trabalho e de aprofundamento da precarização do
trabalho e do emprego.
Estas tendências têm reflexos evidentes sobre a legislação laboral,
moldando-a ao sabor dos seus intentos, de forma a suprir as necessidades da
ordem neoliberal em ascensão. Em Portugal, de acordo com o estudo realizado
por Rosa e colaboradores (2003) 51 , existem três formas jurídicas que
51 O estudo coordenado por Maria Teresa Serôdio Rosa foi realizado entre Outubro 1999 e Dezembro de
2000, mas a sua atualidade mantém‐se no que diz respeito à definição jurídica das categorias de
trabalho precário, bem como relativamente aos efeitos do emprego precário sobre os trabalhadores.
Acresce ainda o facto de fornecer uma interessante e válida base de comparação relativamente à
situação atual.
116
conformam modalidades de trabalho precário: os contratos a termo (certo ou
incerto), o trabalho temporário e o falso trabalho independente ou por conta
própria (comummente referenciado como falsos recibos verdes). Abordaremos
as três de forma tão sintética quanto possível.
O contrato a termo foi criado para suprir as necessidades de
substituição temporária de um trabalhador efetivo ou para fazer face ao
acréscimo excecional do volume de trabalho, podendo configurar também uma
medida excecional de combate ao desemprego. Atualmente é prática corrente
e corresponde à grande maioria das situações de contratação pois os custos
para a entidade contratante são menores (ao nível, por exemplo, das
compensações por despedimento). Os trabalhadores temporários são
abrangidos por uma relação contratual triangular: trabalhador – empresa de
trabalho temporário (ETT) - empresa utilizadora do serviço. O trabalhador não
possui qualquer vínculo com a empresa utilizadora do serviço que presta, no
entanto encontra-se sujeito às normas de trabalho e disciplinares desta. Dado
que o seu contrato é com a ETT e esta se apropria de uma grande parte do
salário do trabalhador, a remuneração é por norma muito baixa. A proteção no
desemprego e na doença são inexistente e os trabalhadores são submetidos a
condições de elevada precarização, com exacerbamento da instabilidade
económica e da vida profissional e pessoal, tendo impactos óbvios na saúde e
qualidade de vida do trabalhador. Os falsos trabalhadores independentes ou
falsos recibos verdes destacam-se por exercerem a sua atividade
completamente à margem de qualquer integração nos quadros da empresa ou
entidade à qual prestam um serviço. Na grande maioria das vezes o trabalho
independente corresponde a uma relação de trabalho dependente (por conta
de outrem), mas o trabalhador não acede direitos e garantias associados a
uma relação de trabalho dependente. Os trabalhadores a recibos verde são,
em termos legais, “patrões deles próprios” e, nessa medida, os encargos que
asseguram o acesso às prestações sociais ficam à responsabilidade do próprio
trabalhador.
Estas modalidades contratuais têm, cada uma à sua maneira,
fomentado a precarização generalizada do trabalho e do emprego e a erosão
da condição salarial a um ritmo acelerado. Desde os anos 1980 têm vindo a ser
GT 6 | SESSÃO 4 | 31 OUT | MANHÃ
117
impulsionadas formas de emprego que se destacam pela facilidade de
desvinculação da relação contratual que permitem, bem como por “aliviarem”
os encargos que deveriam ser assumidos pela entidade empregadora, com
clara desvantagem para os trabalhadores. A generalização de modalidades
contratuais associadas a formas inferiores de proteção ocorre a par do
agravamento de mais uma crise do capital e mascara-se de instrumento de luta
contra o desemprego. Por outro lado, estamos cada vez mais perante quadros
legais (vejam-se as recentes alterações ao Código do Trabalho Português) que
legitimam o recurso à contratação por períodos cada vez mais curtos, com o
consequente aumento da insegurança e desproteção do trabalhador.
Este quadro de precarização intensa das relações laborais, em
conjunto com a reconfiguração produzida pela reestruturação produtiva,
desemboca na permeação e transformação das trajetórias profissionais, e das
expectativas construídas em torno destas, pelos efeitos devastadores da
precariedade laboral. É possível falar de um modelo biográfico e de carreiras
profissionais descontínuas que deixam de estar inscritas nas regulações
coletivas do trabalho estável. Esta descontinuidade das trajetórias e a fluidez
dos percursos, para além das consequências desestruturantes ao nível das
expectativas e projetos construídos pelo indivíduo trabalhador, repercutem-se
na desestabilização do próprio estatuto do emprego (BECK, 1998).
Durante o último ano, o conjunto da sociedade europeia, e em
particular a portuguesa, viu-se assolada pelo espectro da austeridade. Para
Ferreira (2012), austeridade significa o processo de implementação de políticas
e de medidas económicas que conduzem à disciplina, ao rigor e à contenção
económica, social e cultural, e a sua especificidade advém do reconhecimento
de ser através dos indivíduos e das suas privações subjetivas e objetivas que
se encontram as soluções para a crise composta pelos mercados financeiros,
défice público do Estado e modelos e económicos e sociais seguidos nos
últimos anos. Esta crise tem vindo a ser utilizada como mais uma oportunidade
de subordinar os trabalhadores individuais, os governos e mesmo sociedade
inteiras ao ritmo dos mercados do capitalismo global. Ora, neste quadro, a
situação de todos os trabalhadores, e em particular a dos precários, conhece o
exacerbamento da sua gravidade. Confirmam-se os piores receios das classes
118
trabalhadoras: cortes salariais, perda de benefícios, recuo acentuado dos
direitos laborais e supressão de formas de conflito e de regulação laboral,
despedimentos em massa. Estabelece-se um modelo político – económico que
procede “à implementação de um arrojado projeto de erosão dos direitos
sociais e de liberalização económica da sociedade” e que produz “uma
perturbação coletiva dos padrões institucionais e individuais” (IDEM, p. 13). Tal
significa que quaisquer certezas ou projetos que os indivíduos pudessem ter
ficam agora em suspenso pois o modelo de sociedade que conhecíamos está
em vias de desaparecimento.
As trajetórias de vida precárias ou precarizantes caracterizam-se,
portanto, pela incerteza, pelo aumento e diversificação dos riscos, pela falta de
perspetivas de futuro (em particular das gerações mais jovens), ditada pela
falta de emprego, pela extrema dificuldade de autonomização pessoal e,
consequentemente, a diminuição das probabilidades de um futuro sustentável,
estável e previsível. Está cada vez mais em causa “a capacidade de viver o
presente e poder planear o futuro com um nível módico de segurança e
previsibilidade” (ALVES, BATISTA, CARMO, 2011, p. 2). Nesse sentido, o risco
eminente de ficar sem trabalho é omnipresente e marca a reflexividade do
indivíduo, constrangendo-o nas suas escolhas e na projeção do futuro. Por
isso, a precariedade transcende a questão laboral, expandindo-se pelas várias
dimensões da vida social e acabando por configurar um modo de vida que,
apesar de se generalizar, atinge sobretudo a população mais jovem.
5. Precariedade, austeridade e ação coletiva
As linhas precedentes traçam um quadro negro e de gritante
retrocesso que, até há bem pouco tempo, fazendo jus aos brandos costumes
do povo português, era imposto de forma relativamente incólume, despoletando
agitações que pouco ou nada abalaram o poder. Estas últimas não
conseguiram constituir-se como atores coletivos com um mínimo de
organização e ancoragem ideológica que lhes permitissem disputar as
orientações políticas, económicas e sociais em torno das quais se verifica o
presente embate. Este “fracasso” é apenas relativo se considerarmos que,
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119
apesar da escassez de mudanças de facto no interior das instituições e sistema
político, se operaram mudanças ao nível da hegemonia do discurso dominante.
O movimento sindical e os movimentos sociais de combate à precariedade e
anti-austeridade têm-se deparado tanto com dificuldades como janelas de
oportunidade em resultado do período de grande instabilidade, tanto política
como económica, que se vive em Portugal.
Contrariamente ao que se poderia pensar, o aumento de exploração
que acompanha a precarização das relações laborais não é correlativo do
desenvolvimento da consciência de classe esperada ou desejada. Antes pode
ser um obstáculo. Como refere Alves, “as novas clivagens salariais implodem o
núcleo orgânico do salariato organizado de base fordista-keynesiano, agentes
do movimento sindical e político da classe do proletariado” (2007, p. 88-89). No
plano político-ideológico, o surgimento do salariato precário significa a perda
relativa do referencial orgânico de classe, principalmente quando falamos de
um contingente de trabalhadores precários com elevadas qualificações
escolares e profissionais, confinado a ocupações mal remuneradas e regra
geral no setor dos serviços, esbatendo-se a visão dos interesses históricos de
classe. Também Antunes (2000) refere as implicações da crise que se abateu
sobre o movimento operário e sindical, considerando que esta afetou tanto a
forma de ser (materialidade) da classe trabalhadora, quanto as esferas
subjetiva, política e ideológica inerentes às ações e práticas concretas.
A integração e participação dos trabalhadores precarizados no
movimento sindical é um problema de fundo para o qual contribuem vários
fatores que relevam tanto das dinâmicas de individuação e de precarização dos
vínculos laborais como da própria estrutura das organizações sindicais. A crise
do movimento sindical a que nos referimos anteriormente tem uma importância
cabal neste ponto, uma vez que, dado o ritmo das mudanças em curso, as
estruturas sindicais não estarão plenamente sintonizadas com as novas
realidades laborais, principalmente no que diz respeito às modalidades
precárias de contrato de trabalho, domínio em que persistem realidades
ocultadas por subterfúgios legais.
120
Os trabalhadores precários criticam e denunciam o que consideram ser
o alheamento e desadequação das estruturas sindicais face às realidades
emergentes. Esta insatisfação produz o afastamento destes trabalhadores
relativamente às estruturas e discurso sindicais, e que tem expressão nos
índices de sindicalização. O estudo de Rosa e colaboradores (2003) citado
anteriormente revela que, no início dos anos 2000, já eram bem patentes as
tendências que se acentuaram ao longo da última década e que revelam as
dificuldades sentidas pelos trabalhadores precários. O estudo indica que a
sindicalização era prática comum entre os trabalhadores ditos estáveis, sendo
que a maioria (60%) podia ser enquadrada nesta situação. O valor referente ao
mesmo indicador sofria um decréscimo drástico no caso dos trabalhadores que
se encontravam em situação de precariedade, não chegando a atingir os 20%.
Tendo em conta o contexto atual, é expectável que esta situação se tenha
agravado.
Como principais razões para a não sindicalização dos trabalhadores
com vínculos contratuais precários podem ser mencionados a falta de cultura
sindical associada à falta de informação, o receio de represálias por parte dos
empregadores, bem como a descrença acerca do papel exercido pelos
sindicatos. Frases como “os sindicatos não fazem nada” acrescidas de “que
adianta agora ser sindicalizado se os patrões têm a faca e o queijo na mão”
são muito frequentes e refletem o afastamento, nomeadamente dos mais
jovens, relativamente à cultura sindical. Como é referido por Estanque:
(…) a acção sindical tem sido incapaz de pôr no terreno iniciativas
que mobilizem os setores mais precários, mais carenciados e mais jovens.
Estes, deixados ao abandono e absolutamente dependentes de hierarquias
“sindicalofóbicas” e das novas formas de hiperexploração – que reinam, por
exemplo, nos call centres e em muitos outros contextos laborais onde o
contrato individual precário se tornou a regra -, simplesmente abdicam de
procurar a filiação sindical e não acreditam no sindicalismo.(ESTANQUE, 2006,
p.18).
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121
A interação entre os fatores enunciados produziu algumas mudanças
no plano da ação coletiva referente às questões laborais, pelo que o
movimento sindical não detém mais a exclusividade nesse domínio. Sob a
influência das tendências materializadas nos novos movimentos sociais,
Portugal tem vindo a ser, nos últimos anos, palco de emergência de
movimentos ou coletivos dinamizados por trabalhadores precários (IDEM,
2011), que desempenham um papel importante ao nível da inscrição da
precariedade laboral nos domínios social e político, bem como na
desmistificação da operação ideológica por detrás da imposição da sociedade
da austeridade (FERREIRA, 2012)e dos argumentos da inevitabilidade das
transformações em curso.
O movimento de combate à precariedade (animado por diversas
organizações e coletivos como os Precários Inflexíveis, o Ferve ou a plataforma
MayDay) reclama, de uma forma geral, o reconhecimento da centralidade do
problema da precariedade na sociedade contemporânea e procuram
impulsionar a adoção de medidas concretas no âmbito do seu combate. Ao dar
visibilidade ao fenómeno da precariedade laboral suscitou um debate e reflexão
amplos acerca do carácter central do trabalho nas experiências individuais e
coletivas, e desencobriram a dupla dimensão que este comporta - a
precariedade não se reporta apenas à questão laboral, é também precariedade
da vida -, reforçando ainda mais a ideia de que estamos perante um fenómeno
complexo e extremamente heterogéneo. A luta contra a precariedade não se
restringe à luta pelo trabalho digno, é também uma luta pelo direito à vida, ou
melhor dizendo, pelo direito a uma vida com qualidade e dignidade.
Ao movimento de combate à precariedade somou-se, no primeiro
trimestre de 2011, mais concretamente a 12 de Março52, um novo protagonista:
o movimento anti-austeridade. Esta primeira “aparição, ainda que incipiente,
logrou o alegado “despertar” da sociedade civil ou, pelo menos, de uma parte
desta. Esquecendo a preocupação com a identificação de mudanças
institucionais diretamente promovidas pelo protesto, este último preparou o
52 O protesto ficou conhecido como “Geração À Rasca” e incidiu, em particular, sobre o esgotamento do
regime democrático, a crise económica, o desemprego e a ausência de perspetivas de futuro.
122
terreno para um ciclo de mobilização intenso e protagonizado pelos
movimentos anti-austeridade e sindical. Estes conseguiram colocar nas ruas de
várias cidades do país centenas de milhar de pessoas que exigiam a demissão
do governo e o fim do programa de assistência financeira a que o país se
encontra sujeito. O movimento anti-austeridade, com destaque para o seu
grande protagonista, o “Que Se Lixe a Troika”53 (QSLT), surge como reação à
imposição da austeridade cega pelo governo de coligação PSD/CDS-PP54.
O ano de 2012 e o primeiro semestre de 2013 foram o período em que
a contestação subiu de tom e a oposição à imposição de uma sociedade da
austeridade ganhou força. Amplos setores da sociedade civil, em conjunto com
o movimento sindical, mobilizaram-se e a contestação não esmoreceu desde
então. Sucederam-se, desde Março de 2011, 4 greves gerais (em 24 de
Novembro de 2011, 14 de Novembro de 2012, 22 de Março e 27 de Junho de
2013), inúmeras greves setoriais, ações de luta, entre outras. No entanto,
apesar do crescendo de mobilização, a política de austeridade continuou a sua
escalada até níveis insustentáveis.
Tendo em conta a acelerada deterioração das relações de trabalho, o
cenário de precarização generalizada e a amplificação da crise no território
europeu, o campo empírico suscita várias questões no que concerne os
contornos da ação levada a cabo pelos dois atores referidos. Em particular,
questiona-se a possibilidade destes enveredarem por uma estratégia de
“unidade na ação” ou de articulação, voltada para o combate às mudanças que
estão a ser impostas no quadro das sociedades da austeridade e que
comportam o agravamento da precariedade laboral.
As características organizacionais diferenciadas que caracterizam os
movimentos sociais e os sindicatos colocam questões que têm impacto sobre a
natureza da relação estabelecida. A cooperação com estruturas verticais e
hierárquicas como os sindicatos pode implicar a mudança no sentido de um
maior grau de formalização por parte dos movimentos sociais em questão. As
53 Nome dado à tríade FMI‐BCE‐CE – respetivamente, Fundo Monetário Internacional, Banco Central
Europeu e Comissão Europeia ‐, responsável pelo programa de assistência financeira a Portugal.
54 Respetivamente, Partido Social Democrata e Partido do Centro Democrático Social.
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123
lideranças não definidas ou intercambiáveis tanto do movimento de combate à
precariedade como do anti-austeridade têm despertado atitudes de
desconfiança por parte do movimento sindical. Como a definição dos seus
porta-vozes obedece a uma lógica rotativa, não é raro o desenvolvimento, por
lideranças sindicais, de atitudes desconfiança em relação às organizações que
integram ambos os movimentos. A tomada de decisão em estruturas informais
não segue procedimentos rigorosos definidos estatutariamente, variando,
portanto, de acordo com os envolvidos, tornando o processo e os resultados
mais imprevisíveis. Além disso, códigos de linguagem e discurso nas
organizações informais são mais instáveis, colocando barreiras de
comunicação.
A disseminação do movimento anti-austeridade e amplo apoio social
que tem recebido chamaram a atenção do movimento sindical. Sindicatos e
centrais sindicais, em particular a CGTP 55 , foram surpreendidos pela
capacidade de mobilização demonstrada. Apesar das grandes diferenças em
relação à cultura organizacional, modos de ação e estratégias e, em termos
ideológicos, o movimento operário teve de reconhecer o impacto alcançado e
acabou por expressar seu apoio ao movimento anti-austeridade. Relativamente
à primeira mobilização deste ciclo, a do dia 12 de março, que classificámos
como “insipiente”, a central sindical nunca formalizou o seu apoio. A
"espontaneidade" atribuída à mobilização contrastava com a forte organização
do movimento sindical e, nesse sentido, o sindicalismo optou por distanciar-se
do mesmo. Além disso, a ideia que a mobilização de 12 de março havia sido
organizada por setores da classe média implicou a sua identificação com
expressões de radicalismo de classe média, colidindo com os princípios
ideológicos do movimento operário. Em causa estavam as dicotomias
revolução versus reformismo, e ação instrumental versus ação expressiva.
Mais tarde, já em 2012 e 2013, com o crescimento da contestação à
austeridade (que incluiu duas grandes manifestações, a 15 de Setembro de
2012 e a 2 de Março de 2013), o posicionamento do movimento sindical, mais
concretamente da CGTP, mudou radicalmente, no sentido da formalização do
apoio às mobilizações da sociedade civil. 55 Confederação Geral de Trabalhadores Portugueses.
124
O agravamento da crise foi determinante para esta mudança. A CGTP
reconheceu o potencial destas mobilizações relativamente à formação de uma
frente popular que visasse rejeitar a austeridade, ou melhor, de um bloco
contra-hegemónico capaz de desconstruir o consenso em torno da
inevitabilidade da austeridade. Tendo em conta estes elementos, as
possibilidades de cooperação entre estes atores multiplicam-se muito embora
persistam, de ambas as partes, reservas que relevam dos âmbitos
organizacional e estratégico, bem como ideológico.
6. Conclusão
As mudanças resultantes da reestruturação produtiva e da aplicação
das novas tendências de organização do trabalho transformaram de forma
inequívoca a configuração das relações laborais e do mundo do trabalho no
seu todo. Tiveram um impacto marcadamente negativo no movimento sindical,
que tem vindo a demonstrar dificuldades crescentes em lidar e atuar no
contexto presente, situação que é agravada pela crise que se vive um pouco
por toda a parte, com destaque para a zona Euro, que a vive com grande
intensidade. Em particular, a flexibilização e precarização do trabalho e do
emprego, as novas técnicas de gestão, os índices elevados de desemprego
estrutural e a mobilidade da força de trabalho, entre outros fatores, subtraem
poder negocial aos sindicatos, debilitando-os e comprometendo a essência
combativa que os caracterizava, e, de uma forma geral, contribuem para o
esmorecimento da vontade dos trabalhadores em se organizarem. A atual
orientação estratégica do movimento sindical tem tradução na submissão das
suas estruturas à posição de instrumentos da ação reguladora do Estado.
Não restam dúvidas que nova conjuntura potencia a fragmentação da
classe trabalhadora e tem efeitos extremamente negativos sobre a
solidariedade sindical, uma vez que promove ativamente o individualismo e
fomenta a competitividade entre trabalhadores. A nova morfologia do trabalho
significa um novo desenho das formas de representação das forças sociais do
trabalho, como refere Ricardo Antunes. E, no meio da tempestade que assola a
organização coletiva dos trabalhadores, a situação que atinge os trabalhadores
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125
precarizados merece destaque. São visíveis as dificuldades das estruturas
sindicais no que toca a representação deste setor da força de trabalho. Daí ser
necessário que esta questão assuma caráter prioritário, refletindo-se numa
mudança do discurso sindical e das formas de ação, adequando-os às novas
realidades.
Todas as questões referentes às transformações em curso e à crise do
sindicalismo são amplificadas quando se fala de trabalhadores precários. Para
além da descrença acerca da efetividade e pertinência da ação sindical, estes
trabalhadores encontram-se sujeitos a dificuldades acrescidas no que diz
respeito à filiação sindical. Aqui entram em jogo dois tipos de variáveis: por um
lado, a natureza do vínculo contratual (precário) que os abrange e as trajetórias
profissionais incertas e descontínuas; e, por outro, o receio das represálias
dirigidas pelas entidades empregadoras normalmente hostis ao exercício da
atividade sindical. É facto que, no contexto atual, ambas as variáveis se
exacerbam no sentido negativo: cada vez mais os vínculos são precários e as
trajetórias incertas, e acentuam-se os obstáculos à atividade sindical bem como
as atitudes negativas dos empregadores face às mesmas. Por isso, e também
devido à descrença no papel dos sindicatos e acerca da sua adequação às
novas realidades laborais, são cada vez mais aqueles que se aproximam de
outras formas de organização e ação coletiva.
As novas formas de organização e ação coletiva afastam-se da
tradição sindicalista e do movimento operário. Buscam a autonomia face à
esfera institucional e procuram fugir aos perigos da burocracia. Entre elas são
comuns os sentimentos de desconfiança e de descrença no que concerne as
estratégias e ação sindicais. Sublinham o desajustamento e algum alheamento
das mesmas face às especificidades do trabalho e do emprego precários. O
movimento sindical, muito embora nos últimos tempos venha exibindo uma
maior motivação para a abertura e para a incorporação de novas questões e
lutas, continua a centrar-se nos seus objetivos, linguagem e estratégias muito
próprias, como a manutenção das convenções coletivas de trabalho, dos
contratos a termo (certo ou incerto), a luta pelos aumentos salariais, entre
muitas outras. Contudo, é inegável que no centro deste discurso esteve sempre
a luta pelo direito ao trabalho e pelo trabalho digno/decente e a recusa do
126
ideário austeritário. A forma como estas questões são colocadas pelos dois
atores difere. Apesar da linguagem utilizada por ambos tender a aproximar-se
neste momento de aguda crise económica e social, em que a contestação ao
governo e à política de austeridade cresce de dia para dia, prevalecem aspetos
que produzem uma diferenciação identitária mais ou menos forte e que
contribuem para a manutenção de um certo distanciamento entre estes
movimentos e o movimento sindical, minando a identificação dos primeiros com
os segundos. Em suma, o contexto atual, representativo de inúmeras
mutações, está a colocar à prova o movimento sindical e o conjunto da
sociedade civil.
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