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Ago. 2015 KLAFKE, G. F. Os acórdãos do STF como documentos de pesquisa e suas características distintivas. Trabalho em progresso. OS ACÓRDÃOS DO STF COMO DOCUMENTOS DE PESQUISA E SUAS CARACTERÍSTICAS DISTINTIVAS Resumo A quantidade de trabalhos jurídicos que lidam com a jurisprudência de tribunais brasileiros aumentou nos últimos anos. No entanto, esse trabalho geralmente é feito de forma intuitiva pelos acadêmicos do Direito. Aos poucos, porém, observam-se estudos nacionais que enfocam o método de análise jurisprudencial e como proceder em pesquisas desse tipo. O presente artigo é resultado dessa preocupação metodológica. Restringindo-se ao contexto do Supremo Tribunal Federal (STF), seu objetivo é mostrar como as características distintivas dos acórdãos daquela Corte devem ser levadas em consideração por quem deseja utilizá-los em suas dissertações, teses ou artigos científicos. Para isso, apresenta o processo de elaboração dos acórdãos no STF e faz uma análise das principais características que o tornam um documento distinto de outros documentos, principalmente decisões de tribunais superiores de outros países. Ao final, aponta algumas implicações metodológicas que essas características trazem para as pesquisas jurídicas, especialmente aquelas que procuram avaliar a opinião da Corte sobre determinado tema ou os argumentos utilizados pelos Ministros para sustentar sua posição. Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal. Acórdão. Análise jurisprudencial.

Os Acórdãos do STF como documentos de pesquisa e suas características distintivas

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Ago. 2015 KLAFKE, G. F. Os acórdãos do STF como documentos de pesquisa e suas características

distintivas. Trabalho em progresso.

OS ACÓRDÃOS DO STF COMO DOCUMENTOS DE PESQUISA E SUAS

CARACTERÍSTICAS DISTINTIVAS

Resumo

A quantidade de trabalhos jurídicos que lidam com a jurisprudência de tribunais brasileiros

aumentou nos últimos anos. No entanto, esse trabalho geralmente é feito de forma intuitiva pelos

acadêmicos do Direito. Aos poucos, porém, observam-se estudos nacionais que enfocam o método

de análise jurisprudencial e como proceder em pesquisas desse tipo. O presente artigo é resultado

dessa preocupação metodológica. Restringindo-se ao contexto do Supremo Tribunal Federal (STF),

seu objetivo é mostrar como as características distintivas dos acórdãos daquela Corte devem ser

levadas em consideração por quem deseja utilizá-los em suas dissertações, teses ou artigos científicos.

Para isso, apresenta o processo de elaboração dos acórdãos no STF e faz uma análise das principais

características que o tornam um documento distinto de outros documentos, principalmente decisões

de tribunais superiores de outros países. Ao final, aponta algumas implicações metodológicas que

essas características trazem para as pesquisas jurídicas, especialmente aquelas que procuram avaliar

a opinião da Corte sobre determinado tema ou os argumentos utilizados pelos Ministros para sustentar

sua posição.

Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal. Acórdão. Análise jurisprudencial.

Ago. 2015 KLAFKE, G. F. Os acórdãos do STF como documentos de pesquisa e suas características

distintivas. Trabalho em progresso.

BRAZILIAN SUPREME COURT’S DECISIONS AS RESEARCH DOCUMENTS AND

THEIR DISTINCTIVE CHARACTERISTICS

Abstract

The amount of legal researches dealing with Brazilian courts’ case law has increased in the

past years. These researches, however, are made in an intuitive way. Recent Brazilian studies focus

on judicial decision analysis and describing how to do it. This article is a result of that methodological

concern. Its purpose is to demonstrate how legal researchers should consider the distinctive

characteristics of Brazilian Supreme Court’s decisions. Therefore, it presents the Brazilian Supreme

Court’s decision-making process and analyzes characteristics of its decisions which make this

document so distinct from other courts’ decisions, especially from European and American

constitutional courts. In its final part, this article points out to some methodological implications these

characteristics bring to legal researches, particularly those which seek to evaluate Court’s decisions

about a specific subject of the Brazilian Supreme Court legal reasoning.

Palavras-chave: Brazilian Supreme Court. Decision. Case law. Judicial Decision Analysis.

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distintivas. Trabalho em progresso.

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OS ACÓRDÃOS DO STF COMO DOCUMENTOS DE PESQUISA E SUAS

CARACTERÍSTICAS DISTINTIVAS1

1. Introdução

2. A pesquisa com acórdãos do STF como análise documental

3. O processo de elaboração dos acórdãos do STF e sua categorização

4. Características distintivas dos acórdãos do STF e suas implicações para a pesquisa

5. Considerações Finais

6. Bibliografia

1 Introdução

Em 2004, NOBRE (2004) diagnosticou problemas que afetavam as pesquisas em direito no

país: de um lado, o isolamento do direito em relação às demais áreas do conhecimento, caracterizado

pela ausência de aproveitamento dessas outras áreas nas produções jurídicas (idem, p. 6); de outro, a

confusão entre prática profissional, teoria jurídica, pesquisa e ensino, caracterizada pelo modelo de

parecer adotado pelos trabalhos acadêmicos, no qual se defende uma posição determinada a priori

sem análise de todo o material disponível nem formulação de explicações racionais para essas

posições (idem, p. 11).

Na última década, porém, a pesquisa em direito no Brasil começou a se diversificar em termos

metodológicos e a ganhar novos contornos. A ausência de interdisciplinaridade e o modelo de parecer

aos poucos cedem espaço para trabalhos interdisciplinares e cientificamente orientados. Segundo

levantamento preliminar feito por DUARTE (2013) na base do Google Scholar, observa-se um grande

aumento no número de artigos científicos da área jurídica que se referem à pesquisa empírica,

especialmente a partir de 2009. Essa mudança não parece ter decorrido apenas de um interesse maior

1 Este artigo é um aprimoramento de paper anterior sobre o mesmo tema, não publicado. Ele resulta das reflexões

posteriores à discussão em dois locais de discussão: o grupo Pós-debate, de discussão sobre textos do programa de pós-

graduação da Faculdade de Direito da USP, e a Escola de Formação, vinculada à Sociedade Brasileira de Direito Público.

Gostaria de agradecer a todos os que contribuíram para as novas ideias nesses dois espaços.

Ago. 2015 KLAFKE, G. F. Os acórdãos do STF como documentos de pesquisa e suas características

distintivas. Trabalho em progresso.

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de pesquisadores de outras áreas pelo fenômeno jurídico2, mas também do próprio interesse pelos

pesquisadores em direito pelos métodos de outras áreas do conhecimento, especialmente das Ciências

Sociais.3

Num mundo acadêmico acostumado com legislação, obras doutrinárias e coletânea de

julgados, a análise de documentos oficiais tornou-se o método mais aceito e difundido. Os avanços

tecnológicos, especialmente a disponibilização de decisões judiciais digitalizadas e consolidações

legislativas atualizadas diariamente, garantiram acesso fácil, rápido e barato aos documentos para um

grande número de pesquisadores, chegando-se até mesmo à coleta automatizada de informações por

meio de programas específicos.4 A análise de jurisprudência, em específico, tornou-se um dos

métodos de maior destaque nas pesquisas jurídicas.

O presente artigo é resultado da preocupação com um manejo rigoroso e metodologicamente

orientado dos julgados como fontes de pesquisa. Nele, sustento a necessidade de uma análise prévia

desses documentos que leve em consideração seu processo de elaboração, seus criadores, seus

destinatários e sua estrutura interna, para que os resultados da análise de conteúdo alcancem maior

qualidade. Como, em geral, cada órgão jurisdicional possui sua própria maneira de elaborar esses

documentos, restrinjo minha análise aos acórdãos proferidos pelo Plenário do Supremo Tribunal

Federal (STF), em especial no exercício do controle abstrato de constitucionalidade por meio de

ADIs, ADCs e ADPFs. Procuro ilustrar como as características distintivas da estrutura e da criação

desses documentos podem impactar as pesquisas jurídicas que tomam como base a jurisprudência

dessa Corte. Para isso, trago alguns exemplos de julgados que podem exemplificar essa relação, sem

2 Exemplos desse interesse podem ser vistos em várias áreas das Ciências Humanas e até mesmo de outros ramos. Na

Ciência Política, tomem-se por exemplos os trabalhos de Andrei Koerner, Maria Tereza Sadek e Rogério Arantes,

enfocando especialmente o Poder Judiciário. Na História, Emília Viotti da Costa publicou obra sobre o papel do Supremo

Tribunal Federal para a construção da República brasileira. Na Sociologia, vários autores enfocaram e ainda enfocam o

direito para compreender melhor as relações sociais em nosso país, como fizeram Sérgio Adorno e Luiz Werneck Vianna.

A lista poderia continuar indefinidamente nessas e em outras áreas, como Antropologia, Economia, Administração, dentre

outras. 3 Duas iniciativas que evidenciam esse interesse são a constituição da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), que

anuncia ter por objetivo “investigar e incentivar a aplicação da estatística e da probabilidade no estudo do direito e de

suas instituições” (http://abjur.org.br/), e da Rede de Estudos Empíricos em Direito (REED), que tem por objetivo

“articular pesquisadores no Brasil e no exterior de forma horizontal e acêntrica; divulgar trabalhos e informações sobre

pesquisas empíricas no campo jurídico; bem como promover a difusão e capacitação em métodos e técnicas de pesquisa

empírica em direito” (http://reedpesquisa.org/institucional/quem-somos-nos/). 4 O projeto Supremo em Números, da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas (FGV DIREITO

RIO) é um exemplo dessa experiência com a coleta automatizada de informações.

Ago. 2015 KLAFKE, G. F. Os acórdãos do STF como documentos de pesquisa e suas características

distintivas. Trabalho em progresso.

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pretensão de fazer um levantamento quantitativo dessa realidade.5 Considero que a simples indicação

de um acórdão com determinadas características ou determinados problemas é capaz de lançar

dúvidas sobre todos os demais. Não pretendo, portanto, afirmar que a maioria ou todos os julgados

do STF possuem essas características ou esses problemas, mas sim alertar os pesquisadores e os

leitores dos documentos da possível existência deles.

Para atingir o objetivo, no segundo tópico deste artigo detalho mais a noção de análise

jurisprudencial como análise documental e indico possíveis tipos de pesquisa que podem adotá-la.

No terceiro tópico, apresento o processo de elaboração dos acórdãos do STF e ressalto as suas

diferenças para os modelos presentes em outros países, a fim de salientar a necessidade de adequação

de teorias estrangeiras a essas peculiaridades. No quarto tópico, apresento três características

distintivas dos acórdãos do STF – o modelo agregativo de votos, a composição por elementos criados

em momentos diferentes e a natureza dúplice do texto –, e procuro mostrar as possíveis implicações

que essas características têm para a análise jurisprudencial elaborada com foco na Corte. Ao final,

concluo com a necessidade de que essa qualificação seja aprimorada e alargada para possibilitar uma

base metodológica mais sólida para a análise da jurisprudência do Tribunal.

2 A pesquisa com acórdãos do STF como análise documental

Adotando a distinção de NOBRE entre o modelo de parecer e o modelo científico, é possível

afirmar que a análise jurisprudencial também pode ser vista à luz desses dois modelos. Na primeira

situação, os julgados dos tribunais são utilizados para corroborar uma posição prévia. O acadêmico

não procura todas as decisões disponíveis sobre o assunto examinado, mas apenas aquelas que irão

favorecê-lo. Mesmo que encontre decisões divergentes, tenta desqualificá-las como manifestações

equivocadas dos julgadores, realçando o acerto daqueles que decidiram de acordo com sua opinião.

Além disso, geralmente não procura aprofundar os argumentos utilizados, limitando-se a retratar, no

caso das decisões colegiadas, apenas a ementa ou o voto condutor do julgado. Trata-se de um modelo

5 Encontrei os acórdãos mencionados no artigo em outros trabalhos de análise jurisprudencial que tiveram essa

preocupação com delimitação do universo material e da amostra de pesquisa. Cf. Klafke, 2010; Klafke, 2011; Klafke &

Pretzel, 2014. Além desses, houve iniciação científica realizada em 2010 sob o título Novas técnicas de decisão no

controle abstrato de constitucionalidade: tipologia e compatibilidade com os princípios do ordenamento brasileiro, cujo

resumo encontra-se disponível em: http://www.bv.fapesp.br/pt/bolsas/42153/novas-tecnicas-de-decisao-no-controle-

abstrato-de-constitucionalidade-tipologia-e-compatibilidade-co/ (acesso em 10 out. 2014).

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de utilização da jurisprudência que, se pode ser útil para fins de convencimento nas peças

advocatícias, não contribui seriamente para o avanço do estudo do direito.

Ao contrário do modelo de parecer, a pesquisa científica em direito exige do pesquisador uma

série de cuidados na utilização da jurisprudência. Em primeiro lugar, há a necessidade de avaliação

de todo o material disponível, seja ele favorável ou desfavorável à hipótese inicial. Isso não significa

que todos os julgados possuirão o mesmo valor para a pesquisa. Em sua proposta de método para

análise da jurisprudência do Tribunal Constitucional colombiano, por exemplo, LÓPEZ MEDINA

(2012, p. 140) aponta três passos necessários para essa tarefa: a) recortar o padrão fático concreto

relevante; b) identificar as sentenças mais relevantes dentro da linha jurisprudencial estudada; c)

construir teorias estruturais que permitam relacionar essas várias sentenças. A seleção das sentenças

mais relevantes é fundamental para a melhor estruturação da linha jurisprudencial.

Em segundo lugar, destaca-se a necessidade de verificação do próprio banco de dados do qual

se extraem as decisões. Segundo VEÇOSO et ali, um pesquisador que procure compreender o

tratamento de determinada matéria em algum tribunal deve estar consciente da amostra de casos que

obteve no seu banco de dado e saber, caso não esteja completa, os critérios que nortearam sua seleção

(2014, p. 108). Mesmo uma pesquisa que tome por base informações objetivas (tempo, resultado,

etc.) pode ser afetada, uma vez que “a completude do banco de dados é de especial importância para

pesquisas quantitativas, em que a definição de uma amostra representativa, confiável e não enviesada

é essencial” (idem, p. 111). No artigo indicado, os autores verificaram a prática de disponibilização

de acórdãos na busca do site do Supremo Tribunal Federal, apontando a existência de acórdãos

selecionados (principais) e acórdãos sucessivos, que normalmente possuem conteúdo idêntico ao

principal (idem, p. 118).

Finalmente, a própria caracterização dos acórdãos como documentos, isto é, um registro

escrito que contém uma informação (Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 1998, p. 169), conduz o

pesquisador a percorrer determinadas etapas para interpretar e extrair as informações contidas naquele

registro. De acordo com CELLARD, cabe a ele evitar problemas por meio de “um certo número de

precauções prévias que lhe facilitação a tarefa e serão, parcialmente, garantias da validade e da solidez

de suas explicações” (2012, p. 296).

Em primeiro lugar, os acórdãos são documentos que expressam uma justificação para a

decisão. Dessa forma, eles não conterão necessariamente todos os motivos que levaram o julgador a

decidir de determinada maneira. O que se mantém no foro íntimo e não é expresso no voto não chega

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ao pesquisador somente por meio da análise documental. Trata-se de uma limitação importante para

a análise jurisprudencial, porque oferece um obstáculo para inferências a partir do que está explicitado

no voto. Para exemplificar, em pesquisa anterior procurei verificar como os ministros entendiam os

limites à técnica da interpretação conforme a Constituição (Klafke, 2011). Os resultados mostraram

que os limites não eram mencionados na maioria dos votos, aparecendo em 39 de 140 acórdãos (idem,

p. 28). Disso não seria possível concluir, porém, que os ministros não os considerassem no momento

de optar ou não pelo uso da técnica.

Em segundo lugar, não basta que o pesquisador leia simplesmente o documento, sendo-lhe

necessária uma preparação prévia dessa fonte de informações (Alves-Mazzotti & Gewandsznajder,

1998, p. 169; Gil, 2002, p. 89). CELLARD divide essa análise preliminar em cinco dimensões: análise

(i) do contexto; (ii) do(a/s) autor(a/es) do texto; (iii) da autenticidade e da confiabilidade do texto;

(iv) da natureza do texto; (v) dos conceitos-chave e da lógica interna do texto (2012, pp. 299-303).

A primeira dimensão consiste no exame do contexto social e global em que se inserem o autor

e o público-alvo do documento, situando o discurso no espaço e no tempo e impedindo leituras

distorcidas (idem, 2012, pp. 299-300). A segunda dimensão envolve o conhecimento “da identidade

da pessoa que se expressa, de seus interesses e dos motivos que a levaram a escrever” (idem, p. 300).

Considero que essas duas dimensões envolvem a qualificação de fatores externos aos documentos e,

por isso, estão menos sujeitas às suas peculiaridades. Por isso, darei menos atenção a elas no presente

artigo.

Ao contrário, as outras três dimensões possuem relação direta com o processo de elaboração

dos documentos e suas características distintivas. A dimensão da autenticidade e da confiabilidade do

texto envolve a qualidade da informação, a procedência do documento, a relação entre o autor e o

conteúdo e o grau de confiança que o pesquisador pode ter no documento para os fins pretendidos

(idem, p. 301).6 A dimensão da natureza do texto, por sua vez, envolve a verificação da sua estrutura,

dos seus destinatários, da sua construção. Levando-se em conta que um texto é uma sequência de

palavras que formam uma unidade de sentido, e essa unidade de sentido é dada pela funcionalidade

do texto para seus usuários (Travaglia, 2007, p. 99), é fundamental identificar qual é a função e o

sentido dados para o documento, com vistas a tirar conclusões mais qualificadas sobre o seu conteúdo.

6 Em relação à autenticidade, os acórdãos do STF, como documentos públicos e oficiais, não oferecem maiores problemas.

Mesmo os repositórios de jurisprudência são regrados e determinados, garantindo-se que as informações deles sejam

autênticas (art. 99 do RISTF).

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Finalmente, a dimensão dos conceitos-chave e da lógica interna do texto aproxima-se da análise de

conteúdo propriamente dita. O pesquisador deve “prestar atenção aos conceitos-chave presentes em

um texto e avaliar sua importância e seu sentido, segundo o contexto preciso em que eles são

empregados”, bem como examinar o desenvolvimento do argumento, as partes principais da

argumentação, o plano do texto (Cellard, 2012, p. 303).

Uma análise jurisprudencial metodologicamente orientada segundo essas etapas pode ser útil

para desenvolver o conhecimento jurídico de diferentes maneiras. Especificamente no tocante ao

Supremo Tribunal Federal, tomo como exemplo as monografias de conclusão de curso elaboradas no

âmbito da Escola de Formação, da Sociedade Brasileira de Direito Público (sbdp). São dezenas de

trabalhos que têm o Supremo Tribunal Federal como foco e objeto de pesquisa.

Um levantamento dessas monografias permite vislumbrar diversos objetos para uma pesquisa

com análise jurisprudencial (análise documental): a) um tema, pela apresentação da posição do

tribunal em relação a determinado tema; b) uma totalidade de decisões, pela verificação de todas as

decisões do tribunal sobre determinado tema; c) uma comparação entre tribunais, pelo exame das

semelhanças e diferenças da jurisprudência do tribunal em relação a outros tribunais; d) um conjunto

de procedimentos, pela identificação dos instrumentos da jurisdição constitucional e dos

procedimentos utilizados pelo tribunal, bem como a maneira pela qual ele os formata; e) um conjunto

de atores, pela descrição da atuação dos atores envolvidos no processo, do perfil dos próprios

julgadores ou da dinâmica de interação deles no colegiado; f) um conjunto de instituições, pelo estudo

da interação entre Poderes; g) um contexto histórico, pela construção do cenário histórico em que se

situa determinada decisão ou conjunto de decisões; h) um conjunto de fundamentações, pelo

detalhamento dos argumentos, dos precedentes, dos estilos, dentre outros elementos empregados nos

votos; i) a repercussão social de uma decisão ou de um conjunto delas; j) a construção de um

determinado conceito ou instituto jurídico; h) um levantamento de dados objetivos por meio de

pesquisas quantitativas.7

7 Agradeço a Luiza de Andrade Corrêa por ceder gentilmente o levantamento das monografias a que faço referência.

Todas as monografias da Escola de Formação publicadas encontram-se disponíveis no site

http://sbdp.org.br/monografia_categorias.php, acesso em 14 ago. 2015.

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Nos tópicos seguintes, apresento características dos acórdãos do Supremo Tribunal Federal

que podem ter implicações para a análise documental e, consequentemente, para o exame de todos

esses objetos.

3 O processo de elaboração dos acórdãos do STF e sua categorização

Inicialmente, quando um órgão jurisdicional colegiado decide um processo, ele produz um

documento chamado “acórdão”, no qual estão expostos os resultados e as razões que os embasaram.

A função social desse documento, a princípio, é mostrar o consenso dos julgadores em torno desses

aspectos (Travaglia, 2007, p. 105). Partindo dessa caracterização, é possível afirmar que o acórdão é

o documento por meio do qual os julgadores que compõem o tribunal procuram expressar para o seu

público um consenso em torno de uma decisão e de uma fundamentação.

Ao decidir uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, um Mandado de Segurança ou um

Recurso Extraordinário, seja em Turma, seja em Plenário, o Supremo Tribunal Federal produz um

acórdão com os votos dos ministros que tomaram a decisão. Esse documento fica disponibilizado ao

público e contém o registro da fundamentação, que ficará para a posteridade. Os acórdãos do STF,

portanto, são documentos nos quais estão expostas teses jurídicas, interpretações de normas,

significações da realidade que expressam as opiniões dos membros que compõem o órgão em

determinado momento e que podem ser acessados mesmo depois de décadas.

Nas origens do Supremo Tribunal Federal, o acórdão era diferente dos registros que existem

hoje. Ele era formado por uma única opinião que expressava a maioria vencedora.8 Ela era feita na

forma de consideranda pelo ministro relator ou pelo vencedor e deveria ser assinada por todos os

demais. Os ministros que discordavam do resultado ou apenas da fundamentação poderiam registrar

sua posição individualmente, ao final (art. 48 do Regimento Interno de 1891). O redator também

poderia levar o acórdão para plenário na sessão seguinte, para aprovação da redação (art. 49 do

RISTF/1891).

8 Acórdãos com esse modelo podem ser encontrados no site do STF, na parte “Julgamentos Históricos”, disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico.

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No entanto, após o Decreto 19.656, de 3 de fevereiro de 1931, a forma de elaboração dos

acórdãos foi alterada.9 Conforme dispunha o art. 6º do Decreto:

Art. 6º. Os relatórios, discussões e votos, em cada julgamento, serão taquigrafados, e

redigidos convenientemente juntando-se aos autos respectivos cópia, que o relator reverá,

rubricando-a, e a ela se reportando no acordão que, a seguir, lançará, manuscrito ou

datilografado, assinando com o juiz que tiver presidido o julgamento.

Parágrafo Único. Os demais juizes só assinarão o acordão se o pedirem.

As sessões de julgamento passaram a contar com taquígrafos que registravam as

manifestações orais dos ministros. Essa alteração foi incorporada ao art. 68 do Regimento Interno de

1940:

Art. 68. O relatório, discussão e votos (sic), em cada julgamento, serão taquigrafados e

redigidos convenientemente, juntando-se aos autos respectivos as notas taquigráficas, que

serão rubricadas pelos respectivos ministros, reportando-se a elas o relator, no acórdão.

(Decreto n. 19.656, de 3 de fevereiro de 1931, art. 6º)

§ 1º. Juntas as notas taquigráficas, depois de revistas, serão os autos conclusos ao relator do

feito, ou do acórdão, para lavratura deste, no prazo de 48 horas.

§ 2º. Não estando em exercício o relator, o acórdão será lavrado pelo primeiro Ministro

vencedor.

As manifestações transcritas eram revisadas pelo respectivo ministro e encaminhadas ao

redator do acórdão, que ficava responsável apenas pela elaboração da ementa e do dispositivo

decisório. O redator poderia dispensar a juntada das notas taquigráficas, substituindo-as por um

resumo das alegações, dos fundamentos e da conclusão, enquanto os demais ministros poderiam fazer

declarações de voto em seguida à assinatura (art. 69 do RISTF/1940). Os ministros também podiam

anexar votos escritos ao acórdão (Mósca, 1986, pp. 112-113).

Ressalto que a diferença entre o procedimento atual, que mantém em linhas gerais as

alterações feitas na década de 30, e a forma como os acórdãos eram elaborados anteriormente tem

implicações importantes para todas as pesquisas que se proponham a fazer uma contextualização

histórica dos julgados do STF. Para exemplificar uma dessas implicações, os registros mostravam

apenas o resultado de uma deliberação anterior, não sendo possível encontrar neles os debates que

deram origem à decisão. Isso inviabiliza pesquisas que se proponham a analisar, a partir dos acórdãos,

a interação entre os ministros nas sessões de julgamento.

9 Os motivos para essa alteração ainda não foram estudados, nem a origem da proposta. Alguns fatores podem ser

cogitados, dentre eles o acúmulo de serviço no Tribunal, o que demandava soluções que agilizassem os procedimentos

internos de decisão (Mósca, 1986, p. 112).

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Atualmente, o Regimento Interno traz as regras para a elaboração de acórdãos nos arts. 93 a

98. Há práticas que não constam dos dispositivos do Regimento, mas são registradas pela Corte.10

Assim, após a realização da sessão de julgamento, a montagem do documento começa no gabinete

do redator, que poderá ou não ser o relator original do processo. Inicialmente, o documento será

formado (i) pelos votos escritos previamente à sessão (revisados ou não) e encaminhados para o

redator, bem como (ii) pela ementa (escrita pelo redator), (iii) pelo dispositivo decisório do acórdão

(determinado pelo Presidente do Tribunal), (iv) pelo relatório do histórico do caso e do processo

(escrito pelo relator do processo) e (v) pelo extrato da ata (escrito pelo Secretário da Sessão), que

contém os participantes do julgamento e a decisão proclamada em cada sessão (art. 96, caput, e art.

97).

Graças à inovação trazida na década de 30, o acórdão também pode ser composto por

transcrições de áudio dos votos orais, debates e outros tipos de manifestações ocorridas na sessão de

julgamento (arts. 93 e 96, caput, § 1º a §7º). Essa atribuição cabe à Secretaria das Sessões. Os

gabinetes dos ministros devem liberar relatório, votos escritos e transcrições revisadas no prazo de

20 dias contados da sessão de julgamento (art. 96, § 2º). Após esse prazo, a Secretaria pode

encaminhar a transcrição do áudio com a ressalva de que não houve revisão.

Após a revisão de todos os elementos do acórdão, ou do esgotamento do prazo de 60 dias a

contar da sessão de julgamento (art. 95, parágrafo único, RISTF), a Seção de Composição e Controle

de Acórdãos pode publicar o acórdão no Diário de Justiça Eletrônico. Os prazos para elaboração dos

acórdãos, porém, são constantemente inobservados em razão da demora na liberação, na transcrição

e na revisão dos votos e da grande quantidade de processos.11-12 Para remediar a situação, a Resolução

nº 536, de 15 de outubro de 2014, trouxe determinação para que os acórdãos fossem publicados

mesmo sem revisão dos votos:

10 Uma explicação da própria Corte sobre o procedimento desde o julgamento até a publicação do acórdão se encontra

disponível no link: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=229547, acesso em 9 ago. 2014. 11 O terceiro relatório do projeto Supremo em Números aponta que a média geral para publicação de acórdãos no STF é

de 167 dias. Nos processos de controle abstrato de constitucionalidade, as médias são: 368 dias para ADIs, 470 dias para

ADCs e 342 dias para ADPFs. O ministro que leva mais tempo para publicar acórdãos quando é o redator é o Min. Celso

de Mello, com média de 679 dias. Observa-se uma tendência de queda no tempo necessário para a publicação. Por fim,

quatro ADIs figuram entre os processos com maior demora na publicação do acórdão: ADI 776 (14,2 anos), ADI 775

(14,1 anos), ADI 839 (13,8 anos) e ADI 856 (13,7 anos) (Falcão, Hartmann, & Chaves, 2014, pp. 70-78). 12 Em março de 2014, havia 1.681 acórdãos à espera de publicação, o que levou o Min. Marco Aurélio a afirmar que “o

acórdão é o documento da decisão proferida, é o que estampa o pronunciamento do tribunal, composto dos votos

proferidos. É uma peça importantíssima. O atraso na sua publicação é um problema crônico da Corte” (D’Angelo, 2013).

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Art. 2º Nos casos em que os Gabinetes de Ministros não tenham liberado o relatório, os votos

escritos e a revisão de apartes de julgamento, no prazo regimental assinalado, a Secretaria

Judiciária procederá na forma do art. 1º, fazendo constar a transcrição do julgamento com a

ressalva de que os textos não foram revisados pelos respectivos Ministros.

Parágrafo único. Na hipótese prevista no caput deste artigo, a ementa do acórdão consistirá

no extrato da ata de julgamento.

Em síntese, portanto, os ministros participam da elaboração do acórdão de quatro possíveis

formas: a) qualquer ministro pode encaminhar seu voto escrito, revisado ou não; b) qualquer ministro

pode deixar de encaminhar um voto escrito e revisar a transcrição do áudio do julgamento em relação

às suas manifestações orais, ou enviar ambos para o acórdão final; c) qualquer ministro pode ter suas

manifestações transcritas e anexadas ao acórdão com a ressalva de não ter revisado o voto; d) o

ministro redator redige a ementa do julgado e o acórdão (parte dispositiva), reunindo também as

demais manifestações.

Essa forma de elaboração dos acórdãos aproxima as decisões do Supremo Tribunal Federal

das decisões da House of Lords inglesa. Trata-se do modelo seriatim, que, aplicado ao modo de

apresentação dos julgados para o público, consiste na formulação do documento por meio da

agregação dos votos individualmente atribuídos aos ministros que participaram do julgamento

(Atiyah, 1988, p. 140).13 Contudo, a existência de uma ementa que ilustra, ao menos em tese, a opinião

da maioria do tribunal, afasta o modelo adotado pelo STF do formato empregado pela House of Lords,

situando-o num meio termo entre o modelo inglês e o estadunidense (modelo da opinion of Court).

Nos EUA, os juízes julgam separadamente, mas a corrente vencedora fica responsável por assinalar

a “opinião da Corte”, que servirá para a fixação da regra de precedente a ser considerada pelo próprio

Tribunal e pelos tribunais inferiores nos casos futuros (Ginsburg, 1990, p. 134). Caso o julgador

concorde com o resultado, mas adote outros fundamentos para embasá-lo, poderá anexar um voto

“concorrente”. Já o julgador que discordar do resultado, poderá anexar um voto “dissidente”.

Finalmente, um terceiro modelo é adotado pelos tribunais constitucionais europeus, em especial os

da Itália, Áustria e Alemanha. Nesse caso, tem-se o chamado modelo per curiam, no qual não há

qualquer identificação individual do responsável pela elaboração da decisão colegiada vencedora,

mas a atribuição da decisão à corte como um todo, embora possa haver, como no caso alemão, a

13 Embora possa ser visto como um exemplo de transparência, uma vez que evidencia a posição de todos os que

concorreram para a produção da decisão, o modelo seriatim é bastante criticada em razão da dificuldade em se extrair

uma razão de decidir comum aos vários votos e pelo excesso de individualismo que pode gerar (Ruíz, 2000, p. 157;

Ginsburg, 1992, p. 1194-1196).

Ago. 2015 KLAFKE, G. F. Os acórdãos do STF como documentos de pesquisa e suas características

distintivas. Trabalho em progresso.

11

possibilidade de anexação de votos dissidentes individualmente identificados (Segado, 2009, p. 78-

79).14

A distinção de modelos é importante por algumas razões. Em primeiro lugar, porque

determinadas pesquisas podem ser facilitadas ou dificultadas de acordo com o modelo adotado. Veja-

se, por exemplo, a identificação de votos concorrentes ou dissidentes, que pode ser feita de maneira

muito mais fácil em decisões tomadas pela Suprema Corte americana ou pelo Tribunal Constitucional

alemão, uma vez que o próprio voto indica essa posição. O mesmo não ocorre decisões que seguem

um modelo seriatim. Em segundo lugar, porque elas influenciam necessariamente a percepção em

torno do caráter colegiado da posição do tribunal. Nesse sentido, críticas como as de PÜSCHEL, sobre

a impossibilidade de se extrair uma racionalidade comum de votos individuais (2014, pp. 10-12),

aplicam-se mais fortemente ao modelo seriatim, mas deixam intactas as decisões tomadas per curiam,

como ocorre na Alemanha. Finalmente, é importante frisar que tudo isso recomenda maior cautela do

pesquisador sempre que ele for se apropriar de ferramentas e argumentos construídos a partir de

acórdãos elaborados em outro contexto, a partir de outro modelo. Há implicações diretas para

pesquisas comparativas. Considerações sobre a observância de precedentes, a definição de razões de

decidir, a autoridade e a legitimidade da decisão devem levar em conta as diferenças entre os modelos.

4 Características distintivas dos acórdãos do STF e suas implicações para a pesquisa

O processo de elaboração dos acórdãos no STF permite a identificação de três características

com implicações importantes para a análise jurisprudencial: o modelo agregativo de votos, a

composição por elementos criados em momentos diferentes e a composição por tipos de texto

diferentes. A seguir, trato de cada um desses atributos e apresento suas implicações para o trabalho

de pesquisa jurídica.

14 Para uma boa esquematização da estrutura das decisões tomadas pelo Tribunal Constitucional alemão, veja-se Martins,

2005, pp. 97-107.

Ago. 2015 KLAFKE, G. F. Os acórdãos do STF como documentos de pesquisa e suas características

distintivas. Trabalho em progresso.

12

4.1 O modelo agregativo de votos

A primeira característica dos acórdãos do Supremo Tribunal Federal a ser destacada já foi

tratada anteriormente: é o modelo agregativo de votos (seriatim). Como visto, ao final do julgamento,

cada ministro deve encaminhar seu voto ou revisar a transcrição do áudio da sessão, encaminhando-

os para o redator do acórdão. Isso significa que o documento analisado não é uma peça única, escrita

por uma única pessoa, mas um conjunto de unidades menores (os votos), cada qual com seu próprio

estilo de argumentação, raciocínio jurídico e até mesmo padrão estético. Os julgadores que proferem

os votos são identificados individualmente e, por isso, seus fundamentos mantêm quase total

independência com os fundamentos dos demais.15

A característica de um agregado de votos individuais expõe os acórdãos do STF à crítica

anteriormente apontada de que é impossível aferir uma racionalidade coletiva pela mera soma de

racionalidades individuais – não seria possível obter uma fundamentação colegiada a partir da simples

soma de fundamentações individuais.

Outro ponto a ser considerado é a coesão e a coerência do texto. A existência de até onze

votos diferentes contribui para que ocorram três fatores que diminuem a coerência do texto: (i) maior

proporção de ocorrências periféricas, entendidas como ocorrências de itens do texto que não

pertencem a uma mesma cadeia coesiva (conjunto de itens que possuem relação de significado); (ii)

menor proporção de ocorrências centrais, entendidas como ocorrências de itens do texto que

pertencem a uma mesma cadeia coesiva; (iii) maior número de quebras, interrupções ou lacunas no

quadro de interações entre cadeias coesivas e não coesivas (Travaglia, 1999, p. 73). Em outras

palavras, há mais chances dos ministros trazerem tópicos ao texto que não se referem ao mesmo

objeto que outros ministros estão tratando, da mesma forma que é grande a chance de uma ruptura na

cadeia de argumentos entre um voto e outro. Constatei em estudo anterior, que os ministros

dificilmente retomam argumentos apresentados nos votos anteriores (Klafke, 2010, pp. 95-101).

É para tentar expor uma orientação atribuível ao tribunal que os acórdãos contam com uma

parte chamada “ementa”. A ementa é um resumo do julgamento que serve para transmitir de forma

rápida e sintética tanto a posição vencedora quanto os seus fundamentos e, eventualmente, as

15 Não considero que haja total independência entre os fundamentos, porque ainda há a possibilidade de que os votos,

especialmente aqueles proferidos oralmente e transcritos pela Secretaria das Sessões, façam referência a fundamentos dos

anteriores, seja para refutá-los, seja para confirmá-los. Essas relações foram analisadas por mim em Klafke, 2010.

Ago. 2015 KLAFKE, G. F. Os acórdãos do STF como documentos de pesquisa e suas características

distintivas. Trabalho em progresso.

13

divergências relevantes (Aguiar Júnior, 2008). Não existe um modelo padronizado de elaboração das

ementas, que fica a cargo do redator do acórdão. Por vezes, os ministros demonstram no próprio

julgamento uma preocupação com a elaboração desse resumo, como ocorreu no julgamento da

constitucionalidade da união estável homoafetiva, em manifestação do Min. Gilmar Mendes:

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Presidente, se vossa Excelência me permitir,

eu só gostaria de fazer um apelo ao eminente Relator para que contemplasse, na ementa,

como nós vínhamos até estabelecendo, a diversidade de fundamentos trazidos.16

O redator do acórdão, Min. Carlos Britto, consignou expressamente essa divergência no tópico

5 da ementa:

5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO.

Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso

convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da

união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo,

reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade

familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da

imediata auto-aplicabilidade da Constituição.

No entanto, da mesma forma que permite que os ministros anexem votos individuais ao

documento final, o modelo brasileiro também possibilita que não anexem qualquer manifestação ao

acórdão. Em vários deles, há a presença de “votos apenas registrados em ata”. Trata-se de hipótese

em que o ministro não anexa nenhum voto (escrito ou transcrito) ao acórdão final.17 Nele, consta do

resultado final do julgamento a posição de todos os ministros, mas o acórdão possui apenas os votos

de alguns deles – situação que pode ser verificada por meio do extrato de ata, geralmente inserido na

última página do acórdão e elaborado pela Secretaria de Sessões. Não se trata de hipótese rara: numa

amostra de mais de 200 acórdãos de controle abstrato de constitucionalidade, verificou-se que cerca

de um terço deles era composto tão somente pelo voto do relator, e outros 39% possuíam a maioria

da corrente vencedora composta por votos em ata (Klafke & Pretzel, 2014, p. 98).

A ausência dos votos pode resultar da própria dinâmica de julgamento18, mas também pode

resultar da publicação do acórdão sem os votos não liberados pelos gabinetes nem revisados pelos

16 STF, Plenário, ADPF 132/RJ, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011, p. 270. As páginas são apresentadas segundo a

numeração que consta na parte superior direta do acórdão. 17 Cf. Sundfeld & Souza, 2012, p. 86; Klafke & Pretzel, 2014, p. 96. 18 Quem acompanha os julgamentos do tribunal por meio das transmissões da TV Justiça pode observar que, em alguns

momentos, após o voto do ministro relator, o ministro presidente pergunta se alguém tem alguma objeção e, em caso

Ago. 2015 KLAFKE, G. F. Os acórdãos do STF como documentos de pesquisa e suas características

distintivas. Trabalho em progresso.

14

ministros. Um exemplo sensível, em que houve ausência de voto divergente, foi a ADPF 46, sobre a

constitucionalidade do monopólio do serviço postal. Consta do extrato de ata que o Min. Celso de

Mello votou pela parcial procedência da ação, integrando o bloco minoritário formado pelos Mins.

Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Contudo, apenas os votos dos dois últimos podem ser

verificados no documento final. Por se tratar de divergência, pode-se inferir que houve manifestação

do Ministro na sessão de julgamento, o que é confirmado pela leitura do próprio acórdão. Veja-se um

dos trechos:

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Senhores Ministros, vamos

definir.

Eu queria relembrar que ontem eu julgava parcialmente procedente a arguição e aí eu fixava

a interpretação de que a prestação exclusiva pela União da atividade postal limitava-se ao

conceito de carta, cartão postal e correspondência agrupada, nos termos do artigo 9º. [...]

Portanto, excluía do conceito de carta e nisso fui acompanhado pelo Ministro Ricardo

Lewandowski e Ministro Celso de Mello. Eu entendia que estava também acompanhando o

Ministro Carlos Britto, mas Sua Excelência agora esclareceu que o seu entendimento em

relação ao artigo 47 é outro. Por isso estou dizendo: temos cinco votos no sentido da

improcedência e a esses votos se soma o voto do Ministro Carlos Britto.19

O modelo agregativo de votos, assim, tem implicações para a pesquisa com acórdãos do STF,

em especial para a seleção do material, para a análise da confiabilidade e para a análise da lógica

interna do documento.

Em relação à seleção do material, há uma grande diferença entre pesquisar decisões de um

tribunal como a Suprema Corte americana, cujas decisões possuem indicação clara de qual é a opinião

da Corte, quais são os votos concorrentes e quais são os dissidentes, e da Suprema Corte brasileira.

No último caso, dois elementos são fundamentais para uma boa seleção do material a ser utilizado na

análise jurisprudencial: primeiro, a indexação do acórdão de acordo com palavras-chave que

garantem que ele será indicado como resultado de pesquisas que as utilizem; segundo, a adequada

construção da ementa do julgamento, que será o principal elemento para a filtragem dos casos

pertinentes ou não pertinentes à pesquisa.

negativo, proclama o resultado no mesmo sentido do voto proferido. Nesses casos, a ausência de votos no acórdão se

explica pela concordância com o voto do relator – embora fique em aberto se apenas com o resultado final ou com a

fundamentação - e pela ausência de registros de áudio. 19 STF, Plenário, ADPF 46/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 05/08/2009, pp. 182-183.

Ago. 2015 KLAFKE, G. F. Os acórdãos do STF como documentos de pesquisa e suas características

distintivas. Trabalho em progresso.

15

Nesse sentido, o pesquisador deve estar atento para verificar se a ementa reflete exatamente o

que foi decidido.20-21 Um exemplo emblemático é a ADI 2591, em cuja ementa constavam afirmações

que, posteriormente em Embargos de Declaração, os próprios ministros entenderam não ilustrar o

consenso do tribunal. O Min. Sepúlveda Pertence sintetizou a divergência:

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE) – Percebo que a doce

unanimidade vai do inciso III da ementa até a declaração expletiva de que o preceito

veiculado no artigo 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, deve ser interpretado em

coerência com a Constituição. A partir daí, realmente, vejo que há uma dispersão de

fundamentos entre os votos proferidos. É claro que isso, em ementa, de regra, não teria

sentido. Mas, num caso como este, a ementa será mais citada do que o acórdão e os votos

que o compuseram.22

Ao final, até mesmo aquele que redigiu a ementa original, o Min. Eros Grau, reconheceu o

equívoco e aceitou a correção.23 A Corte manteve intactos apenas dois dos 11 itens originais,

excluindo ou alterando todos aqueles em que não se expressava o consenso do tribunal.

Outro exemplo é a ADPF 130, que decidiu pela não recepção integral da Lei de Imprensa. Na

ementa, o Min. Carlos Britto apresentou a liberdade de imprensa como um direito absoluto que só

poderia ser restringido em aspectos laterais. Na Reclamação 9.428, movida pelo jornal Estado de S.

Paulo contra decisão judicial que proibiu a veiculação de matéria jornalística contra Fernando Sarney,

o tribunal entendeu que não havia violação da autoridade da decisão, porque o caso não estava

abrangido no precedente. O Min. Cezar Peluso ressalvou expressamente o conteúdo da ementa da

ADPF 130:

Daquele acórdão nada consta a respeito desse conflito [entre liberdade de imprensa e direitos

de personalidade].

20 Em pesquisa sobre Recursos Extraordinários, Ferreira, Lopes e Langenegger concluíram que “na maior parte dos

recursos extraordinários estudados nesta pesquisa foram encontradas ementas coerentes com as discussões nos acórdãos.

No entanto, os argumentos do voto do relator (ou relator para o acórdão) são, em geral, os que dão base para a redação da

ementa. Os argumentos dos demais ministros, por vezes, não costumam ser incorporados à ementa, ainda que em

concordância com os demais” (Ferreira, Lopes, & Langenegger, 2014, pp. 66-67). As autoras apontam sete casos nos

quais a ementa não correspondente às discussões: RE 486.413, RE 578.695, RE 511.961, RE 583.955, RE 562.980, RE

344.994 e RE 569.056. 21 O problema de uma ementa que não retrata fielmente o que foi decidido tem consequências não apenas para os

pesquisadores como também para a própria observância da decisão, especialmente quando o acórdão é extenso e de difícil

leitura. A ementa desempenha um papel importante para a pesquisa, para o uso dos precedentes e para a própria imagem

do tribunal (Aguiar Júnior, 2008, p. tópico 15). É comum a prática de argumentação por ementas por advogados e até

mesmo julgadores, e mesmo o recorte metodológico das pesquisas é antecedido muitas vezes por uma seleção baseada na

leitura das ementas. 22 STF, Plenário, ADI-ED 2591/DF, Rel. Min. Eros Grau, j. 14/12/2006, p. 107. 23 STF, Plenário, ADI-ED 2591/DF, Rel. Min. Eros Grau, j. 14/12/2006, p. 109

Ago. 2015 KLAFKE, G. F. Os acórdãos do STF como documentos de pesquisa e suas características

distintivas. Trabalho em progresso.

16

Salvas as ementas, que ao propósito refletem apenas a posição pessoal do eminente Min.

Relator, não a opinião majoritária da Corte, o conteúdo semântico geral do acórdão traduz,

na inteligência sistemática dos votos, o mero juízo comum de ser a lei de imprensa

incompatível com a nova ordem constitucional [...].24

A questão da seleção de material impacta principalmente o recorte metodológico das

pesquisas que envolvem análise jurisprudencial. Assim, tem o potencial de afetar tanto os trabalhos

que analisam o conteúdo das decisões – por exemplo, pesquisas temáticas, de fundamentação,

históricas, etc. -, como aqueles que analisam conjuntos de decisões – por exemplo, pesquisas

exaustivas.

No tocante à confiabilidade dos documentos, o modelo agregativo de votos tem implicações

em razão da ausência de informações no acórdão. Como cabe a cada ministro atuar individualmente

para a construção do registro final, é possível a ausência de elementos (votos ou transcrições) no

acórdão.

Inicialmente, há uma possibilidade regimental para que isso aconteça: de acordo com o art.

133, parágrafo único, do Regimento Interno, os apartes que um ministro faz durante a manifestação

do colega devem constar do acórdão, mas poderão ser cancelados pelo aparteante. Em razão disso,

há situações nas quais os debates são apenas parcialmente transcritos, o que prejudica a compreensão

de algumas partes do documento. Um exemplo é a ADC 29, na qual foi julgada a constitucionalidade

da Lei da Ficha Limpa. Vários apartes do Min. Celso de Mello foram cancelados no documento final.

Confira-se o trecho a seguir, em que ele inicia um debate, mas não se sabe o conteúdo de suas

manifestações:

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: (CANCELADO).

O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI: Pois não.

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: (CANCELADO).

O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX (RELATOR) - Ministro Celso, se me permite um

pequeno aparte, Vossa Excelência tem toda razão - como sempre brilhante na sua

fundamentação -, mas gostaria só de fazer uma ponderação a Vossa Excelência.

[...]

24 STF, Plenário, Rcl 9428/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 10/12/2009, p. 187. Prosseguindo, o Min. Cezar Peluso

transcreveu trechos dos votos de todos os ministros, demonstrando a contradição com o teor da ementa.

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17

O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX (RELATOR) - E a inelegibilidade também. Nós

estamos só trabalhando sob o ângulo penal, quando nós estamos no campo do Direito

Eleitoral, que é completamente diferente.

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: (CANCELADO).

O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX (RELATOR) - Nós temos óticas diversas.

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: (CANCELADO).25

Em segundo lugar, há uma situação peculiar dos acórdãos do STF. Por vezes, o ministro

profere um voto vogal ou participa dos debates na sessão de julgamento afirmando que anexará seu

voto escrito ao documento final. É o que se constata, por exemplo, na ADPF 130/DF:

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – [...] Mas eu estou votando

exatamente no sentido do que foi o voto tanto do Ministro-Relator quanto o do

Ministro Menezes Direito, aliás, também do Ministro Eros Grau, que já tinha

acompanhado o Relator, no sentido da não-recepção, e, portanto, alargando o que eu

tinha inicialmente votado.

E vou chamar a atenção apenas para três pontos; vou liberar o meu voto e, com isso,

dar todas as razões.26

O problema ocorre quando isso não acontece. Um exemplo é a ADC 12/DF, em relação aos

votos dos Mins. Cezar Peluso e Gilmar Mendes:

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – Senhor Presidente, também

acompanho o voto do eminente Relator e peço vênia para fazer incluir no acórdão a

declaração de voto que oralmente já tinha proferido no julgamento da liminar, ao

qual, creio, nada precisa ser acrescentado.27

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – [...] Estou

fazendo juntar as razões que já constaram do voto proferido na cautelar, superadas as

questões preliminares suscitadas. E, no mérito, estou subscrevendo integralmente o

judicioso voto de Sua Excelência, inclusive no que concerne à interpretação

conforme, tendo em vista a necessidade de que nós tenhamos aqui qualquer risco,

qualquer dúvida, qualquer possibilidade de evasão da interpretação fixada pelo

Supremo Tribunal Federal.28

Nenhum dos dois votos escritos mencionados foi anexado ao documento final divulgado ao

público. Os leitores devem recorrer, então, ao acórdão publicado da ADC-MC 12/DF para verificar

as razões expostas por ambos os ministros para chegarem às suas conclusões finais. Trata-se de um

25 STF, Plenário, ADC 29/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. 16/02/2012, p. 131-132. 26 STF, Plenário, ADPF 130/DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. 30/04/2009, pp. 96. 27 STF, Plenário, ADC 12/DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. 20/08/2008, p. 27. 28 STF, Plenário, ADC 12/DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. 20/08/2008, p. 45.

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18

problema, portanto, que tem grande impacto para pesquisas que envolvem a análise do conteúdo das

decisões – temática, de fundamentação, etc. – ou que procuram entender o perfil decisório de algum

ministro em específico.

Ainda sobre a falta dos votos, uma última observação diz respeito à possibilidade de que os

votos não sejam anexados ao acórdão em razão da demora do ministro em revisá-los – o que pode ser

mitigado para os acórdãos atuais pela Resolução nº 356/14 –, ou então da falta de participação no

julgamento. Nessas hipóteses, é importante o questionamento sobre o peso argumentativo que

assumem os votos apenas registrados em ata. As diferentes respostas a essa questão possuem

implicações para qualquer pesquisa que se proponha analisar a fundamentação do julgado ou a

posição do tribunal em relação a determinado tema. Isso porque, formalmente, os votos em ata estão

ausentes do texto do documento. No entanto, a depender do peso argumentativo que se atribui a esses

votos, a fundamentação do acórdão pode seguir por um ou outro caminho.29

Assim, é possível considerar os votos apenas registrados em ata como argumentativamente

neutros ou como inteiramente concordantes com algum voto anterior. No primeiro caso, retira-se dos

ministros o ônus de argumentar para marcar uma posição individual, visto que a falta de uma

fundamentação expressa não os compromete com alguma tese. O inconveniente dessa solução é

conceber a ideia de que os julgadores podem votar por um resultado sem fundamentá-lo, o que poderia

violar o dever de fundamentação. Por outro lado, se os votos apenas registrados em ata forem

considerados como uma reiteração dos argumentos expostos por um ministro anterior, obtém-se com

maior facilidade uma decisão coletiva. No entanto, também essa alternativa apresenta inconvenientes,

visto que não se pode afirmar com certeza a quais argumentos o ministro silente está aderindo, e que

qualquer entendimento expressado em votos posteriores que divirja da decisão anterior será

considerado incoerente. A preocupação com os votos registrados em ata é reflexo dos problemas do

modelo agregativo para a lógica interna do texto.

Um exemplo das implicações dessa diferença pode ser obtido na ADI 4274/DF, sobre a não

aplicação da Lei de Drogas (art. 33, § 2º) para a punição das passeatas em favor da descriminalização

da maconha (“marchas da maconha”). O julgamento foi realizado por nove ministros. Apesar de o

resultado final ter sido unânime, houve divergência em relação a algumas questões de fundamentação.

Foi o caso da discordância em relação aos limites dos direitos à liberdade de reunião e à liberdade de

29 Para um estudo mais detalhado, cf. Klafke & Pretzel, 2014.

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expressão. De um lado, quatro ministros manifestaram-se favoráveis à restrição por valores

substantivos; de outro, dois ministros sustentaram que apenas as regras constitucionais poderiam

limitar esses direitos. A última corrente poderia contar com mais três votos, e assim se tornar a

corrente vencedora no ponto, se aos dois fossem somados o voto do Min. Marco Aurélio - que se

remeteu à sua manifestação em outra ação, não juntada ao acórdão -, e os votos registrados em ata de

outros dois ministros, Min. Cármen Lúcia e Min. Joaquim Barbosa, caso se entendesse que isso

significava adesão ao voto do Min. Carlos Britto, relator. Ao contrário, se os votos registrados em ata

não possuem carga argumentativa, a primeira corrente seria majoritária, embora não absolutamente,

no julgamento.

Em síntese, o modelo agregativo que embasa os acórdãos do STF pode gerar dificuldades

especialmente para pesquisas que procurem analisar a argumentação empregada pelos ministros para

decidir determinado caso ou voltadas para sistematizar as posições do Tribunal sobre determinado

tema. O pesquisador deve estar atento tanto para a multiplicidade como para a falta de votos, tentando

construir a decisão do Tribunal conciliando as duas situações.

4.2 Composição do acórdão por elementos criados em momentos diferentes

O modelo agregativo de votos tem implicações também no processo de elaboração dos

acórdãos do STF. Os elementos que os compõem são criados em pelo menos três momentos: a) antes

da sessão de julgamento, quando elaborado no gabinete; b) durante a sessão de julgamento, quando

resultam da transcrição de manifestações orais; c) após a sessão de julgamento, quando resultam da

revisão das manifestações surgidas nos momentos anteriores. Por isso, o documento também pode

ser composto por votos não revisados e revisados. Não observamos essa divisão em outros tribunais,

como a Suprema Corte americana ou o Tribunal Constitucional alemão, nos quais a opinião da corte

e os votos separados são redigidos, em geral, após uma reunião de deliberação.30

A composição dos acórdãos a partir de elementos criados em momentos diferentes pode ter

consequências para a confiabilidade do documento e para a sua compreensão.

A primeira hipótese pode ser ilustrada por um erro na composição do acórdão. Na ADI 2581,

o Min. Sepúlveda Pertence anexou um voto que não correspondia à sua posição, conforme o extrato

30 Cf. Ginsburg, 1990; Ruiz, 2000; Segado, 2009.

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20

da ata do julgamento.31 A contradição teve que ser desfeita em julgamento de Embargos de

Declaração opostos para elucidar esse aspecto. Veja-se a ementa do último julgado:

EMBARGOS DECLARATÓRIOS - CONTRADIÇÃO - AFASTAMENTO. Há

contradição quando o voto de desempate juntado ao processo, sem revisão do autor,

surge conducente a conclusão diversa da constante da proclamação. Dá-se o

afastamento da citada contradição a partir de degravação do áudio, com documentação

do voto realmente proferido.32

No caso, portanto, o gabinete encaminhou para o acórdão um voto escrito anterior à sessão de

julgamento, na qual o ministro modificou oralmente a sua posição. O resultado refletiu o voto vogal

do ministro, mas o acórdão continha o voto escrito. Somente a conjugação da ADI 2581 com seus

Embargos de Declaração permitiu resolver a contradição.

Em relação à segunda consequência, a existência de diferentes elementos que compõem o

acórdão, principalmente votos escritos revisados e votos vogais ou debates na sessão de julgamento,

resulta na possibilidade de que um voto escrito revisado por um ministro possa descontextualizar

votos e debates transcritos no acórdão. Um exemplo pode demonstrar o problema.

Na ADI 4.029/DF, sobre a constitucionalidade da lei de conversão da medida provisória que

criou o Instituto Chico Mendes (Lei Federal nº 11.516/07), o primeiro voto que consta no acórdão é

o do relator, Min. Luiz Fux. Em seu voto, o ministro alertou para a quantidade de medidas provisórias

aprovadas sem observância da exigência de parecer pela Comissão Mista sobre a necessidade e a

urgência da medida. Decidiu, então, pela declaração de inconstitucionalidade da resolução do

Congresso que permitia que isso acontecesse, pela declaração de constitucionalidade da lei de

conversão, e pela constitucionalidade de todas as demais leis de conversão aprovadas no período, no

seguinte sentido:

Sendo assim, fica declarada incidentalmente a inconstitucionalidade dos artigos 5º,

caput, e 6º, caput e parágrafos 1º e 2º, da Resolução nº 1 de 2002 do Congresso

Nacional, ficando preservada a higidez de todas as Medidas Provisórias convertidas

em Lei até a presente data, inclusive da Lei Federal nº 11.516/07, impugnada na

presente ação. Assegura-se, ainda, a validade da adoção do procedimento ora

declarado inconstitucional para a aprovação das Medidas Provisórias que atualmente

tramitam no Parlamento. Quanto às demais, deverá o Congresso dar cumprimento ao

disposto no art. 62, § 9º, da Constituição, sendo vedada a apreciação pelo Plenário

sem o prévio parecer da comissão mista de Deputados e Senadores.33

31 STF, Plenário, ADI 2581/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio, j. 16/08/2007. 32 STF, Plenário, ADI-ED 2581/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 15/04/2009. 33 STF, Plenário, ADI 4029/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. 08/03/2012, p. 28.

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distintivas. Trabalho em progresso.

21

A leitura dos votos subsequentes destoa da solução adotada, uma vez que os ministros que

dizem acompanhar o relator o fazem decidindo pela inconstitucionalidade da Lei Federal nº

11.516/07, com modulação de efeitos temporais, sem mencionar a resolução do Congresso. Confira-

se, por exemplo, trecho do voto da Min. Cármen Lúcia:

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - Presidente, eu faço também. Meu

voto também é no sentido da procedência, mas com modulação de efeitos. E faço

brevíssimas observações, até porque já houve muitos debates. [...]34

A resposta para essa divergência está na sequência do acórdão. Na sessão do dia seguinte, em

questão de ordem, o Min. Luiz Fux apresentou o alerta do Advogado-Geral da União sobre a

existência de aproximadamente 500 medidas provisórias convertidas em lei segundo o rito previsto

na resolução do Congresso. Os ministros debateram uma possível solução para o problema, havendo

proposta do Min. Cezar Peluso no mesmo sentido presente no voto do relator anexado no acórdão:

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (PRESIDENTE) - Não, mas porque

o Poder Legislativo tinha competência para, mediante essa Resolução, regulamentar

o § 9º; portanto, a lei não era inconstitucional, porque era constitucional a Resolução.

E o que a maioria decidiu foi exatamente o contrário, concluindo que, porque a

Resolução era inconstitucional, como não obedeceram ao § 9º, a lei foi declarada

inconstitucional. Na medida em que estamos reconhecendo a inconstitucionalidade

desse dispositivo da Resolução, está resolvido o problema. Nós damos efeitos ex nunc,

e, daqui para a frente, o Congresso já não precisa observar o prazo nem o

procedimento da Resolução.

O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO - A saída é boa também.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Nessa linha do controle incidental,

podemos até fixar um prazo mais curto - parece-me que tem de ser um prazo mais

curto para resolver isso - se vamos caminhar para, de fato, declarar a

inconstitucionalidade da Resolução. Esse era um ponto que ontem eu tinha perguntado

e pareceu que tinha ficado isso apenas como obter dictum.

[...]

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (PRESIDENTE) - Declarar

incidentalmente a inconstitucionalidade desses dispositivos que, tendo sido

observados em dano do § 9º, resultaram na inconstitucionalidade da lei; quer dizer,

daqui para a frente, com eficácia ex nunc. Como essas normas da Resolução já não

estão em vigor, o Congresso pode deliberar, observando apenas o § 9º do artigo 62.

O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX (RELATOR) - Eu incluo isso no voto e acho

que a solução fica boa.35

34 STF, Plenário, ADI 4029/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. 08/03/2012, p. 54. 35 STF, Plenário, ADI 4029/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. 08/03/2012, p. 80-81.

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A situação exposta, então, é a seguinte: o relator, Min. Luiz Fux, anexou um voto revisado ao

acórdão que incorporou uma solução debatida pelo Plenário e proposta pelo Min. Cezar Peluso. Os

votos anexados pelos outros ministros, porém, retratam as suas manifestações na primeira sessão de

julgamento. Aqueles que acompanhavam o relator o faziam em relação ao voto original, não ao voto

revisado. A consequência é que a anexação do voto revisado logo no início do acórdão sem qualquer

menção ou consequente modificação dos votos posteriores descontextualiza as manifestações até a

leitura do debate que originou a solução.36

O problema se destaca com mais intensidade em decisões que envolvem pedidos de vista.

Nesses casos, os votos elaborados no início do julgamento convivem com os votos elaborados no

final do julgamento, um período que pode corresponder a vários anos. Essa diferença pode ser

observada a partir da data inscrita na parte superior esquerda dos votos, mas por vezes esses detalhes

não são notados por quem trabalha com esses acórdãos.

A existência dessa multiplicidade de elementos criados em momentos diferentes tem

implicações para diversos tipos de pesquisa com acórdãos do STF. Ela exige cuidado para pesquisas

de fundamentação, de contextualização histórica, de interação entre ministros e outros atores, além

de trabalhos sobre o perfil decisório dos ministros, uma vez que elas inserem no documento um

distanciamento temporal e, por isso, tornam mais complexa a definição do contexto social do texto.

4.3 Composição do acórdão por diferentes tipos de texto

Outra característica dos acórdãos do STF é ser um agrupamento de diferentes tipos de texto.

Travaglia (2001) distingue os textos em três níveis: (i) os tipos textuais; (ii) os gêneros textuais; (iii)

as espécies textuais.

Mencionei anteriormente que o gênero acórdão se refere a um texto cuja função social é

expressar o consenso de um colegiado acerca de uma questão. O enfoque neste tópico recai sobre os

outros dois níveis: tipos e espécies textuais. Os tipos textuais são definidos de acordo com a relação

entre produtor, receptor e objeto do texto. No caso dos acórdãos do STF, enunciadores são os

36 Observei problema semelhante no julgamento da ADI 1864/PR, Min. Rel. Joaquim Barbosa. Uma análise do

julgamento e da incompreensão gerada pela anexação do voto revisado pode ser encontrada em Klafke, 2010, pp. 111,

nota 71.

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julgadores, coletiva ou individualmente, enquanto o público externo em geral é o receptor.37 Tem-se,

normalmente, um texto dissertativo, no qual o enunciador se coloca numa posição de conhecimento

e racionalização de um objeto38, e argumentativo, no qual o enunciador enxerga no receptor uma

discordância em torno da mensagem e, por isso, procura persuadi-lo.39

Os acórdãos do STF também são formados por uma espécie de texto: os votos. Eles podem

ser escritos ou vogais, como indicado anteriormente, e são proferidos individualmente por cada um

dos ministros. As críticas mencionadas anteriormente que se baseiam na falta de uma fundamentação

comum apontam justamente a contradição entre o gênero textual (acórdão, expressão de consenso) e

a espécie de texto presente no documento (votos individuais), procurando mostrar que a espécie não

desempenha adequadamente a função do gênero textual.

Contudo, uma peculiaridade que diferenciam esses acórdãos de decisões de outras cortes

constitucionais do mundo é a existência de outra espécie de texto: as transcrições de interações entre

os ministros (debates, esclarecimentos, antecipações de voto, etc.).40 Embora também colaborem para

a função de expressão do consenso do tribunal, elas não refletem os mesmos tipos textuais dos votos.

Embora elas também tenham como receptor o leitor do acórdão, a relação entre o produtor e o objeto

do texto é diferente. Nessas transcrições, os ministros pedem e prestam esclarecimentos aos colegas,

procuram convencê-los de teses jurídicas, expressam linhas de ação no julgamento, etc. É o que

ocorre, por exemplo, quando algum deles propõe uma ordem de votação ou apresenta um pedido de

vista para examinar melhor o caso.

Observem-se as estruturas de dois acórdãos do STF:

37 De certa forma, é possível afirmar que o processo decisório do STF é de deliberação externa, voltado para o

convencimento e a persuasão da sociedade (Silva, 2009, p. 217). Pode-se dizer que o acórdão, como decisão

fundamentada, dirige-se para o público externo, especialmente a comunidade jurídica. Contudo, ele também se volta para

os próprios membros do STF (atuais e futuros), na medida em que pode servir de precedente na argumentação jurídica. 38 Não entrarei na discussão em torno da natureza do Direito. Argumentos jurídicos devem constituir o cerne da

fundamentação das decisões judiciais. Há um consenso acadêmico em torno da necessidade de que os argumentos sejam

apresentados de maneira racional. Por isso, tomo a ideia de “conhecimento” e “racionalização” no sentido mais amplo

possível, capaz de abranger as teorias mais disseminadas. 39 Também não pretendo discutir se o público-alvo das decisões judiciais – operadores do direito, comunidade acadêmica

e cidadãos em geral –, possuem uma posição de concordância ou discordância em relação à decisão. Basta que se entenda

que uma das funções da fundamentação na decisão judicial é possibilitar o convencimento mesmo daqueles que não

concordam com a decisão, de tal forma que essa divergência seja marginal e não resulte em ruptura social (Camazano,

2000, pp. 184, nota 388). 40 Outra espécie de texto que figura no acórdão é o Relatório, que se associa necessariamente com um tipo textual narrativo

e descritivo, no qual o enunciador procura expressar acontecimentos e descrever o conteúdo das peças processuais.

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distintivas. Trabalho em progresso.

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O importante na distinção é verificar que, enquanto os votos materializam a fundamentação

dada pelos ministros para a solução do caso, essas transcrições consubstanciam registros de

acontecimentos ocorridos na sessão de julgamento. Diferentemente do que acontece em outros países,

a interação entre os ministros é pública e também fica registrada no acórdão. Por ser a transcrição de

manifestações orais, é possível encontrar tipos textuais variados, predominando, no entanto, o tipo

narração, uma vez que o emissor da mensagem (Tribunal) relata uma sequência de fatos (no caso, as

falas na sessão de julgamento) para o público externo (leitores).

Essa diferença é relevante, porque nessas manifestações os julgadores se dirigem aos seus

pares e somente indiretamente ao público em geral. O esforço de convencimento, então, se dirige ao

próprio Tribunal. Nesse sentido, verifiquei numa pequena amostra de sete casos que a maioria dos

debates envolvia algum exercício de persuasão do ministro aparteante em relação ao seu colega.

Entretanto, na maioria dos casos em que o aparte era para esclarecimentos, identifiquei que os

ministros concordavam entre si (Klafke, 2010, pp. 93-95).

Trata-se de um aspecto de diferenciação dos acórdãos do STF em relação às decisões das

cortes constitucionais de outros países. Em razão dessa característica, as críticas feitas à

ininteligibilidade das decisões, à falta de uma fundamentação coletiva e à falta de coesão da decisão

devem ser adequadas ao contexto brasileiro. Isso porque a formação de consensos pode ser encontrada

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justamente nas transcrições de debates, que materializam o momento de troca de razões na sessão de

julgamento.41 Da mesma forma, a existência desses registros facilita pesquisas que procuram entender

os procedimentos do tribunal e a interação entre ministros por meio do acórdão, contornando críticas

como as de que “não se pode verificar como um pão é feito apenas por meio do pão pronto” – nesse

caso, o pão vem acompanhado de um registro do processo de produção.42

Além disso, esses registros auxiliam na narrativa da própria dinâmica do julgamento. Com

exceção das páginas referentes à ementa e ao extrato da ata, as demais seguem normalmente a

sequência da sessão. Primeiro, há o relatório, no qual são narrados os fatos e o histórico processual,

bem como são descritos os argumentos das peças processuais. Depois, seguem-se os votos de cada

um dos ministros na sequência definida regimentalmente: iniciando-se pelo ministro relator e

prosseguindo do ministro mais novo no tribunal até o decano e o presidente (art. 135 do RISTF). Os

ministros presentes à sessão podem fazer apartes às manifestações dos colegas, tentando obter

esclarecimentos, discordar de pontos dos votos, trazer novas questões, etc. Assim, é possível até

identificar quando e como houve uma mudança nos rumos do julgamento e quem a provocou.

5. Considerações finais

As ideias apresentadas neste artigo são algumas reflexões que podem orientar os

pesquisadores a utilizar melhor a análise jurisprudencial como método de pesquisa, especificamente

ao enfocar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Não houve a pretensão de mostrar um guia

sobre como fazer pesquisas com decisões do tribunal, nem de tratar exaustivamente das possíveis

implicações das características dos acórdãos, mas salientar alguns problemas que podem surgir e

afetar os resultados dos estudos, bem como ressaltar alguns aspectos que, se observados, podem

fortalecer explicações e interpretações.

As implicações apontadas demonstram a necessidade de que o pesquisador examine os

acórdãos com cuidado. Pesquisas de fundamentação, da posição do tribunal sobre determinado tema

ou instituto e de contextualização histórica podem ser afetadas pelo modelo agregativo de composição

41 Nesse caso, as críticas normalmente endereçadas ao processo de deliberação do tribunal poderiam ser estudadas a partir

das transcrições dos debates. Na pesquisa mencionada anteriormente, procurei verificar se os debates estimulavam os

ministros a mudarem sua posição. 42 Essa metáfora foi utilizada por um professor durante uma conversa que tive sobre pesquisas em processo decisório no

STF. Sua provocação foi tão interessante que julguei importante mencioná-la neste artigo.

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do acórdão, pela existência de elementos criados em diferentes momentos e pela existência de

diferentes tipos textuais no documento, uma vez que essas características afetam, por exemplo, o

encadeamento de argumentos, a compreensão dos fundamentos, a construção de uma posição

colegiada. Outras pesquisas que envolvem a análise dos atores envolvidos, das instituições, das

repercussões sociais da decisão ou dos procedimentos do tribunal podem ser afetadas tanto pelos

diferentes momentos em que a decisão é elaborada como pela existência de diferentes tipos textuais

no documento, uma vez que acontecimentos decisivos e diversas formas de interação podem estar

registrados em outras partes que não os votos. Finalmente, pesquisas quantitativas e exaustivas podem

ser impactadas pelo modelo agregativo, uma vez que ele pode afetar a seleção do material.

Não há pesquisas que mostrem a frequência com que alguns dos problemas apontados

acontecem, mas a mera possibilidade de que ocorram já recomenda um exercício de prudência e

cautela ao se proceder a uma análise jurisprudencial. Nesse sentido, algumas providências podem ser

adotadas para remediá-los. Para contornar as limitações da análise documental, a pesquisa pode

agregar outros métodos de pesquisa, como a entrevista com os atores envolvidos. Para enfrentar os

problemas de contradição entre elementos do acórdão e o que foi decidido, o estudo detalhado e

criterioso dos argumentos pode não ser suficiente. A transmissão dos julgamentos pela TV Justiça e

a manutenção dos vídeos na internet pode auxiliar o pesquisador, fornecendo o registro de toda a

dinâmica do julgamento em áudio e vídeo. Por fim, sempre é possível o contato com o próprio tribunal

para se obterem informações.

De maneira geral, espera-se que este artigo possa iniciar uma discussão metodológica mais

profunda em torno dos acórdãos do STF como objeto de pesquisa. A importância que o tribunal vem

assumindo e a maior quantidade de estudos que tomam por base sua jurisprudência recomendam um

treinamento melhor.

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