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Pão, Mel e Amor - Jenny Colgan.pdf - Google Groups

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FichaTécnica

Títulooriginal:LittleBeachStreetBakeryAutor:JennyColgan

Tradução:MartaPinho/JoãoQuinaediçõesRevisão:NatáliaGarcia

Capa:NeusaDias/OficinadoLivro,Lda.ISBN:9789897413582

QUINTAESSÊNCIA

umamarcadaOficinadoLivro–SociedadeEditorial,LdaumaempresadogrupoLeYaRuaCidadedeCórdova,n.º22610-038Alfragide–Portugal

Tel.(+351)214272200Fax.(+351)214272201

©JennyColgan,2014

eOficinadoLivro–SociedadeEditorial,Lda.Todososdireitosreservadosdeacordocomalegislaçãoemvigor

E-mail:[email protected]

www.leya.pt

Estaediçãosegueagrafiadonovoacordoortográfico

CaroLeitorQueria apenas explicar um pouco comoPortugal é especial paramim.Um

amigonossomuitoqueridovivepertodeLisboa,numaaldeiaquenãodevetermudadomuitoemcercademilanos,edecadavezqueovisitamos,emboraeletenha cinquenta e cinco anos e seja um engenheiro do exército altamenterespeitado, todas as senhoras de idade lhe beliscam as bochechas e o tratamcomoummeninodaprimária,oqueachamoshilariante.Semprequevamosaalgum ladocomo tantospastéisdenataqueé ridículo

(também bebo bastante vinho, sejamos sinceros). E sei exatamente onde secompram osmelhores: nas velhas padarias com as vitrinas. É onde fazem osmelhores.Portugaléumpaísmaravilhoso!O meu livro também tem muito pão e bolos, e passa-se numa pequena

povoaçãocommuitosdegrauspresanumaencosta,quemefazmuitolembraravossalindapaisagem,eesperorealmentequegostemdeoler.Comumgrandeabraço,JennyColgan

ParaAnna-MarieFourie,aminhaprimeiraequeridaleitora,eamigademasiadodistante,

quesabeoqueéesperarquealguémregressedomar.

QuemmederaserpescadorVogarpelosmaresLongedeterraEdassuasamargasmemóriasLançaraminhadocelinhaComabandonoeamorSemumtetoapesar-meSóocéuestreladoláemcimaLuznaminhamenteEtunosmeusbraçosWoohoo!TheWaterboys,«Fisherman’sBlues»

Erguei-vos,erguei-vos,bravosjovensObarcopartiráàauroraHajavento,frioouUmatempestademortalSirPatrickSpens,c.séculoxiv,tradicional

CapítuloUmAnos mais tarde, quando era já uma senhora de idade e vivia a muitosquilómetrosdedistância,Pollyteriadificuldadeemexplicarqueeraassimquehaviamvividonopassado.Quehaviadiasemque iamaocontinentedecarro,masoutrosdiastinhamdeapanharobarco.Porvezesficavamisoladosdurantemuitotempoeninguémsabiaquandonemcomo;osgráficosmarítimosapenaspreviamasmarés,nãoascondiçõesmeteorológicas.–Maserahorrível?–perguntavaJudith.–Saberqueestavamisolados?Pollyrecordavaoclarãocintilantedosolnaágua,aodescer,aformacomoa

luzmudavaeaáguaganhavaumbrilhocor-de-rosa,róseo,violetanosolquesepunhaaoeste,easpessoassabiamquemaisumdiachegavaaofimequenãoiriamaladoalgum.–Paradizeraverdade,não–respondia.–Erabonito.Bastavaaconchegar-nos,

descansar.ÉramossónósetodasasoutraspessoasnoMonte.Certificar-nosdequetudoestavaemzonasaltasesehaviaeletricidade,issoerabom,massenãohouvesse,bom,tambémnosarranjávamos.Viam-seasvelasacesasemtodasasjanelinhas.Eraaconchegante.–Parecequefoihácemanos.Pollysorriu.–Eusei.Masnãofoiassimhátantotempo...Amim,parecequenãopassou

tempoalgum.Setivermosumcanteiroondeplantaronossocoração,eleficarásempreconnosco.–Masclaroqueissoveiomuitomaistarde.Noinícioerahorrível.

2014Polly folheou a papelada que lhe fora entregue dentro de uma pasta reluzentecomaimagemdeumfarol.Era,reparou,umabelaimagem.Tentavacomtodasassuasforçasveroladopositivodasituação.Eosdoishomensqueestavampresenteseramamáveis,maisdoquelhesera

exigido; tão amáveis, na verdade, que fizeram Polly sentir-se pior,estranhamente, e não melhor. Sentia-se desolada, não revoltada nemdesafiadora.Estavam sentados na sala recuada do escritório de duas salas situado na

estaçãodecomboiosconvertidadaqualelaeChristantosehaviamorgulhado.Erapequenoeelegante,comumaantiga lareiradesativadaondeoutroraforaasaladeespera.Agoraambasassalasestavamdesarrumadas:ficheirosabertos,computadores,

papéis espalhados por toda a parte. Os homens muito amáveis do bancoverificavamtudopacientemente.Chrisestavaalisentado,taciturno,pareciaumacriançadecincoanosaquemforaretiradoobrinquedofavorito.Pollycorriadeum lado para o outro tentando ser útil, e por vezes ele lançava-lhe um olharsarcástico, que ela sabia querer dizer «Porque és tão prestável com esta gentequeestáa tentardestruir-nos?»,eemboraconcordassequeele tinha razão,eramaisfortedoqueela.Maistarde,passoupelacabeçadePollyqueobancocontratavaestaspessoas

para serem simpáticas precisamente com esse objetivo: encorajar atitudesprestáveis,evitarconfrontos,impedirdiscussões.Estepensamentoentristeceu-a,por si própria, por Chris, mas também por aqueles senhores simpáticos cujotrabalho, dia após dia, era testemunhar a infelicidade alheia. A culpa não eradeles.Chrispensavaquesim,naturalmente.–Então–disseomaisvelhodosdoishomens,queusavaturbanteepequenos

óculoselegantesempoleiradosnapontadonariz.–Oprocedimentohabitualéqueoprocessodefalênciaétratadoantesdeseguirmosparatribunal.Nãotêmdeirosdois;apenasumdosdiretorestemdeestarpresente.

Polly estremeceu aoouvir a palavra«falência».Era tãodefinitiva, tão séria.Algo que acontecia a estrelas pop e celebridades tontinhas. Não a pessoastrabalhadorascomoeles.Chrisresmungousarcasticamente.–Tupodesfazer isso–disseaPolly.–Adoras todoesse trabalhodeabelha

obreira.Ohomemmaisjovemolhou,compreensivo,paraChris.–Nóssabemosqueistoémuitodifícil.–Sabem?–retorquiuChris.–Jáalgumavezforamàfalência?Pollybaixouosolhosparaofarolbonito,masaimagemjánãotinhaomesmo

efeito.Tentoupensarnoutracoisaedeuporsiaadmiraroslindíssimosdesenhosdo portefólio de Chris que haviam pendurado na parede quando se mudaramparalá,seteanosantes,amboscomvinteepoucosanos,cheiosdeotimismoporestaremalançarumaempresadedesigngráfico.Começarambem,comalgunsdos clientes que Chris trouxera do seu anterior emprego, e Polly trabalhavaincessantemente na gestão do negócio, angariando novos clientes, divulgandocontinuamente a empresa, vendendo os seus serviços a empresas por todo oPlymouth,ondeviviam,eatéemlocaismaisdistantescomoExetereTruro.Investiram num apartamento numa urbanização recém-construída junto ao

portoemPlymouth,muitominimalistaemoderno,eiamaosrestaurantesebarescertos,para seremvistosepara fazeremnegócios.Tudocorreubem–durantealgum tempo. Sentiam-se verdadeiros empreendedores, adoravam dizer quetinham a sua própria empresa.Mas depois surgiu a crise bancária de 2008 e,graçasanovosprogramasdesoftware,tornou-secadavezmaisfácilmanipularimagens.As pessoas conseguiam fazer as suas próprias ilustrações. Com asempresas a cortarem em trabalhos externos, publicidade e freelancers,reforçando as suas equipas internas, odesign gráfico, como Chris salientava,entrouemdeclínio.Erafeito.Sóquecadavezmenosporeles.Pollymatava-seatrabalhar.Nuncadeixoudeconcorrer,defecharnegócios,de

fazerdescontos;enfim,defazertudoparaangariartrabalhoparaasuatalentosacara-metade. Chris, por outro lado, fechara-se completamente, culpando omundo por não querer as suas fantásticas ilustrações nem as suas inscriçõesdesenhadas à mão. Tornou-se carrancudo e insociável, o que Polly tentavacontrariarmantendoumaatitudepositiva.Oquefoibastantecomplicado.Embora Polly jamais admitisse, nem sequer para si mesma, o facto de ter

finalmentechegadoodia–muitodepoisdeterimploradoaChrisquefechasseaempresaequeprocurasseoutroemprego,edeeleateracusadodelheserdesleal

e de conspirar contra ele – foi, de certa forma, um alívio. Foi desagradável,horrível;motivodevergonha,aindaquemuitaspessoascomquemcostumavamconviver nos bares damoda no centro de Plymouth estivessem a passar – ouconhecessem pessoas que haviam passado – pela mesma situação. A mãe dePolly não percebia de todo o que se passava, para ela o processo era algosemelhanteaprisão.Emprimeirolugar,teriamdecolocaracasaàvenda.MasofactodeMr.GardnereoMr.Bassi,dobanco, estaremalipareciapelomenossinaldequealgoestavaaserresolvido,algoestavaaacontecer.Osdoisúltimosanoshaviamsido incrivelmente infelizes e esmagadores, anívelprofissional epessoal.Asuarelaçãoforaefetivamentecolocadaemsuspenso;pareciammaisduaspessoasquepartilhavamumapartamentocontraavontade.Pollysentia-seconsumida.Polly olhou paraChris. Tinha novas rugas gravadas no rosto em que nunca

reparara. Já há algum tempo, apercebeu-se ela, que não olhava bem para ele.Perto do fim, sentia que um mero erguer de olhos quando ele voltava doescritório – ela saía sempre antes, enquanto ele ficava a rever os seus poucostrabalhosexaustivamente,comoseoperfecionismopudessemudaroinevitável–carregavaumtomdeacusação,deculpa,porisso,passaraamanteracabeçabaixa.O mais estranho é que, se apenas as suas vidas pessoais se tivessem

desmoronado, todasaspessoasqueconheciam lhesdariamoseuapoio,ajuda,conselhos e encorajamento.Masuma empresaque falha...Aspessoas ficaramdemasiado assustadas para dizer o que quer que fosse. Todas mantiveram adistânciaenãose intrometeramdemasiado,atéadestemidaKerensa,amelhoramigadePolly.Talvezporqueomedo–dapenúria,deperderavidaparaaqualtantohaviam

trabalhado – era tão profundo, tão intenso que todos pensavam que a suasituação pudesse ser contagiosa. Talvez porque as pessoas não percebiamrealmenteoquesepassava.Talvezocasaltivesseconseguidomanterafachadadurantemuitotempo:mostravam-sealegres;pagavamasrefeiçõesemconjuntocom o cartão de crédito e sustinham a respiração nomomento de passá-lo namáquina;presentesdeaniversáriofeitosàmão–felizmentePollysabiacozinhar,oqueeraútil;mantinhamoespampananteMazdapreto,emboraagorativessemdeovender,obviamente.Pollynãoqueriasaberdocarro.MasqueriasaberdeChris.Ouquisera.NoúltimoanonãoviuoChrisqueconhecia.Ohomemdoceedivertidoqueera tão tímidoedesajeitadoquandose juntaram,masquedepoisdesabrochara quando criou a sua empresa de consultoria em design gráfico.

Pollysempreoapoiara.Eramumaequipa.Eelaprovara-o,aoirtrabalharparaaempresa.Investiuassuaspoupançasdeumavida(que,apósahipotecadacasa,nãoerammuitosubstanciais),lutouferozmenteporangariarclientes,distribuiusorrisos,esforçou-seeesgotou-sedetodasasformaspossíveiseimagináveis.Issosópiorouasituação,naturalmente.Quandoelefinalmentechegouacasa

naquela noite fatídica de uma primavera gelada quemais parecia um invernointerminável,esesentou,elaolhouparaele,olhouverdadeiramenteparaele,eeledisse,deprimido:–Acabou.Osjornaislocaisiamfechando,porisso,nãoprecisavamdefazerpublicidade,

oquesignificavaquenãoprecisavamdelayoutsnemdedesign...Easempresasjá não precisavam de panfletos, ou então precisavam, mas faziam-nosinternamente na Internet e imprimiam-nos. Agora toda a gente era designer,fotógrafoe tudoorestoqueChrisfizeraoutrora tãobem,comtantocuidadoeatenção aos pormenores.Naverdade, a culpa não era da recessão, embora elanãotivesseajudado.Oproblemaéqueomundomudara.Seeletentassevenderpagersoucassetesseriaigual.Hámesesquenãofaziamamor,masPollyacordavamuitasvezesmuitocedoe

via-o jábemacordadoaoseu lado,desesperadamenteafazercontasdecabeçaouadeixarqueaangústiaeaansiedadeoenvolvessem.Elatentaraencontraraspalavrascertasparaajudar,masnadaajudava.–Não,issonãovaifuncionar–vociferavaeleacadasugestão,desdeartigos

de papel para casamentos a livros de curso escolares. Ou então, «não vale apena».Chris tornara-se cada vezmais negativo, até que trabalhar juntos ficouquase intolerável, e uma vez que ele não gostava de nenhumas das ideias dePolly para a empresa, e como não tinham encomendas, Polly tinha cada vezmenostrabalho.Eladeixava-oseroprimeiroasairdemanhãparaircorrer;éomeuúnicoescape,diziaele,aoqualelamordiaalínguaparaseretrairdereferirque sempre que sugeria algo – uma caminhada, um passeio pelo porto, umpiquenique,coisasquenãocustavamdinheiro–eledizia-lhecomrispidezqueerainútilequenãoestavaparasedaraotrabalho.Polly tentou que ele fosse ao médico, mas também isso foi uma perda de

tempo.Elesimplesmenterecusava-seaadmitirquealgonãoestavabem–comele,comeles,comtudo.Eraapenasumacrise,queacabariaporpassar.Depoisdescobriu-a a ver um site de empregos, e esse foi o momento catalisador. Adiscussão que tiveram nessa noite quasemandou o telhado pelos ares, e tudoficouclaro:quantodinheiroelehaviapedidoemprestadoeofactodeasituação

ser bempior do que ele confessara a Polly.Ela olhou-o estarrecida e de bocaaberta.Uma semana mais tarde – uma silenciosa e agonizante semana – Chris

afundou-se,sentou-seeolhou-anosolhos.–Acabou.Eagoraaliestavamelesnosescombrosdasuaempresacomosmuitoamáveis

Mr.Gardner eMr. Bassi, e todos os sonhos e planos felizes que haviam tidoquandopensavamqueconseguiriam fazer tudo.Cada folhadepapelqueelaoviraassinarenquantoabriamochampanhe,batizavamasecretárianoacanhadomasamorosoescritório,olhavamassombradosparao seuanúncionasPáginasAmarelas... Tudo isso desaparecera para ummundo ao qual não importava oquantoeleshaviamtrabalhadoouquantohaviamdesejadoouqualquerumdosclichésderealityshowsqueeramtotalmente irrelevantesparaocaso.Acabara.Nemtodasasimagensdefaróisjuntasconseguiriammudarisso.

CapítuloDois–Vejamos tudooque tenho– refletiuPollyaoatravessaracidadedebaixodovento friodaprimavera.Tentavadesesperadamenteorganizar-seeenumerarascoisasboasda suavida; ia encontrar-se coma suamelhor amigaenãoqueriachegaraopédelaachorar.– Sou saudável. Estou bem, à exceção do tornozelo duvidoso que torci a

dançar naquele bar, e que foi bem feito. Estou em plena posse das minhasfaculdades mentais. Perdi todo o dinheiro que tinha numa empresa, mas aspessoasestãosempreaperderdinheiro.Nuncapasseiporcatástrofesnaturais.Aminhafamíliaestábem.Irritante,masbem.Aminharelação...Hápessoasquepassamporsituaçõesbempiores.Bempiores.Não temospropriamentedenosdivorciar...–Oqueestásafazer?–perguntouKerensaemvozalta.Emboraoscilasseem

cima de uns saltosmuito altos, conseguiamexer-se com amesma rapidez dePollynosseusConverseseapanhara-aacaminhodecasa,vindadoseuempregocomoconsultoradenegócios.–Osteuslábiosestãoamexer-se.Estásmesmoaficarlouca?Porque,sabes...–Oquê?–Podiaserumaestratégia.Incapacidadedeviversozinha?–KERENSA!–exclamouPolly.–Tuéshorrível.Esequeresmesmosaber,

estava a enumerar as coisas boas da minha vida. Cheguei a «não tenho dedivorciar-me».Kerensa fez uma cara que provavelmente significaria dúvida se não tivesse

tanto Botox que por vezes era difícil perceber o que estava a sentir, emboraexplicasseimediatamenteemaltoebomsom.–Credo,asério?Equemais?Doisbraços,duaspernas?–Eupensavaquenosíamosencontrarparatumeanimares.Kerensaergueuosacobarulhentodalojadevinhos.–Evamosmesmo.Mascontinua,atéondechegaste?Depoisdedescontaresa

casaeoemprego.HaviamparadoàportadaimaculadacasadeKerensaemPlymouth,quetinha

duas laranjeiras a ladear a porta vermelha encerada e com uma aldraba debronze.–Pensandobem,nãoseisequeroficar–afirmouPolly,masnãoestavaaser

sincera.Kerensa eramesmo assim; confrontava sempre a vida de frente, algoque Polly deveria ter feito mais vezes no último ano, bem sabia, quando aempresacomeçouadesmoronar-seeChrissetornoucadavezmaisinatingível.Pedira conselhos profissionais a Kerensa apenas uma vez, enquanto tomavamumabebidanumafestadeNatalanosantes,eKerensadissera-lhequeoqueelesestavam a fazer era arriscado e implorou à amiga que não voltasse a pedirconselhos.Pollyconvencera-sedequetodasasempresascorremriscose,desdeentão,oassuntonuncamaisvoltouasermencionado.– Bom, tu já cá estás, e eu não vou comer estasPringles todas sozinha –

ripostouKerensa,animada,tirandoaschavesdoseuporta-chavesdaTiffany.–TununcacomesPringles–protestouPolly.–Coloca-lasnamesaedepois

dizes:«Ah,estouafingirquetiveumalmoçogigantesco,comamestasPringles,porfavor,nãopossoguardá-lassenãoestragam-se.»Maselasnãoseestragam,sabes?–Se ficares, podespoupá-las comoquiseres, emvezde as enfardares como

umaratazanaesfomeada.AntesquePollyconseguissedizeralgumacoisa,Kerensaergueuasmãos.–Ficasóhoje.–Estábem–respondeuPolly.

Polly fechou os olhos ao dizê-lo, mas não havia volta a dar, assim haviam

determinado Mr. Gardner e Mr. Bassi: o banco ia ficar com o apartamento.Quando dissera àmãe, esta reagira como se tivesse tido uma filha e a tivessevendido.Eraporissoquetentavanãocontaràmãemaisdoqueoestritamentenecessário.–Estouatentarverascoisaspeloladopositivo.–Ofactodeseressem-abrigo?–Cala-te!Vousóprecisardearranjarcasa.Kerensatentoufranzirosobrolhoelançouoolhoaofinopódemigalhasde

PringlesquePollydeixaranosofáBoConcept.–Sóparati?Pollymordeuolábio.– Nós não nos vamos separar. Eu... não sei se nós os dois, às turras numa

minúsculacasaalugada...Pollyrespiroufundoebebeuumgenerosogoledevinho.– Ele disse que quer passar uns tempos em casa damãe. Só até... Até nos

recompormos,percebes?Depoisvemoscomoficamos.Polly tentava fingir o melhor que conseguia que tudo isto resultava de um

calmoprocessodetomadadedecisõeslógicasenãodediscussõestempestuosasedeamuos.–Vaiserbom...Umamudança.Kerensaanuiu,compreensiva.– Até vendermos o apartamento... Quer dizer, eu não tenho nada. Se

vendermospormaisdoqueestamosàespera,talvezsejasuficienteparapagarasdívidas,mas...–Masnãoestásacontarcomisso?–Ajulgarpelaminhasorteatual–afirmouPolly–,provavelmenteconseguirei

reaverumaquantiairrisória,equandosairdobanconodiaemqueaforlevantar,descerá um raio do céu e pegar-lhe-á fogo. A seguir, um piano cair-me-á emcimaeenterrar-me-áporumburacodentro.Kerensadeu-lhepalmadinhasnamão.–ComoestáoChris?Pollyencolheuosombros.–Namesma.Oscobradoresforammuitosimpáticos,apesardetudo.–Queempregohorrível.–Mas têm emprego – retorquiu Polly. – E nestemomento acho issomuito

bom.–Andasàprocura?

– Sim – respondeu Polly. – Tenho demasiadas qualificações e sou velha demais para todos os empregos do planeta. Aparentemente já ninguém paga aprincipiantes.Alémdisso,precisomesmodeumamorada.Kerensareplicouimediatamente:–Sabesquepodesviveraqui.Pollyolhouemvoltaparaoimaculadocovildemulhersolteira.Kerensativera

asuadosedehomens–resultadodeumcorpoemexcelenteforma,roupascaraseumaatitudealtamentearrogante–masnuncaestiveraremotamenteinteressadaem assentar com alguém. Era como um gato com pedigree, pensava Polly,melancolicamente, ao passo que ela própria, Polly, eramais parecida comumcão grande, afável e irrequieto. Talvez um springer spaniel; tinha cabelocompridolouroefeiçõespequenas.– Preferia dormir num contentor do lixo a voltar a partilhar casa contigo e

colocaranossaamizadeemrisco.–Divertíamo-nostantoquandovivíamosjuntas!–replicouKerensa.–Mentira!–contrapôsPolly.–Tusaíastodososfinsdesemanacomaqueles

idiotasarruaceirosquetinhambarcosenuncalavavasaloiça!–Primeiro,todososfinsdesemanateconvidavaparaviresconnosco.–Eeunãoiaporqueeleseramidiotas.Kerensaencolheuosombros.– Segundo, eu nunca lavava a loiça, porque nunca comia nada. Tu é que

espalhavasfarinhaefermentoportodaaparte.Fazer bolos era um passatempo que Polly nunca abandonara. Kerensa

acreditava piamente que os hidratos de carbono eram veneno e estavaconvencidadequeeraalérgicaaoglúten.Éincrívelcomoeramtãoamigas.–Mesmoassim,nuncanavida–rematouPolly,triste.–Masachoquenãoera

capazdevivercomumbandoderaparigasdevinteepoucosanosefingirdar-mecomasmiúdas.Polly fizera trinta e dois anos no início do ano. Por breves instantes,

perguntou-seseumadasminúsculasvantagensdeestarnafalênciaseriaterumaboadesculpaparadeixardecomprarpresentesdecasamentoebatizadoatodasaspessoasqueconhecia.Kerensasorriu.–Claroqueeras.Podiasiradiscotecas.–PoramordeDeus!–Ficar acordada todaanoite a conversar sobreo sentidodavidae a fumar

erva.

–Credo!–Acampareirafestivaisdemúsica.–A sério – reclamouPolly. –Eu já estou emdesespero e tu ainda esfregas

maissalnaferida.Hum...Sal.Kerensaestendeu-lheotubodePringlescomumestudadoardeenfado.–Entãoficaaqui,játedisse.–No teusofádeumziliãodedólares,no teuapartamentodeumquartopor

uma temporada não especificada? – atirou Polly. –Obrigada, és querida,masvouprocuraronline.Paramim,sozinha.Vaiser...giro.

KerensaePollyolhavamatentamenteparaoportátilemsilêncio.Pollypercorrialistas de apartamentosdentrodoorçamentodefinidopelobanco.Não eraumavistaanimadora.Naverdade,asrendaspareciamterdisparado.Eraterrível.– Isso é um armário – dizia Kerensa de quando em vez. – Esse não tem

janelas.Como é que alguém tira uma fotografia da parede cheia demanchas?Emqueestadoestáaoutraparede?Euconheçoessa ruadequandonamoravacomotipodasambulâncias.Éumazonadebares.– Não há nada – afirmou Polly, em pânico. Não fazia ideia de que, na

realidade,ahipotecaquetinhaeramuitobaixaeasrendaserammuitoaltas.–Nãohánadadenada.–Equetalum«apartamentopartilhadoparaexecutivos»?– São muito caros, é preciso pagar televisão por satélite e provavelmente

partilharacasacomumesquisitoidequalquerquetempesosnoquarto.Àmedidaquedescianalista,Pollyiaficandocadavezmaispreocupada.Não

sabia muito bem o quão baixo estaria disposta a descer, mas quanto maisprocurava,maistomavaconsciênciadequeteriadeviversozinha.PormaisquetentassemanterasaparênciascomKerensa,Chriseamãe,acontecera-lhealgoterrívelquenãodemorariamuitotempoadesaparecer.Aideiadeestarachorarno quarto rodeada de jovens na farra era, no mínimo, desesperante e, nomáximo, profundamente trágica. Precisava de se recolher, de recuperar oequilíbrio.Nãoia,deummomentoparaooutro,começaravestir-secomoumamulher dez anosmais nova nem a falar deboybands. Nem sequer iria voltarparacasadamãe,queaadoravaefariatudoporela,masquepassariaosdiasasuspirar, pesarosa, a fazer perguntas sobreChris e a falar dos netos de outraspessoase...Não.Asuarelaçãoestavabem,masPollyduvidavaqueaguentasse

estetipodesituação.Então,oquefazer?

CapítuloTrêsNamanhãseguinte,Kerensasaiudecasapoucodepoisdasseishoras,parafazerbritish military fitness num parque ali perto, embora fosse março e a chuvabatessenasjanelas.ConvidouPolly,naturalmente,masestamurmurouqualquercoisaevirou-separaooutrolado.EstavacomumaligeiraressacaetinhaosaboraPringlesnaboca.DepoisdeKerensasair,Pollyfezcaféearranjou-seomelhorqueconseguiu

naqueleminúsculoespaço imaculado.Masdenadavaleu:oseusacode roupacontinuavaaatravancaracasaeelanãofaziaideiadecomoKerensaconseguiacolocarasalmofadasdireitas,porqueelanãoconseguianempornada.Pegounocafé,entornouumpouconotapetemuitocaroedisseumaasneira.Não.Istonãoiriaresultar.Ligou o portátil. A página de empregos podia esperar uns minutos, porque

agora,precisavadeumsítioparaviver.Agoramais devagar, consultou todas as casas para alugar emPlymouthque

estavam dentro do seu orçamento. Era todas horríveis, ou ficavam em zonasondePollynãosesentiriaseguraasairsemcarro.Páginaapóspágina,atéquechegouaofim.Eraoquehavia.Nadamais.Nãohaviaumacasasequerqueelaponderasseirvisitar,muitomenosvivernela.Muitas das suas amigas, além de Kerensa, haviam-lhe oferecido um quarto

vagoouumsofáondeficar,masPollytambémnãoconseguiasuportarisso–os«Estás bem?» e os murmúrios de preocupação. E eram quase todas casadas;estavamachegarà fasede terumbebé.Algumasdas suasamigas, suspeitavaPolly,gostariamdea teremsuacasade temposa temposparaajudaracuidardosfilhos,maselanãoconseguiasequerconceberessaideia:andarembicosdepés para não abusar da hospitalidade, como se fosse uma combinação de tiasolteironacomajudagratuita.Hámuitotempo,quandoaindaestavanacasadosvinteanos,pensouquepor

estaaltura jáestariacasadacomChris, já teriaassentado;eleaganhar imensodinheiro,elacomumbebé...Masaliestavaela.Não,tinhadedeixardepensarassim.Podiaafogar-senaautocomiseraçãoou

podiacontinuaralutar.Porcapricho,ampliouasuapesquisaatodoopaís.Uau.Sepudessemudar-separaoPaísdeGales,conseguiriaviveremimensascasas.E casas boas. Ou nas terras altas da Escócia. Ou na zona rural da Irlanda doNorte. Ou em Peak District. Polly não sabia muito bem onde ficava PeakDistrict,maspelomenoshavialáimensascasasparaondepoderiamudar-sesemdinheiro, sem conhecimentos, sem amigas a oferecerem-lhe Pringles e sememprego...Hum,talveznão.Restringiu novamente a pesquisa a toda a zona do sudoeste e foi então que

viu.Eraumnomenoqualnãopensavahá anos.Devia ter lá idonumavisitade

estudo da escola; toda a gente ia.Mount Polbearne. Era incrível como aindavivialáalguém.Pollyanalisouapequenaimagemdeapresentação.Nãoeranadadeespecial;

eradiferentedascentenasdeoutrasimagensquepercorrera,porqueforacaptadado exterior e não no interior, e mostrava uma pequena janela num telhadoinclinado, com a pintura a descascar e as telhas serrilhadas e com aspeto deantigas.«Local invulgar»,diziaoanúncio,oquenormalmente significava«defugir».Noentanto,clicou,enquantobebiaumlongotravodecaféfrio.Comqueentão,MountPolbearne.Eraumailhadependentedasmarés,disso

Pollylembrava-se.Foradeautocarro,ehaviaumpassadiçoqueligavaailhaaocontinente, recheada de sinais aterradores a alertar para os perigos de aatravessar enquanto a maré estivesse a encher, ou quando estivesse já cheia.Todaa turmadePollygritaradeexcitaçãoquandoaáguacobriuaspedrasdacalçada,etodospensaramqueiriamafogar-se.Haviavestígiosdeárvoresvelhasdosdoisladosdacalçada,ondedanteseraterraeagorajánãoera,eumcasteloem ruínas no cume da ilha, além de uma loja de recordações onde Polly e

Kerensahaviamcompradochupa-chupasgigantesdemorango.Masdecertezaqueninguémlávivia.Metadedotemponemsequerconseguiamdelásair.Eirevirtodososdiasparaoempregoeraimpossível.Haviaoutraimagemnosite.Oedifíciopareciapraticamentedevoluto.Tinha

um telhado instável, e duas das janelas que Polly vira na primeira imagemestavamsujaseabertasparafora.Norésdochãovia-seoespaçoescurodeumaloja abandonada. O facto de estar empoleirada no meio do mar causaraobviamenteestragos.EPollyquestionou-se seumacalçadasubmersa seria tãoemocionanteparaosturistascomoantigamente.Hojeemdiatodosqueriamerapraias de surfe, parques temáticos e restaurantes de peixe caros. ACornualhamudaramuito.Mashouveumacoisaquereteveasuaatenção:acasatinhadoisquartoseuma

pequenacasadebanho.Nãoeraumestúdionemumapartamentopartilhado:eraumapartamento.Dentrodoseuorçamento.Alémdisso,oprimeiroquarto,quedavaparaafrentedoedifício,erabastantegrande:seismetrosporoito.Oquartoprincipalda suacasaemPlymouthnãoera tãogrande;erapequenoeestreito,com espelhos embutidos em cada extremidade e iluminados por focos de luz,paracriarailusãodeespaço.Pollyperguntou-sequealturateriaoapartamento,debaixodeumtelhadoinclinadocomoaquele.Eseorésdochãoestavadeserto,isso significava que não havia mais ninguém no edifício – exceto os ratos.Hum...Então,aúltimafotografiaprendeu-lheoolhar.Eraavistadasjanelasdafrente,captadadointerior.Da janela via-se... nada.Apenas uma vastidão de espaço exterior, ou, como

Pollydescobririaapósumaanálisemaiscuidada,omar.Afotografiaforatiradanumdiaemqueomareocéutinhamomesmotomdecinzentoefundiam-seumnooutro.Eraumagrandeextensãonaqualnadaestavaescrito.Pollyficouaolharfixamenteparaaimagemdurantemuitotempo,fascinada.Eraexatamentecomosesentia:oca,vazia.Mastambémestranhamentetranquilizante.Comoseaexistênciademuitocinzentofosseumacoisaboa.Quandoolhavapelajaneladoseuapartamento,oqueviaeramuitaspessoas,iguaisaeles,aentrarnosseusAudiseBMW,acozinharemwoks,comadiferençadequeassuasempresasnãoestavamnafalênciaeelaspareciamaindafalarumascomasoutras.Osimplesfactodeolharpelajanelajáeradesgastante.Masisto...Istoeradiferente.Polly procurou Mount Polbearne no Google Earth e, qual não foi a sua

surpresa,aoverificarquetinhaalgumasruasdecasasdepedraquedesciamdeumaigrejaemruínasnotopodacolina.Asruasserpenteavamatéumpequenoporto, em ângulo reto relativamente à calçada, onde se via umamão-cheia de

barcos de pesca. Notava-se que a ilha ainda não fora descaracterizada, aocontráriodamaiorpartedaCornualha;situadanaparteforademodadodistritoe longe da autoestrada, escapara.Mas ficava apenas a oitenta quilómetros dePlymouth,porisso,podiafacilmentedaraliumsalto...Com os dedos a tremer ligeiramente, clicou no botão «Contactar agente

imobiliário».

CapítuloQuatro–Achoqueoquedevesfazeragora–afirmouKerensa,vestidacomumblazerridículo com botões dourados que, ainda assim, lhe conseguia ficar bastantechique–écasarcomalguémquetenhadinheiro.Eissonãovaiacontecernesteburaco,issotegaranto.–Obrigada,comosempre–retorquiuPolly.Estavavestidadepreto,oqueera

raro.Acornãocombinavabemcomoseucabelolouronemcomasuapeleclarae fazia-a mais baixa. Era como se se tivesse esquecido de viver a sua vidanormal, sem emprego nem cara-metade, nem sequer uma chave de carro atilintar.–Precisasmesmodeviverpertodeumacidadegrande–continuouKerensa.–

Detevestirescomalgumestilo.Engataralguém.–Éissoqueestásatentarfazer?–Porfavor–ripostouKerensa,revirandoosolhos,ePollyapressou-seaolhar

pelajanela,antesqueaamigacomeçasseacantarcançõesdeBeyoncé.Era um sábado cinzento de céu encoberto e as duas amigas haviam saído

lentamente de Plymouth, confusas com o GPS e as estradas estreitas eserpenteantes por onde ele as queria levar. Por fim, decidiram que se semantivessemsempreàdireitadomar,acabariamporchegaraodestino,eassimfoi.

Haviaumparquedeestacionamentojuntoaopassadiçoeumatabeladiáriademarés, que nenhuma das duas teve a preocupação de consultar antes deavançarem.Emvezdisso,pararamnoparquedeestacionamentoeestudaramailhadelonge.Porfim,Kerensadisseoqueambaspensavam.–Parece...ventosa.Eraverdade:MountPolbearnetinhaumaauradefustigadopelovento,prestes

a desmoronar. As ondas estavam altas, o que era preocupante; pareciaimprovável que aquele lugar ficasse, como prometia o sinal, acessível dali avinteminutos.Pareciasaídodopassado,comoseestivessemacontemplaralgoesquecido,comocasteloemruínassobranceiroàsruasquemalseviam.–Temumarromântico–dissePolly,esperançosa.–Seráqueaindafazemdemolições?–questionou-seKerensa.–Ecasamcom

osprimos?–Nãoémuitolongedacidade–comentouPolly.Kerensaolhouparaorelógio.–Bem,depende,nãoé?EseeusofrerumterrívelacidentecomumMartinie

tu não conseguires chegar a minha casa porque está tudo inundado? Tu nemsequertenscarro!Olhaàtuavolta!Era um lugar desolado, só estradas de terra batida que saíam do pequeno

parquedeestacionamento.–Nãovejoumaparagemdeautocarroemladonenhum,etu?Comoéquevais

paraPlymouth?Decarruagempuxadaporcavalos?Polly sentiu-se afundar. No dia anterior, instigada por Kerensa, fora visitar

dois apartamentos partilhados mais perto de casa. Ambos eramindescritivelmente sujos, povoados por jovens de vinte e tal anos, com lava-loiçascheiosdelouçaporlavar,frigoríficoscompapéispresosàsprateleiras,umcheiro a edredões sujos e bicicletas velhas nos corredores comuns.Só choraradepoisdeKerensairdormir.–Ésódurantealgumtempo–afirmou,comesperança.–Atéoapartamento

servendido.– Apartamento esse que é exatamente igual aos outros quinze mil

apartamentosdePlymouthàbeira-marconstruídosnosúltimosdezanos?A testa dePolly encheu-sede rugas.Chris sempre considerara ter olhopara

bons investimentos; ela lembrava-se da excitação dele. «Tem um ginásio nacave,Pol!»(Usaraestafraseumavez.)«Temfechaduraporimpressãodigital!»(Estava sempre avariada.) Nunca comentava o que nunca tinha – um jardim,espaçoparafazerumquartodebebé.

–Vamosespreitar–convidouPolly.A água recuava do passadiço a uma velocidade incrível, como se revelasse

uma estrada mágica. Com muito cuidado, atravessaram e estacionaram noparquedooutro lado,quenaquelediaestavavazio–erademasiadocedoparaquem estava de férias, presumiu Polly, e estava fresco – à exceção de umVauxhallAstracinzento,doqualemergiuumrapazcomexcessodepesovestidocom um fato de péssima qualidade e uma gravata vermelho-vivo. Emboraestivessesentadonocarro,pareciaofegante.–Oi,oi!–exclamounumtomsurpreendentementejovial.–Sãoasmeninasda

cidade?Kerensatorceuonariz:–ElequerdizerPlymouth?–perguntou.EmboraKerensafossenaturaldePlymouthesemprelátivessevivido,gostava

defingirqueestariamaisemcasaemLondres,ParisouNovaIorque.–Chiu!–exclamouPolly.– Isto deve ser uma cidade pequena, se acha que Plymouth é Las Vegas –

comentouKerensaaosairdocarroeimediatamentetevedesoltarumsaltoqueficara preso entre as pedras da rua. O homem corpulento aproximou-se. Naverdade, era mais um rapaz. Polly ficou impressionada – era tão jovem. Issoimplicavaqueelanãoerajovem,masclaroqueera,disseasimesma.Claro.Orapaztinhaumenormesorrisoestampadonorosto.Pollypensouquesetivessenascidonoutraépoca,esteseriaomomentoemquetirariadobolsoumenormelençoàsbolaselimpariaafrontecomele.– Lance Hardington – apresentou-se ele, oferecendo um forte e vigoroso

apertodemãoeolhando-asbemnosolhos.Eraóbvioquefizeraalgumcursodeformação. Kerensa reprimiu um esgar. Era difícil imaginar alguém menosparecidocomumalança.– Prazer em conhecê-lo, Lance – ronronou ela, fazendo o rapaz corar ainda

mais.–Nãocomeces–dissePollyemvozbaixa,quandoiniciaramasegui-lo.Para

obeso,movia-secombastanteagilidade.–Oh,sóestouadivertir-me–respondeuKerensa.–Vaisassustá-lo.–Issodiverte-me.Lance virou-se para trás, agitando as sobrancelhas, o que obviamente

significavadespachem-se,tempoédinheiroevocêstêmclaramentemuitodeumepraticamentenadadooutro.Consultouo iPhone, comoqueaexibir-se,mas

Polly deteve-se a olhar em volta. Na verdade, era bem agradável, aquelelugarzinho, longe do barulho e do trânsito de Plymouth. Estavam junto a umpontãoaoladodopassadiço,noladomaisdistantedavila,quecontornavaumabaíaàesquerda,acabandonomar.Láemcima,ocastelo–eramaisumaruína,naverdade,comosmurosemderrocadacheiosdeburacosecobertosdemusgo–vigiavaoemaranhadodecasasdesgastadaspelotempo,construídasnaantigalousa daCornualha e em arenito,muitas delas com os caixilhos das janelas adescascar.Viam-sepoucoscarros;Pollypensou,corretamente,queoslocaisosdeveriamdeixarnocontinenteeatravessariamacalçadaapé.As ruelas estreitas serpenteavam até ao pequeno porto à esquerda, onde os

mastros de barcos de pesca se agitavam e tilintavam ao vento e as ondasgalgavamas pedras dovelhomurodoporto.No cais havia um restaurante defishandchips,umalojaderecordaçõescomumaspetoligeiramentedescuradoeumavelhapousada,queaindatinhaumabarricadeáguacáforaparacavaloseoquepareciaserumpátiocomestábulo.Estavadecididamentefechada.NaoutraextremidadedoportoPollyreparounumfarolaltopintadocomlistasbrancasepretasmascomapinturaadescascar.Tinhaardequenãoeraestimado.–Asubirequaseachegar–fungouLance.Kerensaolhouemvoltadesconfiada.– Quer dizer que ainda não íamos a subir nem estávamos a chegar? –

comentou.–Tudoànossavoltaestá.–Éagradávelentrarpelaruadebaixo–retorquiuLancerapidamente.–Mashácincoanosquechoveaquiconstantemente–continuouKerensa.–

Achoquearuadebaixodesapareceu.– A verdadeira vantagem de Mount Polbearne – explicou Lance, mudando

prontamente de estratégia – é o facto de estar intacto. Émuito tranquilo, semproblemasdetrânsito.Pazetranquilidadetotais.Kerensatorceuonariz.–Vocêviveaqui?Lancemanteve-seimperturbável.–Não,masADORAVA.– Paz e tranquilidade – murmurou Polly, perguntando-se se não seria

exatamentedissoqueprecisava.Lance continuou a andar ao longo do porto e as duas amigas seguiram,

obedientes,atrásdele.Haviapoçasdeáguaentreaspedrasdaestrada,recheadasdemoscasdepescadecoresvivas,redesealgoquedeveriatersidointestinos.Kerensafezumacaraenojada.

–Ficacomigo–sussurrou.–Parasempre.NumsítioondehajacaféseZaras.–Aindahábempoucotempotivedemudaroqueentendopor«parasempre»

–retorquiuPolly.Lanceparoufinalmenteàfrentedaúltimacasadapequenaruadegradada.O

seusorrisofalsotornou-seaindamaisfalsoaoficarparatrás.Asduasmulheresestudaramacasaàsuafrente.Pollyresistiuaoseuprimeiroinstinto,quefoidarmeia-voltaefugir.–Devehaverumerro–afirmouKerensa.–Não–respondeuLance,comardealunoculpado.–Éesta.–Istodeviaserdemolido,nãoalugado.Derepente,arazãopelaqualacasatinhamaisespaçodoqueerahabitualpelo

preçoquecustavatornou-seóbvia.Acasaerapequenaeestreita,construídaempedracinzentasuja.Orésdochãotinhaumagrandejanelaemarco,rachadaemvários sítios e indescritivelmente suja.Através delamal se viam os contornosindistintosdegrandesmáquinas,intocadasháanos.–Oqueaconteceu?–perguntouKerensa.–Umincêndio?– Não! – respondeu Lance, com energia. – Apenas... – A voz sumiu-se

enquantotentavanãodizer«desleixo».Lance correu para a parte lateral da casa, cujo telhado era incrivelmente

inclinado.Delado,haviaumapequenaportademadeiraondeeraprecisobaixar-se para entrar e ele tirou uma grande chave de bronze damala e abriu-a. Asdobradiçaschiaramdolorosamente.–Houvemuitaspessoasinteressadasemveracasa?–perguntouKerensa,com

ossaltosdossapatosabaternaslajes.Lanceignorou-a.Lá dentro não havia mais nada senão escuridão e um leve cheiro a bafio.

Lance usou o seu iPhone como lanterna até encontrar um fio de eletricidadependuradoepuxou-o.Umaantiquada lâmpadadebaixa intensidade,pejadadepó, acordou a zumbir ruidosamente, deixando ver umas escadas de madeirapoucofirmes.– E isto cumpre todos os requisitos de higiene e segurança para os

arrendatários? – continuou Kerensa, como se passeassem numa penthouse deSandbanks.Lancemurmuroualgoinaudíveleconduziu-aspelasescadasacima,comPollylogoatrásdesi,demasiadopertodoseutraseirobemnutrido.Sentiu-sedesanimada.Aquiloeraimpossível;nãotinhasegurança.Outrachave,queLanceprocuroudesajeitadamente,rodouafechaduradeuma

segundaportanocimodasescadas.Pollyfezfisgascomosdedos,naesperançadaúltimaoportunidadedeum«tchanã»aoentrarnadivisão.

Tudoestavaemsilêncio.Eragrande.Issoninguémlhetirava,dissePollyasimesma.Estavamnaparte

de trásdeumgrandeespaçoabertocomum telhado inclinadoatravésdoqualpassavam fendas de luz do dia.O chão era de tábuas enceradas.Ao fundo, otelhado era alto, com traves à vista. Encostada à parede de tijolo não pintadoestava uma mesa com duas cadeiras desirmanadas que pareciam demasiadopequenas,aoladodeumfogãoalenhaenegrecido.Napartemaisdistantehaviaumpequenocorredorpara a esquerda,quedavaobviamenteparaoquarto e acasa de banho, que estavam alojados numa extensão de tijolo nas traseiras.Numadasparedesdadivisãoprincipalestavaomínimopossíveldehorríveisevelhosequipamentosdecozinhaemmelaminaeumobjetoestranho:umenormefornodeferro.LanceviuosolhosdePollyabrirem-seperanteaquelavisão.– Não conseguiram tirá-lo daí – explicou. – Sabe-se lá como conseguiram

trazê-locáparacima.Éencantador,deépoca.Napartedafrente,ondeotelhadoseinclinavaatéàsjanelas,estavaumvelho

sofáemmauestadorepletoderasgões.Pollyaproximou-secomcuidado;cadatábuadochãorangia.–Esta casa está a cair para omar – referiuKerensa, demauhumor. –Tem

muitosratos?–Não–respondeuLance,desanimado.Eraóbvioqueaagênciaodesafiaraa

livrar-se daquela casa. Nesse preciso momento, ouviu-se um enorme barulhoagudo.Ostrêsderamumsalto.Pollyvirouacabeçaparacima.Atravésdeumatelha em falta, conseguiu ver uma enorme gaivota a gritar. O barulho eracompletamenteensurdecedor.–Ratoscomasas,então–comentouKerensa.Polly nem a ouviu; avançou até às janelas. Agachou-se e viu que a pintura

estava a desfazer-se em lascas; assimilou o facto de terem apenas um vidrosimples,comváriasrachas.Gelariaalidentro,estavamaisfriodoqueláfora.Espreitou pelo vidro sujo com sal encrustado. Estava mais alta do que os

mastrosdosbarcoseviaparaládomurodoporto,comassuasboiasabalançare uma fila de gaivotas a tagarelar, junto aomar. Então, houve uma aberta nanuvembaixaporondeosolpenetrouebateunapontadistantedeumaondacomaespumabranca,dando-lheumbrilhorefulgenteefazendo-adançardebaixodaluz.Pollydeuporsiaesboçarumsorriso.–Polly!POLLY!–Pollyvirou-se,conscientedequenãoouviraoqueKerensadissera.–Anda,eulevo-teacasa.Paramospelocaminhoparabeberumbomcopode

vinhobranco,nãoqueeunãoachequePolbearneestejarecheadodebarzinhoserestauranteschiques.Umdefishandchipshá,pelomenos.AsfacesbochechudasdeLancecomeçaramadescair.–Porqueéqueodononãofazobras?–perguntouKerensa.–Noestadoem

queestá,ninguémvaialugaracasa.– Eu disse-lhe – replicou Lance, desgostoso. – E também ninguém a vai

comprar.Sódádoresdecabeça.– Fantástico, uma casa de um louco cheia de buracos, com ratos na cave –

rematouKerensa.–MUITOobrigadapeloseutempo.Anda,Polly.Pollydeitouumúltimoolharlevementeesperançosoaomar.–Sabes–afirmou–queacavalodadonãoseolhaodente.–Estásabrincar–reclamouKerensa.–Semorressesaqui,atuafamíliaainda

meprocessava.–Eudigo-lhesparanãoofazerem–tranquilizouPolly.Virou-separaencarara

amiga.Kerensaolhoubemparaela.Pollyatépodiaserdoceporfora,maspordentro,

algures, sabia que tinha uma costela dura.Amesma costela que a fizera lutarpelasuaempresaepelasuarelação,mesmoquandojáeraóbvioparaorestodomundoquetudoestavaperdido.–Tenhodeviveremalgumlado.–Polly.Minhaquerida.Istoéumburaconofimdomundo.–Talvez–ripostouPolly–,maséexatamenteondequeroestaragora.– Ótimo – atalhou Lance, voltando a ficar com as faces rosadas ao

acrescentar:–Querdizer,lamentopor...Bem,acho...Pollyfoiemseuauxílio.– Vou fazer um arrendamento por um período de tempo muito curto –

afirmou.Lanceergueuasmãoscomoqueaindicarquesepoderiaarranjar.–Eotelhado...–Ah?–Nãoqueroqueentrechuvapelotelhado.Parece-merazoável.–Hum...–Ese...–dissecomcautela.–Quetal...–Epropôsmetadedovalorpeloqual

acasaforaanunciada.Lance parecia um rapazinho de cinco anos que precisava de ir à casa de

banho.

– Bom, acho que isso... Quer dizer, terei de falar com o meu chefe...Negociar...KerensaolhoufuriosaparaPolly.–Tunãoestásafalarasério,poisnão?Polly lembrou a sua desencorajante incursão pelos apartamentos partilhados

maisinsalubresdePlymouth.–Nãotenhodinheiroparamais.–Tunãopodesficaraqui!Istoéumdesastre!–Voualugar,nãovouempenharaquiaspoupançasdeumavida.Ésódurante

unstempos...Vemaíoverão.–Vemaíoverão–repetiuLance.– Este ano o verão provavelmente vai saltar a Grã-Bretanha – afirmou

Kerensa.–Estacasaéumperigo.Polly fez um gesto com a boca que Kerensa já vira antes; significava que,

basicamente,estavairredutívelnaqueleassunto.– Vamos almoçar e conversamos sobre o assunto – tentou Kerensa, em

desespero.Enquanto estavam ali os três, a gaivota largou um substancial dejeto pelo

buraconotelhado.Kerensafranziuonariz.–Ondeéqueháumsítioondesecomabemporaqui?Lancepuxouocolarinho,algoansioso.–Hum...EmPlymouth?

CapítuloCincoTiveramdeesperartrintaecincominutosqueamarédescesseosuficienteparaconseguirem atravessar o passadiço. Polly passou todo esse tempo a cantarentredentes para se distrair de Kerensa, que encontrara mais noventa e cincorazões pelas quais ela não podia de forma alguma mudar-se para Polbearne.Curiosamente,essasrazõessóadeixaramaindamaisdecidida.– Para! – exclamouKerensa, de semblante carregado, após realçar que não

haviatáxisnailha.–Oquê?–perguntouPolly,comarinocente.–Paradedecidirquevaisfazeristo!Éumaloucura.–Nãoestouadecidirnada.–Claroqueestás.Estásacontrairoslábios.Pelaprimeiraveznesteúltimoano

parecesfeliz,emboraistosejaumerroCRASSO.Pollyesboçouumsorrisoenquantopensavaemtudooqueacontecera.–Pelomenosdestavezoerrocrassoémeu–replicou.

Kerensaestavaatrabalhar–todasassuasamigasestavamatrabalhar–nodiaem que Polly se mudou. Sabia que teriam ajudado, mas como se sentia

desafiadora,preferiuassim.Nãoqueriapassarpelaignomínia,pelasensaçãodequeestavaaserobrigadaa

desistirdavida:doaquecimentocentraledatelevisãodeecrãplano;docréditoàhabitaçãoemquesópagavajuros,dasuabem-sucedidaprogressãodecarreira,doseunamoradoatraenteeemboaformafísica,etc.,etc.,blá,blá.Pareciaquetinha fracasso escrito na testa; que as caixas que estava a guardar deviam teretiquetasadizertodososmeussonhoseesperanças,encaixotadosearrumadosparasempre,enãolheapeteciasentar-senumacarrinhaafalarsobreisso.Iaguardaramaiorpartedascoisas:roupasembomestado(ganhariammofo,

por causa da humidade), livros (deformar-se-iam, não tinha sítio para oscolocar), joias (poderiam cair pelas fendas no chão), fotos e recordações(deixavam-nademasiadoinfelizparaencararoquequerquefossecomânimo).Levavaaroupamaisresistenteàágua,umacamae,emborafosseumaterrívelmarca da sua arrogância, o seu sofá de design caríssimo, em camadas docinzento-pálidomais suave.Acabaria por estragar-se,mas Polly escolhera-o –melhor,escolheram-nososdois,massobretudoela–eadorava-o,oseuconforto,o luxo que exalava. Não podia, de todo, sentar-se no sofá de verga castanho,húmidoeestragadoqueestavanacasaparaondeia.Nãofaziaideiadecomoiriatirardeláovelhoelevaronovo,masquandoláchegassehaveriadeencontrarumamaneira.Chris apareceu quando ela estava a fazer as malas; o simpático Mr. Bassi

também apareceu para se certificar de que ela não levaria nada que o bancopudessevender,masatéeleadeixoulevarosofá.– Livrarmo-nos disto vai ajudar – afirmouChris. – A casa fica arrumada e

minimalistaparasevender.Eaindabemquelevasosofá,emboraodevêssemosterdividido,claro.Pollycontinuouaembalarosdoisúltimosemaisvaliososobjetos:amáquina

decaféeasuagrandebatedeiraparapão.adoravafazerbolose,noúltimoano,fizera-ocomcadavezmaisfrequência,enquantoChrisdesapareciaaosfinsdesemana.Depois voltava para casa e queixava-se dos hidratos de carbono, porisso,eraelaqueacabavaporcomeramaiorpartedassuasexperiências.Fossecomo fosse, eram objetos que lhe pertenciam, e o Mr. Bassi, amavelmente,permitiu que os levasse. Não lhe custou tanto deixar para trás os enormescartazesemolduradosdeMuhammadAlieoestupidamentecarosistemadesomsurroundparaoqualChriscontaracomoseucontributomonetário,apesardopreço, de ter um volume demasiado elevado para o apartamento e de ter sidotema de sermões extremamente longos e entediantes sobre a miríade de

qualidadessemprequerecebiamumavisitanova.–Precisasdeajudaparaolevarparaacarrinha?Pollyanuiu,demasiadotristeecansadaparasequerpensaremsersarcástica.Levaram o sofá para o elevador em silêncio, ambos a pensar em anos

passados,quandooshomensdaempresadeentregaschegaramparaomontareChrisaprovocouporestar tãoentusiasmada,dadoserapenasumsofá.Depoisperguntouaoshomenssecomprariamumsofádeumacortãoaborrecidaeumdelesrespondeuquenão,emcasatinhaumdepelebranco.Chrisrematoucomum«Estásaver?Isso,sim,égiro».DepoisdeosofáestarseguronacarrinhaquePollyalugara,entreolharam-se,

semsaberoquedizer.OempenhodePollyemseromaisotimistaeanimadapossível abandonou-a subitamente. Estava a caminho, completamente sozinha,de um destino desconhecido, contra os conselhos de todas as pessoas queconhecia,edeixavaaúnicavidaqueconheceraduranteseteanos.Aenormidadedetudoaquilopesou-lhe.–Obrigada– conseguiu ela articular, tentandopensar emalgomenos banal,

menosinútildedizersobretudoporquehaviampassadojuntos.–Pol...–disseChris.–Hum?–Eu...Tusabes.–Não,nãosei–ripostouela,comocoraçãoacelerado.Nãosabiadaprofunda

tristezaqueelesentiaportudooquelhesacontecera;aeles,aosseussonhoseesperanças. Nunca falara sobre isso. Isolara-se de tal forma que ela ficarapreocupadacomele.Chrisolhouparaela,comosolhosazuispequenosqueelaoutroraacharatão

atraentes.Pollyfez-sededuraparanãochorar.–Bom,euestou–balbuciouele.Pollyinclinou-separaafrente.–Estásoquê,amor?–Oh,Pol,nãomeobrigues...–Achoqueteiriassentirmelhor.Pollymanteve-sefirme.Fez-seumlongosilêncio,porfimChrisdisse:–Desculpa.Portudo.Euseiquenãofoiculpatua.– Obrigada – respondeu ela. – Desculpa tu também. Desculpa não termos

conseguido que resultasse. Acho que nenhum de nós poderia ter-se esforçadomais.–Não–concordouChris,prendendo-lhefinalmenteoolhar.–Nãopodíamos.

Então,numgestoestranho,deramumapertodemão.

Aoafastar-sedasruasmovimentadasdePlymoutheaoentrarnasestradaslargasqueatravessavamosmontesSouthDowns,osolbrilhavanoespelhoretrovisorePollyesforçou-seporsentirqueavançavaemdireçãoaofuturo.–Vamosficarbem,sofá–afirmou,olhandoparatrás.–Oh,meuDeus–apercebeu-se–,soudaquelasmulheresquefalacomsofás.

Jápassavadahoradealmoçoquandofinalmentechegouàilha.Destavez,tevede esperar uma hora para a passagem abrir. Polly apercebeu-se de que teriaimpreterivelmentedeseorganizarcomoshorários;istoeradefactoumgrandeinconveniente.Enquantoesperava,mordiscouasanduíchequecomprarapelocaminho,numa

estaçãodeserviço.Eraintragável.SehaviacoisaquePollylevavamuitoasérioeraopão,eaquelenãoprestavaparanada.Enquantocomia,contemplouMountPolbearnepela janela.Viam-se luzesreconfortantessalpicadasaquieali,cujosreflexostremeluziamnaágua.Àqueladistâncianãoseviaqueascasasestavamalgodegradadas.Por fim, a passagem ficou desimpedida. Com muito cuidado e atenção,

consciente de que bastava a carrinha resvalar para ter uma morte marinha,atravessouevirouàesquerdaparaoparquedeestacionamentoatéàsuaportadafrentenovaemfolha–ou,maisprecisamente,asuaportalateral.Mudar-separaum sítio minúsculo deserto, no meio de nada, tinha uma vantagem: podiaestacionarondequisesse;nãohaviaparquímetros,nemsequerlinhaspintadasnaestrada. Procurou as chaves grandes que Lance lhe entregara aquando daassinatura do contrato (o aluguer acabara por ficar cerca de cincopencemaiscarodoqueodescontoquepedira;afinal,tinhadelhepermitiralgumorgulho)esaiu da carrinha. Alugara-a por vários dias – tempo suficiente para encontraralguémquecarregasseacamaláparacima,pensou–masparajá,levouapenasoessencial.Emboraaquiestivesseincluídaamáquinadecafé,levartudonãoeratarefafácil.Ao abrir a porta lateral, olhou para a loja mais abaixo, na Beach Street.

Arrepiava-a um bocadinho. Sabe-se lá que criaturasmalévolas se poderiam lá

esconder... Polly sacudiu-se. Era apenas uma padaria, apercebeu-se,reconhecendo um forno numa das silhuetas. Provavelmente fora à falênciaquandosetornaraevidenteque,nahierarquiadevilascosteirasencantadorasdosudoeste de Inglaterra que as pessoas queriam visitar enquanto comiam umfolhado de salsicha,Mount Polbearne ocupava possivelmente o lugar númerocincomil,easpessoastinhamdemasiadoreceioqueapassageminundasseparaficaremporalimuitotempo.Na primeira visita a ilha parecera-lhe triste, mesmo com a presença

revigorantedeKerensa.Masagora,debaixodoventohúmidodeumdiafriodeprimavera, sem ninguém por perto, parecia-lhe desolada. O mar, que Pollyesperara contemplar para descontrair e sentir-se reconfortada, estava cinzento,picadoerevolto,eapenasafaziasentir-segelada.Comumsuspiro,pousouossacos(eamáquinadecafé)nodegraudepedraquedavaparaaportademadeiradesbotada,equeoutroraforaverde,eprocurouachavepesada.Aportaabriu-se,aranger,evoltouimediatamenteabatercomoventoforte.Asuapilhadelivroscomeçavaabalançarameaçadoramente.Pollyempurrouamáquinadecaféparaseguraraportaevoltouàcarrinhapara irbuscarasuamalaeváriossacosdolixo pretos. Com trinta e dois anos, talvez fosse demasiado velha para aindacarregar coisas em sacos do lixo pretos. Provavelmente deveria ter já umconjunto de malas de viagem todas a condizer. NãoLouis Vuitton, nem algosemelhante, mas... Bom. Algo que fosse mais do que uma mala de rodinhasaparentemente desenhada para deslizar pelo corredor de um avião contra ostornozelos das pessoas. E ainda tinha um saco de desporto deChris.Não eramuitocomqueirembora.O resto eram caixas de objetos diversos, muito mais do que esperara. Já

começaraatirá-losdacarrinhaquandoouviuumchocalharatrásdela.Olhouemvolta,quasetropeçandonumacaixa,eviuqueapilhadelivrosquedeixarajuntoàportaforafustigadaporumarajadadeventoevoara,empurradapelaforçadovento.–AARGH! – gritou Polly.Guardara amaior parte dos livros,mas trouxera

alguns, muito específicos. Quando estava deprimida, queria conforto e umaleiturareconfortante,porisso,decidiraqueasuaatualsituaçãopediaumfestimdelivros.Assim,trouxeraoslivrosdecriança,ediçõespoeirentasdadécadade1980 que lera tantas vezes que as capas estavam a cair. Na parte interior dasobrecapa estava o seu nome e morada, cuidadosamente estampados: «PollyWaterford, 11 anos, 78 Elder Avenue, Plymouth, Inglaterra, Europa, mundo,sistemasolar,galáxia,universo.»

AliestavaAnneofGreenGables1.EWhatKatyDidatSchool.Vet inaSpindavacambalhotasalegrementepelacalçadaabaixo,juntamentecomTheDarkisRisingeDaddy-Long-Legs2,eMarianneDreams...– Nãooo! – gritou Polly, largando a caixa e correndo atrás deles a toda a

velocidade.Nãosuportariaperdê-los.Oslivrosdançavamnoarcinzento,comoqueaprovocá-la,edirigiam-separa

omurodoporto.PollyacelerouemdesesperoeconseguiuagarrarGoodWives3,masAlicenoPaísdasMaravilhasrodopioualegrementeporcimadomuroemdireçãoaovaziocinzentodooutrolado.–Oh–suspirouPolly,completamentedestroçada.–Oh!Os outros livros, felizmente, aterraram antes de chegarem ao mar, e Polly

agarrou-oseabraçou-oscomforça.Masdepoisdeixou-secairnaspedrasfriase,semseimportar,sentindoqueaquelaeraaúltimagotanumahorrívelsequênciadegotas,desatouachorar.Olivroforaumpresentedopai.Eleadorava-oquandoeracriançaelera-oa

Polly e explicara-lhe as partes que ela não percebia, e embora fosse de fracaqualidade,velhoefácildesubstituir,nãoera,porquepertencera-lhe.Quandoelemorreudeataquecardíaco, tinhaPollyvinteanos,elaficarafuriosa;comeleecomomundoque,nogeral,atratoucomoumaadultaquenãoprecisavadetantoapoiocomosefosseumacriança.Polly sentiu o nariz pingar e limpou-o no blusão, de tão transtornada e

inacessívelsesentia.Nãohavianinguémnumraiodequilómetros,ninguémquesepreocupassecomelaempelomenossessentaquilómetros,porisso,poucolheimportavaquemavisseouqueaspetotinha.Estavasozinha,infeliz,geladaeumpouco molhada, e perdera o livro do pai. De qualquer forma, como poderiafazer-seouviracimadovento?Oseuclamoracabouporserinterrompidoporumbarulhoquemalconseguia

ouviracimadasondasedotempo.Parecia,porestranhoqueparecesse,alguématossir.Pollyparou,engoliuemsecoepôs-seàescuta.Atossevoltou.Endireitou-se como uma flecha e espreitou em volta. Atrás dela, de pé no

muro à esquerda, viu, para seu pavor, cinco homens. Tinham chapéusimpermeáveisejardineirasamarelasberrantes.– Desculpe – chamou o primeiro numa cerrada pronúncia da Cornualha.

Avançavamdevagarepareciamembaraçados.Pollydeuumsalto.–Sim?–respondeu,comosenãotivessesidoapanhadanaruaachorarcomo

umacriançadedoisanos.–Istoéseu?

O primeiro homem, que tinha barba castanha, faces vermelhas e rugas emtorno dos olhos azuis, estendeu-lhe um exemplar de Alice no País dasMaravilhas.OlhouparaasmãosdePolly,queaindaagarravamosseusoutroslivros.Pollyfezumbreveenítidoaceno.–Sim...Sim,obrigada.Ohomemaproximou-se para lhe entregar o livro. Polly estendeu os braços.

Apercebeu-se imediatamente de que tinha uma grande mancha de ranho namangae,embaraçada,deixoucairosrestanteslivrosaochão.Todossedobraramemuníssonoparaosapanhar.–Lêmuito,nãolê?–comentouohomem.–Hum...Maisoumenos–conseguiuarticularPolly,comasfacesescarlates.–

Onde...– Caiu no nosso barco – adiantou o homem, e Polly virou a cabeça para

observarafiladebarcosdepescaquetilintavamnoporto.Estavampintadosdeverde e vermelho vivos, com redes amontoadas nas proas. Tinham um aspetolavado,rudimentar.Omaispróximochamava-seTrochilus.– Pensámos que fossem livros do céu, não foi, camaradas? Tipo um novo

conceitodebiblioteca.Osoutroshomensriramentredentesearrastaramospés.–É...–Pollytentourecompor-seenãoparecermuitoestranhaechorona.Os

seusoutroslivrosjáestavamtodosempilhados.–Estáótimo.Ohomemobservouatorredelivrosdeolhossemicerrados.–Euleiosobretudo...Bem,gostodelivrossobreguerras.– Alguma guerra específica? Ou as guerras em geral? – perguntou Polly,

genuinamente interessada. Ele era incrivelmente alto, mas com um rostoamável.–Bom,acho...Sobreguerrasóserve.–Empresto-lheesse–afirmouPolly,subitamente.Algoquelhepareceratão

preciosomerosmomentosantesdeelesaparecerem,àluzdasuaextraordináriaressurreição, tinhadeserpartilhado.–Vejasegosta.Nãofaladeguerras.Mastemxadrez–acrescentou,hesitante.Ohomemolhouparaolivro.– Muito bem, então levo-o – afirmou. – As noites conseguem ser muito

longas.–Acenouparaobarco.–Nãosabiaqueosbarcosdepescasaíamànoite–comentouPolly.Osoutroshomens,quecontinuavamarondareaouvir,riram.

–Voucontar-lheumsegredo–disseoprimeirohomem,impávidoesereno.–Nósgostamosdeapanharopeixeenquantodorme.–Asério?–replicouPolly,esquecendo-sedeserinfelizporumsegundo.Ohomemsorriu.– Quer dizer que costuma andar pela nossa vila a arremessar livros? –

perguntou.–Ah,não... – respondeuPolly,novamentedesconcertada.–Não.Acabeide

memudarparacá.–Porquê?–indagouomaisnovodoscincohomens,quetinhaasfacescor-de-

rosa,masocolegaalto,quedeveriaserocapitão,mandou-ocalar.– Então, bem-vinda aMount Polbearne – replicou. Os seus olhos seguiram

Pollyatéàcarrinhaeàtorredelivros.–Vocênão...VocêvaiparaacasaantigadeMistressManse?–Hum...Aqueladeesquina?–perguntouPolly.–Sim,essa.–Ocapitãoolhouparaacasa.–Essacasaestáassombrada–referiuorapazdasfacesrosadas.–Chiu–ordenouocomandante.–Nãosejasridículo.–Eunãoacreditonessascoisas–retorquiuPolly,comfirmeza.– Então ainda bem – afirmou o comandante. – Pelo menos para si. Os

fantasmas nunca aparecem se fingir que não acredita neles. Olá. Chamo-meTarnie.–Polly–respondeuela,limpandoorostocomtodaaforça.– Bom, obrigado pelo livro – agradeceu Tarnie. Olhou para a carrinha

estacionadadooutroladodaestrada,comosofáclaramentevisívelasairpelatraseira.–Podemosajudá-la,paralheagradecer?–Não,não,euestoubem–apressou-searesponderPolly.–Vailevarosofáláparacimasozinha?–Ah,osofá–retorquiuPolly.–Pois...Aindanão...–Vamos,pessoal.Com determinação, os homens tiraram o sofá da carrinha e, entre algum

praguejar e incómodo, lá conseguiram carregá-lo, e ainda à cama, para oprimeiroandar.Tarniesoltouumassobioabafadoaoobservaroespaço.–Vaiviveraqui?–questionou.Parecia, se éque erapossível, aindapiordoque antes.Haviapópor toda a

parte,travesaranger,telhasamexerem-seaquieali.–Étemporário–disserapidamentePolly,nãoquerendoterdeexplicartodaa

suavida.–Láissoéverdade–comentouumdoshomens,queTarnieapresentoucomo

Jayden,etodossoltaramumagargalhada.Pollyolhouemvolta.–Achoque...Bom,comalgumtrabalho...–Eumbuldózer.–Jáchega,Jayden–admoestouTarnieeocolegacalou-seimediatamente.Pollyolhouemvolta.–Adoravapoderoferecer-vosumchá...Oshomensfizeramumaexpressãodeesperança.–Masnemsequerseisetenhoágua.–Etemmuitoquelimpar–rematouTarnie.Ouviu-seumarosnadelacoletiva.–Válá.–Possoiràcasadebanho?–pediuumdeles.–Claro–dissePolly.–Oi,nãováporaí–alertouTarnie.Pollyficouconfusa.–Depoisdoprimeiro,

todosvãoquererir–explicou.–Nãomeimporto,asério–afirmouPolly.–Équenósnãotemos.PollypestanejoueTarniesentiu-sealgoenvergonhado.–Então,atéàpróxima–despediu-seele,erguendoolivro.–Obrigada–afirmouPolly.–Muitoobrigada...pormodevolverem,porme

ajudareme...– De nada – rematou Tarnie, ligeiramente corado. – Não suporto ver uma

senhoraemapuros.Umdospescadoresmais jovens fezumruídode«uuu»eocapitãovirou-se

bruscamenteelançou-lheumolharferoz.–Certo,pessoal.RUA!

Depoisdeospescadoressaírem,Pollylevouparacimaosúltimossacos.Tirouos lençóis, tapou o sofá com eles e depois inspecionou a enorme caixa deprodutos de limpeza industrial que Kerensa lhe oferecera como presente dedespedida.– Usa-os durante quarentaminutos – admoestara, com espalhafato – e vais

percebercomoprofundamentehorríveléatuavidaagora.Então,vaisdarmeiavoltaevoltasdiretamenteparacasa.Pollysorriu,verificouse tinhaágua–corria, felizmente,eacaldeirafezum

sibilo muito reconfortante quando abriu a torneira da água quente – e deu-secontadeque,apósalongaviagemeasuachoradeira,estavaamorrerdefome.Primeiro,iacomerqualquercoisa,depoisentãoatirava-seaosdetergentes.Seriacomochegaràpraia,pensou.Sóqueinúmerasvezespior.

Otemponãomelhorara,porisso,Pollyvestiuoseucasacomaisgrossoepôsumchapéu. Precisava desesperadamente de um café, embora o facto de ospescadoresateremajudadoativessefeitosentir-semenosgeladapordentro.Seguiu pela rua empedrada que subia e serpenteava até ao que seria,

supostamente,aruaprincipal.Haviaumpequenoquiosquequetambémvendiaredes, baldes e pás para apanhar camarão, tudo com um aspeto poeirento eabandonado;umbarcomumarededepescapenduradacáforaeumaesplanadaajardinada;umtalho,umamerceariaeumalojadeferramentas.Juntoaoportoestava uma carrinha com uma placa indicando que vendia peixe fresco, masestavafechada;eumapequenalojadeconveniênciaquepareciavenderdetudo.Pollyentrouparacomprar leitepara juntaraocaféesopa,paramais tarde.Naporta ao lado ficavaumapadaria, comalguns bolos impossíveis de identificarcomaspetopegajosonamontraeumbolodecasamentocheiodepóquePollynãoficouconvencidadequeseriaverdadeiro.Encorajadapelosprimeiroshabitanteslocaisqueconhecera,decidiuaventurar-

seeentrar.Afinaldecontas,seeraaquiquepassariaacomprarpão...Polly era muito minuciosa relativamente ao pão. Adorava pão. Adorara-o

quando estava namoda e continuara a adorá-lo quando passara demoda; emcriançaeemadulta.Eraasuapartepreferidadeiraumrestaurante.Adorava-otorradoounatural;adoravabagels,tostadequeijo,pãodemeleosentrelaçadositalianos.Adoravafermentodepadeiroartesanal,quecustavaseislibrasparaumpãominúsculo,eadoravapãobrancofatiadoquemoldavaeabsorviaossucosdeumasanduíchedebacon.Começara a fazer o seu próprio pão na universidade, o que se tornara um

passatempo quando ela e Chris compraram o apartamento; Polly passava ossábadosaamassá-loeapuxá-lo,deixando-oalevedar.Atéqueumdia,háumano,porquestõesdesaúde,Chrisdecidiradeixardecomerpão;eraalérgicoao

glúten. Dado que o ingeria há trinta e quatro anos sem quaisquer efeitosnegativos,pareciaaltamente improvável,masPollymorderaa línguaedeixaradefazerpão.Mas agora, o que iria comer? Um bom pão tradicional... Mas o que era

tradicional?,perguntou-se.Talvezumsconedequeijo?– Olá – cumprimentou, jovial. Sempre sentira uma enorme afinidade com

padeiros. Pelo seu esforço madrugada dentro; pela levedura quente de cheirointenso;poralimentaremosfamintos.Semprelhepareceraumaprofissãonobre.QuandohaviamidodefériasaFrança,quaselevaraChrisàloucuraporquererentraremtodasasboulangeries,damesmaformaqueelequiseravisitartodasasvinhas;sentiradiferençaentreosvárioscereaiseasespecialidadeslocais.AtrásdobalcãoPollyviuumamulherincrivelmenteparecidacomosprodutos

quevendia.SePollysesentissemenosdeslocadaeestranha, talvez lhe tivesseachado graça. A mulher parecia um pão. Era completamente redonda no seuaventalbrancosalpicadodefarinha.Orostotambémeraperfeitamenteredondo,com dobras de pele sobre a rede do cabelo e bochechas descaídas cheias demassa. O cabelo –muito comprido e commadeixas cinzentas – estava presoatrásnumcarrapito.Parecianadamaisnadamenosdoqueumenormebrioche.Pollysentiu-seinclinadaasimpatizarcomela.–Oquedeseja?–perguntouamulherbruscamente,comumardeenfadoe

olhandoderelanceparaoseurelógiodepulso.–Dê-meumsegundo–respondeuPolly.–Sounovacá.Oquetem?Amulher revirou os olhos e limitou-se a acenar para a parede, onde estava

uma lista escrita àmãoa letrasgarrafais:pãode forma,pãode forma fatiado,folhado,tostadequeijo,tostadefiambre,tostamista,tostamistacomananás–hum,queexótico,pensouPolly–bolosfantasia,bolosparachá,bolosgalesesescones.Aparentemente,haviaapenasumtipodepão.Nãohavia,agoraquePollypensavanisso,umcheiroapãocozidonoar,antesumaligeiraauradebafioeamidoquetalvezatéemanassedamulher.–Hum,umatosta,porfavor–pediuPolly.Parecia-lhequecomeraasanduíche

daestaçãodeserviçoháumaeternidade.Olhouemvolta.Nãohavialugarparasentarecomere,àexceçãodealgumas lataspoeirentasdeFanta, tambémnãohavianadaparabeber.Amulherresmoneoucomoseaquelafosseumatarefapenosaerosnou:–Dequeijo,mistaoumistacomananás?– Hum, a última, por favor – respondeu Polly, perguntando-se se,

inadvertidamente,teriafeitoalgoofensivo.Masassanduícheerambaratas.

Amulhersoltouumlongosuspiroeviroucostas.–Tenhodeaqueceratostadeira.Polly deitou-lhe o olho. Estava escurecida e parecia imunda. Começava a

arrepender-se de toda aquela aventura. Os amáveis pescadores haviam-nadeixado otimista, por efémeros momentos, quanto ao seu novo lar, mas istoestavaadesanimá-lanovamente.Olhouemvoltaembaraçada.Osarmáriosbemprecisavamdeumalimpeza.A

mulherarrastouoseuenormevolumeatéumdeleseretirouumasanduíchepré-preparada com ar empapado e atirou-a para a tostadeira. Polly mudouimediatamentedeideiasquantoàfomequetinha.–Sabe,acabeidememudarparacá–disse,animada,tentandofazeromelhor

que conseguia.Umaatitudemental positiva, eradissoqueprecisava. –Parecebastanteagradável!EuviviaemPlymouth.Amulherfixou-acomarrude.–Certo.Entãoestáaquiparafazersubirospreçosdaspropriedadesmantendo

oslocaisàdistância?–Não!–replicouPolly,surpreendida.–Nãoénadadisso.Estou...afazeruma

pausa.Estavaaexperimentarusarestafrasecomaspessoasequasetodaspercebiam

oquequeriadizer,semfazeremmuitasmaisperguntas.–Depoisvoucomeçaraprocuraremprego.Amulherfungoueverificouatostadeira.– Aqui não vai encontrar. Não há nada para fazer. Nós não somos uma

daquelasterrinhasamorosas,sabe.Estamoscápelagentedanossaterra.Pollyarqueouassobrancelhas,maslimitou-seapegarnasanduíche,pagoue

despediu-se.Amulhersórespondeuquandoelajáestavajuntoàporta.–Mastemdinheiroparapagararenda?Pollyvirou-se,surpreendida.–EusouMistressManse–apresentou-seamulher,mal-disposta.–Souasua

senhoria.

Pollypegounasanduícheecaminhouatéaooutro ladodoporto, longedasuacasaedosbarcosemaispertodopassadiço.Oventoaindasoprava,masomuroabrigava-a.Nãoseviaquaseninguém.Àdireita,viuumbarcodepescaquesaíaruidosamente para o mar, com fumo preto espesso a elevar-se da pequena

chaminéeumapinceladadejardineirasamarelasvisíveisàproa.Pollytrincouasanduíche. Era demá qualidade, um pão horrível, queijo de plástico e ananásenlatado.Masreconfortou-a.MistressMansenadamaisdissera,mastambémnãoprecisava,refletiuPolly,

sorumbática.Aqueleavisoglaciarforasuficiente.Pollycontemplouomar,puxandoocasacoparasemanterquente.Precisava

de um plano. Muito bem, pensamento positivo. Iria ser difícil encontrar umempregoqueexigisseestarnocontinentetodososdiasàmesmahora,porcausadas marés. Sim, toda a gente lhe dissera e ela optara por ignorar os avisos,haveriadeencontrarumasolução.Olhando para trás, apercebeu-se de que até se imaginara a viver num lugar

como aquele – sabia de contabilidade, tinha experiência emmarketing, talvezumadvogadolocaloualguémdogéneroacontratasseatéelaseorganizar.Masagoraqueviraavila,essecenárioparecia-lheumpoucomenosprovável.OK,muitomenosprovável.Tinhadeserrealista.Talvezse tivessedeixadolevarpela ideiaromânticade

viver uma ilha condicionada pelas marés. Mas era temporário. Haveria dearranjarempregonocontinenteemudar-se-ianovamente.Claroquesim.Atélá,a paz e tranquilidade ajudá-la-iam a recuperar. Era esse o plano, lembras-te,Polly?Abrandar,descontrair.Respiraroarsalgadodomar.Entrarempâniconãoajudariaemnada.Terminouoalmoçoedeuorestoaomar–àsgaivotas,queseprecipitaramem

voopicadosobreopão.Muito bem. Iria viver um dia de cada vez.Houvera um tempo que pensara

muitonofuturo,eveja-seondeissoalevou.Todososseusplanosprofissionaisedevidaresultaramemnada.Nuncasesabeoqueestáparaládapróximaporta.Massabiaoqueestavaparaládasuanovaportadafrente–umaporcariaqueprecisavadeumalimpezaurgente.

PollysorriuaoverqueKerensacolocaraumasluvasdeborrachasridículascompelo falso nos pulsos na caixa, bem como uma garrafinha de gim tónico jápronto com um papelinho enrolado no gargalo que dizia «Bebe-me». Pollyatirou-se ao trabalho com vontade, esfregando exaustivamente os horríveismóveisvelhosdakitchenetteepraguejando.Aquelamulherpodiaaomenoster-lhescolocadoumrevestimentolaminado!

A casa de banho tinha louça branca encardida, que atacou com potentesprodutos de remoção de manchas, sentindo-se culpada. Ao menos tinhabanheira.Umdosapartamentosqueviratinhaumchuveirocomumacamaporcima.Quandoseestánaslonas,avidaresume-seaviverosnossosprazeresondeosconseguimosencontrar.Ochãodapequenacasadebanho,comumestendaldetetoparasecarroupa,

era de linóleo velho rachado e imundo, mas três demãos de esfregadelasdeixaramverumpadrãopretoebrancoperfeitamenteaceitável,eovidrofosco,depoisdelimpo,deixavaentraralgumadaluzdatarde.Oquartoerapequeno,mas sossegado, e também aqui Polly esfregou a janela, retirando as redes epraguejandoquandopercebeuquenãotinhamáquinadelavarroupa.Os seus pais não eram propriamente abastados – na verdade, mesmo que

quisesse,nãopoderiatervoltadoparacasadamãe,umavezqueestaviviadeumbaixíssimorendimentofixonumapartamentodeumquartonumbairrosocialdeRochester –masPolly nuncavivera, nem sequer quando estudava, numa casaondenãohaviamáquinadelavarroupa.Não vou chorar, disse para si mesma, perguntando-se se Mr. Bassi e Mr.

GardnerjáseteriamlivradodasuaBoschinteligente.Acumuloaroupaeheideencontrar uma lavandaria, como fazem muitas pessoas. Todos os dias. Possofingir que estou na série EastEnders ou algo parecido. Vai ser fantástico.FANTÁSTICO.Passou então à divisão principal, sentindo cada vez mais calor devido ao

exercício–oqueerabom–eaoinclinar-senumânguloextremamenteperigosoparalavarasimundasjanelasdafrentemanchadasdesal,reparouqueasnuvensabrandavameachuvacaíanumafaixademar,lálonge,comoquenumcaminhopessoal.Contemplouasuanovapaisagemeperguntou-se:águaspicadas?Marescalmos?FerveuáguanachaleiraaolumeeencheuasuacanecadeScrabblepreferida.

Custara-lhe sete libras. De repente, parecia-lhe um preço ridículo a pagar porumacaneca.Teriasequernotado?Asuavidamudaraassimtanto?Iria receberumapequenaquantiasemanaldoscobradores,por isso,nãomorreriaàfome–muito pequena, pouco acima dos subsídios – e talvez conseguissem ganharalgumdinheiro como apartamento depois de pagarema toda a gente.Talvez.Provavelmentenemvaleriaapenacontarcomele.NosúltimosmesesChrisnemsequer a deixara ver as contas. Fora um choque, perceber como as coisasestavam realmente mal. Deveria ter insistido. Enfim, deveria ter feito muitascoisas.

Polly arrastou um cadeirão antiquado que encontrara no quarto – estavahúmidoevelho,forradocomumtecidoturquesa,masnãoeradetãomaugostocomo o restante escasso recheio – e colocou-o junto às janelas da frente, queestavamabertasparasecarem.Então,sentou-seeapoiouaspernasnoparapeitodajanela.Nessaposiçãonãovianadaexcetomarecéu;sentiu-sequaseavoar.Bebericouoseucafé, respirandooarsalgadoeobservandoasondas, tentandofazercoincidirarespiraçãocomoseuenrolar.Embreveestavamergulhadanomaisprofundoetranquilosonoqueconheciaemváriosmeses.

1AnaeaSuaAldeia,deLucyM.Montgomery,naediçãode1972,daLivr.Civilização.(N.daT.)

2OPapádasPernasAltas,deJeanWebster,naediçãode1961daLivr.Civilização.(N.daT.)

3AnosFelizesouBoasEsposas,deLouisaMayAlcott.(N.daT.)

CapítuloSeisUmaatitudepositiva,viriaPollyadescobrir,erabastantemaisfácildefingiràscincodatardedoquenasprimeirashorasdamanhã.Acordara,gelada,ejánãoconseguia voltar a adormecer, para impedir que os pensamentos negativosvoltassemaassaltá-la.Eacasaerafria.Alémdasalamandra,quenãosabiadetodoutilizar,tinhaum

fogão preto com aspeto extremamente perigoso, por isso, ligava-o e depois,estupidamente,iaverificarocontadorque,naturalmenterodavaàvelocidadedaluz.Vestiaumasweatshirtpor cima do pijama, arrependida de ter arrumadooroupão–queraiodeideiaforaaquela?–eaconchegava-sedebaixodoedredãorespirávelelevequeforaoutroraidealparaumapartamentopequeno,modernoecomaquecimentocentral,masquenãoera,deformaalguma,adequadoparaali. O vento assobiava por entre os buracos que restavam no telhado e Pollyouviaasondasabaternosseixosláembaixo.Lembrou-se,saudosa,doedredãobrancomacio que usava para as visitas ou, cada vezmais, nas noites em quedormiamseparadosporqueChrisnãoparavadedarvoltasnacama.Os ruídos estranhos eram desconcertantes. Polly acabou por adormecer e

sonhou que caíra por um buraco e que tinha água pela cintura; e estava a serpuxadaparadebaixodeágua.Atéque, subitamente,ouviuumapancadaeumgrito.Completamentedesorientada,sentou-sedeumsalto,comocoraçãoabater

forte no peito. Onde estava? O que era aquilo? Onde estava Chris? Ai não,alguémentraraemcasa.Correraanotíciadamulhersozinhaquechegaraàvilaequevivianumacasaquenãoera,nemdepertonemde longe, segura.Eraumgrupoarmado.Eraumlugarirrealondesacrificavampessoas.Era...Aospoucos,Pollyrecompôs-seosuficienteparaconsultarorelógio.Aovê-lo,

praguejou:2h30,emplenanoite.Acasaestavageladaeescuracomobreu:asluzesdoportoeramescassaseespaçadase,paraládisso,eraaescuridãototal.Derepente,umaluzintensainundouacasaporbaixodaportadoquartoePollyquasegritouantesdeperceberquedeveriaserofeixeluminosodofarolaentrarpelas janelas da frente. Apercebeu-se de que estava a tremer e aconchegou oedredãojuntoaocorpo.Aindanãotinhaluznamesinhadecabeceira.Teriadeatravessaroquartoàsapalpadelas,noescuro.Outalvezesperarqueofeixedofarolvoltasseapassar.Prestouatenção,masnãoouviunada.Deviatersidoumpesadelo,maisnada,algoavercomofarol...Destavezogritopareceuaindamaispróximo.–Bolas,bolas,bolas,bolas–dissePollyparasimesma,combatendoodesejo

de enfiar a cabeça debaixo do edredão. O coração parecia querer sair-lhe dopeito. Ocorreu-lhe que seria improvável que um gangue de habitantes locais,sedentos de sangue e a brandir forquilhas, estivesse a gritar-lhe, mas essepensamento não ajudou. O que haviam dito os pescadores sobre fantasmas,mesmo?–Ol...Olá–chamouamedo,noescuro.Ouviu-seumaespéciedequeixume.Oh, Deus. Talvez tenha havido um acidente lá fora. Talvez alguém – uma

criança?–tivessesidoprojetadodeumcarro.Agarrandootelefone,esperouqueo farol projetasse o seu feixe sobre ela novamente e atravessou o quarto empasso rápido até ao interruptor da eletricidade.Ao ligá-lo, sentiu-seumpoucomaiscalma,massóatéouvirogritoseguinte.– Já vou, já vou – afirmou, vestindomais uma camisola de lã. Porque não

trouxe uma lanterna? Porque quantomais pensava nisso,mais certa estava dequeobarulhovinhadoandardebaixo.Dalojaescura,poeirentaeabandonada.Perguntou-se onde seria a entrada e então lembrou-se de uma porta que davaparaforadasescadas.Masdeviaestartrancada...Talvezdevesseligaràpolícia.Sim,eraissoqueiriafazer.O grito que se ouviu foi tão solitário e desolado que Polly se encheu de

coragemedesceuasescadasatéàporta.Lancedera-lheumenormemolhodechaves – quando lhe perguntara porque precisaria de tantas, ele encolhera osombrosedisseraquenãosabia,eraapenasestagiário–eelaremexeu-lhespelo

caminho.A segunda fechadura funcionou, obviamente. Polly abanou a porta velha

deformadaeabriu-a.Deixou-abalançarparaadivisãodooutrolado,sustendoarespiração.Estavaatremer.–Estáaíalguém?Nãoobteveresposta,masnotoumovimento.– Está aí alguém? – insistiu. Olhou para a direita. Entrava luz por um dos

vidros partidos da porta da loja. Enquanto deixava os olhos adaptarem-se aoescuro, ocorreu-lhe que poderia ser um gato ou um cão – ou um troll ou umzombie,acrescentouoseusubconsciente.Mandouoseusubconscientecalar-se.–Estáaíalguém?Pollysóesperavaquenãofosseumanimalquemordesse.Poroutrolado,não

podiaesperarpelapolícia–provavelmentenãohaveriaumaesquadraporperto–casosetratassedeumanimalasofrer.Respiroufundoeentrou.Havianoarumcheirointensoahumidadeeapódeumespaçonegligenciado,

ePollydistinguiugrandessilhuetas,quedeveriamserbalcõese,nocanto,fornosenormes.Ouviuumaespéciedefungar,masosgritoshaviamparado.– Está tudo bem, está tudo bem – disse, espreitando à volta das silhuetas,

aterrada com o que poderia encontrar. – Sou só eu – acrescentou, o que eraobviamenteumacoisaestúpidadesedizernaquelascircunstâncias.Sefosseumaaranha gigante com uma ninhada de aranhas bebés, por exemplo, iria pisá-lastodas,porisso,sersóeunãoserviapropriamentedenada.Finalmente, junto à parte da frente, atrás de um armário de vidro, sentiu o

fungarcadavezmaisperto.Sustevearespiraçãoeagachou-se.–Oh–exclamou.–Oh,meuDeus.No canto, no chão, estava um pássaro minúsculo com plumagem preta e

branca e umenormebico amarelo e laranja.QuandoPolly se ajoelhou ao seulado, soltou outro guincho avassalador. Era um barulho gigantesco para umanimaltãopequeno.– O que te aconteceu? – perguntou Polly. Sentia o corpinho do pássaro a

tremeretentouestenderosbraçosdaformamenosameaçadorapossível–Chiu,chiu.Graçasàluzquevinhadarua,percebeuqueaasadopássaroestavatorcida.

Pareciapartida.Pollyperguntou-seoqueteriaacontecidoeentãopercebeuqueprovavelmenteteriabatidonovidro,noescuro,eestedeveriasertãofracoquepartiu.Eomaiscertoerateruminchaçofeionacabeça,pobrezinho.–Andacá.

Opássarotentoubaterasasasparafugir,masgrasnouimediatamentededoreparou. Sempre a fazer sons tranquilizantes, Polly pegou no animalzinho comcuidado. Por instantes, temeu provocar-lhe um ataque cardíaco; sentia o seucoraçãoabateraumavelocidadeincrível.–Estátudobem,pronto,pronto–reconfortouela.–Sabes,euestavabemmais

assustadadoquetu.Olhouparaoanimalzinho.–Pronto,talveznãotãoassustadacomotu,masandeiláperto.Pollyolhouparaa janela.Teriadeesperar.Demanhã, tapá-la-iacomcartão,

ouentãochamariaaagênciaimobiliária.Eficoualiviadapornãoterchamadoapolícia.Explicarquetinhaumpássaroferidonasmãosnãoteriacorridobem.–Bom–disse ela aolharpara ele–não seimuito sobrepapagaios-do-mar,

aliás,nãoseinada.Nemsequerfaziaideiadequevocêsvoavam–masachoqueémelhorviresláparacimacomigo.

Comparado com a loja deserta fantasmagórica, o andar de cima, com luzesreluzentes e o seu sofá e a sua cama, parecia quase acolhedor. Polly ligou achaleira, por hábito, sem sentir qualquer vestígio de sono, e tapou a janela dafrente com um lençol para bloquear a luz do farol. Depois, embrulhou opapagaio-do-marnumatoalha–aspenaseramdensasemacias;deviaseraindabebé –, pegou no telefone e procurou na Internet «como curar uma asa depássaropartida».Omotordebuscarsugeriu-lhegaze,masdadoqueapenastinhafitagomadaqueusaranamudança, teriade servir.Opássarodeixoude tentarbaterasasasparaselibertareolhouparaelacomosseusintensosolhospretos.Pollycolou-lheaasaaocorpocomfitagomadaerecortouorifíciosnumdos

caixotes,paraelerespirar.–Cama–explicouela.–Éumacamaparati.Ositesugeriucomidadegato,queelatambémnãotinha,mastinhaumalata

de atum, para emergências, no caixote demantimentos. Colocou um pequenopratodeatumeumataçadeáguaàfrentedopássaro,quetentoubambolear-separaosexaminar,mastomboudeimediato.Polly endireitou-o commuito cuidado. Ele olhou para os dois pratos, olhou

paraelacommedo–eladeuporsiadizer«Ébom,podescomer»–ecomeçouadebicar o peixe. Polly sorriu ao vê-lo comer, em parte aliviada por todas ascoisas horríveis que poderiam ter acontecido em plena noite mas não

aconteceram.–Muitobem–afirmouela,quandoopássaropareceucansar-sedacomida.–

Suponhoquevaisseromeucolegadequartoestanoite.Demanhãlevá-lo-iaaoveterinário–deveriahaverumsítioquetratassedestas

coisas –maspor agora, iria tentar pô-lona caixa.Colocou a toalhapor baixodele – «Basicamente, passarinho» – disse-lhe ela –, «estás a usar uma fralda,certo?Enadadesaltarparaomeusofá.»–eacaixaporcima.Estavaàesperaque ele reclamasse, mas não; poderia pensar que era algo parecido com umarede.Agitou-seumpoucoedepoissossegou.Polly voltou para a cama e tapou-se com o edredão dobrado e as restantes

toalhas por cima. Para sua surpresa, adormeceu imediatamente e só semexeuquando as gaivotas começaramagritar ao regressodosbarcosdepescanumamanhãdeabrillimpaesoalheira.

CapítuloSete–Oladobom–afirmouPollynamanhãseguinteenquantoopequenopássarodebicadaosrestosdoatum–équenãovouafeiçoar-memuitoatinemvoudar-teumnome.Opapagaio-do-martentoucambalearnovamente,mastombou.Pollyajudou-o

alevantar-se.–Não interessa se te achasmuitoengraçado–explicou.Opapagaio-do-mar

soltouumlevegrasnido.–Eusei.Quandoestiveresmelhor,eusolto-teepodesvoar para longe e ir ter com a tua mãe e o teu pai, está bem? Palavra deescuteira.Pollysuspirou.– Vou confessar-te uma coisa, papagaio-do-mar. Falar com um pássaro é,

definitivamente,melhordoquefalarcomumsofá.Ao beber o seu café, observou os homens a descarregar o peixe no porto.

Havia pessoas à volta das caixas a olhar, a acotovelar-se e a empurrar, e umhomemjámontaraumapequenabancaeestavaaamanharopeixeeavenderalguns saídos diretamente de um barco. Polly observou-o, fascinada. Era tãorápido com a faca que era quase impossível seguir-lhe os dedos; abria eamanhavaopeixenumápice.Viam-seváriascarrinhasparadascomosnomesderestaurantesdepeixefamososdaCornualha.Entãoeraassimquefaziam,pensou

Polly.Talvezdevesse iraté láecompraralgumpeixe;maisfresconãodeveriaencontrar,certamente.Etalvezopapagaio-do-martambémquisessealgum...Os homens que saíam dos barcos pareciam cansados. Deve ser uma noite

longa, pensou, dando-se conta de que nunca pensara sobre a vida dospescadores.Tambémestavacansada.Foiarrumarumdoscaixotesdealimentosque trouxera. Esvaziara as prateleiras da despensa da casa em Plymouth. Emtempos idos, não se teria dado ao trabalho de guardar uma embalagem de salquasevaziaedoispequenospacotesdefermento.

O forno estava tão sujo que se tornara preto –Polly suspirou e,mentalmente,atribuiu a si própria mais duas horas de trabalho árduo – e era um modeloantiquadoqueseacendiacomumfósforocompridoeumamãofirmeatéseatearachamalábematrás.Paraatranquilizar,ogássibilou,assustandoopapagaio-do-mar, que estivera a tentar caminhar com a asa enfaixada, as suas garras abaternastábuasdemadeiradochão.Pollyolhouparaele.–Sabesquemais?–afirmou–Éissomesmo,voulevar-teaoveterinário.Opássaroinclinouacabeça.–Desculpa–respondeuela.–Eunãodisseveterinário.Ligouachaleiraparaaqueceráguaparaofermentoearrastouamesadejunto

dachaminéparaakitchenette,para,pelomenos, ficarcoma ilusãode terumabancadadetrabalho.Espalhoufarinhapelasuperfícierecém-limpa.Opapagaio-do-maresforçou-separaveroqueelaestavaafazer,tentando,emvão,saltar.–Nempenses–retorquiuPolly.–Tuestásenlameadoeeunãoqueropegadas

nafarinha.Opássarosoltouumgritinhoeelacedeuepegounele,deixandocorrerágua

comsabãosuficienteno lava-louçapara lhe taparaspatas.Elegostoumuitoedesatou a bater nas bolhas e a emitir sons de satisfação. Polly ligou o rádio etambémissopareceuagradar-lhe.–Isso,brinca–disse-lheela,epegounamassadopãocomasmãos.Estava

espessa,oquenãoerabom–quantomaisespessafosseamassa,maisleveseriaopão–maserademasiadoparaapodertrabalhar,porissovoltouapolvilharabancada com farinha. Então, começou a amassar. Empurrava-a e batia-lhe,puxavaamassaedepoisvoltavaaenrolá-la.Enquanto isso, descobriu que algo estranho estava a acontecer. Primeiro,

passou na rádio uma canção que adorava:Get Lucky. Tendo em conta que,

naquele momento, sentia que precisava de muita sorte, achou perfeito eaumentouovolumedorádioparaumnívelincrivelmentealto.Erafoleira,masnão queria saber; sentia-se bem sempre que a ouvia. Depois, pelas janelas dafrente recém-limpas, viu o sol de primavera a refletir nas ondas.Umcorajosobarquinhoàvela, coma suavelabranca a agitar-se aovento, estava a sair doporto.Àsuaesquerdaouviaopapagaio-do-marachapinharalegrementenasuapequenapiscina.Derepente,Pollysentiuqualquercoisa.Aoamassaropão,eracomoseuma

energia estivesse a sair do seu corpo.Umamáenergia.Nemse aperceberadecomoosseusombrosestavamaltos,datensãoacumuladanosnódulosatrásdopescoço.Provavelmentearquearaosombrosemdireçãoàsorelhas.Hámesesquenãotinhaninguémquelhecolocasseamãonopescoço,quelhe

dissesse «pronto, pronto, pareces tão stressada». Passara tanto tempo a tentarcuidardeChris, a tentarmanter as aparênciasparao restodomundo, a tentarnãosuscitarapenadeKerensaedosoutrosamigos,queacumularatodasassuaspreocupaçõesnoseuíntimo.Estendeuosbraçosvoluptuosamenteeapercebeu-se, seguindo como olhar o barquinho da vela branca que balançava pelomarfora,dequepassaramuitotempodesdeaúltimavezemqueseconcentraraemqualquercoisaquenãoumecrãdecomputador.E, como se começar a desprender os músculos dos ombros tivesse soltado

outracoisa, sentiuuma lágrimaabaternapontadonariz;umagrande lágrimasalgadaquecaiudiretamentenamassa.Masnãoeramaslágrimasdefrustraçãoe raiva do dia anterior no porto, quando se revoltou contra o mundo e a suaterrívelinjustiça.Estaseramlágrimascatárticas;Pollynãoconseguiacontê-las,mas elas também não a transtornavam. Deixou-as cair, não as podia limparmesmoquequisesse,comasmãoscheiasdemassa,etentou,porumavez,viveromomento, sem se arrepender da forma como as coisas haviam corrido, sementrarnumpânicodescontrolado relativamenteao futuro,esempensarnoquepoderiaterfeitodediferente,ouditoaChris,outrabalhadoouplanado.Não,emvezdisso, ficou a ouvir o rádio, que entretantomudarapara outra canção popqueadorava,abateramassaeasenti-lamudaremoldar-sesobosseusdedosenquantoosolcintilavanomaragoravazio.

Lá fora não estava tão quente como o sol sugeria; um vento agreste salgadoaindasopravaatravésdavila.Pollydeixouamassaalevedarnumlocalbanhado

pelo sol, lavou-se e saiu com o papagaio-do-mar, algo rabugento, debaixo dobraçoàprocuradeumveterinário.Amulherdamerceariaondecompraraoleiteeasopaera,felizmente,bastantemaiseducadadoqueadapadaria,eindicou-lheumpequenoconsultórioquepareciaserpartilhadocomomédico.Quandoláchegou, Polly teve um momento de pânico ao ver quanto lhe iria custar; jáouviradizerqueosveterinárioseramcaros.Masnãotinhagrandealternativa.Oveterinárioestavaatarefado,masergueuacabeçadocomputadorquandoela

entroucomacaixa.–Hum–comentou–,elesofreuumacidente.O veterinário, que se chamava Patrick, e que, secretamente, odiava gatos,

olhou para cima e pôs os óculos. Depois olhou para amulher que trouxera acaixa. Tinha um ar cansado, mas era bonita. O cabelo louro-avermelhado esedosocaía-lhepelosombros,osolhostinhamumatonalidadeverdeinvulgareos lábios estavam, naquele momento, a ser nervosamente mordidos, mas porbaixodaquilotudo,pareciahaveralguresporaliumsorrisoagradável.–Estádepassagem?–perguntou.–Não.Sim.Não–respondeuamulher.–Nãotemacerteza?– Não. Sim. Quer dizer... – Polly sentiu-se desorientada. Estava a dar em

doida,disseasimesma;ultimamentefalaracompoucaspessoas.–Querdizer,alugueiumacasaaqui.Temporariamente.Patrickfranziuosobrolho.–Porquê?Pollysentiu-seirritada.Nãoiriadizer,comcerteza,«Porquesótenhodinheiro

paraisso,obrigada».–Qualéoproblema?–retorquiu.–Nenhum,nenhum–suspirouPatrick.–Équeamaiorpartedaspessoasque

cávemprefereRockouStIves;sabe,sítiosdessegénero.–Maseunãosouamaiorpartedaspessoas–replicouPolly.–Estouaverquenão–afirmouPatrick,deitandooolharàcaixa.–Sabequeéumaavemarinha.–Asério?–respondeuPolly.–Eeuapensarqueeraumarmadilho.Patricksorriucontrariado.– É que normalmente... Quer dizer, por aqui não temos escassez de aves

marinhas.–Tambémnãotêmescassezdegatos,mastenhoacertezadequeissonãoo

impededetratá-los–retorquiuPolly,ofendida.

–Láissoéverdade–respondeuPatrickemtomsoturno,tirandoopapagaio-do-mardacaixa.–Andacá,pequenito.Osseusmodos rudescontrastavamcomoseu toquecuidadoso.Opapagaio-

do-mardeuumligeirosaltomasdeixou-sepegar.Patrickolhouparaaligadura.–Nadamal–comentou,olhandoderelanceparacima.– Obrigada – respondeu Polly. – Ainda bem que fiz o curso noturno de

salvamentodeaves.Patrickolhouparaela.– Sabe quantos papagaios-do-mar existem na reserva natural no Norte? –

perguntou.–Nãofaçoideia–retorquiuPolly.–Falteinessasemana.–Cercadeummilhãoequatrocentosmil–afirmouPatrick.–Poiseugostodeste–continuouPolly,teimosamente.Patrickvoltouapôrumarsério.–Nãopodeficarcomele,sabe.–Verificoudebaixodaspenas.–Sim,éum

ele.Pollysorriu.– Eu sabia – afirmou, fazendo cócegas na orelha do papagaio-do-mar. –

Porquenão?Éumaespécieprotegida?–Não,sóquenãoébomparaele.Eleprecisadevoar,deacasalaredecrescer.

Aindaéumacria.–Umaquê?–Umacria.Umpapagaio-do-marbebé.–Ah!Étãoquerido!–Queridoounão,temdevoltarparaoseubando.–Oseuquê?–Bando.Éumgrupodeaves.–Umbandodecrias–repetiuPolly.–Adorável.Pareceumdaquelesálbuns

independentesmuitoesquisitosqueomeuexcostumavacomprar.Polly sorriu, algo irónica. Aha, pensou Patrick. Um ex. Isso provavelmente

explicavamuitacoisa.– Ou uma improbabilidade – acrescentou o veterinário. – É outra palavra

alternativa.Umaimprobabilidadedepapagaios-do-mar.Masnãogostotanto;ospapagaios-do-marnãotêmnadadeimprovável,sãoaosmilhões.Opequenopássaroabriuoseubicolaranja-vivoegrasnou.Patrickabriuuma

gaveta,tirouládedentrocomidadepeixeedeu-lhealgumaparadebicar.Pollysuspirou.

–Querdizerquetenhodeoentregar–afirmou,triste.–Bom, até ele estar curadonãovale a pena– respondeuPatrick. –Elenão

conseguevoar.Achaquepoderiatomarcontadeleatéeleficarmelhor?– Claro! – respondeu Polly, encantada. – Sim, acho que sim. Por quanto

tempo?–Duas ou três semanas? – afirmou Patrick. – Ele parece bastante feliz.As

avessãoosanimaisquemaisprobabilidadetêmdemorrerdesusto.–Achoqueesteémuitodescontraído–atalhouPolly.–Muitobem.Masnãoseafeiçoe,okay?Quandoeleconseguirvoar,vaiterde

odeixarir.–Éahistóriadaminhavida–confessouPolly.–Fareiomeumelhor.–Nãolhedêumnome.–Estábem.Pollylevantou-separasair.–Quantolhedevo?Patrickabanouamão.–Eunãofiznada;vocêéquefoiaenfermeira.Nãosepreocupecomisso.–Asério?–confirmouPolly.–Muito,muitoobrigada.Patrickficousurpreendidoporelaagradecerdeformatãoveemente.Nãotinha

roupassupercaras,mastambémnãoeramdefracaqualidade.–Masnãosehabitue–replicouele.–Seacolherumagaivotajásabeoque

fazer.–Tudobem–afirmouPolly,semprecontente.–Seráquepossocomprar-lhe

umatrela?–Nempensar–respondeuPatrick,comumsorrisoforçado,acompanhando-a

aosairdoconsultório.Estavamdoisgatosnasaladeesperaebufarumaooutro,quaiscobrascomgarras.–Certo.Eleprovavelmenteiráquerervoarespontaneamente,massedaquia

trêssemanasaindaestiveremterra,traga-ocá.– Com certeza – respondeu Polly, e finalmente sorriu. Tinha razão, pensou

Patrick.Elatinhadefactoumsorrisobonito.Oqueoteriafeitodesaparecer?

Ao subir a rua com o papagaio-do-mar dentro da caixa, Polly sentia-se maisanimadadoquenosúltimostempos.Apanhounovamenteocaminhoemdireçãoao porto e passou pelos barcos. O de Tarnie, oTrochilus, estava ancorado, e

Pollyestavaaobservá-loquandodeudecarascomopróprioTarnie.–Oraviva–cumprimentouele,enquantoelatropeçavanoempedradoequase

caíanosseusbraços.Asuabarbaroçounotopodacabeçadela.–Parecemaisanimada.Pollyestremeceuaolembrar-se–Nãoeramuitodifícil–admitiu.–Aquelelivroquemeemprestouéumbocadinhoestranho–comentouele,na

suasingularpronúnciacerrada.Pollygostava.–Ah,começoualer!–Quandovamospara omar não hámuito que fazer.Depois, de repente, já

temosMUITOquefazer.–Oqueacha?–Achoquequemoescreveuandavaaexperimentarcoisasquenãodevia.Pollysorriu.–Interessante.Achoqueeraumbocadinhoexcêntrico.–Maisdoqueumbocadinho.Queméeste?Pollyolhoupara a caixa.Opássaroolhavapara ela expectante, comoquea

quererserapresentado.–Sim–respondeuela.–Estou...acuidardeumpapagaio-do-mar.Tarniefranziuosobrolho.–Éumapartidaquealguémlheestáapregarporsernovanavila?Sealguém

formauconsigo,diga-me.–Não,não–respondeuPollyecontou-lheahistória.–Bom,nuncaconhecininguémquetivesseumaavemarinhacomoanimalde

estimação–comentouTarnie.–Sãosaborosos,ospapagaios-do-mar.–Não!–reclamouPolly.–Chiu!Teriadelhetaparosouvidosenãoseimuito

bemondeestão.–Eleéumaespécieislandesa–explicouTarnie.–Nãofalainglês.–Ah,estábem.Nãocomapapagaios-do-mar.–Vocêcomepato,nãocome?–Acabouaconversa.Tarniedeupancadinhasnoqueixodopássaro.–Jáviqueestáencantada–disseele.–Jálhedeunome?–Não–respondeuPolly,hesitante.–Oveterináriodisse-meparanãoofazer.–Nãolhepodechamar«papagaio».QuetalPete?–Peter Papagaio? – sugeriu Polly. – Não sei. Parece um apresentador de

telejornal.EquetalMuffin?

–MUFFIN?– replicouTarnie.–Nãoacreditoquevaicastigaropobrezinhocomessenome.Osoutrospássarosvãorirnacaradele.– Eu acho giro – retorquiu Polly. – Ter um nome verdadeiro, em vez de

«papagaio-do-marnovemilhõesesetentaedois».–Podiachamar-lhePincel–sugeriuTarnie.–PincelPapagaio,estáaver?–Estou–respondeuPolly.–Eachoofensivo.Tarniesorriueencontrouumapedranobolso.Virou-serapidamenteeatirou-a

paralonge,nomar.– Acho que não devia ter um nome afetuoso – ponderou Polly. – Seria

estranhoserumpapagaio-do-marchamadoMuffin.Voudar-lheumqueo façasentir-seseguro.Opássarocambaleouparaafrentedentrodasuacaixa.–ComoNeil.–Neil?–Sim.Éumnomesólidoehonesto.Neil,opapagaio-do-mar.Neilagitouaspenasdoseuladoferido.–Estáver?Elegosta.–Vocêémaisdoidadoquearaparigadolivro–disseTarnie.–Vocêteméciúmesdomeupapagaio-do-mar–retorquiuPolly.–Sevocêodiz–replicouTarnie.–Depoistraga-oaobarco.Eudou-lheum

bocadinhodearenque.–Okay–respondeuPolly.

De volta à sua pequena casa, a massa do pão aumentara para o dobro dotamanho. Polly amassou-a novamente, sentou-se durante quarenta minutos –acaboupordormitar–voltouaacordareacendeuofornoassustador,cujachamase inflamoucomumestrondo.Colocouamisturapegajosanumavelhaegastaforma enegrecida que encontrara numa gaveta por baixo do forno. Tinha umaduvidosapatinededécadasdeutilização,masnãohaviamaisnada.Comsorte,nãoeratóxica.Pollyuntou-acomazeiteparaimpedirqueopãoseagarrasseàsparedes da forma e cruzou os dedos. Então, respirou fundo e atirou-senovamente à casa de banho. A primeira esfregadela não removera tudo;descobriraolinóleo,masignoraraapartefinaldaquelalongaeestreitadivisão,queeraatapetada.Haverácoisapior,pensouPolly,doquetapetesnacasadebanho?Tapetesem

casas de banho e telhas soltas que deixam entrar chuva de tempos a tempos;casas de banho que albergaram uma população transitória de inquilinos,solteiros, sofás-camas temporários, pessoas sem qualquer interesse na casa.Espreitouporbaixodosquadradoshorríveisdemáqualidade.Osoalhooriginalaindaláestava.Eadimensãonãoeramáparaumacasadebanho,atétinhaoutrajanelaquedavaparaavila.Pollyimaginouasparedesforradascomtábuasazuisclaras;umabanheiracompésnumaplataformaelevada,parapodercontemplarosbarcosaondularduranteobanho;algumasconchinhas,talvez...Acordoudosonhopatetaparaseconcentrarna tarefaque tinhapara fazer: limparacasaosuficienteparanãoapanharumadoençarepugnante;organizar-seeencontrarumempregodecente; ultrapassar...Bom.Lidar coma situação.Voltar a erguer-se.Deixar de envergonhar os amigos ao irromper em lágrimas sempre que bebiadoiscoposdevinho.Encontrarpazinterior.HAHAHA.Pollypegounumquadradodetapetedeescritóriomanhoso,com

misteriosasmanchascastanhasdejornalde1994humedecido,esuspirou.Pelomenos,dacozinhavinhaumcheirinhobomquesuplantavaosinúmeros

cheirosmenosagradáveisqueestavaadescobrir.Manteveasluvasdeborrachacalçadasedespejoubaldeatrásdebaldedeáguasujapelasanitaatéacasadebanho ficar, não a brilhar, mas pelo menos a não lembrar um documentárioperturbador da BBC2 sobre uma urbanização medíocre prestes a ser atingidacomumaboladedemolição.Porfim,levantou-seeespreguiçou-se.Finalmenteconseguiaver-seaoespelho

–estavarosadaeumpoucoafogueada.Cobriuofundodolava-louçacomáguaparaNeil,poisdecidiraque,apósexaminarassuaspenas,eraumpapagaio-do-marmuitoasseado,semmuitosparasitas.Tentousorrir.Hámuitotempoquenãosorria comvontade, pensou.Dois sulcos pareciam ter-se alojado entre as suassobrancelhas,semeladarporisso,umavezqueestavasemprecomosobrolhofranzido.Talvez.Voltou a sorrir –OK, agora parecia umbocadinho louca– edirigiu-separaadivisãoprincipaldasuavelhacasinha.Noforno,oseupão–eraumpãoartesanal,comumacabeçaredondapequena

–cresceramaravilhosamenteeganharaumlindíssimotomcastanho-dourado.Ocheiro era divinal. Polly tirou-o do forno com as únicas luvas de forno queestavam àmão: uma horrível toalha de chá húmida – decididamente, tinha defazer um monte de roupa para levar à lavandaria – e virou-o ao contrário,batendo-lheligeiramentenaparteinferior.Pareciaestaladiçoefresco.Subitamente,sentiu-semuitomaisanimada,refletindoquefizeraduascoisas

nessamanhã–bom,três,seincluirmosaligaduradeNeil–quetiveramumbom

resultado: limpara a casa de banho e fizera pão. Para o resto do mundo,provavelmentenãoserianadadeespecial,pensou,masparaelaforaumgrandepasso.Quandoopão ficou frioo suficiente, cortou-o em fatiasgrossas ebarrou-as

commanteigaeumpoucodedocequetrouxera.Depois,voltouacolocarNeilna suacaixa–elenãoparecia importar-se, emboraPolly se tenhaperguntado,porbrevesinstantes,seficariaquietonoseuombrocomoumpapagaiodepirata,masdepoisabandonouoessepensamento,achando-oridículo,complicado,maupara Neil e confuso, dado que, para começar, ela chamava-se Polly – eencaminhou-separaoporto.Ospescadoresestavamaconsertarasredesaosolfracodatardeereuniram-se

àvoltadelacumprimentando-aalegremente,oquelheagradousobremaneira.–Eentão?–Eufizpão.–Fezpão?Vocêmesmo?–inquiriuJayden.–Não,encontrei-oemcasa–respondeuPolly.–Claroquesim.Queremum

bocadinho?Tarniefezumsorrisorasgado.–Querchá?Em dois segundos, apareceram canecas de esmalte lacadas azuis e brancas,

queumbuleencheucomumcháridiculamenteforte.Pollyrecebeuleiteeduasdoses de açúcar sem que ninguém lhe tivesse perguntado nada. Então todosatacaramopãoeodoce,eTarniecumpriuasuapromessadedararenqueaNeil.Todaagenteestavasatisfeita.–Istoéfantástico–disseumdosrapazes.Alguémdebocacheiaconcordou.–Nuncatinhacomidopãofeitoemcasa–confessouomaisnovo,Kendall,o

rapazdasfacesrosadas,quemaltinhabarba.–Asério?–espantou-sePolly.–Gosta?Eleencolheuosombros.–Éigualaosoutros.–Nãoligue–afirmouTarnie.–Éótimo.Muitobom,mesmo.Massabeoque

podiafazer?–Podiatrazermeldaquelemaluco–sugeriuJayden.–Eraexatamenteoqueeuestavaapensar–concordouTarnie.–Dequem?–Daúnicapessoaque semudoupara a regiãonosúltimos anos– explicou

Tarnie. – Quando o resto do mundo está a miscar-se – desculpe a minha

linguagem.– Não tem nada de mal – replicou Polly, contente. Estava incrivelmente

satisfeita comopão.Não tinhade todoomesmosabordequandoo fazia emPlymouth. Tinha um sabor mais intenso, mais rico. Polly perguntou-se,ligeiramenteansiosa,seteriaavercomovelhofornopretoqueimadoecomosvelhos pratos pretos queimados. Hum... E com o facto de ter chorado para amassa,lembrou-seela.Eficoulevementecorada.–Láissoéquetem,vocêatécorou–insistiuTarnie.–Não,não–afirmouela.–Queméapessoadomel?–Eleéesquisito–comentouJayden.– É americano – corrigiu Tarnie. – Isso não é ser esquisito.Quer dizer, em

parteatéé,masaculpanãoédapessoa.–Háumamericanoqueveioparacáfazermel?–perguntouPolly.–Achoqueestavamal informado–afirmouTarnie.–Não sei se ele estava

cientedaquiloemquesevinhameter.Masaguentounovemesesdechuva.Vivenocontinente.–Bolas–exclamouPolly.–Parece...– Maluco – concluiu Jayden. – Isto é ótimo. Posso comer mais um

bocadinho?–Eeu?–apressou-seaacrescentarKendall,comabocacobertadedoce,qual

criançadecincoanos.– Rapazes! Acalmem-se – admoestou Tarnie. Sacudiu algumas migalhas.

Naquele dia não estava com o seu chapéu impermeável amarelo; tinha umacamisolaàsriscashorizontaisecalçasdegangadesbotadascortadas,eabarbaaparada.–Oh,oh–balbuciouJayden,derepente.Pegounumasegundafatiadepãoe

docedopratoeescondeu-aatrásdascostas.– O que foi? – perguntou Polly, virando-se. Os rostos dos pescadores

fecharam-se e um ou dois haviam desaparecido para dentro do barco. Era amulherdapadariae,claro,anovasenhoriadePolly.Aoarlivre,estranhamente,pareciaaindamaior,umabola,emboraissonãoaabrandasseenquantoavançavana direção do grupo. Uma gaivota começou a grasnar e a procurar migalhas,contribuindoaindamaisparaoambientecarregado.Tarniepassouamãopelocabeloespessoaoveramulheraproximar-se.–Tarde,MistressManse.Amulherfungouruidosamente.–Boatarde,Cornelius.

PollyarqueouassobrancelhaseTarnielançou-lheumolhardepresa.Mrs.Mansenãosedeuaotrabalhodecumprimentarmaisninguém.–Oqueestásacomer?–Hum,ésó...Pollyolhouderelanceparaoprato;metadedopãoaindaláestava.–Ondearranjasteisto?– Estamos só a fazer uma pausa para o chá, Gillian. Compreendes,

certamente.O semblante de Gillian Manse ficou carregado e ela endireitou-se

vigorosamente.–Eudigo-teoquenãocompreendo.Numaalturaemquenos tentamosunir

para impedir que os negócios locais vão à falência, em que tentamos serPolbearnitas a sério e mostrar algum orgulho, não compreendo porque vaisbuscarpãoaumarecém-chegadadespreocupada.–Foisó...–Querdizer,eusouaúnicapadeiradavila.Eseiquenãocomprasteessepão

amim.–Então,Gillian...– Fui eu que o fiz – atalhou Polly, concluindo que era ridículo sentir-se

vacilante.Quem é que aquelamulher horrível pensava que era?Podia fazer oquemuitobemlheapetecesse.–FezOQUÊ?Pareciaquetinhadito«Cuspinele».–Eu...fizopão.–Você.Fez.O.Pão.–Gillianpareciaprofundamenteinsultada.–Equaléo

problemadomeupão?–Oteupãonãotemproblemanenhum–respondeuTarnie,tentandoacalmar

osânimoseabrindoasmãos.–SimplesmenteaPolly...–APolly–interrompeuGillian.–APollyfez-nosumlanche.Sabes,elaénovaaqui.–Claroqueénova–fungouGillian.–Elaarrendouaminhacasa.Euseique

elaénova.Pollyendireitou-sequandoamulhersevirouparaela.–Aspessoasdestavilacompramopãoamim–afirmouMrs.Manseemtom

ameaçador.Pollyestavadecididaanãosedeixarintimidar.–Maseunãosoudestavila.

–Maisumarazão–retorquiuGillian–parasemanterlongedosnegóciosdasoutraspessoaseparardetentararruiná-los.NormalmentePollynãoeraumapessoa fácil de intimidar,masesta acertara

emcheio.– Eu nunca – respondeu serenamente – tentaria arruinar o negócio de

ninguém.Mrs.Manseolhoucomdesprezoparaopãodesbastado.–Comisso,realmentenão.Pollymordeuolábio.–Euvouàminhavida–rematouMrs.Manse, lançandosobreelesmaisum

olharfulminante.Aomanobraroseuconsiderávelvolumeparavoltarparatrásaolongodoporto,paroueolhouparaacaixadePolly.Pollyestremeceu.– O que é isto? – interrogou Gillian, observando Neil, que a observou

também.–Ahpois,aseguirvouatacarotalho–afirmouPollyemvozbaixa,eTarnie

nãoconseguiudeixardesorrir.Mrs.Mansearqueouumasobrancelha.–Éumapenaquandoaspessoaschegamaquienãoconseguemenquadrar-se

–sibilou.–Masnormalmentevão-seemborarapidamente.

Depois de Gillian ir embora e de os outros pescadores voltarem à superfície,Pollytevedesentar-se.–NãosepreocupecomaGillian–disseTarnie,desconfortável.–Éofeitio

dela.–Comportar-secomooDIABO?–exclamouPolly.–Comoéqueissopode

ser«feitio»?«Ah,sabesqueelematouaquelaspessoastodas?Éofeitiodele.–Pois.Elavivecáháimensotempo.–Deveserporcausadelaqueestavilaestátãoatrasada.Oh,meuDeus,eelaé

minhasenhoria.Vaidespejar-meporfazerpão.–Elatemmedodemudanças.–Maseufuiàpadariadela.–Estáumbocadoembaixo.–Éhorrível.–Étudooqueelatem–explicouTarnie.–Aquiédifícilganharavida,sabe?

–Pelosseusolhos,notava-sequeestavaasersincero.

– Então porque é que ela faz de tudo para afastar os clientes? – perguntouPolly.–Eununcamaislávolto.–Nemeu–afirmouJayden.–Polly,podefazerpãoparanóstodososdias?–Sim,porfavor–apoiouKendall.– Hum, parece que o vosso chefe não quer – replicou Polly, olhando para

Tarnie.–Nãoquer irritarMistressManse.Emboraela jádesipareçabastanteirritada.Tarnienãoestavanadacontente.Pollydecidiuirembora.–EueoNeiltemosdevoltarparacasa–afirmou.–Cornelius.Osoutrosrapazesriram.–É...–Tarniepareciaalgoenvergonhado.–Écomplicado.–Nãoénadacomplicado– retorquiuPolly.–ElaestáaagircomoaMáfia,

intimidando-me. Essa pode muito bem ser uma boa razão para eu quebrar ocontratodearrendamento.–Não,nãofaçaisso–pediuTarnie,eporummomentoinstalou-seumsilêncio

ligeiramenteembaraçosoentreosdois.–Pois, bom, eu vou indo– despediu-sePolly.Olhoupara o prato. –Venho

buscaropratoquandoterminarem.Enquanto se afastava, Tarnie lembrou-se subitamente de algo e chamou-a.

Pollyvoltou-se.Eletinhanamãoalgoembrulhadoemjornal.– É um bacalhau – afirmou. – Amanhei-o para si. Frite-o num pouco de

manteigaelimãoqueficamesmobom.Neilgrasnoudeexcitação.–Nãoéparati,jovem–disseTarnie.–Éparaatuadona.Pollyaceitouoembrulhocomoofertadepazqueera.–Obrigada–afirmou.–Tenhamumaboanoite.Tarnie olhou para o grande aglomerado de nuvens cinzentas escuras que se

formara enquanto conversavam, escondendo a fraca luz do sol como umbrutamontesameaçador.–Nãomeparecequeváserumaboanoite–rematou.

EmboraPollyaindativesseoseucomputadorportátil–eratãoantigoeenormeque os credores não o quiseram – e alguns DVD para ver nele, descobriu,enquantocomiaopeixe–queficaradefactodivinalapenascomumpoucodelimão,salepimenta,cozinhadonoúltimofiodeazeitequetinha–eumasalada

feita, pela primeira vez em muitos anos, de folhas de alface e não de umamisturaembaladacara,queatésesentiafelizsódeestarsentadaàjanela,averotempoaficarpior,achuvaacomeçarabaternacalçadaenosmurosdoporto.Oventosacudiuacasaefê-laranger.Pollyviuosbarcosdepesca,quepareciamminúsculoscontraoportentosomaragitado,afazerem-seaooceano,umaum,as suas luzes cada vez mais débeis à medida que se afastavam. DeixourapidamentedeconseguiridentificaroTrochilus,quebalançavapelanoitefriaeimplacável adentro. Polly estremeceu e pensou nos homens que iam naqueleminúsculobarcodebaixodocéuenormeondeasestrelascomeçaramaaparecer,paravoltaremasertapadaspelasnuvensapressadasepeloventoatordoante.Apósojantar,pornenhumaoutrarazãosenãomalandrice,amassouumnovo

bocadodepãoedeixou-oalevedaraoladodoninhodecartãodeNeil.Aseguir,saltouparaacamaeadormeceuimediatamente.

Nãosabiaoqueaacordaradestavez.Omais provável era serNeilamexer-se na caixa. Polly sentou-se na cama,

comolençolquependurarasobreasjanelasaimpedir,apenasparcialmente,quea luz varresse a casa e depois desaparecesse, mergulhando-a novamente naescuridão. As ondas batiam nomuro do porto; lá fora estava vento, mas nãotempestade.Oinstintolevou-aàjanela,epuxouolençol,aindameioadormir.Láforaestavaescurocomobreu.Aáguadomarsalpicaraas janelasenoar

sentia-se o sabor a sal. Polly deixara uma fresta minúscula da janela aberta.Esticou-separaverláparaforaalémdoseupróprioreflexoadormecido.Foiquandoofeixedofarolpassou,derepente,quePollyoviu.Umcontorno

–umafigura,umamerasombra–nocais,acontemplaromar.Nãosemexia,nãofazianada;estavasimplesmenteali,firmecomoumarocha.Pollydeuumsalto,sobressaltada,encandeadapelaluz,quedesaparecera.Não

conseguiu focar oolhar a tempo, e estava escuro.Quemestaria lá fora àquelahora da noite, no escuro? Arrepiada pelo ar noturno e pela figura imóvel,esperou noventa intermináveis segundos que o farol completasse o seu ciclo.Masdestavez,quandoaluzpassou,jánãohavianadanemninguémláfora.Oportoestavadeserto,adocavaziadebarcos–deviamaindaestarapescar–,acalçada invisível, Mount Polbearne voltara a ser uma ilha, gradualmentereclamadapelomar.Pollyabanouacabeça.Deviatersidoumailusãoprovocadapelaluz.Voltouaenfiar-se,agradecida,nasuacamaquente.

Demanhãtodooepisódiojásevarreradasuamente,comoumsonho.

CapítuloOitoO dia seguinte amanheceu geladomas com sol; as divisões do sótão estavamfrias.PollyverificoualigaduradeNeil(quesaltounadireçãodelatodosatisfeitoe ela fez-lhe festas na cabeça) enquanto torrava os restos do pão da vésperanuma torradeira que descobrira já tarde de mais que não era limpa desde ocasamentorealanterioraoúltimocasamentoreal.Masnãodeteriorouaqualidadedopão.Tinhaumsaborrico,ummiolodeum

equilíbrio perfeito e era doce e robusto, com uma pincelada de deliciosamanteigaaderreterporcima.Neillargouimediatamenteoseuatumesaltouparaexploraroqueelaestavaacomer.Pollydeu-lhealgumasmigalhasdiretamentedosdedos.–Aindamelhordoquepeixe?–disseela,asorrir.Levantou-separapôrmais

torradasafazerelembrou-sequeteriadelimparatorradeira.Depoisdopequeno-almoço,arrumoualouçaesentou-sesozinhaaolharpela

janela,umanovidadecompletanasuavida.Nuncaestiverasozinha,desdequepartilharacasas imundasnauniversidade,passandopelacasaondeviveracomKerensaatéaosanoscomChris.Osilêncio–àexceçãodasgaivotasaguinchar–eradoceeespantoso.Apercebeu-sedequenãocarregarao telemóvelenemsequerselembraradisso.Talvezfossebomfazê-loagora.Mas,apósosúltimosmeses a evitar credores, a atender chamadas paraChris, comas quais ele não

conseguia lidar, atirando-lhe um «agora, já, Pol, nãoVÊS que estou ocupado,caramba?», e a sentir-se, essencialmente, como se andasse a fugir de umaalcateiadelobosfamintos,oalíviodetudoissoterterminado,aindaquetivesseficadosemnada,ouquase,eracomoqueumabênção,ummomentodeconsolo.Naturalmente,apenaspoderiaficaraliduranteumtempolimitado.Recebiaum

subsídioreduzidíssimoetinhaumarrendamentodecurtoprazo,esefizesseumburaco num dos seus sapatos estava completamente tramada. Precisava dearranjar emprego. Um emprego a sério. Precisava de Internet, de umcomputador,deumcurrículoatualizadoedeumcarro.Nasuafantasia,deveriaexistiralgumpequenonegócioporalipertoaprecisar

desesperadamente de um gerente e que lhe permitisse ter um horário flexívelconformeasmarés,ouentãoquelhepagasseosuficienteparaconseguirvoltaravivernocontinente.MuitasdasaldeiasmaisbonitasdacostadaCornualhaedeDevonatraíramempresasstart-upsdetecnologiacujosempregadosgostavamdeprogramar toda a noite e fazer surfe todo o dia.Mas esta enseada do sul nãotinhaosurfe,nemasingularidade,nemoscafésmodernosondeessaspessoasgostavamde passar o tempo.Omais provável seria ir e voltar paraPlymouthtodososdias–oquesignificavaqueiriaprecisardecarro,emboranãosoubessemuitobemcomooiriacomprar,dadoquenãoconseguiriaobterumempréstimonemusar o cartãode crédito.A alternativa seria apanhar o autocarro todos osdiasefazerumaviagemdenoventaminutosatravésdetodasasaldeiaslocais.Masohorárioestariasempredependentedasmarés.Kerensa tinharazão.Forademasiadoobstinada.Poroutrolado,pensouPolly,enquantoacariciavaNeileesperavaqueonovo

pão ficasse pronto, cujo fabuloso cheiro perfumava aquela casa velha e faziacom que os raros transeuntes parassem e respirassem fundo,devia fazer umapausa. Para se organizar, sem se lançar de imediato noutra vida. A ironia detentarobrigar-searelaxarfê-lasorrir.Umacoisadecadavez.Ehojeiriadarumpasseioeconheceravizinhança.– Tu não podes vir – disse ela aNeil, pacientemente, e pousou-o. – Seria

ridículolevar-teparatodaaparte.Neilvoltouasaltar,comoqueapedirquetivessepenadele,eempoleirou-se

nasuamão.–Uau–exclamouPolly,genuinamentedeliciada.–Olá!Olhapara ti!–Ele

queria,obviamente,queelalheacariciasseaspenasnovamente,eelafê-locomtodoogosto.–Estásaficarmelhor,pequenino.Então,Neildeixouumdejetobranconochão.

–Oh,não!–exclamouPolly.–Mastambémnãoseisepossodeixar-teaqui.Limpou o chão e olhou o pássaro com atenção. Ele fez um olhar atento e

quandoelafoiàcasadebanho,seguiu-aatéàporta.–MeuDeus,éumpapagaio-do-mardecolo–afirmou,exasperada.–Ouve,eu

seiqueéspequenino,queestásperdidoequequeresatuamamã,maseunãosouatuamamã,estábem?–Pollyagachou-se.–Sóestoudepassagem.Embrevevou-meemboradePolbearneetuvaisvoarparalongeenuncamaispensarásemmimcomoteucérebropequenino,estábem?Neilinclinouacabeçadelado.–Estábem.Sódestavez.Pollypegounummontedepapeldecozinha,cobriuofundodasuapequena

mochilacomeleecolocouNeilládentro.–Nãodigasaninguémqueestásaí,estábem?–admoestouela.–Nestavilajá

háumapessoaquepareceodiar-mesemrazão.Nãoprecisoquetodosmevejamcomoasenhoraestranhadopássaro.Neilchilreou.Pollytirouopãodofornoeacrescentouasúltimaspitadasdeazeiteecristais

desal,semdeixarquecrescessedemasiado,paralhedarumsaborde focaccia.Perguntou-se se conseguiria comprar alecrim na vila, mas abandonouimediatamente a ideia – era ridícula e ligeiramente acima do seu orçamento.Embrulhouopãonumatoalhadecháparaomanterquente,depoisnumsacodeplásticoparaimpedirqueNeilodebicasse,e fezumasanduíchecomopãodavéspera,pelosim,pelonão.Acrescentouaindaàmochilaáguaquecolocaranofrigoríficoealgumasmaçãsdaregiãoquecompraranodiaanterior.

Opassadiçoestavadesimpedidoecintilavanaquelamanhã,comamarébaixa.Aoatravessá-lo,Pollyperguntou-secomosehaveriamsentidoaspessoasdavila–queoutrorafizerapartedocontinente–quandoomarcomeçougradualmentea reclamar o caminho que tinham para sair da vila, vendo-se obrigadas aconstruiraestradacadavezmaisaltaeacabandopordesistir.Ao encaminhar-se para o campo e afastando-se da costa, percebeu que há

muitonãoandavaapésópeloprazerdecaminhar.Notempoemquetinhamaisdinheiro,calcorreavaas ruasde lojasdePlymouthparacimaeparabaixo,eacerta altura até andara no ginásio, mas nunca fora pessoa de simplesmentecaminhar.

Ali, porém, com o almoço na mochila (e um papagaio-do-mar palrador), acaminharpelasestradasruraisestreitas,àsombraesemqualquerplano,nãosesentiu mal. Mesmo nada mal. Apercebeu-se novamente de uma sensaçãoesquisita nos ombros, e depois reconheceu-a: uma ausência.Uma ausência depeso,detensão.Deviampromoveracaminhadacomoalternativaàsmassagens,pensou.O Sol fazia o que podia para romper enquanto Polly caminhava através de

camposdecouves-nabiçasedepradosverdejantes,pontuadosporumavacadear amigável e um trator horrível. Numa curva particularmente soalheira, viu,para seu grande espanto, alecrim. Depressa arrancou alguns pés, deliciada.Provavelmenteestariacobertodegasesdeescape,masdecertezaquefariaoseuefeito.Esticouaspernas,endireitouascostaserespirouoscheirosdoscampos–bom, dos campos agradáveis; alguns eram horríveis – e, ao passar por umououtro lugarejo, conseguiu refrear-se e não desatar a cantar I Love to Go A-Wandering.Pensou em Chris – o que estaria a fazer? Se continuasse em casa da mãe,

estariataciturno,truculento;ialámuitasvezes,orapazprodígioaquemavidacorrera mal. Haveria de gostar disto, pensou Polly. Será? Já quase não oconhecia.Nos últimos anos, tudo o que lhe sugeria ele deitava imediatamentepor terra. A ideia de uma caminhada fresca e saudável pelo campo teria sidorecebida com desprezo; a única coisa que queria fazer quando não estava atrabalharobsessivamenteeracorrerebeber,bastantedepressaeapenascomumobjetivo:ficaromaisbêbadopossível.Então,mergulhavanaautocomiseraçãoetornava-se repetitivo. Precisava que alguémo tranquilizasse de que iria corrertudo bem, até que adormecia num instante onde quer que estivesse. No diaseguinteacordavaaindamaismaldispostodoqueantes.EKerensanãoera,detodo, pessoa de passear a pé pelo campo. Aliás, Polly também não seconsideravaessetipodepessoa.Masagora,comosolaaquecer-lheascostas,respiroufundoetentouobrigaro

cérebroaconcentrar-senofuturoenãonopassado.Sim,ofuturoeraumlugarassustador,mashaveriaalgumquenãoofosse?Nesteestadodeespíritoalgocontraditório–earrependidadenãoterlevadoo

iPod;ficaracomILovetoGoA-Wanderingnacabeça,quejáestavaatornar-seirritante–estavaprestesasentar-separaalmoçarquandoviuaplaca.Vende-semelnaturaldefloressilvestresA placa de madeira estava decorada a toda a volta com uma fiada de

margaridas.Oh,pensouPolly.Deviaseroamericanoesquisitodequefalaramospescadores. Talvez devesse ir até lá e apresentar-se como a outra forasteiraacabada de chegar à vila. Não eram muitos, obviamente, e talvez fosse umaajuda na próxima vez que GillianManse aparecesse a mostrar os dentes. Derepente,lembrou-sequeMrs.Manseteria,certamente,achavedacasa,oquelhedeuumcalafrio.Normalmente,a ideiade iraoencontrodeumapessoaparacumprimentá-la,

assim do nada, era algo que Polly evitaria a todo o custo; já passara temposuficiente a estabelecer contactos na empresa, coisa que odiara. Mas emPlymouthconheciaimensaspessoas,oquetornaraascoisasmuitocomplicadasquando viera embora. Aqui, por outro lado, ninguém fazia ideia – nem tinhagrande interesse–da sua situação.Eoamericano talvezprecisassedealguémparafazeromarketingdomel.Pollyvoltouaolharparaaplaca.OK,talvezfossealtamenteimprovável.Mas

mesmoassimComeçou a andar pelo caminho com sulcos.As árvores juntavam-semais à

frente, tornando-o escuro e estranhamente silencioso. Polly sentiu os sapatoscolarem-seaochãolamacento.–Istonãomeagrada–afirmou,aofimdevinteminutosaandar,semvernada

alémdeárvoresecamposqueseestendiamemtodasasdireções.Mastambémnão lhe apetecia voltar para trás por toda aquela lama.Acabara de parar, comcalorecheiadesede,semsabersehaveriadecontinuarounão,quandoviuaolongefumo,muitofino.Seriaoamericano?Eencaminhou-separalá.–Seelenãoestiveremcasa,vouficarmuitoirritada–disse,zangada,aNeil.–

NemsequerQUEROmelassimtanto.Mas estava intrigada; queria tentar fazer um pão de mel, e quanto mais

regionaisenaturaisfossemosingredientes,melhorachavaqueficaria.De repente, as árvores desapareceram e Polly sobressaltou-se. Estava numa

clareira,àfrentedeumaminúsculacasacobertadecolmoquepareciasaídadeumcontodefadas.Saíafumodachaminédepedraeasparedeseramdeardósiacinzenta,talcomoocaminhoqueserpenteavaatravésdeumencantadorjardimatéaopequenoportãodemadeirapintadodebranco.Asjanelaserampequenasecompinázios,eumdescontraídoemaranhadoderosastrepavapelasparedes.– Oh! – exclamou Polly, involuntariamente. Era simplesmente adorável. –

Esperoqueládentronãoestejaumabruxa–sussurrouaNeil.–DeCERTEZAquenão–Bomdia!–chamouela,amedo.Nãohaviasinaldemovimento,mascomo

fumonãopodiaserumhomem; tinhadeserumasenhoravelhota,comcabelogrisalho, umvestido comprido e um apetite voraz por ossos de crianças Pollydisseasimesmaparadeixardeserparvaetocaràcampainha.Não havia campainha,mas havia um batente em forma de abelha, por isso,

sabia que, pelo menos, viera ao sítio certo. Deixou-o bater, com um somridiculamente alto no murmúrio da clareira da floreta, e recuou para evitarassustarquemquerqueviesseàporta.Masnãoveioninguém.–Bomdia!–insistiuPolly,destavezemvozmaisalta.–Bomdia?Não lhe apetecia mesmo nada virar costas e voltar para trás. Aliás, pensou

enquanto bebia água, já tinha alguma fome. Mais meia hora a palmilhar umcaminho tão aborrecido seria de mais; talvez houvesse outro por entre asárvores.–Bomdia?Ocaminhodeardósiacontinuavapeloladodireitodacasa,ePollyseguiupor

aí,passandoporumpoçoatéchegaràpartedetrás.Aíteveumavisão.Nastraseirasojardimeramuitomaisamplo,umlongoe

largo relvado verde, recheado de flores silvestres de cheiro intenso, que seestendiaatéaosopédeumacolina,ondecorriaumregatosaídodafloresta.Emambas as margens Polly viu o que à primeira vista lhe pareceu ser pequenosfoguetões de nariz cortado à espera de descolar. Um olhar mais atento,naturalmente, revelou serem colmeias. Havia um zumbido no ar, e Polly deuinstintivamente um passo atrás, depois outro, quando um dos foguetões semexeueelapercebeuqueoquetomaraporoutracolmeiaera,naverdade,umapessoa vestida comum fato de astronauta – ou,melhor, um fato de apicultor.Tinhadedeixardesertãonervosa.Estavaprestesairembora–atingirarecentementeolimitedasuacapacidade

paraexploraçõesarrojadas–quandoa figura se endireitoue lheacenou.Querdizerqueavira.Pollysuspiroue,relutante,acenoudevolta,dando-secontadeque estava nervosa. Era completamente estúpido; claro que era perfeitamenteaceitávelficarnervosaaoconhecerpessoas,masnãoeraelaqueestavaisoladanocampoafalarcominsetos,certo?Etudooquequeriaeracomprarumfrascodemel;nãoéquefosseumatarefademoradaouquefossealgosurpreendente.O homem – tinha de ser um homem; era alto com pernas muito longas –

galgouoregatocomumsaltotreinadoecaminhouatéelacompassoslargoserápidos.–Wffgargh – afirmou ele, estendendo a mão encerrada numa enorme luva

branca.

–Hum?–respondeuPolly.–Nãocostumatirarochapéu?Oenormechapéubrancocobria-lhe todaacabeça,àexceçãodosolhos,que

estavamescondidosporumaredegrossa.Pareciaumcruzamentodehomemdoespaçocomumanoivaextremamentetímida.Ohomemsacudiu rapidamenteo fato comasmãos,verificandoosbraços–

instintivamente,Pollydeuporsiaverificartambémosbraços–edepoisretirouochapéu,comoquempededesculpa.–Sim–disselentamente.–Sim,esqueci-me.Façotudopelaordemerrada.É

oquedáterpoucasvisitas.Então,lançouumolhartristeàsuamãoenluvada,comoqueaperguntar-sese

deveriamantê-lacalçadaparavoltarasacudi-la.Polly olhou para ele. Estava surpreendida; esperava um homem reformado,

talvez commais de sessenta anos, que decidira abandonar a corrida dos ratosdepoisdelerumartigonumarevistadevoo,equerapidamentesearrependera.Masessenãoerade todoohomemqueestavaà sua frente; este era jovem,

alto, encorpado, com cabelo alourado comprido apanhado atrás de uns olhosazuis.Pareciaalgoinquietante,naverdade.–Vamostentaroutravez?–sugeriuPolly,estendendoamãoformalmente.–

Olá,chamo-mePolly.–Huck.–Desculpe?–retorquiuPolly.–Huck.–Ah,éoseunome.–Pollysentiu-secorar.Pensaraqueeleestavaatossir.–Aminhamãechama-meHuckle.–HUCKLE?Ohomemtinhaumavozgraveearrastada.Pollyjásabiaqueeraamericano,

maseraóbvioquevinhadoSul.Queriaouvi-lofalarmaisumpouco.–Oquemaisme agrada–pronunciado àmaneiradoSul daAmérica– em

Inglin – Polly percebeu que ele queria dizer Inglaterra (England) – é que sãotodossempremuitoeducadoseacolhedores.– Desculpe – retorquiu Polly, tapando a boca com a mão. – Fiquei só um

bocadinhosurpreendida,maisnada.Nuncaouviessenome.–Nãomeleveamal,masasenhoraéquetemnomedepapagaio.–Oh,gostoquemechamemsenhora,parecequesouarainha.Huckle esboçou um sorriso lento. Tinha uns dentes espantosos. Polly

perguntou-se se na América haveria uma fábrica de dentes onde todos iamquandofaziamtrezeanos,damesmaformaqueaturmadasuamãeretiraraas

amígdalasaomesmotempo.–Poisentão,minhasenhora,emquepossoajudar?–Queriamel,claro–respondeuPolly.–Masantes,seriapossívelbeberum

copodeágua?Estoucomimensocalor.O sol já ia alto no céu e espalhava mais calor do que ela esperava.

Normalmente ficaria deliciada – o inverno fora terrível –mas agora sentia asfacesmuitorosadaseosuoraescorrerpelanucaabaixo.–Claro.Água?Tambémtenhochágelado,sepreferir.–Não conheço,masposso experimentar – respondeuPolly. –É chánormal

quecolocouno frigorifico?Eufaço isso,masnão ficamuitobom.–Percebeuqueestavaafalardemais.Passaraclaramentemuitotemposemfalarcomoutroserhumano.–Issonãosei.Sente-seaqui.Eleindicou-lheumpequenoconjuntodemesaecadeirasdeferroforjadoque

haviasidocolocadonomeiodeumanuvemdemargaridas.Ascadeirastinhamalmofadas às riscas e um aspeto acolhedor, maravilhoso. Polly sentou-seagradecidaeHuckleentrouemcasa.Pollyolhouemvolta.Era,defacto,ojardimmaisbonito,emaisincrívelque

tinhavisto.Ozumbidoquepairavanoarcortavaocaloramenodosolnoseurosto, e ela deu por si, ao fim de duas noites mal dormidas que culminarammesesdepreocupaçãoeumalongacaminhada,adeixaraspestanascaírem,sóporuminstante.Sóporumsegundo.–Ei.Pollydeuumsalto,semsaberondeestava.Viuohomemlouroaltodepéjunto

desiepestanejourepetidamente.TiraraofatodeapicultoreestavavestidocomumasLevisperfeitamentenormaiseumacamisaaosquadradosvermelhos.–MeuDeus,adormeci?–Esperoquesim.Ouentãofoiumcomamuitorápido.Polly esfregou os olhos, esperando freneticamente não ter deixado a boca

abertaababar-se.–Quantotempo...–Bom,hojeé terça-feira–afirmouHuckle, ePollydemorouumsegundoa

perceberqueestavaabrincar.–Aqui tem–continuouele, estendendo-lheumcopo.Tinhacubosdegeloatilintarcontraovidroehortelãfrescaaflutuaremcimadabebida.Pollybebeuumgolelongo.–Édelicioso–exclamou.–Échágelado?–Sim–respondeuele.–Nãoétãobomcomoodaminhaterra,mas...

Huckle sentou-se na outra cadeira, a fazer-lhe companhia. Polly lembrou-sequeestavaesfomeada.Pensounissoumsegundoedepoisdecidiuavançar.–Querpartilharomeualmoço?–Oquê,agoraquejádormimosjuntos?–replicouHuckle,comamesmavoz

graveséria.–Ah– reagiuPolly.Nãoesperavaqueosamericanos fossemsarcásticos;os

queconheceratinhamtendênciaparadizerexatamenteoqueestavamafazereporquê.Pegounamochilae,aoabri-la,Neilsaiudeládedentrobamboleanteeaqueixar-se.–Olá,querido–disseela.–Desculpa,nãodeviater-tedeixadoaí.Eleignorou-a,debicandoosacodeplásticoondeestavaoalmoço.–Não–ralhouPolly.–Éporissoqueopusnumsacodeplástico.Olhouparacima.Huckleobservava-a,divertido.–Oquefoi?Achaestranho?–Bom,deviadizerquenão,certo?–Sim.Desculpe,devopareceresquisita.–Éumpapagaio-do-mar?Efala?–Não,éumpapagaio-do-marnormal.–Oh,quedesilusão.–Gostodelecomoeleé–retorquiuPolly,comfirmeza.Hucklevoltouasorrir.–Andasemprecomumpássaronamala?É,digamos,uma«mania»?–Não – respondeuPolly, pegando emNeilemostrando a sua asa ligada. –

Estáaconvalescer.–Numamochila?–Gostadetercompanhia.Huckanuiueolhouemvolta.–Bom,aquiestoueu,adescansar,semalmoço–atirou.Pollyfranziuosobrolho,desembrulhandoacomida.–Éumasanduíchebritânica,nãoamericana,estábem?Já estivera em Nova Iorque, com Chris. Há muito tempo. A qualidade e a

quantidadedacomidadeixaramosdoispasmados.–Issosignificaquevouconseguirenfiá-lainteiranaboca?–Vocêtemumabocabemgrande–retorquiuPolly.–Desculpe,estasaiu-me

mal.Enfim.Aquitem.Estendeu-lhe o saco. Ele tirou uma das enormes fatias de pão e devolveu o

saco.

–Devo dizer que não é um esforço nadamau para quem pretende ser umasanduíche grande – comentou ele e deu uma dentada. Polly imitou-o. Erasurpreendentementeagradávelestarsentadanumjardimmaravilhosoabeberchágelado e a comer uma sanduíche com um gigante bizarro. Se o seu objetivofosse, refletiu, experimentar coisas diferentes na sua nova vida, este era, semsombradedúvida,umdiadesucesso.–Uau–exclamouele,ao fimdealgunssegundos.–Ébom.Ondecomprou

estepão?Oúnicoqueconsigoencontrarporaquiéintragável;sabeaplástico.–Fuieuquefiz–respondeuPolly,contente.Elembrou-se:–Aliás,tenhouma

coisa melhor do que a sanduíche. Prove primeiro a focaccia, fi-la hoje demanhã.AbriuooutrosacoedesfezalgumasmigalhasparaNeil.–Aliás, espere! –Levou amão ao bolso à procura do alecrim. –Temuma

tesoura?–Estaéapiorvendademelquejáfiz–comentouHuckle,masdisse-oasorrir

elevantou-se.Quandovoltoucomumatesouradentada,Pollycortoupedacinhosdaervaparacimadopãosalgado.Tinhaumcheiroespantosoeumsaboraindamelhor.Huckledevorouasuametadeemdoissegundos.–Vocêémesmoboanisto–afirmou,olhandoparaopãodelacomdesejo.–Podeficarcomele–assentouela–,masdêumbocadinhoaoNeil.–Estouasersincero.Éoseutrabalho?Pollysoltouumagargalhadairónica.–Não,não.Emudoudeassunto.–Eomel?–Ah,sim,voubuscar.Éumapenanãocombinarcomfocaccia.–Tenho a certezaquehei de conseguir fazer algoque combine– asseverou

Polly,esperandonãoparecerestaranamoriscar.–Nãoduvido–concordouHucklenomesmotomdevozligeiramentepateta,

porissoelafalhararedondamente.Huckle trouxe um frasco de um barracão ao lado do muro e uma pequena

colherdemadeiracomumaespiralnaponta.O frascoestavapintadocomumdesenhodacasaetinha«MelHuckle»escritodelado.–Querprovar?–convidouele,estendendoaPollyaespiraldemadeira.Ela

nãosabiabemoquefazer,porisso,eleexemplificou,agitandoamaiorpartedomeldapontaparaconseguirtirá-lodofrasco.–Este é de flor demacieira. Planta-se diferentes tipos de flores, está a ver,

paraobterdiferentes tiposdemel.Eu faço experiências,mudoas colmeiasdesítio.Polly lambeu o mel da espiral. Era simplesmente sensacional. Tinha uma

profundidadequenteeumaintensidadedesaborquenuncaprovara;nãoeratãodocecomoomelcomercial,maseramaissuaveesatisfaziamais.–Uau–exclamouela.–Éespetacular.– Não é? – Huckle parecia animado. – Espere, vou buscar o de flor de

laranjeira.Esteeraigualmentebom:leveefrutado,deumapuracordourada.– Não percebo – afirmou Polly. – Está a fingir o sotaque ou simplesmente

montouoseucavalocomoumcobóiedisse–tentouimitaravozdele–«Viva,menina,estouaquiparatratardoseumel»?Huckledesatouarir.–Não–respondeu.–Nãofoibemassim.Vocêédaqui?–Não–respondeuPolly.–SoudePlymouth.–Issosóficaasessentaecincoquilómetrosdaqui!–exclamouHuckle.–De

ondeeuvenho,issoéaovirardaesquina.–Poisdeondeeuvenho,éummundodiferente–replicouPolly.–Certo–rematouHuckle.–Bom,estaéavelhacasadoapicultor.Produz-se

aquimel,deumaformaoudeoutra,comosustento,háduzentosanos.Porisso,sabiam que flores plantar e onde posicionar tudo. Estava degradada quando aencontrei.–Masoqueotrouxeatécá?–perguntouPolly.Pareciatãoimprovável.Huckleolhouparaorelógio.–Issoéumalongahistória,minhasenhora.Polly esperouque ele começasse a contá-la,mas, aoperceber quenão tinha

qualquerintençãodeofazer,corouelevantou-sedeumsalto.Aparecerasemserconvidada na casa deste homem, adormecera no seu jardim e agora estava ademorar-se.–Peçodesculpa–atalhouela.–Nãoqueriaserintrometida.– Nada disso – replicou ele, mas também se levantou. – Foi uma honra

conhecê-la.EaoNeil.Neilfezasnecessidadesemalgumasdasmargaridasetentoucomeroutras.–Desculpe–insistiuPolly.–Eleaindaénovinho.Hucklesorriu.–Éestranho,faz-mesentirsaudadesdomeucão.–Ah–exclamouPolly.–Defacto,temardequemteriaumcão.

–Quear?Largopelo?–Não,éque...Pollyiaperguntaroqueaconteceraaocãodele,maselejáderaaentenderque

nãoqueriafalarmais,porisso,nãoiriabisbilhotar.–Vouandando.Huckle acompanhou-a até ao portão com três frascos de mel, pelos quais

recusouserpago,sobapromessadePollyfazermaispão.–SeforaMountPolbearne,euvivonacasajuntoaoporto,porcimadaantiga

padaria–explicouela,timidamente.–Essacasa?–Elefezumarhorrorizado.–Pensavaqueestavacondenada.–Não–retorquiuPolly.–Euéquefuicondenadaaela.Tentou dizê-lo em tom de piada, mas a voz saiu ligeiramente entrecortada.

Huckleolhou-aporummomento.– Bom, eu diria que uma padaria é um excelente sítio para si – afirmou. –

Aquelaoutracasa...Ugh.–Eusei–concordouPolly.–Elajámelançouummau-olhado.–Éprecisotercuidadocomessesmaus-olhados–advertiuHuckle.–Éverdade–concordouPolly.

Pollyfoiapensarnaquelehomemestranhodurantetodoocaminhoatécasa.Nãoadmiraqueospescadoresoachassemesquisito.Elaeraesquisito.Queméquevivenomeiodonada?Comoganhavaparacomer,seofereciapotesdemeldaquelamaneira? Porque fora tão acolhedor para depois querer que ela fosseembora mal lhe fez perguntas sobre a sua vida pessoal? Uma ideia terrívelpassou-lhe pela cabeça. Talvez ele pensasse que ela estava a atirar-se a ele.Afinal,nãoeramuitomaisvelhodoqueela.Não,nãopodiaser.Sentiuorostoquenteenãoeraapenasdosol.Eleeraatraente,massóaideia

Além disso, há anos que não namoriscava com ninguém, exceto o oficial dediligênciasparaselivrardeleaotelefone.EstavacomChrishámuitotempo,enão estavam oficialmente separados, lembrou a si mesma. Na primeiraoportunidade,teriadedeixarissobemclaroaoamericano.Tentouencontrarumaforma de o fazer sem piorar a situação, mas não conseguiu. Caminhoupesadamente até casa, apanhando mais alecrim dos campos e passando pelosimpáticominimercadoquevendia tudo,para comprarmais farinhapara fazerpão.A empregada, sempre de faces rosadas, pareceu algo preocupada quando

viuPollyvoltareacompraromesmoproduto.– É o último pacote de farinha para pão – afirmou. – Esgotou. – Fez uma

pausa.–Vocêfazmuitopão?Pollyrevirouosolhossubconscientemente.–Porquê,éperigoso?Amulhertentousorrir,masoesforçonãochegouaosolhos.–Équenóstemoscáumapadaria...–Jáouvidizer–anuiuPollye,sentindo-sedesafiante:–Nãogostodopãode

lá,éhorrível.Amulherolhouemvolta,comoseos tentáculosmaléficosdeGillianManse

estivessemportodaaparte.–Équeeunãoquerochatearninguém.–Vaichatear-meamimsedeixardeterfarinhaparapão–retorquiuPolly.Amulhersorriucomhumildade.–Vemnumlotedeváriosprodutos.Eunão...Eunãodeviaencomendar,masé

para os turistas... Não que tenhamos muitos nesta época do ano. Quer dizer,ninguémnaaldeiavaifazerpão,naverdade...Polly não queria fazer inimigos, uma vez que acabara de chegar e não

conhecianinguém.–E se preenchêssemos esse espaço comoutro tipo de farinha? – sugeriu. –

Paranãoficarvazio.–Que...–Amulherhesitou.–Quetipodepãofaz?PollyabriuamalaevitandoNeil;restaraumpedaçodefocaccia,aindahúmida

nasuatoalhadechá,queHucklenãosurripiara.– Tome – ofereceu àmulher, que olhou em volta e para a porta, receosa, e

entãotrincouumpedacinho.–Meu Deus – exclamou. – É fantástico. Tem um sabor incrível. Como eu

tenhosaudadesdepão.Polly olhou em volta. Claro que o pequeno minimercado não vendia as

habituaisembalagensdepãodeformaMother’sPridenemfolhados.–Não...Não...– Aqui ninguém enfurece a GillianManse – advertiu a mulher, novamente

receosa.–Nãovaleapena.–Porqueéquetêmtodostantomedodela?–perguntouPolly.AmulherfechouosemblanteecomeçouaarrumartubosderebuçadosPolo.–Jáagora,euchamo-meMuriel–afirmou,pelocantodaboca.–Prazeremconhecê-la,Muriel.EusouaPolly.

Murielvirou-separaPolly.–Ela...Elatempassadoummaubocado.Eaquiédifícilmanterosnegócios,

principalmentenoinverno.Polly apercebeu-se de que amulher deveria ter a sua idade,mas tinha uma

aparênciamuitodesgastada.–Elaquerquenosunamostodos.Oproblemaéque...–Opãodelaéhorrível.– A maior parte das pessoas já se habituou – explicou Muriel. – Mas... –

Olhou,triste,paraatoalhadechádePolly.–Muitobem,vamosfazeroseguinte–propôsPolly.–AMurielencomendaà

socapa farinha de pão para mim e eu forneço-lhe pães para vender. – Eraridículo,masolhouparaacâmaradevideovigilância.Murielvoltouadeitaroolhoàporta.Ambasfizeramumarestranhamenteconspiratório.–Combinado–afirmouMuriel,emvozbaixa.Olhouparaorelógio.–Estaé

umaboahora.Depoisdealmoço,masantesdasaídadaescola.–Entendido–anuiuPolly.–Voufazerumpãoporsemana.Murielempurrouafarinhanadireçãodacliente.–Tome.Leveestacomoadiantamento.–Talvezprecisedamaisforte–advertiuPolly.–Tipo65.–Quandoforpreciso,trataremosdeaarranjar–afirmouMurielemvozbaixa.Pollyembrulhoubemafarinhanumsacodeplásticoecolocou-onamochila,

aoladodeumNeilchilreante.Então,aolembrar-sedecomprarmaisleite,saiusorrateiramenteparaacalçada.

CapítuloNoveEascoisasteriamficadoporali,dissesemprePollyasimesma,posteriormente.Aaventurateriaacabadoali.TeriasobrevividoàssuasdozesemanasemMountPolbearne,teriadevolvidoaschaves,teriaditoadeusaosbarcosdepescaeteriavoltado para Plymouth com algumas histórias para contar, recheada de novasreceitasdepãoeumaenormedosededescansoerecuperaçãonabagagem–háanosquenãodormiatãobem.Teriaficadoporali,seelanãotivessecomeçadoaenvolver-seemsituaçõesinacreditavelmentecomplicadas.Antes de ir embora de Plymouth, inscrevera-se numa agência de trabalho

temporário, mas sempre que telefonava, atendiam-na com um tomdesencorajadoresugeriam-lhequepassasseporlá.Jáláestivera,depararacomumasalacheiadeestudanteseex-estudantesglamorosos,todoscomespantosascapacidadesinformáticas–Pollymalsabiatrabalharcomumasimplesfolhadecálculo – e percebera que não teria qualquer hipótese. Dissera que aceitariaqualquer coisa, mas a mulher que a atendeu falou-lhe de um contrato «zerohoras» em que teria de estar sempre disponível, estivesse ou não a trabalhar.Polly ficou horrorizada. Não. Era uma profissional. Haveria de encontrar umtrabalhoprofissional.Masissofoinaquelaaltura.Agora,comopassardassemanas,ficarachocada

aover,desdeaúltimavezqueprocuraraemprego,comotodoosistemamudara.

Paracomeçar,tudoaconteciaonline;currículosimpressoseseloseramcoisadopassado. O protocolo também mudara, e não recebia resposta de muitos dosempregos a que se candidatava; nem uma carta, um e-mail a confirmar acandidatura.Tentaratelefonarparaumadasempresas,masatendeu-aumvoice-mailqueestavatãocheioquenemsequerpermitiadeixarmensagem.Inicialmentepensouquefossefaltadesorte–atualizaraocurrículo,dera-lhe

uma boa apresentação, profissional, concretizara... Bom, na verdade, a suacarreiranãocorreradamelhorforma,mastrabalharamuito.Kerensaavisara-a.–Nãodigasquetivesteumaempresa–insistira.–Vãopensarquenãoqueres

trabalharcomeles,quevaissercontestatária.–Parece-mebem–responderaPolly.–Gostodaideiadesercontestatária.O

meuproblemaéquesemprefuidemasiadoponderada.–Hum...–comentouKerensa,que,nofundo,estavamaispreocupadacomo

facto de Polly encontrar emprego do que encontrar uma casa ou um novonamorado. O mercado estava implacável. – Bom, se quiseres que eu dê umavistadeolhosaoteucurrículo,diz.Tambémtetirariaalgunsanos.–Mentir descaradamente? – exclamou Polly. – Achas que devia mentir no

meucurrículo?–Tensdeencarar ascoisasdesta forma–explicouKerensa.–Todaagente

mente,esenãoofizeres,estásarevelarumaterrívelingenuidaderelativamenteao mundo do trabalho real. As pessoas ajustam-se às mentiras, e se tu nãomentires,vãoajustar-seapartirdeumnívelinferior,deumaposiçãoverdadeira,oque épéssimo.É como seo teumédicopartissedoprincípioque tu estás amentirsobreoquantobebes.Pollylançou-lheumolharfurioso.–Sóestouadizer-teaverdadesobreomundoláfora–afirmouKerensa.– Mas eu não quero viver no mundo lá fora! – retorquiu Polly, irritada. –

Queroficarnaminhacasaacolhedora,terumpequenonegócio,sonharqueeueoChrissomosricosequeeuestounoDragons’DenouaajudarAlanSugarnoTheApprentice!–Tunãosonhascomisso,poisnão?–inquiriuKerensa.–Não–apressou-searesponderPolly.Naverdade,nosúltimostemposnãosonhavadetodo.

E agora era cada vezmais difícil de ignorar, porque o dinheiro que tinha era

incrivelmentemaisdifícil de esticar.Tornara-seóbvioque faziapão,porqueocheiro chegava ao porto. Tarnie perguntara-lhe discretamente se todos sejuntassemecontribuíssem,todososbarcos,elhedessemalgumdinheirotodasassemanas,elalhesfariasanduíches.NãogostavamdasdeGillianenãopodiamser elesmesmos a fazê-las, aparentemente, porque eram homens. E claro queMurielrecebiaosseuspães,eumdiaumhomemaproximou-sesorrateiramentequandoPollyiaasairdecasaeperguntou-lhe:–Psst!Éasenhoradopão?Estavadebaixodeumcandeeirode rua e apanhou-a totalmentede surpresa,

fazendo-adarumsalto,assustada.–Esefor?–retorquiu,comprudência.–EuapanheiaMurielcomalguns.SouJimBajer,doscorreios.– Ah – exclamou Polly. Passou-lhe pela cabeça que poderia comprar mais

formasdepão,talvezfosseumaajuda.Efoiassimquecomeçouoseupequenonegócio,deformatotalmenteilícita.

Todas as noites preparava grandes fornadas, em diferentes combinações: pãosimples para os homens, que eram pouco aventureiros; um de sementes depapoila aqui e ali; alguns de mel e passas que, torrados e barrados com amanteigadazona,ficavamdivinais.Demanhãdistribuía-osempassoapressado,recebendo os pagamentos em pequenas quantias; pequenas quantias de queprecisava desesperadamente. E a preocupação de se candidatar a outrosempregos,oucomofuturo,começouadiminuirligeiramente.

Quatrosemanasmaistarde,osolnasciacadavezmaiscedo,Pollyjáleratodaasua biblioteca e percebeu que não podia adiarmais. Não aguentavamais, eracruelapegar-seaele,estavanahoraderetiraraligaduraaNeil.Ele tornara-se parte da sua vida, saltando de um lado para o outro todo

contente, debicando as migalhas e tomando banho no lava-louça. Polly foraavisada para não se afeiçoar demasiado a ele, mas não conseguia deixar depensarqueeraumpássarofeliz.Chilreavaalegrementesemprequeelaaparecia,deixava-a despentear-lhe as penas e coçá-lo atrás da cabeça, e sentou-se todofeliznojoelhodelaquandoelafinalmenteligouoseuvelhinhoportátilparaverumDVD.Adioupersistentementeaidaaoveterinário,masnãopoderiafazê-loeternamente.Neileraumbebé,precisavadeestarcomosdasuaespécie,mesmoqueaseparaçãoafizessesofrer.

Pollytentouremoverafitagomada,maselesoltouumguinchosonoroesaltoupara longedela, oque a fezperder a confiançadeque fosse capazdeo fazersozinha.Então,marcouumaconsultacomPatrick,quejáaviraaandarpelavilacomumamochilaqueparecia transportaralgosuspeito.Tambémouviraváriosboatossobreasuaproezacomopadeiraesentiacheirosdeliciosossemprequepassavapeloporto,mas,talcomotodasasoutraspessoas,tinhadevivernaquelavila,porisso,nãoqueriaabordaroassuntodiretamente.Ficoudesmoralizadoquandoentrou,todaorgulhosa,noseugabinete,comNeil

alegrementeempoleiradonoombrodePolly.– Não foi isto precisamente que eu lhe disse para não fazer? – perguntou,

bruscamente, passando amãopela parte careca da cabeça, como sempre faziaquandoestavairritado.–Hum,maisoumenos–respondeuPolly.Hojenãohaviaqualquerindíciode

sorriso;elapareciamuitotriste.–Apostoquelhedeuumnome.–Hum...–murmurouPolly.Patrick estendeu a mão ao pássaro.Neil inclinou a cabeça para um lado e

saltouparamaispertodaorelhadePolly.–Andacá,pequenito–convidouPatrick.–Andacá,vemcomigo.Polly acabou por segurar Neil enquanto Patrick, profissional, retirou a

ligadura.Ao inícioNeil não sabia o que fazer e começou a dar furiosamentebicadasnaspenas,comoseasvissepelaprimeiravez.Depoisexperimentarammexeraasaparacimaeparabaixo.Patricksentiu-lheosossosminúsculos.–Ele parece ter recuperado bem.Bom trabalho.E também está com aspeto

saudável,olhosbrilhantes,penaslustrosas.Pollyirradiavaorgulho.–Agoratudooquetemdefazeréatirá-lopelajanela.Patrickarrependeu-sedeterditoisto.– Não vou atirá-lo pela janela – replicou Polly. Não suportava a ideia de

abandonarNeil ao frio gélido e à chuva torrencial; o tempo voltara a mudar.Também já aprendera que, à temperatura que a previsão meteorológicaanunciasseparaocontinente,fosseelaqualfosse,podiaretirarquinzegrausparaMountPolbearne.– É isso que ele deve fazer – explicou Patrick. – Os papagaios-do-mar são

animais de bando. Ele precisa de estar com o seu grupo, é assim que ficamprotegidos.Écruelsepará-los,écomoterumtigrenumjardimzoológico.Pollyanuiu.

–Sim,eusei.Patricksuavizouotomdodiscurso.– Vá lá, vamos tentar dar-lhe um empurrãozinho pela janela, está bem?

Estamosnorésdochão,porisso,mesmoqueelenãoconsigavoar,aquedanãoserágrande.Era verdade: devido à íngreme inclinação da estrada, poucos centímetros

separavam a janela do gabinete de Patrick da calçada. Alguns transeuntespararamparaobservarohomemeamulhercomopassarinho.–Vá,amiguinho–encorajouPatrickemtomafávelmasfirme.–Nãotenhocoragemdever–afirmouPolly,tapandoosolhos.Neil empoleirou-se no peitoril da velha janela e olhou em volta, cauteloso.

Voltouadarbicadasnaspenas;Pollyperguntou-seseteriacomichão.Umsúbitoraio de sol iluminou a calçada.Neil saltou para a beirinha, olhou em frente edepoisparaPolly,comoqueapedirautorização.–Vailá–disseela.–Vai,pequenote.Neilsaltouevoltouacair,nervoso.Patrickempurrou-oumpoucomaisparaa

frenteePollyencolheu-se.–Válá–insistiuPatrick.Seguiu-seuma longapausae, finalmente,PatrickempurrousuavementeNeil

da borda. Polly arquejou, pronta a enfurecer-se com ele, mas o passarinho,depoisdepairarnoarduranteuminstante,prestesacair,qualdesenhoanimado,recuperou subitamente o impulso e bateu as asas furiosamente, acabando pordescerainclinar-separaumladoeparaooutroatéganharequilíbrio.– Boa! – exclamaram Patrick e Polly enquanto o pequeno papagaio-do-mar

olhavaemvolta,comoquesurpreendidocomoquefizera.AplaudiramedepoisPollydeixoucairasmãos,triste.–Bom–suspirou.–Jáestá.–Sabiaqueháumareservadepapagaios-do-marnacostanorte?–perguntou

Patrick.–Sim,eusei.Epronto,éassim–rematouPolly,melancólica.Patrickolhou-a,perspicaz.–APollysaiu-sebem.–Eusei–anuiuPolly.ElaolhouparaNeil,quetentava,emvão,voltarasubir.Estendeuobraçoem

direçãoàcalçada,elesaltou-lheparaamãoedepoisbateuasasasalegrementeparacimaeparabaixo,paramostrar-lheoqueeracapazdefazer.–Sim, sim,ésmuitoesperto–comentouela, esboçandoumsorriso triste.–

Obrigada,doutor.–Pegounamala.–Naverdade–tateouPatrick,coçandoacabeça–,ouvidizer...–Hum?–Ouvidizerque...–Oveterinárioolhouemvolta.–Ouvidizerquefazpão.– Por amor de Deus – exclamou Polly. – Estou a transformar-me numa

traficantedehidratosdecarbono.Patrickfezumarsorumbático.–Éque...–Adorapão.Pois,felizmente...Polly levouamãoàmalae tiroude ládedentroumacaixadaTupperware.

Chegaraàconclusãodequenãoperdianadaemestarpreparada.– É demel e sementes de linhaça. Sugiro que torre e barra commanteiga.

Tambéméumexcelenteacompanhamentoparaovoscozidos.Patrickcheirouopão.–Sensacional.Obrigado.

Acabou por ser Huckle a fazer com que fossem descobertos, ao deixar,literalmente,comomaistardePollyviriaadescobrir,umrastodemigalhasatéàportadacasadela.Foi,semdúvida,numsábadodemanhã.Pollyacabaradeverdesesperadaoe-mail–nãotinhanada–edeconsultarossitesdeemprego.Osúnicosdoisquelheinteressavamequelheeramadequadoseramambosestágiosnãoremunerados.MascomonãotinhadinheiroparavoltarparaPlymouth,nemparacomprarumcarroparaláchegar,queraiohaveriadefazer?Estava a contemplar o mar quando ouviu um chocalhar de pedrinhas nas

janelasdafrente.Franziuosobrolho–porvezes,emdiasdetempestade,omarsalpicavaos vidros,mas nãonumamanhã tranquila. Inclinou-se para fora.Narua,desorrisorasgado,estavaHuckle,comoseucabelolouroabrilharaosol.Por incrível que pareça, parecia grande de mais para o minúsculo porto; umextraterrestretransplantadodeumpaísenormeparaumpequeno.Masissonãopareciaincomodá-lo.–Ei!–chamouele.–Sabequediaéhoje?Pollypuxouocabeloparatrás–mallhetocaranessamanhã–eesfregouos

olhos.–ÉDiadoHuckle?Elevoltouasorrir,comtodosaquelesdentes.

–TodososdiassãodiasdoHuckle.Mastambém:sábado!–Sim...Quem lhe dera ter um fim de semana. Incrível, todas aquelas manhãs de

segunda-feiraqueamaldiçoaraaosairdacamaporterdeirtrabalhar,masagoraadorariateressesdiasdevolta.Pois,estúpidadevidacontraditória.Hucktiroudoisfrascosdemeldetrásdascostas.–Aosábadodemanhãcome-sebagels.Todaagentesabe.–Trouxeosbagels?–NÃO!–gritouele.–Éaquiquevocêentra.–Trouxecafé?–Não.–Jornais?–Não.–Ovosfrescos?Eleabanouacabeça.–Trouxemel!Pollysorriu.–Estábem–anuiu.–Vaiterdeservir.

Polly sabiaque fazerbagelsera complicado.Colocou o tacho ao lume prontoparaferveráguaeeisqueNeil,queultimamentepraticaraas suascapacidadesrecém-descobertas (Polly achou que ainda não estava pronto para ir para areserva),saltouimediatamenteeficouabaterasasassobreamesa.Daípassouparaabancada,depoisparaabordadotachoe,emardetriunfo,saltouláparadentro,deslizandoàtonadaáguacomoumpatinhodeborracha.–SAIDAÍ–ordenouPolly,exasperada.Elefaziaistosemprequeelapunha

água ao lume.Além de ser um desperdício de água, tinhamedo que, um dia,morressecozido.– Pensava que você e o papagaio-do-mar não iam viver juntos – comentou

Huckle,aovoltardalojadeMuriel,aondeforaenviadoacomprarcaféfresco,osjornais, uma cebola e queijo creme. Passara ainda pela peixaria e trouxerasalmãofumadoedoislimões.Pollysorriu-lhe,satisfeita.–Assimjáestámelhor!–Amaiorpartedaspessoasgostadomeumel.–Eugostodoseumel–afirmouPolly.–Bastante.Masnemsódemelviveo

homem.Nemamulher.Ouospapagaios-do-mar.Tome,amasseestametade.Deitaram mãos à obra, batendo e enrolando a massa. Polly não conseguiu

deixar de reparar nosmúsculos queHuckle tinha nos antebraços e, nos pelosquaseinvisíveisnasuapelelevementebronzeada.–Então–avançouela–,abelhas.–Abelhas–concordouele.–Éabelheirodeprofissão?–Apicultor.–Isso,eusabia.Comapalmadamão,Pollyempurrouvigorosamenteamassa,queseenrolou

deumaformaqueadeixousatisfeita.–Não amasse demais – indicou aHuckle, que parecia capaz de esmagar a

massaentreassuasenormespalmas.–Senão,ficamuitoesponjosa.–Eugostodopãoesponjoso.–Tudobem–anuiuela.–Então,vocêcomeasuametadeeeucomoaminha.–Sim,madame.–Nãorespondeuàminhaperguntasobreasabelhas.–Sim.Não.Pollyolhou-odelado.–Andafugidoàpolícia?–perguntou.–Ah?Eu?Não.Nãopropriamente.–Quando diz «não propriamente» faz-me pensar que andamesmo fugido à

polícia.MatouumhomememRenosóparaovermorrer?Atétemardequemseriacapazdeumacoisadessas.Ohnão,vousercomoumadaquelasamericanashorríveisqueescrevemaospresosdocorredordamorte!Hucklefezoseulentosorrisorasgado.–Não,nãomateininguém.Apolícianãoandaàminhaprocura.São razões

pessoais.Continuaramatrabalharamassaemsilêncio.–Eu tambémvimparacápor razõespessoais–confessouPolly.–Aminha

vidafoiporáguaabaixo.Huckleergueuumasobrancelhaeducadamente,masnãoinsistiu.– Suponho que seja essa a razão pela qual toda a gente semuda para cá –

afirmouela,atentartirarnabosdapúcara,mastudooquerecebeuemtrocafoiumnovoarqueardesobrancelha.–Bolas,agorafuidesagradável–atalhouela.–Querdizer,aquiégiroetudoo

mais

–Euachoencantador–interrompeuHuckle.–Élindíssimo.–Comoéasuaterra?–Plana– respondeuele. –É tudoplano, grande, nãohámuitaspessoas em

voltaeestende-seporquilómetrosequilómetros.Eluxuriante,comoumaselva.Imensasplantasverdescomestíveis.–Masdeondeéquevocêé,daflorestatropical?–Savannah,Georgia.–Comoé,lá?– É uma terra linda – respondeu ele, categórico. –Mas diferente. É muito

antiquada.Temmuitospequenosjardinsquadrados.– Na América? – questionou Polly. – Achava que na América tudo fosse

moderno.–Amaiorparteé–respondeuHuckle.–Atlantaé.MasSavannahfoicomo

queesquecida.Émuitocalma.–Émuitoquente?–Osverõessãotórridos.– Como é suposto, então – comentou Polly. – Aqui está quase sempre a

chover.–Masquando têmumdiabom,dão-lhevalor– retorquiuHuckle,num tom

quepareciasugerirquenãodiriamaisnada.Depoissorriu.–Muitobem,entãooquefaçocomisto?Amassa jáestavabembatida.Pollydeixou-aa levedarnumsítiocom luze

foradoalcancedeNeil.Fizeramcafénamáquinaultimamentenegligenciadaeabriramasjanelasparadeixarosolentrar.–Sabeumacoisa?De fora esta casa temar dequevaimatá-la – comentou

Huckle,observandoosgrãosdepóabrincarnosoalhodemadeiraesfregado.–Masaquiatéseestábem.–Exato! – exclamouPolly. –Se eu tivessedinheiro, fariamais coisas.Para

começar, comprava cortinados. A luz do farol entra por aqui dentro, mesmoatravés da porta do quarto das traseiras. Parece que estou a viver no filmeEncontrosImediatosdoTerceiroGrau.–Nuncatinhapensadonisso–afirmouHuckle.–Eenvernizavaosoalho.Hucklefezumarduvidoso.– Se calhar eu podia fazer-lhe isso – disse ele. – Mas não sei se o chão

aguentariaopesodoverniz.Jáviucomoestáinclinado?–Sejávi?Sinto-onapele.Demanhãquasecaiodacama.

HucklesorriuePolly,subitamente,sentiu-seumpoucoembaraçadaporeleaimaginar na cama. Mas ele não parecia minimamente estar a atirar-se a ela,apenaseracortês (e ligeiramente faminto).Nãovaliaapenapensarneledessaforma,atéporque,emborativessemapenastrocadoalgumasmensagensrápidas,sentia que ainda não abandonara Chris. Ainda. Ela e Huckle era os únicosforasteirosnavila.Eranaturalquegravitassemnadireçãoumdooutro.Levantaram-separadividiramassa.–Istoédifícil–murmurouHuckle,tentandounirasargolas.– Espere até estarem cozidas – replicou Polly, tapando o tacho da água e

gritandoaNeilsemprequeesteseaproximava.Acozedura,queeraapartecomplicada,tornava-seaindamaisdifícildevidoà

faltadeutensíliosadequados,ePollyqueimou-seligeiramentenopulsoaotentar«pescar» um bagel particularmente relutante. Sem pensar duas vezes, Huckleagarrou-lhenopulsoecolocou-odebaixodeáguamuitomaistempodoqueelanormalmentesedariaaotrabalho.– Não pode deixá-la empolar – advertiu ele. Nem sequer uma queimadura

leve.Pensamosquejápassou,maselacontinuaadesenvolver-se.Chiu!–Costumaserpicadopelassuasabelhas?–perguntouPolly,curiosa.–Claro–respondeuele,indiferente.–Edói?Elesorriuetentoumanterumarpoucoincomodado.–Dói,claro–confessou.–Enãoépouco.–Nãoacabaporsehabituar?–Não.Quer dizer, eu tenhode ter cuidado.Se a picada for suficientemente

profunda,ganhamosalergiaaovenenoeissopodematar-nos.–Umaabelhapodematar-nos?– É muito comum – explicou ele. Deixou-a tirar o pulso da água a correr,

repreendeu-apornãoterumkitdeprimeirossocorrosemostrou-lheumacanetaamarelaquetiroudobolso.–ÉumaEpiPen–afirmouele.–Paraquandoalguémépicadoporumaabelha

efazreação.–Eseforvocê?–perguntouPolly.–Eusei.Teriadesereuaaplicá-la.Pensomuitonisso.Ambosficaramaolharparaacaneta.–Nempense–disseHuckle.–Oquê?–retorquiuPolly,comoslábiosaesboçaremumsorriso.–Nempenseemaplicá-lasóparaexperimentar.

–Nãoestavaapensarnisso.–Apostoqueestava.–Talvez,pronto.Estavaapensarfazê-lorefém.– Você vê uma EpiPen e dá-lhe vontade de cometer um crime. Isso é

preocupante.Sorriram um para o outro enquanto Polly levava os bagels ao forno. Dez

minutosdepois,alguémbateuàporta.

–Nós íamosapassarporaqui–afirmouTarnie,comJaydenadespontar logoatrás.–Nãoiam,não–retorquiuPolly.–Vocêstrabalhamjáaqui.Tarniesorriu.–Querumpeixe?–Vocês estão comMUITA SORTE – exclamou Polly – por preverem uma

coisaassim.Euacabeidefazervinteequatrobagels,oquedádoisamaisdoqueconsigocomer.Huckletambémdesceuasescadas,paraverquealaridoeraaquele.Umavez

que eram dez da amanhã de sábado, e que estava com uma camisa de linhoamarrotada e umas velhas calças de sarja e pés descalços, Polly sentiu, derepente,quedeveriaexplicar-se.–OHuckveiotrazermel–explicou.–Háumahora.Parafazerbagels.Nomomentoexatoemqueodisse,Hucksaiu-secomum«Euiaapassar»,o

que a fez sentir-se levemente insultada por ele estar também tão ansioso poresclarecerqueelaeraapenasalguémqueeleencontrara.Alémdisso,suspeitouque, ao expressarem tão flagrantes negações, deram a entender que, de facto,estavamafazeralgocomprometedor.MasporquehaveriadesepreocuparcomoqueTarniepensava?Jayden,opescadorjovem,perguntou:–Oquesãobagels?Possoiràcasadebanho?Oquesãobagels?–Jayden!–repreendeuTarnie.–Sinceramente,parecequesouprofessor.– Pode ir à casa de banho – consentiu Polly. – E podem todos provar um

bagel.Levaramosbagels–dozedecebolaedozedecanela–maisomel, salmão

fumadoequeijocreme,limonada,facaseumjarrodecaféatéaoporto,etodosos pescadores se congregaram. Ao início, pareciam um pouco confusos, mas

aceitaramacomidadebomgrado,espalhandomigalhasportodaaparte,porqueos bagels estavam estaladiços por fora e fofos por dentro. Foi muito fácildistinguiroscírculosperfeitosquePollyfizeradasfigurasumtantoouquantoembaraçadas de Huckle, que faziam lembrar criações em plasticina de umacriança, mas todos tinham um sabor incrível e proporcionaram um deliciosofestimnumaventosamanhãdeprimavera.JaydenolhouparaasjanelasdePolly.–Jáviuofantasma?–perguntou,ansioso.– O QUÊ? – exclamou Polly, num sobressalto. De repente, lembrou-se da

silhuetaqueviranopontão.–Nãosejaidiota.Não foi nada, disse a si mesma, apenas uma ilusão da luz. Mesmo assim,

sentiuocoraçãoabaterumpoucomaisdepressa.–Nãoestouaseridiota–afirmouJayden,teimoso.–Todaagentesabeque

existeumfantasmanoporto.–Jayden–avisouTarnie–,cala-te.–Maséverdade–retorquiuele,amuado.–Eunãoacreditoemfantasmas–asseverouPolly,commuitomaisconfiança

do que aquela que realmente sentia. Jayden não tinha de dormir lá em cimasozinho.–Quetipodefantasmanão-existenteé?–Éoespíritodeumarapariga–explicouJayden.–Elacaminhapelosmuros

doportoacimaeabaixo,àesperadoseuhomem.Maselenuncavolta,porquefoi engolido pelos peixes do fundo domar.Umdia, saiu para pescar e nuncamaisvoltou.Eelaficouàesperadeleechamaporeleassim:«Uuuuuuuuu!»–Elechama-seUuu?–quissaberPolly.– É um disparate – interrompeu Tarnie. – Não lhe ligue, Polly, ele é um

palerma,basicamente.Era fácil rir do assunto à luz do dia, rodeada de pessoas, principalmente

quandoJaydenimitouofantasma,deolhostortoseabocapendurada.–Elasuicidou-se–contouele.–Atirou-seaomar.Masoseuespíritocontinua

cá...–Entãoecomovaiapesca?–perguntouHuckleaTarnie,mudandodeassunto

aoperceberquePollyestavainquieta.Tarnielançou-lheumolhardesconfiado.–Vaibem–respondeu,secamente.–Estápéssimo–confessouJayden,saindodasuaimitaçãodofantasma.Tarniefuzilou-ocomoolhar.– O quê? Se pescamos peixe, cumprimos a nossa quota, se não, passamos

fome. E é um trabalho frio, molhado e horrível. Quem me dera não ter

chumbadonoexamedo12.ºano.–Vocêchumbouno12.º,Jayden?–perguntouPollyamavelmente.Elequase

nãopareciateridadesequerparafazerabarba.–Nãopodetentaroutravez?Jaydenficouconfuso.–Issoépossível?–Claro.Nãoprestouatençãonaescola?–Achoquearespostaéóbvia–declarouTarnie.Jaydenficoudesanimado.–Nuncaétardedemais,sabe?–sugeriuPolly,simpática.–Nuncaconseguiriaterumempregocertinho–murmurouJayden.–Poiseugostodapesca–afirmouArchie,onúmerodoisdeTarnie.Tinhaa

pele clara e era corpulento, as faces coradas do borrifo das ondas e do sol. –Gostode fazer-meaomarenquantoo sol sepõe.Gostodeverospássarosnaáguaquandosabemosqueestamospertodosbancosdepeixe.Gostodacordocéu...Umdoshomensfezoruídodebeijos.–Ei–repreendeuPolly.–Chiuouacabaram-seosbagels.Ohomemcalou-seimediatamente,masArchiejáestavacorado,comasfaces

aarder,ecalou-setambém.–EoTarnie?–perguntouPolly.Tarnievirou-seecontemplouomar.Osraiosdesolprimaverisdançavamnas

ondas.–Bom,eraoqueomeupaifazia.Eopaideletambém.Eporaífora.Aminha

mãediziasemprequeeutinhaáguasalgadanasveias.A sua pronúncia de West Country tornou-se mais cerrada e os seus olhos

vaguearam.– O Archie tem razão – declarou. – Às vezes, quando estamos lá longe e

somossónóseomar,nadamais, édemadrugadae tudooquevemossãoasestrelas lá emcima, jádeixámosdevero farol e avançamosao ritmode algomuitomaiordoquenós...Aí,sim,ébom.Pollyolhou-oporuminstante.– Uau – exclamou Huckle. – Realmente parece empolgante. Posso ir com

vocêsumanoitedestas?Os homens olharam para ele e desataram a rir, mas Tarnie encolheu os

ombros.–Porquenão?–Anãoserquevomite–acrescentouJayden.–Nãovomiteemcimadopeixe.

Nãoénadabonito.

Huckleanuiu.–Consigoimaginar.Quandoerapequenovelejava.Ospescadoresentreolharam-se.Játinhamouvidofalardisso.–Comoentrounonegóciodomel?–perguntouJayden.Huckleencolheuosombros.–Euodiavaomeuemprego...– Que era o quê? Compota? – brincou Polly, ligeiramente irritada por ele

começarafalarcomelesquandosemostraratãoreservadocomela.–Não–respondeuele.–Eraexecutivo.–Oquê?–perguntouJayden,confuso.–Éalgoquepodesfazercomumcurso–esclareceuKendall.–Talvez.–Pois,não seioque issoé– retorquiuHuckle.–Mas sim, trabalhavanum

escritório.–Ládentro?–insistiuJayden.–Odiatodo?Enãoficavaencharcado?–Quasenunca–disseHuckle.–Fogo!–exclamouJayden.–Pareceespetacular.–Não,nãoera.Huckleesfregouosolhos.–Enfim,avidamuda.–Efechou-senovamente.Pollyobservou-ocommuita

atenção.– Mais dinheiro – comentou Jayden, ainda fixo. – Ganho dentro de um

escritório.Espetáculo.–Euvouprocurarcursosnoturnosparasi–declarouPolly.–Então–continuouHuckle–,decidiexperimentaralgodiferente.–Mel–atalhouJayden.–Não,sercobói–esclareceuHuckle.–Sim,mel.–Agorafiqueiconfuso–confessouJayden.–Porquevocêtemumbocadinho

ardecobói.Hucklefezoseusorrisolento.–Eunãosounenhumcobói.– Aposto que se puser o chapéu, fica igualzinho – continuou Jayden. – Se

calhareuéquedeviasercobói.–Secalhardeviascalar-tedurantedoisminutos–admoestouTarnie,eJayden

fechouaboca.–Mas,depoisdisso,comoconseguetrabalharafazermel?–inquiriuPolly.Quando ele falava parecia tão fácil – trocar um tipo de vida por outro.Ela,

mais do que qualquer pessoa do grupo, sabia que era tudo menos fácil, eperguntou-sesealgumavezconseguiriadeixarumempregosegurodeânimotãoleve;nãosemumabanãosísmico.–Querdizer,ganhaalgumdinheirocomisso?Huckle olhou para ela, e algo nos seus olhos fê-la pensar que ele tinha

consciênciadasuaprópriaprecariedade.–Maisoumenos...–disseele.Todostinhamosolhospostosnele,expectantes.– Eu... Enfim, o mel foi mais uma espécie de mudança de estilo de vida,

percebem?Jaydennãopercebeu,claramente.Masdepoischegoulá.–Querdizerquenãotemdetrabalhar?–perguntou,comosolhosarregalados.

–Érico?Hucklecorouligeiramenteedesviouoolhar.– Não é bem assim – respondeu, mas não terminou a frase e parecia

envergonhado.–Temumhelicóptero?–insistiuJayden.Hucklesoltouumagargalhada.–Não.–Bolas–brincouPolly.–Eudeviaterseguidooseuexemploantesdemudar

decarreira.Naminhalistade«afazer»deviaterincluídoenriquecer.Agora estavam todos a olhar para ela, e ela corou também e mudou

rapidamentedeassunto.–Enfim–afirmou,enquantocomeçavaajuntarmigalhas.–Alguémmesabe

dizerqueautocarroapanhoparaareservadepapagaios-do-mar?–Paraquê?–perguntouTarnie,masdepoispercebeuquandoviuaexpressão

dela.–Não...ONeil?NeilestavaaoladodePollynomurodoporto,debicandolanguidamenteum

pedaçodebagel.Levantouoolharaoouviroseunome.–Aparentemente, estoua sermuitocruelcomeleenãoestoua respeitaros

seusdireitoscomoanimal–explicouPolly,triste.–Eleestáaficargordo–referiuTarnie.– O meu papagaio-do-mar não é gordo! – ripostou Polly, irritada. – Além

disso, aindaébebé.Nãodigaessascoisasdele.Podeafetar a imagemqueeletemdesipróprio.–Masissoerabom–retorquiuTarnie.–Assim,ficavaasaberqueégordoe

faziaalgumacoisa.Nãoadiantaignoraroóbvio.Pollyfez-lheumacareta.

–Eleéumpapagaio-do-marlindo.–Nãoháautocarro– interrompeuJayden.–Temdeapanharumacamioneta

especial.Nósfomoslánumavisitadeestudodaescola.Étudooquemelembrodesseano.–Efoigiro?–perguntouPolly.–Éumsítioagradável?–Euvomiteinacamioneta–contouJayden.–Ah!–atirouHuckle.–Querdizer,quepena,oseupapagaio-do-mar.PollyacariciouasasasdeNeil,carinhosa.– Não faz mal – murmurou, com a voz ligeiramente entrecortada. – Nos

últimostempostenhovindoaficarperitaemdesprender-medascoisas.Fez-sesilêncio,atéqueHuckleexplodiu.–Eupossolevá-la–sugeriu.Tarnielevantouoolhar,comoseestivesseapensarnomesmo.–OHuckletemcarro?–perguntouPolly.–Nãopropriamente–respondeuHuckle.Nesseprecisomomento,umasombrapassoupelopequenogrupo.Neilsaltou,

protetor,paramaispertodePolly,quelevantouoolhar,aindaumpoucoabalada,paraserconfrontadapelasubstancialfiguradeGillianManse.–Poramordasanta–dissePollyparasimesma.–Oquevemaseristo?–inquiriuGillian,asuavozásperaaecoarnosmuros

do porto. – Agora fazemos piqueniques? Não me parece que faça parte docontratodearrendamento.Haviamigalhas por toda a parte.As gaivotas estavam alinhadas nomuro, à

esperadasuaoportunidadedeatacá-las,malogrupodispersasse.Haviabagelsmeiocomidossobreguardanaposdepapel.–EoqueRAIOéisto?–continuouGillianManse.–Éumbagel.–Umquê?–Umtipodepãomuito,muitofamosoconhecidoemtodoomundo–afirmou

Polly,subitamentefuriosa.–Otipodecoisaquequalquerpadeiroconheceria.Hucklelançou-lheumolharpreocupado.–Poiseunãoquerodissonestavila–retorquiuGillian.–Umfolhadonãotem

nadademal.–Umbomfolhadonãotemnadademal–replicouPolly.–Eoquetambém

nãotemnadademaléaspessoascozinharemoquequeremnumpaíslivre,porisso,PAREDEMEIMPORTUNAR.Huckledeu-lhepancadinhasnobraço.

–Temcalma.Pollyolhouparaele.–Elaéumabrutamontes–sussurrou.OrostodeGillianestavainflexível.–Eusónãoqueroquemearruínemonegócio!–Vocêéqueestáaarruinaroseunegócio,comaquelepãohorrível–replicou

Polly.Tarnielevantou-se.–Vá,minhassenhoras–começou.–Istonãoéumcasode«senhoras»–retorquiuPolly,maisexasperadadoque

nunca.–Estabruxaestáatentardizer-meoquepossoeoquenãopossofazernaminhaprópriacasa.–Então, vamos fazer comque não seja a sua casa pormuitomais tempo –

contra-atacouGillian.–EISSOquerdizeroquê?–gritouPolly.–Chiu–disseTarnie,tentandoacalmarasituação.– Exatamente o que disse – afirmou Gillian. – A casa é minha. Posso

facilmentedespejá-la.–Porfazerumasanduíche?–Euéquesouasenhoria.Amulherestavaescarlate,a flamejarde fúria.Eraassustadora.Subitamente,

todaaraivaabandonouPolly.Sóqueriaenterrar-seeesqueceromundo.Gilliandobrou-se,pegounoúltimopedaçodebagele atirou-oaomar,onde

foi imediatamente atacado por gaivotas a guinchar. Depois, virou costas eafastou-se.Pollypercebeuqueestavaatremer.–Elaéamaiscruel,amaishorrível...Elavaiexpulsar-me.–Nãovainada–garantiuTarnie.–Elaprecisadarenda.Simplesmente,está

velhaeestáatentarsobreviver.–Éumabruxahorrorosa a tentar afastar-medaqui – retorquiuPolly. –Não

acreditoqueestejaadefendê-la!Tarniesentiu-sedesconfortável.–Eusei,mas...– Deve ser por causa dela que este sítio está a morrer, se hostiliza desta

maneiratodaagentequevemviverparaaqui!Ospescadorescomeçaramaagradecerolancheeaafastarem-se.–Ah,agoraeuéquepareçomaluca–atirouPolly,furiosa.–Fantástico.

Huckle sorriu, mas também ele se foi embora, deixando Polly novamentesozinha,sentadanomurodoporto.Sentia-seenvergonhada;sabiaqueexagerara,quenãovalia apenadescarregar a sua frustraçãoemcimadavelhota.Sóquepareciaquecadavezquecomeçavaaseguiremfrente,aavançarumpouco,tudovoltavaadesabar.

CapítuloDezNessa noite Polly não conseguiu dormir. Deu voltas na cama e chegou até achorar.Nãoqueriaacreditarqueascoisastivessemidodemal–muitomal–apior.Tudooquequeriaeratentarconhecerpessoasesentir-semelhor–efazerpãoajudava,definitivamente.Deparar-secomtamanhamaldadeeresistênciaerasimplesmente... Teria de voltar para Plymouth. De qualquer forma, em breveseria sem-abrigo; não tinha qualquer dúvida de que aquela mulher pérfida edesagradável iria certificar-se de que seria despejada.Alémdisso, lembrou-se,provavelmente também perderia o mês de renda adiantado. Sentiu um medoarrepiante de estar em queda livre. Não tinha qualquer segurança; onde iriaparar? A viver de subsídios num dos barros sociais de torres gigantescas dePlymouth, com vedações de arame farpado, elevadores nauseabundos, cãesenormesavaguearlivrementeedrogadosnosbecos?OuvoltariaavivercomamãeemRochester,nacasinhasobreaquecidaonde

crescera; mãe essa que tanto orgulho tivera na sua filha com formaçãouniversitária,comoseusimpáticohomemdeclassemédiaeasuacarreira?Elestêm a sua própria empresa, sabe, acabaram de comprar um daquelesapartamentosnovosàbeira-mare...Seriaumavergonhaparaamãe, tendoemconta a forma como gostava de os gabar às amigas. Seria uma vergonha paraPolly.MeuDeus.

Algumasansiedadeserammuitopioresànoite,mas,chegadoosoldamanhã,tornavam-se suportáveis; por vezes desapareciam como pesadelos à primeirachávenadecafé,ouentãodiluíam-senastarefasdodiaadia,quandoocérebronão tinha sequer hipótese de refletir sobre erros e oportunidades perdidas,arrependimentos e preocupações com o futuro. Polly pressentia que os seusproblemasnãoeramdotipoqueestavacompressade irembora.SeaomenosnãotivessefeitotodoaquelepãosóparaprovocarGillianManse,setivessesidosincera consigomesma, exibicionista.Se aomenosnão tivessevoltado a falarcomela,aquelamulhertê-la-iadeixadoempazeagoranãoestarianaiminênciadeficarsemcasa.MeuDeus.Embora estivesse frio no quarto sem aquecimento, Polly levantou-se,

enrolandocuidadosamenteoedredãoàvoltadoseucorpo,saltitouatéàsaladeestarepôsachaleiraao lume.Umabebidaquenteajudaria.Acenderiaa luzeleriaumlivro;enfim,fariaqualquercoisaqueadistraísseequeimpedisseoseucérebro idiota de zumbir. Ligou a caldeira. Demorava duas horas a aquecer aáguaparaobanho,masnãoeraproblemático,poderiatomarbanhodemanhãsevoltasseaadormecer.Massabiaquenãovoltariaaadormecer,teriadelidarcomarealidade.Nãotinhanadaquefazernodiaseguinte.Nemdepois.Nemdepois.Setivessededormiratémaistarde,conseguiria.AtéNeilapagara,comosolhosbemfechadosdentrodasuacaixinha.Pollyestavasozinha.Aindaembrulhadanoedredão,arrastou-seatéàjanelaparaolharláparafora.

Nãohaviamuitoquever,masofactodeosbarcosdepescateremtodossaídofê-lasentirquenãoestavasozinha:quealguresláfora,Tarnie,Jayden,Archieeosoutrosestavambemacordados,talvezabeberchá,também,porentreasescamasprateadas e as barbatanas agitadas do cardume; a coser redes ou a içar osenormesblocosdegelodamáquinadegeloparamanteracargafrescaparaosmercadosmatutinosdesdeacostaatéPenzance.Com tudooque lheocupavaamente, esquecera ahistóriapatetade Jayden

sobreamulherfantasma,atéchegaràjanela.Quandoaluzdofarolpassouporela,aadrenalinasubiu,massentia-se tãoexaustaedeprimidacomtudoque jánão tinha ânimo para se deixar assustar pelo sobrenatural; a sua vida real,pensou,jáerasuficientementeassustadora.Osseusolhosajustaram-seàescuridãodoporto;aspedras,aluarefletidana

água – a noite estava invulgarmente limpa – e alguns carros estacionados, oscandeeirosapagados.Foientãoqueaviu.Esticouopescoçoeolhoucommaisatenção,comocoraçãoaameaçarirromperdopeito.Aliestava.Umafigura,namesma posição, em cima do muro, imóvel, a contemplar o mar, como uma

estátua.Polly voltou a respirar. Lançou um olhar ao quarto, rapidamente, para se

assegurar de que as suas coisas ainda ali estavam, que não se haviamdesvanecidoparaumtempopassado,longínquo.Arregalounovamenteosolhosepiscou-osuma,duasvezesparasehabituaraoescuro.Então,ganhoucoragemeabriuajanela.Obarulhopareciaensurdecedornoardamadrugada,masPollynãoseimportou;omedoeaansiedadetornavam-nadestemida.Inclinou-separafora,concentrando-separaverbemafigura.–Ei!–gritou.–Ei!Afiguravirou-sesubitamente,emchoque.Aomesmotempo,oenormefeixe

dofarolvoltouapassarePollyviu,horrorizada,afiguraaescorregareacair,comassaiasaesvoaçaraoventoeoseulongocabeloasegui-la.

Não havia tempo para pensar. Polly agarrou no blusão, vestiu-o por cima dopijama,enfiouospésnumasbotasecorreuportafora,descendoasescadascomoumtrovão.Nãoeraumaapariçãonemumsonho.Estavaalguémláfora,naquelanoitefriaeventosa.Jánarua,desorientadaporinstantes,desejouterlevadoumalanterna.Estava

lua cheia, mas as sombras escuras haviam ganho novas dimensões e ela nãosabiamuitobemparaquepontodomurodoportoseencaminhava.Finalmentechegouaumafalha,olhouparabaixo–esobressaltou-se.Ali, caída na água pouco profunda, estava a figura volumosa de nadamais,

nadamenos do queMrs.Manse. Semo carrapito arrebitado, o seu cabelo eracomprido; o seu corpo redondo estava escondido pela camisa de noiteesvoaçanteepelorobequetinhavestido.Respirava,masquandoofeixedofarolpassouporelas,Pollyviuquesangravadeumgolpeprofundonacabeça.Tinhadetirá-ladaágua,estavagelada.–Gillian–sussurrou.–Gillian!MeuDeus,desculpe!A mulher não se mexeu. Polly suspirou. Onde diabo estavam os cinco

corpulentospescadoresquandoeramprecisos?Olhouparaosedifíciosaolongodo porto. Os apartamentos por cima das velhas lojas que restavam estavamvazios. Precisava do telemóvel, mas se corresse para ir buscá-lo, poderia sertardedemaisNão.Teriadeserelaafazê-lo.Dobrou-se, agarrou aquela mulher enorme debaixo dos braços e levantou-a

comtodasassuasforças.Tentourepetidamenteelevá-la,comoqueareclamá-la,

eacadavezpraguejouintensamenteetentouganharumpoucomaisdetração.Por fim, a uma velocidade incrivelmente lenta, conseguiu puxá-la, pouco apouco,paraforadasondas–aestaalturajáestavamambasencharcadas–eparaterra.Gritou a pedir a ajuda várias vezes,mas rapidamente desistiu – era umdesperdíciodefôlegoedeenergia;teriadetratardoassuntosozinha.Amarécomeçavaasubireumaondabateu-lheviolentamentenorostoquando

sedobrouparaverificarseGillianaindarespirava.Oseucabelocompridoestavaagora enfeitado com algas marinhas. Polly praguejou quando Gillian lheescorregoudosbraços,masamulhernãoacordouePollycomeçouaentrarempânico, receandoqueoseuesforçoárduopudesse ter sidoemvão.Ofeixedofarolvoltouailuminá-lasePollyperguntou-seseofaroleiroaverialádecima.Masdepois lembrou-seque jánãovivia láninguém,ofeixeeraautomatizado.Ninguémparaajudar;caramba,alguémteriadedaroalarmequandoestascoisasaconteciam.Aluzdeu-lhe,decertaforma,umimpulsodeenergia,osuficienteparapuxar

Gillianatéà faixade terra.Nãoqueriapensarnasnódoasnegrascomque iriaficar,masdali seriamuitomais fácil, semasondasaborrifá-lanemamalditaáguafriaatapar-lheostornozelos.Finalmentechegouláacimaedobrou-separarecuperarofôlego.Oquefazer?

Porquenãotinhaonúmerodetelefonedenenhumdospescadores?Mastambémnão estavam ali, estavam a quilómetros de distância de qualquer torre detelemóvel,dequalquervestígiodehabitação,emplenoMardaIrlanda.Olhou novamente para a vila deserta e tirou o blusão para tapar a mulher

encharcada.Precisavadeajuda, edepressa, e terde seexplicaraqualquerumdoshabitanteslocaisdesconfiadosdemorariademasiado.Correu até casa e galgou as escadas. Pôs a chaleira ao lume, juntou vários

cobertores e agarrou o telemóvel para ligar para o número de emergência.Enquantoisso,reparounofrascodemelqueaindaestavaemcimadosescassosmóveisdecozinha.TinhaonúmerodeHuckleimpressonorótulo.Decidiu telefonar-lheprimeiro, ele saberiaoque fazer.Apercebeu-sedeque

esta suposiçãoerabaseadaemnada,masnão tinhamuito tempo.Encheuumacanecacomáguaaferver,aninhouoscobertoresdebaixodobraçoecorreupelasescadasabaixoomaisdepressaqueconseguiu,equilibrandotudoemarcandoonúmerodeHuckleaomesmotempo.Tocoudurante tanto tempoquePolly começouapensarque talvez estivesse

desligado,mas finalmenteouviuaconhecidavozarrastada, aindamais lentaesonolenta.

–Sim?–Huckle?–Sim?–Huckle,soueu...APolly– Ah! Sim. Desculpe. Pensava que alguém tinha trocado os fusos horários

outravez.–Huckle,precisodesi...–Hum,sabequeeunão...–Cale-se!PrecisoquevenhaaPolbearne.MistressMansecaiuàágua!–Como?–Aquelavelhota.Caiuàágua.NestaalturaPollytentavadespirorobeencharcadoàmulherenãoestavacom

vontadedeprolongaraconversa.–Huckle.Venhajá,euestounoporto.Olhouparaacalçada–aindaestavadesimpedida.–Hum...Okay,voujá.PollydesligoueverificouoestadodeMrs.Manse.Respiravae começavaa

mexer-se.Derepente,pensouquenãolheapeteciaqueelaacordasseeavisseadespi-la.Marcouonúmerode emergência.Forammuitoprestáveis edisseramqueestariamládentrodemeiahora;disseram-lhequetirasseasroupasaGillianequeassubstituísseporcobertores,eque lhedesseumabebidaquente–semálcool–seelaconseguissesentar-se.Eramaisfácildizerdoquefazer.SemprequePollyconseguiaenrolá-lanum

cobertor,Gillianafastava-o.Estavaclaramenteconfusa;murmuravaedebatia-separaselevantar.Pollyestavacomenormesdificuldadesemcontrolá-la.Subitamente,umretumbarirrompeupelaminúsculavila.Pollydeuumsalto,

sobressaltada.Obarulhoeraensurdecedor,refletianasvelhasparedesdeardósiaenoempedrado.AgarrandoMrs.Mansecomfirmezapelosombros,olhouparaaescuridão,tentandoveroqueraioseriaaquilo.Dobrandoumaesquinadeladoearugir,surgiualgosaídodadécadade1940:

umamota clássica bordeaux escura com um pequeno motor à frente e jantespretascomraios;tinhaumsidecar,tambémbordeaux.– Que raio? – exclamou Polly. Em cima da mota estava empoleirada a

imponente figura de Huckle, e a engenhoca deslocava-se a uma velocidadeincrível,comoseuenormerugidoaressoarpelavila.Pollycomeçoufinalmentea ver luzes nos quartos das pessoas. Obrigadinha por aparecerem quando eugriteiaténãopodermais,pensouela.

Com um certo dramatismo, qual esquiador que chega ao fim da corrida,HuckleparouàfrentedePolly.Ograndefarolredondodamotacegou-a,ePollyprotegeuosolhoscomasmãos.–Ei!–exclamouela.Huckledesceu, tirandooseucapacetepretovintagee agitandoo seu cabelo

louroumpoucocompridodemais.–Oqueéisso?–perguntouPolly.Mrs.Manseaindasedebatiaparafugir.–Éumjetsky–respondeuHuckle.–Asério,foiparamefazeressapergunta

quemefezviratéaqui?Hucklevirouasuaatençãoparaavelhotaeagachou-seaoseuladonochão.–Então,oquesepassa?–perguntou,comasuavozlentaeamável.Pegouno

corpoenrugadodeMrs.Manse,fazendo-aparecer,miraculosamente,pequenaeleve.Pollydeixou-air,ligeiramentealiviada,eesfregouosbraços,paraosanguecircular.Mrs. Manse pareceu acalmar-se imediatamente e articulou alguns nomes,

nenhumdosquaisPollyreconheceu.– Tem alguma coisa para ela beber? – questionou Huckle. – Talvez

devêssemosdar-lhedebeber.Aambulânciajáaívem?–Aambulânciaestáachegar,esim!–respondeuPolly,contente.Estendeua

canecadecháaferver.Mrs.Manseprovoumascuspiutudo.– Acho que está a melhorar – comentou Huckle. – O que aconteceu, Pol?

Discutiramoutravez?–Estáafalarasério?–retorquiuPolly.–Achaqueeuempurreiavelhotapara

omar?–Eunãoaconheçomuitobem.Pollylançou-lheumolharfulminante.–Tudobem.HuckleolhouparaMrs.Manse.–Masoqueaconteceu?Pollysuspirou.– Ai, também vou ter de explicar isto à equipa da ambulância, certo? E

provavelmenteàpolícia.–Àpolícia?–repetiuHuckle,commácara.– Eu vi-a ali... não sabia que era ela, estavamuito longe. Então, chamei-a,

griteiparaverquemera.Achoqueaassusteieelaescorregou.Pollyengoliuemseco.–Achaquevãoacusar-medehomicídioinvoluntário?

–Não,vousóprocessá-la–disseumavozarosnar.– Graças a Deus – exclamou Polly. – Graças a Deus. Peço-lhe IMENSA

desculpa.Masoqueestavaafazercáforanumanoitetãofria?

Pollytentouexplicar,quandochegaramoshomensdaambulânciaeumpequenocarrodapolíciaatravessoucautelosamenteacalçada,conduzidoporumpolíciasonolento de bigode. Mrs. Manse estava embrulhada como um peru emcobertoresprateadosnapartedetrásdaambulância,aqueixar-sedequejánãosepodiadarumpasseionoturnoinocentesemseserimportunado.Felizmenteopolícianãopareciamuitoinclinadoalevá-lademasiadoasério.Pollyparecia,defacto,cheiadedúvidas.– Ela não estava a andar! Estava ali parada! E eu já a tinha visto antes –

explicouaHuckle,aborrecida.– Isto é umgolpe feio – afirmouoparamédico. –Achoque está umpouco

atordoada, e espero que não tenha apanhado nada por ter estado na água fria.Achoqueomelhorélevá-laaohospital.–Nãoposso–replicouGillian,altiva.–Tenhodeabrirapadaria.Fez-sesilêncio.– Pois posso dizer-lhe que ISSO não irá acontecer tão cedo – retorquiu o

paramédico.–Temdeser.Éissoqueeufaço.–Epô-lamelhoréoqueNÓSfazemos,porisso,sefosseasi,relaxava.–Maselesprecisamdapadaria.–Easenhoradeviaagradeceraestajovemportertidoapresençadeespírito

detirá-ladaáguaedecuidardesisementrarempânico.Nasuaidade,enoseuestado, não devia andar em muros de porto escorregadios – admoestou oparamédico.–Poderiatersidobempior.GillianManseolhouparaPolly.Agora não estava furiosa, apenas vencida e

confusa.–Viva–disse.Masnãopareciaminimamenteagradecida.

Nãovaliaapenavoltarparaacama.PollyeHucklebeberamcaféesentaram-senoportoaveronascerdosoleaconversarsobreoqueacontecera.Ofrio

abandonougradualmenteoareasestrelasapagaram-se,quandopinceladascor-de-rosa começaram a despontar ao longo do horizonte oriental. Conversaramamigavelmente no escuro cada vezmais claro. Às 5h30 o céu ficou amarelo,rosa e azul, nascia um lindo dia, sentia-se o cheiro fresco do mar e osacontecimentosdanoiteanteriorcomeçaramadesvanecer.Entretanto,apareceuumapequenamanchaescuranohorizonte,seguidadeoutrasmanchasescuras,eàbordadoportochegaramoshomensqueamanhamopeixeeosdosmercadosnassuascarrinhas.Asgaivotascomeçaramaficarmaisexcitadas.–VouesperarparacontaraoTarnie–afirmouPolly.–Elesempreviveuaqui.

Seháalguémquesabeoquevainacabeçadela,éele.– Claro – concordou Huckle, batendo ligeiramente com as pernas. – Além

disso,temosdepensarnopequeno-almoço.–Todaagenteterádepensarnopequeno-almoço–declarouPolly.–Eunão

tenhopãosuficienteparaavilatoda!Oquevãoaspessoascomer?– Vai sair no jornal – disse Huckle. – «A vila sem pão. O estado livre de

hidratosdecarbono.»Entreolharam-se.–Não–replicouPolly.–Eelaatéficavadoida.Nuncamepermitiria.– Eu pensava que o único interesse dela era salvar o negócio – comentou

Huckle,balançandoassuaslongaspernassobreomuro.–Ematar-me–acrescentouPolly.–Nãoseesqueçadisso.– Não me parece que seja uma questão pessoal – retorquiu Huckle,

espreguiçando-seebocejando.Derepente,Pollysentiuumavontaderidículadepassarosdedospelocabelogrossodele.Deveserfaltadesono,pensou.Maseletinha um não sei quê de tãomasculino: o tamanho, osmúsculos, o seu corpoquentepertodela.Pollybaixouoolhar.–Eusei.Sóque,aacrescentaratudooquemeaconteceu,pareceupessoal–

confessou.–TalvezaPollytenhatidoumavidaprotegida–murmurouHuckle,olhando

paraela.Oseucabelolouro-avermelhadoestavaemaranhadoevoavaaovento;quevisãodramática.Asuapeleerapálida,masissosórealçavaassardasgirasdonariz.–Nãoosuficiente–replicouPolly.–Enfim,eunãoseriacapazdegeriruma

padaria.Façopãopordiversão,nãoéumtrabalho.–Equetrabalhofaria?–perguntouHuckle,emtomsério.Polly olhou-o de lado,mas depois levantou-se para cumprimentar os barcos

quechegavam.

Tarnie fez uma cara séria ao saber das novidades, que já eram motivo defalatórioentreoscomerciantesdepeixe.–Issoémauparaonegócio–afirmouTarnie,comosolhosazuiscabisbaixos.–Masoqueestavaelaafazer?–perguntouPolly.– Quem tem padarias levanta-se cedo – afirmou Jayden, em tom de

brincadeira.Apescaforaboa,eospeixesprateadosestavamaapanharosraiosdosolda

manhãnassuasescamasaindareluzentes.ÀhoradealmoçojáestariadospratosdeRock,StIveseTruro.–Hum–murmurouTarnie.–EstavaapensarÉmelhoralguémiràpadaria,

juntaralgumascoisasdela.–Elatemamigosquepossamfazerisso?–perguntouPolly.Tarnieficoualgoembaraçado.–Pois,bom...Elasempreteveumapersonalidaderude,aquelaGillianManse.Perante isto, Polly sentiu-se imediatamente culpada. Tinha sido horrível,

enfurecer-se daquelamaneira com uma velhota sem família nem amigos.Quemaldade, pensar quepoderia chegar ali e perturbaro sustentodaquelamulher.Sentiu-se pessimamente, desesperada por compensá-la. Não era uma questãopessoal–Huckletinhatodaarazão–ePollypermitiraasiprópriadescarregarasuaamarguraedesilusãosobreoutrapessoa.–Possoajudar?–tentou,desesperadaporserútil.–Sinto-metãomalTarnieolhouparaela.–Poracaso,achoquepode–afirmou.–Devesaberoqueumasenhoraque

estánohospitalgostariadeterconsigo.Euéquenãosei.Polly sorriu. Claramente Tarnie não tinhamulher. Nunca pensara que fosse

difícilparaospescadoresarranjarnamoradas–nãopensaradetodonisso–mastalvezosítioremotoondeviviam,ashorasaquetrabalhavam–Porqueéquevocênãocheiraapeixe?–perguntouela,subitamente.Tarnieficouperplexoperanteaqueledespropósito.–Como?–Desculpe,estavadistraída.Sim,claroquepossofazerisso.– Muito bem. Isso daria uma grande ajuda – replicou ele. – Posso ir ter

consigoàpadariaàsdezedepoisvouaohospital.–Equandovaidormir?–perguntouPolly.

Tarnieencolheuosombros.–Nãoprecisomuitodisso.Nemvocê,aoqueparece.Pollysorriu.–Hum...Tarniecomeçouaencaminhar-separaobarco,masdepoisvirou-se.–Atéjá–gritou,eacenou.Pollydevolveuoaceno.

A padaria estava cheia de pó,mal cuidada, embora a sua dona só estivesseausente há poucas horas. Precisava de ser esfregada e cheirava a bafio. Pollypensouqueosprodutosseriamdeixadosaoarmaistempodoquedeveriam.–Devíamosmandartudofora–afirmou.–Ah!–exclamouTarnie.–Eunão faria isso.Seela tiveraltahojeevoltar

paraaqui,vaidarconta.O pequeno apartamento no primeiro andar estava imaculado, muito mais

limpo e mais bemmantido do que a loja. Estava cheio de bibelôs: pequenasestatuetasdecerâmicaecavalosdecristal.Otapete tinhaumpadrãoonduladoberrante e as sanefas bordadas estavam bem limpas. Num canto da sala,repousavaumagrandetelevisãoantiquada,aoladodeumarevistaRadioTimescuidadosamente marcada. Polly sentiu-se claustrofóbica e extremamenteintrusiva.–Nãogostodefazeristo–afirmou.– Hum – replicou Tarnie. – Vá ao quarto dela e traga coisas de que uma

senhoraprecise.Pollyolhouparaele,maselefalavaasério.Oquartoerapequeno,acamaaindatinhaaformadeGillian.Tambémdevia

ter dificuldade em dormir, pensou Polly. Na mesinha de cabeceira estava umdespertador antiquado, juntamente com vários frascos de comprimidos. Já eraum começo. Polly apanhou-os todos e olhou em volta em busca de um saco.Abriuo roupeiroembutidoeencontrouumavelhamaladeviagem.Nãoeraoideal,massempreeramelhordoquenada.Procuroupijamaslavadosedepois,engolindoemseco,levouamãoàgavetadaroupainterior.Estavaali,comosenadafosse,emcimadosmontesdecuecasgrandesdacor

dapeleedosenormessutiãs;Pollynãopercebiaporquerazãoestariaescondida–dificilmenteseriaumalvoparaladrões.Mas,derepente,deu-secontadarazãopela qual estaria ali:Mrs.Manse não queria vê-la a toda a hora. Sem pensar,

pegou nela. Era uma fotografia a cores emoldurada, com aquele tom amarelodeslavadoquea localizavanosfinaisdadécadade1970ou iníciodade1980.Mostravaumhomemde cabelo escuro, como rosto à sombra, ao ladodeumrapazcomumaT-shirtàsriscasecalçõesqueerampequenosdemaisparaele,umcintodepeledecobra,meiasesandálias.Exibiaumsorrisorasgadoparaacâmara.Ambosseguravampeixesnassuascanas.Pollydeteve-seaolharparaafotografia,enemouviuTarnieentrarnoquarto,sóquandoelesuspirou.Despertouevirou-se.–Nãoestavaabisbilhotar–afirmouimediatamente.–Estavaaqui,nãopude

evitar.Tarnieanuiu.–Tudobem,eusei.–Olhouemvolta.–Ofactodeestaraquijáéestranho.–Émesmo–concordouPolly.Voltouaolharparaafotografia.Tarniefezumarsério.–Quemsão?–perguntouela,amavelmente.Tarnieesfregouapartedetrásdopescoço,claramentedesconfortável.–Bom,esseéoAlfManse–explicou,apontandoparaohomem.–Omarido

daGillian.Eraumbomhomem.Muitobom.Ambosolharamparaorapaz.Tarniedeixousairumpequenosom.– Jimmy – afirmou. – Éramos amigos. Andámos juntos na escola...

antigamente havia uma escola aqui.Agora está fechada, claro. Fazíamos tudojuntos,andávamosàpancada.Éramosumbelopardepatifes.Nuncapercebemosparaqueserviaaescola,sempresoubemosqueiríamospararaomar.Polly observou o seu rosto sério e atraente. Os seus olhos azuis-escuros

estavamfocadosnumpontomuitolongínquo.–Éramosinseparáveis.Eelaerasimpática,MistressManse...Naqueletempo.Calou-se.Apósumlongomomento,Pollyfalou.–Então,oqueaconteceu?Tarniebaixouacabeça.–AspessoasnãopercebemSemofensa–disseele.–Claro–respondeuPolly.–Aspessoasnãopercebemcomoomaréperigoso.Estamossempreaouvir

nasnotícias...«atempestadepassou,estátudobem»,quandooquequeremdizeréqueatempestadefoiparaomar,masqueremoslásaber.Esfregounovamenteapartedetrásdopescoço.–Eésó,ah,estãoapescardemasiado,pobrespeixes,malvadospescadores.

Quandosóestamosafazeroquesemprefizemos,umtrabalhoqueédifícil,mal

pagoequeé...Éperigoso.Émuitoperigoso,Polly.Pollymordeuolábio.–Nãotinhanoção.–Pois,aspessoasnãopensam.Sósequeixamdopreçodopeixe.Naqueledia

saímostodos.OJimmyianoCalinacomopaiOmeupaijáestavareformado.Erebentou vindo do nada. As previsões não falaram de nada; fomos avisadosquinzeminutos antes por telegrama.Ondas do tamanho de um prédio de trêsandares, a bater nos barcos como umamontanha que nos cai em cima.E nãohouve tempo... Não houve tempo! Sempre que nos levantávamos ecomeçávamosaandar,játínhamosoutraemcima...Nadasenãoágua.Ficávamoscom os pulmões cheios de água só de estarmos em pé; ela empurra-nos paraondequiserquevamos.Pollyobservou-o.Eracomoseasmemóriasdele lhepassassemà frentedos

olhos.– Lá conseguimos voltar ao porto, muito lentamente – todos perdemos

mastros,ficámossemredes,arrancadasdeestibordocomoseumamãoastivesseagarradoeastivessepuxadoparabaixo.Tarnievoltou-separaPolly,angustiado.–Não é que não tenhamos cuidado uns dos outros,mas é preciso perceber

comoéqueascoisassãonomar,quandoasondastêmnovemetrosdealturaeestáescurocomobreu.Nemsequervemosasmãosàfrentedosolhos.Nãosevênada de nada. Somos capazes de morrer afogados mesmo sem cair à água,percebe? – A sua voz estava alterada. – Quando chegámos a casa, malconseguimoscontabilizarosestragos.Estávamostraumatizados.–Claroquesim–concordouPolly.–Nósnão...NemsequermeapercebidequeoCalinanão estava connosco.

Pelomenosaoprincípio.–Tarnieengoliuemseco.–MeuDeus–exclamouPolly.–Issoéterrível.Tarnieesfregoufuriosamenteapartedetrásdopescoço.–Foihámuitotempo–explicou,olhandonovamenteparaafoto.–Eles...Eles...–Nada–afirmouTarnie.–Nemumcorpodeuàcosta.Oqueéinvulgar,sabe?

Normalmente...Normalmenteomartrá-losparacasa,masdestaveznão.–Quantosanostinha?–perguntouPolly.–Dezanove–respondeuTarnie,bruscamente.–MeuDeus–murmurouPolly.–Issoéhorrível.Entãofoiassaltadaporumpensamento.

–MeuDeus–repetiu.–ElaéofantasmadoJayden.Eraissoqueelaestavaafazerláembaixo.OhorrordominouPolly,quesesentou.–Eujáatinhavisto,sabe?Enãoestavaadarumpasseiopeloporto.OJayden

dizquejáoutraspessoasaviram.–Estáafalardoquê?–Ela...Elaéofantasma,Tarn.Elavaiatéaoportoeficaacontemplaromar...

Eunãopercebioqueelaestavaafazer.Tarniefitou-a,confuso.Pollyagarrouafotografiaentreasmãos.–Achoqueelavaiàprocuradeles–afirmou.–Achoqueaindaestáàespera

quevoltemparacasa.OrostodeTarnieficoucarregadoeeleanuiu,pensativo.–Durantemuitotempoelarecusava-seaaceitar–contou,devagar.–Mandava

aguardacosteira tantasvezesàprocuraque tiveramde impedi-la.Ela repetia,vezes semconta:«Elesestão lá.»Easpessoas tinhampenadela.Sempre foradifícil ter dinheiro para viver, e de repente tornara-se ainda mais difícil. Elarecebeu algumdinheirodo sindicato eusou-opara comprar aspadarias, numaaltura em que Mount Polbearne tinha vida que justificasse duas. Os antigospadeirosperceberamossinaisemudaram-separaocontinente,talcomotodasasoutraspessoas.Nuncafoimuitobom,masé tudooqueela tem,oquesempreteve.–Sinto-mepessimamente– confessouPolly, lembrando-sedospensamentos

malvados que tivera e das palavras que dissera a alguémque tivera uma vidapiordoquealgumavezimaginara.–Eupensei...Aestaalturaseriadepensarquejátivesseaceitado–comentou

Tarnie,abanandoacabeça.–Passaramquasevinteanos.–Elasóteveaquelefilho?–perguntouPolly.–Sim–respondeuTarnie.–SóoJim.Eleeraameninadosseusolhos.–Elanãodesistiu–refletiuPolly.–Continuaàesperadeles.Tarnie olhou em volta, para aquele pequeno espaço confinado, para a

fotografiaqueelanemsequerconseguiaternaparede.–Issoéterrível–disseele,emvozbaixa.Arrumaram em silêncio as restantes coisas de que Polly pensou queGillian

poderiaprecisareTarnielevou-asaohospital,juntamentecomumagrandecaixadebombonsqueencontraramna lojadeMuriel.Pollydespediu-sedelecomomaior sentimento de culpa de sempre, prometendo que, dali em diante, seriamaisbenevolente.

CapítuloOnzeNessedia,pelaprimeiravezdesdequechegara,Pollycomeçoua fazerpãodeconsciência totalmente tranquila. Para tentar aliviar a culpa que sentia emrelaçãoaGillianManse,decidiuprepararumpequenocestodeguloseimasparaela: argolas doces, brioches e pães de chocolate. Era um trabalho laborioso,intrincado,maselagostava.Ameiodatarde,levouNeilatéàjanela.– Ora muito bem – comentou, em tom triste. O sol cintilava na água,

iluminandooporto,eláforaestavaumdialindo.–Vamostreinaressevoo?Neilchilreou,zangado.Pollycolocou-onaportadaeelevoltouadescerparao

chão,àprocurademigalhas.–Acabaram-seasmigalhas!–ralhouela,sentindo-seculpadapelobriocheque

lhedera.–Estásmesmoaficargordo.Voltouaempoleirá-lonaportada.–Nãomeapetecianadaempurrar-teláparafora–alertou.–Játiveaminha

dose diária de pessoas a caírem.Mas tu tens mesmo... Vais ter mesmo de irembora.Tenhodetelevarabem,nãovamosfalarsobreisso.Masvaismesmoterdeirembora,porisso,tensdetepreparar.Incrivelmente, Neil olhou para ela desconfiado e depois bateu as asas

ligeiramente.Asuaasa ferida jáestavacurada;ninguémdiriaquealgumavezestiveraferido.

–Boa!–exclamouPolly.–Éisso!Porquenãocomeçasavoarevaisapanharumpeixe?Neil parecia observar o mar atentamente. Inclinou a cabecita quando as

gaivotas fizeramruídosguturais intensos, aoenvolverem-senuma luta.Mexeuasgarrasdeumladoparaooutro.Pollydeixoudeespalharfarinhanabancadaeaproximou-separaveroquesepassavaláfora.Noportoviudoispescadores–nenhumdeleseraTarnie–aconversareafumar.Jaydenacenou-lhe,equandoviu o que ela estava a fazer, juntou asmãos em concha à volta da boca parachamarpelopassarinho.–Ne-il!Ne-il!–gritaramtodos,paraencorajá-loaavançar.Jaydenacenou-lhe

comumacabeçadepeixe.Pollysorriu.–Estásaver?–disseela.–Estátudobem.Vailá.Vailá!Empurrou-o muito subtilmente. Inicialmente devagar,Neil elevou as asas e

depois,tãograciosocomoumpapagaio-do-marbebérechonchudoconsegueser,lançou-sevigorosamenteaoar.Pollybateupalmas.–Vai,Neil!–gritou.–Vai,meumenino!Vai!Neilficoualgonervoso,bateuasasasumpoucodepressademaiseinclinou-se

paraadireita,masospescadoresqueoapoiavamfizeram-noconcentrar-seeeleplanou,meiodesajeitado,atéàsmãosdeJayden,ondeumdeliciosopedaçodepeixeoesperava.–Iei!–aplaudiramtodos.– Iei! – repetiu Polly dentro de casa, com um sorriso rasgado. – Esperem,

deixem-meirbuscaramáquinafotográfica.Polly agarrou no telemóvel e, quando Jayden apontouNeil de volta à sua

janela e o deixou voar novamente, tirou-lhe uma foto em pleno voo, com osrapazesarirláatrás.Depoisdisso,elepassouatardeaquerervoarparacimaeparabaixoàprocura

depedaçosdebrioche.Pollypensouquetalveznãofosseotreinoidealparaserlibertado na natureza,mas confortou-a a ideia de que era uma boa prática devoo.Osbrioches,ospãesdechocolateeasargolasdocesficaramperfeitos.Polly

foi até ao porto com dois cestos e entregou-os ao cuidado de Tarnie, comindicações rígidas para partilhar um deles como rapazes e de levar o outro aMrs.Manse,nohospital.Souberaporelequeficariainternadaalgunsdiasparaobservação, em parte devido à cabeça e em parte para verificar o seu estadomental.Polly ficoucontente,masa lojadeGillianpreocupava-a.Senão fosse

limpa,apareceriamratos,decerteza.FaloucomMurieldamercearia.–Euatéajudava–afirmouMuriel–,mastrabalhoaquidozehoras.Nãoseise

tenhoforças.–Caramba–exclamouPolly.Todaagenteàsuavoltatrabalhavaarduamente

parasobrevivernaquelesítiominúsculo.–Achoqueémelhorfazê-losozinha.Nodiaseguinte,quandoláentrou,ohorrívelcheiroabolorestavaportodaa

parte,eteveacertezadeouvirorostilhardeumrato.Levoualgunsdospãesqueaindasesalvaramparafazerpudimdepão,quetalvezpudessevendercongelado–nãoeraamelhordasideias,maseraomelhorqueconseguiaarranjar–depoisagarrou na caixa de produtos de limpeza de Kerensa, arregaçou as mangas edeitoumãosàobra.Rapidamente se tornou evidente – o que não era nenhuma surpresa, pensou

Polly,dadaavidaduraqueGilliantivera–quealojanãoeraconvenientementelavada hámuito tempo. Haviamigalhas por entre os armários de vidro (bembonitos)dadécadade1950,fuligemnoteto,teiasdearanhanoarmazémondeafarinha jánãoeraguardada.Pollyperguntara-secomoseriapossívelgerirumapadaria sozinha, mas Muriel explicara-lhe que Gillian tinha ajuda durante overão.Alémdisso,hámuitoquedesistiradefazerpão,eramaisbaratoepráticocompraraumaempresacentraldedistribuição. Infelizmente,essaempresaeraespecialistaemfarinhaadulteradabarataeprodutoshorríveisdelongavalidade;talvez não custassem muito, mas o seu preço refletia-se no sabor. Se haviaalguma coisa que Polly era incapaz de suportar era pão mau – pão, a pedraangulardaalimentação,umdosalicercesdavida!Secomêssemosumpãomau,entãoorestododiatambémcorreriamal.Equandoasmodasmudarameopãopassouaserencaradocomoalgoquenos

tornaimediatamentegordosedoentes,issosóveioreforçarasuaopinião.Seaspessoasteriamdepassaracomermenospão,maisumarazãoparaqueopãoquecomessemfossedamelhorqualidadepossível.Talcomoorestodomundo,Pollyeraigualmenteabertaaofascíniodopãodeformamaisbaratocomoinvólucrodeumafabulosasanduíchedebaconcrocanteehúmido.Masemrelaçãoaopãocomoalimentoemsi,aquelaporcariaeraumdesperdíciodedinheiro.Sobretudoquandoofornoeoequipamentoestavammesmoali,àesperadeseremusados.Fazer pão demorava tempo, mas não era difícil, e o resultado valia sempre,sempreapena.Enquanto aspirava, varria e esfregava, Polly percebeu que, ao contrário de

odiaraquelatarefa,estaatéestavaasercatártica,talcomoforalimparopequenoapartamento;osolbrilhavaatravésdas janelasagora lavadas,eelacomeçoua

sentir-se um pouco mais útil. Uma ou duas pessoas espreitaram pela porta àprocuradepãoeperguntaramporMrs.Manse;anotíciaespalhara-sepelavila.Polly respondeu, no tommais triunfante que conseguiu, queMrs.Manse deraumaquedaequeestavainternadaparaobservação.–Entãovaitomarcontadaloja?–perguntouJaydenquandopassouporlá,à

horadealmoço.–Nãotemumfolhado,nemnada?–Nada–respondeuPolly.–Desculpe.Osfolhadosqueelavendiaerambons?–Não– confessou Jayden,desanimado.–Mas já sabeoque sediz sobreo

piorfolhadoquejácomemos:continuaasermuitobom.–Nãosabe–replicouPolly.–Porquenãopassaafazerpãoaqui?–sugeriuJayden.–Vocêsabefazerpão,

porisso...–Porque–explicouPolly–éligeiramenteilegalentrarnalojadeoutrapessoa

ecomeçaratrabalharlá.–Maséissoqueestáafazeragora,nãoé?–perguntouele.Pollysorriu.–Sóestouaajudar.–Porquenãoajudaafazer-meumfolhado?–insistiuJayden.–Ditoassimatéparecefácil–comentouPolly.

Quando,aofimdodia,Tarnieespreitouàportadapadaria,estavacansado,masgenuinamentesurpreendido.–Uau–comentou.Pollysorriu.Tambémestavaexausta–maldormira–masnemacreditavano

progressoquefizeranalimpezadapadaria.Atélimparaosfornos,friosecheiosdegordura,pornãoseremusadoshámuitotempo,equeagoraestavamprontosavoltaremàvida.–Nãoviaalojaassim...–AvozdeTarniedivagou.–Háanos.–Comoestáela?–perguntouPolly.Tarnieencolheuosombros.– Beligerante. Eles querem fazer um exame psicológico completo e ela

mandou-osàquelaparte.–Ah–comentouPolly.–Bomparaela.Aindabemqueinsultaaigualdadede

oportunidades.Elacomeuomeubrioche?–Sim–respondeuTarnie.–Disse-mequeerahorrível,mascomeu-otodo.

–ISSOébomsinal–replicouPolly.Tarnievoltouaolharemvolta.–Éumapenaqueela seja tão teimosaeobstinada–afirmou.–Querdizer,

vocêprecisadeemprego,certo?–Claro–afirmouPolly,comfervor.–Amim,parece-meóbvio–disseTarnie.–Vocêfazopãoeelacontinuaà

frentedonegócio.Trabalhamjuntas.Pollyendireitou-se.–Hum...–Quefoi?–perguntouTarnie,confuso.–Elaodeia-me!–Eentão?Ésóumemprego.OJaydenodeia-me.– O Jayden idolatra-o – corrigiu Polly. – E passar dez horas por dia neste

espaçominúsculocomela?Seriaumdesastre,acredite.–Então,oquevaifazer?Inscrever-senosubsídiodedesemprego?–Nãopossoserpescadora?Tarniesorriu.Osseusdenteserammuitobrancosnorostobronzeadopelosol.–Temdesenascerparaisso.–Issoédescriminação.–Asério.Senãonasceuapescar,vaiserpéssima.Pollyolhouparaosfornos.–Talvezpudessetrabalharaquialgumtempo...Sóatéelavoltar.Tarnieencolheunovamenteosombros.–Achaqueestáàaltura?–Nãosei–respondeuPolly,comtotalsinceridade.–Evocê?Tarniesorriu.–Sabe,achoqueseriacapazdefazertudo,setentasse.Pollysorriu-lhedevolta.–Excetopescar–concluiuela.–Ahsim,excetopescar.

NodiaseguintePollydormiuatétardeefoiacordadaporumroncaraltíssimo,seguidodeumabuzinainsistente.– Quem é? – perguntou, abrindo a janela. Estava um dia glorioso, nuvens

aveludadaspercorriamohorizontecomocriançasacaminhodapraia.

EraHuckle,nasuamotaridícula.Puxaraosóculosparacimadocapacete.–Ei!–cumprimentouele.–Comoestá?–Ótima–respondeuPolly,respirandooardomar.–Oqueestáaquiafazer?Eleficousurpreendido.–Éhoje,lembra-se?Polly abanoua cabeça.A sua agendanão estavapropriamente a rebentarde

compromissossociais.–Não–ONeil.–OquetemoNeil?–Vamoslevá-loàreserva.Combinámosnosábado?Polly esquecera-se totalmente. Aliás, fingira para si própria que não iria

acontecer.

OprimeiroinstintodePollyfoidizerquenão.Não,não,não.AgoraqueNeiljávoava, gostava de a seguir para todo o lado, mais do que nunca. Estava emguerra com a chaleira e dançava à sua volta enquanto fervia; embora ela omandasse afastar-se, ele tinha tendência para fazer cabriolas na direção dachaleirasemprequeelaapitava,eporvezespicava-adeformaagressiva.Umavezconseguiradesligá-lanobotão,oqueparaeleforaobviamenteumagrandevitória.–Saidaí–ordenouPolly,carregandonobotão,paragrandeconsternaçãode

Neil. Não queria acreditar que se tivesse esquecido, mesmo com tudo o queestava a acontecer. Mas não podia ter um papagaio-do-mar como animal deestimação.Eraerrado.Eracruel.Todaagentelhedisseraisso.Aindaassim,parecia-lhequeahorachegaradepressademais.Acariciou-lhe

as penas e, distraída, deu-lhe um bocadinho do brioche que sobrara. Neilaninhou-senoseudedo,comosesoubesse.–PoramordeDeus–exclamouela,zangada.–Okay,vamoslátratardisto.

– Parece desanimada – comentou Huckle quando Polly finalmente apareceu,após um duchemuito rápido e depois de ter enfiado as suas calças de gangacoçadaspreferidaseumasvelhassapatilhasConverse.

Pollyestavatriste.– Vá lá, anime-se – encorajouHuckle. – Olhe, no sítio onde eu cresci não

convinhaafeiçoar-nosmuitoaosanimais.–Eissoeraonde,umaquinta?–perguntouPolly,irritada.–Exato,umaquinta–confirmouHuckle.Fez-seumbrevesilêncio.Pollyolhouparaosidecar.–Tenhomesmodeentrarparaestacoisa?–Não–respondeuHuckle.–Podeviratrásdemim.ONeilpode iravoare

levá-lapresanasgarras.Huckleestendeu-lheumcapacetepretorétrocomumapequenapalaemcima,

aoestilodeumboné,eumgrandepardeóculos.–Despenhou-seaquipertoumaviãodeguerraalemão?–perguntouPolly.– Obrigada, Huckle – retorquiu ele–, por dedicar o seu tempo e esforço a

ajudaralguém.Respirandofundo,Pollyenfiouocapaceteporcimadoscaracóiseentroupara

osidecar. Até era confortável, por incrível que pareça; por dentro, tinha umaalmofadadepeleatodaavoltaeaspernasficaramimediatamenteesticadas,porisso,eracomoumsaco-camadeluxo.DepoisdeelaacomodarNeil,quetinhaacabeça fora da caixa, a olhar em volta,Huckle aumentou a rotação domotor,carregounoacelerador–tinhabotaspretasgrandes–eamáquinaarrancou.Lá dentro era igualmente barulhenta, até espantava os pássaros das árvores.

Pollynãoestavaàesperaquecriassetantaagitação.Emtodasasruasporondepassavamaspessoas apontavam, as crianças riameosvelhotes sorriam.Pollypensouqueeraumpoucocomoserfamoso.O passadiço estava aberto, com a calçada a reluzir ao sol da manhã.

Atravessaram-no e Huckle acelerou pelas calmas estradas rurais. Galgaramcurva após curva, passando por extensos campos de rainhas-dos-prados,manadas de vacas desinteressadas, que conversavam à volta dos seusbebedouros, epor algunsbonitospotrosPalominoquegalopavamnumcampono topo de uma colina. Lá em cima, àmedida que começavam a atravessar apenínsula, os grasnidos agudos das gaivotas deram lugar a gaviões a voar emcírculos perfeitos e a tordos de primavera a trinar empoleirados em sebes.Coelhosatravessavamaestradaacorrer,pequenasmanchasdepelomacio,eovento fustigava amota, embora no seu aconchegantesidecar, com a ajuda docobertorquelevara,Pollynãosentissefrio.Se não fosse a tarefa que tinham pela frente – ela mantinha as mãos bem

apertadasàvoltadacaixadeNeil–estariaaadoraraviagem.Devezemquando

Huckle voltava-se para ela, para ver se estava a gostar,mas estava demasiadobarulhoparafazerfosseoquefossealémdeanuir,avislumbrarderepenteumaenseadabanhadapelosoleáguaaressaltarnascolinas,ouumantigocasarãoempedradaCornualhaaomesmotempoausteroeacolhedor,comoseutelhadodeardósiaporentreoverdeondulado.Comoestavatãopertodaestrada,sentia-separtedocampoqueatravessava,eemboravissempoucoscarros,osciclistasecaminhantes pareciam satisfeitos por vê-los, alguns até acenavam. Estavaentusiasmada quando viu o cruzamento, com uma placa castanha doNationalTrust a dizer «Reserva do Papagaio-do-Mar». O seu ânimo afundou-se. Nãopensesnisso,disseasimesma.Pensanoutrascoisas.OlhouparaaslongascoxasdeHuckle,altamenteconfianteaolemedamota.OK,nissotalveznão.A paisagem ali mais a norte era bastante rochosa e deserta, o vento mais

gélido. Este lado da Cornualha dava para o mar da Irlanda, com as suastempestadesgeladaseondasencrespadas.Oambienteperfeitoparaumaavedeágua fria, disse a si mesma. Pensa em como se vai divertir com os seus 1,4milhõesdenovosmelhoresamigos.Antes de sair de casa, pensara fazer algo aNeilpara omarcar, caso um dia

decidissevisitá-lo.Talvezpudessepedirquando láchegassem,mas talvezelespensassemqueeraestúpido.Etambémpodiaesperarqueeleselembrassedela,masissoERArealmenteestúpido.Eleeraumaave,elaeraumamulher.Nuncairiaresultar.Pollysorriudesoladaperanteaideiaebalançavacomascurvaseasvoltasdaestradinha–amotaatéerabastantesuave,depoisdenoshabituarmosaestartãopertodoasfalto.

Hucklefoiàfrente,eàsuaesperaestavaumaraparigasimpáticacomumafigurarobustadequemjogavoleiboleumsotaqueneozelandêsnãofingido.–Vamosentãodarumavistadeolhosaopequenote–afirmou,tirandoNeilda

caixa com uma facilidade adquirida com a prática.Neil olhou para Polly empânico.–Estátudobem–confortouela.–Estátudobem.– Então, asa partida? – A rapariga mexeu-lhe com cuidado e atenção,

verificandotodooseucorpo.–Fezumótimotrabalho,sim?–Sim.–Pollyapercebeu-se,horrorizada,dequeestavacomdificuldadesem

controlaravoz.–Claroqueengordasteumbocadito–dissearaparigaaNeil,comfirmeza.–

Vaisterdeacelerar,pequenino,saireiràprocuradepeixe.Neilpioue tentouaproximar-sedePolly,masa raparigaágil agarrou-ocom

firmeza.–Posso...Querdizer,háalgumaformadeomarcar?–perguntouPolly.–Só

paraocaso...–Paraocasodequerervirfazer-lheumavisita?–Araparigacoçouacabeça.

–Bom,eunãopossoEnfim,elesmarcam,massóparaestudaremamigração.Nãoseiseseriaboaideiaterumamarcaquedepoisinduzisseemerro,percebe?–Tudobem–aquiesceuPolly.–Foisóumaideia.–Olhe–explicouarapariga–,sabequeestáateraatitudecertaparaele,não

sabe?Pollyanuiu,comolábioatremer.–Elenãoéumanimaldeestimação.Elefoifeitoparaandarembando,para

acasalar e criar os filhos, tal como o resto do mundo. E merece essaoportunidade,nãoacha?–Sim–afirmouPolly,recompondo-se.–Sim,acho.–Aindabem.Então,venhamevamoslibertá-lo.

Ao longo do cume da colina havia um caminho (assinalado por pequenospapagaios-do-mar)quedesciaatéumenormeafloramentorochosoqueentravapelo mar dentro. Polly sobressaltou-se. Havia ali tantos pássaros que seriaimpossível contá-los. Estavam por toda a parte; grandes, pequenos, de bicolaranjaedebicopreto.Grasnavam,mergulhavamnomar,saltavamdeumladoparaooutroouestavamsimplesmente imóveis sobrea rocha,contemplandoomar, inescrutáveis. Pareciam um enorme tapete preto e branco; era uma visãoextraordinária.–Eleserábemtratado.Polly agarrou na caixa. Neil pressentiu claramente que qualquer coisa se

passava, porque saltava num frenesim e virava a cabeça para todos os outrospássarosqueestavamnoar.–Écomosesoubesse–referiuPolly.–Esabe–afirmouHuckle,colocandogentilmenteobraçoporcimadoombro

dela.Comaoutramão,tirouqualquercoisadobolso.–Tome–disseele.–Seráquepodemosusaristo?Eraumapequenaetiquetaqueusavaparafecharosseusfrascosdemel.Erade

plásticoeficavaapertada,maseraleve.Tinhagravado«MelHuckle».–Nãoseibem...–continuouele.Adescontraídarapariganeozelandesaolhouparaaetiqueta.–Sim–afirmouela–,issodevefuncionar,enãoseconfundecomasmarcas

daspesqueiras.Fantástico.PollyolhouparaHuckle.–Obrigada.– Não tem de quê – respondeu Huckle. Pegou na etiqueta e colocou-a

cuidadosamenteàvoltadapernaesquerdadeNeil.Estecomeçouimediatamenteapicá-lo,furioso.–Chiu–ralhouPolly.–Nãofaçasisso.Senão...Pegou no passarinho e acariciou-lhe as penas atrás da cabeça, o que ele

adorava,pelaúltimavez.Depoisesfregouonariznobico.–Tu–confessouela–fosteoprimeiroamigoqueeutiveaqui.Obrigadapor

isso.Pollyolhou-onosseusolhospretos.–Agora,vai.Voaemliberdade.Fazamigos,constróininhos.Elapousou-onumarocha.Neilestavacompletamenteabsortopelochilreare

peloesvoaçardosmilharesdeavesàsuavolta.Então,deuumpequenopassoemfrenteevoltouarecuar,olhandoparaela,comoqueafazerumapergunta.–Não–afirmouPolly,comavozligeiramenteentrecortada,outravez.–Está

tudobem,vai.Neil avançoumais um pouco. Ela acariciou-lhe a cabeça uma última vez e

levantou-se.Com cuidado, hesitante – era notoriamente mais gordo do que os outros

papagaios-do-mar–saltoudarochaparaadolado.Osoutrospapagaios-do-marreuniram-seimediatamenteàsuavoltaparaveroqueera.Houvechilrearebaterdeasas.–Nãosejammausparaele–gritouPolly,ameaçadora.Neilvirou-separatrás,

porbrevesinstantes.Pollypegounotelemóvelparatirarumaúltimafotografia,mas quando apontou a câmara, percebeu, para sua grande tristeza, que já nãoconseguiadistingui-lonomeiodascentenasdeoutrospássaros.–Oh,Huckle–chamouela.–Qualé?Nãoovejo.–Vá.Tire.Um grupo de aves levantara voo, convergindo para um rapaz com um polo

colorido que estava a distribuir comida. Claro que, lá no meio, com algumadificuldade, mas certamente a aguentar-se, estava um papagaio-do-mar

rechonchudocomumapequenaetiquetanapernaesquerda.Pollyobservou-oatéeleplanarsobreopenhasco,entreosoutrospássaros,eacabarpordesaparecerdevista.Huckle apertou-a e encaminharam-se para a saída. Polly estava demasiado

perturbadaparafalar.–Euseiqueéestúpido–acabouporarticular–,ésóumpássaro.–ONeil não era só um pássaro – discordou Huckle, ferozmente. – Era o

melhorpapagaio-do-marquejáconheci.IstodeixouPollyperigosamentepertodeexplodir,meioarir,meioachorar,

porisso,manteveabocafechada.– Há aqui uma café, se estiverem com fome – sugeriu a animada rapariga

neozelandesa,mas quando lá entraram, não só cheirava a batatas fritas frias efins de semana prolongados tristes, como estava recheado de imagens depapagaios-do-mar, peluches fofos de papagaios-do-mar e recordações depapagaios-do-mar.Eratudomenosatrativo,masotempoiapassando.–Temfome?–perguntouPollyaHuckle.– Preferia comer um papagaio-do-mar – respondeu ele. – Desculpe, fui

insensível?–SIM–exclamouPolly,evoltou-separaa rapariga.–Obrigadapor tudoo

quefez.–Oraessa.–Deixo-lheomeunúmerodetelemóveleomeue-mail...Araparigaolhouparaopapelsempercebermuitobem.–Seelenãoconseguirou...SelheaconteceralgumacoisaPollysentiuavozembargada.–Estábem–respondeuarapariga,semficarconvencida.–Vamos–convidouHuckle.Araparigadeitou-lheoolhar.–Prazeremconhecer-vos–disseela,numtomqueatéPolly,noseuestadode

tristeza,reconheceucomoumflirt.Huckledeu-lheoseusorrisorasgadoderapazdequintaamericanaeconduziu

Pollydevoltaàmota.

Pollydecidiuesperarparachoraratéestarrefugiadanosidecar,ondeninguéma

podia ouvir, à exceção das crianças que visitavam a reserva, que não queriamacreditar que alguém que tinha a oportunidade de andar num sidecar pudesseestartãotristeapontodechorar.Pollysabiaqueestavaaserridículaedramática,enemconseguiaimaginaro

queHuckle pensaria dela,masmesmo assim...Neilera apenas um passarinhobebé,masconseguiraqueelasesentissemenossónafasemaissolitáriadasuavida. Era-lhe permitido sentir saudades dele. Seria aquela, a sensação de terfilhos?Masdepoislembrou-sedeamãelhedizerqueDeusfezosadolescentestãoterríveisparaqueficássemosfelizesquandosaíssemdecasa,oqueexplicavamuitacoisa.Finalmente deu por encerrada a sua sessão de choro e apercebeu-se, através

dos óculos, que não fazia amínima ideia de onde estava.Não iamnamesmaestrada que os trouxera até ali, parecia que estavam a percorrer a costa norte,com omar a aparecer e a desaparecer de vista sempre que atravessavam ummonte.OlhouparaHuckleinquisitiva,maseleolhavaparaossinaisdetrânsitocomumarconfusoenãoreparou.Então,opédePollytocounacaixadecartãovaziadeNeileelatevedefazerumesforçoenormeparanãovoltarachorar.ComostravõesaguinchareumamanobraquequaseatirouPollyparaforado

seulugar,amotavirousubitamenteàdireitaparaumcaminhodeterra.–Desculpe–articulouHuckleporbaixodobarulhodomotor.Pollypercebeuporquequase falharaaviragem;nãoestavaassinalada.Onde

iriadar?Amotadavasolavancosaolongodocaminhonãopavimentado.Elaestavaà

espera que levasse a uma quinta, mas curvou ao longo de um campo raso edepoissubiuporumasdunasdeareia,ondeestavamparadosváriosjipes.Hucklepassouao ladodeles, continuoua subireparouamota.Depoisdobarulhodomotor, o silêncio repentino parecia quase avassalador. Polly saiu do sidecar eespreguiçou-se.–Ondeestamos?–Olhouemvolta.Hucklefitou-a,divertido.–Jáparoudechorar?–perguntou.–Sim.Achoquesim.–Chorarnãofazmal,sabe?–Eusei–respondeuPolly,esfregandoosolhosparaselivrardosvestígiosde

rímel.Estavam no topo das dunas e contemplaram o horizonte. Polly ficou

maravilhada.Estavamnocimodeumalongapraiadeareiadourada.Eraimensa,parecia estender-se para sempre. Enormes ondas batiam na areia, uma

rebentaçãoenroladaqueseprolongavaporváriosquilómetros.Apraiaestavaquasetotalmentedeserta,àexceçãodeumacabanademadeira

edascabeçasecorposvestidoscomfatosdeborrachadecercademeiadúziadesurfistasqueestavamnaágua.Pollysóconseguiaterumaideiadadimensãodasondaspelasminúsculasfigurasquepareciamdançarsobreelas.–Quesítioéeste?–perguntou.Mesmonoiníciodeépocaaspraiasdesurfe

eram completamente inundadas de gente, com os surfistas a acotovelarem-se,muitasvezesatéhavialutas.Masaqui...–PertenceaReubenFinkle–explicouHuckle.–Eleéumaespéciedemiúdo

géniodeSiliconValley.Fezumafortunafabulosaavenderengenhocasdedefesaultrassecretas.Reformou-seaosvinteeoitoanosparafazersurfeodiatodo.–Impressionante–afirmouPolly.–MeuDeus,estapraiaédele?–Éverdade.Acasadeleficaaliemcima.Écompletamentesecreta,masele

deixaalgunsamigosficaremládevezemquando.–Nãoposso!–Euconheci-oemWharton...Enfim...Pollyolhouemvolta.Quecenárioencantador.Osoldespontaraefaziaaareia

finabrilhar.Eraoprimeirodiarealmentequentedoano.–Vamos?–convidouHuckle.–Temfomeouaindaestámuitotriste?–Estoutriste–confessouPolly.–Mastambémtenhoalgumafome.Huckledescalçouasbotaseasmeiasedeixou-asjuntoàmota,ePollyseguiu-

lhe o exemplo com as suas Converse. Depois, arregaçaram as calças edeslizarampela duna abaixo. Polly caiu,Huckle riu-se dela e ela fez-lhe umacareta,quasecomosefossenormal.Quando chegaramà beira da água, a areiamolhada estava deliciosa; a água

aindaestavafria,maseraumadelíciadechapinhar.EfoioquePollyfez.–Éincrívelcomoalgumaspessoastêmtanto–comentou.AcasadeReuben

Finkle aparecera no horizonte, um espantoso círculo de vidro moderno quepareciaalgoondeTonyStarkviveria.–Sim–afirmouHuckle,cauteloso.–Masnãoémaravilhoso,ofactodeele

preservar uma coisa assim tão bonita? E faz muito pela preservação dosoceanos.–Pareceserumtipoporreiro.–Éumtotó.Masfazmuitopelanatureza.

DepoisdeacenaremaalgunsamigosdeHuckleque faziamsurfe, chegaramàpequenacabanademadeiraquePollyviradasdunas.Estavapintadadebrancoeeraumpequenocafé,commesasecadeirasespalhadas,umbareumacozinhaabertacomumequipamentoinvejável.– Uau! – exclamou Polly. – Incrível. Como é que as pessoas ainda não

vandalizaramisto?Osmiúdosdaquidevemsaber.Aestradaestámesmoali.–Esabem–confirmouHuckle.–Sonhamqueumdiaeleosdeixeviraqui.E

existemmuitosrumoresdecâmarasdevigilânciaeguardascommetralhadoras.Pollyolhou-oderelance.–Asério?–Ah,sãosórumores–desvalorizouHuckle.–Provavelmente.Sentaram-se numadasmesas.Estava uma temperatura amena e confortável,

nãomuitovento,ePollysentiaopodercurativodosolnopescoço.Suspiroudealívio.–Élindo.Umhomembaixoelargocomcabelocortadoàmilitareumrostoderapazola

petulante cheio de sardas saiu da cozinha de avental branco por cima doscalções.–HUCK!MAN!Huck levantou a mão e fez uma espécie de manobra de cumprimento

complicada,que falhounoúltimomomento.Ocozinheirodeu-lheumas fortespalmadasnoombro.–Eletemumchefedecozinha?–perguntouPolly,semconseguirconter-se.–Queméquetemumchefe?–perguntouohomembaixo.–Desculpe–declarouPolly.–Estavasóafalardohomemqueédonodisto

tudo.Olá.Euchamo-mePolly.–Eeusouohomemqueédonodistotudo–replicouohomem,estendendoa

mão. – E gosto de cozinhar. Mas também tenho um chefe. Aliás, tenho trêschefes. Fixe. Reuben Finkle. Prazer em conhecê-la. É amiga do Huckle, ah?Certo?Tenhorazão?Umaamigaespecial?Umaamigasexyespecial?PiscouoolhoaHuckleefezumpequenomovimentodeanca.Pollypercebeu

o que Huckle queria dizer quando chamou totó a Reuben, embora nãoconhecesseosignificadodapalavra.–APollyestáapassarummaubocado–explicouHucklenoseutomlentoe

deliberado–,porisso,penseitrazê-laatéàmelhorcomidadaCornualha,paraaanimar.– Assim é que é! Quer umMartini? – Reuben olhou para ela e estalou os

dedos.–Não,não, já seidoqueprecisa:umamargarita.Estou certo ou estoucerto? As margaritas afastam tudo o que é negativo. Até acordarmos nagaragem.AH!–Deixousairumagargalhadasonoraalgosurpreendente.–Hum...Polly estava a ter um diamuito confuso.Huckle fez um leve aceno na sua

direção.–Sim,porfavor–disseela.–Cervejalight,man?Cervejalightparaorapazdaquintadecabeloclarona

mesadocanto?–Claro–respondeuHuckle.–Mandavir.Reuben voltou com as bebidas e sentou-se. Fazia as pessoas sentirem-se

descontraídasnasuapresença,porquefalavasempararsobreosurfequefizera,quantasmiúdastiveraafestejarcomele(Pollypensavaquefestejarsignificavauma festa simpática, mas na verdade significava beber até ficar tecnicamenteinconsciente),sobrecomooverãoiriaserespetacularequantodinheirorecusarapelapropriedadeaumoligarcarussoqueoameaçaramandarparaaSibéria,masficoutudobem,porqueReubensabiakung-fueaparentementeassustara-o.EaPollygostavadaGuerradasEstrelas?Pollyrespondeuquesim,pelomenosgostavadeHarrisonFordnaGuerradas

Estrelas, aoqueReubenesboçouumolhar ligeiramente furiosoedissequeosfilmes novos eram altamente subestimados e que as pessoas tinham de osreavaliar,oquefezdeseguida,comalgumaexaustão.OfactodenãoterdefalarsignificavaquePollypodiabasicamentedesligare

desfrutardosomda rebentaçãoedoazuldomare,concluiu,da reconfortantepresença descontraída deHuckle, com a sua enorme estrutura esparramada nacadeirademadeiragasta,osseus longospéscomunhascurtasbemarranjadasenterrados na areia. Os seus olhos era da cor do mar. Ela sabia que era da(excelente)margarita,masderepentesentiuumavontadeenormedepôrospésnocolodele.Abandonouaideiaimediatamente.EstavaareceberumavibraçãomuitofortedeHuckle,eessavibraçãoera:sereiumdocedepessoadesdequenão me perguntes nada sobre a minha vida pessoal nem que te aproximesdemasiado.Tudobem.Eracomoseasuavidafosselivredecomplicações.Lembrou-seda

rapariga da reserva de papagaios-do-mar. Parecia altamente improvável queHuck fosseumhomemcompoucasofertas.E, sendoassim,escolhiaquasedecertezaficarsozinhoporessarazão.Acertaaltura,seminterromperasuatorrentedeideias,eenquantoperguntava

aHuckledequecorhaveriadepintaroseunovohelicóptero,Reubenlevantou-sedeumsaltoecomeçouacozinhar.OcheiroeocrepitardoalhoselvagemedascebolasnafrigideirafizeramPollyaperceber-sedafomequetinha,edequeamargarita lhe subiradiretamenteàcabeça.ReparouqueReubenolhavaparaum refrigerador de vinhos. Pensou por um instante e escolheu um Chablisgelado.ParalimparacabeçaeparardeolharparaHuckle,cujosolhosazuispesados

pareciamtremerligeiramente–comumapessoatãodescontraídaeradifícildizerseestariaadormirounão–Pollylevantou-seeseguiuReubenatéàcozinha.–OReubencozinha?–perguntouela.– Eu adoro cozinhar – respondeu ele. – E cozinhomuitíssimo bem. Se não

tivesse sido um génio da informática, teria umas nove estrelasMichelin. Sãoduasamaisdoqueomáximoquealguémjárecebeu.Elasorriu.–Oqueestáacozinhar?–Cozinhotudooqueapanhamos–explicouele.–Temosalgunslagostinsque

euapanheidemanhã.Aépocaestáaacabar,masaindasãomuitobons,aáguaaindaestáfria.–Elacozinha–disseHuckle,sonolento,ládafrente.Reubenlançou-lheumolharpenetrante.–Ahsim?Provavelmentenãomelhordoqueeu.–Não,de certezaquenão– afirmouPolly. –Não soubemumacozinheira.

Soumaispadeira.Polly corou ao dar-se conta de que fora a primeira vez que dissera aquelas

palavras em voz alta. Deve ter sido a combinação do álcool e da excecionalautoconfiançadeReuben.–Masadoroasuacozinha.Elesorriu-lhe,satisfeito.–Sim.Étopodegama.Custou250millibrasesterlinas.VeiodaAlemanha.Pollyanuiueducadamente.–Querfazerqualquercoisaparaacompanharoalmoço?–Hum–respondeuPolly.–Nãosei.Aindapartiaalgumacoisanasuacozinha

caríssima.–Nãosejaparva–replicouReuben.–Eucompravaumanova.Derepente,Pollyviuqualquercoisaláatrás.–MeuDeus,aquiloéumfornoalenha?–Ésim,senhora–respondeuReuben.Estáligadoháumahora,jáestápronto

para a ação.Não se pode ter uma cozinha ao ar livre sem um forno a lenha.Como faríamos as pizas? Preferia morrer a comer pizas horrorosas. Eu façopizasexcelentes.–Estouaver–afirmouPolly,sorridente.Começavaaficarentusiasmadacom

Reuben.–Bom,sequiser,possofazerfarinata.Reuben abriu a porta de ferro do forno. O calor pulsou de lá de dentro,

abrasador.Depoisendireitou-se.–Oquê?–Franziuosobrolho.Pollypensouquedeveriahaverpoucascoisas

quemenosagradassemaReubendoqueouvircoisasquenãoconhecia.Pollysorriu.–Bom,temfarinhadegrão-de-bico?–Claro–respondeuReuben,carrancudo.Pegounumwalkie-talkieque tinha

presonocinto.–Farinhadegrão-de-bico.Escuto.–Éumaespéciedepanqueca–explicouPolly–,maséboa,vaigostar.Reubenolhou-aintensamente.–Okay–disseele.–Peixecomacompanhamentodepanquecas.Serve.Afarinhafoitrazidaporumacriada,quesorriueducadamentemasnãodisse

nadaquandoPollylheagradeceu.Pollyperguntou-sesenãofalariainglês.– Então – comentou Reuben, observando-a enquanto ela reunia os

ingredientes.–AndaacomeroHuckle?Pollyquasedeixoucairosovos.–Porquê?–perguntouela.–Estáacandidatar-se?Reubenexplodiunovamentenasuagargalhadasonora.–Huck–gritou–,estaaquiéafoita.Pollymisturouamassacommestria,adicionandomaisfarinhadegrão-de-bico

eáguaeamassando-aatéficaromaisfinaqueconseguiu.Depois,comcuidado,untoucomóleoopratoquentedofornoedespejouamistura,virandoamassaaofimdealgunsminutos.Apartedebaixotinhabolhaspretas,oqueeraótimo.Aofimdeumminutodooutro lado, tirouamassacomumapácompridadeixadajunto ao forno para essa função, colocou-a num prato com bastante sal epimenta,cortou-aemquartosedeu-aaprovaraReuben.Foitãogulosoquemalsoprouopãoequeimouaboca.–Bolas–exclamou.–Estúpidofornosuperquente.–Éumexcelenteforno–replicouPolly.–Fiqueicominveja.Passadoumsegundo,eledeuumadentadaedepoisdevorouoresto.–Fogo–dissecomabocacheia–,éespetacular.

–Eusei–concordouPolly.–Sãoboas,nãosão?Polly fez mais uma para Huckle, que Reuben insistiu em comer, mas

finalmente levou-lhe uma. Então, apareceram os surfistas e fizeram tantoselogiosqueelafezmaistrêsfornadasantesdeReubensequerselembrardepôropeixeagrelhar.Ossurfistaseramtiposgrandesesimpáticos,amaiorpartebritânicos.Aúltima

pessoa a sair da água, contudo–despindoo fatodeborrachapara revelar umlindíssimo biquíni com bolas vermelhas, e puxando para trás o cabeloencaracoladolouroecomprido–foiumadasraparigasmaisbonitasquePollyjávira. Parecia uma modelo de biquínis de uma revista de roupa de desportoamericana. A sua pele dourada estava ligeiramente bronzeada e sem qualquermaquilhagem;tinhaolhosverdesfelinoseumabocalarga.AtéHucklearregalouosolhosquandoelasubiupelapraiacomumabelíssimatúnicabordadasobreoseulongoeágilcorpo.Pollyperguntou-secomoseriapoderfazeraquilo–seráqueelanotavaque,paraondequerquefosse,todaagenteaseguiacomoolhar?Estariacompletamentehabituada?Iriaacordarcomcinquentaanoseperguntar-sequandoéqueomundomudara?Araparigatiroudescontraidamenteumalatadecervejadofrigorífico,deuum

longogolecomoseestivessenumanúnciopublicitárioeencostou-seaReubencomoumgato.Eraquaseumacabeçamaisaltadoqueele.– Olá, meninos – cumprimentou ela. Reuben rosnou-lhe. – Que cheirinho!

Deviastervindohojedemanhã,estavaumaloucura,fabuloso.–Sim,sim–respondeuReuben,enfadado.Nãolheofereceufarinata.A deusa voltou a sua atenção momentaneamente para Polly, que teve a

desconfortável sensação de estar a ser examinada por uma máquina eimediatamentecategorizadacomonãoameaça.Tevevontadede lheestenderamãoparasercarimbada.–Olá–dissearapariga,comumsorrisorasgadoquemostrouosseusdentes

brancosperfeitos.–Chamo-meJaz.–Hum,olá,Jaz.EusouaPolly.JazolhouparaPolly,queestavaafazermaisfarinata,efranziuosobrolho.–Eledeixou-lheusaracozinha?– Jaz, não te queres sentar? – instigou Reuben. – Estamos um bocado

ocupados.Jaz fez um beicinho encantador, mas voltou para os outros surfistas, que a

rodearamcomoaumarainha.–Bolas,asuanamoradaéLINDA–deixouescaparPolly,sempensar.Reuben

nãorespondeu,oqueeracasoraronele.Oalmoçofoilagostinsfritosemalhoelimãonumacamadesaladaderúcula

fresca. Todos comeram com vontade, e o chablis foi um acompanhamentoperfeitoparaarefeição,bemcomoosolquenteeotagarelarpatetadossurfistasao falarem de hang tens, Sex Wax e outros termos de surfe que Polly nãopercebeu.Masestavaadivertir-se.Apósarefeição,eocafé,eumacaixaenormederebuçadosamericanosque

Reubenfizerapassarportodos,osrapazesvoltaramàágua.–APollysabesurfar?–perguntouHuckle.– Sei – respondeu Polly. – Tenho o corpo perfeito de surfista, não tinha

reparado?Huckleencolheuosombros.–PareceestranhocrescernaCornualhaenãofazersurfe.–EucresciemDevon.A empregada voltara e Polly reparou que estava a levantar as mesas

discretamente.Imagine-sealguémfazerissopornóssemnosapercebermos.– Obrigada – agradeceu Polly. A rapariga olhou para cima rapidamente e

regressouaoseutrabalho.–Acenaéque–começouReuben–Tensdesurfar,man.–Parececomplicado–retorquiuPolly.–Não,oqueeuquerodizeréSURFAR–rosnouele.–Obviamenteera,tipo,

umametáfora.–Nãopercebi–respondeuPolly.–Tensdeseguiratuaonda.Jáouvisteotermo?–É americano, por acaso? – Polly sentiuHuckle, do outro lado damesa, a

sorriuperanteasuareação.–Comotudooqueébom,babe–replicouReuben,comumpiscardeolho.–

Ié.Tensdeseguiratuaonda,éaúnicamaneiradeviver.Tensdefazeraquilodeque gostas. Quando perceberes do que gostas, fá-lo com toda a intensidade etudoorestoseráespetacular.Eentãopodessurfar.Eissofar-te-áfeliz.Oqueéquetefazfeliz?Pollyencolheuosombros.–Achoque...Bom,fazerpão.Ebolos.Masnãoseiseseriacapazdeofazera

tempointeiro,comotrabalho.Nãoperderiaapiadatoda?–Oquê,serpagoporisso?–perguntouReuben,chocado.–Claroquenão.É

aindamaisdivertido,nãopercebes?

Pollydesviouoolhar.–Talvez.–Seatuaondaforpenetraremsistemasinformáticosquesalvamogoverno

americanoderoubosdecopyrightspelochinesesesecomissoganhasbiliões–comentouHuckle.–Ajuda.Aminhaonda rende-mecercadedoisdólaresporfrasco.Reubenencolheuosombros.–Nãointeressa.ÉsmaisfelizaquidoquequandoestavaspresoemSavannah,

certo?Foicomose,derepente,alguémtivesseabertoaportadofrigorífico.Todoo

ambientegelou.Huckleestancouevirouacabeçaparaomar.Reubenpareciacompletamentealheado.Fez-seumalongapausa.Porfim,Jazagitouoseulongocabeloemeteu-sena

conversa.–Sim,euseguiaminhaonda,evejamsóondevimparar.Reubenlançou-lheumolharfulminante.Pollydissequeprovavelmenteestavanahoradeirembora.Peranteasugestão,

Hucklelevantou-seimediatamente.

Duranteaviagemderegressoacasa,nãopuderamfalarporcausadobarulho,mas Polly tinha muito em que pensar. Huckle estava a recuperar de algumacoisa,issoeraóbvio.EReubeneraumapersonagemtraiçoeira,completamentealheadodoqueaspessoaspensavamdeleoudoquedizia.Poroutrolado,oquedisserasobreperseguiroquequeria...Seriacapaz?–Obrigada – disse ela quandoHuckle a deixou em casa. –O seu amigo é

muitointeressante.Hucklelevantouosóculos.–Elegostoudesi–confessou.–Nãoacontecemuitasvezes.–Elenãofoimuitosimpáticocomanamorada.Hucklesorriu.–Elanãoénamoradadele.Elevive rodeadodemulheres.Estãodeolhono

prémio,decerteza.–Ah!–exclamouPolly.–Issoé...Uau.Nuncapensei.Asério?Odinheiro?

Maselaétãobonita,podiaterquemquisesse.–Nãofiquesurpreendida– replicouHuckle.–Vivemosnummundocão,as

pessoastêmdefazeroquepodemparasobreviverem.–Sim,eusei–retorquiuPolly.–Nemtodaagentetemumdomcomooseu.Pollydemoroualgumtempoaperceberoelogio.–Asério?–disse,corando.Huckleencolheuosombros.–Dah!–exclamou.Poruminstante,pareceualgoembaraçadoelevouamãoà

partedetrásdamota.–Hum...Compreiistoparasiquandoestavaalimparaslágrimasnareserva.–

Deu-lheumpequenopapagaio-do-mardepeluche.–Oh–reagiuPolly.Sentiu-setontaeemocionadaaopegarnoboneco.Huckle

nãobeberavinhoaoalmoço,maselasim.–Oh.Obrigada.–Asério?Nãosabiaselhefariabemoumal.–DesdequenãolhechameNeilenãooponhanumacaixa–replicouPolly.–

Não,obrigada.Obrigada.Hucklepareceualiviadoeembaraçadoaomesmotempo.–Hojediverti-meimenso–confessouPolly.–TenhoacertezaqueoReuben

nãoquissermal-educado.– Pelo contrário – retorquiu Huckle. – É um dos seus passatempos. Mas

diverte-me.Huckle deu-lhe umbeijo fugaz no rosto, amota acelerou como seu roncar

característico e Polly, agarrada ao papagaio-do-mar de peluche, ficou a vê-losubirpelaruaempedradaatédesaparecer.

CapítuloDozePollynãoadmitiriaaninguémas saudadesquesentiudeNeilnessanoite.Eratãoestúpido;eraapenasumpássaro,nãoeraumcãodeguarda,nemnadaqueseparecesse. Mas cada ranger a acordava; cada bater dos mastros lá fora; cadagrasnardegaivota.Nãodormiubeme,àscincodamanhã,decidiupenosamentequejábastava,omelhoreralevantar-se.Lançou-seaamassarpãodesésamoepensou em enviar algum para Reuben, como forma de agradecimento. Aliás,fariatambémgressinos,durammaistempo.Às seteouviua frotaa regressareosberrosanimados, sinaldequeapesca

correrabem.LevouumcaféaTarnie,eosgressinosfrescos,quenãoprecisavamdelevedarcomoopão.– Ora viva! – cumprimentou Tarnie, com um sorriso. Parecia cansado mas

contente.–Tivemosumaboapescaria.–Ótimo!–exclamouPolly,comaesperançadequeeletirassealgunsdiasde

folgaparadescansar.–ONeil?–Ah–dissePolly,eexplicouoquesepassara.–Tenhopena–afirmouTarnie.–Nuncamepareceuquefosseumpapagaio-

do-marparticularmenteinfeliz.–Eusei–concordouPolly,triste.–Mastodaagentedissequeeraomelhor.

Enfim...–Tenhonovidadesparasi–declarouTarnie.–Nohospital,concordaramdar

altaàGillianseelaarranjaralguémparaaajudarna lojae sedeixarqueumaenfermeiraavávisitardevezemquando.Arranjei-lheumemprego!–Estáafalarasério?–perguntouPolly.–Elaconcordouemcontratar-me?–Claro–respondeuTarnie,semrevelarquantacoerçãoforanecessária.Polly lembrou-se deReuben a dizer-lhe para seguir a sua onda e pensou na

quantidade de dinheiro que lhe restava, no número de empregos a que secandidatara(38)enonúmerodeentrevistasaquefora(0).–Fantástico!–exclamouela,decidindoignorarassuas incertezaseseguiro

seuinstinto.Eraumemprego!Seriacapazdeofazer!Maistardepreocupar-se-iacomofactodeirtrabalharcomalguémquenãogostavadela.SeaGillianManseadespedisse,pelomenostentara.–Quandocomeço?–Amanhã–respondeuTarnie.–Elatemaltahojeeamanhãjápodemostrar-

lheoscantosàcasa.Naverdade,PollynãoqueriaqueGillianlhemostrasseoscantosàcasa,por

isso,à tardepassoupelapadariaparaver seconseguiapercebercomo ligarosfornos. Continuavam limpos e reluzentes, e ela olhou em volta, nervosa e aomesmotempoentusiasmada.Tantosfornos!Iriaficarresponsávelportodoseles!Passouasmãospelassuperfíciesdemadeira,espreitouparadentrodasenormesbatedeiras que trabalhavam a massa. Talvez deixassem de fazer compras àempresacentral,esperavaela.Eraissoqueestavaafazerapadariafracassar.Jápassaramaistempodoquedesejarianumaempresafalhada.Nãoiriadeixarqueissovoltasseaacontecer.Enquanto examinava os fornos, ouviu alguém a bater na porta das traseiras.

Eraumhomemcomaspetorobustodosseuscinquentaanos,comfacesrosadasdealguémquepassavaavidaaoarlivre.–Éverdade?–perguntouele,numsotaquelocaltãocerradoquePollymalo

compreendeu.–Éverdade,amor?–Hum...Depende–respondeuPolly.–Quevãovoltarafazerpão?Quevãoressuscitarapadaria?Pollysorriu.–Achoquevamostentar.Ohomemestendeuamãoparaelaapertar.–Chamo-meTedKernesse–afirmou.–Dantesentregavafarinhaaqui.Elaera

umapadeirasensacional,aGillianManse.–Asério?–quisconfirmarPolly.–Quandocáchegueinãoeragrandecoisa.

– Nã, ela passou a comprar, não foi? Perdeu o interesse depois do queaconteceu–respondeuele, tirandoochapéu.–Enfim,vãovoltaraprecisardefarinha?–Creioquesim.Quandopodemoscomeçar?–Amanhãdemanhãpassoporaqui–assegurouTed.–Ondeéquevaicultivar

asualevedura?–Nãosei–respondeuPolly,sentindo-sesubitamentenervosa.–Elasóusava

fermentoempó.–Bom,coloque-anumapanelanofrigoríficoedeixe-acrescer.–Voufazerisso–declarouPolly.–Bolas.–Olhouemvolta,ansiosa.–Tenho

muitoqueaprender.–Achoqueoqueestáafazerénotável–confessouTed.–Vaisermuitobom

paraMountPolbearne.EparaaGillian.Polly sentiu-se desanimar. Estava realmente muito nervosa por ir trabalhar

comaquelamulher.Talveztivessedadoumpassomaiordoqueaspernas.–Ah,vaitudocorrerbem–asseverouTed,comoselhelesseospensamentos.

–Elaaparenta serpiordoque realmenteé.Emboranão sejaumosso fácilderoer.Pollysorriu,esperançosa.–Assiméqueé.

TalcomoTedprometera,às5h30damanhãseguinteestavaumenormesacodefarinhaàportadastraseiras,juntamentecomseislitrosdeleiteeumTupperwaredeplásticocomumpapelemcima:«Umapequenaoferta».Oh,pensouPolly,aoabrir.Masacaixadeplásticotresandavaabolordelevedura.–Credo–disseela,afastandodesiaquelacáusticamistura.–NãoseicomoéquesevaiaguentarsenemsequerconseguesuportarISSO–

afirmouumavozcaprichosa.A figura enorme deGillianManse abriu a porta das traseiras e ficou a ver

Pollyaarrastaroenormesacoláparadentro.Pesavatoneladas.Pollytiveraumaténueesperançade receberumoláou,pelomenos,umapitadadeembaraço–afinaldecontas,salvaraavidadaquelamulher–mas,aparentemente,nãoseriaocaso.–ÉumaofertadoTed–referiuPolly.–Olá.–Olá–repetiuGillian.Entreolharam-se.

–Comosesente?–perguntouPolly.– Ótima – respondeu Gillian. – Como disse àqueles malditos médicos. É

ridículo,nãoseatrevasequerafazeraquilooutravez.–Claroquenão–assegurouPolly,ferverosamente.–Poisbem,venhadaí,jáquetemdeser–chamouGillian,commodosnada

delicadoseafastando-se.–Temcafé?–perguntouPolly.–Precisavamesmodeum.–Porqueéquenãocomeçarealmenteatrabalharantesdefazerumapausa?Pollymordeuo lábio.Lembra-tequenão tensemprego,disseasimesma.É

istoounada.NesseprimeirodiaPollyfeztodosospossíveispormanteracabeçabaixa,mas

nãofoifácil.Todasaspessoasqueentravamnapadariaficavamencantadasporvê-laali, sobretudoasquehaviamparticipadonasuavendasecretadepão. JáGillianpassouotempointeiroaobservá-lacomoumfalcão,arespirar-lheparacima, a berrar ordens sem nunca deixar de apontar um erro, por maisinsignificante que fosse, o que deixou Polly tão perturbada que começou acometermaiserros.TodosperguntavamrespeitosamentepelasaúdedeGillian,maselacalava-os

comasperezaePollydeuporsiatentarsorrirparacompensarasuaatituderude.Ofactodetodosnãopouparemelogiosaomaravilhosopãododiatambémnãoajudou.AquiloiasertãodifícilcomoPollytemera.Por volta das três e meia da tarde, já tinham o pão quase todo vendido e

começavamapensarem fechar,quandoouviramalguémabatercomforçanaportadastraseiras.PollyficounervosaeolhouparaGillian.–Sabequemé?–Não–respondeuGillian.–Váverquemé.Pollyabriuaportaamedoedeparou-secomumhomemdeentregasgrandee

entroncadocomumcamiãoenormeabertoatrás,quebloqueavacompletamentearuaestreita.–Muitobem–disseele,furioso.–Estivemeiodiaàesperaqueomalditomar

baixasse.Então,ondeficaachaminé?–Como?–exclamouPolly–Hum...–Estavameiodesconcertada.–Éaquiapadaria,certo?–Sim...–Tenhoaquiumaentrega.Umfornoalenha.Precisadechaminé.–Ohomem

coçouoqueixo.–Não–atalhouGillian.–Issonãoéparanós.Leve-odevolta,porfavor.Ohomemencolheuosombros.–Nãoposso.Diznaguiaderemessa.Gilliancruzouosbraços.–Entãopodedesdizer.–Esperelá–interrompeuPolly.–Possoveraguia?–Nãoseiparaquê–resmungouGillian.–Elenãotocanaminhachaminé.Pollydeslizouodedopela folhaabaixo.De facto,pareciaestaremordem–

Padaria de Mount Polbearne. Foi então que viu uma pequena nota no pé dapágina,quediziaSeguea tuaonda.Eaassinatura–grande,vistosa–ReubenFinkle.–NÃOPODESER!–exclamou,completamenteassombrada.–Elecomprou-

meumforno!–Queméquelhecomprouumforno?–perguntouGillian,furiosa.–Er...Umtipo...Amigodeumamigo–respondeuPolly.–Nósnãoprecisamosdeoutroforno.Osnossosestãoótimos.– Sim,mas com este – explicou Polly, de olhos a brilhar –, podemos fazer

ciabatta.Pãoázimo.Bruschetta.Todasascoisasmaravilhosas...–Épossívelrecebermosumreembolso?–perguntouGillian,furiosa.–Posso

receberodinheiro?Eunãoqueroessaporcariaestrangeira.–Não!–ripostouPolly.–Nãopodemos...– Não há reembolso, amor – respondeu o homem, começando a ficar algo

irritado.De certa forma, pensou Polly, Gillian tinha razão: a lareira não era

suficientementegrande,massemudassemalgumascoisasdesítioNão.PercebeupelaexpressãodeGillianquenãoiaacontecer.Masderepentelembrou-sequehaviaoutrosítio–Podíamospô-lonapadariadaBeachStreet–sugeriu.–Porbaixodaminha

casa.Láháespaço,nãohá?Gillian franziu o sobrolho.Nãoqueria o fornomas, por outro lado, não iria

recusarnadaque fossegratuito.Pollyolhouparaochão.NãoqueriaenfrentarGillian e irritá-la a ponto de ela recusar de propósito.Após uma longa pausa,duranteaqualohomemdasentregasolhouparaorelógio,Gillianafirmou:–Okay,pronto.Maselequefiquelongedaminhavista.Eébomquenãome

custenemumcêntimo.–Nãovaicustar.

Polly sentou-se na cabina do camião com omotorista e o colega durante acurtadistânciaatéàsuacasa.Gillianentregara-lheumachavedo résdochão,semsaberqueelajáconseguialáentrar.A camada de pó era imensa. Polly nem sequer tinha dinheiro para mandar

repararajanelaqueNeilpartirananoiteemquelhebatera.Oshomensolharamemvolta,consternados.–Estáafalarasério?–perguntouomotorista.–Querdizer,estacoisaécara.Pollyolhouparaeleasorrir.Emboraalojanãolhepertencesse,obviamente,

sentiaqueofornosim.–Eusei–declarouela.–Istoésóoinício.Tragam-noparadentroenquanto

eufaçoumchá.Oh,bolas,esqueci-medoleiteoutravez.

CapítuloTrezePolly tivera esperança de que, à medida que o tempo passasse, ela e Gillianaprendessem a moderar os maus feitios e começassem a dar-se um poucomelhor. Ninguém tinha de gostar das pessoas com quem trabalhava, nãonecessariamente.Masasituaçãoestavacadavezpior.Gillianpareciadeterminadaacontrariá-la

acadasugestão,por isso,deixoudeasfazer.EmpurravaPollyquandopassavapor ela na loja e só a deixava fazer o pão branco mais básico, embora esteestivesse jámuitobom, tão leve e saboroso, simplesmentegraças à prática.Aloja tinhamaismovimento e estavamais limpa, comonão aconteciahámuitotempo.Pollytornou-secadavezmaiscalada,masatéissopareciaserirritante.Alémdisso, tinha de levantar-semuito cedo e aproveitava todos osminutos

livres para limpar, discretamente, a padaria por baixo da sua casa, para quepudessecomeçarabrincarcomoseunovoforno(enviaraumcartãoderasgadosagradecimentosaReuben.Nãosabiaasuamoradacompleta,masconfiaraqueláchegaria).Pollysentia-sedesmoralizada.Eodinheiro...Enfim.Sóesperavanãofazerburacosnossapatos,senãoteriadeconsertá-loscomfitagomada.Iaacaminhodecasanumsábadocinzentoquandotocouotelemóvel.–MUITO BEM – disse Kerensa. – Estou a caminho. Suponho que, a esta

altura,játenhasacabadodelamberasferidas.

–Oquê?–perguntouPolly,semquereradmitirquesentiaquetalveztivessetrocadoumsacodeproblemaslaboraisporoutro.– Estou a caminho. Para sairmos à noite. Aos sítios da moda de Mount

Polbearne!–Ah–suspirouPolly.–Cánãohádisso.–Temdehaverumsítioondevaitodaagente.Haviaopubgrandenoportocomaportademadeiraescura.Eramuitoantigo

eaindatinhaoseupátiooriginalondeosclientesdatabernaparavamoscavalos.Agora o pátio estava cheio demesas e cadeiras, e àmedida que os dias iamficando mais quentes, o pub começava a encher nas noites de sexta-feira esábado.Polly já tiveravontadede se aventurar a ir lábeberumacerveja,massentira-se nervosa.Os pescadores deveriam lá ir, de vez em quando,mas nãoqueria perguntar; tinham as suas vidas. Há semanas que não via Huckle, echegara a um ponto em que lhe apetecia imenso companhia que não arepreendesseporentornarfarinhanasbancadasdetrabalho.–Bom,nãoépropriamenteaquiloaqueestáshabituada...–Nãoquerosaber,querida,sóprecisodesairdesteburaco.–Osencontrosonlinevoltaramacorrermal?–Sãotodosunsimbecis,Pol.Todos.Osrazoáveisjáforamcaçados.–Ah–exclamouPolly.–Eudigo-teoquenãofaltaemPolbearne.–Empregadosdebar?–tentouKerensa,esperançada.–Não–respondeuPolly–,masistoestáaabarrotardehomens.–Voupegarnocarro.

Kerensa apareceu ao fim do dia vestida com um minivestido cor-de-rosaridículodetãoinapropriadoecomocabelopintadodevermelho-vivo.Tinhaumarligeiramenteassustador.Pollyficoutãocontenteaovê-laquequasechorou.–ENTÃO!–exclamouKerensa.–Essafamosavidanova!Olhouemvolta.–Gostodadecoração–comentou.– Obrigada – afirmou Polly. Não conseguira fazer grande coisa, mas os

soalhos lavados e a pálidamesa decapada, juntamente com uma ou duas dasilustraçõesquedantesescolhiapasseandoporgaleriasequepagavacomocartãodecrédito–ah!–penduradasnasparedeslisas,eainda,claro,asuamaravilhosajanela e a vista extraordinária tornaram o espaço bemmais acolhedor do que

era.–Não acredito quenuncamais te vimos– comentouKerensa. – Isto aqui é

assimtãodivertido?–Oh,Kerensa–lamentou-sePolly,enquantoabriaafantásticabebidafrisante

que a amiga trouxera amavelmente, guardando a sua garrafa de rosé muitobaratonofrigorífico–,tenho-mesentidoterrivelmente...Eradifícildizer.–Tenho-mesentidosozinha–confessou,olhandopelajanela.Kerensaolhouparaelaeencheudoiscoposdesirmanados.– Eu também – afirmou. – E antes que o digas, sim, tenho um emprego

fabuloso,blá,blá,blá,eimensosamigos...Mastenhosaudadesdaminhamelhoramiga.Egostavamuitode teralguémàminhaesperaemcasa,mas são todosunsgrandescepos.Enãodigoistonobomsentido.Osolestavaadescersobreabaía,numcenárioarrebatador:grandesréstiasde

cor-de-rosa vivo estendiam-se pelo céu e iluminavam as nuvens. Kerensaaproximou-separaobservar.–Émuitogiro,sabes?–Eusei–respondeuPolly.–Játenstrabalho?–Tenho.Eéhorrível.Mas...–Pensavaqueeraperfeitoparati.–Issoéporquenãoconhecesaminhachefe.–Ah–exclamouKerensa.–Umachefedoinferno?– Não. Uma chefe do sítio para onde o inferno manda as pessoas que são

demasiadoirritantescomopatroas.Fizeramumbrinde.–A não estar sozinho – brindouKerensa, serenamente. –BOLAS, este é o

brinde mais deprimente que já fizemos. E que tal que sejamos eternamentefabulosas?– Bem melhor – concordou Polly, incrivelmente animada por estar com a

melhoramiga.Acabarampor iraopub,depoisdeKerensaobrigarPollyavestirum topde

corgarrida:–Senão,voupareceraraparigadefestacádosítio.–Bom,paracomeçar,turealmenteésumaraparigadefestas,edepois,como

achavasqueseriaestesítio?– St Ives – confessou Kerensa, desanimada. – Achava que ia engatar o

príncipeHarry.Pollysoltouumagargalhada.–Oh,Kerensa,étãobomvoltaraver-te.Vamos.

O fim de tarde estava ameno e o velho pátio do pub estava alegrementeiluminado com lanternas nas mesas e pequenas velas em frascos de vidroespalhadasportodaaparte.Umaempregadaandavadeumladoparaooutroareceber os pedidos, e não demorou muito até Kerensa e Polly começarem adissecarassuasvidas,bisbilhotandoepartilhandoasnovidadescomosenuncasetivessemseparado.– Tens tido notícias do Chris? – perguntou Polly ao terceiro copo, quando

finalmenteganhoucoragem.Kerensaencolheuosombros.–Devezemquando.Estámuitoembaixo.–Aindaestáaviveremcasadamãe?–quissaberPolly.–Sim.–Sabesqueelenuncamaismecontactou.Nemumavez,sóparasabercomoé

queeuestava,oualgodogénero.–Eusei–confessouKerensa.–Eufalei-lhedisso.–Falaste?Quandoéqueestivestecomele?– Na festa dos quarenta anos da Shanoosha e do Michael... a que tu não

apareceste,jáagora.Polly encolheu os ombros. Não queria admitir que as prendas teriam sido

caras; que teria sidohorrível estar nomeiode todosos seus amigosde classemédia bem-sucedidos profissionalmente, com as suas hipotecas, os seusVolkswagensegravidezes,eterdecontarqueeraassistentedepadariaaganharosaláriomínimo.Nãoteriasuportadoapenadeles.–Não–confirmou.–MasoChrisfoi?Kerensaretraiu-se.–Achoqueficoumuitoentusiasmadocomobarabertodecocktails.–Elestinhambardecocktails?–Puraostentação–comentouKerensa.–Enfim,eleestavaumbocadinho...–Comoéqueeleestava?–Cansado–respondeuKerensa.–Credo–dissePolly.–Eoqueéqueeledisse?

– Perguntou como é que tu estavas. E quando eu lhe disse que te tinhasmudado,quetinhasumacasaeumempregonovo,etudo,eleficou...–Ficouinvejoso?Kerensaanuiu.–Aparentemente, achaque é ideal para ti.Achaque é fácil para ti seguires

comatuavida,porque,naverdade,nosúltimostemposnãotepreocupavascomaempresa,eleéqueeraocriativo,blá,blá.OsolhosdePollyencheram-sedelágrimasperantetalinjustiça.–Elearruinouaminhavida,Kerensa.EstáEMCACOS.Olhapara isto!Lá

porquenãoestouadeprimiremcasadaminhamãe...–Eusei–afirmouKerensa.–Edisse-lheisso,queeleestavaachafurdarno

lodo.–Eele?–Ficoudanadoetentouengatararaparigadoscocktails.Pollyfezumesgardepena.–MeuDeus,pobreChris.–PobreChris,nada–contrapôsKerensa,feroz.–Eletemdesefazerhomeme

deultrapassarasituação.Eletratou-teabaixodecão.–Fezomelhorquesabia.– Não fez, não. Ficava todo suscetível sempre que acontecia um pequeno

revés.Assiméimpossívelgerirumaempresa.–Sim–concordouPolly,pensativa.–Mas,sinceramente,comoéqueelese

atreve?Partir doprincípioqueeuestou fantástica e aviverbem.Por amordeDeus.Éhorrível,aminhavidaéaterradora.Éumfracassototal,umdesastre,euodeioestaraquiebasicamenteodeioISTOTUDO.Derepente,fez-sesilêncionopub.Pollypercebeuqueestavaalguématrásde

si.Virou-se.EraTarnie.Pareciamuitoembaraçado.– Desculpe – disse ele. – Eu vinha cumprimentá-la, mas parecia tão

embrenhadanaconversa–Ohnão–lamentou-sePolly,abatida.–Eunãoestavaafalardesi.OTarnieé

aúnicacoisaboaquemeaconteceuaqui.Kerensa,esteéoTarnie.–Olá–cumprimentouKerensa, arrastandoaúltimasílaba.Pollyolhou-ade

soslaio.DepoisvoltouaTarnie.Atéestavabastanteelegante,vestidoà«civil»:tinha uma camisa lisa, calças de ganga gastas muito macias e sapatilhasConverse.– Tudo bem? – ouviu-se de uma voz americana calma, eHuckle e Reuben

apareceramvindosdooutroladodobar,amboscomcanecasdecervejanamão.

–Odeioestebar.Porqueviemosaestebar?Estebaréhorrível.Acervejaémá. Deviam ter cerveja boa. Vou comprar este bar – dizia Reuben. Nãocumprimentouninguém.–APollyestavaafalardecomoodeiaavidaquetem–explicouTarnie,num

tomgrave.–Eunão...Cale-se–replicouPolly,corandoatéàsraízesdoscabelos.Kerensavirou-se.Pareciaumacriançanumalojadedoces.–Olá–afirmou.–Vocêodeiaasuavida?–perguntouTarnie.–Jánão–respondeuKerensa.Acabaramporficartodosjuntos:seisousetepescadores,osamericanosemais

alguns surfistas que se lhes juntaram. Jaz não estava com eles, mas estavaFelicia, uma rapariga euroasiática incrivelmente bonita de cabelo preto que seestendiapelassuascostasabaixo.Estavaa tentarganharaatençãodeReuben,massemsucesso,acabandoporterdeseapertarencostadaaobalcãoaoladodeJayden.AexpressãofacialdeJaydeneracómica.Ficoucongelado,comosenãoseatrevesseamexer-se,acontemplaradeusaqueestavaaoseulado.–Podeparardeolharparamimembasbacado?–pediuela,gentilmente.– Hum, vai denunciar-me à polícia? – perguntou Jayden, com a boca

completamenteseca.–Não–respondeuFelicia,atirandocomocabelo.– Nesse caso, talvez não. Vou tentar, mas provavelmente não. Oh não –

afirmouJayden.Feliciavirou-lheascostas.Pollyperguntou-se seaquilo lheaconteceriacom

frequência.Provavelmente.–Conta-lheaanedotaquemecontaste–sussurrouaJayden.–Nãoposso–retorquiuele,deolhosesbugalhados.–Nãovejobem.–Asmulheresgostamdehomensqueasfazemrir.Jaydentossiu.–Hum,Felicia?Feliciaagraciou-ocomumbaterdosseusolhosfelinos.–Sim?–Ondeéqueasmoscasfazemsurfe?–Nãosei.–Nomicro-ondas!–Nãopercebi.Jaydenficousemcor.

–Bolas,enganei-me.Éassim,ondeéqueosMICRÓBIOS...Esquece.Felicia virou costas novamente e Jayden ficou paralisado, a olhar fixamente

para a mesa, com as orelhas cor-de-rosa. Polly sorriu e voltou para junto deKerensa.PreferiaJaz,maseramtodasmuitoatraentes.– Este sítio tem mais glamour do que eu pensava – confessou Kerensa. –

Queméoirritante?– Eu, quer dizer? – perguntou Reuben, que claramente tinha um ouvido

biónico.–Estãoafalardemim?Eunãosouirritante.Huckle,diz-lhequeeunãosouirritante,soufixe.–Claroquenãoésirritante–atacouFelicia,languidamente.–Querido,issoé

umdisparate.Kerensarevirouosolhos.–Eleémesmomuito,muitorico?–perguntouemvozalta.–Sou–respondeuReuben.– Bem me parecia – continuou Kerensa, lançando a Felicia um olhar

triunfante.FeliciaviroucostasedestavezficoudefrenteparaJayden,quecorounovamente e começou a coçar o pescoço. Polly levantou-se para ir ter comReuben.–Obrigadapelomeulindíssimoforno–afirmou.–Gostoudosgressinos?–Se tivesse sido eu a fazê-los, teriam ficadomelhor – replicou. –Mas não

estavammaus.Precisavamdemaispimenta.–Paraapróximavoutentarlembrar-medisso–dissePolly,sorrindo-lhe.–Foi

mesmomuitosimpáticodasuaparte.–Não foinadade especial.Até jáme tinha esquecido.Custou-me tipodois

cêntimos.–Então,obrigadapelosdoiscêntimos–continuouPolly.–Queméasuaamiga?–perguntouReuben,comoquemnãoqueracoisa.–É

muitomal-educada.Gostodissonumamulher.–Chama-seKerensa.Querconhecê-lacomodeveser?–Não.–Kerensa!–chamouPolly.–EsteéoReuben,foielequemeofereceuaquele

fornofantástico.–Eutenhoumhelicóptero–disseReuben.–Euodeiohelicópteros–retorquiuKerensa.–Sãoumaporcaria.Tarnie trouxemais umagarrafa devinhopara amesa e cidra para Jayden e

maisalgunspescadores.PuxouumacadeiraaoladodePolly.–Então,comovãoascoisas?–perguntou,desajeitado.Normalmenteestavaà

vontadecomPolly,masnumgrupograndecomoesteeradifícil.–Sinceramente,estou-lheagradecidapormeterarranjadoemprego.–Mas...–Mas – anuiu Polly. –Caramba, Tarnie, ela está a dar cabo demim.Nem

sequermedeixafazerpãobom,sócornucópiascomcremeeosmalditosdonuts,folhados e coisas brancas insípidas. E já começou a falar de voltar a comprarfora, porque, aparentemente, sou muito lenta. Ela não quer mudar, não quermelhorar,nada.Tarnieanuiu.–OJimadoravadonuts–revelou,finalmente.–Ohnão–exclamouPolly.–Eusei,euseiqueelaestáasofrereissotudo.

Euestouafazeromeumelhorparaajudá-laeserútil,mas...Parecequeestouconstantementeasercastigada.Deumaisumgolenasuabebidaesorriu,pesarosa.– Isto vai-lhe parecer disparatado, mas eu tinha a fantasia de melhorar as

coisas. Ela teria alguém com quem partilhar o trabalho, ficaria menossobrecarregadaetalvezeuconseguissetrazeraodecimaoseuladoamável,oualgodogénero.Estupidez.–Achoqueéumabonitafantasia–afirmouTarnie,carinhoso–,masnãosei...

Elaéamargahátantotempoquenãoseise...seteráfechadoparaomundo.–Eu tenhopenadela – confessouPolly, teimosamente–,mas ela é tãomá,

mesmo,paramim,todososdias.Huckle aproximou-se e puxou uma cadeira.Não viu o olhar que Tarnie lhe

lançou,masPollyreparou.– Então – começou ele, no seu tom descontraído e indolente–, como tem

passado?–Estouaquiaqueixar-medomeutrabalho–explicouPolly.–Trabalhoquesó

tenhoháduassemanas.Nãosouumespécimemuitoimpressionante.Hucklefranziuosobrolho.–PôsofornodoReubennapadaria?–Não cabia, por isso, tive de levá-lo para a outra, a que fica por baixo da

minha casa.MasMistressManse não quer ter nada a ver com ele, diz que éestrangeiro.Sóquerfolhadosegrandespãesbrancos.Hucklefranziuosobrolhonovamente.–Overãoestáachegar,certo?–Sim...–Eelaéaproprietáriadasuacasa,nãoé?

–É.–Então,nãomeparecequesejamuitomaiscarosedividiremaspadarias.A

Polly trabalha no porto e faz pão no forno doReuben, e ela continua na lojasozinhaefazsóbolosefolhados.Assim,vocênãoficachateadacomoqueelaquer fazereelanão temde tentarvenderpãoquenãoquervender.Elapoupatempo e esforço, e vocês não fazem concorrência uma à outra, porquebasicamentesãoamesmaempresa.Ficaramostrêsemsilêncioporuminstante.– Sabe uma coisa? Isso talvez funcionasse – afirmou Polly. – O único

problemaéqueseeu lhe falardisso,elavaidizerquenão imediatamente.Eladizsemprequenãoepensanasrazõesdepois.Fez um esforço tão grande para não olhar para Tarnie que este engelhou o

cantodaboca.– Quer que eu vá sugerir-lhe mudar tudo OUTRA VEZ? – perguntou ele,

dandoumgolenacerveja.–Nãopercebe?–continuouPolly.–Euseiqueelanãomequernaloja.–Hum...–murmurouTarnie.–Maselasabequeacargadetrabalhoédemaisparaela.–Hum.–Eelatemespaçoparaisso.–Entãoeseaspessoasforemàpadariaerradaàprocuradoquequerem?–Estamosaduasruasdedistância!–explicouPolly.–Achoqueconseguem

safar-se.Mas,seeufizesseopão,elanãoteriadegerirtantostock.Tarnieodiavaterdeadmitir,masnãoeraumamáideia.–E–acrescentouHuckle–sevocêfortãoboacomonósachamosqueé,as

pessoasvãoterconsigosóporcausadoseupão.Etambémpelomeumel.–Querqueeuvendaoseumel?–Em trocada ideia brilhante que acabei de lhedar? – perguntouHuckle. –

Não, tem razão, seria completamente despropositado daminha parte pedir-lhequevendesseomeumel.–Não,CLAROquevendooseumel–prometeuPolly,entusiasmada.–Éuma

ótimaideia.Tarnieolhouparaasmãos,apercebendo-sedequeestavacomciúmesdevê-

losfazeremplanossemele.–Oh!–exclamouPolly.–Estoutãoentusiasmada.Exceto,claro,seeladisser

quenão,eaívouterdevoltaratrabalharcomelaevaiseraindapior,porqueeujásonheicomosabordaliberdade.

Asbebidascontinuaramaescorrer,eninguémpareciatervontadedeirembora.Àmeia-noite,Pollyjáestavaligeiramentetocada,comacabeçacheiadeplanoseesquemasparaoespaçodorésdochãodasuacasa.KerensaacabaraporpassaranoiteadiscutircomReuben, sobrepolítica,controlodearmas, liberdadeeaInternet, e literalmente tudo o resto em que duas pessoas podem ter umadiferençadeopinião.AtéqueJaydenselevantou.Estavabastanteembriagado.–Eagora!–gritoueleparaAndy,donodobareaomesmotemporestaurante

defishandchips,oquetornavaoespaçobastanterentável.Ouviu-seumcorode«Ohnão!»dosoutrospescadores.Andyfezumavéniaeencaminhou-separaoleitordemúsica.–Seistonãoimpressionarassenhoras,nadaimpressiona–afirmouJayden.–Oh–murmurouPolly,masKerensajáestavadepé,ansiosa.Feliciarevirou

osolhos.–Nadaimpressionarealmenteassenhoras!–gritouKendall,eJaydenfez-lhe

umgestoemformadeVcomosdedos,ainsultá-lo.–Archie!Tarnie!Kendall!Oshomens resmungaramearrastaram-semas,paragrandeespantodePolly,

levantaram-se. Os restantes clientes do pub aproximaram-se, claramenteconscientesdoqueestavaprestesaacontecer.Andy carregou numbotão do leitor demúsica e ouviu-se um longo somde

corneta chorosa. Depois, passou para uma batida em tom menor, que eraanimadaemelancólicaaomesmotempo.Eramúsicadanatureza,ePollysentiuocoraçãoabateràqueleritmo,comasuaestranhezaebeleza.Então,deixando-acompletamente embasbacada, os homens começaram a dançar; um poucoenvergonhados,aoinício,depoiscadavezmenosàmedidaqueseiamdeixandolevar,dobrando-seeinclinando-se,comostacõesabatercomforçanastábuasdemadeiradochãodopub.Eraadançahornpipetípicadosmarinheiros;Pollynuncaviraninguémdançá-la,eàmedidaqueamúsicaiaacelerando,oshomensrodopiavamaoseuritmo,comarantigoejovemaomesmotempo.Pollybateupalmas deliciada quando Tarnie lhe mostrou um enorme sorriso de dentesbrancos,eoraseviam,oranãoseviam,porquetodosrodopiavam,atéamúsicaatingirumclímaxinfernalmenterápido,etodoopubirrompeuem«uuu»eemaplausos.Polly correu para Tarnie, observada atentamente por Huckle. Tarnie estava

corado,masnãoconseguiadeixardesorrir.–Espetacular–exclamouela.–Ah–respondeuele, tímido.–Foiomeuavôquemeensinou.Ésó...Ésó

umacoisadaqui.–ÉMUITOSEXY– afirmouKerensa em voz alta, atrás de Polly. – É uma

penavocênãoserassimsexy,Reuben.– Eu sou completamente sexy – ouviu Reuben dizer,masAndy já estava a

chamarpelosúltimospedidos,estavanahoradefechar.

– Mas que idiota – reclamou Kerensa enquanto um Bentley com motoristachegavaaofundodaruaempedrada.FeliciaentrouaseguiraReuben,quemallhefalaradurantetodaanoite.–Oh, desculpa se a tua noite não foi boa – lamentou-se Polly, aindamuito

excitadacomadançadospescadores.Entrelaçouobraçonodaamigaeforamasduas comprar batatas fritas para a viagem até casa. Polly nunca vira Kerensacomerbatatasfritas.Ignoravaseelasaberiacomosecomem.–Ohnão,quecheirodivinal–deliciou-seKerensa,respirandofundo.–Tambémpodescomê-las–comentouPolly–,sabes,sequiseres.Mergulhadasemsalevinagre,noaraindaamenodanoite,regadascomvárias

latasdeFanta, estavam absolutamente deliciosas.As duas raparigas comeramsentadasnomurodoporto,balançandoaspernas.Oshomensjáhaviampartido,acenando e gritando. Jayden ia levar um barco até ao continente; Pollyperguntou-lhe se ele deveria conduzir umbarco depois de ter bebido,mas eleexplicou-lhe,sério,queháoitocentosanosqueoshomensdeMountPolbearneofaziam e que provavelmente não iriam parar nessa noite. Depois, bateunovamentecomostacõesdossapatosumnooutro,numapancadasurda,etudooqueelapôdefazerfoiriredesejar-lheboanoite.–Diverti-meimenso–confessouKerensa.Pollyolhoupara eladesconfiada.Seriapossível?Kerensa estavamesmo... a

comerumabatatafrita?–Oquê?–Eupensavaquetuodiavasaqueletipo.Ouvi-vosagritarsobreoGeorgeW.

Bush.–Sim,euodieiaqueletipo,masgosteibastantedediscutircomele,percebes?–Não–confessouPolly.–Eunãogostodediscutircomninguém,nunca.–Oh–disseKerensa.–Quandoconhecemosalguémqueéumidiotadetodo

otamanho,nãotemosdenosconter,podemosdizertudooquenosapetecer.

–Hum...Deviastrabalharnapadaria.Kerensafitou-a.–Entãoetu,MissPopular?Pollycoroueconcentrou-senasbatatasfritas.–Nãoseidoqueestásafalar.–Aquelesdoishomens,queporacasosãodivinais.Édissoqueestouafalar.

Comoéqueconseguiste?–Nãoconseguinada–retorquiuPolly.–Nestavilanãohámuitasmulheres,

basicamenteéisso.Alémdisso,nenhumdelessimpatizacomigo.OHucklenãosimpatiza,decerteza.–Maseleestavamuitoatentoaoquetufazias.–Nãomeparece–replicouPolly.–Eletemum–fezogestodeaspascomos

dedos–«passadotrágico».Malalguémmencionaasuavidaprivada,elefecha-secomoumaarmadilha.Asério,euacho-ogiro,masnãosouparva;éóbvioquenãoestáparaaívirado.–Eooutro?–OTarnie?–perguntouPolly.–Estásabrincar,nãoestás?Eletembarba.–EletemBARBA?EssaéarazãomaisIDIOTAqueeujáouviparanãoandar

comalguém.EletemBARBA?OBradPitt temBARBA.OJohnnyDepptemBARBA. O George Clooney tem BARBA. O Ben Affleck tem BARBA. Éprecisocontinuar?Sefor,incluooMarkRuffalonalista.Pollysentiu-seconstrangida.–Eletemsidomuitoamávelcomigo.– Claro – comentou Kerensa, fazendo um gesto ordinário –, está a tentar

saltar-teparacima.– Só porque não hámuitasmulheres por aqui – replicou Polly. Olhou para

Kerensadelado.–Achasmesmoqueeleéatraente?–Deixa-mever–começouKerensa–,éalto,magro,musculado,olhosazuis

penetrantes,queixorobusto...Polly,ficastecega?Pollydeuporsiaolharnovamenteparaasbatatasfritas.–Oh,decertezaqueéporquesounovaaqui.–Eentão?–insistiuKerensa.–Arazãopelaqualelegostadetinãotemde

serimportante,certo?–Nuncaninguémgostademim–lamentou-sePolly.– Isso é porque, normalmente, veem-me primeiro – explicou Kerensa,

sabiamente.Fez-seumapausaeambasexplodiramarir.–Cala-te,suapalerma–exclamouPolly.

–Agoraa sério–continuouKerensa.–Oh, snif, snif, coitadinhademim,aminhavidaéumatragédia.Eaquiestástunestesítioqueé–agitouosbraçosem círculos, meio embriagada, a indicar o horizonte – incrivelmentemaravilhoso,numacasinhagiraeestranha...–Numaespelunca.– Não, casa – contrapôs Kerensa. – Já fizeste desta terra o teu lar. Tens

emprego, umgrupode amigos novos–mais um idiota – e umavida nova.Asério–fizeramumbrindecomaslatasdeFanta–,istoéespetacular,Polly.–Quandofalasassim,atéparecemelhordoqueé.–Éoqueé–afirmouKerensa.–OChrisestáemcasadamãeaembebedar-se

eatentarengatarempregadasdebar.Polly olhou em volta. Embora não houvesse mais ninguém à vista e o

restaurante já tivesse fechado, o mar nunca estava calmo; conseguia ouvir osuavebaterdasondasnoportoeochocalhardosmastros.–Bom–disseela–,talveztenhasrazão.Nãoémaudetodo–Ondeestáaminhaamigasorridente?Pollymordeuolábio.–Válá!Venhadeláessesorriso!Dantesvia-oatodaahora.Pollysorriu-lhe.–Cala-te!–Ah!–riuKerensa.–Eusabiaquetuestavasavoltarparanós.–Encostou

umdedoàtestadePolly.–Agorasótefaltaumapitadadebotoxpara tevereslivresdessasrugasdepreocupação...

CapítuloCatorzeNamanhã seguinte, Polly dormiu até tarde, o que era uma novidade.Quandoacordou,Kerensa já saíra e já estaria de volta à cidade, às compras e às suashabituais ocupações. Polly convencera-se de que sentiria inveja, antes dachegadadeKerensanão tinhaa certeza absolutadequenão se iria agarrar aobraço da amiga e pedir-lhe encarecidamente que a levasse de volta paraPlymouthcomela.Mas,pelocontrário,aocaminharlentamenteatéaofogãoparaligaramáquina

docafé, apercebeu-sedecomoestava felizpornãovoltaraomundode rádiosbarulhentos,transportespúblicos,engarrafamentosdetrânsito,drive-throughsecentroscomerciaisapinhados.EracomoseKerensa lhe tivessedadoodomdever Mount Polbearne através de um prisma que o transformava num lugarencantador,ondeaspessoasdesejavamdeestar.Consultou o telefone – tinha umamensagem de Reuben.Estou apaixonado

pela sua amiga, dizia.Por favor, diga-lhe para me ligar imediatamente. Voumandaroavião.Pollysoltouumagargalhadasonorae,pormomentos,tevepenadeKerensajá

nãoestaraliparapoderveracaradela.Foiatéàjanelacomachávenadecafénamão,mesmoatempodeverTarnieaparecer,quelheacenouquandoaviu.–Oquevaifazerhoje?–gritouele.

–Voulimparumahorrívelsalaescuraimunda,paraocasodeviraconseguirtransformá-lanumapadaria–respondeuela,comumacareta.–Não vai, não – replicouTarnie. –É domingo e está o diamais bonito de

sempre.Porisso,vempescarcomigo.–Vailevar-meaoseuemprego?–Não,ésóparanosdivertirmos.–Vocêpescaasemanatodaedepoisvoltaapescarpordiversão?–Temosmesmodediscutiristoaosberros?Pollysorriu.–Okay.Precisamosdelevarcomidaparaopiquenique?–Não–respondeuTarnie.–Querdizer,qualquercoisaquetenhaemcasa.Pollylembrou-sedopãointegralquedeixaraalevedarnanoiteanterior,como

eraseuhábito.–Aindatenhodeprepararobarco–avisouTarnie.–Ótimo–concordouPolly.–Estouaídaquiaquarentaminutos.Quandoacaboudesearranjar,opãojáestavapronto.Estavaquenteeexalava

um cheiro divinal. Polly colocou no cesto um frasco demel e uma faca, umqueijodaregiãoquecompraraaalguémàbeiradaestrada,algumasmaçãsPinkLady,umagrandegarrafadeáguae,porcapricho,osmacarroneseosofisticadovinhobrancoqueKerensa lhe trouxeradepresente, «porque coisasdestas nãocomprasemHicksville,certo?»,esobreoqualtinhatodaarazão.Odiaestavaperfeito,soalheiroeameno,comumalevebrisarefrescanteque

faziaminúsculos farraposdenuvens correrempelo céu fora.A água tinhaumtomazul-claro convidativo.Polly hesitoupor algunsminutosmas, finalmente,nervosaealgoarrojada,atirouofatodebanhoparadentrodamochilaantesdecorrer escadas abaixo. A meio, parou, perguntando-se o que faltava, e entãopercebeuque,claro,eraNeil.EstavaàesperaqueTarnieestivessenoseubarcodepesca,masnãoeraessa

detodoasuaintenção,afinal;estavajuntoaumpequenobarcoaremosbrancocomumpequenomotoratrás.–Bem-vindaaomeuiate–saudouele,asorrir.–Ébembonito–afirmouPolly,aceitandoamãodeleaosairdocais.–Trouxechapéu?–perguntouele.–Não,nãopenseinisso–respondeuPolly.– É que o sol fica muito forte – alertou ele, atirando-lhe um chapéu com

imensospequenosbolsosdelado.Pollyenfiou-oporcimadoseucabelolouro-avermelhado.

–Fica-mebem?Tarniesorriu.–Parecequetemcincoanos.–Vouentender issocomoumnão– retorquiuela, tirandoochapéu.–Estes

bolsossãoparaquê?Minhocas?– Você tem uma obsessão por andar com animais em cima do corpo –

comentouTarnie.–Masnão,sãoparaanzóiseiscos,principalmente,masdeixeissocomigo.–Estáainsinuarqueeunãoseipescar?–Masvocêsabepescar?–Não,masnãodeviapartirdessepressuposto.Pollyvestiuocoletesalva-vidas.Tarniesorriu.–Oquê?Osmiúdosfixesnãousam?–Desculpe–afirmouTarnie–,aculpaéminha.Assumiquesabianadar.–ClaroqueseiNADAR.–Então,achoquenãoprecisadevestirisso,anãoserquequeira.Euconduzo

comsuavidade,prometo.Tarnie colocou amão na vara do leme, e Polly despiu o volumoso colete e

sentou-senapartedafrentedopequenobancodemadeira.Tarnieestavacerto:obarco só deu um solavanco ao arrancar e depois avançou muito suavementepelasondasdeespumabranca.Àquelahoradamanhãnãohaviamaisninguémnaágua,apenasalgunspescadoresàcanaisoladosnapontadomolhe,àesperade peixe. O sol estava quente e Polly ficou surpreendida por gostar tanto dasensaçãodopequenobarcoaacelerarpelomar fora.Omotorera ruidoso,porisso, não conversaram; ela ficou a observar a grande forma montanhosa dePolbearne a desvanecer lá atrás na neblina matinal, com as suas casas muitojuntaseasencantadorasruasempedradasnomeiodabruma.Eraestranho,masjáquaseoconsideravaasuacasa.Àfrenteestavaomaraberto,subitamenteempolgantenasuavastidão.–Istoaquiélindo–afirmouPolly,recostando-seedesfrutandodoventoedo

solnorosto;àmedidaqueiaaquecendo,levouamãoforadobarcoedeixou-aacariciarasondas.Eradelicioso.Ao fim de quarentaminutos, viu algo saliente nomar.Ao aproximarem-se,

percebeuqueeraumailhaminúscula,umínfimoafloramentodeterranomeiodenada.–Oqueéaquilo?–Achoquenãotemnome–explicouTarnie.–IlhadasAves,talvez.

Aindamaisperto,Pollyviuquetinhaumcaisdemadeiradegradado.–Viveaquialguém?– Não, é impossível viver aqui, mas dantes vinha cá alguém passar uns

tempos,devezemquando;umeremita,creio.Umsegundofilhoricoqualquerquenuncasedeucomomundo.Traziam-noatécácommantimentos,eleficavaalgunsmesesedepoisvoltavanoinverno.–Oqueraiofaziaele?–perguntouPolly.–Achoqueselimitavaacontemplaromar–respondeuTarnie,amarrandoo

barcoeestendendoamãoaPolly.–Nãosei.Secalhar,antesdehavertelevisãoaspessoaserammaisfáceisdeagradar.Defacto,subindodocaisedeumaestreitapraiadeareia,estavamasruínas

abandonadasdeumacasadepedradesbastada.–Uau–exclamouPolly.– Eu sei – afirmou Tarnie, olhando para o grafiti. – No verão os miúdos

roubamosbarcosdospaisevemparaaquifazerasneiras.Talvezomelhorsejaadmirá-lodelonge.Haviatambémvestígiosdeváriasfogueiras.–Podemosfazerumafogueira?–perguntouPolly.–Éestritamenteilegal–replicouTarnie–,massim,podemos.Deram uma volta. Havia freixos grandes dobrados no lado onde o vento

sopravadomar,edevezemquandopassavamcoelhosacorrer,emflashes.Eraum sítio isolado – o continente era apenas uma linha ténue ao longe – masbonito.–Comoéqueelearranjavaágua?–perguntouPolly,subitamente.–Tinhaumdepósitoonderecolhiaáguadachuva.Eissoécoisaqueaquinão

falta.–Não–concordouPolly.–Eafrotadepescapassavaporaquidetemposatempos–nóspassamosaqui

todososdias,eháaindaosmarinheirosdeLooe,claro.Pollyanuiu.–Muitobem–afirmouTarnie.–Estáprontaparapescar?

Pollyreceavaarrancaralgumolhocomumanzol,masTarniemostrou-lhecomolançarbemalinha,esentaram-seosdoisnocaisàesperaqueopeixemordesse.Tarniedissequecomohaviaalivegetação,ospeixestinhammuitoquecomer,e

eles estavam com sorte, porque haviam sido as primeiras pessoas a chegarnaqueledia.–Façaasuacaradefuriosaaquemaparecer–acrescentouele.–FaçaVOCÊ–retorquiuPolly.Tarniesorriu,comosolhosmuitoazuis.– Na verdade – continuou ele –, quando as pessoas veem que já cá está

alguém, normalmente vão-se embora. É um bom sítio para passar um diatranquilo.Masnósapoderámo-nosdele.– É a nossa ilha privada – afirmou Polly, fantasiosa. Tarnie sorriu-lhe

novamente.Pollyfoiaprimeira.Sentiuumrepentinopuxãonalinhaeperguntou-seoque

seria;então,levantou-seequasecaiuàágua.–Uau!–gritouela.–Apanheium!Apanheium!Tarniesorriu.–Boa!Comeceaenrolar!Puxe!–Ai,meuDeus!–exclamouPolly,excitada,quandoagrandeformaprateada

começouaficarvisível,agitando-sefreneticamentedebaixodeágua.–Ohnão,estouamatarumpeixe.Tarnieolhouparaela.–Polly,éumbocadinhotarde.–Eusei,eusei.Pollyencolheu-seequasedeixoucairacana.–Querqueeuotire?Ela apressou-se a anuir, ligeiramente irritada consigo mesma por ser tão

suscetível.Tarnieaproximou-seportrásdelae,comgrandenaturalidade,tirou-lhesuavementeacanadasmãosecomeçouaenrolaralinha.O sol tremeluzia na água e nas escamas prateadas enquanto o peixe se

contorciaereviravaatéaotopodalinha.Eraumarenque,bemgrande.–Milperdões,SenhorPeixe–murmurouPolly.–Estaéumamáalturaparasetornarvegetariana–afirmouTarnie,enquanto

tirava, commestria, o peixe do anzol. –Okay, talvez queira desviar os olhosnestaparte.Tarnielevouamãoaoseusacodepesca,tirouumacompridafacaprateadae,

rápidaefluidamente,começouaamanharopeixe.Pollyespreitouporentreosdedos.Tarniesorriu.–Vocêéumaraparigasuscetível–comentouele.–Eusei–confirmouPolly.–Euseiqueépatético,normalmentecompro-os

embaladosemplásticonosupermercado.–Entãonuncacomeupeixeasério–replicouTarnie.–Agoravábuscaruns

galhos.–Asério?–Asério.Andarpelopequenobosquefoiadorável,comumaabóbadaesmeraldaatapá-

ladosol.Pollyembrenhou-seomáximoqueconseguiu,apanhandogalhospelocaminho.Láemcima,ospássarosarrulhavam,masnãoseouviamaisnada.Erabelíssimo e muito calmo. Polly percebeu porque tantas pessoas da Cornualhaainda acreditavam em duendes; era um ambiente tão mágico. Respirouprofundamenteoarpurosalgadoesorriuaosentiralgoperigosamenteparecidocomfelicidade.Quandovoltou,Tarniejáapanharamaisalgunspeixeseeladeu-lheosgalhos,

queeletratouimediatamentedeencastelarparaacenderumabelafogueira.–Masissoéilegal–comentouPolly.– É, se você for um adolescente bêbado capaz de pegar fogo à ilha toda –

argumentouTarnie.–Vamostentarnãofazerisso,okay?Pouco depois, o fogo já crepitava, Tarnie tirou do saco papel de alumínio,

manteiga, limão e salsa, embrulhou o peixe e deixou-o repousar em cima deumaspedrasjuntoàfogueira.Pollytirouagarrafadevinho,queTarnietiveraaprevidênciadedeixarnomar

paraamanterfresca,epartiuopãofresco,queaindaestavamornopordentro.Barraram-nocommanteigaecomeram-noaacompanharopeixe,quetinhaumsensacional sabor fumado do fogo. Ficaram com gordura nos dedos, porquePolly esquecera-se de levar guardanapos, e ambos conseguiram queimar-se edepoistiveramdeatirarasespinhasaomar,quePollysentiunãoseromomentomaisprópriodeumasenhoraquejátivera.Foiamelhorrefeiçãoquefizeraemtodaasuavida.Porcausadovinhofrescoedosolquente,Pollysentiu-secomsono.Revirou

os olhos e agarrou numa das maçãs do saco de piquenique. Ao dar-lhe umadentada,apanhouTarnieaolharparaela.Algonoambientemudou.–Umamaçã?–ofereceuela.Elepestanejouporummomento.–Não,obrigado.–Desviouoolharevoltouaobservá-la.–Hum...Polly percebeu imediatamente que talvez Kerensa tivesse mesmo razão.

Afinal,pensou,olhandoemvolta:aquelelugar,aquelealmoço,aqueledia.Nãoeraapenasamizade,casocontrárioeleteriatrazidoosamigos.Eraoutracoisa.

Ficaram os dois sentados em silêncio por um momento, até que Tarnielevantou-seecaminhoupelaareiaatéaomar.–Estoucomcalor–anunciou.Semavisar,despiuacamisa–eramagro,mais

pequenodoquePollyesperava,musculado,comalgumascicatrizesfinasdelado–e,mantendoosseuscalçõescompridosvestidos,mergulhounarebentação.Polly observou-o durante muito tempo. Nadava muito bem e só vinha à

superfíciequandoelaquasecomeçavaaficarpreocupada.Então,viuaparecerasuacabeçapreta,comoumafoca,eeleacenou-lhe.–Comoestá?–gritouela.–Refrescante–gritoueledevolta.–Issosignificasempregelada–retorquiuela.–Cócórócó.– Nãome faça ruídos de galinha! – reclamou Polly. Também tinha calor e

sentia-se algo pegajosa. – De qualquermaneira, não se deve nadar depois deumarefeição.Ouissojáfoidesmentido?–Cócórócó.Antes de se aperceber o que estava a fazer, Polly voltou a embrenhar-se no

bosqueevestiuoseufatodebanhovintagecompadrãodecerejasquecompraraonlinenumaépocaemquecomprarcoisasbonitaseraapenasotipodecoisaquese fazia por diversão.Quem lhe dera ter um espelho. Pensandomelhor, aindabemquenão tinha.Começariaaapontardefeitoseapreocupar-se,alémdisso,nãoapanharasoltodooinverno,porisso,claroqueestavabranca.Tambémporisso, decidiu que o melhor a fazer era correr para o mar e atacar, antes quetivesseaoportunidadedepensarnoassuntoemudardeideias.A água não estava refrescante. Nem sequer estava fria. Estava absoluta e

totalmenteártica.– Hiiii – guinchou Polly, sentindo as entranhas a contraírem enquanto

chapinhavaemagonia.–Oqueéisto?Tarniedesatouarir.Eraestranhovê-lotãodescontraído;mergulhavaevinhaà

superfíciedecostas,todofelizecontente.–Vai habituar-se – afirmou. –Um bocadinho de água fria nunca fezmal a

ninguém–Faz,sim!Atodaahora–gritouPolly,aindaasentirochoqueprofundonos

pulmões.Voltouamergulhar.Aáguaeramiraculosamentetransparente,pareciaoMediterrâneo.Sentiuumpeixea tocar-lhenapernaeconseguiunãodarumgritinho.Finalmenteconseguiuhabituar-seàágua,evoltouà superfíciepara juntode

Tarnie.Osolestavadelicioso,deitadadebarrigaparacimaeaagitarasmãosparasemanteràtonadeágua.–Istoémaravilhoso–confessou,sorrindo.Tarnieolhouparaela.Derepente,osseusolhosestavammuitoazuiseosseus

dentesmuitobrancos.Efoiacoisamaisfácildomundoondularatémaispertodele,fecharosolhosaosoledebaixodocéuazul;edeixá-lopuxá-laebeijá-la.

Foramoscontrastes:ocalordosoleofriodaágua;aasperezadabarbadeleeasuavidadedapeledela;afrescuradoar livreea intimidadedevoltaraestarcomalguémaofimdetantotempo,alguémnovo,eempolgante,ediferente.Na viagem de regresso, Polly sentia-se repleta, ligeiramente tontinha, algo

sonolenta,nãoparecianadadela.Sentou-senafrentedobarco,viradaparaele.Devezemquando trocavamumsorriso,umolhar.Deresto,ela levavaamãonovamente dentro de água, saboreando a fantástica sensação de estar no seuprópriocorpo,noseuprópriotempo;semsepreocuparcomofuturonemsonharcomopassado,semsedistraircomastarefasdodiaadia,limitava-seaexistireasentir.Osolcomeçavaapôr-seealgumasdasnuvensestavamtingidasdecor-de-rosa.Estavafeliz,deu-seconta.Estavafeliz!Ospescadoresjáestavamacarregarachalupaquandoatracaramsuavemente

nocaisdePolbearne.Pelosacenosevivasanimados,Pollypercebeuqueseriamalvo de alguns comentários jocosos. Tarnie também estava rosado, e não eraapenasdosol.–Ah–exclamouele,comumsorrisorasgado,adesculpar-se.–Poracasonãopodessubir?–perguntouela,comcoragem.–Tenhode ir trabalhar– respondeuelee,comasuamãoásperaecalejada,

acariciou-anaface.Elaaninhou-se.–Embreve–prometeuele,olhando-acomosseusintensosolhosazuis.–Embreve–sussurrouela.–OLÁ! – exclamou Jayden, ajudando-a a sair do barco. – TIVERAMUM

BOMDIA?–Pronto,Jay,acalma-te–afirmouTarnie,brusco.Entreolharam-se.–Hum,obrigadaporestediafantástico–agradeceuPolly.Tarniebaixouosolhos.–Oprazerfoimeu–afirmou.Então,àfrentedoscolegas,inclinou-seedeu-

lheumbeijocarinhosonorosto.Corada,Pollyafastou-secomoseucesto.

–Tufizesteoquê?–perguntouKerensa.–NumaILHA?Oh,meuDeus,estoutãoinvejosa.–Porquenãosaiscomumdosmilhõesdehomensqueteconvidamatodaa

hora?– Porque tenho padrões – replicouKerensa. –Ups, não era isto que queria

dizer.–CLAROquequerias–retorquiuPolly.Estavasentadacomospéselevados

apoiadosnopeitorildajanela,abebericarumacerveja,averosolapôr-seeasentir-seridiculamentecontente.–Mastudobem,hojenãomeimporto.–Porqueashormonasdosexodeixaram-tedoida.–Eunãomesintodoida–afirmouPolly.–Sinto-mebem.–Éesseotruquedeles–disseKerensa.–Éissoqueelesfazem.Pollyrevirouosolhos.–Eupensavaquetutinhasditoparaeuvoltaraviver.–Éverdade.Pollylembrou-sedealgo.–Ah,aqueleamericanoestáapaixonadoporti.–Ah!–exclamouKerensa.–Poisdiz-lhequeoachoasqueroso.–Sabesqueeleésuper-rico.– Muito bem, então deixa-me vender a uma pessoa de quem não gosto –

retorquiuKerensa.–Obrigadapelofantásticoconselho.Pollybebeumaisumgoledecerveja.–Bom,foiincrível.Lindo.– Sim, está bem – afirmouKerensa. – Olha, podias ligar ao Chris, um dia

destes?–Porquê?–perguntouPolly,acordadaderompãodasuafantasia.–Nada.Éque...Eleestámuitoembaixo.Achoqueelesentequetuteestása

darbemeeleestámuitomal.Andaumbocadoamargo.–Eemqueéqueeupossoajudar?–Nãosei–confessouKerensa.–Talveztenhasdeoconvenceraenfrentara

vidaeaseguiremfrente.Pollysuspirou.

–Estábem,euligo-lhe.– Asmulheres conseguem sempre dar a volta melhor do que os homens –

comentou Kerensa. – Sabias? Os homens são péssimos, é por isso que estãosempreacasarporengano.–Hum...–replicouPolly.–Talvezsejamelhordizeres-lheparameligar.–Tentanãofazerumarmuitofelizeexcitado.–Eu...–Pollysorriu.–Querdizer,talvezumbocadinhomuitopequenino.

CapítuloQuinzeNodiaseguinte,demanhã,Pollyaindaestavaa sorrir, eoseusorrisocresceuaindamaisquandoexplicouasuanovaideiaaMrs.Manse–elanumapadaria,Gillian na outra,mas Polly ficava com o trabalho pesado – e até a encontroubastanterecetiva.– Enquanto cá estiver. – Torceu o nariz, o que, vindo dela, era um

encorajamento.–E se funcionar, devodizer– referiuPolly,masMrs.Mansedeitou-lheum

olharfulminanteelevantouopeito,emtomdeameaça.Pollypercebeu,contudo,queaideiadeestarnasuapróprialojasemPollyaatrapalharafaziamaisfeliz,emboraestivessejáaaceitaraideiadePollyfazertodosospães,oupelomenosjáseaperceberadequeeraalgoqueestavaparaalémdassuascapacidades.Então,Polly,semsequeixar,trabalhoudezasseishoraspordiaaajudaraMrs.

Manseareorganizartudoàsuamaneira,elevouafarinhaparaaoutracasa.Estaestavadegradada,claro,mascomcondiçõesparasetrabalhar,agoraque

deixara de chover constantemente. Se conseguisse pôr a padaria a funcionar eganharalgumdinheiro,talvezfosseosuficienteparaaguentaroinverno.Ficoualgo chocadapor estar a planear a tão longoprazo,mas não conseguiu evitar.Sentia a excitação a borbulhar por dentro. A sua própria padaria! Bom, nãopropriamente,mas... Tinha de ligar aHuckle a agradecer-lhe a ideia. E talvez

Tarnieaparecessemaistardee...Corouaolembrar-seeinstigou-seasiprópriaavoltaraotrabalho.Ao ligar o quadro de eletricidade, lembrou-se de como se sentira nervosa a

primeiravezquealidescera,porcausadopobrezinhoNeil.Ofornoacendeu-sepelaprimeiravezcomamadeiraládentro–Reubencompraraummodelotopodegama,queemanavaumcalorespantoso.Poderiausaros fornos tradicionaisparafazerospãesnormais,eteriaimensasoportunidadesdefazermaiscomasgrandesmisturadoras industriais,masdecidiuqueomelhorseriacomeçarpelomaissimples.Mrs.Mansepagar-lhe-iaàcomissãoecomprar-lhe-iaosseuspães,mastambémcontinuariaavenderosseusfolhadosesanduíches,pelomenosaoinício,elogoveriamcomocorreria.Foiumacordomuitoinformal.PollyteveasensaçãodequeMrs.Manseteriafeitopraticamentequalquercoisaparaaverdeláparafora.Sóagarrando-seàideiadequenãoeraporrazõespessoais–Gilliannãogostavadeninguém,naverdade–conseguiaevitarsentir-semagoada.Polly colocou os seus primeiros seis pães de focaccia no forno a lenha e

queimou imediatamente os dedos na pá comprida. Também deixou queimar opão.Foramprecisastrêsdosesdemassafrescaparafinalmenteconseguirfazerum pão – o forno era muito mais rápido do que estava à espera – com aquantidadecertadeazeiteeoequilíbrioperfeitodesalealecrim.Quando finalmente conseguiu, no entanto, a diferença de qualidade era

inacreditável.Osabordopãoeradiferentedetodososquejáfizera:estaladiçoeduroporfora,macioemolepordentro.Ocheiroeradivinal:oaromaquentedopãoacabadodefazercomumcheirovivoaligeiramentequeimado.EratudooquePollypodiafazerparanãoenfiaropãointeironaboca.A seguir tentou fazer uma pissaladière com cebolas cozinhadas lentamente.

Ficou ainda melhor; as cebolas caramelizaram no calor fumado do forno,tornando-se macias e doces, em contraste com a acidez das anchovas e dasazeitonasqueespalhouporcima.Depois,oseupãodequeijosaiurecheadodeumasuavidadederretidaetostada.Aquele forno,pensouPolly,contemplando-ode lado, faziadelaumapadeira

muitomelhordoquealgumavezseriasemele.Envioumaisumamensagemdeagradecimento a Reuben e convidou-o a visitá-la quando quisesse. Depois,pegouamedonaplacaantigade«Fechado»daportaevirou-apara«Aberto».

Ninguém resistiu a passar por lá para ver o que se passava– isso, ou entãoo

cheirosimplesmentearrastavafisicamenteaspessoas.AofimdequinzeminutosPolly já atraíra o que, emMount Polbearne, era uma multidão. Em cima dobalcão colocou pedacinhos de pão compalitos espetados, para que as pessoaspudessemprovar.–AMOSTRA–explicouPollyaJayden,quenãoconseguiafalarcomaboca

cheia.–Significaquetirasumparaversegostas.–GOSTO–afirmouJayden,semseperceberbem.–Gostomuito,porissoé

queestouacomermais.–Não,agoracompras.–Ah–disseJayden–,bemmepareciaqueerabomdemaisparaserverdade.–Estásnumaloja.–Pois–balbuciouele.–Possocomprarestes?–Apontouparaosgressinosde

queijo.–Quantocustam?–Ah, boapergunta– respondeuPolly. –Se calhar, devia ter pensadonisso.

Hum...Umalibra?Jaydenpegouemtrêslibrascomtodoocuidado.–Querotrês.–Tensacerteza?Sãobastantegrandes.Jaydenolhouparaela.–EufuiaExeterecomiquatroBigMacs–explicouele.–Fiqueimaldisposto,

masconsegui.–Parabéns–dissePolly.–Foiomelhordiadaminhavida–confessouJayden.Porummomentopareceuastuto.–Então,temfaladocomoTarnie?Pollylançou-lheumolharfulminante.–Nãoquerianadaterdeexpulsar-tedaloja–avisouela,comfirmeza.–Uau,estáatransformar-seemMistressManse–retorquiuJayden.Pollyagitouumdossacosdepapelquetrouxeradaoutrapadaria.–Vailáembora–afirmouela,embrulhandoosgressinos.–Eudigo-lhequeaPollymandoucumprimentos–provocouJayden.– E eu digo-lhe para te dar uma palmada no rabo – retorquiu Polly,

apercebendo-sedequefalarademasiadopertodamulherelegantementevestidaqueacabaradeentrarnaloja.–Ah,peçodesculpa.–Não tem importância– replicouamulher.A julgarpelapronúncia epelas

roupas,nãoeradali.

–Asenhoraénovaaqui?–perguntouPolly, sentindoumapequenaemoçãoperanteaideiadehaveralguémaindamaisrecenteemPolbearnedoqueela.–Sim,bom–Amulherolhouemvolta.–Estávamosàprocuradeumacasade

férias, sabe? Uma casa que pudéssemos comprar para nos refugiarmos.Queremosumsítiocalmo,masoproblemaéqueossítiosrealmentecalmosnãotêmmuitascoisas,restauranteseassim.Era bonita, pensou Polly; muito magra, com cabelo às madeixas e batom

fúchsia.–Pois–comentouPolly–,porissoéquesãotãocalmos.Semrestaurantese

coisasassim.–Entãojávêomeuproblema–referiuamulher.–Nósqueremosumsítioque

aindanãoestejaestragado,mascomexcelentecomércio tradicionaleprodutosregionais.–De facto, éumproblema–concordouPolly,pensandoqueprovavelmente

ficariamelhornumresortmaior.–JáponderouRock?Amulherencolheuosombros.–Sim, é pavoroso.Cheiodehorríveis donosde casas de férias que ficamà

portadosrestaurantesaosberros.–Masnãoéprecisamenteissoquepretendefazer?–Ugh,eusei.Masqueremosserosprimeiros!Nãoénadafácil!– Pois, não a posso ajudar – afirmou Polly. –Mas posso vender-lhe pão. –

Apontouparaospãesquerepousavamemcestosnovosquecompraranalojadeumalibra,masqueatétinhamumarrústicoagradável.Amulherexaminouospãesporumminutoe,então,oseurostoiluminou-se

derepente.–Aquiloéumtomateseco?Pollypegounopãodetomateseco.–É,sim.Osolhosdamulherarregalaram-seaindamais.–Eissoéumfornoalenha?–Sim.Pollydeu-lhe aprovarumpedaçodepão.Eladeuumadentadaedesatoua

gritar.– Henry! Hen! – chamou ela, aos berros, que chegaram ao enorme Range

Rover que ocupava a maior parte da rua lá fora. – Acho que encontrámos!Conseguimos! Os Hambleton-Smythes nunca sequer OUVIRAM falar destesítio!Vaiseranossapreciosidadesecreta!

Umhomemcorpulentocomagoladoseupolocor-de-rosaviradaparacimasaiudocarro.Erabastantemaisvelhodoqueaesposa.–GraçasaDeus!–disseeleaPolly.–Elaprecisadeteralgoparasegabar,

senãonãopassamosdisto.Pareceumsítiobonito.– Vou trazer cá o meu decorador para nos escolher uma casa – declarou a

mulher.–Não sei se haverá alguma à venda– referiuPolly.No sábado à noite vira

Lance,oagenteimobiliário,nopubeelepintaraumcenárionegrodonegócio.Ocasaldesatouarir.–Ah,elesacabamsemprepormevender–afirmouohomem.–Éverdade,querido–concordouamulher.–Todasaspessoastêmoseupreço.Bom,queroumexemplardetudooque

tiver.Masnãoéparati,fofinha.Nãoqueremosquecomecesainchar,poisnão?–Não,Hen–disseamulher,numsorrisoafetado.–Souoteurebuçadinho.

Pollyficouaobservá-losdepoisdepartirem,ohomemaremexeravidamentenograndesacodepapel.Sentiu-seestranhamenteculpadaporterrecebidoalguémquenãopertenciaaPolbearne–tinhaquaseacertezadeque,setivessemidoàlojadeMrs.Manse,ohomemencorpadonãoteriadeixadooseuRangeRoverestacionado na rua. Por outro lado, todos os habitantes haviamvisitado a lojanessamanhã, desdeMuriel, da loja da esquina, até o veterinário Patrick, queperguntou amavelmente por Neil e comprou um pão branco fatiado. Vieratambémaprocissãodepescadores,emparteparacomer,emparteparadeitaroolhoàmulherqueconquistaraTarnie.Sentiaalgoapuxá-la;emparte,desejavanão ter regressado com ele no barco à vista de todos, embora não houvessemuitoquepudessefazer.Quandoiriaeletelefonar-lhe?Porque ele iria telefonar-lhe, certamente? Claro que sim. Não fora um

encontrohorrívelcombinadonobarulhodeumadiscotecaondehaviampassadoanoiteagritarumcomooutro,nemumjantarconstrangidonumrestaurantedenível médio onde haviam tentado encontrar algo em comum, como desporto,músicaoupolítica.Eraalgoorgânico,certo?Surgiranaturalmentecomotempoquehaviampassadojuntos?Claro.Eraisso.Porisso,nãotinhadesepreocuparem ligar-lhe, porqueobviamentehaveriadevê-lo– ele trabalhava em frente àsua janela – e quando isso acontecesse, seria fácil, doce e nada embaraçoso,mesmocomumgrupodeamigospescadoresaosrisinhos.

Pensou, algo envergonhada, nodia anterior.Deixara-se levar, claroque sim.Emcircunstânciasnormaisnãooteriafeito.Mascomoodiaestavalindo,eelafinalmentedivertira-se.Decidiunãosesentirculpada.Fora estranho, também, a sua primeira vez em tanto tempo. Sentir o corpo

dele,diferentedodeChris,quesetornaraflácidoedesleixadoaolongodosanosquehaviamvivido juntos; demasiada comidade take-away, demasiadasnoitesdebruçado sobre o computador ou o estirador, demasiada cerveja aos fins desemana.Tarnie fora firmeeossudo.Nãomelhornempior,pensouela: apenasdiferente.Mas issoeraexpectável, apósestar foradecombatehá tanto tempo.Não faria clique com alguém na primeira vez, era preciso prática para sehabituaremumaooutro,dissoestavacerta.Polly esfregou o pescoço e fez mais uma fornada dos gressinos de queijo;

estavamaseraltamentepopulares.Opãodemeljaziaaocanto,talvezfosseumpoucoestranhoparaaclientelaqueapareceraatéentão,masnãohaviaproblema,dar-lhes-ia tempo.Àsduashorasda tarde jávendera tudooque tinhana loja.Depoisdisso,aparecerammaispessoas,masvoltaramparatrásdesapontadas.Pollyolhouparaorelógioecontouodinheiroquefizera.Mrs.Manseiriaficar

contente,certamente–seéqueseriapossívelagradar-lhe.Ecomoverãoeosturistasàporta,talvezfossepossívelterminarotrabalhoàsduashorastodososdias.Tentouconterumaexcitaçãocrescente.Seconseguissefazeraquilo todosos dias – e este era um grande «se», dependia muito da sua difícil patroa –poderiaconsiderarapadariaumemprego,umempregoreal,asério.Emuitodiferente.Faziapãoevendia.Lembrou-sedos temposemqueelae

Chris trabalhavam juntos: a adulação incessante para angariar novos clientes;todas aquelas cansativas saídas à noite, para discutir trabalhos futuros emreuniõesintermináveis,atentararrancarumsim,atentarplanearalongoprazo,a tentar lidarcommudançasconstanteseummilhãodemaneirasdiferentesdefazerascoisas.Ao passo que ali, se as pessoas queriam uma carcaça, compravam uma

carcaça. Se queriam pão, compravam, se não, não compravam.Havia algo deterra a terra, algo muito real naquela transação que nunca conhecera. Se nãofizessepão,nãoganhariadinheiroenãoseriapaga.Sefizesse,eseopãofossebom,aspessoasvoltariam,atéparacomprarumacasaparaestaremmaispertodosítioondeelaofazia.Subitamente, ali na pequena padaria da Beach Street, tudo lhe pareceu

possível.Mesmo.Virouaplacadaportapara«Fechado»ecomeçoua limpar.Teriadeserum

poucomaisarrumadaeeficienteduranteashorasdetrabalho.Outalvezpudessecontratar alguém em part-time para ajudar na limpeza. Isso também poderiafuncionar.Tentavarefrearaexcitaçãofervilhantequandootelemóveltocou.Oseuvelhinhotelemóvelforapagopelaempresa;entregá-loaoMr.Bassifora

umdosmomentosmais embaraçosos da sua vida.Entretanto, comprara outro,barato,masraramentesedavaaotrabalhodeusá-looudedaronúmero;quandoestivesse preparada para voltar a estar comos amigos, prometera a simesma,daria.Semdúvida.Era um número desconhecido. Devia ser Tarnie, pensou. Sorriu, ficando

subitamentemuitomaisnervosa.Oque iriam fazer? Iriamsairnumencontro?De repente, era ridículo imaginar Tarnie sentado num restaurante ou numcinema;naverdade,Pollynuncaoviranumespaçointerior.Elenãoeradetodouma criatura de espaços fechados; o seu lugar era ao ar livre, com o sal aborrifar-lheocabelo.–Estou?–atendeu,animada,numtommuitomaisconfiantedoquesentia.–

Comoestás?–Nãomuitobem–respondeuumavozfria.–Chris?–Bom,sim,quempensavasquefosse?–Elepareciadeprimido,nadefensiva.–Não,claro.Olá!Comoestás?A nova, e arduamente conquistada felicidade de Polly desaparecera

subitamente e ela sentiu as pernas a contorcer-se junto ao tornozelo, com oembaraço.Depoisdetudoporquehaviampassado,detudooqueelatentara...Lembrou-sedoqueKerensa lhedissera sobre estarem todospreocupados comele.–Olá,estásbem?–perguntouela.–Bom,ouvidizerquetuestás–retorquiuChris,comdureza.Pollyolhouparaapequenapadaria.Asjanelasaindaestavamrachadas.Mas

tinhapersonalidade.– Hum, sabes, tem sido uma luta – apressou-se a responder. – O que tens

feito?–Oqueachasquetenhofeito?Estouaviveremcasadaminhamãe,atentar

refazeraminhavida.–Elaestáboa?–perguntouPolly.AmãedeChrissempregostaradela,maso

seurostotornara-sefechadoàmedidaqueascoisascomeçaramacorrermal.SentiuChrisafranzirosobrolhoaotelefone.–Eladizqueestáaficarfartademim.Comotu.

–Chris–retorquiuPolly,fazendoumesforçoenormeparanãoficarirritada–,eunãofiqueifartadeti.Ascoisascorrerammal,lembras-te?Seguiu-seumalongapausa.–Claroquemelembro–afirmouele.Pareciaamargurado.Pollymordeuolábio.– Então, pensei que talvez pudesse fazer-te uma visita – continuou ele na

defensiva,comoseestivesseàesperaqueelarecusasse.Pollypensounoapartamentopequeno,emtudooqueestavaaacontecereno

factodeestaràesperadenotíciasdeTarnie.Nãoeraaalturaideal,masclaroquetinhadeoreceber;claroquesim.–Então?–insistiuele,quandoelanãorespondeuimediatamente.–Oquese

passa,seguisteemfrente?Polly sabia que eram as inseguranças de Chris a manifestarem-se da forma

maisdura.–Ah,bom,sabes...Claroquepodesvir.Porfavor,vem.–AKerensadizquevivesnocampo,numailhamaluca.–Ahsim?–Fazia-mebemalgumapazesossego.Aminhamãemói-meojuízo.Pollysentiu-sefrustrada,nãoconseguiaevitar.Estavafinalmenteaseguirem

frente, a ultrapassar tudo; já quase não pensava em Chris, para ser sinceraconsigomesmo,enterraraadoreenvolvera-senoutrascoisas.MasissonãoerajustoparaChris.–Sim,claro–respondeuela.–Vemquandoquiseres.

CapítuloDezasseisArapidezcomqueaPequenaPadariadeBeachStreet(assimchamadaparasedistinguir da loja deMrs. Manse, embora esta fosse maior apenas um metroquadrado)ganhoupopularidadesurpreendeutodaagente,sobretudoPolly.Todososdiasexperimentavasaboresdiferenteserapidamenteaprendeuoque

combinavabem.Opãocomchouriçoeraumenormesucesso,emboraelativessedemandarvirochouriçodocontinenteeninguémsoubesseoqueera;ascornfritters igualmente. Tudo o que se assemelhasse ainda que vagamente a pizaesgotavaantesdasdezdamanhã.Polly pensava já que iria precisar de um assistentemuito em breve,mal os

turistas começassem a invadir a calçada, mas as longas horas passadas de péeramcompensadaspeloprazerquesentiaàsduasdatarde,quandotodoostockjá estava vendido e ela podia fechar. Em várias ocasiões, numa tentativa deevitarqueaspessoasdaviladescobrissemoquesepassavaentreeles,davaumsaltoaoandardecimaparaestarcomTarnie,quetambémestavalivreàtarde,epassavam algum tempo juntos, com o sol a entrar pelas janelas e o arimpregnadodocheiroasal.MasPollyreparouquenãopareciamumcasal:nãosaíamparajantar–ondeiriam?Àsvezesiamtercomosoutrosaopub,masnãosabiamcomolidarcomasbrincadeirasesentavam-seseparados.No entanto, Polly sentia-se bem. Sentia a gradual agitação do seu corpo a

voltaràvidaàmedidaqueosdiasiamficandocadavezmaisquenteseosolsetornava devidamente cálido, magnífico, e a pequena vila ganhava vida.Acordavatodososdiascomosprimeirosraiosdesolcor-de-rosa,paraamassaredeixar levedar o pão, para experimentar receitas novas e ficar a par dascoscuvilhices da vila. Rapidamente todos ganharam o hábito de passar pelapadaria,sobretudoapartirdomomentoemqueelacomproucoposdepapelparaaboamáquinadecaféecomeçouavendê-lostambém.Patrickpassavaparasequeixar dos gatos sarnentos;Muriel aparecia para partilhar que os pés davamcabodela;Andy,dopub,faziaumavisitamesmoantesdahoradealmoçoparacomprarpãobrancoparaosseuschurrascos,eHuckleiaentregaroseumel.Os turistas haveriam de aparecer aos magotes, ficariam surpreendidos por

encontrarem um sítio tão encantador e Polly ouviria, feliz, o tilintar da caixaregistadora. Quando levava o dinheiro à outra loja, Mrs. Manse resmungavasempre,masPolly depressa aprendeu que se levasse à velhota uma caneca dechá, ela não levantaria qualquer objeção a ouvir as coscuvilhices em segundamão, deixando sair ocasionalmente uns ruídos de censura. Polly jamais lhechamariaamizade,masestavamnobomcaminhoparaquebrarogelo.EtodasasnoitescaíanacamaaopôrdoSol,exaustadotrabalhoduro,cada

vezmaisbronzeadaeasentir-semelhoremaisfortediaapósdia.Asuaantigavidarecuavacomoasondasdapequenapraiadeareiaaseguiraovelhofarol,ondeelaeMurielporvezesserefugiavamparaummuitomerecidodescansoedoisdedosdeconversa.EagoraChrisestavaprestesachegar,trazendoconsigoessaantigavidapara

Polbearne.Polly observou atentamente o sofá – o seu precioso sofá –, abriu-o e

transformou-onumacama,apreensiva.Eleligara-lheparalhedizerquandochegariaeelaapercebeu-se,jásemsequer

precisardeconsultarasuatabelademarés,quenessaalturaopassadiçoestariasubmerso. Avisou-o e ele respondeu que já era tarde de mais, já estava acaminho, e ela suspirou e respondeu que tudo bem, haveria de pensar numasolução.NoportoninguémsabiadeTarnie,masJaydenestavaadesenrolarasredes,da

formamenosentusiasmadapossível,esaltoudealegriaquandoelalheofereceualgunsbriochesparaalevaraooutroladodopassadiçoeapanharChris.Atardeestavabonita,ohorizontedistantecomeçavaaficarrosado,quandose

fizeram à água, que subira lentamente pelas pedras do passadiço atédesaparecemtodasePolbearnevoltaraserumailha.Asavesmarinhasgritavam

eocontinentepareciamuitodistante,ePollysentou-senapartedetrásdobarco– já subia a bordo facilmente; entrava num barco com tanto à-vontade comoentravanumcarro–esorriuquandoJaydenligouopequenomotor.–ÉsoFórmula1dosbarcospequeninos–afirmou,esorriuagradecida.– A Polly é a segunda boleia que dou hoje – revelou ele. – Vou abrir

novamenteoserviçodetáxi.Noverão,ospescadoresusavamosbarcosauxiliarescomotáxisnãooficiais,

paratransportarturistasencalhadosatéaosseusparquesdecampismoouhotéisnocontinente,apóscederemà tentaçãodesedemoraremdemasiadonaMountInn.Opreçoeraomáximoaceitável,comaúnicaregradequeodinheiroganhoseriaguardadoeasviagenspartilhadas.– Basicamente, vocês são piratas – comentara Polly quando soube, e eles

sorrirameanuíram.– Têm tido muito trabalho? – perguntou Polly. Ainda não havia muitos

turistas,eoshabitantesconheciamohoráriodasmarésdecor.–Sim–respondeuJayden.–LeveioTarnieavisitarasua...Pollynãoestavaaouvir.Naverdade,seJaydennãosetivessecaladodeforma

muito notória e corado como um tomate, seria altamente provável ele terconseguidodistrair-se.Elepoderia terdito«barconovo»ou«quota-parte»ou literalmentequalquer

coisaquelheviesseàcabeça,masporvezesacabeçadeJaydenconseguiaseruma grande extensão nublada, por isso, ali ficou, com as faces rosadas, aesfregarapartedetrásdopescoçoecomabocaabertacomoumpeixe.Ao início Polly não prestou atenção, mas depois recuou na conversa e

endireitou-se,engolindoemseco.– A sua quê, Jayden? – perguntou ela, tentando fazer uma voz calma e

desinteressada.Pordentro,ocoraçãodisparara.–Nada–respondeuJayden,naesperançadequeelaodeixasseempaz.–Nada, não, Jayden– replicouPollynumavoz afetada.Olhou-onosolhos,

mas ele mal conseguia fitá-la. Fez-se um longo silêncio. Não seria Polly aquebrá-lo.–Hum–acaboupordizerJayden,jámaispertodocontinente.Pollydistinguiu

opequenoPolobrancodamãedeChrisnoparquedeestacionamento.–Sim?–Hum...Asuamulher.–Murmurouasúltimaspalavrasnumápice,comos

olhosfixosnochãodobarco.–Asua...–Pollytinhadeteracertezaabsoluta.–Jayden,tudisseste«asua

mulher»?Jaydenanuiu,sentindo-seculpado.–OTarnieécasado?–Sim.–Etusabias?Maisolhosfitosnochão.–Sim.Polly sentiu o sangue subir-lhe à cabeça e percebeu que tinha as mãos a

tremer.Talvezistoexplicassearazãopelaqualnãohaviamevoluídomuitomaisdoqueumabebidaocasional.Elembrou-sedeoutracoisa.–E...Suponhoquetodaagentenavilasabe?Jaydenencolheuosombros.Polly praguejou, em voz alta, e atirou à água uma pedrinha que estava no

barco.–Poramordasanta.Porquenãomedisseste?–Nãotenhonadaavercomisso–murmurouJayden.Pollytinhaacabeçaamilàhora.Nãoperguntara...Bom,nuncalheocorrera

que fosse preciso, além disso, ele não usava aliança – mas no trabalho deletambémseriaperigoso.Dantes,quandoeramaisnova,confirmavasemprecomos«caçadores»queela

eKerensaencontravamnosbaresdePlymouth:osmarinheiroscomlicençaparairematerraeoshomensdenegócios.Masclaroqueultimamentenadadissolheimportara, estava com Chris há tanto tempo. Era Kerensa que ficava com otrabalho todo; Polly transmitia uma vibração de «sou comprometida» queresultava na perfeição E agora fizera o erromais amador, de principiante, detodos.Sentia-seincrivelmenteestúpida.–Porraparaisto–exclamou.–PORRA!Nãoacreditoqueninguémmedisse.

PorqueéqueMistressMansenãomedisse?–Respondeuàsuaprópriapergunta.–Porquenãogostademim.PorqueéqueoHucklenãomedisse?–Aquele americano esquisito? – perguntou Jayden. –Porquehaveria ele de

saber?–Comoéela?–perguntouPolly.–PoramordeDeus,diz-mequenão têm

filhos.Jaydenabanouacabeça.–Elanãogostadapesca–revelou.–Deixa-ovirtrabalharduranteaépocade

pescaeficaemcasa,emLooe.Elevemevai.–Porra!–exclamouPolly.–Eledeveterpensadoqueeuseriaumalvofácil.

Jaydenestavadestroçado.–Eunão–replicou.–EuachoqueaPollyéquerida.–Obrigada,Jayden–agradeceuPolly.Estavam a chegar ao cais e Polly ainda não descobrira metade do que

precisavadesaber.–Elefazistotodososverões?–exigiuela.–Encontraumarecém-chegadae

ataca?Eeusouapenasomodelodesteano?Ohnão,aquelailha.Provavelmentevailáatodaahora.Tinha dificuldade em imaginar alguém que parecesse menos um sedutor

experientedoqueTarnie,mas talvez este fosseo seu talento especial.Parecerrudeeinseguro,sabendobemoqueestavaafazer.Jaydenabanouacabeçacomfirmeza.–Não–respondeu.–ElemorredemedodaSelina.Nuncaovifazer isto,a

sério.Pollyfitou-ocomosolhosarregalados.–Éverdade–insistiuele.Quandoobarcoseaproximou,Chrissaiudocarro,comabrisaaborrifar-lhe

águanatesta.–Éoseunamorado?–perguntouJayden.– Não propriamente – respondeu Polly. – Credo, vocês são todos tarados

sexuais.Ela elevou-se para subir para o cais, furiosa mas sabendo que tinha de

esquecer o assunto por agora, apagá-lo da sua mente. Ocorreu-lhe por uminstantequesesetivessesentidotentadaareceberChristodacheiadesi,agoraseriatotalmentedespropositado.

CapítuloDezassetePollyestudouoseuex, tentandoignorarofervilharquetinhadentrodesi.Eleestavadiferente.Sóhaviampassado trêsmeses,maspareciamais tempo.Nãoestavatãopálidoeesmorecidocomficaraquandoaempresaentrouemrecessão.O cabelo precisava de ser cortado, mas até lhe ficava bem, um pouco maiscomprido.Voltara aganhar todoopesoqueperdera, e aindamais, eospaposdebaixodosolhospareciamtervindoparaficar.Estavavestidocomumavelhacamisa aos quadrados e calças de ganga que pareciampequenas demais paraele.–Olá–disseele,ponderado.Chris, por seu lado, ficou impressionado com a mudança de Polly. Parecia

distraída, mais alta. A pele ganhara um tom levemente bronzeado, por estarmuitotemponarua,queafavorecia;tinhaocabelolouro-avermelhadoapanhadodescontraidamentenumrabo-de-cavalo,comosenãoestivessepreocupadacomquemairiaver.Algumasmadeixascaíam-lheàvoltadacara,numefeitobonito.TambémestavadecalçasdegangavelhaseumaT-shirtvermelhasalpicadacomum pó;Chris partiu do princípio que seria farinha. Pareciamais nova,menostensa. Subitamente, sentiu uma pontada de culpa; contribuíramuito para tudoaquilo.–Olá–replicouela.Olharamumparaooutroembaraçados,semsaberemqual

seria a formacorretade se cumprimentaremao fimde tanto tempo separados.Entãoeladisse«andacá»eabriuosbraços.Eledeu-lheumabraçotímido.Pollyreparou imediatamente no seu cheiro, que lhe era familiar; para Chris, Pollytinhaumcheirodiferente–umaromaapão,umapitadadeáguasalgada.–Uau–exclamouele,finalmente.–Estáscomótimoaspeto.Derepente,Pollydeu-secontadequenãoprepararanadaparaasuachegada.

Nosprimeiros tempos teria feitoquestãode searranjarparaele,deescolher aroupa cuidadosamente e de pôr imensa maquilhagem. Agora só tinha umapinceladadebatom.Epercebeuporquê–emparte,porquenão lheocorrera,eem parte porque pensara que ele já teria namorada, claro – e sentiu-seimediatamentepateta.TentouesquecerTarnie.Agoranãopodiapensarnisso.–Bom–disseela–,obrigada.Tutambém.Fez-seumapausadesconfortável,eentãoJaydenpigarreouelembrou-lhesque

quandoamarévoltasseadescer,teriadedarumavoltamuitograndepelocabo,ePollyapressou-seaentrarnobarco.Chrisseguiu-acomoseusacodeviagem,umpoucomaisdesajeitado.–Játehabituasteaomar–comentouele,ePollylimitou-seasorrir,maspor

dentrosóqueriamorrer.Jayden,obviamenteconscientedoproblemaquecausara,passouaviagemde

regressoemsilêncioabsoluto,eoresultadonãofoimuitodiferentedeatravessaro rioEstige transportadopelobarqueiro.Aocontornaremocaboemdireçãoàbaía, Polly olhou paraChris que, pela sua expressão, estava deliciado comosprimeirosraiosdopôrdoSolquebanhavamapequenavilaedavamumfulgordouradoàardósiaeàpedra.Asjanelascintilavam,aspedrinhasbrilhavameosmastrosdosbarcostilintavam.–Uau–exclamouele.–Éaqui?Émuitobonito.Pollysorriu,orgulhosa.–Eusei.–Masestásnomeiodenada.Atrásdesi,PollyconseguiusentirJaydenafazermácara.–Issoédiscutível–replicouela.–Muitaspessoasgostamdavilaassimcomo

está.–Enoinverno,comoé?Polly lembrou-se das tempestades fustigantes e da solidão do início da

primavera.–Aconchegante–respondeurapidamente.Chrisnãopareceuconvencidoepegounotelemóvel,surpreendidopornãoter

rede.Jaydendesembarcou-ossemmaisumapalavra,apenasumolharligeiramente

apologéticonadireçãodePolly,queelanãodevolveu.Umacoisadecadavez.NãosabiaoquefariaquandovoltasseaverTarnie,masnãoseriabonito.–Penseiemirmosbeberumcopo–sugeriuela,desejandoquenãohouvesse

apenas aquele pub em toda a vila. De qualquer forma, Tarnie estava nocontinenteehásemanasquenãotinhanotíciasdeHuckle.–Ótimo–respondeuChris.–Têmfishandchips?Adoravacomerunsbons.– Claro que sim! – afirmou Polly, feliz por, pelo menos até então, ele não

parecertervindoaMountPolbearnesóparaaaborrecer.Deixaram o saco de Chris no apartamento por cima da padaria. Desde que

Polly começara a renovar o rés do chão que se tornara mais acolhedor eagradável;osfornosmantinhamacasaquente,quejánãodavaasensaçãodesertão húmida e fria comodantes.Também fora –Tarnie levara-a – ao armazémonde guardara as suas coisas numa tarde de quarta-feira e trouxera os seusquadros, livros e tapetes, coisas que Chris nunca quisera no seu paraísominimalista.Agoratinhaumquentetapetevermelhonochão,filasdelivrosemprateleiras rústicas de tijolo emadeira e paisagens abstratas queChris disseraparecerem ter sido desenhadas por crianças, mas Polly gostara delasprecisamente por essa razão. O impecável sofá cinzento tinha almofadasespalhadas.Oefeitoeraconfuso,masconvidativoeacolhedor.– Uau – comentou Chris, comprimindo o rosto. – Ah! Está um bocadinho

diferentedacasadePlymouth.Pollyolhoudelado.–Querdizer,estámuitobonito.–Chá? – ofereceu ela, tirando do armário a sua louça desemparelhada e os

briochesquehaviamsobradodoalmoço.Chris anuiu e ela preparou amesa junto à janelagrande, ondeopôrdoSol

davaagoraumgrandiosoespetáculocor-de-rosaeroxo,comoqueaexibir-sesóparaeles.

–Então–dissePollygentilmenteaopousarachávena.Chrisolhoufixamenteparaasuachávenaedepoispelajanela.–Estásàfrentedaquelapadarialáembaixo?–perguntou,incrédulo.–Sim–respondeuela.–Euseiquenãoparecenadadeespecial,maspertence

aoutrapessoa,sabescomoé...–Comoconseguesfazerpãoparatantagente?Pollyencolheuosombros.–Éumaquestãodeprática.SabesTodosaquelesfinsdesemana...Nãoprecisoudeterminarafrase.Todososfinsdesemanaqueelepassarafora

decasaa trabalhar,ouemque insistiraquenãopodiamsairouemqueestavademasiado stressadooua recuperardeuma terrívelbebedeiradepoisde tentarafogar as mágoas, técnica que raramente resultava bem, ou durante muitotempo.–Istoésóoqueeujáfazia,masemmaiorescala.Chris abanou a cabeça. Ela percebeu pelo seu rosto que estava notória e

terrivelmenteinvejoso.–Tambémnãoéassimtãobom–comentouela.–Querdizer,fazmuitofrio,

eutenhodemelevantarahorasindecenteseaspessoasdecásãoTERRÍVEISe...Sabiaqueestavaatagarelar,masnãosabiaoquemaispoderiafazer.– Sim, bom, comigo está tudo a correr muito bem – apressou-se a afirmar

Chris.–TenhotrabalhadocomalgunssitesQuerdizer,amaiorparteéparaterexposição,masépublicidadeparaomeunome,sabes?Polly bem sabia. Pessoas que obtinham trabalho criativo gratuito, alegando

que era em troca de publicidade – quem não gostava de não pagar aocanalizador?Ouporumpão,jáagora.–Issoéótimo–comentouela.–Ecomoestáatuamãe?Chrisfranziuosobrolho.–Hum... está bem.Acha que eu devia voltar a viver sozinho.Mas as casas

paraalugarsãotodashorríveis.Tutivestesorte.Pollyeriçou-selevemente.–Omundoestámuitodifícil.–Chriscontorceuorostoequeixava-secomo

umacriançadesapontada.–Eusei–concordouPollye,notommaissimpáticodequeeracapaz:–Jápensastedahipótesedemudardeárea?–Oquê?Fazerbolos,porexemplo?–escarneceuChris.–Não,sabes,omeu

casoédiferente.Eusouumprofissional.Pollydecidiuqueeramelhorsaíremantesquelheatirasseobuleàcara.No pub, com os fish and chips e uma garrafa de vinho branco à frente –

felizmente, além do veterinário Patrick, não estava lá mais ninguém que elaconhecesse–Pollypigarreou.

–Então–começouela,desajeitadaeenchendooscopos.–Acasa.–Sim–respondeuChris.–Certo.Corouepigarreou,comosefossefazerum

anúncio.–Tenhopensadonisto.Agoraquejáestásatrabalhareaganharalgumdinheiro,podiasvoltaraassumiroempréstimodacasa.Eupodiavoltarparaláecomeçaraprocuraremprego.Depois,quandoestivessebemnovamente,podiasvoltarparaPlymouthearranjarumempregoasério.OBobéteutio,podemosvivercomodanteseassimsalvávamosacasa.Pollybebeuumlongogoledoseuvinho.AliestavaChris,adizerfinalmenteo

queháseismeseselaansiavaquedissesse–não,hámaistempo.Hádoisanos.Deuporsiapestanejarrapidamente.–Maseutenhoempregoaqui–acaboupordizer.Esqueceu-se de como estava convencida – dissera-o a Kerensa vezes sem

conta–dequeMountPolbearneeraumamedida temporáriaatévoltaraestarorientada;deque iriamviver separados até aduplaPolly eChris se endireitarnovamente.Alémdisso,o seu saláriodificilmentechegariaparapagara rendaeaindao

empréstimo.–Sim,mas,sabes–gesticulouChris.–EstefimdemundoIstonãotemnada

avercontigo,Pol.Nemconnosco,percebes?Pollypensounasua fantasiaconjunta:dois jovensprofissionaismodernos,a

viver num apartamento elegante, a ter sucesso na empresa, a ir a reuniõesimportantes,baresdamoda.Essamulher...Jáquasenãoselembravadela.Respirou fundo, virou-se e contemplou o mar. O farol projetava a sua luz,

iluminando as ruas empedradas, omuro do porto, as gaivotas a lutarem comoadolescentesbêbados,ospequenossinaisdetrânsitobrancos.Malviaafachadaprotuberanteedegradadadapadarianoporto,comasgaivotasapairaremsobreela.Endireitou-se, olhou para Chris, que estava ansioso. Percebeu que estava

preocupadocomasuaresposta.Epercebeuquenãosabia–comcerteza,bemlánofundo–atéàqueleprecisomomento,qualteriadeserasuadecisão.SempredisseraqueamudançaparaPolbearneseriatemporária.Mas,independentementedos seus altos e baixos, essa mudança acabara por ter um significado muito,muitomaior.– Eu acho – respondeu ela, engolindo em seco – que talvez tenha a ver

comigo.Seguiu-seumlongosilêncio.Ambosfitaramoscopos.–Oquequeresdizercomisso?–perguntouChris,finalmente.

Pollysentiuumdolorosonónagargantae,subitamente, tevedecombateraslágrimas.–Nãomeparece...Achoquenãoquerovoltarànossavidaantiga.Chrisfranziuosobrolho.–Nãoqueresvoltaragerirumaempresa.Tudobem,dequalquerformanãoo

podemosfazer,pelomenosdurantedoisanos.Maspodemosmanteracasasetuteencarregaresdo...–Não.Polly deu-se conta de quão raramente dizia que não a Chris. Na verdade,

passara amaior parte do tempoquevivera comele a tentar fazê-lo feliz.Nãoadmira, pensou, pesarosa, que tivesse acabado por ser seduzida pelo primeirotipoqueaparecera.Essaideiadeixou-amaldispostaebebeuorestodovinhoquetinhanocopo.–Estásafalarasério?A luz do farol passou por elesmais uma vez.No porto, os barcos de pesca

acenderamasluzesePollysentiuumapertonocoraçãoquandoelescomeçaramasairparaasualonganoitedetrabalho.Murieleomaridopassarampelopubnasua caminhada de fim de tarde. No muro do porto estavam sentados váriosveraneantes adiantados; um rapaz e uma rapariga abraçados, o rapaz a roubarbeijos no cabelo comprido da rapariga. Lá em cima, começavam a apareceralgumasestrelasnocéunoturnolimpo.Pollyencolheuosombros.–Acho...Acho...Enfim,pelomenosporenquanto,eu...–Tutrabalhasemgestão!–MasaPequenaPadariadeBeachStreet...Estoua fazerumacoisadeque

gosto–confessouPolly.–Eadoroestesítio,nãoconsigoexplicar,émágico.Chrisfezumacarairritada.–Estásaenterrar-teparateesconderesdaverdade.– Talvez – replicou Polly. – Talvez esteja. Da verdade de que a empresa

falhou.–Paraaspalavrasseguintesfezotomdevozmaissuavequeconseguiu.–Enósfalhámos,Chris.Demosonossomelhor,masfalhámos.Elelevantouosolhosparaela,asolheiraspesadasetristes.–Sim,pois,sabescomoé,amalditacrise.Havemosderecuperar.–Não–retorquiuPollyepousouasmãosemcimadasdele.–Nãofoibom

para ti. Eu atazanava-te, exasperava-te e tu não gostavas. Precisas de alguémcomquempossascontar,nãodealguémquecorraatrásdeti.Chrispareceulacrimejar.

–Eusóqueroqueascoisasvoltemaseroqueeram.Polly lembrou-se de quando se tinham acabado de conhecer. Ele era tão

bonito,tãojovemeinteligente,comoseuportefóliocheiodearteedesign,tiposde letras maravilhosos, ideias. Os dois ficavam bem juntos; eram dinâmicos,queriamconquistaromundo.Eramtãosegurosdesi.Nuncaconseguiriamseraspessoasquehaviamsido.–Eusei–replicouela,sentindo-sedespedaçadaemuito,muitocansada.–Eu

sei.

Chrisdeitou-senosofá,Pollynacama,masnenhumdosdoisconseguiudormir.Ficaramambosacordados,Chrisacontemplaromar,Pollyoteto,comacabeçaa fervilhar.Teria feitoumerro terrível aonãoconcordarvoltarpara a cidade?Seria esta a sua última oportunidade de ter uma vida «normal», como todosesperavam:ficarnoivadeChris,encontrarumempregoaceitávelnumescritórioalgures, talvezumdia terum filho?Não iaparanova; senãoo fizesse agora,transformar-se-ianumaMrs.Manse?Tevederesistiràtentaçãoocasionaldeselevantar,irabraçarChrisedizer-lhequesim,quetudocorreriabem,elesseriamcapazes, vamos começar de novo. Porque, no fundo, sabia que as coisas nãoiriamcorrerbem.Àsquatrodamanhã,Chrisdesistiue,omaissilenciosamentepossível,saiudo

apartamento para encontrar algo melhor para fazer. Polly ouviu-o e estavaprestesalevantar-seeairatrásdelequandopercebeu,finalmente,queestavaaadormecer,presanumaparalisiamotora,equeafinalnãoconseguialevantar-se.

No domingo de manhã, Polly dormiu até às onze da manhã e acordousobressaltada. Não se lembrava da última vez que dormira tanto; sentia-setotalmentefresca,quente,quasenova.FoiverseChrisjávoltara,masnãohaviarastodeleempartealguma;eracomosenuncalátivesseestado.Eleerasempretãometódico.Nãodeixararecado,nada.Pensounanoiteanteriorcomumasensaçãodepânicocrescenteantesdedizer

a si própriaquenão, tomara adecisão certa.Ligou a sua adoradamáquinadecaféesentiu-semaisleve,comoseapreocupaçãodeoquefazeremrelaçãoaChris tivesse sido um peso invisível que carregara e que lhe fora tirado. É

verdadequedoíaequeoseufuturoeraagoraumlivroaberto,imprevisível.Mastomaraadecisãocerta,dissoestavacerta.Voltarnaquelaalturaseriaumsegundofracasso,enãosabiaseconseguiriasuportarissonovamente.Espreitoupelajanelae,derepente,viuumamultidãodepessoasaolharpara

ela fixamente.Arfou e deu um salto para trás, para confirmar se a camisa denoitenãoestavaaberta.Oqueestavamelesaliafazer?Lavou a cara, vestiu-se rapidamente e correu pelas escadas abaixo,

preocupada. Alguém arrombara a porta? Algum adolescente que fizera umgrafiti?Porqueestavamtodosaolharparaapadaria?Quandochegouláfora,emcalçasdegangaeumaT-shirtàsriscas,edescalça

–odiaprometiaserescaldante–parouimediatamenteelevouamãoàboca.Embora tivesse idoembora–eelasentiu-semalporpensarqueelefugira–

Chrisdeixara-lheumacoisa.Inquieto,semconseguirdormir,foraexploraralojaà luz da madrugada – Polly já não trancava a porta entre a padaria e oapartamento – e deparara-se com várias latas de tinta cinzenta e branca nastraseiras.Como seuolho artístico egosto refinado,pintaranaparede exteriorrachadaeadescascardeumnovocinzentopálidosuave–amesmacordosofá–e,nasuaadorávelcaligrafiafluida,escreveraporcimadajanela:

PequenaPadariadeBeachStreetProprietária:P.Waterford

Fundadaem2014

CapítuloDezoitoOverão instalara-se em todoo seu esplendor, e todososdias famílias inteirasatravessavam a calçada combaldes, pás e redes para a pesca de camarões, ascriançasaguincharseasondasatingiamopassadiço,todosadespacharem-seseamaréestavaasubir,eospoucosinevitáveisqueficavamtempodemaisequedepoistinhamdecorrerouderecorreraoserviçodeumdospescadores.A notícia espalhara-se. O casal elegante, Henry e Samantha, comprou uma

casanotopodavila,umagrandecasavitorianadeconstruçãoirregularcomumenorme jardim, uma gigantesca estufa e malvas-rosas a trepar pelas paredes.Recebiamconstantementevisitas,sobopretextodelhesmostrar«omelhorpãodaCornualha»,masnaverdadequeriamexibir-seegabar-sepor teremsidoosprimeiros a descobrir aquele lugar. Faziam grande alarido do facto deconheceremPollymuitobem,usandooseunomeconstantementeesugerindo-lhequeexperimentassenovossabores,oqueelafaziaregularmente.Seasfilascontinuassemaaumentar,iriaprecisardeumassistente–acadadia

quepassavaopãoesgotavamaiscedo.Mrs.Manse,paragrandealíviodePolly,revelou ter olho de águia para a papelada – o que significava que Polly nãoprecisavade fazero fechodas contasdecadadianemacontabilidade–e sermuitoliberalcomopatroa.PollysuspeitavasecretamentequeaPequenaPadariadeBeachStreetestavaafaturarmuitomaisdoqueaoutra.Pelomenos,notara

queaMrs.Mansecompraraumnovofrigoríficoparaasbebidasfrescaseumaarcaparagelados,equehámuito tempoqueacabaracomopãodeforma.Osfolhados,claro,permaneceram.PollyconseguiraevitarTarniecompletamente,oque,numavilacommenosde

milhabitantes, eraumaproeza.Porvezes, quandoovento sopravanadireçãocerta, ouvia-o reclamar logo de manhã e gemia, porque isso significava queestavanahoradedescerparaosfornos.Trabalhava,trabalhavaetrabalhava;osseus braços ficaram tonificados de tanto amassar e levantar, e à noite caía nacamademasiadoexaustaparafazeroquequerquefosseeadormecia,oqueerabom.EmboraTarnienãofosseàloja,osoutrospescadoresiam,conversavamcom

elaecompravamsempre,reparouela,umpoucomaisdoqueprecisavam.Tarnieestava a ter um comportamento vergonhoso, visto dever-lhe um gigantescopedidodedesculpas,masnãoficariaaremoernisso.Mergulhounapreparaçãodo pão. Cultivou a levedura que Ted Kernesse lhe oferecera – um fungorepugnante que vivia no frigorífico e se dividia como uma coisa viva (era,recordouasimesma,umacoisaviva)–ecomeçouafazerumpãomaisescuroefortechamadocampagne.Ao início foidifícildevender–aspessoasqueriaohabitual pão branco fatiado – mas Polly persistiu com amostras gratuitas,sabendo como aquela farinha era viciante, e claro que se tornou um dos seusbest-sellers.Paraagradaraostradicionalistas,tambémexperimentouumbriochejamaicanotãodocequeerapraticamenteumbolo.Barradocomdoceàsquatrodatarde,talvezfosseaúnicacoisaquesuperavaolanchelocal.Pollyestavaaarrumarnumatardedesábadoquandoouviuumruídoquelhe

erafamiliararoncarpelacalçada.HáalgumtempoquenãoviaHuckle–deviaseraépocaaltadasabelhas,ou

algo parecido – mas as quatro caixas de mel que ele lhe dera para venderestavamquaseesgotadas,ePollytinhadelhepagar.Sorriuedesceuasescadas.Aovê-la,Hucklefezumacaradesanimada.–Oquefoi?–perguntouela.–Oh,querida,oquesepassaconsigo?Pollyficouapensar.–Coisas–acabouporresponder.Eraomaisseguro.Apercebeu-sedequenão

semaquilharaenãoselembravadaúltimavezquelavaraocabelo.Mergulharno trabalho era bom, pensou, até certo ponto, e talvez tivesse chegado a esseponto.–OndeestáaPollybonita?–perguntouelecomummeio-sorrisonoslábiosa

quererdespontar.–Achoquedeviaaceitar-mecomoeusou–respondeuPolly,irritada.– Eu sei – afirmouHuckle, num tom triste. –Não fui feito para os tempos

modernos.–NasuaterraasmulheressãotodasiguaisàDollyParton?– Tenho a certeza de que existe ummeio-termo algures – replicouHuckle,

animado.–MashaveriadegostardaDolly.–Sim,maselanãoaprovariaomeuguarda-roupa.–Não.Vou,educadamente,desviarosolhos.–HUCKLE!–exclamouPolly,emparteexasperada,empartelisonjeadapor

ele ter reparado nela; atualmente não haviamuitas pessoas que o fizessem. –Enfim,espereumbocadinho,eutenhodinheiroparasi.–Ora aí estáumabela fraseque eunãoouviahá algum tempo– confessou

Huckle.–Eutambémtenhoumacoisaparasi.MasparaissotemosdevoltaraminhacasaeaPollyvaiterdedormirnoquartodehóspedes;amarévaiencherhojeànoite.–Oqueé?–perguntouPolly,baralhada.–Nãogostoquandonãopossovoltar

paracasaquandoquero.–Válá,estouàesperadistoháalgumtempo!Alémdisso,quemaistempara

fazer?–Aquestãonãoéessa.Pollyolhouemvolta.–Esperoquesejaumacoisaboa.–É,vaiver–prometeuHuckle.–Canceletodososseusplanosglamorosose

venhacomigo.Etragaodinheiro!

Huckletinhadecomprarumaouduascoisasnavila,oquedeuoportunidadeaPollyde lavaro cabelo rapidamente.Contudo,não sepreocupoumuitocomosecador, já que ia enfiar-se novamente no sidecar. Abriu o seu roupeiroembutido, pensando que provavelmente devia ir buscar o resto das roupas aoarmazém,ou então livrar-se delas.Emmuitos aspetos, era bomviver com tãopouco.Habituara-seaviversemassuasextensõesdecabeloousemmaisdoqueumamala,enãosentiraqualquersaudadedessascoisas.Remexeunoespaçopoucousado–vestiasobretudocalçasdegangaeT-shirt

parairtrabalhar–eficousurpreendidacomaquantidadedecoisasqueatétinha

ali ecomaquiloquedantesconsideravaessencial.Passouosdedosporblusaselegantes,fatosescurosesaiasbrancasatrevidas–algumavezengomaraassimtanto?Asroupaspareceram-lhedesconfortáveis,muitosbotõesematerialqueseenrugava.Mal se lembravadaPollyque sevestiadaquelamaneira, que tiveraaquele estilo. Kerensa talvez se lembrasse. Ela e Kerensa costumavam ir àmanicurajuntas,àsvezesatéfaziamumtratamentofacial.Riusozinhadaideiade pintar as unhas agora. Olhou para elas; estavam quadradas e baixas, maisfáceisdemanterlimpas,jáquepassavamotempoenfiadasnamassa.Umborrifodoseuperfumepreferido–EauPremièredeChanel–salpicouo

ar,ePollyfoiassaltadapelarepentinaeestranhamemóriadelimparosarmáriosda avó quando morrera. Fora impossível acreditar que a avó morrera, com ocheirodoseuperfumepreferidoaindatãopresente.Eraparvo,claro;Pollynãomorrera.Maseraumpoucocomoolharparaoroupeirodealguémqueviverahámuitotempo.Abanou a cabeça para afastar as suas ideias idiotas enquanto penteava o

cabelo, que crescera, já estava abaixo dos ombros. Normalmente apanhava-o,masnaqueledia,comosecounaturalmente,encaracolou,porissodeixou-osolto.Dantesesticavaimpiedosamenteaquelescaracóis,masagoranãosepreocupavatantocomisso.Nofimdafiladeroupas intocadasestavaumvelhovestidodeverãodeque

Pollyseesqueceraduranteoslongosmesesdeinvernoequepoucousaraantes.Tinha um padrão floral vintage desvanecido, era de algodão macio, com saiapelo joelhoeumbonitodecoteembarco.Nãoparecia ternadaavercomela;comprara-o por impulso, pensando que quando ela eChris não tivessem tantotrabalho, talvez pudessem ir a um festival, sair. Claro que nunca pararam detrabalhar.Polly enfiou o vestido pela cabeça, surpreendida por lhe ficar largo – todo

aquele amassar de farinha estava claramente a servir para alguma coisa, pelomenos – e viu-se ao espelho da única forma que conseguia ter uma visãocompleta:precariamenteempoleiradanabanheira.Asunhasdospésprecisavamde ser pintadas, pensou, mas tirando isso Passou rapidamente pela cara umcreme BB, exceto no nariz com as suas pequenas sardas do sol (dantessubmergia-as totalmente), iluminou os olhos com uma máscara e passou noslábios um batom cor de coral. Aconchegou o seu cabelo louro avermelhado,aclaradopelosol,atrásdasorelhaseexperimentousorrir.

–Desculpe,minhasenhora,masvimàprocuradeMissPollyWaterford...–Huckle,parecomisso.Soueu–respondeuPolly,batendo-lhecomacaixa

depãojamaicanoquetrouxera.–Elacostumaterumarandrajoso,sabe,porissovocê,Cinderela,nãopodeser

ela.Polly deu por si a corar e olhou em volta antes de entrar para o sidecar.

Obviamente, alguns dos pescadores estavam reunidos, prestes a sair para aexpedição dessa noite. Iria ganhar uma fama terrível. Enfim, não podia fazernada.Apeteceu-lhefazer-lhesumacareta.–Okay,Cinderela–afirmouHuckledepoisdeelapôrocapaceteeosóculos

–,aquivamosnós!

Estava uma tarde magnífica. Os insetos zumbiam e dançavam nos prados,iluminados pelos faróis quando a mota fazia as curvas. O céu estava violeta,enorme, as estrelas começavam a aparecer. O crepúsculo libertava o aromaintensodassebesedaspapoilasselvagens,dasrosaserranteseoreconfortantecheiro da terra acabada de lavrar, à espera de novas sementes. Polly respirouprofundamente.Oaromaeraintoxicante.OlhouparaHuckle,queiaconcentradonaestrada,comassuascoxasfortesaimpeliramáquina.Eleapanhou-aaolharpara ele e sorriu, e ela referiu imediatamente que ele devia concentrar-se naestrada, sorrindo consigo mesma e recostando-se para desfrutar doschamamentosdospássaros,dosperfumesedavastidãodocéu.

Chegaramaocaminhocomsulcos.EranotórioqueHuckletinhaquaseacertezadequeelaviria;atodaavoltadolindíssimojardimjuntoàcasaestavamvelasespalhadasdentrodesuportesparacopos.Nasárvoreshavialuzesdefesta.–Luzes?–comentouPolly.– Eu sei, já cá estavam quando eu cheguei – explicou Huckle. – Decidi

continuarausá-lasatéprovocarumenormecurto-circuitoseguidodeincêndio.MasPolly não conseguiu continuar a ser sarcástica durantemuito tempo.A

pequenavivendaestavalinda.Anoiteaindaestavaquente,masHucklefoimaislonge:acendeuumpequenobraseirocomumisqueiroZippoeeleirrompeuemchamas.Pollyolhouparaelecomosobrolhofranzido.–Istoétudomuitosedutor–comentou.–Eusei–disseHuckle,levando-aasério.–Peçodesculpa.Sópercebiagora.

Nãoeraessaaminhaintenção,masoReubenestáfora.Quervoltarparacasa?–Eunãodisseisso–retorquiuPolly.–Asério,souasuasegundaescolhaa

seguiraoReuben?– Não – respondeu Huckle –, simplesmente pus isto tudo bonito para ele,

senãoelesófazcomentáriosdesdenhosos.Peçodesculpa.Pollysorriu.Anoiteestavaquente,masmesmoassim,aproximou-semaisdo

fogo;aliestavaaindamelhor.– Vá lá. Mostre-me a sua coisa fantástica. E se for uma mota com dois

sidecars,vouficaraltamenteimpressionada.– Não – retorquiu Huckle, desaparecendo para dentro de casa. Voltou a

aparecercomduascanecaseumgrandejarrocomrolhadecortiça.–Jáestouinteressada–confessouPolly.Huckle pousou o jarro em cima damesa, entre os dois, tirou a rolha, Polly

inclinou-separaocheirarevoltouasentar-serapidamente.–Uau!–exclamou.–Eusei–disseHuckle.–Oqueé?–É hidromel – respondeuHuckle, orgulhoso. –Feito pormim ali atrás.As

pessoas não estão a comprar o meumel com a devida rapidez. E isso está adeixar asminhas abelhas amofinadas.Agora felicite-me pelomeu domínio dalínguainglesa.–Eunãogostodeabelhasamofinadas–comentouPolly, espreitandoparaa

suacanecaenquantoPollyserviaaambosmedidasgenerosas.– É assim que se faz? – perguntou ela. – Deve ser bebido em canecas de

cerveja?Nãoémaisparecidocomvinho?Hucklelançou-lheumolharfulminante.–Nuncaviufilmesdevíquingues?Bebe-seumpintenquantosegritaAHA!–AHA!–gritaram,batendoascanecasnumbrinde.Pollybebeuumgrandegole.Eraforte,masdelicioso:quente,doce,cheiode

melmascomumsabormaiscarregado.–Uau–exclamouelaeolhouparaHuckle.–Istoémuitobom.

–Obrigado–afirmouHuckle, radiante.–Foramprecisosmuitos recipientesdeplástico.–Achoquetambémopodiavender.–Gostodasuamaneiradepensar–comentouHuckle.Brindaram novamente e Polly lembrou-se de lhe entregar o dinheiro das

vendas domel, o que ele também apreciou, e conversaram descontraidamenteenquantoescurecia.MaistardeforamàprocuradequeijoregionalparacomercomopãoquePolly

trouxera, bem como uma enorme taça de morangos que Huckle apanhara nocampodeumcamponêsvizinhoemtrocadealgunsfrascosdemel.Vivoquaseexclusivamentedetrocasdiretas–confessouele.Malselevantou,Pollypercebeuqueestavatocada.Aquelabebidaeraletal.–Acho–disseela,comalgumadificuldade–quemeroubaramaspernas.–Issoacontecesemprequeeufaçohidromel–explicouHuckle,enrolandoas

suas jádesienroladaspalavras.–Tenhode tentar fazeralgoqueadeixeficarcomaspernas.Ouasdeoutrapessoa.–GostavadasdaElleMacpherson–concordouPolly,edeuporsinumestado

completamentehilariante.–Oohh!–exclamouela,derepente.–Olhe!À primeira vista pensou que fossem faíscas do braseiro, que os mantinha

quentes à medida que a noite arrefecia, mas quando as olhou fixamente,começaram a ganhar forma e viu que era, na verdade, minúsculos insetosbrilhantes.–Junebugs– explicouHuckle, eolhouparaPolly. –Pirilampos.Não sabia

quecátambémhaviaatémemudarparaaqui.Naminhaterraháimensos.–Nemeu!–afirmouPolly.Levantou-se,fascinada,aindaquealgotrôpega.–

São lindos. – Observou os insetos a descreverem intricados padrões no ar,deixandoparatrásapenasumténuevestígiodasuatrajetóriairidescente.–Uau.Gostavadeterumdentrodeumfrasco,seissonãofossemuitocruel.– Pois admire-os tais como são – replicou Huckle, expansivo e abrindo os

braços.–Vivaomomento.Nãotireumafoto,nãotentecaptá-loecristalizá-loparasempre.Vamossódesfrutardospirilampos.– E talvez – disse Polly, aos soluços – de mais um copo deste delicioso

hidromel.

Mais tarde, enquanto o fogo se desvanecia, ficaram ambosmais serenos e ospirilampos voavam para longe, Polly sentiu-se agradavelmente aconchegada esonolenta, embrulhada num cobertor que Huckle lhe levara e que cheirava alenha.–Porque veio viver para cá? – perguntou ela, indolente. –Quer dizer, você

sabeTUDOsobremimEstouapresumirquesabetudosobremim?–Sim–respondeuHuckle,emtomdedesculpa.–Tudosesabe.Desculpe.Ele

émápessoa.Péssima.–Sabequeeunãofaziaideia...–Sim,claro.Mápessoa.–Eununcafariaaquilo,sabe?Comoépossívelquealguémofaça?Edepois

chegaracasaeenfiar-senacamadeles?–Gostavamesmodele?–perguntouHuckle,gentilmente.Pollysoltouumgrandesuspiroe inclinouacabeça todapara trásaté ficara

observarasestrelas.–Nãoestavaapaixonadaporele,nemnadaparecido.Mastinhapassadotanto

tempo, sabe?E estava a ser tudo tão difícil. Por isso, pensei que talvez fossedivertido.Soutãoidiota.Vivicomomeuexamaiorpartedaminhavidaadultae...Nãoconheçoasregras.Asério.Talveztenhammudadocompletamente,nãofaçoideia.Soucomoaquelesprovincianosquevãoàcidadepelaprimeiravezeperdemodinheironumjogodetrêscartasnumabancaderua.Hucklesoltouumagargalhada.–Exato–afirmou.–Éaprimeiraeúnicapessoaacometerumerrodesses.Pollyfezumsorrisoirónico.– Sim, mas à frente de toda a vila e de todas as pessoas que acabara de

conhecer.–Cujasimpatia, seaajudar,vai todaparasi.OJaydenestácaidinhoporsi,

comoseaPollypreferissehomensmaisnovos.– Ei! – exclamou Polly, endireitando a cabeça. – Só «caidinho» chega, está

bem?–Estábem–respondeuHuckle.–EoTarnieéinfeliz.– Ótimo – atirou Polly. – Credo, isto foi horrível. Eu só... Foi muito

embaraçoso.MUITO,mesmo.Sinto-meumarapariguinhaparva.–Eunãoachoqueseja–replicouHuckle.–Ahnão?–perguntouPolly,esperançosa.–Não.Achoqueéumamulheradultaparva.Pollyatirou-lheumaalmofadaeeleapanhou-aarir.

–Continue–instigouela–,vocêjásabetodososmeussegredosescabrosos.–Todos?Elaolhou-odelado.–Éasuavez.Oshomensnãocostumamdecidirdeixartudoparatrásemudar-

separaoutrosítiosemqualquerrazão.Porisso,contelá.–Senão?Maltrataumpirilampo?–Não.Ficomuitozangadaconsigo.–Estouatremerdemedo.–Edigoatodaagentequeurinaparaohidromel.–Nãofariaisso.–Experimente.Huckleolhou-adesoslaioporummomento.Depoisolhouparaofogoesoltou

umgrandesuspiro,esticandoassuaslongaspernas.–Queselixe–afirmou.–Talvezsetornemaisfácilsecontaraalguém.Pollysorriu-lhe,encorajadora.– Se ajudar, estou completamente bêbada – confessou ela. – Amanhã de

manhãnãomevoulembrardenada.Huckleriu.–Ah,sim,tambémháisso.Masnãopodecontarnadaaninguém.Pollyinclinou-seacustoeesticouoseudedomaispequeno.–Prometo–declarou.Huckleergueuoseudedomindinhoeentrelaçaramosdois,solenemente.–Prometo.Voltouaencheroscopos.–Bom–começouele–Eraumavez...EueradiretorexecutivoemSavannah,

que ficanaGeórgia, oEstadoonde cresci.Egostava.Trabalhava imenso, nãotinha férias, faziahorasextraordinárias,maseranovo, erabomnoque faziaeadoravaomeuemprego,porisso,valiaapena,sabe?Pollyanuiu.–Eulembro-me–afirmouedepoiscalou-separaelepoderfalar.– Então, conheci uma rapariga que trabalhava na mesma empresa. Uma

mulher,devodizer.Candice.Elaera...élinda,muitointeligente,moderna,ativa.TudoistopareciafamiliaraPolly.Bebericouohidromelpensativa.–Epronto,apaixonei-meporela.Estavaapanhadinhodetodo.Então é desse tipo de mulher que ele gosta, pensou Polly, como que a

lamentar-se.– Ela sentia o mesmo, completamente, e fizemos planos de como

trabalharíamos muito para juntar dinheiro, depois casávamos um dia,passávamosaterumavidamaissimples–nessaaltura,eujámededicavamuitoaomel–etudoisso.Pollyanuiu.–Parece-meumaexcelenteideia.–Foioqueeupensei.Seguiu-seumalongapausa.–E...?–Ah,pois.Aparentemente,abdicardesseestilodevidaémaisdifícildoque

eupensava.Todososanoseladizia«nopróximoano,nopróximoano»,voltavaa ser promovida, eu também, depois ela queria um novo Lexus, depois umapenthouse,depoiscomeçámososdoisaviajarmuitoemtrabalho,raramentenosvíamos,erasórestaurantesebarescaros...–Issoé-memuitofamiliar–revelouPolly.–Eerabom,sabe?Serumyuppie,iraossítiosdamoda,comimensaspessoas

àvolta.Pollyanuiu.Era,defacto,bom.–Eentão?Huckleencolheuosombros.Porincrívelqueparecesse,pareciaconstrangido.–Depois disso, e depois de tudo o que tínhamos dito... ela conheceu outra

pessoa que ganhava mais do que eu. E afinal ter uma vida mais simples nocamponãoerapropriamenteoqueelaqueria.–Oh,não–dissePolly.– Tudo bem – afirmouHuckle –, a culpa foi minha, eu era completamente

loucoporela.Realmente,devotê-laempatado.Estavatãocertodocaminhoqueasnossasvidasseguiriam.Tinhatudoplaneado.Huckle sorriu, um pouco a custo. Polly lembrou-se de como também tinha

tudoplaneadonasuacabeça,comChris.–Então,porque...Comoveiocáparar?–perguntouela.–Ah!Fuginumacessodeirritaçãoehumilhação...Decidifazê-losozinho.E

compreioprimeirobilhetequeencontrei.–VeiocápararporENGANO?Huckleencolheuosombros.–Omeupaierainglês,tenhoumpassaporte.SabiaqueoReubenviviaalgures

poraqui.–Esfregouosolhos.–Mas,sim.Foimaisoumenosisso.–Masestáagostar?Huckleencolheuosombros.

–Sim,dealgumascoisas.Oseurostopareciadorido.–Sinto-meumbocadinho só.Credo, não acreditoque acabei deodizer em

vozalta.–Nãofazmal–replicouPolly,esticando-seeafagando-lheaperna.Eleolhou

paraasuamão,comosenãofizesseideiadoqueestavaaliafazer,eelaretirou-aimediatamente,mortificada.–Etenhosaudadesdapenthouse.Savannahéumacidadeespetacular.–Parece–concordouPolly.–Masaestaalturasecalharjápodeengoliroseu

orgulhoevoltar,não?Elesorriu.–Achoquesim.Masédifícil,sabe.– Sei, sei – anuiu Polly, observando-o longamente. Quando ele se levantou

sentiu-seestúpida.–Nãoseesqueçadetomarunsanalgésicosantesdeirparaacama;istosobe-

lhemesmoàcabeça–aconselhouele.Asuavozmudara,comoseestivesseaarrastar-separaforadassuasmemórias.–Obrigada–afirmouPolly,esquecendoimediatamenteoseuconselho.–Porisso,sim,fazerumacoisadiferente...faz-merealmente...faz-mesentir

melhor–confessouHuckle.–Bemmelhor.–Ótimo–exclamouPolly.Atiçouasbrasasmortiçasdofogoeolhouparaele.

Se houve um momento entre eles, desvaneceu. Mas ela estava contente porsaber,finalmente;deixaradeserummistérioentreeles.– Bom – disse ela, tentando animar o ambiente –, não é tão mau como eu

pensava.EupensavamesmoquetivessematadoumhomememRenosóparaovermorrer.Hucklefezumsorrisotímido,masnadamaisdoqueisso.Estavadeolharfixo

no fogo, comose tivesseesquecido totalmentequemela era.PollypensouemCandice,emcomoseria–apostavaquetinhasempreasunhasarranjadas–eemcomoobonitosonhodeHuckledeterumafamílianocamporuíra.Suspirou.–Bom,émelhorirparadentro–declarou.Hucklepreparara-lheumaencantadoracamadesolteiro,comlençóisbrancos

bempresoseumacolchaderetalhosbordadaporcima.Dentrodacasacomtetodecolmoeraaconcheganteecheiravabem,ePollysentiu-semuitorapidamenteinvadidapelosono.Mesmoantesdelhecedercompletamente,deuumaúltimaespreitadela pela minúscula janela com caixilho de madeira. Huckle estavaexatamente onde o deixara, de olhar fixo nas chamas, pesaroso, o jarro de

hidromelvaziocaídoaosseuspés.

CapítuloDezanoveInicialmentePollynãosabiaondeestava.Pelajanelavinhaumcheirointensoamadressilva e no ar parava um zumbido. Sentiu ainda um segundo cheiromaravilhoso, de café a fazer, a que se juntava bacon a fritar. Sentou-sealegremente, e entãopercebeu, aover oAdvil e o copode água amavelmentedeixados junto à cama, que se esquecera de tomar o comprimido. Fê-lo deseguida.Osolbrilhavaatravésdoscortinados.–Uou– exclamou, abrindo a pequenaporta demadeira emarco.Huckle já

estavaapé,vestidocomumas jardineiras largasdeagricultoresemT-shirt.Oefeitodeveriaserridículo,mas,naverdade,eraadorável;tinhaalgunspelosnopeito, não demasiados, e eram suaves e dourados. Polly apercebeu-se de quetinha alguma vontade de lhe tocar e rapidamente escondeu asmãos atrás dascostas.–Bomdia.Hucklefezoseusorrisodescontraído.–Ei.Parecia muito mais bem-disposto do que na noite anterior, de volta à sua

normalpersonalidaderelaxada.–Comosesente?–perguntouPolly.–Tirandoasjardineiras.Eleolhou-ademoradamenteedepoisdisse:

–Sabe,atémesintobem.Ótimo.Aindabemqueconteiaalguém.Pollyabanouacabeça.–Talveztenhasidomelhorassim,talveznãoestivessembemumparaooutro.Huckleanuiu.–Sim,sim.ÉissoquetentopensarEnfim,nosdiasbons.EaPolly,comose

sente?–Mal–respondeuela.–Esqueci-medetomaroAdvilontemànoite.–Tome–ofereceuHuckleeencheuumgrandecopodesumodemaçã–,beba

isto.–Eupensavaquevocês,osianques,bebiamsumodelaranja.–Ovossosumodelaranjaéindescritível–retorquiuele.–Tempedaços.Jáo

vossosumodemaçãéaceitável.Pollybebeudeumtrago,agradecida.– Está melhor – afirmou. A porta da casa estava aberta e o sol banhava o

interior.Estavaumdiaradiante.–Café?–Sim!–Bacon?–Sim!–Panquecas?–UAU!Achoqueestouapaixonadapor si!–afirmouPolly.A ideiaera ser

umapiada,massaiumal.–Querdizer,pelaspanquecas–apressou-seacorrigir.–Vocêusajardineiras.Estouapaixonadapelaspanquecas.–Naverdade,éummacacão.Quando as panquecas ficaramprontas, estavamcrocantes por fora,macias e

molespordentro,servidascombaconestaladiçoeumespessofiodexaropedeácer.–Este é omelhor pequeno-almoçoque já tomei – confessouPolly, de boca

cheia. –A sério, se algumdia achar que está a ficar falido, abra um bed andbreakfast.Eumudo-mologo.Hucklesorriu.–Achoqueaindanãochegueilá.Masaindabemquegosta.Depois de terminarem, Polly provavelmente voltaria de bom grado para a

cama,masHuckleperguntou-lhesegostariadeirverasabelhaseelaconcordou,comalgumreceio.Huckletinhaumfatoparaelaelevou-aatéàscolmeias.Era fascinante. Huckle ligava a máquina de fumo para acalmar as abelhas

quandoseembrenhavanomeiodelas;levantoualgunsfavosdemel,masnãoo

suficiente para elas não ficaremmuito excitadas. Indicou qual era a grande egorda rainha, inconfundível e tão excecional que Polly arregalou os olhos,sentindomedoefascínioaomesmotempo.Huckle mostrou-lhe como se retirava o mel dos favos e deixou-o cair em

círculosdouradosparaosfrascos,comocheiroviscoso,oszumbidoseasfloressilvestresabrotaràsuavolta,ePollydivertiu-seimenso.

Pertodahoradealmoço, contudo,Pollypercebeuque teriadevoltar.Deu-lheumbeijolevenafaceeelepuxou-aeabraçou-a.–Obrigada–agradeceuele–,euprecisavadeumamigo.Achaquepodeficar

sóentrenós?–Claro–respondeuPolly.–Epodeficartambémentrenósofactodeeuter

dormidoacidentalmentecomumhomemcasado,emboraninguém,numraiodecemquilómetros,saibaainda?Deramumapertodemão.Mesmo com as revelações de Huckle, ainda era a melhor noite que Polly

passaraemmuitotempo,eaocaminharderegressoacasaiaanimadaecheiadeenergia.Eleoferecera-separaa levardemota,maselarecusara; fazia-lhebemarejaracabeça,eodiaestavaespetacular.Finalmente fizera um amigo, um amigo a sério, não um pescador mal-

intencionadoquequiseraatraía-laparaasua ilhamarota.Aopensarnisso,umsorrisopassou-lhepeloslábios.Umpequenosorriso.TalcomoHucklelhefizeraver, não era a pior coisa do mundo, certo? Deixara-se enganar ligeiramente.Faziapartedoprocessode tentativae erro.Pelomenos foraumaestreia.E sealguémdavilapensavaqueelaeraumarameira,deviamtentarsairnumsábadoànoiteemPlymouth.Foraestúpidodapartedela,masnãovaliaapenamassacrar-separasempre.A

vidacontinuava.Aocaminhar–decidirairpelaestradamarginalenãopelasestradasdocampo,

oquesignificavaatravessaracharnecadescampada–sentiuoventoalevantar.Suaveao início,mascadavezmais forteàmedidaque iaavançando.Grandesnuvenspretasecinzentas,pesadaseagoirentas–asprimeirasemváriassemanas– apareceram como que vindas do nada, obscurecendo primeiro uma porção,depoismetade e, por fim, todoo céu.Polly apressouo passo quando a chuvacomeçou a cair e depois desatou a correr, mas acabou por parar e ceder ao

inevitável:iriaficarencharcada,enãohavianadaquepudessefazerparaimpedi-lo.Ergueuasmãosedeixouachuvacair-lhepelocorpoabaixo.Eraquentemasbastante refrescante, um pouco como estar debaixo do chuveiro. Com abebedeira totalmente superada, deu-se subitamente conta de que se sentiaincrivelmentelivre,maisvivadoqueemmuitotempo.–ARRR!–berrouaplenospulmões,abertaaoselementos,sozinhanotopode

umacolina.Partedesisabiaqueeraumbocadinhomaluca.Outrapartequeriadarvozaessaloucura.Masalininguémavia,esabiatãobemdeixarsairtodasasfrustraçõesdosúltimosmeses–credo,anos.–RAAAA!–rugiuparaocéu.–AARRRGH!–Rodopioudebaixodasgotas

dechuvapesadas.–Sente-semelhor?–perguntouumavozcalma.EraHuckle,mesmoatrásdelacomumenormeguarda-chuvapreto.– CREDO! – exclamou Polly, sobressaltada. – De onde RAIO é que

apareceu?– Desculpe – afirmou Huckle. – Vi que ia começar a chover e pensei que

talvez precisasse de proteção. Não sabia que ia representar o Monte dosVendavais.Pollyficoufuriosa,masembaraçada.–Vá-seembora–pediuela.–Vocêpareceumperseguidorarrepiante.–Oh,válá,acheiqueeraquerido–replicouele.–CALE-SE–avisouPolly.Sentiuasfacesinundadasdevermelho.–Então,queroguarda-chuva?Aáguaentrava-lhepelosolhos,escorria-lhepelacara,encharcava-lheapele.

Huckle, inicialmente devagar e depois commais determinação, estendeu-lhe oguarda-chuva.Obviamente, ao fazê-lo, também ficou à chuva e, emmenosdenada, estava tão encharcado como ela. O enorme guarda-chuva preto pairavaentreelessemutilidade,comPollyarecusar-seaaceitá-loeHucklearecusar-sea deixar de lho oferecer. De repente, uma forte rajada de vento arrancou-o,elevando-obemacimadelessobreacharneca,ondedançouefoiarremessadonoar.HuckleePollyentreolharam-seemsilêncio, edepoiscorreramatrásdele.O

cabelo molhado de Polly batia-lhe na testa e os sapatos patinhavam na lamaenquantocorria,sentindo-sefustigadaeempurradapelachuvaepelovento,talcomooguarda-chuva,emplenatempestade.Huckle,cujaspernascorriammaisdepressaechegavambemmaislongedoqueela,debraçosabertosàáguaeaovento,tinhaacabeçaatiradaparatráseriaperantetodaaquelaloucura.Saltavam

e atiravam-se ao guarda-chuva, que conseguia sempre fugir-lhes, até quefinalmente conseguiram encurralá-lo quando as varetas ficaram presas numaárvore.HucklelevantouPollysemdificuldade.Pollyagarrouoguarda-chuvaeagitou-o, triunfante, quando Huckle a voltou a pousar delicadamente no chãocomoseu tesouro.Elafitou-o,observandoasgotasdechuvaacaírem-lhedaslongas pestanas, que eram surpreendentemente escuras para um homem decabelo tão claro, os seus olhos azuis engelhados, o cabelo escorrido contra acabeça leonina. Polly deixou-se ficar por ummomento dos seus braços, e derepentepensouqueseriaacoisamaisfácildomundoaproximar-see...Não,nãopodia.Acabaradepassarporumasituaçãoexatamenteigual.Afinal,

nãoacabaradeapregoarasualibertação?–Pensandobem–deuporsiadizer,apercebendo-sedecomoestavaaficar

frio e de que começava a bater os dentes –, acho que vou aceitar o guarda-chuva.Huckledobrou-se,muitocortês.–Minhasenhora,dá-meahonradeacompanhá-laacasa?–Não–respondeuPolly.–Depoisnavoltaapanhariaamaréalta.Então,virou

costasecaminhoualegrementeemdireçãoaPolbearne.Huckleficoualiparadoavê-laafastar-se.Depois,atirouparatrásamassade

cabeloquelhecobriaosolhosecaminhounosentidooposto,emdireçãoacasa.

CapítuloVinteNuncaumbanhosouberatãobemaPolly.Acendeuofogão,paradeixaracasaaconchegante e aquecer a caldeira; entretanto, fez a massa para a manhãseguinte,aosabordacanecadechámaisintensoqueconseguiufazer.Usoutodaa água quente da caldeira para encher a banheira até à borda e atirou lá paradentroosúltimossaisdebanhocheirososquereceberanoseuaniversáriodoanoanterior – lembrava-se bem desse aniversário: foram todos jantar a um novorestaurantechiquequecobravaumafortunaporcubosdevegetaisminúsculos,Pollymuitonervosacomocartãodecrédito,emboraosseusamigos,lideradosporKerensa, houvessem insistido empagar a suaparte– até toda a casa ficarquente,cheiadevaporearomatizada.Embora a tarde estivesse no início, parecia-lhe uma noite de pleno inverno;

naqueledianãohaviaturistas.Pollynemqueriaacreditarnarapidezcomqueomautemposeimpusera,comoventoasoprarvindodomarnumafúriaviolenta.Ostrovõesretumbavamdeformaameaçadoraeosrelâmpagosrasgavamocéuturvo, coincidindo ocasionalmente com a luz do farol, que fora ligada cedonaqueledia.Pollyficoudemolhodurantemuitotempo,alerumlivro,atéestarnovamentequentepordentroeporfora.Depois,vestiuoseupijamadealgodãomaisvelhoemacio,calçoumeiasdelãeapoiou-senajanelaparacontemplaratempestade.

Derepente,paraseupavor,viuoLandRoverdeTarnieaparecereosrapazesasaírem.Estavacomumarabatido,derrotado,comosombrosdescaídos.Nãoerapossívelquefossemsaircomaqueletempo,pensouPolly.Nãopodiaser.Sem pensar, vestiu o seu velho impermeável, correu pelas escadas abaixo e

fez-seaoventoqueestavacadavezpior.–Nãopodemsair–gritouela,tentandofazer-seouviracimadatempestade.–

Nãopodemsaircomestetempo.Tarniefitou-aeelapareciaestarfuriosacomele.Osolhosazuispenetrantesdo

pescadorestavamcontritos.–Polly,olá–murmurouele,baixandoosolhosparaochão.–Eainda...–acrescentouPolly.–Olha–murmurouele–,desculpa.– Foi cruel – retorquiu ela, esquecendo-se subitamente domau tempo,mas

sempre a gritar. Conseguira evitá-lo tão bem, mas agora ele estava ali à suafrente.–Tãocruel,sabes?Aproveitaste-tedemim.–Eusei–confessouTarnie,corandofuriosamenteeabanandoacabeça.–Não

deviaterfeitoaquilo.Desculpa.–Aminhavidadesabaraetuaindapiorastetudo.Porquê?Tarnielevantouentãooolhar,eosseusolhosestavammuitoazuiseclaros,em

contrastecomomarcinzento.–Porqueachei-teadorável–revelouele,delicadamente.OventoapanhouPollycompletamentedesprevenida.–Pois,bom...NãodeixadeserMAU.–Eu sei – concordouTarnie. –Desculpa.Foihorrível.Eu e aminhapatroa

temospassadoummaubocado e eu estava a sentir-memuito só. –Outra vezaquelapalavra.–Poisnãodeviaster-teaproveitadodemim–afirmouPolly,emtomríspido.–Não.Tarnie coçou a parte de trás do pescoço.Os outros pescadores observavam.

Numavilaeradifícilguardarsegredo.– Podemos ser amigos? – aventurou-se ele, por fim. – Por favor? Como

sempredeviatersido?Pollyesperouumsegundo.–Estábem–concordou.Tarnieestendeu-lheamão,desajeitado,ePollyaceitou-a.–Beijo! – gritou Jayden,masKendall tapou-lhe rapidamente a boca com a

mão.

–Bom–continuouPolly–,hojenãotenhonadaparavocêscomerem.–Nãofazmal–replicouTarnie.Umnovotrovãoabanouocéuroxo.–Vocêssãoincríveis–elogiouPolly.–Euodeioestetrabalho–confessouJayden.–Têmmesmodesaircomumtempodestes?–perguntouPolly,olhandopara

omar,horrorizada.–Aquiloaliestáterrível.–Jávipior–contrapôsTarnie.–Queselixe.Pollyolhouparaele.–FoimuitomalandromandaresoJaydencomprar-tepão.–Eusei–anuiuTarnie.–Mas,caramba!Játenhodeviversemti,achoque

nãoaguentavaviversemastuassanduíches.–Vaisserbomdaquiparaafrente?–perguntouela.Tarnieanuiu furiosamente.Depois, tirouum livrodobolsode trás:Alice no

PaísdasMaravilhasdePolly.–Obrigado–agradeceuele.–Gosteimuito.–Ótimo–replicouPolly,enfiando-odentrodoimpermeável.Caíamgrandes

glóbulosdechuva.–Aindanãoacreditoquevocêsvãosaircomestetemporal.–É sómau tempo – comentouArchie, carregando o barco. –É só chuva e

vento.–Bom,tenhamcuidado.–Obarcoérijo,superaistotudo–declarouTarnie.–Sim,eatuamulhertambém–gritouKendall,eosoutrospescadoresriramà

gargalhada.Tarnieignorou-osepraguejousemrodeios.Pollyrecuou.Ficouavê-losvestiremosseusimpermeáveisamarelos,aprenderasredesea

verificarem o guincho.De repente, os seus enormes chapéus amarelos faziammuitosentido.Dentrodacozinhaminúscula,alguémjácomeçaraafazerchá.–Boasorte–desejouela,baixinho,edepoisvirou-seevoltouparatrás,para

ondeasuaáguadobanhoaindaaesperava(nãoadespejaraparalavaralgumaroupa),que,felizmente,aindaestavaquente.

Nessanoite,Pollynãoconseguiuconcentrar-seemnada,sópensavanapequenafrotaaflutuarnomar,osbarcostãominúsculosdebaixodeumcéutãofurioso.Talvezopeixe fossemais fácil de apanharquandoomar estava revolto comoeste; talvez eles também não conseguissem dormir. Tentou ligar a Kerensa e

depoisàmãepara receberalgumconfortoeconversar,masnão tinha rede–atempestade devia interferir com as torres de comunicação – e acabou pordesistir.Esperavaseracordadaàhabitualhoramatutina–raramenteprecisavadeusar

o despertador – pelos barcos a voltar e pelas carrinhas dos restaurantes achocalhar pela calçada. Nessa noite, contudo, o seu sono foi perturbado pelatrovoadaepelomarrevolto.Acertaalturaacordoucompletamenteenredadanoscobertores,semconseguirrespirar,convencidadequeestavaprestesaafogar-se;sentia o mar a puxá-la para baixo, o barco a afundar-se cima dela, tudo adesintegrar-se em sombras carregadas de azul e preto, o pânico e o rodopiar.Estavaencharcadadesuor,ocoraçãoapulsar-lhenopeito,osolhosbemabertos.Atempestadeaindaretumbavaàvoltadacasa,ePollysaltouderepentequandoalgo bateu na janela.Aterrada, percebeu que fora umaonda, atirada comumaforçaincrívelporcimadomurodoporto,daruaeatéaoprimeiroandardacasa,comoseumacriaturagigantescativessesimplesmenteagarradonumamão-cheiade água e a tivesse arremessado com toda a sua força. O barulho eraensurdecedor.Quandofinalmenteseacalmou,Pollyvoltouacairnumsonomaistranquilo,

recheadocomointensocheirodasabelhaseumsuavezumbido.Acordoucomozumbido do sinal intermitente de mensagens do seu telemóvel. As nuvenspesadasestavamarecuareatempestadeaesvair-se.Saltoudacamaempânico,apercebendo-seimediatamentedequesedeixaradormir,queeratarde.Pegounotelemóvel:7h30.Bolas,bolas,BOLAS.Osprimeirospãesdeveriam

tersaídoduashorasantes;tinhadeabrirapadariadaliameiahora.Nemsequerteriatempoparafazercafé; tinhadesedespachar,edepressa.Enfiouumtopeumascalçasdeganga,egalopoupelasescadasabaixo,ondeligouosfornosnapotênciamáxima,aqueceuofornoalenha(deixava-oemfogolentotodaanoite,casocontráriodemanhãdemorariamuitotempoaaquecer)edispôsospãesnasprateleiras sem o seu habitual cuidado ou delicadeza. Naquele dia não haviamuitasalternativas.Quandofinalmentetinhaospãesgrandestodosprontosecomeçavaapreparar

os pequenos, olhou lá para fora pela janela da frente e reparou que estavammuitas pessoas reunidas. Inicialmente pensou que estariam à espera que apadaria abrisse,mas olhavam na direção oposta, para omar.Ninguém falava,nem sequer se mexia, apenas murmuravam qualquer coisa aos telemóveis,ocasionalmente,ouolhavamparaelescomosetivessemalgumtipoderesposta.–VENHAMTODOS!–ouviuPolly.

Virouaplacade«Fechado»para«Aberto»,fazendoaportatilintaraopuxarocadeadoeabrindo-aparaocéucinzentoeasnuvenscarregadas.Nãoadmiraquetivesseadormecido;nãoestavasol.–Oquesepassa?–perguntouPollyaPatrick,quevieradaropasseiomatinal

comosseustrêscães.Masquandoelaseguiuoseuolhar,percebeu.Nãoestavanada no porto, nenhumbarco, à exceção dos semirrígidos que pertenciam aospasseantesdefimdesemanaeaosqueficavamparatrás.–Afrota–exclamouPollyemchoque.Patrickanuiueestendeuamãoparaa

acalmar.–Oh,meuDeus,ondeestáafrota?–Estamosàesperadesaber,Pol–disseumdosseusclientesregularesmais

velhos. –Dizemque está umbarco ou dois a caminho deLooe, conseguiramchegaràcostaduranteanoite.Pollyolhouparaocéu,aindacinzento,oventoaindaapuxarasárvoresea

chuvaaindaacair.–Agorajádevempodervoltar,não?Pollysentiuocoraçãosubir-lheàboca.–MasoTarniedissequeseadiantariaàtempestade.Eledisse.Patricktocou-lhenobraço,parareconfortá-la.–Tenhoacertezaquesim.Decertezaquefoidaràcostaequeestáatomar

umgrandepequeno-almoçoinglêsalgures.–Liguem-lhe–sugeriuPollybruscamente,masPatrickabanouacabeça.–Aredeestáembaixo–explicou.–O tempoontemànoiteestava terrível.

Ninguémconseguecontactarcomninguém.Pollylevouamãoàboca.Virou-separaapontadomurodoportomaisperto

dacalçada.–VENHAMTODOS!–ouviuumavozdehomemgritarnovamenteaolonge.

Váriasfigurasavançavam,vestidascomimpermeáveisamarelos,nadireçãodoabrigodaproteçãocivil.Depoiscomeçaramatirarobarcocordelaranjavivodoseuatreladoparaaáguageladacomumsplashesaltaramabordo.–Porquenãosaíramantes?–perguntouPolly,furiosa.–Porqueestãoasairsó

agora?Patrickvirou-separaelacomarsério.–Jásaíramtrêsvezes–explicou.–Estaéaquartabuscahoje.Quandoficam

semcombustívelounãoconseguemavançarmais,regressam.–Oh,meuDeus–lamentouPolly.–Desculpe.Enãoosencontraram?–Aindanão–respondeuPatrick,soturno.Umdosadolescentesdavilaapareceuacorrereagritar:

–Há um navio encalhado!Há um navio encalhado emDarkpointBay! E égrande!Patrickendireitou-se.–Oh,não.Istovaiatrairumamultidão.–Foiumdosbarcosdepesca?–perguntouPolly,aterrorizada.–Não,foiumgrandecargueiro.Cheiodecontentores!Subitamente, vários dos rapazes que até então pareciam cansados do tempo

quehaviampassadonobarcosalva-vidasficarambemmaisacordados.–Apolíciavai láestar–alertouPatrick.–Pilhem-noe já sabemaondevão

parar.Seguindoosoutroscegamente,Pollyatravessouacalçadaesubiuatéaotopo

do promontório.Ao princípio, não conseguia calcular a dimensão daquilo queestavaa testemunhar.Eracomoseumarranha-céus tivessecaídode ladoparaterra.Meio na praia,meio submerso, era a coisamaior que já vira.Devia termais de duzentos metros de uma ponta à outra e, ali deitado, parecia umahorrível anormalidade: um supercargueiro carregadode contentores, que agoraflutuavamnarebentação.– Porra – exclamou Patrick, bruscamente. – Só peço que não haja petróleo

derramado.– E a tripulação? – perguntou Polly, ansiosa. Cerrou os olhos e conseguiu

distinguirapenasseisouseteminúsculasfigurasqueacenavamfreneticamente,depénapontadafrentedaproa.–Vamoschamaromédico–afirmouPatrick.–Masentretanto...Pollyolhouparaele.–Possoajudar?Achoquenãoconsigoficaraquiparada.–Claro–respondeuPatrick.–Credo.Sehouverpetróleo...Pollymal conseguia acreditar enquanto corria pelo penhasco abaixo comos

outroshabitantes.Murieltambémláestava.– Coitados daqueles homens – afirmou. Olhou em volta. – Antigamente

faziamistodepropósito,sabe?–revelouaPolly.–Comoassim?– Os provocadores de naufrágio. Mostravam uma luz para atrair navios à

costa.Depois,matavamosmarinheirosepilhavamosbarcos.Eraumaenormefontederendimentosporaqui.–Estáabrincar!–exclamouPolly.–Nãoadmiraqueestejamtodosnervosos.Ao chegarem à praia, perceberamque o problema seria evacuar os homens.

Quanto mais se aproximavam, mais imensa parecia aquela estrutura. Mas

rapidamenteseouviuumhelicópterodeumabasevizinhadesalvamentoaéreoemarítimoaaproximar-sepelalinhadecosta.Osalva-vidasbalançavanofundodonavio:láembaixodeviapareceraladeiradeumenormepenhasco.– Será que vai aterrar? – perguntou-se Patrick, olhando para o céu. Mas

quando o helicóptero sobrevoou o navio, viram uma corda descer com umhomemagarrado.–Uau–comentouPolly.Oshomensdonavioafundadoagitavamosbraços

freneticamente.Conseguiudistinguirumdeitado,obviamenteferido.–Sabeuma coisa? – sugeriuPatrick. –Oque realmente faria bema toda a

genteeracháetalvezalgoparacomer.Achaquepoderia...–Abriraloja?–afirmouPollyantessequerdeeleterminar.–Secalharerao

quedeviafazer,nãoera?Láembaixovaiestarcheiodegente.–Sobretudosehouverpetróleo.–Oh,meuDeus!Os homens do navio afundado prenderam o colega ferido à corda do

helicóptero. Havia quem filmasse com os telemóveis. Polly queria ver, masadmitiu que Patrick tinha razão – as pessoas iriam precisar de muito chá, acomunicaçãosocialiriaaparecereelatinhapãonoforno.Deumeia-voltaparairembora.

Aoutravantagemdecorrerasetepésparaapadaria,aindaqueperdessetodaaexcitação,eraqueficavaimediatamentetãoocupadaquenãotinhamuitotempopara pensar emTarnie e nos colegas, algures nomar.Onde?Omar já estavamaiscalmo;setentassem,conseguiamvoltar.Andariamàderiva?Masporqueéque ainda não haviam sido encontrados? Andava toda a gente à sua procura;Polly ouvira na rádio. O locutor também dizia que fora uma tempestade semprecedentes,muito pior do que as previsões. Foram feitos apelos para que osserviços de meteorologia se explicassem e surgiram receios por causa dasseguradoras.Pollyencheuumsamovarqueencontrounastraseirasdaloja,eMuriellevou

do minimercado quatro caixas de bules cheios de pó, que não vendera,comemorativos de Mount Polbearne, um monte de copos de plástico e leite.Levaram para baixo a mesa do primeiro andar e colocaram-na em frente àpadaria, onde ofereciam chá e pão a quem precisasse.Os homens que faziamturnos no barco da proteção civil regressaram a tremer e desanimados; havia

helicópterosapercorreraárea,masaszonasdepescaeramvastas.Asequipasde televisão já lá estavam, embora o passadiço estivesse quase impossível depassar. Vinham pelo trajeto mais longo de barco, ou obrigando os SUV aatravessaraágua,emborafosseperigoso.Atempestadeforageneralizada,masforamPolbearneeosseushomensquesofreramochoquedadevastação;foramopontodeimpacto.Finalmente, às onze da manhã, houve boas notícias: o Free Bird, um dos

barcosdafrotadepesca,ativaraosinalluminosodeemergênciaeasequipasdesalvamentotinhamagoraumdestinoaalcançar.Obarcoforaatingidoamaisdetrinta quilómetros da sua zona habitual de pesca; os seus equipamentoseletrónicos deixaram de funcionar, o mastro partiu-se e todas as redesdesapareceram.NinguémdobarcoviraoTrochilusnemosoutrosdoisbarcos.OFreeBird foi rebocado até terra e amultidão perfilou-se no porto para o

saudar.Esposasachorartinhamfilhosaocolo,quenãopercebiambemoquesepassavamas que se aproveitavamdos pãezinhos gratuitos e dosmimos. Pollylevantouosolhosdamesadacomida–entretanto,colocaramaispãesgrandesebastantes pequenos no forno; mais tarde, teria de acertar contas com Mrs.Manse,mas não sabia quemais fazer – e, pelamilionésima vez, verificou setinharedenotelemóvel.Ohnão.Tecnicamenteatépodiaserverão,masaáguaestavatãofrialánasprofundezas,aponto,certamente,dematarumhomem.Derepente,lembrou-sedoseusonhodanoiteanterior:serpuxadaparabaixo,paraofundodomar,aluzaesvair-seeaficartudopreto.Tinhaasmãosatremer;nãopoderiatersidoumavisão.Nãoacreditavanessascoisas.O dia parecia não chegar ao fim.Às duas da tarde, a equipa de salvamento

encontrou uma cápsula de sobrevivência – uma espécie de barco-tenda – doLark, com os cinco homens a bordo, a flutuar em direção a Devon. O Larkafundara-sesemdeixarrasto;elesconseguiramsalvar-semesmoatempo.Foramlevados até Polbearne pela polícia deDevonshire, calados, pálidos e a tremerquando se reuniram às famílias.Damesma forma com oWiverton, cujo sinalluminosodeemergênciaencravaraenão funcionara.Umpilotodehelicópterocom olho de lince viu a silhueta amarelo-néon a flutuar na água e conseguiuguincharoshomens.–EI!Polly ergueu os olhos lacrimejantes. Passara o dia a fazer pão e distribuir

comida,àesperadenotícias.Pestanejou.Eraaúltimapessoaqueesperavaver.–Oqueestásaquiafazer?Kerensafezumarinocente.

–Estásabrincar,nãoestás?Istoestácheiodepilotosdehelicópteroaltamentesexy.Aproximou-semaisdePolly.–Estásbem?Pollyencolheuosombros.–Umdosbarcosaindanãovoltou.–Éodobarbudosexy?Polly engoliu em seco e anuiu. Várias pessoas da vila vieram dar-lhe

pancadinhasnoombroeagradecer-lhepelacontribuição.–Chega-teparalá–ordenouKerensa,ecomeçouabarrarmanteiganospães

pequenos.–Nemacreditoquenãoestásacobrarpor isto.Nãoéassimquesegereumnegócio.Aliás,deviascobrarotriploatodososmirones.Pollylançou-lheumolhardecensura.–Estábem,estábem,sóestavaadizer.Umafiguravolumosaaproximou-selentamente,comumgrandetabuleironas

mãos.Pollysemicerrouosolhosaosolchuvoso.–Quemé?–perguntouKerensa.–Ah,éavelha?–Chiu–admoestouPolly,poisMrs.Mansejáasconseguiaouvir.Olhoupara

o quePolly estava a fazer e fungou. Pollymordeu o lábio, com receio de serrepreendida. Afinal de contas, a loja não era dela; não podia tomar decisõesdaquelas. Mrs. Manse examinou a banca improvisada, rodeada de pessoas –tornara-seumpontocentral–epigarreou,irritada.Depoispousoucomviolênciaum grande tabuleiro. Continha todo o stock diário de cornucópias e outrosbolos.–Queroessacaixadevoltaamanhã–foitudooquedisseantesdedarmeia-

voltaevoltarasubiraestrada.– Vejam só – comentou Kerensa, enquanto Polly começava a distribuir os

bolosàsequipasdesalvamentocomfomeeacriançasquepassavam.

Comocairdanoite,equandoobarcodaproteçãocivilregressoupelasextavezdemãovazias,Pollysentiuosseusreceioscresceremnovamente.Duranteodia, àmedida que os outros barcos iam sendo recuperados com as tripulaçõesapenascomalgumascostelaspisadaseváriospulsospartidos, cortesenódoasnegrasaquiealiealgumaexposição,asuaesperançavieraacresceratésentirque,aqualquermomento,Tarnieeoscolegasapareceriamnumcarrodapolícia,

cheiosdehistóriasparacontarsobreasuaaventura.Masestavaa ficar tarde.Ospescadores resgatadosqueconseguirama custo

ficarlongedecasaestavamtodosnopubeorestodavilaeacomunicaçãosocialreuniram-seàsuavoltaparaouviremassuashistórias–que,inevitavelmente,setornavamcadavezmaisempolgantescomoavançardanoite,eoshomenscadavezmaiscorajosos.Todosossaquinhosdechá,todasasgotasdeleite,todosospãezinhoshaviam

desaparecidoquandoPollyfechoualojaearrumoutudo.– Anda – convidou Kerensa –, vamos dar uma volta. Quero ver o barco

encalhado.–Ocargueiro?–Sim.–Queresverumnaviotombadodelado?–Agoraquepõesascoisasdessaforma,sim.Pollynãoqueriairaopub,nãoqueriaouvircomohaviamestadotodosàbeira

damorte,nãoqueriasuportaraspessoasaperguntar-lhesesouberadealgumacoisa, partindo do princípio que saberia, porque, claro, todos sabiam da suahistóriacomTarnie.Não,nãoconseguia.–Estábem–concordou.Océuestavaagoramaislimpoecomumtomdourado.Omaracalmara.Era

quaseimpossívelacreditarnaforçaenopoderdoqueosfustigarapoucashorasantes. Polly nunca se preocupava muito com o tempo quando vivia emPlymouth.Ouchoviaounão,erasó.Masaquiviviatãopertodalinhaténuequeseparava a terra e o mar. O mar ditava tudo: se podia atravessar ou não opassadiço,seoshomenspodiamtrabalharouatéseelapodiasairdecasa.Faziapartedoquotidianodequemalivivia.EnquantoelaeKerensaatravessavamemsilêncio, Polly percebeu finalmente o que realmente significava ter o mar acorrernasveias.Ooutroladodopromontórioaindafervilhavadepessoas;hámesesquePolly

não via multidões. A polícia estava a montar um cordão de isolamento –perguntou-se porquê, até Kerensa sugerir que talvez fosse para impedirpilhagens.–Masse foi tudoborda fora,porqueéqueaspessoasnãopodemficarcom

umaparte?–perguntouPolly.– Porque isso daria azo a disputas e roubos, e porque da próxima vez que

aparecesseumbarconohorizonte, tratariamdeo fazernaufragar?– sugeriu apragmáticaKerensa.

–Claroquenão–ripostouPolly,masalgunsdosadolescentequeestavamláembaixonapraiapareciamalgofamintos,quaseseatreviamadesafiarapolíciapara os deixar espreitar. Felizmente, parecia não haver derramamento depetróleo.– O que é aquilo? – perguntou ela, apontando para vários objetos que

flutuavam na água,minúsculos em comparação com o indistinto e ameaçadorcontornodoenormenavio.–Nãosei–respondeuKerensa.–Vamosver.Descerematéàpraia,ondeumpolícialhesdisseparairemembora.Estavam

prestes a obedecer-lhe quando, de repente, ouviram um barulho enorme eapareceu um barco de nariz comprido e ridiculamente espalhafatoso. Era demadeiracastanha-pálidaepareciasaídodadécadade1950,masmovia-secomoumabala.Atrástinhaluxuosascadeirasdepeleeumaproabaixa.Surgiu-lhesàfrentedescrevendoumacurvaeatirandopeloarumgigantescoborrifodeágua.–Desculpe,senhorAgente?–chamouumavozsonoraeirritantequelhesera

familiar.–Viemosapanharestasmiúdas.–Miúdas?–protestouPolly.Kerensajácorreraparaveroqueera.NobelíssimobarcoestavaReuben,ao

leme,eHuckle.Opolíciaacenouàsraparigasparaseaproximarem.– Não subam para o encalhado – gritou. De qualquer forma, andavam a

circundá-lo barcos-patrulha cor de laranja e barcos da polícia brancos,protegendo-odesaqueadores.–Eucompro-o–afirmouReuben, irritado,virandoparamaispertodapraia

paraqueasraparigasconseguissemsubirabordo.Huckleesticouumamãoparaajudá-las.– Catita – comentou Kerensa, olhando em volta e aprovando o interior

revestidoanogueira.–ÉomeuRiva–explicouReuben.–Custouoitocentosmildólares;éumdos

meusbarquinhos.– Pensando melhor, odeio – replicou Kerensa, virando-lhe as costas com

desdém.–Olá – disseHuckle amavelmente a Polly. O seu aspeto preocupou-o: não

havia nada para lá dos seus olhos, nem um sorriso pronto nem um olharcaloroso.–Comoestá?–Andaramàprocuradeles?–perguntouPollyrapidamente.–Não–respondeuReuben.–Achámosquehojeseriaumbomdiaparafazer

umcruzeiro.–IgnoreoReuben–afirmouHuckle,passando-lheamãopelobraço.–Claro

quesim.Pollyabanouacabeça.–Nãoconseguifalarconsigoportelemóvel.Ondeéqueelesestão?Porqueé

queninguémosconsegueencontrar?–Provavelmenteestãonofundodomar,tipo,aseremcomidosportubarões?–

sugeriuReuben.Engrenouobarco.–Cale-se,amigogrosseiro–protestouKerensa.Reubenolhouparaela.– Eu acho-a muito atraente – declarou em voz alta e sem qualquer

constrangimento.–Dequepresentescarosgosta?Kerensaignorou-oesentou-seomaislongepossíveldele.Avançaramdevagar.

Ao início,Pollynãopercebeuoqueestariaaabrandá-los,masdepoisviuqueestavama abrir caminhoatravésdequalquer coisa.Eramuito estranho,mas aáguaestavacompletamentecheiade...–Aquiloé...–começouela,subitamenteinstigadaaagir.Huckleolhouparaelaefez-lheumsorrisotímido.–Eusei.Tudoorestodeveterafundado.Mas...Espalhadosporquilómetros,sobumcéuquesetornavacor-de-rosa,estavam

milhares emilhares– incontáveis –depatinhosdeborracha amarelos.Algunstinhambigode,outroschapéuscorderosa,outrosestavamvestidosdejogadoresde golfe, ou demónios, ou tinham chapéus de polícia,mas era todos patinhosamarelos.–Deviamestarnumdoscontentores–comentouHuckle.–Esoltaram-se.–OspatosFUGIRAM?–Maisoumenos.–Olhemparaeles!–exclamouKerensa.–Livres,avaguear!–ParaaToyotanãofoiassimtãobom–afirmouHuckle.–SegundoaInternet,

estenaviolevavaumenormecarregamentodecarros.Nãomeparecequesaiamdali.Olharamparabaixo,perguntando-se,morbidamente,oqueestariadebaixodo

barco.–Vouabrirumaescolademergulhoaqui–declarouReuben,subitamente.–

Vaiseramelhorescolademergulhodomundo.Aspessoaspodemmergulharefingirqueestãoaconduzircarrossubaquáticos.

–Queideiadatreta–comentouKerensa.–Chiu–admoestouHuckle.Pollynãodisseumapalavra.Continuaramaavançaratravésdomagotedepatosamarelos,aboiarparacima

eparabaixo,eaodeixaremopromontório,Pollyarquejou.Parecia uma regata. No horizonte, até onde o olhar alcançava, só se viam

barcos. Minúsculos barcos a remo, grandes chalupas de corrida, enormescruzeiros, barcos salva-vidas cor de laranja, pequenos barcos de apoio pretos.Todos patrulhavam a água, à procura de um sinal, uma pista, à procura dospescadoresperdidos.–Oh,meuDeus–exclamouPolly.O Riva juntou-se-lhes, passando pela pequena ilha – Polly quase não

conseguiaolharparaela–eseguindoemdireçãoaocanalprincipal,ondeteriamde ter cuidado comos ferries. Acenaram aos outros barcos ao passarem,masmantiveramsempreosolhosnaáguaembuscadealgumvestígio–umcoletesalva-vidas,umpedaçoderoupa,umrádioaflutuar,umbocadodemastro–dealgoquelhesdesseumapistadoparadeirodobarcodesaparecido.Posteriormente, Polly lembrar-se-ia desta viagem como se tivesse demorado

dias,aindaquetenhasidoapenasdealgumashoras.Mergulhouamãonaágua–ainda estava quente apesar de o sol começar a pôr-se – perscrutandodesesperadamente o horizonte e olhando para baixo das ondas, como seconseguisseveralgoseseconcentrassebem.Reubenaceleravaelevava-osatéoutrazona,elesvoltavamaprocuraredepoiscontinuavamPolly não queria acreditar que Tarnie – tão duro e robusto, e contudo

vulnerávellánofundo–pudesseestardesaparecido.Eleeraomelhorcapitãodafrota,todososoutrosodiziam.Eratãoforte.Nãodeixariaquenadaacontecesse.EJayden,tãodesbocadoetãojovem,queodiavapescar;eopequenoKendall.Mas haviam sido criados para aquilo; nas veias corria-lhes água salgada.Elestinhamdevoltar,pensouelaferozmente;tinhamdevoltar.Pollyesfregouosolhosefocou-osnovamentenohorizonte,semicerrando-os

comtantaforçacontraosolquemalconseguiaver.–Querida.Rugas–alertouKerensa,esfregando-lheascostas.Bemviacomo

Pollyestavaperturbada,obviamentepreocupadacomoshomensqueconheceraehorrorizadacomatragédia.Pollyfitou-asemperceberoquequeriadizer.–Nãosemicerresosolhos–avisouKerensa.Egritouláparaafrente:–Nósvamosprocurarobarcolongedosol.Vocêstratemdaparteviradapara

osol.Ficambemcompésdegalinhanosolhos.

–Euficobemdequalquermaneira–replicouReuben,quetinhaunsóculosdesolOakleycarosehorrivelmenteberrantes.–Éissoqueassuasnamoradaslhedizem?–perguntouKerensa.–É–respondeuReuben.–Esãotodasmodelos,porissodevemsaber.–Exato–replicouKerensa.–Depoisdeencheremacabeçacomcocaínanas

festas,comdoissacosdeplásticoaservirdesapatoseumcisnenacabeça.Reubenamuou.–Vê-sebemquenãoéconvidadaparaessasfestas.KerensaolhouparaPolly,mas ela estavadistante e nãopareciaouvir oque

estavam a dizer. Huckle observava-a, preocupado. Queria colocar os braços àvoltadosseusombros:elaaparentavaestarcomfrio,eomarestavanovamentea ficar mais revolto. O sol estava a pôr-se e instalara-se uma brisa.Mas nãoqueriatransmitirsinaiserrados,nãoqueriaassustá-la.Então,tocou-lhenocabelomuitoaodeleve.–Ei–disseele.Elaolhouparaele,comosolhoscheiosdelágrimasporderramar.–Temosdeencontrá-los–afirmouela.–Estamosafazertudooquepodemos–referiuHuckle.Reubentinhaumcestorecheadodechampanhegeladoesanduíchesdelagosta

frescae salmão fumado,masninguém tinhavontadedecomer.Continuaramanavegaratéficardenoite,umaescuridãomarinhapesadaapairarnoar.Omarestavaaenfurecer-senovamente,eumhomemcomummegafonechamou-osdeum helicóptero, gritando-lhes para irem para casa, que a proteção civilcontinuariacomasbuscas.– Não podemos deixá-los ali mais uma noite – afirmou Polly, a bater os

dentes.–Temdeser–retorquiuHuckle–,senãoaproteçãociviltambémterádenos

procurar.Tirou o blusão e colocou-os sobre os ombros de Polly. Ela nem reparou.

HuckleolhouparaKerensa.–Estoupreocupadocomela–confessou.–Eulevo-aparacasa–assegurouKerensa,aninhandoPolly.Huckle teria preferido levá-la ele mesmo, não queria que Kerensa a

embebedasse com vinho e a fizesse sentir-se ainda pior, mas não disse nada.TinhamumdoscarrosdeReubenestacionadonocontinente enodia seguintesairiamnovamentedebarco.Oportoaindaestavamovimentadoe todaagente ficouansiosaquandoeles

regressaram: polícia, comunicação social e pessoas nos barcos, todosperguntavamuns aosoutros se tinhamnovidades.Kerensa apressou-se a levarPollyparacima,fê-latomarumbanhoquenteecomerumpoucodequeijo,quePolly deixou inteiro. Então, Kerensa, exausta, sugeriu que se deitasse – jápassavadasdez–masPollyrecusou-se.Deixouaamigaficarcomasuacamaesentou-se junto à janela na sala de estar, procurando sem cessar notícias naInternet, percorrendo o Twitter em busca de atualizações no seu pequenotelemóvel.Observouamultidãofinalmenteadispersareasluzesaapagarem-seaolongodoporto.Sentia-sedesesperadamentecansada,masquandofechouosolhos,sóconseguiaverorostoafiladoesériodeTarnie,osseusbrilhantesolhosazuis,ajuventudealegredasuatripulação;ouviuavozdelefalar-lhedapazqueapenassentianomar,sobasestrelas.–Porfavor–deuporsiadizer.–Porfavor.

Pollydeveteradormecidonacadeira,porquequandovoltouaabrirosolhos,asestrelasjásehaviammudadoparaocéueaTerrapareciaabafada.Levantou-se,olhoupelajanelaeviuafiguraquejáconhecia,asilhuetanomurodoporto.Como se estivesse num sonho, Polly encaminhou-se para a porta, puxando

umamantadosofá,semconseguirconter-se.Lá fora, a lua tornava tudo mais claro do que parecia dentro de casa; era

bastante fácilver.Asondasestavamnovamentealtas,batiamcomestrondonomuro do porto,mas nada tão terrível comona noite anterior.Mas estava frio;embrulhouamantaaosquadradosàvoltadacabeçaedosombros,etentounãopensar no frio que devia fazer nomar. Aproximou-se da figura.Mrs.Manse,comohabitualmente, estava imóvel comoumaestátua.Polly engoliu em seco,masnãodissenada,simplesmenteficoualiaoladodela.Aofimdecincominutosaperscrutarohorizonte,aesperarquealuzdofarol

passasseporelas,Pollysentiuosdentescomeçaremabater.–Éassim–proferiuavozaoseulado.Mrs.Mansenãopareciaestarcomo

seuhabitualtomirritadiçoezangado.Pareciaresignada,triste,séria.–Éassimqueé.Ficamosaquieesperamos.Nós,mulheres.Éistoquefazemos.Pollyolhouparaela.–Eajuda?Mrs.Manseencolheuosombros.–Nãoostrazdevolta.

Pollyanuiu.–Masachaquetalveztraga?Mrs.Manse fez um longo silêncio.A luz do farol voltou a passar por elas.

Finalmentefalou.–Nãoseiquemaispossofazer–confessou.Pollymordeuolábio–Eu sempre pensei – continuouMrs.Manse, calma – que se não vier uma

noite,seránessanoitequeelevoltacomasuaúltimaréstiadeforça,osuficientepara trepar o muro do porto e se eu não estiver aqui para ajudá-lo, ele nãoconseguirá.Pollycompreendeuperfeitamente.Mrs.Mansevirou-sesubitamente,comoseuvolumosocorpoausteroeimóvel

aovento.– Por favor – pediu ela, num tommais ansioso –, vá para casa. Não fique

comoeu.–Maseuprecisodeesperarporeles–replicouPolly.Mrs.Manseabanouacabeça.–Nãodestamaneira– retorquiu, comdesesperonavoz.–Por favor.Assim

não,nãofaçaistoasimesma.Pollyenrolou-seaindamaisnamanta.–Nãoconsigopensaremmaisnada.–Mas desejar apenas não faz acontecer – ripostouMrs.Manse, zangada. –

Nãopercebe?Desejarnãofazacontecer.–FitouPollynosolhos.–Porfavor–insistiuela,jáaimplorar–,váparacasa.Polly olhou para omar uma última vez, perscrutando o horizonte. Sentia a

cabeçaconfusa,comoseestivessecheiadealgodão.–Porfavor–pediuMrs.Manse.–Não,nãosejacomoeu.Polly olhou para aquela velha mulher, que, agora a tremer, estava tão

desesperadaporfugirdaarmadilhadasuavida,masnãoeracapaz.FoicomosePollytivesseacordadoderepente.Oqueestavaelaafazer?AquilonãoajudariaTarnie,nemninguém.–Pode...Quervirparaaminhacasa?–convidouela.–Beberumchá?–Nãoposso–replicouMrs.Manse,abanandoacabeça.–Masvocêpode.Por

favor,vá.Enquantoaindaétempo.–Nãopossodeixá-laaqui.– Tem de deixar – retorquiuMrs.Manse. –Não se preocupe, eu sei o que

estouafazer.–Tentou,corajosamente,esboçarumsorrisotímido,comosolhos

semprepostosnohorizonteescuro.Sempensarduasvezes,Pollypôsosbraçosàvoltadamulher,apertou-acom

forçaedepoispressionouoslábioscontraafaceenrugadadeGillianManse.

CapítuloVinteeUmDe regresso ao seu apartamento, Polly voltou a acomodar-se na sua cadeira,tapando-seeaquecendo-secomamanta.Oh,Deus,ondeestariameles?Partedesipensavaquenuncaconseguiriamsobrevivermaisumanoitenomar,maisumanoiteassim.Tentou imaginá-losmortos; todasassuasenergiasepreocupaçõesdissipadasemnada.Aideiadeelesmortoseraestranha,chocante.Chegaraalihámenosdequatromeseseelesjáfaziampartedasuavida.Por volta das cinco da madrugada deve ter voltado a adormecer, porque

quandoacordou,foicomumenormebarulhoecomaluzaentrarporalidentro.Ouviu-seumestrondo.Depoismaisoutro.Pollysaltou.Oqueraio?Oquese

passava, agora? O seu primeiro pensamento foi que o barco grande estava adesfazer-se na água, a ser destruído pelas vagas. Mas o barulho era maispróximo.Então,pensouquefossemospescadores,comfomeedevoltaacasa,abater-lhe à porta. Ou, sugeriu o seu ladomais negro, afogados regressados, abaternajanela...Arregalouosolhosnumsúbitoímpetodeadrenalinatrespassadodepânicoe

medo.Demorou alguns minutos a focar o olhar, com a luz da aurora a inundar o

quarto.Oestrondovoltou.Pollyolhoupelajanelaesobressaltou-se.Lá fora, um pequeno pássaro preto com um grande bico laranja estava

freneticamenteatentarchamarasuaatenção.Pollycorreuaabrirajanela.Nãopodiaser.Não...Masera:nasuaperna–suja

echeiadesabe-seládoquêdevidoaoqueforaclaramenteumalongaviagem–estavaumaetiquetadeplásticocomainscrição«MeldoHuckle».–NEIL!–gritouPolly,quandoabriuajanelaeopequenopapagaio-do-marse

atirouparaosseusbraços.–NEIL!O pássaro bateu as asas de felicidade e piou. Polly encheu-o de beijos. Ele

cheirava ligeiramente a óleo e a peixe, mas era o melhor cheiro de sempre,pensouelaaodeixarcairaslágrimassobreasuacabecitadepenas.Eleaturouoseucarinhodurantealgumtempo,esfregandoacabeçadeladonoseudedo,masolhouemvoltadoquarto.– Estás com fome? – perguntou Polly, ao aperceber-se. – Claro que tens.

VoasteumaGRANDEdistância.Anda.Oseujantarintocadoestavaaodecimadolixo,porisso,pescou-oecolocou-o

numprato.Neilpioutodocontenteeatacouacomida.Apósencherabarrigaebeber de um pires, voou alegremente pela sala de estar, como que a baternovamenteoseuterritório,voltandoocasionalmenteparadebicarasmigalhas.–Estoutãocontenteportever–confessouPolly,incapazdeabandonaroseu

sorriso rasgado de felicidade quando ele voltou para se empoleirar no ombrodela,qualpapagaiodepirata.–Estástãomagrinho.Fez-lhefestasnabarriga.–Nãotenscomidohidratosdecarbonobrancossuficientes.Demasiadasalgas

e peixes. Émelhor para o teu cérebro,masmesmo assim, conseguiste voltar,hein?Kerensaapareceu,abocejar,àporta.–Estásafalarcomumpássaro?–perguntouela.–Ousoueuqueaindaestou

adormir?–Nãoéumpássaroqualquer–retorquiuPolly.–Olha!Éomeupássaro!Ele

atravessouomar avoarparavoltar paramim!Conseguiu!Neil, és incrível. –Pollyencheu-odebeijos.–Hum,pois–comentouKerensa,retraindo-seligeiramente.Olhouemvolta.–

Hánovidades?Pollyagarrounotelemóvel.–Nãotenhomensagens–respondeu.–Aredevoltou,masnãohánada.TodaaalegriadevoltaraverNeilevaporou-sederepente.Todooseucorpose

afundou.–Oh,meuDeus,Kerensa.

–Voupôrachaleiraaolume–atalhouKerensa.–Umchá.Ealgoparacomer.Pollyafundou-senovamentenasuacadeiraeNeil saltouàsuavolta fazendo

ruídospreocupados.MasenquantoKerensapunhaachaleiraao lume,ouviramumbarulho.Umbarulhoestranhoquevinhadarua.–Oquefoiisto?Era o sino da velha igreja em ruínas. Era a única parte do campanário que

ainda estava de pé. Não estava a repicar, como Polly ouvia aos domingos,quando pessoas de toda a parte vinham até àquele antigo local de culto quealguns diziam ser anterior ao próprio Cristianismo. Não era um toque decasamentonemorepicaralegredossinosdePáscoa.Esteeraumdobrarlento,repetido,umdongdongdong.Pareciadolorosoetriste.– O que é isto? – repetiu Kerensa, esquecendo-se do chá. Ambas

aconchegaramas roupas–PollynuncaviraKerensacomocabeloacabadodesairdacama–ecorrerampelasescadasabaixo,comNeilnosbraçosdePolly.Todas as pessoas da vila estavam no porto, agitando-se com impaciência, a

esfregar os olhos, algumas em pijama, outras com fatos de treinodesemparelhados,vestidosàpressa.Passavapoucodasseisdamanhã.Inicialmente, não havia nada para ver. Depois, aos poucos, uma minúscula

figuranegra apareceunohorizonte.Ganhouvelocidadegradualmente até ficarnítida.–Nãoacredito–exclamouPolly.Levantou-seummurmúrioentreamultidão.Obarcoondulavaparatráseparaafrentesobreasondas,quecomeçavama

cintilaraosol.–Équasecomoseseestivessemaexibir–comentouKerensa.–Hum...Quandoobarcoseaproximou,viramqueeraoRiva.–Maselesvoltaramontemànoite–afirmouPolly.–Eleslargaram-vosontemànoite–dissealguémqueobviamenteestiverano

porto–edepoisvoltaramasair.–Noescuro?Comoquearesponder,oRivaviroueasraparigasviramumenormeholofote

montadoàfrente.Obarcoestavacadavezmaisperto,lançandoplumasdeespuma.Porfim,com

osinoaindaatocarnoseutomprofundoegrave,parouemfrenteaomurodoporto.Reubenacenoualegrementeno lugardocomandanteenquantoPolly, talcomotodaagente,confirmavafreneticamenteonúmerodepessoasqueestavam

na parte de trás. Sem contar com a cabeça amarela de Huckle, eram quatropassageiros.Quatro.MasobarcodepescaquezarparadePolbearneduasnoitesanteslevavacinco

pessoasabordo.

CapítuloVinteeDoisQuemestavajuntoaomurodoportolançou-seimediatamenteparaafrenteemsilêncio. Toda a vila ali estava. Duas ambulâncias estavam paradas, à espera.Huckle foi o primeiro a sair do barco, com um ar cansado mas satisfeito, eestendeuosbraçosparaajudarosoutroshomensadescerparaomolhe.O primeiro foi Archie, o contramestre de voz suave. O seu rosto estava

cinzento-pálido e tenso, os olhos dançaram ao longo do porto, como se nãoreconhecesseosítioondeestava.Osparamédicoscorreramparaelecommantasprateadas.Ao coxearmuito devagar pelo cais acima, toda a gente começou aaplaudir.Alguémapareceucomumacanecadecháque lhecolocounamão,eoutrapessoadeu-lheumcopodeuísque.A seguir veioKendall, comumar aindamais jovemdebaixodo seugrande

chapéuamarelo.Asuamãecorreupelaestradaempedradaabaixodechinelos,aosgritos,eosseusquatroirmãos–quehaviamestadotodosabordodosoutrosbarcosdepescaquejáhaviamregressadoemsegurança–gritavamvivas.Pollynãoconseguiaverporacimadascabeçasdaspessoas,emesmocomNeilapicá-las,nãoconseguiafurarporentreamultidãoparaveroquesepassava.Oseucoraçãobatiaaceleradonopeito,earespiraçãosaía-lheemarfadasenquantosedebatiaporveralgumacoisa.Oseguinte foiJohn,eouviu-seumarfarcoletivoquandoosseusdois filhos

pequenoscorreramparaele,gritando«Papá!Papá!».Elemalseequilibravanaspernas,masajoelhou-seedeixou-osvoarparaos seusbraços.Pollyolhouporcimadas cabeçasdamultidão e conseguiuverMrs.Manse, atrás.O seu rostoestavaimpassível,comosempre.Por fim, amarrado a uma maca que dois homens das ambulâncias haviam

levadoatéaomolhe,apareceuJayden,muitopálidoeexausto,comumapernadobrada num ângulo esquisito debaixo da manta. Estava praticamenteinconsciente.Eentãoobarcoficouvazio.Sempensar,Polly correu atravésdamultidão emdireçãoaomolheparaver

comosseusprópriosolhos,paraconfirmar–efoiapanhada,subitamenteecomforça,pelosenormesbraçosdeursodeHuckle,queaagarroucomfirmezanoseuabraçoforte.–Oquefoi?–perguntouela,debatendo-seporuminstante,masHuckleera

tãograndeefortequenãohaviamuitoqueelapudessefazer.Virou-ajuntoasiesussurrou-lheaoouvido:–Calma,calma.Aindaacontorcer-se,Pollyvirouacabeçaeentãopercebeu.Porquejuntoao

barcovazio,achorar,comtodoocorpodobradonumparoxismodedor,estavaumamulherbaixinhadecabeloruivo,ePollysoubeimediatamentequemera.

–Oh,meuDeus–afirmouPolly.–Oh,meuDeus.– Ainda não acabámos – replicou Huckle furiosamente, com a exaustão

patenteemtodasaslinhasdoseurosto.Defacto,obarcosalva-vidasjáestavaadescerparaaágua.MasPolly,comosolhosturvadosdelágrimas,olhavaparaos pescadores regressados, reunidos com as famílias, amigos e jornalistas.Osseus rostos, passada a excitação de estarem em casa, fecharam-se. PollydescobriuquenãoconseguiaficarondeestavaefezsinalaHuckle.Afastaram-seosdois,acambalear.Kendallestavaafalar.Oseurostojovemenvelheceradezanos.Alguémestava

adarapoioà...PollynãoconseguiapensarnelacomoaviúvadeTarnie;quasenão conseguia pensar de todo. Os seus sentimentos voltaram-se para a águagelada;eraapioremaisaterradoranotíciaquealgumdiapoderiaimaginar.Kendall tinha um discurso incoerente, por causa da dor, mesmo quando as

câmarasdetelevisãomostraramoseurosto.

– Ele não... não conseguiu... Ele tinha de passar o Jayden, não conseguiadeixá-lo...Efoiassim.–Edissolveu-senochoro.Polly teve de reconstituir a história mais tarde, pelos jornais, sentada com

Kerensaemsilêncionoseuapartamento,afitaroportovazio,osjornalistasqueandavamdeumladoparaooutroeosturistasconfusos.QuandooTrochiluschegaraaocentrodatempestade–erabempiordoqueas

previsõeshaviamdito; a pior, naverdade, que a regiãoviranosúltimos trintaanos, um catastrófico diferencial de pressão alta e baixa colidindo a altavelocidade–omastro jápartiraeospescadores jáestavamcientesdequenãohavia esperança para eles. Polly imaginou-os a serem arremessados comomadeira flutuante em ondas mais altas do que um prédio de três andares,elevando-osevoltandoaatirá-losparabaixocomviolência.Nãoaguentava.Haviam lançado à água o barco salva-vidas no último momento – Polly

lembrou-se de Tarnie lhe dizer que era sempre melhor ficar no barco, sepudessem –mas omastro foi arrancado e caiu em cima da perna de Jayden,esmagando-adeumaformahorrível.Haviamtentadodesesperadamentemanterosalva-vidaseobarcojuntos,eTarnierecusara-seadeixarJaydenenquantonãoolibertasse.Comumgigantescoesforço,conseguiralevarJaydenparaosalva-vidas – Polly conseguia imaginar tudo aquilo de uma forma vívida, sabia queTarnie nunca desistiria de Jayden, sabia que estava a fazer por Jayden o quenuncaconseguirafazerpeloseuamigoJimManse–masnessaalturaobarcodepesca já estava quase todo submerso. Embora os homens tivessem tentadodesesperadamenteagarrarobraçodeTarnie,elhetivessematiradocordas,mãose insufláveis,a sucçãodobarcopuxara-oparao fundo.Osalva-vidas tambémforapuxadoparabaixodasondas,masquandovoltaraàsuperfície–asuaformapiramidal amarela cumprira a sua função e endireitara-se – já não haviamaisnadanotumultodomarfustigador,anãoserumpedaçodedestroçosaquieali.A tempestade e a corrente haviam-nos afastado para cada vez mais longeenquantoelesficaramsentadosnumsilêncioatordoado,tentandomanterJaydenconsciente,debatendo-separalidarcomaperdadoseucapitão,doseusustento,detodooseumundo.

O último barco salva-vidas regressara ao fim de mais um período de vinte equartohoras.Eraprecisonoutrolocalehaviadecisõesatomar.Fervendoáguapelacentésimavez,olhandofixamentepelajanelaeamassandoopãocomumar

apático,PollynãosuportavapensaroqueaquelanotíciafizeraaSelina,quandoasoube.

E vieram pessoas. Todasmostravam necessidade de falarem sobre a tragédia,umaeoutraeoutravez.Opioréque,semcorpo,nãopodiahaverfuneral,nãopodiahaverrepouso.Masaspessoasprecisavamdefalarsobreoqueacontecera,precisavamdefazeroluto,econgregavam-seàvoltadalojadePolly.Cadapessoadacidadetinhaasuaversãodahistória.Alguémtiveraumsonho

premonitório;outrapessoa receberaavisitadeumfantasma.NinguémpareciasaberaocertooquesepassavacomJayden,orapazqueodiavapescar.EstavanohospitaldePlymouth,haveriaderecuperareosmédicosdisseramàspessoasde todoopaísque lheenviavampresentesecartõesquecompreendessemqueeramtantosquetalvezpartilhassemmuitosdelescomoutrospacientes.Eraclaroquealgodeviaserfeito,mascomorecém-chegada–epior,comuma

ligaçãocomofalecidoquenãoqueriapornadaqueseespalhassemais–Pollypensouquenãolhecaberiaaelatomarainiciativa.–Masdevíamosfazeralgumacoisa–referiuela.Nailhanãohaviavigário,masumahabitantelocaloferecera-separafazeruma

celebraçãonasuaigrejadeLooe.KerensaargumentouquedeveriasernaantigaigrejadeMountPolbearne,apesardetersidodesconsagradahámuitotempo.Selina voltara para a casa damãe no continente, e embora não conseguisse

aproximar-se sequer da sua dor, a comunidade local tinha de reconhecê-la – adelaedoshomensquehaviamficadoparatrás,quesesentiamculpados,alémdeteremvisto,aterrados,asuavidaporumfio.Na segunda-feira demanhã, da segunda semana após o acidente, o telefone

tocou.PollyestavaenterradaemfarinhaatéaocotoveloepediuaKerensa–quevoltaraaPolbearneparaestarcomaamiga–paraatender.–Olá,Pol–cumprimentouReuben,comvozensonada.–Então?–NãoéaPolly–retorquiuKerensa.–ÉaKerensa.Ouviu-seumapressadosomdesacudideladooutroladodotelefone.Quando

Reubenvoltouafalar,pareciabemmaisacordadoebaixaraavozemcercadeumaoitava.– Olá, olá – afirmou, com a voz mais masculina que conseguiu. Kerensa

revirouosolhos.–Oquepossofazerporsi?–perguntouele.– Bom – começou Kerensa –, estamos a pensar fazer uma celebração em

homenagem ao barco e ao Tarnie. Provavelmente vai ser na porcaria doapartamentodaPolly.Podevir,sequiser.–Ei!–gritouPolly,furiosa.Neilsaltavaparacimaeparabaixonolava-louça,

divertido. No meio de tudo o resto, Polly conseguira ter tempo para ligar àreserva.–Olá.Achoquetenhoumdosvossospássarosquefugiu–dissera.Atendeu-aamesmaraparigaenérgica.–Ah!Sabe,nãodemospelafaltadele.Nóstemos,tipo...–Ummilhãoemeio,eusei.Masestetemumaetiquetaespecialdemel.– Eu lembro-me de si! Era aquela senhora que adorava o seu papagaio-do-

mar?–Euachoque todosospapagaios-do-marmerecemser amados– confessou

Polly.–Claro.Masasenhoranãovivenacostasul?–Vivo–confirmouPolly,orgulhosa.–Eleconseguiuchegaracasa.Ficou à espera que a rapariga se mostrasse incrivelmente impressionada e

dissesse algo sobre comoNeil era o papagaio-do-mar mais espantoso que jávira.–Bom–dissearapariga–,podetrazê-lodevolta,sequiser.PollyolhouparaNeil.Opássaroobservou-acomosseusolhospretosatentos

epioubaixinho.–Sabeumacoisa?–rematouPolly.–Achoquevamosficarbem.

Kerensa eReuben ainda estavam a falar ao telefone.Ele parecia encolerizadopornãoestaremàesperaquefosseeleoanfitrião.–Eutenhoumapistadedança!Tenholuzes!TenhoacessoaDJeumacave

completamente abastecida de champanhe – argumentava ele. Polly conseguiaouvi-lodooutroladodacasa.–Nãoéumafesta–explicouKerensa.–Éumvelório,imbecil.–Achoque todaagentedeveria teruma festaquandomorresse–contrapôs

Reuben.–Éoqueeuquero.–Eletemumacertarazão–concordouPolly.–Enfim,masoqueéquevocêsvãofazer,torradas?–continuouReuben.–Eugostodetorradas–retorquiuKerensa.–Tudobem–aquiesceuReuben.–Quandoeumandaraíoaviãocomochefe

desushi,mandotambémumdetorradas.KerensaePollyentreolharam-se.Pollyanuiu.–Devíamosfazê-lo.Avilaprecisadisso.–Estábem–concordouKerensa,comoseestivesseafazeraReubenomaior

dosfavores,eterminouachamada.–Deviassermaissimpáticacomele–sugeriuPolly.–Elelevouobarcopara

omareencontrouosúltimoshomens.Foirealmenteumherói.–Bem,primeiro,estavaaexibir-se,comosempre–retorquiuKerensa.–Tuésdura–comentouPolly.–Segundo,foioHucklequeoobrigou.–Tunãosabesisso.–Sei,sim.OReubencontou-me.Querdizer,eusugerieelenãonegou.–Nãoacreditoqueodeiasestetipo,masmesmoassim,conseguisteconvencê-

loaseroanfitriãodahomenagem.Kerensarevirouosolhos.–Poralgumarazãoaindaestounoativo.–Golpebaixo.Kerensafez-lheumacareta.–Vá–instigouPolly–,aindatemosmuitotrabalhoparafazer.

CapítuloVinteeTrêsKerensa, fielà suapalavra,conseguiuqueavigária fizesseumacelebraçãodememórianaantigaigreja.Terialugarnosábado,seguidadeumafestaemcasadeReuben.Pollysóesperavaqueotempoestivessebom.Convidaramtodasaspessoasdavila.Acomunicaçãosocial,felizmente,jádesapareceraquasetoda,masdeixaraum

legadoinesperado.Quandoaspessoasviramasreportagenssobrea«trágicaviladas marés», não ficaram tanto a pensar na pesca, mas mais na arrebatadorasubida emdireção ao pitoresco castelo em ruínas; na peculiar calçada; na suaencantadora pequena padaria artesanal; nas suas águas banhadas pelo sol.Umdia depois, chegaram em massa – e não eram apenas curiosos, mas tambémpessoasque estavamde férias.KerensavoltouparaPlymouth ePolly sentiu afalta da sua ajuda; estava atarefadíssima. Todo o pão que fazia voava àvelocidadedaluz.Estavatãoocupadaque,porvezes,seesqueciadetudooqueacontecera.Masdepoisolhavapelajanela,àprocuradosmastrosachocalhar,dagalhofa,daspiadas,dosgritosdospescadores,dafamiliarfiguraaltacomolhosazuispenetrantes,maselanãoestavalá.Eracomoseratingidanoestômagoporumaboladecanhão.Outravez.Na quarta-feira, estava a fechar as persianas quando viu uma figura esquia

dobradaaaproximar-senomurodoporto.Osturistasestavamtodosnapraia;o

diaestavaespetacular,eumserenocalorpós-almoçoapoderara-sedavila.Nãohavia mais ninguém por perto. Polly fez uma caneca de chá, saiu com ela esentou-senomuroaoladodela.–Olá–cumprimentou.–Trouxe-lhechá,massequiserestarsozinha,vou-me

jáembora.Selinafitou-a,piscandoosolhosalgoconfusa.–Olá,desculpe,eunão...–Euchamo-mePollyWaterford.EraamigadoTarnie...Naverdade,conheço

todosospescadores.Trabalhojáali.– Ah, sim, a padaria. – Selina fez um sorriso triste. – Ele falava muito da

padaria.Adoravaoseupão.–Ouça,eunãoquerointrometer-me...–Não– retorquiuSelina–,não fazmal.Eu sóprecisavade sair de casada

minha mãe. Todas aqueles emproados e «Estás bem?» a toda a hora. Sabe?Naquelavozsuavequeaspessoasfazemparanosmostrarcomosepreocupam.PORRA,estoucansadadisso.Pollyanuiu.–Edepoistenhodedizer«Sim,estoubem»paraqueELESsesintammelhor.

Asério.Paraorestodaminhavida.Rodouaaliançanodedo.–Comoéquepodeestarbem?–afirmouPolly,genuinamentetocada.–Que

perguntaidiota,parecequepensamquepoderiaserummonstro.– EXATO – concordou Selina, e fez novamente silêncio. Ambas olharam

fixamenteparaomar.–Sóqueeusoumesmoummonstro–afirmou–,porqueestoutãoFURIOSA

comele.EuDISSE-LHE.EuDISSE-LHEparanãosairparaomar.Pedi-lheportudoquenãofossepescador.Todaagentesabequeéperigosoequeseganhamal. E ele estava sempre fora, estava sempre aqui – quer dizer, quem é queconsegueviveraqui, istoéumamalditameia ilha,poramordeDeus.Asério,quasenosseparámosumaquantidadedevezes,passávamosavidaadiscutirporcausadestemalditotrabalhoedepoisoqueéqueelefaz?Osseusolhosencheram-sedelágrimas.–Provaqueeutenhorazão,osacana.SACANA.EstouTÃOfuriosacomele.Selinalimpouacaracomforça.– Credo, outra vez as lágrimas – afirmou. – Desculpe. Desculpe por

descarregar.Achaquesouummonstro?– Acho que o que disse faz todo o sentido – replicou Polly, sentindo-se

culpada.Gostavadaquelamulher.Quepalerma,oTarnie.–Tenho saudades dele – confessouSelina. –Ai, tenho saudades de discutir

comele.–Fungou.–Esógostavaquedeixassemtodosdefalardelecomosefosseumsanto.–Eusei–concordouPolly,veemente.–Elepodiaserumimbecil,maseraoMEUimbecil.PollycolocouobraçoàvoltadosombrosdeSelina.–Achaquemedeixamescreverissonapedramemorial?–Selinasoluçavae

ria,aomesmotempo.–Bom,comaquantidadededinheiroquedoaramparapagá-la,provavelmente

podefazeroquequiser–declarouPolly,eambasriramechoraramaomesmotempo,atéquePollydissequeselixe,espereaqui,foiaoseuapartamento,tirounumagarrafadevinhodofrigoríficoeficaramasduassentadasnomuroabeberdecoposdeplásticoeacontarhistóriasirritantesdeTarnieatardetoda,atéaspessoascomeçaremaenchernovamenteavilaeareconhecerSelina.Franziuosobrolho, disse que era como ser o pior tipo de celebridade de sempre, umasuperviúva,efoiembora.Despediram-secomumabraço.

Essasemanafoiamaismovimentadadesemprenaloja.AgoraMountPolbearneerafamosa,etodosqueriamumpedaçodessafama.HenryeSamantha,ocasalrecém-chegado, que estava a fazer grandes obras de remodelação, apareceuexcitadíssimo.– Bem, em Chelsea só se fala de nós! – contou Samantha. – Acho que os

preçosdascasasnãosevãomanterpormuitotempo.TodoaqueleDRAMA!–comentouela,numtrinado.Polly estremeceu e olhou lá para fora. O Range Rover estava parado, a

bloqueararuanovamente.Seráqueumdiaaindaviriamaprecisardeumpolíciadetrânsito?– Não gostava de abrir um talho tradicional, também? – perguntou Henry,

esperançado.Estavacomcalçasbombazinacor-de-rosa,quecondiziamcomassuasfacesrosadas.–Éotipodecoisaqueajudaimenso.–Como?Não, credo – exclamou Polly.Viu um dos pescadores passar pela

janelacomumabraçadadepatosamarelos.–Parecequealguémtemespíritoempreendedor–comentouHenry.–Hum...

Seráqueelegostavadeabrirumtalho?

Pollyfitou-os.– Então, os vossos amigos vão todos mudar-se para cá? – perguntou,

delicadamente.– Definitivamente! A Binky, o Max, o Biff, a Jules, o Mills, a Pinky e a

Froufrou já ligaram aos agentes imobiliários, não foi? – perguntou Henry aSamantha.– Que bom – afirmou Polly, colocando o pão sem glúten que eles haviam

encomendado (e pelo qual cobrava o suficiente para lhe pagar um mês decombustível)numsacodepapel.–Quebom.

Osábadoamanheceugloriosoeperfeito.Haviaalgumasnuvenstufadasacorrerpelocéu,masderesto,estavaazul.FazialembraraPollyodiaemqueTarniealevara a passear no seu pequeno barco, emque demorara o triplo do tempo aarranjar-se,porquecadavezquepensavanessedia,desatavaachorar,borravaamaquilhagemetinhadearefazer.Falouconsigomesmanumtomferoz.Nãoiriafazerfiguradeidiota,nempensar.Tarnieforaseuamigo,maisnada,alguémqueconhecera durante alguns meses. Não merecia ficar egoisticamente com umafatia da dor – a verdadeira dor, o enorme, interminável e demolidor desgosto.Issopertenciaàsuafamília,aosseusvelhosamigos,aSelina.Nãotinhaodireitode se intrometer.Tinha de trancar a dor dentro de si, de ser forte e de não seenvergonhar.Felizmente,Kerensaapareceumuitocedo,paraaproveitaramaré.Tinhaumar

loucomastambémfabuloso,comumcurto–umpoucocurtodemais–vestidoderendapreto,maquilhagemintensaeumlençoderedepelacabeça.–Credo–exclamouPolly,esfregandoosolhospelaenésimavez,–parecesa

viúvanegra.– Ótimo – replicou Kerensa, ligando a máquina de café. – O que achas?

Exagerei?–Sóestivestecomeleumavez–avisouPolly.– Eu sei – concordou Kerensa –, mas pensei que se alguém decidir olhar,

desconfiado,paratodasaspessoasqueestiveremnaigrejaembuscadeamantes,talvezpasseportiepresumaqueeraeu.Pollyarquejou.–Brilhante!–Eusei.

–Obrigada–dissePolly,quebrandonovamente.– De nada – replicou Kerensa carinhosamente, dando-lhe palmadinhas no

ombro.–Nuncairiasestartãoelegantecomoeunemquetentasses.MasPolly sabia o que ela realmente queria dizer, e desfez-se em choro nos

braçosdaamigaaténãotermaisnadadentrodesi.–Melhor?–perguntouKerensa.Pollyanuiu.–Então,vaitomarumduche.–Játomeitrês.Jásóhááguafria.–Melhorainda,fechaosporos.PollyfezoqueelamandouedepoisKerensa,olhandoparaelacomarsérioe

pararealçarorímelàprovadeágua,vestiu-acomumconjuntopretosimplesdemangacurtacompostoporumasaiadesedaeumaT-shirt.–Muitobem–afirmouKerensa–,agora senta-te sossegada cá atrás e tenta

nãochamaraatenção.Conheciasafamíliadele?Pollyabanouacabeça.–SóaSelina.–Ótimo,assimnãotereconhecem.Vaicorrerbem,estásaouvir?

Huckle e Reuben encontraram-se com elas na igreja, ambos invulgarmentesóbrios,defatosescurosegravatas.Reubennãodeixouescaparaoportunidadede lhes dizer que a sua gravata e os sapatos eramde pele de tubarão, «a pelemaiscaraquesepodecomprar»,masKerensareplicou-lherapidamentequeissofaziadeleumterroristabiológico.Aigreja,umdospontoscentraisdacomunidade,ficavanotopodavila,após

umasubidadelajesíngremes.ConstruídanaIdadeMédia,quandoavilaaindaestavaunidaaocontinente,caíraemdesusoquandoopassadiçoseimpôseforadesconsagradaemfinaisdoséculoXIX.Hojeeramaisuma ruínadoqueumaigreja, comas suas antigas paredes de pedra e o chãopavimentado; não tinhatelhado,apenasninhosdepássarosláemcima,naalvenariaemderrocada.Eraumbomlocalparafazerpiqueniques,cáfora,eatéporentreasantigaslápides,eavistaparaomardostrêsladoserasimplesmentemagnífica:barcosespalhadosaquieali,océuumagigantescabandeiraláemcima.Dominúsculosalãocomunitáriodavilavieramcadeirasparaosmaisvelhos

se sentarem, mas a igreja estava tão apinhada que a maior parte das pessoas

ficou de pé nosmuros, sentada no chão ou em rochas onde as lajes estavampartidas ou haviam sido removidas. Havia um murmúrio por toda a igreja ehomens que se sentiam desconfortáveis nos seusmelhores fatos, ligeiramentecorados por causa do calor. À frente, sentadas com as cabeças inclinadas,estavam duas pessoas que Polly percebeu imediatamente serem os pais deTarnie. Sabia que, após o pai se ter reformado, a mãe insistira para que semudassemparaocontinente,embuscadeumpoucomaisdeanimação.TambémnãoficaracontentequandoTarniedecidiraserpescador;tinhamaioresambiçõespara o seu único filho. Tinha osmesmos olhos azuis brilhantes dele, reparouPolly,mas naquelemomento estavam tão cheios de lágrimas e ausentes que asenhorapareciacega.Ohomemnãoergueuacabeça,masPollyreconheceuTarnienosseusombros,

naconstituiçãoencorpada,nasombradoqueixo,einalouumarepentinagolfadade ar. Não conseguia sequer pensar no que passaria pela cabeça daquelepescador. Uma mulher com várias crianças pequenas e algo incomodada eabatidadeviaserairmãdeTarnie.AoladodelesestavaSelina,numbonitovestidopretoquelherealçavaosfinos

ossosdaclavícula.Pollyfez-lheumsorrisoapologéticoeSelinadevolveu-lheoseu ar de dor tão expressa que Polly sentiu o coração apertado. Estava a serapoiadapelamãeeporváriosoutrosfamiliares,epareciademasiadofrágilparasequerestardepé.Mrs. Manse estava sentada numa das cadeiras, ignorando tudo e todos,

totalmente vestida de preto e com um ar desconfortável. De preto, parecia aRainha Vitória. Polly tentou acenar-lhe e, em troca, recebeu um olhar dereprovação.Toda a vila ali estava, até, para surpresa de Polly, os recém-chegados

SamanthaeHenry,quepareciamestranhosedeslocados.Tambémlhesacenoudiscretamente. Ficaram todos de pé, ansiosamente à espera que algoacontecesse.Porfim,avigáriadocontinenteapareceu,entrandopelasparedesemruína,tal

comotodaagente.Avançouatéàfrentedaigrejaeaclarouagarganta–todosselevantaramimediatamente,atentos.–Bomdia–cumprimentou–eobrigadaatodosporteremvindonumdiatão

bonito.Seiqueestaéumaocasiãoinvulgar,massintoqueemboranãopossamosenterraronossoirmãoCorneliusWilliamTarnforth,podemoshomenageá-lo.Aoouviroseunome,amãedeTarniesoltouumgemidoabafado.–Nemtodasasmortessãotragédias–continuouavigária–,masestafoi.

E falou de como Tarnie era bem conhecido na comunidade, de como eraamado pela sua família e de como todos sentiriam a sua falta.Depois, váriaspessoaslevantaram-seedisseramalgumaspalavras,contaramhistóriasquePollynuncaouvira: sobreo seuhábitodeoferecer peixe às pessoasquenão tinhammuitas posses, sobre os turnos nos barcos salva-vidas que fazia nos temposlivres, uma história ridícula sobre empurrar uma vaca que Archie contou porentresoluçosequenãoeramuitocoerente.Então,avigárialeuumapassagemdaBíblia.«Encontrando-se junto do lago de Genesaré, e comprimindo-se à voltadeleamultidãoparaescutarapalavradeDeus,Jesusviudoisbarcosquese encontravam junto do lago. Os pescadores tinham descido deles elavavamasredes.Entrounumdosbarcos,queeradeSimão,pediu-lhequeseafastasseumpoucodaterrae,sentando-se,dalisepôsaensinaramultidão.Quandoacaboudefalar,disseaSimão:“Faz-teaolargo;evós,lançaiasredesparaapesca.”Simão respondeu: “Mestre, trabalhámos durante toda a noite e nadaapanhámos;mas,porqueTuodizes,lançareiasredes.”Assim fizeram e apanharamuma grande quantidade de peixe.As redesestavamaromper-se,eelesfizeramsinalaoscompanheirosqueestavamnooutrobarco,paraqueosviessemajudar.Vierameencheramosdoisbarcos,apontodeseiremafundando.Ao ver isto, Simão caiu aos pés de Jesus, dizendo: “Afasta-te demim,Senhor,porquesouumhomempecador.”Eleetodososquecomeleestavamencheram-sedeespantoporcausadapescaque tinhamfeito;omesmoaconteceraaTiagoeaJoão, filhosdeZebedeuecompanheirosdeSimão.Jesus disse a Simão: “Não tenhas receio; de futuro, serás pescador dehomens.”E, depois de terem reconduzido os barcos para terra, deixaram tudo eseguiramJesus.»Então,apósumsinalpré-combinado,oshomensquePollyreconheceucomo

pescadorescaminharamsolenementeatéàfrentedacomunidadeecomeçaramacantar.

Paieterno,queatodossalvas,Cujobraçoseguraasondasagitadas,QueapontasàsprofundezasdoimponenteoceanoOsseuslimites:Asvozesentoavamocânticocadavezmaisalto,aquesejuntouamaiorparte

dospresentes.Escuta-nosquandochoramosPoraquelesemperigonomar.PollyviuopaideTarnieatentar,semsucesso,verbalizaraquelaspalavras.Foi

entãoquecedeucompletamente.Tentandocomtodasasforçasnãofazeralarido,enterroua cabeçano forro interiordocasacodeHuckle e choroue chorou.Oforronuncamaisseriaomesmo.Cristo,cujavozaságuasescutam,EaplacamasuafúriaàtuapalavraQuecaminhastesobreaespumadaságuas,Eacalmasteasuafúria:Escuta-nosquandochoramosPoraquelesemperigonomar.

Reuben,oumelhor,oescandalosamentebempagoorganizadordeeventosquemandara vir de Londres – não poupou despesas – enviara autocarros paraapanharaspessoaselevá-lasaovelório.Estava um dia radioso quando entraram para os autocarros, os homens já a

alargaremasgravataseatiraremoscasacos.Nemumanuvemnocéu,apenasoazul-claro até onde a vista alcançava, o sol quente e delicioso a banhar osombroscadavezmaisbronzeadosdosveraneantes,banhistasedossalteadores.Amaiorpartedamercadoriadopetroleiroencalhadoafundaraou fora retiradadonavio,efelizmenteopetróleoforacontido,graçasaorápidoraciocíniodeumdos jovens engenheiros a bordo, que conseguira fechar as portas da anteparaquandoonavioestavaaafundar-se.Paraseugrandeespanto,Pollyficaraasaberquea tripulaçãodaquelegiganteeramenosdedozehomens.Archieexplicara-

lhequeograndemedodospescadoresenquantoestavamnosalva-vidasforaquepassasseumcargueiroenormeequenãoosvisse;queorapazdoradarestivesseadormir,ouquesimplesmentepresumissequeeramumpeixegrande,nenhummotivoparapreocupação.No autocarrodePolly reinavao silêncio, ninguém sabia bemoque esperar.

Pollysentou-seaoladodeKerensae,àsuafrente,iaPatrickeaesposa.–Nãolevasopássaro?–perguntara-lheKerensaemcasa,apósacerimónia.–Hum... – replicara Polly.No fundo, queria terNeil consigo, confortava-a.

Além disso, Tarnie gostava muito dele. Chegaram a um acordo: não para acerimónia,massimparaovelório.Kerensamudaraparaumvestidodeverão,masPollydecidiranãoofazer;achavaqueeradesrespeitoso.–Não–replicouKerensa.–Desrespeitosoénãoiredivertir-se.Eraoqueele

haveriadequerer.–Achoqueelegostariadeaindacáestar–retorquiuPolly.– Sim, a divertir-se numa festa fantástica dada por um idiota – afirmou

Kerensa,olhando-seaoespelhoenquantopassavamaisbatomnoslábios.Pollyabraçou-a.–Obrigadaportodooteuapoio–afirmou.–Qualapoio?–perguntouKerensa.–Eudissequeerasumaidiotaporvires

viverparacá.Penseiquevoltariasaofimdedezdias,achorar,comoteusofácinzento.Aliás...–Oquê?–perguntouPolly.Kerensamexeunotelemóvelemostrou-oaPolly.–Oqueéisto?–perguntou,aoverafotografiadeumacasabonita.–Éumacasa– respondeuKerensa. –Nos... –Pigarreouantesde conseguir

dizerapalavra.–Nossubúrbios.–Eentão?–Estavaapensarcomprá-la,palerma.Paraquandovoltasses.Paradeixaresde

sertãoteimosaevoltaresavivercomigo.Tenhosaudadestuas,parva.Pollyabraçou-anovamente.–Euadoro-te–confessou.–Eusei–replicouKerensa,devolvendooabraço.–Masmesmocomtudoo

queaconteceu,aindaachoqueésmaisfelizaqui.Pollycomeçouachorar.–Oh,meuDeus...– Mas é verdade, não é? – insistiu Kerensa. – Parece que estás a viver

realmente,pelaprimeiravezemváriosanos.

Agarraram-seumaàoutraemfrenteaoespelhoe,poruminstante,voltaramaseradolescentes,asairàsocapadominúsculoquartodePollycomgarrafasdecervejadegengibrecomálcool.–Vamo-nos a eles! – instigouKerensa. –Nãome deixes ficar bêbeda, não

queroteraqueleanãoamericanoàperna.–EnãomedeixestuficarbêbedaedizersemquereralgohorrívelàSelina–

pediuPolly.Kerensaolhou-adesoslaio.–Equetalfazerfestasaamericanoslouros,altoseatraentes?Pollyrevirouosolhos.–Nãoconsigo imaginá-loa ficarbêbedoosuficientepara sequerpensarem

mim.Kerensasorriu.–Masafinal,levasopássaroounão?Neilpiou.–Claroquelevo.Eleatéjáestádelacinho–declarouPolly.FoiavezdeKerensarevirarosolhos.

Os autocarros – eram três – serpentearam pelas colinas douradas e quentes eencaminharam-separaoentardecer.Ouvia-seclaramenteaspessoasacantar,empelomenosumdeles,oquesignificavaquevárioshomenshaviam-sedirigidodiretamenteaopubdepoisdacerimónia.PatrickestavafascinadocomahistóriadeNeil,aindaqueconcordassecomKerensaqueprovavelmentenãodeviaestardelacinho.– É elegante – argumentou Polly. – Ele pode usá-lo para cumprimentar o

anfitriãoedepoiseutiro-o,paraelepoderbrincar.Patricksorriu.–Fantástico.Achoquevamostodosprecisardealgoquenosanime.OdesviosecretoparaapraiadeReubenestavamenossecretonaquelanoite;

estava assinalado com lanternas, que iluminavam a estradinha estreita. Doishomens encorpados com elmos na cabeça estavam à entrada com archotes deumachamaaltaeexpressõespoucoamigáveis.Lançaramumolharaoautocarro,trocaramumaspalavrascomomotoristaedepoisfizeramsinalparaavançar.O longo estradão que dava para a praia estava totalmente iluminado com

tochas em ambos os lados, dando ao início da noite um fulgor empolgante e

vivo.Pollyjáconseguiaouvirosomdetamboresaolonge.OlhounervosaparaKerensa,quejáexibiaoseu«desesperadamentenão-impressionada»olhar.–Vá lá – instigou Polly. – Isto vai ser especial. Acho que tens razão; pelo

Tarnie,temosdeirnaonda.Nãoprecisasdefalarcomele.– É verdade – concordou Kerensa. – Credo, ele deve ter gasto uma

FORTUNA.Alguém com remos luminosos conduziu os autocarros até à zona de

estacionamento,easpessoasforamsaindonervosamentesozinhasouaospares.– Por aqui, por aqui! – gritou uma mulher mandona com um casaco

fluorescente, indicandoocaminhobemiluminadoporvelasatravésdasdunas.Os convidados seguiram por lá, com algumas dasmulheres a tropeçarem nossaltos altos. Polly tirou as sandálias. A areia ainda estava quente debaixo dosdedosdospés,graçasaocalordodia.Eradelicioso.Na última duna, onde finalmente se via a praia, todos pararam e

contemplaram.–Uau!–exclamouKerensa.Todaapraiatinha,sabe-selácomo,lanternasbrancaspenduradas.Opequeno

café ganhara um enorme bar coberto encostado de lado. Havia filas deempregadosdemesavestidosdepretoebrancoàesperacomgrandestabuleirosde bebidas, e a praia já estava cheia dasmais glamorosas e bonitas pessoas –obviamente amigos de Reuben – vestidas com roupas chiques. Conversavamanimadamenteecomeçavamadançar.HaviaumenormepalcodeDJmontado,masnaquelemomentoumabandatocavaumreggaesensual.Osmais incríveisaromasdechurrascopairavamnoar;oambienteeraestupendo.– Caraças – disse um dos habitantes de Polbearne, algo intimidado. Tudo

aquiloeramuitodiferentedoseumundonormaldepubemar.–Bom,aistoéqueeuchamodedespedida–disseoutrapessoa,masninguém

semexeu.Porfim,osempregadosavançaramparalhesservirchampanhe.Reubenpegou

emdoisflutese levou-osaPollyeKerensa.Asduasraparigasespantosamenteencantadorascomquemestavaafalarficaramimediatamenteirritadas.–Olá.Bem-vindasaomeufabulosovelóriodoTarnie.Soumuitoamávelpor

fazê-lo–afirmou,estendendo-lhesosseuscopos.–Costumacompraratençãoassimmuitasvezes?–provocouKerensa.–Para de sermal-educada–ordenouPolly.Deu aReubenumabraço e um

beijo. –OReuben foi umherói, umverdadeiro herói, e esta vai ser amelhordespedidadesempre.Afamíliadelenuncaseesquecerá.

–Eusei–gabou-seReuben.Ainda havia rapazes a fazer surfe na rebentação, onde amaré era alta,mas

quando terminassem, haveriam de aproximar-se, despir os fatos e beber umacerveja.O churrasco era, afinal, uma cova na qual porcos inteiros, esfregadoscomespeciarias,estavamaserassadosedouradoscommestriaemespetos.Dooutroladohaviaumaenormefogueira,acrepitar,paramanteraspessoasquentespelanoitedentro.NobarcobertohaviafotografiasdeTarniependuradas.Pollyparouàfrentedeumadelas,uminstantâneodeleacoserumarede.Foracaptadoexatamentedomesmoânguloemqueelacostumavavê-lodasuacasa;eracomoseestivesseàjanela.Todaapraiaestavailuminada,masoplanodefundomaisdeslumbranteerao

céu,exibindoumluminosopôrdoSolcor-de-rosaeroxo,comosetivessesidoencomendado de propósito. Polly não ficaria surpreendida se fosse obra deReuben.Osempregadoscirculavamcomsushieoutroscanapés,masmalabandafez

um intervalo e o DJ abriu as hostilidades comGet Lucky, Polly e Kerensaperceberamoquelhesapeteciafazer.Dançar foi o seu escape, uma forma de lidar com toda aquela emoção

sufocada. Dançaram até o sol desaparecer, observando os rapazes a fazeracrobacias na água; observandoMuriel, dominimercado, a beber de mais deexcitaçãoporestarnumafesta,atédesabarnumacadeiracomumacanecadecháque alguém amavelmente lhe levara; a ver Archie e a esposa timidamente àparte,ligeiramenteassoberbadosemuitopróximosumdooutro;averosfilhosdeJohnacorrer,aguincharearir,perseguindo-seumaooutrocompistolasdeáguaquepareciamteraparecidodonada.Asduasamigasconversaram,riram,fizerammilharesdeamigosedançaram

comrapazes,umacomaoutraousozinhas.Pollysentiaosombrosmaisleves,asfacesdoíam-lhedetantorirnomeiodetantaloucura,depésdescalços,comovestidoaesvoaçaràsuavolta.Eracomosetodasaspessoasquealiestavam–osque haviam enganado amorte, a calamidade na sua comunidade – estivessemdestinadasacomemoraravida,afelicidadeeapurabelezadomundo,eissofezPollydançarerodopiaraindamais.Huckle bebericava a sua cerveja lentamente, observando-a. A festa estava

cheiadejovensbonitas–ahabitualmultidãodealuguerdeReuben:parasitasaviveràcustadefundosdedepósitos,modelosesemiprofissionais–maselenãoestava interessado em nenhuma delas, embora percebesse pelos olhares, pelasconversas de flirt e pela dança de algumas das raparigas que gostariam de

transformaranoiteemalgomais.Huckletinhaummetroenoventadealtura,eralouro de olhos azuis; conhecer raparigas nunca fora um problema para ele.Conhecerumaraparigaquenãolhepartissecoração,poroutrolado...VoltouapensaremPollyachorarnomolhenodiaemqueTarnienãoregressaraacasaebebeumasumgolelentodasuacerveja.

Pollynãoconseguiadizeroquãotardeseria,masasestrelashaviammudadodeposição. A festa não estava a esmorecer, contudo; estava até a tornar-semaisagitada, o bar a servirmais bebidas, a comida ainda a circular, cada vezmaispessoasadançar, incluindoumasuperfamosaboysbandquederaumconcertoemStIvesequepassaraporaliacaminhodeLondres.Derepente,oDJdesligouasuaaparelhagemeReubenpegounomicrofone.

Ouviu-seumaplausogeneralizado,ealgumasdasraparigasabriramcaminhoatéláàfrenteparaseasseguraremdequeeleasviasaapoiarem-no.–Então,sim,eusei,amelhorfestadetodosostempos,certo?–exclamouele,

descontraidamente.– A sério, ele é o KanyeWest sem o ladomodesto e humilde – comentou

Kerensa,comdesdémejáaandardelado.Asuapelebrilhava,detantodançar,eamaquilhagemesborrataraligeiramente,masassimficavaaindamaiscativante,pensouPolly,maisjovememenosproduzida.–MasestamosaquiparahomenagearonossoirmãoTarnieetodososnossos

companheirosqueregressaramacasa.– Obrigada, Reuben – gritou uma das raparigas. Reuben fez um sorriso

dengoso.Kerensafezumgestodeimpaciência.–Asério!–Elerealmentefezumacoisaespantosa–admitiuPolly.–Vaiseraindamaisespantosaquandoaspessoasdeixaremdefalarnisso.–Então...Umpescadordeumdosoutrosbarcospôs-sedepé.–Oh,não–suspirouKerensaque,percebeuPolly,estavamaisbêbadadoque

pensava.–ElevaicantaroMyWay,oualgoparecido.Opescadoravançouatéaomicrofoneeolhounervosoparaamultidão.Todos

aplaudiram. Os outros pescadores avançaram também e colocaram-se ao seulado. Jayden estava lá numa cadeira de rodas, magro e ansioso, mas também

incrivelmentefelizporestarali.–Hum–começouohomem.–Eusóqueriaagradecer.AoReuben.Eatodos

osbarcosquesefizeramaomarparairemànossaprocura.Amultidãoaplaudiueuforicamente.–Aosincansáveisserviçosdeemergência.Um grupo de condutores de ambulâncias muito bêbados acenou todo

contente.–Atodososque...–Asuavozembargou-seligeiramenteeopescadorergueu

oseucopo.–Atodososquenuncadesistiramdenós.–Atodososquenuncadesistiram–disseramemcoroosconvidados.Jayden foi levado até à frente e pigarreou, ansioso. À exceção das ondas

distantes,fez-sesilêncioabsoluto.–Eparadizeradeusaonossorapaz,aquificamalgumaspalavras–afirmou,

remexendo desajeitadamente numa folha de papel – de Robert Burns. É umpoeta.Jaydenlevantouamãonadireçãodomar.AquijazemdescansoumhomemhonestoComoDeusoabençooucomasuaimagem;Amigodohomem,amigodaverdade,Amigodotempoeguiadosjovens;Poucoscoraçõescomooseu,acalentadospelavirtude,Poucasmentescomconhecimentotãoinformado;Seexisteoutromundo,eleviveembem-aventurança;Senão,deuoseumelhorneste.Aseguir,umdospescadores tocouumacordenasuaguitarra,eos restantes

avançaram. Polly não reconheceu a canção,mas era óbvio que toda a gente aconhecia,poiscomeçaramacantar.QuemmederaserpescadorVogarpelosmaresLongedeterraEdassuasamargasmemóriasLançaraminhadocelinhaComabandonoeamorSemumtetoapesar-me

SóocéuestreladoláemcimaLuznaminhamenteEtunosmeusbraçosWoohoo!Polly sentiuKerensa pegar-lhe namão enquanto os pescadores, ora em tom

forte, ora em tom baixo, cantavam mais dois versos, energicamenteacompanhados por todos os outros nas últimas frases. Ao terminarem, umaminúsculaluzpenetrantepercorreuohorizonte.–Olha–dissePolly,espantadaporsertãotardeeporafestaterduradotanto

tempo.–Jáédemanhã.Quando as últimas notas da guitarra desvaneceram, os pescadores seguiram

alguém que parecia estar a organizar tudo, que lhes acenou para descerem dopalco e para se encaminharem para a beira da água, onde estavam dezasseislanternas chinesas – o número de homens que haviam regressado domar – eoutra maior. Dois homens ajudaram Jayden a levantar-se da cadeira de rodasenquantoaslanternaseramacesas,eospescadoreslevantaram-nasedeixaram-nassubirbemalto,atéao romperdaaurora, iluminandoasúltimasestrelasnocéu.–Agradecemosaomar–declarouReuben,falandocomsimplicidadeumavez

navida–portrazerasnossasalmasatécasa.Eporcuidardonossoirmão.Ficaram todos a observar os raios de luz flutuantes a elevarem-se cada vez

maissobreasondas.Fez-seumsilênciodereverênciaduranteuminstante,masdepoistodosirromperamnumaexplosãodeaplausosevivas.– E agora: DIVIRTAM-SE À GRANDE! – exclamou Reuben. – É uma

ordem!ODJ pôs logo a tocar um enorme êxito dançante de verão sobre desejar a

alguémumbomdia,ecomotinhamdeverosolanascer,etodosdesataramadançar novamente, a abraçarem-se e a comentar como tudo era espetacular,sobretudoquandooDJpassouparaPraiseYou.Os jovens pescadores foram transformados em celebridades pelo grupo de

Londres. Polly passou por Jayden na sua cadeira de rodas. Ainda não tiveraoportunidade de falar com ele; sabia que ele tinha uma enfermeira que omantinhadebaixodeolhorígido–nemsequerdeviatersaídodohospital,masReuben intercedera para que abrissem uma exceção. Era um caso especial.Estavasentado juntoaumaraparigadeslumbrantedecabeloescuroeenormesolhoscastanhosqueanuíasimpaticamenteenquantoeledescreviaasuaterrível

batalhaerelatavacomoforacorajosonaiminênciadamorte.Elaafagava-lheobraço repetidamente, desolada. Polly cruzou o olhar com ele e ele fez-lhe umenormepiscardeolho.Elasorriuconsigomesma.No café, uma equipa de chefes de cozinha de elite servia café e bacon

enroladocomumcheirodelicioso,acompanhadodeBuck’sFizz.Pollyserviu-sedopequeno-almoço e sentou-se numa rocha junto aHuckle, que observavaospescadores,rodeadosdeamigosefamiliares,aexplodirdefelicidade.–Olá–disseele,contentedeaver.Muitocontente.–Estáagostardafesta?– Está fantástica – afirmou Polly. Apercebeu-se subitamente de que estava

esfomeada;nãotiveramuitotempoparacomernaúltimasemana.–Estãotodosadivertir-seimenso.Hucklefezoseulentosorrisodescontraído.–EoHuckle?–perguntouela.–Claro–respondeuele.–Eudivirto-mesempre.Naverdade,nãoparecianadafeliz.Pollyolhouparaele.Osprimeirosraiosde

solcomeçavamaespalhar-se.UmdelestocounocabelodeHuckle,tornando-odourado.Elapensouemtudooquesouberasobreele,eemcomoestavacertadequeforaelequeobrigadaReubenasairnovamentecomobarco.Reuben,claro,nãomencionaranada.–Asério?–insistiuela.–Bom, digamos que – replicou ele, olhando para omar–, se há sítiomais

bonitoparaseestartriste,nãoconheço.Polly pousou o seuBuck’s Fizz e virou-se para ele.Os seus intensos olhos

azuisfitaram-na,imperscrutáveis,comosempre.Bolas,pensouPolly,derepente.Nãotenhonadaaperder.Jáarriscaratudoao

vir viver para ali; aomudar a sua vida, ao fazer pão. Cada risco que correracompensaramuitomaisdoquesetivesseficadoemPlymouth,aviverumavidaestável num pequeno apartamento com um pequeno emprego e um pequenocrédito à habitação. Todos os passos rumo ao desconhecido... Bom. Os seuspensamentosvoarambrevementeatéTarnie.Bom,quasetodosospassosAbanouacabeça.Estavaapensardemasiadoemtudo.–Eu...–tentoudizer.Tinhaasmãosatremer.Afinal,passaraanoiteacordada,

pensou.Muita bebida, pouca comida. Na areia, os rapazes das ambulâncias eraparigasestavamadespir-seeacorreraosgritosparaaágua.Cincosegundosdepois,pareciaquetodaagenteestavaaimitá-los.Haviaumamassadepessoasanadareachapinhar.Pollysorriuperanteaquelaexuberância.Oseucantinhodebaixodaspalmeiras ficou subitamentemuitomais tranquiloe isolado, ainda

queodiaestivessemaisclaroacadasegundo.–Eudevia...–Pollyesboçouumsorriso.–Parecequeestáa falaraindamaisdevagardoqueeu–comentouHuckle,

mas ela notou um súbito tremer na sua boca, ou estaria a imaginar coisas?Endireitou-se.–Eudeviaterquerido...Eudeviaterqueridotentarfazê-lofeliz–confessou

ela. Saiu-lhe de rajada, esmorecendo até ficar um sussurro, mas ela sabia, aoolhar para ele comos olhos baixos, que ele percebia. Ele inspirou profunda elentamente.Derepente,oquecomeçaracomumcaprichoiriaserterrivelmenteimportanteparaelaouvir.–Polly–disseele.–Aformasuaveedocecomoeledisseoseunomefê-la

sentir que estava prestes a sofrer umadesilusão.Que ele iria pedir desculpa eexplicar–comojáofizera–quenãoestavanomercado,queCandiceodeixaramuitosensível,jáhaviamfaladosobreisso.Pollysentiuotoquedasuaenormemãoásperaporbaixodoqueixo,levantando-oparaqueelaoolhassenosolhos.Amúsicaeossonsdosnadadoreseufóricospareciamdesvanecer-se.Nãotinhaconsciênciadenada,apenasdosseusolhosazuisintensos,doseurostoatraente.Elepareciaestaràprocuradealgumacoisa;pareciaolharparaelacomonuncaninguém fizera: ávido, curioso, mas também algo mais. Como se finalmentetivesseencontradooqueprocurava.Porumsegundo–umdelicioso segundo–omundoparouePollypercebeu

subitamentequeeleiabeijá-la.Duranteesselongomomento,soubequeaquelebeijo seria tudoaquilocomquesempre sonhara, tudooque semprequisera, eque depois disso, acontecesse o que acontecesse, talvez nunca mais quisessebeijarmaisninguém.Aforçadeleapanhou-adesurpresa;elaesperavaqueobeijofossecarinhoso,

hesitante, tãodescontraídocomoele,maselebeijou-aferozmente,avidamente,comoseestivesseaafogar-seeelafosseasuaúnicaesperançadesalvação.

CapítuloVinteeQuatroPollynão soubequanto tempodurouobeijo.Não sabiaonde estavaouoqueestavaafazer,apenasquetodooseucorposaltoucomosetivesserecebidoumchoque elétrico mal os seus lábios se encontraram; que imediatamente, semsequerpensar,estavaaresponderaHuckle,todooseuserconcentradonassuasbocasenassuasmãoseasuaânsiadesesperadaerepentinadeencostarocorpoaodele,deestarpertodele,deestardebaixodasuacamisaecoladaàsuapele,comorostoenterradonoseupeitoearespirarnoseuestonteantecheirodoce.Sentiu-seávida,abandonada,completamenteesquecidadasoutraspessoas.Entãoouviualguémgritaroseunome.–Vai,Polly!Era um dos pescadores, o que tocara guitarra; Polly não sabia o seu nome,

estava bêbado e a gritar, e de repente ela apercebeu-se do que estava a fazer,ondeeemquecircunstâncias.Eraerrado.Afastou-sehorrorizada.–Oquefoi?–perguntouHuckle,meioembriagadodedesejo.Ocabelocaía-

lhepelatesta,osolhosestavamvidrados.Pollyfitou-o.Eralindo.Mas...–Eunãoposso–afirmouela.–Não...OsolhosdeHucklecintilaram.–Estouaver–respondeu.Deviateradivinhado:elaaindasentiaalgumacoisa

porTarnie.Pollyqueriaexplicar-lhequeascircunstânciaseramerradas–enãosóerradas,

maspublicamenteerradas,àfrentedetodos.Masorostodelejásefecharacomoumapedra.–Querdizer...Aquinão.–Não–concordouHuckle.–Claroquenão,minhasenhora.Huckleolhouparaorelógio.–Estáaficartarde.Oucedo.Umacoisaououtra.Achoqueémelhorvoltar...Pollyanuiu,desolada.Nãoqueriaqueelefosseembora,masnãolheparecia

adequado...Detodo.–Eutambém–afirmouela.Dooutroladodapraia,aspessoasestavamestendidasemtornodafogueira,a

conversar,adormireacurtir.–Hum...Posso...ver-tedepois?– Estamos num meio pequeno – declarou Huckle, de olhos fixos no mar

cintilante.–Desculpa–lamentouPolly.Huckleencolheuosombros.Elaolhouparaele,desesperadaporvoltaravero

seu sorriso delicado, ou a sua gargalhada sonora, mas claro que nada dissoaconteceu.Eletransformara-senumaestátua.Pollyolhouparaelemaisumavezedepoisvirou-seecomeçouadescerapraia.–Porra–exclamouHuckleparasimesmo,enquantoelaseafastava.–Porra,

porra,porra.

CapítuloVinteeCincoPolly atravessou a praia aos tropeções com um enorme nó na garganta. Nãoconseguiureconhecerqualquerrosto;tudoeraumamancha.Alguémgritouoseunome,masnãoconseguiuounãoquisverquemera.Encaminhou-separaapistade dança para procurar os sapatos e talvez a carteira, mas não conseguiu verKerensaempartealguma.Nãoestavanaáguanememnenhumadasbelíssimascabanas brancas demadeira que Reubenmontara para que grupos de pessoaspudessemconversartranquilamente.Acabouporencontrá-laatrásdazonadocafé–basicamenteondeestavamos

caixotes de lixo. Reconheceu o vestido fúchsia antes de perceber o que sepassava.–Kerensa!–gritouela.–Anda,vamosembora.Quandoespreitouumpoucomaisperto,percebeuqueKerensaestavaagarrada

aumadolescente.Umdosinstrutoresdesurfe,pensouPolly;sópodiaser.Então,piscounovamenteosolhosepercebeuque...–PoramordeDeus–exclamou,sentindoqueosseusdramasnunca tinham

primaziasobreosdeKerensa.Kerensasoltou-separarespirar.Oseurostoestavacastanho-avermelhadoeo

vestido completamente aberto à frente. Parecia muito agitada e claramenteexcitada.

–Olá–disseReuben.–Oqueéquevocêsestãoafazer?Vocêsodeiam-se!–Eubeijomuitobem–explicouReuben.–Eissotudo.PollyolhouparaKerensaconsternada.– É verdade – confirmou Kerensa, como que a desculpar-se. O seu batom

estavatodoborratadoeelatinhaumarcompletamentelascivo.Pollyrevirouosolhos.–Asério?Ambosolharamparaela.–Hum–afirmou,esfregandoopescoço.–Euiaagoraembora.–Estábem–respondeuKerensa.Nãosemexeu.–Euiaparacasa...contigo.Kerensafranziuosobrolho.Reubencolocouumamãodeproprietárionasua

coxa.– Ainda não vou para casa – explicou Kerensa. – Vou fazer sexo com o

Reuben.–Credo,vocêsosdoisjuntossãotãomauscomoseparados.–Pollyestavaa

fazerumesforçoenormepornãochorar.–OHucklenãopodelevar-teacasa?Pollyengasgou-seimediatamente.–Nãofazmal–conseguiu,porfim,dizer.–Eupossoapanharoautocarro.–Ótimo–respondeuReuben,voltando-separaKerensa.–Vemcomigoatéao

meuquartogigante.Eutenhaumaenorme...–Okay,atélogo–interrompeuPolly.–...cama–terminouReuben.

Polly caminhou até ao sítio onde deixaraNeil a comer restos de sanduíche.Estavanumapoçadeáguacomarculpado.–Neil– chamouPolly, assustada, e olhandopara a sujidade ao ladodele. –

Ficasteenjoado?Neilpiouesaltou-lheparaosbraços.–Ai, nem consigo cuidar domeumaldito papagaio-do-mar.Não comas até

ficaresmaldisposto,fofinho.–Ip–respondeuNeil.Embalando-o, Polly seguiu os grupos de pessoas que se dirigiam, cansadas,

paraosautocarros.Encontrouumbancoduplonapartedetrás,certificou-sedequeNeilestavaconfortávelnasuamochila,esvaziouaareiadossapatose,quaselogodeseguida,antesdetertempoparapensar,adormeceu.

O dia seguinte, domingo, foi horrível. Polly dormiu até às onze da manhã,acordouelembrou-sedeHuckle.Ondeéquetinhaacabeça?Porquenãopodiater esperado, porque não fora para um sítio onde os pais de Tarnie nãoestivessem, por exemplo? E porque é que ele não compreendia? Pensou naexpressãoglaciardeleelembrou-senovamentedecomoeleerafechadoquandoseconheceram,comodemoraraalgumtempoachegaraorapazdocequetinhaláno fundo.Polly suspirou. Ia ligar-lhe.Não, ligaria aKerensa para perguntar oquefazer.Semsurpresa,nãoconseguiufalarcomKerensa.Tentounãoterciúmesdasua

glamorosa amiga, e claro que não tinha omenor interesse emReuben,mas aideiadeKerensapassarodiatodonumacamaluxuosaafazerexatamenteoqueelatinhatantavontadedefazereraumpoucodifícildeengolir.Ia ligaraHuckle,masdepois franziuosobrolhoehesitou.Nãoqueriadara

entender que estava a atirar-se a ele. Em vez disso, atirou-se ao trabalho,bebendoimensossumosdelaranjaepreparandoassuasmisturasdeleveduraefermentoparaasemanaqueseseguia.Apequenavilaestavaapinhada.Algunsveraneantes foramaté àpadaria ebateramna janela,masela abanouacabeçacom veemência. Precisava, de facto, de ajuda na loja, pensou; se não seacautelasse, transformar-se-ia numa Mrs. Manse. Repreendeu-se por ter tantapenadesiprópriaeconcentrou-senapreparaçãodetrançasdepãodecorativasparapendurarnaporta;háséculosqueoqueriafazer,eagora tinhafinalmentetempoeenergia,pensou,furiosa,masninguémparalhedarvalor.Fezopãocomtodo o amor e carinho até ficar cansada e foi para a cama novamente cedo,irritadacomossonsalegresdosveraneantesdoladodeforadasuajanela.Foiacordadaàsdezdanoitepelo telemóvelavibrar.Eraumamensagemde

Huckle.Levantou-sedeumsalto,bemdespertaedeliciada.Teriaelepercebidoquecometeraumgrandeerro?Comumamãotremelicante,pegounotelemóvel.Abriuamensagemcuidadosamente,inspirando.Desculpaincomodar-te,maspodesmostrarocaminhoaoapicultor?Bom,pensouela,umbocadinhoformal,mashaviamvoltadoatratar-secomo

amigos.Poderiacomeçarapartirdali,não?Pensounovamentenasuavidadedos

lábiosdele,naasperezadapele,noseusabordoce.Porquê,ondevais?,respondeuela.Quandoviuarespostadele,apeteceu-lheatirarotelemóvelpeloar.VouatéSavannahduranteunstempos.Pollyficouaolharparaoecrã,meioarir,meioachorar, incrédula.Nãoera

umaviagemplaneada,poisnão?Sefosse,decertezaqueeleateriamencionado.Eteriatratadodetudocomomalditoapicultor.Não, aquilo devia ter sido uma decisão de última hora. Era, reconheceu

furiosa, exatamente o que ele fizera aquando da sua última relação que nãoresultara.Fugiradopaís.Incrível.Pollynemqueriaacreditar.Fitouotelemóvel,atremer,elevantouasmãos.Poramordasanta!

Huckleficaramaisafetadopelosalvamentodoquedeixavatransparecer.Vierado outro lado do mundo à procura de segurança, e a precariedade da vidanaquelepequenorochedodeixara-oprofundamenteabalado.Aacrescentaraisso,haviaoquesepassaraentreeleePolly.Demoraratanto

tempoaabrir-seapósarelaçãocomCandice,tantotempoasuperarasituaçãoea sarar. E no instante em que conseguiu, conheceu alguém que pensava sersegura,simpáticaecarinhosa,etambémelaestavafixadanoutrapessoa.Pensouqueestariamaisseguroemcasa.Asuaexperiênciafalhara.Nãoqueria

ficaràespera,versempreosmesmosrostosdiaapósdia.Precisavadesairdali.Quasesempensar,fezumsacodefimdesemanaeapanhouoprimeirocomboioparaLondres.

Diz-lheparapassarpelapadaria,acabouporescreverPolly.Huckleficouaolharparaotelemóvel.Muitobem,aliestavaaprovadequeo

que quer que ele tivesse pensado que existia entre eles não era absolutamentenada,nadareal.Elamalparecialembrar-se...Outalveznãoseimportasse.Fitouo telemóvel incrédulo na sala de espera do aeroporto, cheia de homens denegóciossonolentos.Eraestaasuavida,então?Sómulheresquegostavammaisdeoutroshomens?Talvezcomoaquelegordoaliaofundoeoseurelógiodedezmil dólares, a beber vodca ameio da tarde.Ou aquele homem de negócios agritaraotelemóvel.

Obrigado.Ésumaverdadeiraamiga,respondeuele,numtomalgoamargo.PollyficouaolharparaamensagemdeHuckledurantemuitotempo.Parecia-

lhe que escolhera cuidadosamente cada palavra, para não insinuar segundossentidos; ela não passava de uma amiga, alguém que estava a jeito nummomento de dificuldades organizacionais. Ele estava a desiludi-la a pouco epouco.Pollysentou-senacamaechorarlágrimasamargas.Neilbebeu-as,paralhemostrarquesepreocupava.

Namanhã seguinte, abriu apadaria comohabitualmente.Aspessoas andavamatarefadaseestavamprontasparacomerqualquercoisa;nestaaltura,overãojáestavanoauge,egraçasàcombinaçãoda famadavilaedomagnífico tempo,adivinhava-seumanoexcecionalparaoturismo.Pollypensouquetalvezfosseboa ideiacolocaralgumasmesasecadeirasde ferronaestrada juntoaoporto,paraqueaspessoaspudessemsentar-sea tomaroseucaféeacomerqualquercoisa.Faziatodoosentido,masseriapermitido?Edariacontadorecado?Comoqueemrespostaàssuasquestões,apareceramduasfigurasàporta.Era

Mrs.ManseeJayden,acoxearmasemfrancarecuperação.–Esterapazprecisadeemprego–começouGillian,diretaaoassunto.– Não quero voltar para a pesca – revelou ele, a sorrir. – Sabia que as

raparigadasADORAMperguntaroquesepassoucomaminhaperna?–Tinhaasfacesrosadasmasfelizes.–Asério?–respondeuPolly.Eradifícilnãosorriraovê-lonovamentedepée

adeslocar-sesozinho.–Comovaiarecuperação?–Querver?–Fazimpressão?– Claro que não – respondeuMrs. Manse. – Não lhe trago um rapaz para

trabalharaquicomumaferidaaberta.–Aindabem!–exclamouPolly.Jaydenmostrouaperna.Tinhaumenormepedaçosalientedabarrigadaperna

eumenxertodepelebrancaporbaixodaligadura.–Istoénojento–comentouPolly.–Deviatê-lavistoantes–gabou-seJayden.–Pareciaumapeçadecarnedo

talho.Via-seoossoetudo.Atéfizumaenfermeiradesmaiar.–Boa.Desculpe,querqueeufaçaoquê?–perguntouPolly,confusa.Mrs.Mansearfoudeimpaciência.

–Parece-mequetalvezprecisedeajudaporaqui.Pollypestanejoueentãopercebeu.–Ah.–OlhoumuitosériaparaJayden.–Sabestrabalhar,jovem?–Andeinosbarcosbastantetempo–respondeuJayden,oquePollyachouque

faziasentido.–Consigoamanharduzentospeixesporhora.Achoquetalvezsejacapazdeajudarcomopão.Estavadesafiadoreumpouconervoso.Pollysentiupenadele.–Queresmesmoesteemprego,Jayden?Derepente,orostodelemostrouacriançaqueprovavelmentefora.Haviaum

indíciodelágrimasnosolhos.–Aqui não há nada – confessou. –Eu não quero sair daqui. Por favor, por

favor,porfavor,nãomefaçavoltarparaomar.Nãoconsigo.Disseaúltimafrasenumtommonocórdico,deolhospostosnochão,ePolly

percebeuquelhecustaradizeraquilo.OlhouparaMrs.Manse,queanuiubruscamente.–Estábem–concordouPolly.–Defacto,precisodeajuda.Edemaisstock.E

tupodesvarrer.Sabesvarrer?–Háanosquevarrotripasdepeixe.–Éscapazdelevantar-tecedo?–Nomeuúltimoempregonuncaiaàcama.Pollysorriu.–Desdequenãomedevoresostocktodo,achoqueistoatépodecorrerbem.Estendeuamão.–Masnadadegraçolas,okay?Bem,podesdizerumapiadaaosclientes,mas

MistressManseéatuachefeeeuatuasegundachefe,estábem?Jaydenolhouparaelamaravilhadoedepoisexplodiu,radiante.– Sim! Claro! Sim! Não vai arrepender-se. – O seu rosto transformara-se

completamente.–Possocomeçarjá?Deixe-mevarrerqualquercoisa.–Estábem,eudeixo–afirmouPolly,sorrindo-lhe.–Etambémvouensinar-te

atrabalharamassa.E,claro,MistressManse,tudooqueelepuderfazerporsi,irbuscarcoisasecarregar,quandoestivertotalmentecurado...–Eucámearranjo–replicouMrs.Manse,bruscamente.Naverdade,aoutra

padariaestavaagoraabertamuitomenoshoras,ePollyjáviramaisdoqueumavez pessoas a olharem, confusas, para os seus armários vazios. A PequenaPadaria deBeachStreet tinha lucro suficiente que permitia aGillian trabalharmenos,oqueparaPollyeraótimo.Nãoaajudavapropriamenteadecidirquandodeveriapedirumaumento,masestavademasiadoaliviadaporonegócioestara

correr bem para se queixar naquele momento. Além disso, as outras lojas deMountPolbearnesóvendiamfishandchips,baldesepás.Nãoteriamuitoondegastarodinheiro.–Bom,podescomeçar.PollymostroualojaaJayden.PediraaChrisqueimprimissealgunsaventais

nomesmo tipode letracomquepintaraonomeda lojanaparede,eem trocadistribuíacartõesqueoapresentavamcomoautordeplacas,comumaimagemda Pequena Padaria de Beach Street. Alguns já haviam sido levados porveraneanteseturistas.PintarobjetosaoinvésdefazerdesignonlinepoderiaseresseocaminhoparaChris,pensouela.Pelomenos,tinhaessaesperança.PollymostrouaJaydenazonadapreparaçãodopão.–Uau–comentouele,aovê-laalimentarograndefornoalenha,aespreitar

uma fornada que estava a crescer e que tinha um aroma divinal, a cheirar alevedura, a salpicar um pouco de leite numa fornada fresca. – Isto envolvemuitascoisas.Pollyolhou-odesoslaio.–Oqueachavas,queeu ia simplesmentepara as traseirasda loja comuma

canadepescaeapanhavapão?Jaydenficouconstrangido.–Issoéumapiada?Daquelasquecostumadizer?Secalharvaiterdemedizer

seéumapiada,paraeupoderrir.–Nãotensderir–replicouPolly.–Comoestáa tuaperna?Quandoestarás

emcondiçõesdelevantarpesos?–Jáconsigo–retorquiuJayden.–Basicamentecontinuoateraligadurapara

impressionarasmiúdas.–Ótimo–replicouPolly.–Okay,demanhã...–Subitamentedeu-secontade

comoeraagradávelpoderdelegaraquelatarefa.–Demanhãprecisoquetragasosnovossacosdefarinhadarua.Depois,limpaopóevarre.Elimpaosfornos...mas só asmigalhas; deixa a pátina. É aquela coisa ligeiramente gordurosa. Ébomparaopão.–Asério?Pollyolhouparaele.–Gostasdomeupão?–Gosto–respondeuJayden.– Então vou pôr-te a amassá-lo...MeuDeus, isso significa que posso fazer

umapausa.Edepoistupodesfazerumapausa!Jayden,istovaiserespetacular.Jaydensorriurasgadamente.

–Epossoficarcádentroodiatodo?–Odiatodo–prometeuPolly.–Esócomeçoàscincoemeia?–Exato.Jaydensorriudefelicidade.

Aprimeiramanhãnãocorreuàsmilmaravilhas:Jaydennãosabiaondeestavamas coisas, os nomes dos diferentes tipos de pão nem trabalhar com a caixaregistadora. Além disso, todos os clientes da zona que foram à padaria, quenaquelaalturajáeraamaiorpartedeles,detinham-sedurantevinteminutosparaouvirem um relato completo e detalhado do acidente de Jayden, paraconversaremsobreoseunovoemprego,osnervosdasuapobremãeedassuasperspetivasparao futuro.Pollyacaboupormandá-loparaumcantoconversarenquantoatendiaosclientes.Elepodiaserútildeoutrasformas.JaydenestavaaesfregarochãoquandoPollyfinalmentereparounumhomem

estranhojuntoàporta.–Possoajudar?–perguntouela.O homem, que tinha manchas na pele do pescoço e um cabelo escuro

ligeiramenteoleosoeestavavestidodefatoegravata,pigarreoueducadamente.–Vimporcausadasabelhas...Poruminstante,Pollynãopercebeudoqueeleestavaafalar.Então,lembrou-

se.–Ah,sim.OHu...Apercebeu-se, furiosa, de que o simples facto de dizer o nome dele a fazia

sentir-semal.–Euestavaàsuaespera–afirmouela.–Aliás,deixe-meir lavarasmãos–

Jayden, lava também asmãos – ordenou ela, rapidamente. –Aliás, lava-as dequinzeemquinzeminutos.–Certíssimo–respondeuJayden,queestavaacantarolarentredentesenquanto

esfregavaochãodacozinha.Aeste ritmo,aPequenaPadariadeBeachStreetiriaficarumbrinco.–Nósfechamosàsduas–dissePollyaohomem.–Podeesperaratélá?Ohomemanuiualgoembaraçado,comamaçãdeadãoa saltarparacimae

parabaixo.Depois,saiuesentou-senomurodoporto,aolharparaoar.JaydenePollyconseguiamvê-lodaloja.Erabastantepeculiar.

–Elenãoparecenadaapicultor–comentouJayden.–Equeaspetotemumapicultor?–perguntouPolly,irritadaporquepensaraa

mesmacoisa.– Não sei – respondeu Jayden. –Mas este é que não é. Posso comer uma

sanduíche?–Podes–autorizouPolly.–Todososdiaspodescomerumasanduícheelevar

umpãograndeparaatuamãe,masnãomais,estábem?Ésumrapazcrescido,eláseiaolucro.Jaydenanuiueatirou-seaumcroissantdequeijo.–Nuncaheideficarfartodestes–afirmou,todosatisfeito.Pollysorriu.–Sequiseres,possomostrar-tecomosefazem.Jaydenarregalouosolhos.–Estáabrincar!–Masdevescomermuitafrutaelegumes,também–recomendouPolly.

Às13h45Pollyjánãoaguentavamais.DeixouJaydensozinhoavenderospãesque ainda restavam e a arrumar a loja. Podia levar a caixa registadora aMrs.Manseparaelafazerascontas.NãoacreditavaqueJaydenroubasseoquequerque fosse,masmesmoque tivesse inclinaçãopara algumamaldade, a simplesmençãodaspalavras«MistressManse»pareciaterumefeitoaterrorizante.Pollyfoitercomohomem.–Chamo-mePollyWaterford–afirmouela,estendendoamão.–David–replicouele.–DaveMarsden.Tinhaumapronúncialocalcarregadaeamãoalgosuada.Pareciaestarmuito

nervoso.–Prazer,DaveMarsden–cumprimentouPolly.–Certo,aindatemosdeandar

algumtempoatéàcasadoHu...Maséaúnicaforma,anãoserquetenhaoutromeiodetransporte.Daveencolheuosombros.–Não,vimdeautocarro.–Muitobem,então,vamos.Pollydeu-lheumagarrafadeágua–levaraduas,prevendo,ebem,queelenão

trouxera água – e fizeram-se ao caminho através da calçada, passando porestradasdecampoemdireçãoaoentroncamentoquedavaparaacasadeHuckle.

Dave,noseufato,começouatranspirarquasedeimediato.Odiaestavaquente.–Então–começouPolly,depoisdecaminharemtrintaminutosemsilêncio–,

comocomeçouatrabalharcomabelhas?Fez-senovamentesilêncio.PollyolhoudeladoparaDave.Estavacoradoatéà

pontadasorelhas.–Hum...–murmurouele.–Como?Já haviam saído da estrada e seguiampelo caminho à sombra em direção à

pequenacasanobosque.–Eunão–Davepigarreou.–Naverdade,nãopasseimutotempocom...Pollylançou-lheumolharperspicaz.–ODavefoicontratadoparatratardeabelhas.Sabedisse,certo?Davepareciaqueiacomeçarachorar.–Sim–murmurou,deolhospostosnossapatos,queestavamaficarcobertos

delamaedasprimeirasfolhascaídas.Jáestavamquaseachegaràcasa.–MasoDavesabetratardeabelhas?–insistiuPolly.–Hum,vialgumascoisasnaInternet.–Como?–exclamouPolly.Daveengoliuemseco.Nuncatranspiraratanto.– Peço desculpa – declarou, com ar de criança de cinco anos. – Desculpe.

Precisomesmodestetrabalho.Aagênciadeempregonuncatinhanadaatéqueperguntaramsehaviaalguémcomexperiênciaemabelhase...Nãoseioquemepassoupelacabeça.Euestava...Esfregouosolhos.–Aminhanamoradaestágrávida–revelou,emtombaixo.–Eusó...Pollyabanouacabeça.–Deusdocéu–exclamouela.–Imaginequeprecisavamdeumapessoana

reservadetigres...Daveolhouparaela,surpreendidopornãoestarfuriosacomele.–Vailigaràagência?–balbuciouele.–Équeelesriscam-meparasempre.–ODavesabeALGUMACOISAsobreabelhas?–perguntouPollyeabriuo

portão.–Comolhedisse, lialgumascoisasnaInternet– respondeuDave.–Mas já

meesquecidetudo.–Esqueceu?–comentouPolly.PensounanoitequepassaraalicomHuckle,

tãoàvontadeumcomooutro.Tãofelizes.Nessanoiteelemostrara-lhetudooqueelaprecisavadesaber,naverdade.

Ojardim,talvezumpoucomaismaltratadodoquenaúltimavezemquePollyali estivera, graças à chuva intensa das tempestades e depois ao sol forte,desabrochara numa desordem de fim de primavera; era quase demasiado.Grandes brincos-de-princesa e rosas cor-de-rosa, com as pétalas espalhadas,cresciamdesordenadosàvoltados troncosdasárvores;cadaquadradodeervaestava recheado de margaridas e rainhas-dos-prados, e era agora menos umrelvado e mais um prado. Havia até algumas buganvílias, berrantes nos seusrosas e roxos, e as macieiras e cerejeiras estavam carregadas de fruta, comalgumaspeçasjácaídasjuntoàsraízes.Pollynãoresistiuaprovarumacereja,maserampequenaseamargas.Ideaisparacompota,pensou.Compotadecerejaamargaeumbompãorústico.Junto ao regato, as colmeias zumbiam de excitação. Imensas abelhas

pousavamelevantavamdasflores,easuavibraçãopairavanoar.Davejánãoestavacorado–ficarapálido.–MeuDeus–comentou.–Sãograndes,nãosão?Pollyvoltou-separaoencarar.–Estáabrincarcomigo?Temmedodeabelhas?–Massãomesmoabelhas?–perguntouele,recuandopoucoapouco.–Mais

parecemvespões.Querdizer,hápessoasquemorrempicadasporabelhas,nãohá?Pollyfitou-o.– Vamos vestir os fatos – declarou ela, com firmeza. – Venha, estão no

barracão.O barracão estava aberto, como ela sabia. Só um ladrão particularmente

invulgareempenhadosedariaaotrabalhodeiracasadeHuckle.Daveolhouparaosfatospenduradoseesfregounovamenteapartedetrásdo

pescoço.–Oquefoi?–perguntouPolly,jáfuriosa.–Nada– respondeuDave.–Équeeusoumuitoclaustrofóbico.Tenhouma

declaraçãodomédicoetudo.Eunão...Achoquenãoconsigovestirumdessesfatos.–Então, quando viu o anúncio para apicultor – insistiu Polly. –Quer dizer,

procurou«WorldofWarcraft,ediçãoabelhas»?Davenuncasesentiratãoenvergonhado.

–Quemmederanãolhesterditoquesabiafazeristo–confessou.–Não tantocomoeu– replicouPollyeolhouparao relógio.No sítioonde

Huckle estava era demanhã cedo.E não lhe apetecia nada falar comele, nãodepoisde...Bom.Seele tivessealgoadizer-lhe,podia ter-lhe telefonado.Masnãoofizera.Acasafazia-asentirumadorterrível,queeraincapazdedefinir.Comoteria

adorado,admitiuasiprópria,deixandoasuamentedivagarporondenãodevia,que tivessem saído da praia de Reuben para virem para aqui, rodeados doarrebatador aroma das flores, em total e completa privacidade, e deixarem-selevar,sóafazeramoraté...–Então–disseDave.Oseupescoçocheiodemanchaspareciapiordoque

nunca,porqueelenãoparavadeoesgravatar.–Querligaràagência?Pollysuspirou.–Quandonasceobebé?–perguntou.–Em setembro – respondeuDave.O seu rosto animou-se ligeiramente. –É

umamenina.Éonossoprimeirofilho.Queremosdar-lheonomedeSetembro.Aminhamãe acha que é palerma,mas nós gostamos. Porque ela vai nascer emsetembro,estáaver?Pollyrevirouosolhos.–Sim,estouaver.Suspirounovamente.–Muitobem,NÃOvouligaràagência.Maspodedizer-lhesquesóprecisam

delhepagarestedia,estábem?Equenãoprecisamosdemaisnada.Depois,váatéumasobras;navilaestãoacontratar,hámuitasremodelações.Eraverdade.Asvendasdecasashaviamsubidoemtodaazona,eosandaimes

brotavam como cogumelos, porque as pessoas exigiam telhados alterados ecozinhasabertas.–Sóque–replicouDave–tenhoalgummedode...–Alturas?–terminouPolly.Daveanuiu.Pollysorriu.–Estábem,estábem.Conseguedarcomocaminhoatéàvila?Davefezumardeincerteza.–Vápelocaminhoesigaasplacas–explicouPolly,compaciência.–Eboa

sortecomabebé,estábem?–Obrigado–agradeceuDave,comsinceridade.–Asério.Muitoobrigado.– Vá lá – afirmou Polly, rígida. Ficou a vê-lo afastar-se, a olhar em volta,

curioso,edepoisa limpara testacomamangadofatoea tiraragravata.Ela

abanou a cabeça e vestiu o fato, como Huckle lhe mostrara. Doeu-lhe tantolembrar-sedosdoisariremjuntos,eleatentarfazer-lhecócegasatravésdofato.Não teria havido qualquer coisa entre eles nessa altura?Ou imaginara coisas?Obviamentequesim.Suspirou.Eraumadorfísica.Polly desceu até às colmeias – ainda bem que não levara Neil, que teria

detestadotudoaquilo–etentoulembrar-sedetudooqueHucklelhemostrara.Fumigouascolmeiasparaacalmarasabelhas,limpouopó,acrescentouxaropedeaçúcar,casoelastivessemfome,elevantoualgunsdosfavosdeliciosamentepegajosos, pronta a retirar o mel. Não demorou muito tempo, e o ambienteestavaserenonojardim,comopequenoregatoborbulhanteamurmurarparasimesmo,eumaocasionalcabeçadedente-de-leãoaesvoaçar.Eemborasoubessequeeraindescritivelmentepatético,degradanteetudodoquetentavafugircomtodassuasforçasnasuavida,sentiu-semaispróximadeHuckle.Emborajánãofizessediferençaeeletivesseidoembora–etalveznuncamaisvoltasse–umaminúsculapartedePollypodiafingir.Elepodiaestaremcasanaquelemomento,afazerumasesta.Amotaaindaláestava...Pollyabriuosolhos,furiosaconsigomesma.Eraestúpidoenãolevariaaparte

alguma.Maspelomenosmantinhaasabelhasvivas.

CapítuloVinteeSeisAssemanaspassaram,semnotíciasdeHuckle,masPollycontinuouaviver.Estava impressionadapela formacomoJaydenseestavaa sair tãobem.Era

maisinteligentedoquepareciaeestavatãofelizealiviadoporjánãoirparaomarquesaltitavadeumladoparaooutro.Apernajáquasenãooincomodava,por isso, levantava a farinha com facilidade, tratava das limpezas, conversavaanimadamentecomosclienteshabituaisebrevementecomosveraneantes(nãoeramuitoviajado).Pollyaumentaraassimaquantidadedepãoquefazia,oquesignificavaqueo

stocksóseesgotavaporvoltadastrêsdatardeoudepois,oquenãofaziamal,porque agora ambos conseguiam fazer pausas.E aconteceu outra coisa: abriraumnovorestaurante–umrestauranteasério,comguardanaposdepanobrancosecoposdevidro,nãoapenasgarrafasdeFanta–numdosedifíciosemruínasfrenteaomar.Compravapeixefrescoaosbarcosquehaviamsidocontratadosouadquiridoscomodinheirodoseguropelospescadoresequehaviamvoltadoàsualidaaolongodoporto.EcompravapãoaPolly!Estava a ser uma época empolgante. Samantha viera uma manhã à loja e

apresentaraofilhodeumamigodeLondres,anunciando-ocomoojovemchefedecozinhamaistalentoso,queiriacolocarMountPolbearnedefinitivamentenomapa – Polly nem comentou – e instigando-o a provar as especialidades de

Polly. Para sua enorme satisfação, o chefe declarara-as excelentes e passou afazer uma encomenda diária que ela preparava juntamente com as restantes.Samantha, muito amavelmente, negociara um valor que era substancialmentemais alto do que Polly esperara, mas quando viu os preços da ementa – orestaurantechamava-seMount’s–não se sentiuminimamenteculpada.Comavida tranquila que adotara ali, e trabalhando arduamente, começava a ganharalgumdinheiro.Mrs.Manseconcordaraemdar-lhepartedos lucros,que, semsombradedúvida,estavamasubir,paraambas.Pollyconseguiacolocardepartetudooqueganhavacomorestaurante.Nãoeramuito,masjáeraumcomeço.Conseguiu finalmente almoçar com Kerensa, que estivera misteriosamente

desaparecida, apenas contactável ocasionalmente por telemóvel. Devia estarnumaprisãosexual,oualgodogénero,porque,quandofalava,pareciasempreofegante e meio despida. Entraram no Mount’s, olhando em volta comcuriosidade.Dantesforaumalojadebaldesepásquefalira,semqueninguémsetivesse dado ao trabalho de retirar as placas e os móveis, nem de apanhar ocorreio.Agoraestavacompletamentetransformada;tinhachãodelajeseparedesbrancas, mesas brancas com pequenos limoeiros e umamontra de vidro comumavistaperfeitaparaoporto.Tinhaaindaumnovo terraço,commesas,quefora colonizado por um grupo de pessoas muito barulhentas mas, Polly eKerensaficaramládentro.Kerensa estava deslumbrante, Polly tinha de admitir. Estava bronzeada e

ganharaalgumpeso,apenasosuficienteparaganharcurvasagradáveis,aoinvésde ter um aspeto demasiado exercitado; os olhos tinham uma expressãosonhadora,sonolenta,eapeleestavaimpecável.Pollypercebeuporquê.Pareciafeliz.–Olhaparati–comentouPolly–,desaparecestedafacedaTerra.Porquetens

namorado!OReubenéoteunamorado!–Não,porfavor–pediuKerensa.–Não.Eleéomeubrinquedosexual.–Blargh–replicouPolly.–Issoénojento.OtelemóveldeKerensaapitou–eraumamensagem.Olhouparaele,lançou-

lheumsorrisoincrivelmentepresunçosoevirouoecrãparabaixo.Pollyrevirouosolhos.–Mensagemdeamor?Kerensabebericouasuaáguacomgásemudoudeassunto.–Bolas,estesítioestáaficarnamoda.Oempregadoqueasserviueraumrapazlindíssimocompoucomaisdevinte

anos; Polly não fazia ideia de como viera ali parar. Anotou os pedidos

solicitamente, e Kerensa insistiu que bebessem um copo de sauvignon blanc,enquantoPollydesistiudaideiadevoltaraotrabalhonessatarde.–Então–começouela,comcautela.–Comovaioteuemprego?Kerensabaixouosolhosparaoprato.–Hum–respondeu.–OQUÊ?–ORubesligouparaláeameaçoucompraraempresaedespedirtodaagente

se nãome deixassem tirar uma licença sem vencimento – balbuciouKerensa,tendopelomenosagraciosidadedeodizernumtomembaraçoso.–Kerensa!Vivesàscustasdeumhomem?Oqueéfeitode«casaondevivo,

fuieuqueacomprei»?– E compreimesmo – protestouKerensa. –Ou fazia isso ou ele ameaçaria

contratar-mecomoconsultora.Masheidevoltar,maltiredacabeçaestehomemirritante.Seguiu-se uma longa pausa.O telemóvel voltou a apitar, eKerensa sorriu e

respondeuàmensagem.– Tens razão – afirmou Polly –, isto não passa de uma aventura que podes

pegaroulargar.–Não,não,esperalá,euvoulargar.Pollyrevirouosolhos.–Euachoqueestásapaixonadaporele.–Eleéumimbecil–replicouKerensa,mascomcarinho.–Sabes,háqualquer

coisa de muito sexy quando alguém te diz que vai ser fantástico e depois émesmo.–Poiseusempregosteidele–confessouPolly,contente.–TenstidonotíciasdoHuckle?Pollybebeuumgrandegoledodeliciosovinhogeladoqueacabaradechegar.

Kerensa dissera que pagaria o almoço, por isso ela que se calasse, e ambaspediram ostras e espadarte, o que era bem mais chique do que o que Pollyapreciavanormalmente,masdeuporsi,parasuagrandesurpresa,agostar.–Porquefoiestranho,nãofoi,eleiremboraassimderepente?Quandoéque

elevolta?PollynãocontaraaninguémdobeijoqueelaeHucklehaviampartilhadona

festa.Tambémelasesentiaenvergonhada,sobretudodepoisdeTarnie.–Nãosei–confessou.Ia à casa de Huckle várias vezes por semana para recolher o mel e ver se

estavatudobem.Nãolhedisseraquenãoeraapessoacontratadapelaagênciade

empregoquetratavadetudo;elesentir-se-iaculpadoecontratariaoutrapessoa.De qualquer forma, naqueles gloriosos e longos dias de verão até era muitoagradávelestaraoarlivre;ozumbidosonolento,oscheirosintensoseasfloresespantosasportodaaparte.Eomelvendia-sebemnaloja.Kerensapousouocopo.–Nãoaconteceunadaentrevocês,poisnão?Pollyanuiulentamente.–VIVA!Fantástico!Eusabia!Eleéumpão!–Sim,evoltouparaosEstadosUnidos–retorquiuPolly,tentandofazer-sede

forte.–Durantealgumtempo–replicouKerensa.–Provavelmenteestáatratardos

seusassuntosparapodervoltareestarcontigoloucamente.Pollyabanouacabeçacomtristeza.– Não – retorquiu. – Não Não correu bem. Foi... Foi tão estranho ter

acontecido no velório do Tarnie, e eu fiquei um bocadinho assustada... E elerecuou,fechou-senovamente.Acho...Achoqueoassusteicompletamenteeagoracorreutudomal.–Oh,nãosejasparva– replicouKerensa,zangada.–Liga-lheediz-meque

cometeste um grande erro e que ele tem de deixar de ser parvo e voltar paracasa.Pollyabanouacabeça.–Elenãomeligou,nãomandoue-mails,nada.Saiudopaís.Achoquetenho

deencararissocomoumamensagembemclara.–Sim,umamensagembemclaradequesãoosdoisuns idiotaschapados–

retorquiuKerensa.Pollymordeuolábio.–Não – contrapôs. –Ele tinha-me dito que não estava preparado para uma

nova relação. Ele acabou de sair de uma situação muito séria. Enfim, se umrapazgostadeti,vemàtuaprocura.ComofezoReuben.–Masemqueanoéquetuvives,1950?–retorquiuKerensa,furiosa.–Issoé

umdisparate.Liga-lhe.–Foisóumbeijo...–Àsvezesaindaépior.Oh,nãoera issoqueeuqueriadizer.Oh,Pol.Tens

tidoazar.Ambasfizeramsilêncio.–Soutãoidiota–afirmouPolly.–Pensavamesmoqueeleera...–Nãohádúvidadequeelegostadeti–replicouKerensa.–Eleandasempreà

tua procura. Não fala com mais ninguém, limita-se a ficar sentado na suacadeira,adarumadeOwenWilson.Depoisaparecestueécomoseabrisseosolhosderepente;acordou,derepente.–Asério?–perguntouPolly,masrapidamenteatalhou:–Oh,nãointeressa.Agorajánãointeressa.Provavelmentenuncamaisvolta.Kerensa não disse nada. Polly perguntou-se se iria tentar uma mentira

reconfortante,masnão.–Talvez–afirmouela.–Mastuficasbem,certo?– Claro! – exclamou Polly, estoicamente, bebendo um grande gole do seu

vinho.–TenhooNeil.–Exatamente!–concordouKerensa.As duas amigas conversaram sobre outros assuntos, decidiram levar os seus

casosatéaofim,pediramumagarrafadodeliciosovinhobrancoepassaramumatardehilariante.

CapítuloVinteeSetePara Huckle foi reconfortante e algo estranho o facto de as pessoas malcomentaremoseuregresso.Eracomoseeleapenastivesseestadodeférias.Oque,emparte,nãodeixavadeserverdade.A sua mãe ficou feliz, naturalmente, mas já estava tão habituada a que ele

estivesseforana«grandecidade»,comoelachamavaSavannah,a fazercoisasqueelanãocompreendida,que irparaoutropaísnão foramuitodiferente.Osamigos ficaram contentes por vê-lo e fizeram imensas piadas sobre cervejamorna e críquete e se teria ganho um sotaque estranho. Ele falou com umaempresadeconsultoresseusconhecidos,queoaceitaramimediatamente,edeupor si a trabalhar regularmente em escritórios por toda a cidade. Trabalhavamuitashoras,masoquefazianãoeradifícil–erabomparavoltaraterocérebroocupado, pelomenos por enquanto – e o salário era espantoso.Na sua formacaracterística dedizerque se lixe, alugou um apartamento igual ao anterior, omais longepossíveldaspitorescasvivendasdaparteantigadacidade,que lhefaziammuito lembrar Inglaterra:umacaixadevidro,nasalturasdeumprédionovo.Não tinhaquasenadaemcasa;nãoerademodoalgumacolhedora,nãotinhatapetes,edredãonemtelhadosdecolmo.Eeramoderna.Precisavade expulsarMountPolbearneda suavida,de recordá-la comoum

sonho.EmSavannahhaviaumportocheiodegrandesebonitasembarcações:

iateseosbarcosderecreiofluviaisqueaindapatrulhavamafozlentaecheiadesedimentosdogranderioSavannah,bemcomoospântanosmaisàfrente.Mastambémhaviabarcospequenos,eHucklepassavaporelesaoentardecer,quandoatemperaturabaixavaligeiramenteejáerapossívelsairsemseterasensaçãodeseestardentrodeumfornoavapor.AmarinadeSavannaheraagradável,comlojas, bares e o cheiro a churros e churrasco, e recheada de animados turistasrechonchudoscomT-shirtsiguais.MasHuckleiaouvirobaterdosmastros.Porvezesfechavaosolhos.No seu subconsciente sabia que teria de resolver a questão das colmeias

quandooseucontratodearrendamentochegasseaofim,iraInglaterraearrumarassuascoisas.Quandoofizesse,seriamelhornãoverninguém.TalvezReuben,depassagem,

emboranãopudesseconfiarnele;seriabemcapazdeirdiretoacasadePollyedesbocar-se. Mas não podia... Disse a si mesmo que não queria dar falsasesperanças aPolly, que tudonãopassara deuma amizadepassageira deverãonumaalturaemqueambosprecisavamdeumamigo.Maisnada.Masclaroquesefossemrealmenteamigos,conversariam.Todososdias,aliás.

Hucklegostariadeconversar comela, contar-lhemais sobre a suavida, comoestavaecomoeraSavannah:adorariamostra-lheacidade.Maselaestavaapaixonadaporummorto.Hucklejáforamagoadoantes;não

iria acontecer novamente. Além disso, ela estava muito atarefada, a padariaprosperava;nãoestariaminimamenteinteressadanele.Omelhorseriaatirartudoparatrásdascostas,ficarnolugarondepertencia.Atéjáseesqueceradecomogostavadasuacidade:afacilidadedetertudoàmão,avariedadedeescolhanossupermercados,oseuapartamentomoderno,osbaresbarulhentos.Nãoeraassimtãomau,disseasimesmo.Aindaassim,nãodeixavadecaminharpeloportoamaiorpartedosdias, só

paraouvirosmastros.

Mais tardeoumaiscedo,haveriadeacontecer, era inevitável.Savannahnãoeraumacidadeassimtãograndeeclaroque,numabelatardededomingo,comocéu tingidode cor-de-rosa, quandoHuckle estava aponderar ir ao cinemaedepois passar pelo bar, encontrou Alison, a irmã mais velha e esquelética deCandice.–Huckle!–exclamouela,afingirclaramentequeestavasurpreendida.–Não

sabiaquetinhasvoltado...Bom,játinhaouvidodizer...–Claro–respondeuHuckle.–Olá.– Então, como estava Inglaterra? Muita chuva? Cerveja morna? Jogaste

críquete?–Sim–afirmouHuckle,desconfortável.–Bom,gosteidetever,tenhodeir.–ComoestáaCandice?–perguntouHucklerapidamente.–Estáótima!–respondeuAlison.Huckleesperousentirumafacanocoração,

mas, para sua surpresa, tal não aconteceu. Pelo contrário, e para seu grandeespanto,sentiu-selevementeinteressado;bastantesatisfeito,até.– Ainda bem – replicou ele, com um sorriso rasgado. – Bom, manda-lhe

cumprimentosmeus.–Claro–assegurouela,desaparecendonaluzdosol.

Hucklesabiaque,conhecendoCandicecomoconhecia,elaentrariarapidamenteemcontactocomele,eclaro,malacabaradeentrarnoseuapartamentoquandorecebeuume-mailaconvidá-loparaumcafé.Elanãobrincava.Tiveram o cuidado de evitar os sítios onde costumavam ir juntos e

encontraram-senodiaseguinteàportadaempresaondeeleestavaa trabalhar.Ela estava combom aspeto, como sempre: emboa forma emusculada,muitoloura,comossaltosaltosabaternopasseio.Mentalmente,Hucklecomparou-acom Polly – cabelo louro-avermelhado a esvoaçar sobre os ombros, sardasdelicadasnonariz–maspestanejoulogodeseguidaparaafastaraimagem.–Olá–cumprimentouele.–Estáscomótimoaspeto.–Sim– respondeuCandice–,estou a seguir um regimealimentarnovo.Tu

tambémestásbem.–Eutambém–replicouHuckle–,sócomopão.Elaarqueouassobrancelhas.–Issoéumveneno.–Lattedesoja?Elasorriu.–Sempre.Sentaram-sejuntoàjanela.–EntãocomoestavaInglaterra?Sempreachover?Jogastecríquete?–Não–exclamouHuckle.Choveumbocadinho,àsvezes,masnãocomocá,

que parece umamonção. Parece que nos borrifa em cima e quando passa fazmuito vento. Mas agora o tempo está fantástico. Lá não é quente e húmido,comoaqui,devemestarvinteepoucosgraus.OtermómetrojuntoaodepósitodeáguadeSavannahmarcava34grausnessa

manhã.–Ouseja,vestesumaT-shirt,masémelhorlevarumacamisolaparaanoite.E

a vila tem casinhas de pedra que parecem empoleiradas umas em cima dasoutras. Alguns dos passeios têm escadas, caso contrário seriam demasiadoíngremes. Há poucas estradas e todas dão para o porto, e de manhã, se televantarescedo,vêsosbarcosdepescaachegarcomapescariadanoite,epodescomprarpeixealimesmo,edepoiselesamanham-no, retiramasentranhaseopeixeéomaisfrescoquepossasimaginar.Ejuntoaoportoháumalojinhatodadesarrumada...Fezumapausaedepoiscontinuou.Candiceolhouparaelecomcuriosidade.–Éumapadaria,apadariamaisincrívelquejávi.Logodemanhãsente-seo

cheiromaravilhosodopãoacozer,pode-secompraropãoquente,acabadodesairdoforno,eircomê-losentadonomurodoporto.Meiahoradepoisamaiorpartedaspessoasdavilaapareceporláparaconversaroucomprarpão,eéassimquePolbearneacorda.Oseurostoestavacompletamenteperdidonarecordação.–Àsvezes,senosportarmosmesmomuitobem,araparigadapadariatraz-nos

tambémumcopodecaférazoável.Maselanãopodeserimportunada,émuitoatarefada.Candicearqueouassobrancelhas.–Parecequeconhecesessapadeiramuitobem.Candice nunca cozinhava, encomendava as refeições a uma empresa de

alimentaçãosaudável.– Parece que é tua amiga – continuou, fitando-o. Tinha esperança que ele

tivesseencontradoalguém;asuavidaseriamuitomaisfácilsenãoprecisassedesesentirculpada.Hucklesuspirou.–Eunãoquiscomplicarasituação–balbuciouele.Econtou-lheatragédiado

barcodepesca.– Bolas – comentou Candice –, isso é terrível. Mas ela estava mesmo

apaixonadaporessetalTarnie?–Nãosei–admitiuHuckle.–Porquequer-meparecerquegostasmuitodela.

Huckleencolheuosombros.–Eelatalvezgostassedeti.Aliás,euachoquevocêsdevemtersidoumbelo

pardeidiotas.– Obrigadinho – replicou Huckle, bebendo um grande gole do seu café.

Como...Candicecorouligeiramenteedepoissorriu.–Sabes...AgoraquejáseitudosobreaMissPequenaPadaria,sinto-memuito

menosconstrangidaportefalardisto,maseueoRonvamoscasar.– Parabéns – exclamou Huckle e, mais uma vez para seu grande espanto,

estavaasergenuinamentesincero.RoneCandiceestavambemumparaooutro,elefaziatrêstriatlosporano.–Obrigada–agradeceuCandiceeolhouparaHuckle.–Foste tãoparvopor

teres fugido daquelamaneira – comentou. – Pelomenos, foi o que pensei naaltura.Mas agora...Não estou assim tão convencidade quenão te tenha feitobem.Estáscomótimoaspeto,Huckle.Elesorriu.–Ah,qualquerlugarmefazbem.Candicearqueouumasobrancelha.–Hum–disseelaquandoselevantaramparasair.–Mantém-teemcontacto.

Istoseficaresporcá.–Eladeu-lheumbeijorápidonorosto.–Claro–respondeuHuckle,ficandoavê-laafastar-se,ossapatosabaterno

passeio.

CapítuloVinteeOitoEstavam todos reunidos no novo restaurante chique dePolbearne, convocadospara uma reunião por Samantha eHenry, que, apesar de seremnovos na vila,haviam conseguido, de alguma forma – além de dar às construtoras locaisimensotrabalhoedeconvencerváriosdosseusamigosricosacomprarcasasemruínas,oqueagradouatodos–assumiraliderançadavila.Haviamconvocadoumareuniãosobre«OMaiorPerigodoNossoTempo»,segundooscartazesquehaviam afixado por toda a parte, e praticamente todos os habitantescompareceram obedientemente, em parte interessados, em parte porque nãohaviamuitomaisparafazer,agoraqueaazáfamadoverãoestavaaabrandar,eemparteporquedesconfiavam, ebem,queSamanthaeHenry talvez tivessemvinhogratuito.Patrickestavapresenteemnomedosveterinários;Murieltambém,claro;Mrs.

Manse estava sentada sozinha, como seu ar autoritário;Archie eKendall dosbarcos,eJayden.Pollyestavasentadadelado,comNeil,aabafarumbocejo.– O que se passa? – perguntou a Patrick. Sabia que fora o ambiente não

estragado e não moderno da vila que o atraía em Polbearne. Ele sentia quetinhamalialgo,umaligaçãointactacomopassado–algunsdoshabitantesmaisvelhos ainda falavam um pouco do dialeto da Cornualha que tinham ouvidosentadosaospésdosavós.Aideiademudançaaterrava-os.

Então,Samanthalevantou-seebateunocopo.– Bom, penso que todos viram as notícias – afirmou, mas sabia que não,

porque tivera conhecimento da situação por um urbanista do continente comquem fazia um enorme esforço por conviver, para que ele lhe autorizasse aconstruirumjardimsuspenso.AspessoasabanaramascabeçaseSamanthaexplicou.Anovacorreriadoverãonuncaacalmara,nemsequerporumsegundo,mas

não era isso que estava a mudar as coisas; era o navio encalhado. A políciainterditaraapraiaenaviosespeciaishaviamextraídotodoopetróleodonavio–cercadecentoeoitentamillitros–mashaviaaindamuitamercadorianofundodomar,eonaviotinhadeserretiradodalieenviadoparaasucata.Todososdiasdavamàcostapatosdeplástico;empurradospelasmarés,chegaramatéExmoutheLand’sEnd.Mas em Mount Polbearne, o problema era local. Os camiões, as

retroescavadoras,osbarcosdemergulhoeopessoalprecisavamdeentrarnavilaparatrabalhar,eprecisavamderegressarànoite,independentementedasmarés.Os nossos habitantes queriam fazer obras nas suas casas, o que tambémimplicava a presença de camiões e retroescavadoras. E queriam usar os seuscarros.Quemvinhaalipassarodianãoqueriaarriscar-seaficarpresoouafretarumbarcosupercaroparavoltaraocontinente.Háanosquesefalavadoassunto,masaceleumacomeçaraaaumentar, sobretudoquandoumcarroavariounumdomingodeverãonopassadiçomesmonaalturaemqueamaréestavaasubir,eafamíliaqueláiadentro,incluindocriançasmuitopequenas,havia-sevistonacontingênciadecorrerdaliparaforaquandoaágualheschegouaosjoelhos.Eraprecisofazeralgumacoisa,eraoconsensogeral,eoconselholocal,maravilhadocomaregeneraçãodazona,candidatara-seaofundodedesenvolvimentocentralparaconstruirumapontequeligasseavilaaocontinente.Ouviu-se um arfar de surpresa na sala e logo a seguir uma explosão de

barulho.Algumaspessoasachavamqueeraumaexcelente ideia.Traria àvila amais

pessoas.Assimpoderiamirfazercomprasaumsupermercadosemteremdesepreocuparcomregressaratempodamaré.Significavanãoficaremisoladosnoinverno quando as tempestades deixavam o passadiço intransitável durantevários dias. Significava que os pescadores poderiam levar o seu peixe aomercadomais depressa, e que as pessoas poderiam viver noMount e ir e virtodos os dias para o emprego. Jayden ficou muito empolgado, realçando quequeria ir a uma discoteca em Plymouth e exibir o seu novo emprego «de

interior». Os pescadores resmonearam um pouco sobre a perda iminente dorendimentoque lhesdavao táxiaquático,masamaiorpartecompreendeuquenão podiam travar o progresso, sempre fora apenas uma questão de tempo.Patrick,claro,opôs-seterminantemente.– E eles não podem sair daqui e ir viver para esses sítios? Onde se pode

encomendar piza? E nós podemos conservar este como um sítio onde não sepodeencomendarpiza.Polly pensou que adoraria comer uma piza, mas sentiu que não deveria

mencioná-lo. Talvez pudesse fazer algumas na padaria. Talvez, pensousubitamente, pudesse ser também uma pizaria – já tinha o forno, só teria detrabalharahorasligeiramentediferentes.Seriacomplicado,masnãoimpossível,e dada a quantidade de homens famintos que atualmente trabalhavam na vila,provavelmenteteriaimensosucesso.–Hum–balbuciouela,semconseguirdecidir-se.–Jamais,aponte!–vociferouHenry,massuascalçascor-de-rosa.–Traremos

paracátodootipodecoisas.Todos os habitantes de Polbearne, incluindo Polly, reviraram os olhos e

serviram-sedemaisumcopodovinhoqueHenryestavaapagar.

Eraumassuntoquedavamuitoquepensarefoioprincipaltópicodeconversade todas as pessoas que foram à loja, além do facto de um cantor famoso tertentadocomprarofarol.–OFAROLestáàvenda?–perguntouPolly,espantada.Ànoite,asuacasa

continuava a ser entrecortada pela luz do farol, apesar de ter gasto muitodinheiroemcortinadosopacos.Comoéquealguémconseguiaviverlá?–Bom,ládentroestá-sebem–explicouMuriel.–ÉoúnicosítioemMount

Polbearneondenãosevêamalditaluz.–Hum–dissePolly.–Então,essetalcantorvaicomprá-lo?–Não–respondeuMuriel–,nãolhedeixaraminstalarumpostedebombeiros

nemumescorregaemespiral.–Porqueéqueoplaneamentourbanodizquenãosepodeterumescorregaem

espiral,maspode-seterumapontemonstruosa?–exclamouPatrick,queestavaacomprarumpãocomprido.Deraduasentrevistasajornaisnacionais(queerammuito a favor de manter as tradições de Polbearne, independentemente de oshabitantesquererem ir aumsupermercadoounão) e sentia-seorgulhosode simesmo.–Boapergunta–concordouPolly.

Polly caminhou até ao farol, após mais uma noite a ser constantementeacordada. Estava tão delapidado como toda aMount Polbearne – ou metade,pelo menos, dada a descaracterização em curso, descaracterização essa que,apontavam-lheocasionalmente,elaajudaraadesencadear.Hámuitotempoqueninguémvivianofarol,desdequeofeixepassaraasercontroladoremotamente;as riscas pretas e brancas estavama descascar e a pequena casa de granito aoladoerapequenaefuncional.Eraumprojetocompletamenteimpraticável.Maselanãoconseguiatirá-lodacabeça.Dedoisemdoisdias,fizessechuvaoufizessesol,PollyiaàcasadeHuckle

cuidardasabelhas.Eraasuacaminhada,asuaformadeexercíciofísico,atésetornar puro hábito, acima de tudo, ou uma espécie de talismã bizarro. Elalimpavaascamas,retiravaasabelhasmortaseespreitavaarainha;esterilizavaeenchiaospotesdemel,elevava-osnasuamochila,comNeilsentandoporcima,sobre um jornal. O mel continuava a vender bem na loja, e ela colocava odinheirocuidadosamentedeparteparaentregaraHuckle,quandovoltasse.Masnunca mais tivera notícias; era óbvio que não iria voltar. Talvez a sua ex otivesserecebidodebraçosabertosnoaeroporto,pedindodesculpaporlhepartirocoração,implorando-lheparavoltarparaela.

Certatarde,Pollyvoltavaaoportoapósacaminhadadomel,quandosedeparou,parasuagrandesurpresa,comDave.– Olá! – disse ela. Estavam em finais de agosto. Já não havia tanta luz de

manhãquandoselevantavaparacomeçarafazeropãododia,masosdiasaindaestavamquentes,eoaramenodeverãoganharaumtoquedebrisamaisfresca.–Comoestáasuanamorada?– Está bem! – respondeu ele. Parecia mais animado, embora ainda tivesse

manchasnapele.–Abebénasceumaiscedo.–Oh,não–afirmouPolly.–Elaestábem?Chama-seAugusta?–Não–replicouDave.–QueríamosquesechamasseSetembro,lembra-se?– Sim, mas como nasceu em agosto... – A voz de Polly esmoreceu. Dave

estavaperplexo,semperceber.–Bom,issoémaravilhoso.Elevoltouasorrir.–Elaéincrível.–Entãooqueo trazdevolta?–perguntouPolly–Nãomedigaqueestá a

trabalharnapontenova.Nuncaconseguiria.

Daveabanouacabeça.–Não.Ouvidizerquehaviaumavaganumbarcodepesca.Eraverdade.Apesardaelevadataxadedesempregonazona,continuavaaser

difícil convencer os homens a dedicarem-se à pesca, atividade que eraconsideradaperigosa,desconfortávelemalpaga.OlugardeJaydennonovobarcodeArchieaindanãoforapreenchido.Pollyfitou-ocomarsério.–Dave–disseela,poisnãoqueriaqueArchieperdesseoseutempo–,tema

certezadequenãotemmedodepeixes?Daveencolheuosombros.–Nãosei.Sócomodouradinhos.Mastenhomedodetubarões.–Aquisóhátubarõespequenos–explicouPolly.–Sãoosmaisvenenosos–replicouele.–Ouserãoasaranhas?–Nãosei–retorquiPolly.Archieaproximou-se.– Venha daí – disse ele a Dave. – Conhece este camarada? – perguntou a

Polly.–Maisoumenos–respondeuPolly,semquererdenunciarDave.–Suponhoqueestejaàaltura...–Sejasimpáticocomele–aconselhouPolly.–Eleacaboudeserpai.OrostodeArchieirrompeunumsorriso.– Parabéns – exclamou. Polly sorriu para simesma, pensando como ele era

mole.–Temfilhos?–perguntouDave.Archiesorriu.–Três.Bom,trêsmais...Pollyvoltou-separaele.–Não!–Sim!Enãosomossónós.–Comoassim?–OBobda farmácia temmaisumcaminho.EoDavedopub também.E a

Muriel.Pollyabanouacabeça.–AMURIEL?Háquantotempo?–Exatamente,jápercebeu.Pollypensouumsegundo.–Asério?Novelório?

Archieencolheuosombros.–Vai ser o primeirobaby boom deMount Polbearne em cerca de duzentos

anos.Vamosprecisardeumaescola.– Não acredito! – exclamou Polly. – Isso é fantástico. E de certeza que os

rapazesvãotodoschamar-seTarnie.–Bom,Corneliuséquenãoserão,decerteza–retorquiuArchie.Voltouadar

atençãoaDave.–Otrabalhodurointimida-o?–Nãoseibem–respondeuDave.–Sabeusarumafaca?Davefezumarhesitante.–Enfim–suspirouArchie–,vouganharmaispráticacomoama.Venhadaí,

seumole.Dave seguiu-o transido de pavor. Polly, a sorrir, viu-o desequilibrar-se e

escorregar no molhe. Archie teve praticamente de levantá-lo. Polly abanou acabeça.Bom,logoseveria.A maré estava vazia e na calçada Patrick tirava imensas fotografias. Era

estranho,pensouPolly,aovoltaracasaeaosentar-seàjanela,comumacerveja;a ideiadequeavilapoderiadeixardeseroqueerahácentenasecentenasdeanos.Eo factode terchegadoalipara testemunharo fimdeumaera.A ideiaentristeceu-a.Tocouotelemóvel.–Seforalguémadizerqueestágrávida,parabéns–afirmouPolly.–Eufaço

bolosdebatizado.– Não é bem – replicou a voz superexcitada de Kerensa. –Mas a segunda

melhorcoisa...

CapítuloVinteeNoveCombinaramimediatamenteumencontroparaodiaseguinte.Reubenoferecera-separairbuscarKerensadehelicóptero,maselarecusara.–Poisésumaidiota!–censurouPolly.–Adoravaandardehelicóptero.Acho

que devíamos passar o resto das nossas vidas a dar voltas no helicóptero doReuben.Asduasamigasabraçaram-senopátiodopub.–Vamoscasar!–gritouKerensa.Ultimamente,semprequefalavam,refletiu

Polly,pareciaqueiaexplodir.Reubendeviaandaracontagiá-la.–Vamoscasar!AAAAAH!Pollyencaminhou-separaobarepediuchampanhe.Davehesitou,masacabou

porconseguirdesencantarumagarrafanofundodofrigorífico.–Desce quando é que aminha amiga falida pede champanhe? – comentou

Kerensa,franzindoosobrolho.–Ah!–exclamouPolly,asorrir.–Nãoésaúnicaaternovidades.

Chegara por correio nessa manhã – o carteiro entregava sempre acorrespondêncianapadaria.Jaydennuncareceberaumacartaemtodaasuavida

e ficava sempre fascinado com o que chegava. Embora fossem normalmentefaturas de farinha e muita papelada do banco. Mas naquele dia chegou umgrandeenvelopedecartãocomaindicação«NãoDobrar»impressa,endereçadoaPolly,escritoàmão.Elareconheceuacaligrafiabonita, limpouafarinhadasmãoseabriu,espantada.Retiroucuidadosamenteoconteúdodoenvelopeearfou.Eraumquadro:uma

lindíssimapinturaarquitetonicamente fieldaPequenaPadariadeBeachStreet,comosmastroseasvelasemprimeiroplano,opãonajanelaeumalevesilhuetaaaguareladePollynointerior.Eraarrebatadora.–OChris!–exclamouPolly,deliciada.– Aquele trombudo? – perguntou Jayden, olhando para o quadro de olhos

semicerrados. – ÉMUITObom! – acrescentou, com sinceridade. –Quemmederapintarassim.–Não é?– afirmouPolly, de coração cheio. –Hámuito tempoque ele não

pintavaassim.Tãoquerido.Oquadrovinhacomumcartão.Pollyleu-oelevouamãoàboca.–MeuDeus!–gritou.–MeuDeus!Vendemosoapartamento!Vendemos!E

porumbompreço!Pagámosasdívidas!Ai,vamosficarlivres!Boa!PollyaumentouovolumedorádioedançouàrodadobalcãocomJayden,que

saltitoucomtodooprazer.Neilpiouedesatouaospulinhos,paranãoperderadiversão.–Eunãoseioqueissosignifica–confessouJayden–,masparecebom.– É ÓTIMO! – exclamou Polly. – Oh, meu Deus, estou livre! Estou livre!

Tenhodinheiro!Estoulivre,posso...EentãodesceuàTerra.–Uau,podiamudar-me.Jaydenfitou-a.–Porquehaveriadesemudar?–Tumudaste–provocouPolly.–ClaroquenãomevouemboradePolbearne.

Eu queria dizer desta casa. Oh, meu Deus. Mas podia comprar a padaria aMistressManse.Oupodiatrocarotelhadodacasa.Podia...Olhoumaisumavezparaopapel.–Okay,nãopossofazergrandecoisa.MasMESMOASSIM!E foi esta a razão do assalto à caixa registadora para comprar champanhe.

Polly, numa atitude altruísta, entregou o quadro aos jovens simpáticos dorestaurante, que o venderamquase de imediato por uma fortuna e trataramdeencomendarmaisum,quetambémvenderam.FinalmentePollyguardouparasi

odécimo,antesdeseretirardomercado.

–Então–refletiuPolly,sentando-senasuamesanaesplanada,incapazdetirarosorrisodorosto.Kerensaabraçara-aedissera-lhequeeramaravilhosoequenemacreditava que a amiga fosse a mesma pessoa depois do estado miserável edeprimidoemquecaíraseismesesantes,aoquePollyreviraraosolhosedisseraquenãoestiveraassimtãomal,eKerensaretorquiraestábem,não totalmente,estavasfantásticaefeliz,eambassedesmancharamarir.–Entãoeotipoquetudetestavas?–perguntouPolly.–Issofoiantesdefazersexocomele–respondeuKerensa.–Bem...–Tudobem,nãodigasmaisnada–replicouPolly.–Nãoaumapessoaque

nuncamais vai voltar a fazer sexo e que se contentou em ser umamulher denegóciosdesucesso.Parabéns!–Eusei!–exclamouKerensa.–Vaiserespetacular.Vamosterocasamento

maisopulentodesempre.–Ah,começasafalarcomoele.–Somosmuitoparecidosemmuitascoisas–explicouKerensa.–Sóqueeleé

altamenteirritanteeeunão.Pollysorriu.–Etutensdeserminhadamadehonor–afirmouKerensa,bebendoumgole

dechampanhe.–EstouMUITOvelhaparaisso.–Disparate.Temdeser.Vouprecisardeumbiliãodedamasdehonor;vamos

casarnaAmérica.–Não!–Sim, sim.A família doReuben temumapropriedade gigantesca emCape

Cod,juntoaomar,eparecequeémuitoagradável.–Tentoudizeristonumtomque indicavaquenãoeranadadeespecial,masnenhumadasduasaguentouedesataramarir.Comoque atraídamagneticamentepela rolhado champanhea saltar, asnob

Samantha espreitouparaopátiodopube aproximou-se delas, parando algunsmetrosantesquandoaluzdosolbanhouoabsurdoaneldenoivadoemformadeninhodeKerensaecegoutodososqueestavamemvolta.–OH,MEUDEUS!–exclamou.–NOVIDADES!–Sim,temosnovidades–confirmouPolly.–Querumcopodechampanheou

tambémestágrávida?Samantha juntou-se imediatamente às duas amigas e bombardeou Kerensa

com perguntas sobre o tamanho da propriedade de Cape Cod, o número deconvidados, as opções da comida. Depois calou-se, pousou as suas mãosimaculadasnoseuminúsculocolo–oseupróprioaneldenoivadoeraenorme,masnadacomoodeKerensa,quetecnicamentepodiaserconsideradoumaarma–esuspirou.–Sabe,achoquenenhumdosnossosamigosfoiaumcasamentoassim.PollyeKerensatrocaramolhares.–Claroquepodeir–afirmouKerensa,amavelmente.Samanthadeixousairumgritinhodealegria.– Agora, sabem que o Reuben insistiu que o tema fosse a Guerra das

Estrelas...

Asraparigassaíamdopubmaistarde,bastantetocadas,epassearamatéàdoca,ondeoshomensestavamagitados.Pollytentouperceberoquesepassava.Dave,coradodeprazer,tinhanamãoumpeixegigante.–FoioDavequeapanhou isso?–perguntou.Daveestava radiante.Opeixe

eradotamanhodoseupeito.– É o primeiro bacalhau grande que eu vejo por aqui nos últimos anos –

afirmouArchie.–Asquotasdevemestarafuncionar.– E foi o Dave que o apanhou? – insistiu Polly, tentando não parecer

incrédula.–Estáabrincar,nãoestá?Esterapazéumpescadornato.Nãotemmedode

nada.Daveestavadelirante.Jaydensaiudapadariaparatirarumafotografia.–Euadoropescar–confessou-lheDave.–Nãoseicomoéquefostecapazde

desistir.Jaydenesfregouosdedosnoseuaventalbranco.Oseuestômagojáexibiaos

sinaisdamudançadeprofissão,prometendocresceretornar-seumabarrigaderespeito nos anos seguintes. Mas Jayden, obviamente, não tinha qualquermalícia.–Aindabem–respondeu.–Vãovendê-loaorestaurantedoAndy?Alinhou-ostodosparapodertirarumafotografiadegrupo.–Devíamospôrafotonajaneladele–sugeriu–,paraquequemlávápense

queobacalhauvemtododessepeixe.–Eelepodesubirospreçosaindamais–balbucioualguém.Andy não perdera tempo a aproveitar as novas oportunidades de negócio,

sobretudoquandoamaréestavaalta.Masoseufishandchipscontinuavaaserquente, crocante e salgado como sempre, o peixe carnudo generoso e macio,comimensospedaçosdepalmenabarriga,porissoninguémseimportava.KerensaePolly fizeramasua tradicionalvisitaparacomprarbatatas fritase

Fanta,edepoissentaram-seaagitaraspernasnomurodoporto.–Estásafazerdietaparaocasamento?–provocouPolly.–Esquece–respondeuKerensa.–Alémdisso,sóDeussabeoquevouvestir.

CapítuloTrintaAscoisasestavamamudar,pensouPollyaoatravessaravilaparairlevaraMrs.Manse o dinheiro faturado nesse dia. Tinha de pedir licença para conseguirpassarporentreaspessoas,haviacarrosadisputaremespaçonasruasqueeramdemasiado estreitas para eles, e as pessoas olhavam desconfiadas para Neilempoleirado no seu ombro, o que a fazia sentir-se uma velhota esquisita comdezenas de gatos, e tudo aquilo era extremamente irritante. Embora a padariaestivesseacorrertãobem,Pollynãoestavatãocertaquantoàpresençadetantagente na sua terra, e a ponte só viria piorar a situação. A campanha contra aponteaindatinhaforça,masconseguiriamrealmentetravaroprogresso?HáalgumtempoquePollynãoiaàvelhapadaria,normalmenteeraJaydenque

se encarregava disso. Desde que Mrs. Manse reclamasse com ele, tudo lhepareciaestarbemnomundo.Assim,foicomalgumchoquequeseaproximoueviuGillianretrair-seatrásdobalcãoenquantoumhomemquePollynuncaviragesticulava.Sem pensar, Polly entrou.O homem estava vestido com calças vermelhas e

tinha uma intensa pronúncia abrasiva de Londres. As faces estavam tãovermelhascomoascalças,eelegritavatãoaltoquechegavaacuspir.Nenhumdosdoisaviuentrar.– Não pode cobrar dinheiro por esta porcaria! – gritava ele. – Isto está

intragável!Olhoqueeumostro-lheasnormascomerciais!Seumsupermercadofizesse isto,seria fechado.Vocênãopoderoubarpessoashonestasdesta formacom sanduíches horríveis! Que descaramento! A maionese já está a ficarestragada!Polly sentiu-se totalmente dividida entre a sua paixão por comida boa, de

qualidadeehonesta–naqualacreditavapiamente–edefenderoqueagoraelasentiaser,acimadetudo,osseusconterrâneos,oseupovo.Pigarreouemaltoebomsom.Ohomemvoltou-se,aindafurioso.Eragrande.–Peçodesculpa–começouela,esentiusubitamenteasuapronúnciaatornar-

semaispróximadadaCornualha,maiscerradadoqueoinglêsgenéricodosul.–Estaéanossaterra,certo?Esenãogostadasnossassanduíches,podefazerofavordedesandarparaosítiodeondeveio.–Masassanduíchesestãosecas.–Aquigostamosdelasassim–retorquiuPolly,cruzandoosbraços,desafiante.

–Agoraeudiriaqueseriaboaideiasair.Aliás,digaatodaagentequeconheceparanãoviraqui,porquesão todosrufiashorríveisque intimidamsenhorasdeidade. Acho que ficamos melhor sem vocês, não lhe parece? Agora, quercontinuar a insultar uma senhora de oitenta anos? É que eu tenho o agenteCharlienosnúmerosdemarcaçãorápida.Pollyexibiuotelemóvel,ameaçadora.–Estesítioéumaporcaria–gritouohomem,furioso.–Esperoquevãoparao

inferno.–Tambémeu–replicouPolly.–Desdequeaescumalhafiquedefora.Ohomembateuavelhaportademadeirafrágilcomtantaforçaquetodaaloja

estremeceu.PollyolhouparaMrs.Manse;estavabranca.– O que se passa consigo? – perguntou Polly, tentando transformar o caso

numapiada.–Normalmenteescorraçavanovetiposcomoesteparaforadavilaantesdopequeno-almoço.Mrs.Manse dobrou-se sobre o balcão.Ohomemarremessara a sanduíche e

haviamanchasdemolhodesaladaportodaaparte.Assuasmãostremiam.Pollyinsistiuemdesvalorizaracena.–Nãoachaqueestoua ficarcomoaspessoasdecá?Achaquepassariapor

local?Mrs.Mansenãodissenada,ficouaolharparaobalcão.Pollypousouacaixa

dodinheiroeaproximou-sedela.–Sente-seumbocadinho.Elenãopassadeumidiota.Nãosedeixeafetar.Mrs.Manseabanouacabeça.

–Elesestãoportodaaparte–confessou,sentando-sepesadamentenumbancoalto.–Vieramparacá.Éessaarealidade.Evãoconstruiraponteedepoisvaiserodesastrecompleto.Pollyinclinouacabeça.–Bom,temosmuitomaisvisitantes,eissoébom,nãoé?Nuncafizemostanto

dinheiro.Vamostersucesso,dar-lheumareformaconfortável.–Eutenhoquaseoitentaanos–afirmouMrs.Manse.–Nãoquerocontinuara

fazeristo.Pollyolhouemvoltaparaalojapoeirentaenegligenciada.–Bom,eu tenho...Nãoémuito,mas tenhoalgumdinheiroque talvezpossa

usarpara...Mrs.Manseabanouacabeça.–Eunãoquerooseudinheiro–confessou.–APollycontinuaapagar-mea

rendaepodeficarcomoresto.Tenhobastantedelado.VouvivercomaminhairmãemTruro.Látêmbingo.– Isso parece-me bem – declarou Polly, tentando encorajá-la. –Mas tem a

certezadequequersairdeMountPolbearne?Viveuaquitodaasuavida.–Eissotrouxe-me...AvozdeMrs.Mansesumiu-se.Pollypensouquehámuitotempoquedeveria

estar a jogar bingo com a irmã. O que a velhota disse a seguir apanhou-acompletamentedesprevenida.–Tenhodelheagradecer,sabe–confessouela.Pollyfitou-a.–Desculpe?Mrs.Manseanuiu.–AntesdeaPollyaquichegar...Eunãoeracapazdeirembora.Sabecomoé.

Avilateriamorridosemumapadaria.Sim,eudetestavaestetrabalho;foiideiadomeumarido.Masfazia-oporeleepelavila,porqueeraaminhaterraemaisninguémestavadispostoaisso.Asuaexpressãopareciadistante.–DepoisperdioAlfeoJimmy,issofoi...Seguiu-seumlongosilêncio.–MasdepoisapareceuaPollycomassuasideiasmodernaseosseusnomes

caros para um simples pão e os seus planos idiotas para fazer as coisas demaneira diferente E, pronto, resultou. Em parte – acrescentou. Polly sorriuconsigomesma.–Eagoraeles jánãoprecisamdemim.Avila temcadavezmaispessoase

elasnãoprecisamdemim.Preferemiraumsítiomaismodernoondepermitemqueavesmarinhascaminhemnafarinha.Balbuciou em tom crítico esta última parte. Polly deu-lhe palmadinhas no

ombro.Mrs.Manselevantouoolhareolhouparaoinfinito.–EusentiquandooTarnienãoregressouacasa.Osoutrosrapazesvoltaram,

masomeumeninonão.–Eusei–afirmouPolly,comrespeito.–Agorasei...Avozsumiu-se-lhe;pareciaalgoconfusa.–Euseiqueelenão...Seiqueelesnão...Derepente,apertouamãodePolly,comumaforçasurpreendente.–Esperoqueestejamjuntos,oJimeoCornelius.Ondequerqueestejam.Eentãoirrompeuemlágrimas.Pollyagiudepressa,virandoaplacadalojapara«Fechado»–nãoeracomona

PequenaPadaria deBeachStreet, onde a esta altura já deveria haver uma filaenorme pelo porto abaixo; por ali ninguém passava. Trancou a porta e foiimediatamenteàpartedetrásdalojaligarachaleira.–Umabelachávenadechá–disseela.–Umabelachávenadechá.–Elesnãovoltam–afirmouMrs.Manse.EemboraPollysoubessequeelasereferiaaomarido,aofilhoeaTarnie,não

conseguiuevitarpensarnoutrapessoa,emalguémcujocabelocintilavaaosolequeestavamuitolonge.EnquantoachaleiraferviaeelamantinhaMrs.Mansesoboseuolharatento,perguntou-sesenãoestariaa fazeromesmo.Amantertudo impecável para Huckle, tal comoMrs.Manse não conseguira suportar aideiadenãoestaraliparareceberosseushomensquandoregressassemacasa?Pelosim,pelonão?ApossibilidadedeHuckvoltarnãoeramaior,naverdade.GillianMansedemoraramuitotempoatéenfrentaraverdade.QuandoiriaPollyfazeromesmo?Beberamochá,depoisPolly levouMrs.Manseaoseupequenoapartamento

noprimeiroandare,semgrandedificuldade–avelhotacontinuavaabalbuciar–convenceu-a a deitar-se. Ligou a Archie, pediu-lhe que contactasse a irmã deMrs.MansedeTruro,esentou-senoapartamentosufocante,àesperadomédico,quetinhadeesperarqueamarévazasse.Enquantoesperava,reparouqueafotografia,avelhafotografiaqueencontrara

nagaveta,foracolocadaemcimadomóveldatelevisão,recém-limpaepolida.Gillianforasincera,percebeuPolly;aceitaraoqueaconteceraaosseushomens,

esabiaquenãoregressariam.

Omédicochegouafogueado.–Quantomaiscedofizeremaponte,melhor–comentou.–Istoéridículo,é

medieval.Comoéqueconseguemviverassim?Pollyfitou-o.–Nósgostamos–retorquiu,novamentenadefensiva.O médico examinou Mrs. Manse e declarou-a bem de saúde, ainda que

clinicamenteobesa.Elafungoualto.–Sebemque,hojeemdia,sepossaconsiderarnormal,comtantopãobranco.Pollydecidiuquenãogostavadojovemmédico.–Maselaestáumpoucoconfusa.Eudiriaquetemquasedecertezaavercom

a idade,e sugiroque, futuramente, façaoque fizer,não fiquemuito tempodepé.–Achoqueelaquercomeçarajogarbingo–revelouPolly.–Ótimo–replicouomédico.–Elaaindatrabalha?–Gereestalojasozinha.Omédicoabanouacabeça.–Nãopodeser.–Tudobem–afirmouMrs.Manse,sonolenta.–Esta...Estaraparigavaigerir

tudoapartirdeagora.Nãovai,Polly?Pollyapercebeu-sedequeeraaprimeiravezqueMrs.Manseproferiaoseu

nome.Normalmentetratava-aapenaspor«você»,comoem«vocêarruinouestavila».ApertouamãoenrugadadeMrs.Manse.–Claroquesim–assegurou.–Prometo.

CapítuloTrintaeUmAsestaçõesdesenrolaram-seenovaslojasabriramemPolbearne:umadepeixeporencomendaquepagavabemaoshomenspelapescaria,aoladodoeleganterestaurantedemarisco; e uma loja de roupasde crianças edebugigangasquePollyficouespantadapoisdificilmenteconseguiriasobreviver.Ambas as padarias prosperavam; contrataram mais uma pessoa e Jayden

supervisionava tudo já com facilidade, encarregando-se de fazer os principaispães e do trabalho pesado, o que deixavaPolly livre para experimentar novossabores e técnicas, coisa de que ela gostava imenso. Saíra um pequeno textoelogiosonum jornaldedomingo,oque adeixou satisfeita.Tiveraumoudoisencontros,umdelescomumsurfistaamigodeReuben,quefalavaimensosobresurfe e quase não tinha qualquer interesse noutros temas, e ainda com umarquitetoqueestavaatrabalharnumadasobrasdeconversão,masnenhumdelesfez clique, apesar dePolly se ter convencidodequeoque tivera comHuckleforaumaamizadequederaparao torto,nadamais.Dequalquerforma,estavademasiadoocupadapara sepreocupar comoassunto, atéporquenoNatal iriareceberamãe,oirmãoeosfilhos,maisReuben,KerensaeospaisdeKerensa.Oambientetornou-seumpoucoembaraçosoquandoReubeneKerensaficaramtodosmelososcomoschocolatesdeNatal,mashouveumagrandecelebraçãonaigreja velha, com toda a gente a enregelar mas a dar graças por um ano que

poderiatersidobempior,edivertiram-seimenso.Masàmedidaqueaprimaveraeocasamentoseaproximavam,Pollydeupor

sia ficarumpouconervosanovamente.Decidiu-seporumdescontraído«Olá,comoestás?»,masseHuckleaparecessecomaex–seéqueirialevaralguém–sabiaquesentiriaummurronoestômago.A maior parte das pessoas não sabia o que acontecera entre ela e Huckle.

Kerensaperguntou-lhesequeriaquelheretirassemoconvite,masPollylembrouqueeleeraopadrinhodeReuben.Kerensadissequeselixe,Reubenfaziatudooqueelamandava,ePollysóconseguiusorriredizer,paranãoserridícula,queforasóumbeijominúsculoháséculos.Quemaindaseimportariacomumacoisadessas?No início da primavera, chegaram os bebés: um Tarnie, um William, o

segundonomedeTarnie,duasCorneliaseumaMarina.(UmadasCorneliaserade Samantha, que afinal estava grávida, só que era tão magrinha que nemreconheceraossintomas.)AspessoascomeçaramafalarregularmentedofactodePolbearneprecisardeumaescola,oqueinevitavelmentelevavaaquealguémacrescentasse «e uma ponte». A vila continuava muito dividida. Seria umaquestãodelicadanareuniãodeplaneamentotrimestral.Reuben e Kerensa esperavam que o seu casamento «deixasse toda a gente

assombrada».DeMountPolbearneapenasiriaPolly,comodamadehonor,oqueadeixoumuitonervosa.Samanthanãopodia,porqueestavagrávida.Archieforaconvidado,masninguémoconvenciaadeixaro seunovobebé,ameninadosseusolhos.Jaydentinhadecuidardaloja.Polly praticou uma atitude calma e serena, dizendo a si mesma que

provavelmenteHucklemalselembrariadela:nãopassavadeumaraparigacomquemsederadurantealgumtempo,nasfériasquefizera.Epensouemcomoiriaser embaraçoso quando aparecesse vestida de Princesa Leia, com roscas nocabeloetudo.–PorquenãolevasTUroscasnocabelo?–perguntoufuriosanumadasmuitas

ocasiõesemqueelaeKerensativeramoportunidadedebrincarsobreoassunto.–Porqueeuvouseraprincesa jovem–explicouKerensa.–OReubenacha

que os episódios das prequelas, os mais recentes, são terrivelmentesubestimados.–Issoéporqueeleestáerradoemrelaçãoatudo–resmungouPolly,tentando

apanharocabelonovamentenumatrança.–Levaaperuca–aconselhouKerensa.–Nempensar–retorquiuPolly.–Ficocomardelouca.

–Massetiveresroscasvermelhastambémvaisparecerlouca.–Louro-avermelhado–corrigiuPolly.–Eo teunoivoéque teveesta ideia

estúpida.Asério,vãotodosvestidosassim,ousousóeu?– Todos – confirmou Kerensa. – Os quinhentos convidados. Reuben está a

levaristomuitoasério.–QUINHENTOS?–Nãotepreocupes–continuouKerensa–,nãoconhecesninguém.–Ótimo,jáéumaajuda.OReubenvaivestidodequê?Luke?–Não!DarthVader.Vaiserhilariante.–Nãoestásafalarasério!–Estou!Vaiserfabuloso.–VaiscasarcomoDarthVader.–Ésexy.–Éasmático.Emaléfico.–Poiseuachoquevaisermuitoespecial.

Os quinhentos amigos e familiares deReuben eKerensa ficaram alojados emhotéispertodamansãojuntoaomar,masPollyapenasestavainteressadaemverum. Durante o longo voo não conseguiu pregar olho, nem comer. Quandochegou,demasiadoatrasadaparaoensaio,oquedeixouKerensafuriosa–«Nãovais caminharàvelocidadecerta»–desejoumaisdoque tudoqueohotel lhepermitisse usar a cozinhapara fazermassa de pão e assim acalmar os nervos.Contudo,ao invésdisso, ficouadarvoltasnacamada luxuosasuite, tentandonão se preocupar com o aspeto cansado e afetado pelo jet-lag que teria demanhã.Porfim,cercadasquatrodamadrugada,deixou-seadormecereacordou,muitotarde,namaisbelamanhãamericana.Osolbrilhava;oAtlânticoerabemmaisazulevasto,parecia-lhe,doquedooutrolado.Pediuopequeno-almoçonoquarto, olhou para o vestido branco pendurado na porta e resmungou em altavoz.Nãoconseguiucomernada,sóbeberumcafé.Estavaaterrorizadacomaideia

devoltaravê-lo, sobretudoquandoKerensa,batendo furiosamentenaporta,aarrastouparaumaelaboradasessãodepenteadosemaquilhagem.Quandoviuocabelo ser enrolado em forma de uns ridículos auscultadores, só lhe apeteceudesatarachorar.Kerensa,porseulado,estavabonita:umamaquilhagemsuaveeumextraordináriovestidoaoestiloquimono,enormeeincrivelmenteelaborado,

comocabeloapanhadono topodacabeçaeoqueeraclaramenteocabelodecercadequatropessoaspresoporcima,pararematar.–Uau–exclamouPolly.–Eusei–disseKerensa.–Espantoso,ah?Ocasamentoseriaaoarlivre,numrelvadoperfeito.Haviaumapérgulaatéà

beiradeáguaecadeirascomgrandes laçosnascostas.Os laçoserampretosetinhamimagensdaMillenniumFalcon.–Quemsãoestaspessoas?–perguntouPolly,intrigada.–Oh,todaagenteadoraoReuben–afirmouKerensa,sucintamente,ePolly

deu-lheumabraçoforte.–Adoro-te.–Cuidadocomoquimono–alertouKerensa.–Eutambém.Convideitodosos

amigos ricos sexy dele. Tem de haverALGUÉMneste casamento que não semudeparaoutrocontinenteseobeijares.–Muda-seantesdeeuobeijar,malviremestemalditocabeloem formade

auscultadores...MeuDeus,aquilosãoEwoks?Devemestaraferver.AfamosamúsicadaGuerradasEstrelas, tocadapelaOrquestraSinfónicade

Boston,começouaouvir-sequandofinalmenteasraparigaschegaramàsportasenvidraçadasquedavamparaorelvado.Ocaminhoestavasalpicadodepétalasderosaspretasebrancas.PollyapertouamãodeKerensa.–EEK!–exclamouPolly.–YAY!!–respondeuKerensa.O pai deKerensa, de quem Polly sempre gostara, tentavamanter a postura

mais digna possível vestido de Obi-Wan Kenobi. Pai e filha abraçaram-se eKerensa,firmecomoumarochanoseuenormevestido,fezsinalàraparigadasflores,Cadence,aincrivelmentegordamasmuitosimpáticairmãdeReuben,queestava vestida de uma espécie de criada vermelha, com chifres, para atirarpétalasderosavermelho-sangueàsuafrente.Polly apareceu comum ramode flores brancas nasmãos e tão nervosa que

pensouquefossevomitar.Aoinício,fitouosolhosnochãoqueestavaapisar,mas àmedida que as pessoas começaram a aplaudir (era normal, obviamente,noscasamentosamericanos),ergueuacabeça.Ealiestavaele.Reubendeviaestaremcimadeumacaixa,ouentãotinhasaltosaltos,porque

partindodoprincípiodequeeraele,realmente,queestavadentrodamáscaradeDarth Vader, parecia bem mais alto do que era habitual. E ao seu lado,conseguindomanter-secalmoeestupidamentebonitocomosempre,vestidode

HanSolocomumatraentecoletedecabedal,estavaHuckle.Polly mordeu o lábio e continuou a andar. Ofegos saudavam a chegada da

noivaatrásdesi.Ótimo;Pollysentiuquejánãohaviamuitosolhospostosemsi.Fora-lhe indicadoque ficasseà esquerdado rabino,do ladodanoiva.Huckle,naturalmente, estava do outro lado. Mas foi imediatamente ao seu encontro,estendendo-lheamão.Pollyengoliuemseco.–Olá–disseele,emvozbaixa.–Olá–respondeuelae,comosenuncativesseestadolonge,deu-lheobeijo

maisdocenorostoeconduziu-aatéàsuaposição,apesardeReubenreclamaremvozbaixa,furioso.–Gostodoteucabelo.–Cala-te–afirmouela,comocoraçãoaospulos.–Asério.–Tuestásdecolete.Comopossolevarasériooquetensadizer?Exibiramas suas expressões de adequada solenidade enquantoKerensa, que

parecia verdadeiramente uma rainha, tomou o seu lugar ao lado de Reuben,sussurrandoaPollyquefosseparaooutrolado.Pollyfingiunãoouvir.TambémreparouqueReubentinhabotascomsaltosdeplataforma.Pordentro, todoo seucorpoeraum fogodeartifício, a explodirde alegria.

Nãoconseguiu tiraro sorrisodos lábiosnemobrilhodo rostoquandoHucklelhe pegou gentilmente na mão. Todas as dificuldades, a separação, os longosmesesfriosdeinverno,asnoitessolitárias,osdiascompridos,ofactodevoltaravê-losertemporário;tudoissosedissolveuporestarsimplesmentepertodele.–ONeil?–sussurrouele.–Sabiasquenãoemitempassaportesparaavesmarinhas?Éumescândalo.–Seficaresaquimuitotempo,omaisprováveléelevircáter.Pollysorriu.–Sejátodosseacomodaram–afirmouorabino,bruscamenteelançando-lhes

umolharfulminante–,podemoscomeçar.–Minharainha–recitouReubennumtomgraveemonocórdico,alerdeum

cartão –, que a Força esteja connosco na nossa viagem através da galáxia davida.Prometonuncapassarparaoladonegro...–Éumbocadinhotarde–sussurrouHuckle,ePollydeu-lheumacotovelada.–...massimdeixar-mesempreiluminarpelonossoamor.Prometocombatero

impériomaléfico e que tu tomeso teu lugar aomeu ladopara governarmos agaláxia.–Aceito–afirmouKerensa.

Então,pegouno seupróprio cartão.Pollymordeuo lábio commuita,muitaforça.–MeuJedi,meuamor.Pegonatuamãoeaceitoatuapromessa.QueaForça

sejaforteemnós.SêsempreumJedieeuestareiaoteulado.–Aceito–afirmouReuben,earespiraçãopesadadoacessóriodabocafeza

palavrasairáspera.Pollysentiu-seaficarvagamentehistérica,aquenãoajudouofactode,depois

departiremopratoedeseranunciadoqueReubenpodiabeijaranoiva,elenãoconseguirtirarocapacete.Amaiorpartedaspessoasjáestavaaaplaudirenãoseapercebeuimediatamentedequeestavaadecorrerumalutatitânica.Kerensatentouajudar,masnãoconseguialevantarosbraços,noseuvestidoenorme.Orabino teve de intervir e tentar desapertar o capacete, comReuben a protestarfuriosamenteotempotodo.Pollysentiuumamãoinsistentesobreasua.–Vemcomigo.–Nãopodemosirjá.–Voltamosaindaantesdeeletiraraquelacoisa.Huckle levouPollypelo ladodapérgula com flores entrelaçadas–ninguém

sequerolhouparaeles–edesceramumapequena inclinaçãoatéàpraia,ondeninguémosvia.Láembaixo,elepegounasmãosdela.–Lamentoqueoteunamoradotenhamorrido–começouele,comtato.Pollyfitou-o.–Eu...eugostavadoTarnie–confessou–,maselenãoera...Foihorrívelele

termorrido,masnós...nãoestávamosjuntos.–Agistecomosefosseerrado.– Oh, Huckle! – lamentou-se Polly. NAQUELE MOMENTO. Era errado

naquelemomento,noFUNERAL!NãoPARASEMPRE,seupalerma!PollyviuosorrisolentoedescontraídonorostodeHuckleeconcluiuquenão

conseguia evitar; agora já não havia recuo possível. Atirou-se para os braçosdeleebeijou-o,furiosamente,eosdoisrebolarampeladunaabaixoemdireçãoàágua.–Eupenseiquefossemelhorassim–confessouele,quandosesepararampara

respirar. – Mas, para ser sincero comigo mesmo, nem queria acreditar nassaudadesquetinhadeti,noquantopensavaemti.Todososdias,acadaminuto,acadasegundo.Estavaansiosoporisto.–Euestavaaterrorizada–replicouPolly.

–Porquê?–perguntouHuckle.–Podiastervoltadoparaatuaex...Podiasteroutrapessoa.Huckleabanouacabeça.–Não,nempensar.–Masiresemboraenãodizeresnada...–EupensavaqueestavasdelutopeloTarnieequeseriaumempecilho.E, enquanto se beijavam, todos os convidados – C-3PO, R2-D2, imensos

Ewoks,umJabbatheHuttmuitodescontenteeumJarJarBinksquequaseforaimpedidodeentrar–apareceramno topodadunaecomeçaramadescer,paratirar fotografias. Polly sentiu-se imediatamente culpada pelo seu maucomportamento no casamento da melhor amiga, até que Kerensa, mesmo nocentrodogrupo,acaminharmuitodevagar,comoconvinhaaoseuestatutoderainhaeaosseustrajesdesconfortáveis,seaproximoudelacomoseuramoderosasvermelho-sangueestendido.–Nãovouatiraroramo–afirmou.–Dequalquerforma,nãoconsigolevantar

osbraços.Éparati.

O casamento foi um festim de excesso: ostras e lagosta fresca doMaine, umnovococktail, filas de empregados imaculados e uma famosa banda dos anosoitenta que era péssima em todos os aspetos, embora as pessoas, comos seusfatos, rivalizassem com ela. Os noivos fizeram uma dança coreografada queninguém que assistiu jamais esqueceu; quatros horas de discursos durante osquais seis pessoas adormeceram, uma atuação de cabaret de um famosohumoristadestand-upeumcãobailarino.Tudo isto passou ao lado de Polly e Huckle, que roubaram uma ou duas

garrafas de champanhe Krug e ficaram junto à água, completamenteembrulhados um do outro. Huckle lembrou-se de que deveria ir fazer o seudiscurso de padrinho,mas quando chegou à enorme tenda e viu as pessoas aabanarem-seeadesmaiaremportodaaparte,avançousorrateiramente,abraçouoamigo(cujacarapaçadeplásticoeradesconfortávelaotoqueeestavacadavezmaispegajosa,emboraReubenrecusassetirá-la)esussurrou-lheaoouvido:–Queresaversãocompletaouacurta?–PÕEFIMAESTEINFERNO–respirouReubenatravésdoseuregulador,e

Hucklelevantouoseucopoedeclarou:–AomeuamigoReuben,omelhoremaisheroicototóquejáconheci,eàsua

mulher,que,obviamente,édemasiadoboaparaele–etodaasalaexplodiuemaplausosevivas,acimadetudodealívio.– Ora, o início de vida de Reuben foi um desafio – disse um idoso baixo

vestidodeLukeSkywalkerecomumarmuitopoucosatisfeito,levantando-seeexibindoummaçodepapéistãogrossocomoumalistatelefónica.Asalasoltouum lamento coletivo. Huckle congratulou-se por o rosto de Reuben não estarvisível,agarrounumpratocheiodebolodanoiva(eramnove)eemmaisumagarrafadechampanhe,eesgueirou-sedaliparafora.Ficouparadoumsegundo, aolhar.O sol estavaapôr-se atrásdeles eo céu

ganhara tons cor-de-rosa e amarelos, numa luz suave e clara que iluminava ocabelodePolly,dequeelajásoltaraasroscasridículasequeagoralhecaíanumsuaveonduladosobreosombros.Estavatotalmenteimóvel,acontemplaromarcomumolharpensativoelongínquo,oridículocoletedelesobreosombrosdoseu vestido branco. Huckle não estava habituado a vê-la quieta; ela estavasempre a fazer qualquer coisa, por vezes cinco coisas em simultâneo: a rir, acomer,afazerpão,a limpar,areceberdinheiro.Normalmenteeraumpoçodeenergia.Vê-latãotranquilaeparada...Ocoraçãosaltou-lhenopeito.–Ei–disseele,comavozmuitosuave.Elavoltou-seesorriu-lhe,enquantoas

ondasenormessedesfaziamnapraia.

Ohotelondeambosestavamhospedadoseraestranhamentedespido;moderno,supôs Polly. Tinha chão demadeira, paredes revestidas de ripas demadeira ecorespálidasportodaaparte.Chegaramláhorasantesdosoutros,quandoumagigantescabandadiscochegouàmansãoeobrigoutodaagenteadançar.–Jácomeçavaaparecermenosdiversãoemaisumamaratonaderesistência–

comentouHuckle,gentilmente.–SabescomoéoReuben–observouPolly–,nãohálimitequeelenãopossa

superar.–Hucklesorriu.–Éverdade.–Olha,trouxe-teisto.PollytiroudamalaumpotedomelHuckle.–Ah!–exclamouele,observando-o,maravilhado.Arrumaraesseladodasua

vida,atéjánempareciadele.VoltouaolharparaPolly.–Bom,tenhofome–declarou.

Polly, encorajada pelo champanhe, pela longa espera, e com o desejo definalmenteagarraromomento–deagarraralgoparasi–despiuapartedecimadoseuvestidobranconumsómovimento.Porbaixo,nãotinhanada.–Uau–exclamouHuckle,ofegante.–Olhaparati.A pele de Polly, normalmente muito clara, ganhara um tom dourado, com

sardas a saltar à luz do sol, e o seu cabelo louro-avermelhado tinhamadeixasmaisclaras.–Éstãobonita–disseele,quandoosúltimosraiosdesolbanharamocabelo

delaatravésdaclaraboia.–Tãobonita.Pollysabiaquenaverdadenãoera.Masali,naquelequarto,naquelaluz,com

aquele homem, sentiu que era. E isso era suficiente. Aproximou-se dele –finalmente! finalmente!, gritavam os seus nervos – mas embora estivesse atremer,tambémfoipaciente.Iriafazertudodevagar,desfrutardecadasegundo.OenormeelargopeitodeHuckle,depoisdedespiracamisa,estavabronzeado,compeloslourosclaros.Elaqueriaenterrar-senele.Elelevantou-aesentou-anoseu colo, como se fosse leve como uma pena, e antes de voltar a beijá-la,enterrouacabeçanoseucabelo.–Quero-tetanto.Pollyolhouparaeleesorriu.–Isso–disse–dájeito.Huckle soltou a sua gargalhada lenta e relaxada. Depois, pegou no mel,

mergulhouneleosdedose,compinceladaslongaselânguidas,esfregou-osnospequenospeitosdela.Pollysoltourisinhos.–Issovaificartãopegajoso–alertouela.–Eutiroutudo–prometeuHuckle.Masotempodaspiadasacabara,ederepentetudosetornoumaissério,mais

intenso, enquanto se perdiam totalmente, de corpo e alma, um no outro, aténenhumdosdoissercapazdedizerondecomeçavaumeooutroterminava.–Istoera...fogodertifício?–perguntouHuckle,porfim.– Sim – respondeu Polly, com os olhos cheios de estrelas. Então, focou-os

novamentenoquarto.–Oh,meuDeus,émesmofogodeartifício,nãoé?–Ouentãoestamosasofrerumataquemilitar.Lá fora decorria, obviamente, o fogo de artifício mais colossal que Polly

alguma vez vira. O céu estava recheado de furiosas explosões e estrondosenormes.Umgrandecoraçãovermelhotremeluzentesobrevoavaomar.PollyeHuckleentreolharam-seerebentaramarir.

–Équase–comentouHuckle–comosealguémestivessea tentardizer-nosalgumacoisa.Vestiram-se rapidamente e correram para a praia, para longe da zona onde

estavamaserservidoscestosdepiqueniqueenquantoofogodeartifícioentravanoseutrigésimoeesgotanteminuto,edeitaram-senasdunas,nosbraçosumdooutro,averoespetáculo.

CapítuloTrintaeDoisNo dia seguinte ninguém acordou a tempo do pequeno-almoço, mas PollyconseguiuapanharKerensaantesdeelapartiremluademelnumsafariàvoltadomundo,aofimdodia.Haviaumbrunchenorme,masPollyestavademasiadoexcitadaparacomer.AgarrouKerensajuntoàporta,comintençãodelhepedirdesculpa,masKerensafalouprimeiro.– Ai, meu Deus – lamentou-se. – Desculpa, desculpa. Não consegui ver

nenhumdosmeusamigos,passeiotempotodoaapertarasmãosdevelhoteseafazer posepara as fotografias.Olha!Au!Dói-me a cara!Ser famosodeve serassim.Queporcaria.–Masdivertiste-te?–perguntouPolly.Kerensaanuiuintensamente.–Adoreicadasegundo.–OReuben?Kerensaficouumpoucoconstrangida.– Ele... Quer dizer, o capacete era um bocadinho quente... É só uma

precaução.–Como?–Estáligeiramentedesidratado.Puseram-noasoro.–EleestánoHOSPITAL?

–Elediverte-seatécair–defendeu-oKerensa.–Poisé!–confirmouPolly.–Bom,vejo-omuitoembreve.–E tu,ondevais?–perguntouKerensa.Foramatéàsalade jantardohotel,

que forapostacomtodoo tipodecomidaquePollypoderia imaginar:bagels,salmãofumado,ovos,croissants,todaaespéciedefrutafresca,umamáquinadesumos,panquecas,gofres,champanheportodaaparte,claro,pastéisdebatataesalsichas.–MeuDeus–comentouPolly.OsconvidadosdePlymouthestavamsentados

numamesadocanto,etodosaclamaramKerensaquandoelaentrou.EficaramsurpreendidosporverPolly.–Pensávamosquetinhasidoembora!–Pensávamosquejánãofalavasconnosco!Pollydeu-secontadequeeraaprimeiravezqueviamuitosdelesdesdeque

saíradacidade.Sentira-se tãoenvergonhada, tãoconstrangidaquenãodeixaranenhumdelesaproximar-se.Aoveraquelesrostossimpáticoseinteressados,eoseu notório prazer de voltarem a vê-la, quase não acreditou que tivesse sidodemasiadoorgulhosaparapedirajuda,tãocertadequeninguémcompreenderiaaquilo por que estava a passar. Apertaram-se para deixar espaço para ela elançaram-se em imensas perguntas sobre o que fizera desde que deixaraPlymouth. Quando lhes contou, eles ficaram impressionados, o que eragratificante,eKerensasorriuparasimesma,emsegredo.Huckle dormira até tarde, há meses que não dormia tão bem, desceu e

encontrou-a a rir e a conversar animadamente com os amigos, que já haviamfeitos planos para ir aMount Polbearne no verão. Sorriu nervosamente e elaolhou-o timidamente, com os acontecimentos da noite passada ainda bemvincadosnasuamemória.–Olá–disseela,levantando-se.Umdosseusamigosdeixousairumdiscreto

«uup»eelamandou-ocalarimediatamente.– Este é o meu amigo Huckle – afirmou Polly, com toda a dignidade que

conseguiureunir,masoseusorrisotraiu-acompletamente.–Tu–afirmouRich,umdosseusvelhosamigosquetrabalhavaemmarketing.

Eleapontou-lheumdedo.Aindaestavabastantebêbadodanoiteanterior,eosBuck’s Fizzes estavam agora a ajudá-lo. – Tu NUNCA mais voltas paraPlymouth.

–Vemcomigo– convidouHuckle, quando ficaram sozinhos. –VemconhecerSavannah.Pollyengoliuemseco.Jaydeneracapazdecuidardalojadurantealgumtempo,mas não fazia pão como ela. A qualidade ressentir-se-ia rapidamente. MasHuckleenchendo-adecaríciase,antesdeelaconseguirdizeralgumacoisa, jálhecompraraobilhetedeavião.Pollyligouparacasaetudoficoudecidido.Maselanãotinhammuitotempo.

–Uau–comentouPolly,olhandoemvoltaparaoapartamentominimalistacomvidrodochãoatéaoteto.Láfora,asluzesdeSavannahpareciamestarlámuitoembaixo.–Nemacreditoquevivesaqui.–Agoraque já estreámosa cama,nuncamais saiodaqui–afirmouHuckle,

deitando-secomosbraçosatrásdacabeça,numaimagemdedeleitetotal.Pollyolhoufixamenteparaoseucorpo,comquesonharatantasvezes.Vê-lo

assimexpostoparaelaeraquaseexcessivo.–Hum–sussurrouela,eelesorriu-lhedevolta.– Então – disse ele –, o que queres fazer amanhã? Podes ir ao centro

comercial.–Porquê,oquevaisfazer?–perguntouela,surpreendida.Hucklemordeuolábio.– Tenho de ir trabalhar. Por isso, pensei que talvez gostasse de ir comprar

algumascoisas.– O quê? – perguntou Polly, subitamente preocupada. – Eu nunca faço

compras.Huckleencolheuosombros.Pensara,apercebeu-seacertaaltura,queumavez

quea levasseparaali,queela ficaria,estaria tão felizsódeestaraliqueseriatudoperfeito.–Estábem–replicouele.–NÃOVÁSÀSCOMPRAS!Éumaordem.Dáum

passeio,conheceSavannah.Acidadeélindíssima.Eleestavaatrásdelaeabraçou-a,enquantoolhavamosdoispelajanela.–Nãotemosdeviveraquiparasempre,sabes?–referiuele.–Vaiveraparte

antigadacidade;hálácasasmaravilhosas,comjardim.Podíamosviverlá.Pollyvoltou-se,magoada.–Maseutenhocasa.–Alugasteumapartamentoquedeixaentrarchuva–realçouHuckle.

–Porenquanto–replicouPolly.–Maseuestavaapensar...Naverdade,nãopensaraseriamentenoassunto,massaiu-lhe.–Estavaapensarcomprarofarol,aliás.Hucklesoltouumagargalhada.–Estásafalarasério?–Talvez.–Aquelefarolvelhoacairdepodre?Vaiserpiordoqueoteuapartamento.–Nãocomalgumcuidadoeatenção.–Eaquelaluztoda!–Naverdade,DENTROdofarolnãosevêaluz–referiuPolly.–Éoúnico

sítioquelheestáimune.Huckleabanouacabeça.–Adoroastuasideiasloucas.–Nãoé...Ambossesilenciaram,pressentindoumdesentendimento.–Vaisterumpostedebombeiros?–acabouporperguntarHuckle.–Talvez–respondeuPolly,tentandonãoparecerdefensiva.–Enfim.–Enfim.Hucklesentou-senacamaeosdoisentreolharam-se.–Desculpa–disseHuckle, lentamente–,mas eupensava...Eupensavaque

viriasvivercomigo.Aqui.Pollypestanejouváriasvezes.–Maseuvimaocasamento.–Sim,eusei,massabes.Viesteparamimtambém,não?–Não–replicouPolly.Eraumameiamentira.–Querdizer,euqueriaver-te,

mas...Foisóquandorealmentetevi...Huckleanuiu.– Sim! Viva! – exclamou ele. – Quer dizer, FIXE, olha para nós! Somos

fantásticos.Nãosomos?Pollyanuiu.–EtuestásaquiAvozdelesumiu-se.Pensaranisso,tinhadeadmitir.Nãoseriamaravilhosose

Polly não precisasse de acordar às cinco da manhã todos os dias, matar-se atrabalhar, ficar cheia de farinha, comportar-se como uma aprendiz de Mrs.Manse,queodiava,evivernaquelaespelunca?Nãoseriamaravilhosoparaelaestar ali, numa boa casa com ele, descansar, tirar algum tempo? Partiu doprincípioqueseriaexatamenteissoqueelaquereriaEletinhabastantedinheiro,

podiapagartudo...HuckletentouexplicartudoistoaPolly,apercebendo-sedequeaquiloque,na

sua cabeça, lhepareceraperfeitamente lógico e sensatonão estava a sair nadabem, agora que começava a expressá-lo. O seu rosto estava cada vez maispreocupado.–Mas agora éminha – tentou Polly explicar. – A padaria.MistressManse

reformou-se e foi viver com a irmã. Deixou tudo nasminhasmãos. Éminharesponsabilidade.–Masaqui tambémpodesfazerpão–argumentouHuckle,beijando-aaode

levenorosto.–Hum?Pollyafastou-se.–Tinhas isto tudoplaneado?–perguntouela,comocoraçãoabateramilà

hora.Huckleencolheuosombros,olhouparaotetoedepoisparaela.–Nãotenhonadaplaneado–confessou.–Masquero-tetanto.Eram as palavras, percebeu Polly para seu grande pavor, que ansiara ouvir;

quehámuitotempodesejavaouvirdesesperadamente.QueriaestarcomHuckle,sonhavacomele,pensavaneleconstantemente.Equiserapartilharcomeletodaa sua alegria na padaria, todas as histórias divertidas, todos os dias de marécheia.Sóofactodeestaragoracomele,respiraroseucheiro,estarnoqueelasempre sentira ser o fulgor da sua companhia, que a animara sempre que eleestavaporpertoEleestavaaoferecer-lheomundo.Pollyolhou-ofixamenteesentiuassuasmãosfortesemaciasaacariciar-lhe

osombros.–Maseunãoposso–afirmouela.–NãopossosairdePolbearne.Trabalhei

tantoparaconstruiralgomeu.–Emerecesumdescanso–argumentouHuckle.–Ficaporunstempos.Pollyfitouosseusolhosazuisintensos.–Nãopodestumudar-te?–perguntou,quaseaimplorar.Huckleengoliuemseco.–MasPolbearnefoi...Foiumapausaparamim.Nãoeraaminhavidareal.O

meu trabalho,omeuemprego...Nãoposso fazerpotesdemelparao restodavida.–Háquemfaça–retorquiuPolly,emvozbaixa.–Foifantástico,masasério,nãopossovivernumsítioondesótepossaverse

as marés estiverem de acordo comigo. – Soltou uma gargalhada. – Tens deadmitirqueéumbocadinholouco,aquelesítio.

Pollyrecuou,comosetivessesidopicada.–Agora é aminha casa – afirmou. –Alémdisso, fala-se em construir uma

ponte.–Umaponte!–comentouHuckle.–OraaíestáumaideiaBRILHANTE.Masrapidamentepercebeu,pelaexpressãodePolly,quenãoera.

ObilhetedePollyexpiravanodia seguinte.Hucklemostrou-lheSavannah,naesperançadequeelaseapaixonassepelacidade,eelafoigentil,gostoudosseusedifícios bonitos,mas ainda estava um calor horrível e era difícil estar na ruadurante muito tempo. Não havia muito mais a dizer, por isso, fizeram amor,choraram,depoisdormiram,acordaramechoraramantesderecomeçarem.–Deixa-merasgaro teubilhete– implorouHuckle.–Saide lá. Jáo fizeste

umavez,podesvoltarafazer.– Mas eu não posso – retorquiu Polly, tristíssima. – Devo isso a Mistress

Manse, e ao Jayden, e trabalheimuito para construir o negócio. É a primeiracoisaquealgumavezfizsozinha.Compreendes,não?Eleanuiu,decoraçãopartido.–Maspodesfazê-looutravez,nãopodes?Agoraquejáofizesteumavez.– Não me parece – respondeu Polly. – Nem sequer posso trabalhar na

América.Nãopoderiafazeraquiloaqui.–Entãonão façasnada–pediuHuckle.–Não façasnada.Vemsóviverna

minhacama.Pollyriu.–Nãoseidurantequantotempoéqueissopoderiafuncionar.Nãopodesvoltar

paraaCornualha?Ésótimoatrocardepaíscomoquemtrocadecamisa.Huckleestavamuitotriste.–Masaminhacasaaminhafamília,omeuemprego,tudo...Nãoseiseseria

capazdefazê-lonovamente.Souadulto,tenhodecomportar-mecomotal.Pollyanuiu.Compreendia.Oquehaviamtidoforaumsonho,umafantasia.Nãoeramadolescentes.Eram

adultos,comresponsabilidades.–Eeunemacreditoquefuiatuapaixãodeférias–referiuPolly,semsequer

sedaraotrabalhodelimparaslágrimasqueaindalheescorriamdosolhos.–Tunãofoste...Nãoés–retorquiuHuckle.–Haveremosdearranjarmaneira.

Temosdearranjarmaneira.

Quandootáxichegouparalevá-laaoaeroportoagarraram-seumaooutro.–Talveznãodevesseir–aconselhouotaxista,prestável.–Nãovás–disseHuckle aPolly, como rostoperturbado. –Por favor.Por

favor,queistonãosejaofim.Nãopodeserofim.Outraveznão.Pollyolhouparaele.– Não achas que será ainda pior? – sugeriu ela. – Se fingirmos? Se

continuarmosafingir?Huckleabanouacabeçafuriosamente.–Nadapodeserpiordoqueisto–retorquiu.–Nada.Ficaram imóveis, o taxista a suspirar e a olhar parao relógio, e o trânsito e

buzinarfuriosamenteaocontorná-los.–Nãoqueroquevás–insistiuHuckle.–Eunãoqueroir–concordouPolly.–Ir,nãoir–comentouotaxista.–Otaxímetroestáacontar.Huckle precisou de todas as forças que não tinha para se refrear e não

perseguirotáxipelaOitavaAvenidaforaeagarrá-lanosbraços.Acadasegundoesperavaqueelasaltassedocarroeviesseacorrerparaele.Maselanãoofez.Atordoada,dormente,demasiadoexaustaatéparachorar,Pollysentou-secom

ascostascoladasaobancorasgadoevelhodotáxibrancoeolhouparaovazio.

CapítuloTrintaeTrêsHaviasempreo trabalho,claro.EPolly tinhamuitasoutrascoisascomqueseocupar.Jádecidiraqueiriacolocaraminúsculaquantiadedinheiroquesobrarada venda do apartamento de Plymouth num depósito para... Enfim, não, eraridículo. Nunca conseguiria. Os amigos de Samantha e Henry já haviammencionadoomáximoque seria viver num farol, ePolly sentira-se ressentidaquandolápassaracomNeileolhavaparacima,paraasjanelinhas,paraassuasriscasadesbotarem,pelofactodevirasercompradocomobrinquedodefériaspor alguémque sóqueria exibi-lo, quando sabia– tinha a certeza, aliás–queadorariaviverali.Perguntou-se o que pensaria Huckle, mas depois encolheu os ombros e

esqueceu.Eleligava-lhetodososdias;enviavae-mails.Naquelamanhãenviaraumpoema, e ela perguntara-se senãodeveria deixar de falar comele, porquedoíademais.Eucriosetecírculos,meuamor,ParatuquebraresdealegriaCrioocírculocinzentodopãoEocírculodacervejaEandocomamanteigaàrodanumaargoladourada

EdançoquandotutocasviolinoEviroomeurostocomosolatéosteuspésviremdocampo.Aminhalanternalançaumcírculodeluz,Eentãotudescansasumahoranoquentecírculoinquebradodosmeusbraços.

Ficou de olhos postos nele durante vinteminutos e depois trabalhou amassacomtantaforçaquequasedeslocouosombros.Agoraestavasentadanomurodoporto,averosolaficardouradonocéuea

acenar para os pescadores, a caminho do trabalho. Dave estava bronzeado efeliz,nabrincadeiracomosoutros.Jaydenfazia-lhessanduíchestodososdiasapreçoreduzido, levava-asaosbarcoseficavaaconversar.Pollyperguntara-lheseelesentiaalgumafaltadapesca,maseleriracomtantasinceridade,quenuncamaislheperguntara.Naverdade,estavacadavezmaisadaptadoacadadiaquepassava;eraumpadeironato.Polly foiparacasa,viuas ridículas fotografiasda luademeldeKerensano

Facebook,fezumjantarsimplesesóvoltouaolharparaopoemamaisoitoounove vezes. Depois de comer, obrigou-se a ir ao pub a mais uma dasintermináveis reuniões de Samantha sobre como travar a ponte. Pareciamintermináveis,realçouarrojadamenteSamantha,porqueaponteaindanãoestavaconstruída, por isso, estavam obviamente a trabalhar. Samantha levou o bebé;Murieltambémtinhaoseucomela,ePollypensounasmudançasaqueassistiranoúltimoano,agoraquesepreparavamparamaisumatemporadadeverão.Samanthafalava,masamentedePollyestavaamilhasdedistâncias.–Oqueacha?–perguntouSamantha,comoumaestaladanorostodePolly.– Bom... Concordo – balbuciou Polly, tentando fingir que sabia o que se

passava.–Então,estádecidido!–exclamouSamantha,gerandoumcorodesuspiros.–

APollydesempatou!–Comoqueéqueconcordei?–perguntouPolly,preocupada,aJayden,que

pareciazangandoenquantoseencaminhavamparaobar.–Comoprotesto–respondeuJayden.–ASamanthavaichamaraimprensae

nós vamos ter de fazer um cordão demãos dadas ao longo do passadiço paraimpediraconstruçãodaponte.–Masassimvamosafogar-nos!–exclamouPolly.–Issoéumaideiaridícula.

Esóvaiprovarqueprecisamosdeumaponte!

–Eusei–afirmouJayden,emtomdelamento.–Eaáguaégelada!Aindasóestamosnaprimavera.–Eusei.Eeuqueroiraumadiscoteca.–Vai lá à discoteca de umavez! – replicouPolly, exasperada. –Fica numa

pensão,ouqualquercoisa.Jaydenfranziuosobrolho.–Uau!Boaideia!Agoratenhoaqueledinheirotodo!– Que dinheiro? – perguntou Polly, semicerrando os olhos. Ele ganhava o

ordenadomínimo.–Odinheiroqueganhoagora–explicouaPolly,todofeliz.–Nãovaisdizerqueémaisdoqueoqueganhavasquandoeraspescador!–MUITOmais–retorquiuJayden.–Uau,umapensão.Quemdiria.Fazem-

nosopequeno-almoçoetudo.–Sim,fazem–confirmouPolly.

O cordão humano foi marcado para o fim de semana da Páscoa, o primeirograndeferiadodatemporada,etrêsdiasantesoconselhoregionaliriavotar.Avila iriacongregar-senopassadiçomalaprimeiramarévazassee ficariaatéàsegunda,comcartazesepalavrasdeordem.Asegundamaréseriaporvoltadascincohoras,alturaemque,esperavameles,asuaposiçãojáestivessebemclara.KerensaeReubenfariamumintervalonaatualetapadasualuademel(Porto

Cervo na Sardenha – Kerensa dissera que as mulheres ricas eram todoshorrorosas e que Reuben insistia em tentar comprar-lhe malas pavorosas, porisso, haviam decidido ficar-se por imenso sexo) para se lhes juntarem, emsolidariedade (e Polly suspeitava que fosse também uma oportunidade paraReubenpassearnoseuRiva).Asmanhãsestavama ficarmais claras, enessedia,Pollyacordou,poruma

vez na vida, com a aurora cor-de-rosa e fezmuitosmais brioches do que erahabitualparaochurrascopós-cordãohumanoqueestavaplaneadodecorrernapequenapraiadeseixos.OuviraLance,oagenteimobiliário,queixar-senopubdenãoconseguirdespacharofarolanãoserqueconstruíssemamalditaponte,eficoucautelosamenteesperançada.Alémdisso,estavaumamanhãlinda,pensou,assobiandoalegrementecomo

magníficocheirodequenuncasecansavaequesubiadosfornos.Estavaansiosaporveros amigos.ConvenceraumgrupodePlymouthavirpassarodia com

ela;Christalvezviesse,também.Aparentemente,asuanovanamoradaeraumaartistaradicalcomgrandespiercingsnonarizequefaziaquadroscomsangue.Polly achou-a interessante. Neil deu um salto e ela acariciou-lhe as penasafetuosamenteedeu-lheumbeijodefugidanobico.– Vai ser um dia bom,Neil – afirmou calmamente, olhando pela janela da

padaria para leste, onde os intensos raios dourados começavam a refletir naespumadasondas,edepoisemfrente,ondeouviuosbarcosdepescaaregressar.PoucomudaraemPolbearne,ePollyqueriaqueassimcontinuasseaser,enãofoiaprimeiravezqueseperguntoucomoestariaMrs.Manse.

CapítuloTrintaeQuatroHuckle sabia que estava na altura; sabia-o há muito tempo, na verdade. Nãorecebera resposta ao seu poema, que ele pensara que pudesse fazer faísca –acreditaranisso,queria tanto acreditarquequase correraparao aeroporto,poramordeDeus.Masnão.Agoratinhaderesolveressapartedasuavida,seguirem frente.EmSavannah tudo corria àsmilmaravilhas, o trabalhomantinha-omais ocupado do que nunca, podia sair todas as noites, se quisesse, emborararamenteofizesse.Eraumacoisaqueteriadefazer;hádemasiadotempoqueandavaaadiar.Fechouaportadoseugabineteecarregouno9,parafazerumachamadatelefónicadelongadistância.Primeiroparacasa.Ligouparaaagênciaimobiliária.Ficaramtãoradiantespor

teremumapropriedadepremiumparaalugarnazonaemascensãodePolbearne,o novo local da moda que até já aparecera nos suplementos dos jornais dedomingo,quenemsequerlhecobraramumataxaporestaraentregá-laantesdofimdo contrato de arrendamento.Aparentemente, tinhamuma lista gigantescade candidatos que se haviam apaixonado por aquela região pitoresca e queachavamqueterumacolmeiaseriaopróximopassoideal.Pediu à sua assistente para lhe trazer um café e depois ligou à agência de

emprego para cancelar o serviço do apicultor – os novos inquilinosmudar-se-iamnasemanaseguinte,porisso,bastariaapenasmaisumavisita.

Amulherdooutroladodotelefoneficouconfusa.–Peçodesculpa,MisterSkerry,masosenhorcancelouoserviço.–Não–replicouHuck.–Sim,estábemexplícitoaqui.MisterMarsdenvoltoucáedisseque jánão

erapreciso.Ele já deixou a agência, lamento, senãopoderiaperguntar-lhe.Háváriosmesesquenãoenviamosláninguém.Huckle agradeceu-lhe e ficou a pensar. Polly trouxera-lhe aquele mel todo

quandoláestivera,eomelerafresco.Nãosófrescocomoexcelente;fizeraumanotamental para felicitar o apicultor,mas depois, na confusão de tudo o queaconteceracomPolly,esquecera-secompletamente.Aospoucos,apercebeu-se.Queidiotaquefora.Oqueraio...De repente, imaginou-a como se estivesse ali mesmo à sua frente. Viu-a

caminharpelocaminholadeadodeárvores–tãobonitas–comchuvaousol,deverãooudeinverno,todososdias,parairtratardassuasabelhas,alémdetudooque tinha para fazer. Os seus olhos pestanejaram cheios de lágrimas. Todosaquelesmesesemquepensaraqueelaestavaapaixonadapelarecordaçãodeumfantasma;todosaquelesmeses,nalamaeàchuva,atravessaraopassadiçoeforaatésuacasaparatratardasmalditasabelhas.Olhouemvoltanogabinete–anovidadedeestarnovamenteocupadoestavaa

desvanecer rapidamente. Pensou no emaranhado de autoestradas e nas noiteshúmidas, na gravata demasiado apertada no pescoço, nos amigos que lheenviavammensagenscoletivasadizerqueiamaumjogodebasebol,ospapéisempilhados na secretária, a promessa que fizera de levar a mãe à igreja aosdomingos,oconviteparaocasamentodeCandiceeRon,queindiciavasertãoexagerado como o de Reuben. Toda a sua vida se acumulava à sua volta,prendendo-o,esóconseguiapensarnaquelasmalditasabelhas.Bom,sónão.Semseaperceber,alargaraagravata.–Caramba–disseparasimesmo,passandoasmãospelocabelo.–Caramba.

Susan!A sua assistente estava como cafénamão, esperançada.Estava loucamente

apaixonadaporele.–Eutenhode...Hucklenãosabiaoquedizer.Aúltimavezquepartiraforaemsegredo,tirara

unstemposnosseusprópriostermos.Destaveznãopareciaternadaavercomele;assuaspernasmexiam-secomvontadeprópria.Nãoqueriaacreditarqueiafazê-lonovamente.Masia.–Sim,eutenho...assuntosatratar.

–Algumacoisaemquepossaajudar?Huckleabanouacabeça.–Não.Podechamar-meumtáxiparaoaeroporto?

Não ligou a ninguém, não informou, não parou para pensar. Mal dormiu noavião, mas a longa viagem de comboio entre Londres e Looe deixou-ototalmentederastoseocobradortevedeoabanarsuavemente,poisviraoseudestino na reserva do lugar. Huckle agradeceu-lhe veementemente. O taxistatagarelouininterruptamenteatéPolbearnesobreosucessoincrívelemqueavilase tornara, sobre a possibilidadedevirema ter umaponte e que issomudariatudo.Aprimavera já se instalara, emuitas das estradas serpenteantes estavamsalpicadasdeflorescor-de-rosaebrancas.Porentreascolinasondulantes,omaraindacintilava.Hucklesuspirou.Esquecera-sedecomoerabonito.Otaxistafoiatéaocaminhodeterraenãoavançoumais;Huckleagradeceu-

lheetiroudotáxioseusacodepele.Exausto da incrivelmente longa viagem, percorreu o caminho quase a

cambalear,comoespessotapetedepétalasdebaixodospés.Parouuminstantenoportãodacasaepousouosaco.Depois,tirouossapatos

easmeias,parapoderenterrarospésdescalçosnaervafriaemacia.Conseguiaouviroreconfortanterumordopequenoregatoeosuavemurmúriodasabelhas.– Olá, meninas – sussurrou, dominado pelo cansaço e, estranhamente, pelo

mais extraordinário alívio. Reparou, quase sem surpresa, que os seus fatos deapicultor haviam sido lavados e estavam impecavelmente pendurados. Asprópriascolmeiasmurmuravamnumestadoimaculado.Aceraforaraspadaeomelcolhidonaperfeição.Huckleolhouparaasárvorescomasfitasdeluzeselembrou-sedanoitequealihaviampassadoabeberhidromel.Sorriu.Todososseus sonhos regados a hidromel se esfumaram em troca de um emprego bempagonumescritóriocomarcondicionado.Não.Não,não,não.Rápidocomoumaseta,Huckledespiuoseuelegantefatodeviagem,correu

paraochuveiro,saltandodeexcitaçãoedeadrenalina,evestiuumascalçasdegangaeumaT-shirtvelha.Saiudecasaesbaforido,semsequerfecharaporta,acomer pasta de dentes, para se despachar. Ainda bem que a mota pegou àprimeira,porquejánempensava,nãoplaneava,nãoestavaafazernadaracional.Easensaçãoeramaravilhosa.Acelerouatravésdasestradasestreitas,evitandoporpoucoumenormecamião

com uma carga gigantesca de seixos e aparecendo com um rugido no fim daestrada que dava para o passadiço. A maré estava a subir; havia uma placaausteraaavisaraspessoasparanãousaremopassadiçoduashorasantesdamaréalta. Estava dentro desse período, mas não se importou. Nem reparou queestavam ali imensas carrinhas e carros estacionados, alguns com logotipos detelevisões, e uma pequena multidão; tudo o que queria fazer era chegar aopassadiçoantesquefechasse.Eentãoviu.Aolongodopassadiço.Umagigantescalinhadepessoas;todaa

Polbearne,demãosdadas,desdeocontinenteatéaoMount.–Oquesepassa?–perguntoueleaMuriel,queestavanaextremidade,com

umbebéamorosonumporta-bebésàscostas.–HUCKLE! – gritou ela. –Oh,meuDeus, voltaste!A Polly está na outra

ponta!–Oquevocêsestãoafazer?–Estamosaprotestar.Nãoqueremosumaponte!–Nãoàponte,nãoàponte!– entoavaamultidão, filmadapelas equipasde

televisão.HuckleirrompeunumsorrisodeorelhaaorelhaepegounobraçodeMuriel.–Éissomesmo!–afirmou.–NÃOÀPONTE!NÃOÀPONTE!Masviuqueaáguajáestavaasaltarporcimadalateraldopassadiço.Olhou

preocupadoparaobebé.–Porquantotempovãocontinuar?–perguntou.–Eusei,estamosquaseaacabar–respondeuela,emaleleacaboudefalar,

ouviu-seummegafone.– ABANDONEM O PASSADIÇO! ABANDONEM O PASSADIÇO!

MOUNT POLBEARNE PARA SEMPRE! – convocou uma voz que HucklereconheceuserdeSamantha.Uma onda de pessoas correu na sua direção, e ele teve de se debater para

conseguiravançar.–Não,jáacabámos–afirmouJayden,comarsolícitonoseucoleterefletor.–

Válá,senhorAh,éVOCÊ.–Sim–confirmouHuckle.–Bom,temosdeestartodosforadopassadiçoàscinco.Éalei.–EusóquerofalarcomaPolly.–Elaestádooutrolado...falacomelaamanhãdemanhã.A água já passava por cima do passadiço e toda a gente corria com pés

molhados.

–Eusourápido.–Nãovaiconseguir–afirmouJayden.–Eeuestoudestelado,possolevaro

barco.–Euficobem.–Estágelada–alertouJayden.–Nãoficanada.Nãosejaparvo.Hucklesorriu.–Osmeustemposdeparvoícejáacabaram–declarou.–Excetohoje.Soltou-se dos braços de Jayden e começou a empurrar através da maré de

pessoas.Gritouonomedela–«Polly!Polly»–masnãoavia.

Polly foi umadas últimas pessoas a abandonar o passadiçodo ladodeMountPolbearne: foi uma correria e ela ficou para trás para deixar os outros passar,sobretudo os mais pequenos. Quando a água começou a subir, os habitantesficaramreceososporestaremnopassadiço,ecomrazão,sabia.Dequalquer forma, estava comchinelosdepraia, não se importavade ter a

água fria a roubar-lhe as pontas dos dedos dos pés. Seria o pôr do Sol maisespetaculardesempre.Lançouoolharaosedifícios,quepareciamestaraarder,ouvindo as conversas e o riso das pessoas que passavam por ela, felizes poraquele dia – a adesão fora incrível, o passadiço ficara cheio. Patrick foranovamenteentrevistadoparaumjornal,porissotodosestavamfelizes.Não foi um sommuito duradouro,mas algo lhe chamou a atenção, algo no

vento,eemboraaáguajáestivessedesconfortavelmentealta,parou,voltou-seeolhoupara a figuradistante.Aindahavia alguémnopassadiço.O seu coraçãoparou.Entãoreconheceu-o.Todas as outras pessoas já haviam ido embora; o passadiço estava fechado.

Mas ele estava ali. Ele estava ali, só isso lhe interessava, e Polly desatou acorrer.Elecorreuaoseuencontrotambémagrandevelocidade,comomesmoolhar

determinado,olhando-adiretamente.Aáguajálhebatianostornozelos,osolerauma grande bola fulgurante no céu raiado de cor-de-rosa quando os doischocaram no meio do passadiço. Sem sombra de hesitação nem uma únicapalavra, Huckle ergueu-a como se ela fosse feita de algodão, rodopiou-a nosbraçosebeijou-anaboca.Elaretribuiuavidamente,comosenãotivessehavidoqualquer separação entre eles, como se fosse o mesmo beijo que haviamcomeçadonovelório:amesmaintensidade,amesmaforça.Hucklepareciaum

homemamorrerdesedenodesertoque receberaumcopodeágua.Pollynãopensouemnada.SóquandoaáguachegouàscoxaséqueHucklerecuou,relutante.–Achoqueémelhorsairmosdaqui–afirmou,pousando-asuavemente.Polly

riucomaondadeáguafria.As pessoas gritavam-lhes dos dois lados enquanto eles patinhavam, a rir

perdidamente,devoltaao ladodeMountPolbearne,demãosdadas.Asondassubiamaumavelocidadeincrível,aáguageladabatia-lhesnopeito,masforampuxados por mãos amigas. Archie repreendeu-os, mas eles entreolharam-se evoltaram a rir. Para Polly era tão espantoso o facto de Huckle estar ali,novamente à sua frente, a sorrir comoum rapaz de quinta crescido.Sóqueriapassarosdedospelosseusespessoscabelos,quepareciamcaulesdemilho.– Posso fazer uma piada terrível sobre roupas molhadas e despi-las? –

perguntouele.–Tu–respondeuPolly–podesfazeroquequiseres.

Polly levou-o para o quarto grande que tanto adorava, que lhe assombrara ossonhos,comvistaparaomar,queagoraeraumavistaparaumazul límpidoepuro,aescurecer.Osbarcosestavamtodosnomar.Ótimo.PollyfechouNeilnacasadebanhoevoltou,outravezumpouconervosa.–Tensfome?–perguntouela.–Nãosei–respondeuHuckle.–Sim.Eelafoibuscaropãofrescoeomelnovo.

Mais tarde, feliz, saciada,Polly enroscou-sedebaixodo cobertor comHuckle,inalandooseumaravilhosocheiroquente,afagandooscaracóisdouradosclarosquelhecobriamopeito–paraela,eleeradeumabelezaextraordinária–ecaiunumsonoprofundo.

Epílogo–Asério?–Asério!Curiosamente,acabouporseraimagemdosdoisabraçados,comopôrdoSol

emplanodefundoeaáguaatéàcintura,quedecidiutudo.PELOAMORDEMOUNTPOLBEARNE, dizia a legenda, sobre o qual o

conselho votou contra a nova ponte, com três votos a favor e cinco contra, eassimsedecidiu.Lancesuspiroupesarosoedesceuopreçodovelhofarol.Elesestavamsentadosnotopodofarol,numadivisãoquetinhajanelasatoda

avoltaequeprovocavaa sensaçãovertiginosade seestaremmaralto,oudesobrevoá-lo como uma ave. Tinha o mesmo soalho de madeira oscilante quePollydeixavaparatrásnoapartamento(existiamplanosdetalvezotransformarnumpequenocafé)eapinturadasparedesestavaadescamar.Neilvoavadeumladoparaooutro,feliz.– Onde é que vamos arranjar móveis redondos? – perguntou Huckle, mas

Polly bem via que ele estava tão arrebatado com a ideia como ela. Estavadanificado,desarrumadoedegradado,mas,comoPollyrealçou,elestambém,eissopareciaestara funcionarmuitobem.EHuckleera incapazde lhenegaroquequerquefosse.–Maseuqueroumpostedebombeiro–disseele.

–Qualquercoisa–anuiuPolly.–Eeupossodançaràvoltadele,sequiseres.–Equeromesmo.Hucklesorriu-lhe.–Nãovaistersaudadesdofocodeluz?Elaolhouparaeleedepoisparaobelomardouradoquedançava.–Tuésaminhaluz–afirmouela,serena,eelepuxou-aparasi,enterrandoo

rostonosseuscabelos.EPollyolhouporcimadoombrodeleatravésdasenormesjanelasdochãoaté

ao teto e viu uma pequena frota de pesca a sair para o seu trabalho noturno.Como sempre, um bando de gaivotas seguiu os barcos, tagarelandofuriosamente, enquanto as nuvens refulgiam, gloriosas. Distinguiu algo – umpeixe, talvez uma foca – a saltar e a bater na água à proa doThe Tarn. Erahabitual,pareciaestarabrincar.Masnaquelanoite,Pollysentiuquealgoestavadiferente;sentiuqueoespíritodealguémvelavapelobarco;oespíritodeTarnie,talvez,queaindaosacompanhava.Emborasoubessequeeraumaideiaridícula,não conseguiu esquecê-la, ali no farol, segura no enlace dos braços do seuamado.–VãocomDeus–sussurrouelaaosbarcoseaosquenavegavamcomeles,

recordandomaisumavezacançãodeTarnie:QuemmederaserpescadorVogarpelosmaresLongedeterraEdassuasamargasmemóriasLançaraminhadocelinhaComabandonoeamorSemumtetoapesar-meSóocéuestreladoláemcimaLuznaminhamenteEtunosmeusbraçosWoohoo!

AgradecimentosAgradeço,emprimeirolugaresempre,aAliGunn,CLARO,eàfabulosaequipadaLittle,Brown,emparticularàminhamaravilhosaeditoraRebeccaSaunder;àmaravilhosaeditora,quenãoéminha,ManpreetGrewal,masqueaindaassimeuincomodo com bastante regularidade; à sensacional Emma Williams e àigualmentemaravilhosaJoWickhameàssuasequipas;DavidShelleyeUrsulaMackenzie,umduofantástico;CharlieKing,CamillaFerrier,SarahMcFadden,Patisserie Zambetti, Alice, à administração e aos meus adorados amigos efamiliares,aqui,aíeemtodaaparteOs leitores mais atentos talvez estejam a pensar AHA! O nome daquela

senhora rabugenta, Gillian Manse, é muito semelhante ao da respeitadaromancistaJillMansell–umavingançaamarga?Maseudigoquenadapoderiaestarmais longe da verdade: Jill é adorável em todos os sentidos, e no leilãoComicReliefdoanopassadoacedeuaqueeuincluísseoseunomenolivro.Neste livro existem referências que têm a ver com o mar. Existem duas

fantásticas organizações que ajudam os marinheiros em condições precárias:umaéaRNLI,claro,www.rnli.org,dequemjáouviramcertamentefalar;aoutraé a Fisherman’sMission,www.fishermensmission.org.uk, que faz um trabalhoextraordinário de ajuda às pessoas que têm esta perigosa profissão. Foramrealizadosdonativosaestasduasorganizaçõesapartirdasreceitasdestelivro.

E,porfim,acançãoqueécitada,«Fisherman’sBlues»,édosTheWaterboyseeu adoro-a profundamente. Se quiser ouvi-la enquanto lê, encontra-a emwww.tinyurl.com/fishermansblues, mas também podia recomendar todo oreportóriodabanda.Comosempre,todasasreceitasincluídasnestelivroforamtestadaspormim–

nocasodopãofácil,cercadeumavezporsemana.Dê notícias: www.facebook.com/thatwriterjennycolgan ou @jennycolgan no

Twitter.Tudodebom,Jennyxx

AVIDAÉDOCE

COMJENNYCOLGAN

OPÃOBRANCOMAISFÁCIL

Este éumbompãoparaquemcomeça.Nãopoderia sermais simples, é idealpara um domingo tranquilo em que só lhe apetece relaxar. Permite-lhedescontrair enquanto lhe dá uma verdadeira sensação de realização. Se já lheaconteceu pensar «hum, aquilo não é para mim, aqueles pães complicados»,entãoesperosinceramentequeexperimentefazereste.Éopãomaisfácilquealgumavezpoderáfazer.Nãotemnadaquesabereno

momentoemqueoprovarperceberáimediatamentearazãopelaqualaspessoasgostamdefazerpão.700gdefarinhaparapão1saquetadefermentodepadeiro400mldeáguamorna1colherdesoparasadesal1colherdesoparasadeaçúcar

Peneireafarinhaeaqueça-aligeiramentenomicro-ondas(eufaçoumminutoa600 W). Adicione o fermento de padeiro, o sal, o açúcar e por fim a água.Misture.Amassesobreumasuperfíciepolvilhadadefarinhadurantealgunsminutosaté

formarumabolamacia.Deixelevedarduranteduashorasenquantolêojornaloufazumacaminhada.Amassenovamentedurantealgunsminutos.Deixealevedarmaisumahoraenquantotomaumbelobanhorelaxante.Aqueçaofornoa230grauseunteumtabuleiro.Leveamassaaofornodurante30minutos,ouatéfazerumsomocoaodar-lhe

umaspancadinhasporbaixo.Deixearrefecertantoquantoconseguiredevore.

PALITOSDEQUEIJO

Outrareceitasalgadasuperfácil,masdeliciosa.Aqueçaofornoa200graus.Unteeforreumtabuleiro.Misture 120 g de manteiga amolecida com 450 g de queijo (eu SEI que é

muito. Estes palitos destinam-se a festas ou para partilhar. Eu gosto de usarcheddar bem maturado, mas qualquer queijo duro serve – os holandesestambém.Nadamolenemazul).Acrescente:250gdefarinha1colherdechádesalMalaguetasecaagostoBastantepimenta1colherdesopadefermentoEnroleamassacomosefosseplasticina,comofazianaescola.Otamanhofica

aoseucritério,masseficaremdemasiadoespessosserãoindigestos.Leveaofornodurante15minutosouatéficaremcrocantes.

PATANISCASDEMILHO-DOCE

Omeumaridoadora-as,porissonoseudiadeanosacordacomocheirodelas.Agora que penso nisso, devia fazê-las mais vezes; são deliciosas e fáceis defazer.Bata1ovo.Adicione uma colher de sopa de água, uma chávena de farinha, uma lata

pequena de milho-doce (ou meia lata média, ou duplique todos os outrosingredienteseuseumalatagrande)eumacolherdechádefermento.Tempereagosto(nósusamosimensosalepimenta).Façabolinhoscomamassaefriteemlumemédio.Retireeescorraempapel

decozinha.Nham!

ROLINHOSDECANELA

São fantásticos, deliciosos e farão com que os de compra lhe pareçam umaporcaria.1chávenadeleite¼chávenademanteiga1saquetadefermentodepadeiro¼chávenadeaçúcar1ovobatido3½chávenasdefarinha½colherdechádesalParaorecheio:1chávenadeaçúcarmascavado1colherdechádecanela½chávenademanteigaamolecidaParaotopping:AçúcarempóÁguaUnteeforreumtabuleirodefornogrande.Aqueçaoleite,amanteigaeoaçúcar,misturandosuavemente,numacaçarola

edeixearrefecer.Misture ao fermento de padeiro, o ovo, duas chávenas de farinha e o sal.

Adicionearestantefarinhadevagar.Amassedurantecincominutosedeixelevedarduranteumahora.Misturetodososingredientesdorecheio.Estendaamassaebarracomamisturadoreceio.Deseguida(estaéaparte

divertida),enroleamassaecorteemfatias,comoumatorta.Deixelevedarduranteumahora(delado)eleveaofornodurante25minutosa

180graus.Deixe arrefecer (sóumpouco;nãoprecisaprivar-semais tempo) ebarrecomotopping.

FOCACCIA

Uma vez fiz um desafio de focaccia com um amigo chefe. Ele venceu-mefacilmente,CLARO,mastivemosasortedeusarumfornoaoarlivre,quedeuàsduasfocacciasumsabordelicioso.Aqueçaofornoa220grauspara lhedarumbomsabor(mascuidadoparanãoqueimar).500gdefarinha1½colherdechádesal325mldeáguatépida1saquetadefermentodepadeiro2colherdesopadeazeiteQueijo/alecrim/oquegostarparacolocarporcimaMistureafarinhacomosalMistureofermentodepadeirocomaáguatépida.Adicione,maisoazeite,à

misturadafarinhacomosal.Amasse durante dezminutos.Deixe a levedar umahora, num sítiomorno e

tapada.Estendaamassanumformatocomprido,comcercade20cmx30cm,edeixe

repousarmaisquarentaminutos.Pressione os dedos na massa levedada para fazer pequenos furos e leve ao

fornoa220grausdurantevinteminutos.Retiredofornoeadicioneoqueijo,aservasemaisalgumasgotasdeazeite.

Leveaofornomaiscincominutos.

BAGELS

Osbagelspodemseralgocomplicados,masondevivosãodifíceisdeencontrare,porvezes,PRECISOdeles.4chávenasdefarinhaparapão1colherdesopadeaçúcar1½colherdechádesal1colherdesopadeóleovegetal1saquetadefermentodepadeiro1¼chávenadeáguatépidaMistureosingredientesatéformarumamassarígida.Amassedurantedezminutos.Corteemoitoporçõesedeixearepousardurantecercadevinteminutos.Moldeamassaemargolas(podecolarasextremidadescomumpoucodeleite,

seforcomplicado).Deixerepousarmaisvinteminutos.Aqueçaofornoa195graus.Fervaumgrandetachodeágua.COMCUIDADO,mergulheosbagelsnaáguaumaumduranteumminuto.

Euusoumaespéciedegarfodechurrasco.Adicione o topping – por exemplo, cebola picada, passas (mas não juntas,

claro).Leveaofornodurantedezminutos,decadalado.

SHORTBREAD

Tão simples, mas tão bom. Usemanteiga de boa qualidade, mas de qualquerforma ficam deliciosos. Pode rechear com pepitas de chocolate, mas eu nãocostumofazer.Éumareceitaboaparafazercomascrianças,emboraelasachema parte de levar ao frigorífico uma tortura. Mas é necessário, caso contrárioficarãoquebradiços.150gdemanteiga60gdeaçúcarrefinado200gdefarinhaForreumtabuleiroeaqueçaofornoa180graus.Misturemuitobemoaçúcarcomamanteigaeadicioneafarinhaatéobteruma

pastamacia.Estenda,nãodevetermaisde1cmdealtura,ecortecomogostar:comumcortador,ouempequenastiras.Polvilhe com um pouco mais de açúcar e leve ao frigorífico durante pelo

menosmeia hora.A propósito, se for como eu... eu estou sempre a pegar emreceitas,começoafazê-lasmasnãoas leiocomatenção.Depoischegoàpartequediz«deixarmarinardurantequatrohoras»»quandoprecisodojantarprontoem vinte minutos. Então, deixe-me realçar, caso seja como eu: LEVAR AOFRIGORÍFICODURANTEMEIAHORA!Depois,leveaofornodurante20minutosouatéficaremdourados.

ÍndiceCAPAFichaTécnicaCapítuloUmCapítuloDoisCapítuloTrêsCapítuloQuatroCapítuloCincoCapítuloSeisCapítuloSeteCapítuloOitoCapítuloNoveCapítuloDezCapítuloOnzeCapítuloDozeCapítuloTrezeCapítuloCatorzeCapítuloQuinzeCapítuloDezasseisCapítuloDezasseteCapítuloDezoitoCapítuloDezanoveCapítuloVinteCapítuloVinteeUmCapítuloVinteeDoisCapítuloVinteeTrêsCapítuloVinteeQuatroCapítuloVinteeCincoCapítuloVinteeSeisCapítuloVinteeSeteCapítuloVinteeOitoCapítuloVinteeNoveCapítuloTrintaCapítuloTrintaeUmCapítuloTrintaeDois

CapítuloTrintaeTrêsCapítuloTrintaeQuatroEpílogoAgradecimentosAVIDAÉDOCECOMJENNYCOLGANOPÃOBRANCOMAISFÁCILPALITOSDEQUEIJOPATANISCASDEMILHO-DOCEROLINHOSDECANELAFOCACCIABAGELSSHORTBREAD