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PODER & CICATRIZES - ESTUDOS KAFKIANOS Por Eduardo Carli de Moraes & Gisele Toassa "Escrever - segundo Kafka acreditava - era sua única razão de viver e seu único meio de manter-se vivo. Escrevo, logo existo. Sendo filho não de Deus, mas sim de Herrmann Kafka e da Idade da Razão, Kafka torturou a si próprio e aos que lhe eram íntimos com a tentativa constante de tentar justificar e racionalizar aquilo que não admite explicações. O momento em que mais se acercou da fonte de suas necessidades e de sua arte talvez tenha sido em uma carta a Milena Jesenská: "Tento constantemente comunicar algo incomunicável, explicar algo inexplicável, falar de algo que sinto apenas em meus ossos e que só pode ser experimentado nestes ossos..." Kafka não era um homem que escrevia, mas alguém para quem escrever era a única forma de ser, o único meio de desafiar a morte em vida. (...) Ele permaneceu relativamente desconhecido durante sua vida, mas sua fama póstuma chegou quase a eclipsar a de todo o meio literário de Praga; os luminares de sua época estão mortos e, quer tenham sido queimados ou enterrados, já não têm o poder de assombrar-nos. Se Kafka o faz, isso se deve, em larga escala, à paixão obsessiva que levou para o escrever como um ofício sagrado. Isso não equivale a imputar-lhe a pretensão furtiva de alguma missão divina, humildemente não

Poder & Cicatrizes - Estudos sobre Franz Kafka na companhia de Bourdieu, Löwy, Clastres e Benjamin

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PODER & CICATRIZES - ESTUDOS KAFKIANOS

Por Eduardo Carli de Moraes & Gisele Toassa

"Escrever - segundo Kafka acreditava - era sua única razão de viver e seu único meio de manter-se

vivo. Escrevo, logo existo.

Sendo filho não de Deus, mas sim de Herrmann Kafka e da Idade da Razão, Kafka torturou a si

próprio e aos que lhe eram íntimos com a tentativa constante de tentar justificar e racionalizar aquilo que

não admite explicações. O momento em que mais se acercou da fonte de suas necessidades e de sua arte

talvez tenha sido em uma carta a Milena Jesenská: "Tento constantemente comunicar algo incomunicável,

explicar algo inexplicável, falar de algo que sinto apenas em meus ossos e que só pode ser experimentado

nestes ossos..."

Kafka não era um homem que escrevia, mas alguém para quem escrever era a única forma de ser, o

único meio de desafiar a morte em vida. (...) Ele permaneceu relativamente desconhecido durante sua vida,

mas sua fama póstuma chegou quase a eclipsar a de todo o meio literário de Praga; os luminares de sua época

estão mortos e, quer tenham sido queimados ou enterrados, já não têm o poder de assombrar-nos. Se Kafka o

faz, isso se deve, em larga escala, à paixão obsessiva que levou para o escrever como um ofício sagrado.

Isso não equivale a imputar-lhe a pretensão furtiva de alguma missão divina, humildemente não

confessada. A compulsão irresistível de escrever parecia-lhe parte de um destino obscuro e profundamente

pessoal, e não há dúvida de que, em boa parte do tempo, sentiu-se mais compelido do que escolhido.

"O escrever me sustenta", escreve Kafka a Max Brod em 1922, "Quando não escrevo, é bem pior,

inteiramente insuportável, e termina, inevitavelmente, na loucura. Isso, é claro, apenas partindo do

pressuposto de que eu seja um escritor mesmo quando não escrevo - o que, aliás, é um fato; e um escritor que

não escreve é, na verdade, um monstro que corteja a insanidade."

Por mais singulares que fossem os sentimentos de Kafka sobre a vocação que escolheu, eles refletem

também o espírito de uma era em que a literatura havia tomado o lugar da fé, dos ritos e da tradição,

convertendo-se, ela própria, numa espécie de religião. Esse fenômeno não se restringiu aos judeus: Flaubert

fala na literatura como "la mystique de qui ne croit à rien" (a mística de quem não crê em nada)."

ERNST PAWEL

"O Pesadelo da Razão"

Pg. 95-96. Ed. Imago.

I. ENTRE SUBMISSÃO E INSURGÊNCIA

Em O Pesadelo da Razão, Ernst Pawel sugere que a vida e a obra de Kafka seriam uma longa reflexão

sobre um estranho fenômeno que “está longe de ser raro”: “O prisioneiro que anseia pela liberdade e que,

quando enfim se abrem os portões, recusa-se a sair.” (PAWEL: pg. 188) Desde 1908 até o fim de sua vida, em

1924, o Doutor em Direito Franz Kafka trabalhou como funcionário do Instituto de Seguros de Acidentes do

Trabalhador, em Praga, no Reino da Boêmia. Este setor da burocracia do Império Austro-Húngaro era uma

espécie de escritório de advocacia que lidava com casos de trabalhadores feridos em serviço. Este Instituto

“era responsável por bem mais de 35.000 empresas industriais”, de portes variáveis, espalhadas por um

imenso território - o que às vezes exigia que Kafka viajasse para cantos do Império onde nunca antes estivera.

Em seu trabalho cotidiano, tinha que lidar com dúzias e dúzias de casos de “desgraçados”: os “Lulas”

anônimos do proletariado machucado, aqueles que perdem dedos nas linhas-de-montagem ou acabam sendo

tragados - como Carlitos em Tempos Modernos - pelas engrenagens. Kafka convive diariamente com casos de

pessoas que, por exaustão ou distração passageira, não acompanham o ritmo da mecânica industrial,

descuidam das cadências e acabam pagando o preço em membros decepados e outras desgraças.

De modo indireto, portanto, como explora Michael Löwy em Kafka: Sonhador Insubmisso, a obra

kafkiana conteria uma aguda crítica ao mundo capitalista – burocratizado, mecânico, explorador, insano. O

escritório onde Kafka trabalhava pretendia regular as relações entre patrões e empregados em casos trágicos

de mutilação, invalidez permanente ou mesmo morte no serviço. “Esta experiência ao lidar com as

reclamações de invalidez e morte em benefício de trabalhadores mutilados ou mortos em suas funções

serviram para reforçar a identificação instintiva com os oprimidos que definiu sua orientação política

manifesta.” (PAWEL: O Assalto à Razão, p. 183)

Na obra de Kafka, pois, o potencial político não decorre de qualquer tomada-de-partido

revolucionária ou engajamento ativo na construção de um outro mundo possível, mas sim de sua denúncia,

com conhecimento de causa, de um sistema desumanizante, que Kafka captava com rara sensibilidade ao

“identificar-se instintivamente com os oprimidos”. Mas, em Kafka, esta “identificação instintiva com os

oprimidos” de que fala Pawel não é ingênua mas crítica: Kafka surpreende-se, por exemplo, com a

“humildade” e a “submissão” dos trabalhadores. Como relembra Max Brod, seu amigo Franz um dia

comentou com perplexidade: “Como são humildes essas pessoas. Em vez de se precipitarem sobre o Instituto

e estraçalharem o lugar em pedacinhos, eles vêm nos apresentar requerimentos...”

Kafka, portanto, parece perceber com perplexidade o fenômeno de massas que consiste em

trabalhadores, um tanto resignados e fatalistas, que mantinham-se presos a formulários e rígidos horários,

impotentes para mudar sua condição de oprimidos. Lembremos do começo de A Colônia Penal: neste conto,

Kafka descreve um aparelho de tortura que existe numa ilha-penitenciária. Ali, são supliciadas pessoas que

não sabem que crime cometeram - um pouco como Josef K., em O Processo, que jamais descobre o que ele

fez de errado e permanece até o fim do romance convicto de ter sido vítima de uma calúnia . Na Colônia

Penal, os condenados têm suas peles marcadas brutalmente por uma “tatuagem” sinistra e sanguinolenta –

no caso específico que o conto relata, “Honre seu superior” é a tatoo que é imposta. É um cenário de

pesadelo, principalmente pois as autoridades brutais que ali reinam não sofrem nenhum tipo de contestação

por parte dos submetidos. A literatura de Kafka é um recorrente assombro diante da apatia, da incapacidade

de levante, que acomete muitos humilhados e ofendidos.

“Vamos às atividades do dia:

Lavar os copos, contar os corpos,

E sorrir de nossa morna rebeldia...”

Letra do rapper CRIOLO, na música “Lion Man”

(Álbum “Nó na Orelha”)

Kafka, na Colônia Penal, descreve um condenado cuja mais impressionante característica é sua

impassibilidade, sua aceitação resignada do que lhe é imposto; o condenado é de uma “sujeição tão canina

que a impressão que dava era a de que se poderia deixa-lo vaguear livremente pelas encostas, sendo preciso

apenas que se assobiasse no começo da execução para que ele viesse...” (Trad. Modesto Carone, Pg. 30)

Se Kafka pôde escrever cenas tão vívidas de tortura – em A Colônia Penal e no capítulo “O

Espancador” de O Processo, por exemplo – isto talvez se deva não somente às torturas de que ele se sentiu

vítima, nas mãos de seu pai Hermann, mas também à sua experiência profissional junto ao proletariado da

Boêmia. Eis um campo de pesquisa muito amplo e interessante a ser pesquisado pelos estudiosos de Kafka, e

que têm já foi trilhado em obras de muito interesse por Michael Löwy, Ernst Pawel, Pierre Bourdieu etc.

Nada utopista ou otimista, Kafka não cessa de refletir sobre a problemática da submissão. Estar

diante de gente tão submissa deixa-lhe perplexo: como pode que o condenado possa sofrer penas tão terríveis

na máquina de tortura e ainda assim mostrar-se comportado como um cão? A mesma perplexidade pode

surgir diante dos fenômenos que Pierre Clastres descreve sobre os ritos de iniciação que utilizam técnicas

torturantes como modo de marcar uma passagem: que força é esta que leva os torturados a se submeterem a

tamanhos sofrimentos? Em outros termos, como responder ao mistério: por que a revolta é tão rara?

A elucidação disso exigiria uma análise mais detida de outros textos, como o Tratado da Servidão

Voluntária de La Boétie, O Medo à Liberdade de Erich Fromm, A Psicologia de Massas do Fascismo de

Wilhelm Reich - o que não é intenção do presente artigo. Para focarmos a atenção na obra kafkiana,

apontemos uma impressão de leitor: ao retratar a tortura, parece-me, Kafka certamente foi mais influenciado

por suas vivências existenciais, por sua realidade laboral e familiar, do que por quaisquer leituras que tenha

feito das teorias e ideologias de seu tempo. Max Brod pinta o retrato de um Kafka que abominava seu

próprio emprego, “vítima impotente aprisionada nas engrenagens de um impiedoso esmagador de cérebros e

condenada a uma labuta insensata e desumana”, como relata Pawel (p. 185).

Mas o biógrafo lembra que este emprego não poderia ser tão horripilante assim, já que possibilitava a

Kafka ter ¾ dos dias livres (seu turno era de somente 6 horas, das 8 da manhã às 2 da tarde...), “estando

longe de ser estafante em termos de volume ou carga horária”. De modo que Pawel afirma: “longe de ser uma

peça de engrenagem sem nome num motor gigantesco, Kafka esteve, desde o início, em posições de decisão, e

contribuiu com sua quota para uma redução significativa dos acidentes mutilantes e fatais em algumas das

principais indústrias da Boêmia.” (Pawel: Pg. 185)

Kafka, é claro, não podia suportar bem a vida de burocrata, antagônica em relação à existência de

artista criador que ele julgava ser sua vocação sagrada: “já em 1912, seus poderes como artista criador tinham

começado a afirmar-se integralmente – e Kafka passou a encarar as exigências do cargo como causa

fundamental da esmagadora depressão que lhe minava a criatividade.” (Pawel: pg. 186)

Permaneceu um grande solitário, vida afora, não se filiando a nenhum partido ou causa – não

vinculou sua identidade nem ao judaísmo, nem ao sionismo; tampouco pregava slogans marxistas ou

anarquistas (apesar do fascínio que sobre ele exerceram figuras como Kropotkin e Herzen). Longe de ser um

entusiasta da causa proletária, um ativista que luta lado a lado com os oprimidos com os quais se identifica,

Kafka “estava sempre só na multidão, em vez de ser parte dela.” (PAWEL: p. 154)

A solidão de Kafka não o impediu de pintar, em suas obras, um impressionante retrato social onde as

arbitrariedades insanas do Castelo e do Tribunal não cessam de humilhar e rebaixar aqueles que, de tão

pisoteados, não tem mais a força de insurreição que seria de se esperar de quem vive sob condições

desumanas. O trágico em Kafka é o quanto as pessoas acabam, por serem demasiado judiadas, virando

encarnações da submissão fatalista. Parece-me que Kafka nunca pôde admirar esta característica, nem nos

outros nem em si mesmo, e talvez sua auto-depreciação tão profunda, sua tendência ao auto-flagelamento,

venha também da sensação de ter sido, também ele, um dos submissos.

Kafka, em sua obra, pode até ser um “sonhador insubmisso”, como diz Michael Löwy no brilhante

livro que lhe dedica, mas em sua vida foi com muita frequência aquele que se submete: primeiro, ao pai,

tornando-se seu empregado, permanecendo junto a ele no comércio até muito tarde na vida, apesar do

veneno do relacionamento; depois, às exigências de seu cargo, que desempenhava com muita perícia e

competência, mas sem gosto – já que devotava seu amor quase inteiro à literatura. Este amante dos livros,

que em Praga tinha como locais favoritos as livrarias velhas e encardidas, amava Goethe, Hesse, Flaubert,

Kleist e Dickens infinitamente mais do que seu trabalho.

* * * *

II. A TORTURA COMO PEDAGOGIA

Cerimônia dos Mandan, uma pintura de George Catlin

Em seu artigo “Da Tortura nas Sociedades Primitivas”, o filósofo e antropólogo francês Pierre

Clastres (1934 – 1977) enfatiza a conexão entre a escrita da lei e a tortura dos corpos: “Que a lei encontre

uma forma de se inscrever em espaços inesperados é o que pode nos ensinar esta ou aquela obra literária. O

funcionário de A Colônia Penal, de Franz Kafka, explica minuciosamente ao visitante o funcionamento de

uma máquina de escrever a lei” (CLASTRES: A sociedade contra o Estado, pg. 191, Cosac e Naify), que

consiste em “gravar o parágrafo transgredido sobre a pele do culpado. Vai-se, por exemplo, escrever no corpo

do condenado: ‘Respeite o seu superior’...".

Nesta obra, Kafka concebe “o corpo como superfície de escrita, como superfície apta para receber o

texto legível da lei” (CLASTRES: p. 191). Através da imposição destas sinistras tatuagens ao corpo do

condenado, o poder deixaria uma marca indelével e perpétua sobre aqueles sobre quem se exerce. Cabe

lembrar que alguns artistas do cinema contemporâneo já retrataram procedimentos semelhantes em suas

obras: é o caso de O Livro de Cabeceira, de Peter Greenaway, e Amnésia (Memento), de Christopher Nolan,

filmes que tematizam o corpo como receptáculo de linguagem. Neste último filme, o protagonista, após sofrer

um trauma cerebral, acometido por uma condição neurológica que lhe impede o registro de memórias

recentes, encontra nas tatuagens que faz em seu próprio corpo um poderoso auxílio mnemotécnico. O

próprio sofrimento imposto à pele por esta escrita na carne viva aí aparece como aliado da deusa batizada

pelos gregos de Mnemosyne, a Mãe das Musas. Também cabe lembrar que Nietzsche refletiu na Genealogia

da Moral sobre as crueldades inerentes ao processo mnemotécnico necessário para a conversão do homem

em “um animal capaz de prometer”.

Grande parte do esforço de Clastres dirige-se a mostrar que tais procedimentos de modo algum se

restringem à arte ou à ficção. Será lícito supor que Kafka compôs A Colônia Penal não somente a partir de

um pesadelo subjetivo, descrevendo alguma maquinaria infernal imaginária-paranóica, mas partindo de

conhecimentos históricos que possuía sobre os cruéis meandros do Direito?

Como exemplo do corpo como superfície passível de veicular linguagem, basta relembrar os

testemunhos de prisioneiros soviéticos nas colônias penais da Moldávia, coligidas no livro de Anatoli

Martchenko, Mon Témoignage (Paris: Seuil, Col. Combats, 1971). Aí o autor descreve a maneira como os

deportados se auto-infligiam máximas, tatuadas em seus rostos: “Escravos de Kruchtchev”, “Escravos do

P.C.U.S.” ou “Comunistas = Carrascos”.

A pele como superfície onde inscrever uma mensagem tampouco é uma invenção dos prisioneiros das gulags:

“É muito extenso o número de sociedades primitivas que mostram a importância por elas

atribuída ao ingresso dos jovens na idade adulta através da instituição dos chamados ritos de

passagem. (...) Quase sempre o rito iniciático considera a utilização do corpo dos iniciados. É,

sem qualquer intermediário, o corpo que a sociedade designa como único espaço propício a

conter o sinal de um tempo, o traço de uma passagem, a determinação de um destino.”

(CLASTRES: p. 193)

O pintor George Catlin, em Les Indiens de la Prairie (Club des Librairies de France, 1959), descreve e

ilustra com desenhos sua experiência de testemunhar por 4 dias à cerimônia anual dos índios Mandan – e,

como relata Clastres, “não pode deixar de manifestar seu espanto e horror diante do espetáculo do rito, pois o

fato é que, através do cerimonial, a sociedade se apodera do corpo e (...) quase de modo constante – e é isso

que aterroriza Catlin – o ritual submete o corpo à tortura” (CLASTRES: p. 194).

Todos os jovens índios Mandam, depois de quatro dias de jejum absoluto, depois de três noites

insones, têm o corpo furado e “estiletes enterrados nas chagas”; o enforcamento, a amputação, as carnes

rasgadas, são outras técnicas empregadas neste rito em que “parecem inesgotáveis os recursos da crueldade”

(CLASTRES: idem). O próprio Clastres, com vasta experiência junto aos índios Guayaki e Mbayá-Guaykuru

do Paraguai, aponta que estes ritos estão longe de serem exceção: entre os Mbayá, os jovens passam por uma

prova que consiste em “ter o pênis e outras partes do corpo perfurados com um afiado osso de jaguar” (p.

195). Tampouco as mulheres escapam disso: Martin Dobrizhoffer narra que os Abipones “tatuam cruelmente

o rosto das jovens quando se verifica a sua primeira menstruação” (in: Historia de los Abipones, 3 vols.,

1967). “De uma tribo a outra, de uma a outra região, diferem as técnicas, os meios, os objetivos

explicitamente afirmados da crueldade; mas a meta é sempre a mesma: provocar o sofrimento. (...) A dor

acaba sempre se tornando insuportável: sem proferir palavra, o torturado desmaia.” (CLASTRES: p. 195)

Eis um outro elemento que choca o antropólogo ou etnólogo que testemunha estas cerimônias: o fato

dos jovens não proferirem uma palavra sequer durante as torturas a que são submetidos.

“A impassibilidade, eu poderia até mesmo dizer a serenidade com que esses jovens suportavam

o martírio, era ainda mais extraordinária do que o próprio suplício... Meu coração padeceu com

tais espetáculos, e costumes tão abomináveis encheram-me de desgosto: estou, porém, pronto –

e de todo coração – a desculpar os índios, a perdoar-lhes as superstições que os levam a atos de

tal selvageria, em virtude da coragem que demonstram, do seu notável poder de resistência, do

seu excepcional estoicismo...” (GEORGE CATLIN).

Em sua tentativa de compreender a função do sofrimento, Clastres aponta que “a iniciação é,

inegavelmente, uma comprovação da coragem pessoal, e esta se exprime no silêncio oposto ao sofrimento.”

(p. 196) Não se trata, aliás, de um sofrimento extremo mas passageiro, pois os sulcos e as cicatrizes

permanecerão:

“Um homem iniciado é um homem marcado. O objetivo da iniciação, em seu momento de

tortura, é marcar o corpo: no ritual iniciático, a sociedade imprime a sua marca no corpo dos

jovens. Ora, uma cicatriz, um sulco, uma marca são indeléveis. Inscritos na profundidade da

pele, atestarão para sempre que, se por um lado a dor pode não ser mais do que uma recordação

desagradável, ela foi sentida num contexto de medo e terror. A marca é um obstáculo ao

esquecimento. (...) Avaliar a resistência pessoal, significar um pertencimento social: tais são as

duas funções evidentes da iniciação como inscrição de marcas sobre o corpo.” (p. 197)

Um exemplo da utilidade da marca indelével imposta pela tortura, que indica o pertencimento social

a um determinado grupo, foi presenciado por Clastres em 1963: quando os Guayaki queriam se certificar da

“nacionalidade” de uma jovem paraguaia, arrancavam-lhe as roupas em busca das tatuagens tribais.

O silêncio resignado que se exige dos jovens durante o ritual, o admirável “estoicismo” de que fala Catlin,

indica que

“o ritual de iniciação é uma pedagogia que vai do grupo ao indivíduo, da tribo aos jovens.

Pedagogia da afirmação, e não diálogo: é por isso que os iniciados devem permanecer

silenciosos quando torturados. Quem cala consente. Em que consentem os jovens? Consentem

em aceitar-se no papel que passaram a ter: o de membros integrais da comunidade. (...) Eis,

portanto, o segredo que, na iniciação do grupo, é revelado aos jovens: ‘Sois um dos nossos. Cada

um de vós é semelhante a nós, cada um de vós é semelhante aos outros. Nenhum de vós é

inferior, nem superior'. Em outros termos, a sociedade dita sua lei aos seus membros, inscreve

o texto da lei sobre a superfície dos corpos. (...) A lei que aprendem a conhecer na dor é a lei da

sociedade primitiva, que diz a cada um: Tu não és menos importante nem mais importante do

que ninguém. A lei, inscrita sobre os corpos, afirma a recusa da sociedade primitiva em correr o

risco da divisão, o risco de um poder separado dela mesma, de um poder que lhe escaparia. A lei

primitiva, cruelmente ensinada, é uma proibição à desigualdade.” (CLASTRES: p. 198-99).

É por esta razão que Deleuze e Guatari, no Anti-Édipo, dirão que as sociedades primitivas,

desprovidas de escrita, são sociedades da marcação. Clastres dirá que são, além disso, sociedades contra o

Estado, preocupadas em manter a coesão tribal e não permitir a emergência do poder estatal, compreendido

como aquele que, dentre outras ações, escreve uma lei “separada, distante, despótica”. Como compreender,

neste contexto, as desventuras de K. n'O Processo de Kafka, este pesadelo judiciário que se desenrola em

meio a uma sociedade com Estado e onde a justiça parece se exercer a partir de uma engrenagem

burocrática que o indivíduo não compreende por completo? Que diferenças e semelhanças há, na

comparação entre os ritos iniciatórios arcaicos e o enredo kafkiano, no que diz respeito aos procedimentos

jurídicos e mnemotécnicos e à instrumentalização da crueldade?

Tanto em A Colônia Penal quanto em O Processo, o “crime” cometido pelo condenado ou pelo

processado permanece envolto em sombras e mistério - o que Kafka deseja mostrar ao leitor é o aparelho de

tortura socialmente instituído. Assim como o leitor de O Processo em nenhum momento recebe explicação

sobre o que teria feito de recriminável Josef K., sendo que o foco repousa por inteiro na descrição do

mecanismo esmagador do processo, também o leitor de A Colônia Penal não tem elucidações sobre aquele

que sofrerá a pena: Kafka narra a cena de modo que o procedimento jurídico esteja no primeiro plano, ao

invés de emitir juízos sobre a culpa ou inocência daquele que está sendo submetido à punição. O oficial

explica ao explorador como funciona o procedimento operacional padrão da máquina de torturas:

“Esta é a cama, totalmente coberta com uma camada de algodão; o senhor ainda vai saber qual é o

objetivo dela. O condenado é posto de bruços sobre o algodão, naturalmente nu; aqui estão, para as mãos,

aqui para os pés e aqui para o pescoço, as correias para segurá-lo firme. Aqui na cabeceira da cama, onde,

como eu disse, o homem apóia a cabeça, existe este pequeno tampão de feltro, que pode ser regulado com a

maior facilidade, a ponto de entrar bem na boca da pessoa. Seu objetivo é impedir que ela grite ou morda a

língua. Evidentemente, o homem é obrigado a admitir o feltro na boca, pois caso contrário as correias do

pescoço quebram sua nuca...” (p. 33)

Atado, imobilizado, silenciado, impossibilitado de manifestar qualquer sinal de desagrado ou fúria, o

condenado recebe sobre as costas a sentença que o rastelo escreve arrancando seu sangue. Esta máquina de

torturas impõe uma cicatriz perpétua, uma tatuagem não solicitada pelo sujeito que a recebe - e que as

autoridades que a impõe desejam indelével. Seja o cacique de uma tribo indígena ou um comandante de um

império, como Clastres e Kafka mostram, cada um a seu modo, a autoridade utiliza-se da imposição do

sofrimento como um meio violento de “educação”.

Que tipo de educação é esta? A Colônia Penal é uma alegoria poderosa de uma educação que seria

melhor chamada de violentação autoritária ou imposição da submissão: “No corpo deste condenado”,

prossegue o oficial em sua explicação do mecanismo torturador, “será gravado: Honra o teu superior!” (p.

36) O “superior”, no caso, é aquele que tem em seu poder os meios de impor aos outros, sejam jovens em

rituais de iniciação ou condenados sendo punidos, um sofrimento que lhes deve ensinar a submissão – ou

melhor, no linguajar de quem impõe a pena, a “obediência ao superior”.

Reduzido a uma condição de impotência, tendo seu corpo submetido à incisões, perfurações e cortes

- que não somente provocam dores intensas mas que também deixarão marcas permanentes, a vítima deste

processo parece não ter voz. Mas não tem voz pois esta foi silenciada. Sua revolta não se manifesta pois a

opressão ao redor não permite que ela desabroche. A submissão não é inata ou de berço, mas algo ensinado

ao sujeito por mecanismos autoritários de educação e punição que usam o terror para inculcar obediência e

outros comportamentos de retraída aquiescência ao poder.

Por Robert Crumb

III. O DESPOTISMO E A RESISTÊNCIA

A prisão de Josef K., narrada por Kafka em O Processo, é uma cena onde ocorre claro abuso pela

porte do aparato policial, que invade o apartamento e cerceia os movimentos de K. Nenhum daqueles

policiais e subordinados do sistema jurídico-penal sabe dizer a K. qual o crime que este cometeu - não foram

autorizados a revelar nada - e no fundo confessam não sabe de muita coisa. A ordem de prisão vem de cima

e eles apenas a obedecem. Afinal de contas, ganham seu pão num trabalho que exige deles um perene

comportamento subordinado, em que você honra o seu superior na hierarquia ao invés de se revoltar ou se

levantar contra ele.

Para usar a expressão de Michael Löwy , Kafka, este “sonhador insubmisso”, soube criar em Josef K.

alguém que tem muito desta insubmissão de seu criador correndo em suas veias de personagem kafkiano.

Logo após ser preso, Josef K., com plena certeza de sua inocência, confronta os homens que o vieram

acossar e exige respostas: qual a acusação que está sendo feita? Qual é a autoridade que vos manda? Quem

foi que lá em cima na hierarquia ordenou que eu, K., fosse preso?

A autoridade suprema está invisível como aqueles chefões do Castelo que não se deixam encontrar

em nenhuma parte pelo agrimensor K. durante as peripécias do romance inacabado O Castelo. Uma névoa de

mistério circunda a autoridade que, através de seus subordinados, apossa-se do corpo e da mente de K. e

impõe-lhe restrições de movimento, ameaças de despojamento, surras psíquicas e literais.

Não é por acaso que uma das últimas cenas d’O Processo se passa em uma catedral e que nesta o

padre, a princípio, exija de K. que se rebaixe e se prostre diante dele para ouvir a voz que chega das alturas.

“K. parou nos primeiros bancos, mas o padre estendeu as mãos e mostrou com o indicador um lugar

mais próximo do púlpito. K. o seguiu até esse lugar, precisando inclinar a cabeça fortemente para trás a fim

de ver o padre...” Walter Benjamin enfatiza que, para Kafka, o elemento gestual era muito importante –

como, por exemplo, este eloquente dedo indicador que ordena ao acusado que se ponha no local exato que

lhe foi ditado: “o gesto é o elemento decisivo, o centro da ação... Kafka é sempre assim: ele priva os gestos

humanos dos seus esteios tradicionais e os transforma em temas de reflexões intermináveis.” (BENJAMIN:

p. 147)

Autor com “capacidade invulgar de criar parábolas”, como diz Benjamin (p. 149), Kafka escreveu em

O Processo uma das mais eloquentes de sua galeria: o padre, do alto do púlpito, fiel defensor dos códigos

escritos inalteráveis e sagrados, relata a K. uma história de um camponês e de um porteiro diante de uma

certa Porta da Lei. O homem do campo – simples e ingênuo... - está diante da porta da Lei e esta é guardada

por um porteiro que não lhe dá permissão de entrar e lhe pede que espere. É o Esperando Godot de Kafka - e

um dos pontos de sua obra que mais se assemelha ao teatro de Beckett.

O camponês, que não se sente capaz de insubmissão ou revolta, que não tenta entrar contra a

permissão do porteiro, passa a vida ali, com acesso proibido, até definhar e morrer. A porta é-lhe enfim

fechada definitivamente sem nunca ter sido transposta. Esta parábola, que lembra um pouco o Absurdo da

atitude dos personagens de Esperando Godot, está longe de ser uma descrição da atitude do próprio Josef K.

diante da Lei: ao contrário da passividade submissa do homem que apodrece na espera, sem que nunca lhe

seja dada permissão para adentrar nos domínios guarnecidos pelos guardiães da lei, “Josef K. não pode

impedir-se de acreditar que o homem foi enganado pelo guardião.” (Löwy: p.135)

Pintura de Yosl Bergner representa a cena "O Processo" em que o "porteiro da Lei" diz ao "homem do campo": "This door

was intended only for you. I am now going to shut it." (Capítulo 9, "A Catedral")

Este acesso barrado seria um símbolo de autoritarismo, uma fortaleza que defende os privilégios

daqueles que estão acima na hierarquia. Aquele que não ousa questionar a ordem (a ordem que lhe ordena

que apodreça na espera!), aquele que se cala e aceita, aquele que se submete e fica de bunda sentada na sua

desgraça imposta-de-cima, este é o emblema do sujeito alienado, alijado da justiça.

De modo que Löwy sustenta que “não se pode compreender esse escrito sem situá-lo no contexto

mais amplo” das “convicções ético-sociais de Kafka”, em particular “o anti-autoritarismo de inspiração

libertária, (...) uma recusa diante de todo poder que pretende representar a divindade e impor em seu nome

dogmas, doutrinas, interdições.” (pg. 139)

O homem-do-campo da parábola, por excesso de timidez e

tibieza, por falta de confiança em si, por uma obediência demasiado

estrita e prolongada do status quo, acaba perdendo sua vida na

espera, diante do umbral de uma porta que o guardião não permite

que ele cruze. Incapaz de insubmissão e revolta, “o homem do

campo malogrou porque não quis tomar o caminho rumo à Lei

atravessando essa porta sem autorização”, segundo a interpretação

do amigo de Kafka, Felix Weltsch, que Löwy reproduz (pg. 145).

O destino inglório deste personagem da parábola, que

apodrece na espera, alijado de seus direitos em um mundo social

onde os privilégios se protegem em suas fortalezas, está nas

antípodas da atitude frequentemente irreverente e insubmissa de

Josef K. – é só lembrar que este acusa de corrupção generalizada

os funcionários do tribunal, critica a atitude dos guardas por

surrupiarem o café-da-manhã e as roupas dos condenados e chega ao extremo de desdenhar dos livros

mofados da Lei em sua primeira audiência.

Quase no fim de seu percurso, aliás, irá despedir seu advogado e desejará apresentar ele mesmo sua

defesa através de um relato completo de toda a sua vida pregressa, achando que uma narração dos seus 30

anos de vida irrepreensível pudessem ser suficientes para inocentá-lo. A passividade submissa do homem da

parábola, como diz Marthe Robert, é característica de quem “não ousa colocar sua lei pessoal acima dos tabus

coletivos, cuja tirania o guardião personifica.” (MARTHE ROBERT, Seul Comme Kafka, Paris: Calmann-

Lévy, 1979, p. 162). Ele se assemelha a quase todos os condenados que K. encontra no decurso do romance e

que se submetem a seus processos e são tratados como cães pelos advogados.

“K. representa a antítese do homem do campo que espera em vão, por toda a vida, paciente e

submisso, que alguém se digne a admiti-lo no interior das portas da Lei... Encontram-se no Castelo

personagens que se parecem muitíssimo com o anti-herói da lenda: é o caso do indivíduo descrito por Olga,

que tenta fazer-se admitir no serviço do Castelo: ‘Depois de muitos anos, talvez já envelhecido, ele ouve que

foi recusado, que tudo está perdido e que viveu por nada.’” (LÖWY: p. 181)

Longe de fazer um elogio da resignação e do fatalismo, Kafka seria, na perspectiva de Löwy, alguém

que faz apelo à insubmissão e que é animado por um ímpeto de insubordinação, sendo que sua obra

representa uma reiterada crítica do autoritarismo e dos mecanismos burocráticos despersonalizantes e

cruéis.

“Kafka jamais escondeu sua admiração pelos personagens que têm a coragem de seguir seu próprio

caminho, ultrapassando as interdições convencionais”, lembra Löwy (p. 149), que pesquisou vastamente as

leituras prediletas de Kafka, entre as quais se encontrava Memórias de uma socialista, de Lily Braun. Este

livro, que Kafka gostava de presentear a seus amigos e que deu à sua noiva Felice em abril de 1915, traz uma

mulher aguerrida contra os preconceitos de seu tempo e que, inspirada por Shelley e Nietzsche, condena “a

submissão, a humilhação, o abandono ao destino” (LILY BRAUN, Memoiren einer Sozialistin (1909).

Berlim: Verlag J. H. W. Dietz, 1985, p. 82-83.)

Também em O Castelo o agrimensor K. representa, ao chegar à aldeia na condição de estrangeiro,

uma figura bem mais insubmissa do que a média dos habitantes: “em nenhum momento ele tem a atitude

amedrontada e submissa dos aldeões... o que ele quer das autoridades do Castelo é a exigência universal de

todos os excluídos e párias das sociedades modernas: ‘Não demando favores ao Castelo, mas o meu direito’”

(Löwy: p. 177).

Rejeitando as interpretações teológicas de Max Brod, que enxerga no Castelo um signo da Graça

divina inacessível, Löwy afirma que “nada no romance indica que a ‘maldade’ dos funcionários do Castelo

tivesse algo a ver com uma instância divina’...” Segundo Löwy, o castelo é “a sede de um poder terrestre e

humano” e representa “a autoridade, o Estado, diante do povo, representado pela aldeia. Um poder distante e

arbitrário, que governa a aldeia por intermédio de um aparato de burocratas cujo comportamento é

grosseiro, inexplicável e rigorosamente desprovido de sentido. O próprio edifício – sede do cume do aparelho

administrativo – é inacessível e impenetrável... Kafka põe em questão os fundamentos despóticos do Estado

moderno.” (pg. 162-163).

Se uma atmosfera sinistra e pessimista parece pairar como uma nuvem nublada sobre os escritos de

Kafka, talvez isto se deva à percepção de que tanto a submissão quanto a revolta conduzem à catástrofe. Em

O Castelo, por exemplo, há a figura de Amália, “personagem de exceção que se destaca fortemente da massa

submissa dos aldeões” e que Löwy considera “sem dúvida uma das mais impressionantes figuras femininas

da obra de Kafka” (p. 185-186). No capítulo 17, “ao receber do arrogante e grosseiro funcionário Sortini uma

mensagem extremamente vulgar e mesmo revoltante – em suma, obscena – intimando-a a procura-lo na

Hospedaria dos Senhores, ela não hesita em rasga-la, atirando os pedaços no rosto do mensageiro enviado

pelo homem do Castelo... Isso basta para atrair sobre ela e toda a sua família a maldição daqueles do alto,

condenando-os a uma exclusão definitiva e irrevogável.” (Löwy: p. 184).

Os conformistas e os submissos apodrecem na espera, alijados de seus direitos numa sociedade

altamente hierarquizada. Os mais altos protegem seus privilégios encerrando-se em fortalezas inacessíveis

aos reles mortais. Os raros que ousam se insurgir contra o sistema – como Amália em O Castelo ou o próprio

Josef. K. em O Processo – acabam conhecendo outra face dos mecanismos jurídicos cruéis: a exclusão e o

extermínio.

Se há em Kafka uma constante identificação com os oprimidos, com as vítimas do sistema, há

também uma intensa “recusa da servidão voluntária”. Esta servidão voluntária indigna que tantas vezes

acaba constituindo o ser-no-mundo daqueles que se resignam ao seus fardos, como os Camelos de que fala

Zaratustra. É claramente discernível, em muitos pontos da obra de Kafka, um elogio da insubmissão, e que

talvez não seja despropositado comparar ao elogio que faz Zaratustra do leão, símbolo da coragem de rugir

contra os fardos e correntes que outros desejam nos fazer carregar como bestas-de-carga.

Em Kafka, porém, a vitória do leão não é garantida e a consequência da revolta é muitas vezes a

exclusão – ser lançado à condição de pária ou outsider – ou mesmo a morte – como Josef K. descobre ao

terminar seu percurso em O Processo. K. morre envergonhado até a medula dos ossos por viver num mundo

onde a submissão canina é exigida de todos e onde os insubmissos serão sacrificados como se fossem cães.

Profético em relação àquilo que de mais sinistro ocorreria no século XX, Kafka é o poeta que pinta

quadros tenebrosos de um mundo onde matam-se homens como cachorros e no qual tanto a revolta quanto o

fatalismo parecem conducentes à tragédia. Algo que pode ser simbolizado pelo levante do Gueto de Varsóvia,

em 1943, quando em pleno Holocausto os judeus tentaram um levante contra o III Reich, evento histórico

tão bem descrito por Todorov em Em Face do Extremo e que representa um dos mais sinistros pesadelos que

ocorreram de fato na História do último século.

Arte por Sergio Birga

IV. BOURDIEU: ESTIGMATIZAÇÃO E RECONHECIMENTO

O pensamento de Pierre Bourdieu pode nos auxiliar a compreender mais a fundo os temas que

estivemos explorando neste artigo, em especial se partirmos desta afirmação simples mas prenhe de

consequências: “aprendemos pelo corpo” (BOURDIEU: Meditações Pascalianas, p. 172). Avesso ao dualismo

simplista entre corpo e alma, espírito e matéria, o pensamento sociológico de Bourdieu procura refletir sobre

os habitus que se tornam profundamente ancorados nos corpos e que cujo processo de formação envolvem

necessariamente condicionamentos sociais.

“As injunções sociais mais sérias se dirigem ao corpo e não ao intelecto... O essencial da

aprendizagem da masculinidade e da feminilidade tende a increver a diferença entre os sexos

nos corpos (sobretudo por meio do vestuário), sob a forma de maneiras de andar, de falar, de se

comportar, de dirigir o olhar, de sentar-se etc. E os ritos de instituição constituem apenas o

limite de todas as ações explícitas pelas quais os grupos trabalham para inculcar os limites

sociais e as classificações sociais (por exemplo, a divisão masculino/feminino), a naturalizá-las

sob a forma de divisões nos corpos, as hexis corporais, das quais se sabe serem tão duráveis

como as inscrições indeléveis da tatuagem...” (BOURDIEU: Meditações Pascalianas, 172-173)

A sociedade tatua seus membros condicionando-os a adotarem habitus e disposições em um

processo que, segundo Bourdieu, carrega sempre uma certa dose de violência simbólica. O que não exclui a

violência concreta, literal, que Clastres analiza em sua investigação sobre os cruentos ritos de passagem de

muitos dos povos que estuda, e que Kafka enforma em uma parábola literária memorável, A Colônia Penal. O

processo “pedagógico”, entendido como conformação do indivíduo ao meio social, não se dá apenas através

da transmissão intelectual de conhecimentos e valores; ensinar se dá também através do castigo corporal

destinado a produzir uma memória, ou seja, uma mnemotécnica que através da imposição da dor ao sujeito

procura, por exemplo, gerar nele a repulsa por um certo comportamento que a sociedade deseja ver proibido

e proscrito.

“Tanto na ação pedagógica cotidiana (“fica direito”, “segure a faca com a mão direita”) como nos

ritos de instituição, essa ação psicossomática se exerce muitas vezes por meio da emoção e do

sofrimento, psicológico ou até físico, mormente aquele que se inflige pela inscrição de signos

distintivos, mutilações, escarificações ou tatuagens, na própria superfície dos corpos. O trecho

de A Colônia Penal em que Kafka relata como se inscreve no corpo do transgressor todas as

letras da lei por ele transgredida ‘radicaliza e literaliza com uma grotesca brutalidade’, como

sugere E. L. Santner, a cruel mnemotécnica a que os grupos com frequência recorrem para

naturalizar o arbitrário e, outra intuição kafkiana (ou pascaliana), lhe conferir assim a

necessidade absurda e insondável que se dissimula, sem nada além, por detrás das mais

sagradas instituições.” (BOURDIEU: p. 173)

Contra a noção de valores inatos, Bourdieu assume uma reflexão muito mais próxima ao empirismo,

considerando como aprendidos, inculcados, introjetados, os sacrossantos valores e ideais que certas

instituições sociais desejam fazer crer que são eternos e absolutos. Agindo de modo similar ao procedimento

nietzschiano na Genealogia da Moral, Bourdieu procurará compreender como vêm-a-ser os habitus a partir

de uma meditação sobre instituições sociais que, através do condicionamentos dos agentes, criam certas

disposições através do manejo de castigos e recompensas, ameaças e elogios – a começar pela infância,

“moldada” pela Família, pelo Estado, pela Igreja, pela Mídia.

“O trabalho de socialização das pulsões apóia-se numa transação permanente na qual a criança

admite renúncias e sacrifícios em troca de provas de reconhecimento, de consideração ou de

admiração (‘como é ajuizado!’), por vezes explicitamente solicitados (‘Papai, olha para mim!’).

Essa troca é altamente carregada de afetividade, na medida em que mobiliza por inteiro a pessoa

de ambos os parceiros, sobretudo a criança, é claro, mas também os pais. A criança incorpora o

social sob a forma de afetos, mas socialmente coloridos, qualificados...” (BOURDIEU: 202)

Não se trata, para Bourdieu, de condenar de modo simplista quaisquer habitus que foram inscritos

nos corpos por meio da violência (psicológica ou física) através de uma “pregação” de caráter humanista e

sentimental de uma pedagogia suave e desprovida de crueldade. O sociólogo está mais ocupado em descrever

o que é (a sociedade de fato) do que em predicar a utopia do que deveria ser – para Bourdieu, interessa mais

compreender o processo através do qual os habitus se formam e se transformam, além da variedade destes

habitus em relação a diferentes contextos sociais. “O habitus, produto de uma aquisição histórica, é o que

permite a apropriação do legado histórico. Assim como a letra deixa de ser letra morta pelo ato de leitura que

supõe uma aptidão adquirida para ler e decifrar, a história objetiva (nos instrumentos, monumentos, obras,

técnicas etc.) somente consegue converter-se em história atuada e atuante quando é assumida por agentes

que, por conta de seus investimentos anteriores, se mostram inclinados a se interessar por ela e dotados das

aptidões necessárias para reativá-la.” (pg. 184)

A subversão, a iconoclastia, a contestação, têm o potencial para reabrir o espaço dos possíveis,

argumenta Bourdieu:

Pierre Bourdieu

"...os discursos e ações subversivos, a exemplo das provocações e de todas as formas de ruptura

iconoclasta, têm por função e, em todo caso, como efeito, atestar na prática ser possível

transgredir os limites impostos - em particular os mais inflexíveis, aqueles inscritos nos

cérebros. A transgressão simbólica de uma fronteira social tem por si só um efeito libertador

porque ela faz advir praticamente o impensável. Mas ela própria somente se torna possível, e

simbolicamente eficiente, em lugar de ser simplesmente rejeitada como um escândalo que,

como se diz, recai sobre seu autor, quando são preenchidas certas condições objetivas. Para que

um discurso ou uma ação (iconoclastia, terrorismo etc.) com pretensão a questionar as

estruturas objetivas tenha alguma chance de ser reconhecido como legítimo (senão como

razoável) e de exercer um efeito de exemplaridade, é preciso que as estruturas assim contestadas

estejam elas mesmas num estado de incerteza e crise de molde a favorecer a incerteza a seu

respeito e a tomada de consciência crítica de seu arbítrio e de sua fragilidade." (BOURDIEU:

Meditações Pascalianas, p. 289)

A leitura de Pierre Bourdieu de O Processo enfatiza que “o mundo social evocado por esse romance

seria tão-somente o limite de inúmeros estados ordinários do mundo social ordinário ou de situações

particulares no interior desse mundo, como aquela de certos grupos estigmatizados – os Judeus do lugar e da

época de Kafka, os Negros dos guetos americanos ou os imigrantes mais destituídos em diversos países – ou

de certos nichos sociais, entregues ao arbítrio absoluto de um chefe, grande ou pequeno, encontradiços, com

muito maior frequência do que se poderia acreditar, no coração de empresas privadas ou mesmo públicas.”

(p. 280)

Enfatiza-se aqui o estigma, que Kafka decerto conheceu na pele ao viver em um gueto judeu de Praga

e que retrata em sua obra com conhecimento de causa, com experiência visceralmente adquirida em suas

vivências. Os personagens kafkianos estão com frequência colocados numa posição de oprimidos, e isto às

vezes é descrito pela pena de Kafka com imagens de impacto, como a do macaco de Relatório a uma

Academia, preso em uma jaula minúscula, que não permite que ele fique de pé nem que se deite a contento.

Esta situação de extremo incômodo físico, que vincula-se necessariamente também a uma posição

psicológica beirando a insuportabilidade, serve como motivo para a ação no mundo kafkiano. Josef K., ao

ver-se enredado pelo processo, age como uma mosca que tenta se desenredar da teia da tarântula.

O “jogo” sinistro que Josef K. começa a jogar assim que acorda, naquela manhã que inicia o romance,

em que descobre que está sendo movido contra ele um processo, é descrito por Bourdieu como algo que

acarreta uma experiência do tempo marcada pela extrema imprevisibilidade. “Esse jogo se caracteriza por

um grau muito elevado de imprevisibilidade: não se pode confiar em nada. (...) Pode-se esperar tudo; o pior

nunca está fora de cogitação. Não é por acaso que a instituição ordinariamente incumbida de limitar o

arbítrio, o tribunal, também seja, neste caso, o lugar por excelência do arbítrio, que se afirma como tal, sem

sequer se dar ao trabalho de dissimular. Por exemplo, o tribunal censura pelo atraso quando ele mesmo está

sempre atrasado, fazendo pouco do princípio segundo o qual a regra também se aplica àquele que a edita...”

(p. 281)

A existência de Josef K. parece despencar no maelstrom de um sistema de poder um tanto caótico,

desorganizado, burocrático mas ineficaz, pesadelo tragi-cômico ironizado por Terry Gilliam em sua distopia

cinematográfica Brazil. No caso de K., o desenlace é mais trágico do que cômico – e Kafka, que tinha

predileção por metáforas animais, compara a sua morte à de um cão. Neste mundo social de “desordem

instituída”, como escreve Bourdieu, “cada um encontra-se aí enredado sem defesa (como K. ou como os

subproletários) nas formas mais brutais de manipulação dos temores e das expectativas.” (p. 282)

Com a experiência sociológica e antropológica que adquiriu nos anos em que viveu na Argélia dos

anos 1960, Pierre Bourdieu estabelece um paralelo entre o Josef K. kafkiano e aqueles que chama de

“subproletários”. “Existe uma categoria no mundo social, a dos subproletários”, escreve Bourdieu nas

Meditações Pascalianas, que tem a “experiência mais ou menos durável da mais total impotência: tal como

foi observado pelos psicólogos, o aniquilamento das oportunidades associado às situações de crise acarreta o

aniquilamento das defesas psicológicas e, nesse caso, envolve uma espécie de desorganização generalizada e

durável da conduta e do pensamento por força do desmoronamento de qualquer perspectiva coerente de

futuro. (...) Após ouvir os subproletários, desempregados argelinos dos anos 1960 ou adolescentes sem futuro

dos grandes conjuntos urbanos dos anos 1990, pode-se descobrir a mesma impotência, aniquiladora de

potencialidades...” (p. 271)

O desemprego e a impotência, que Bourdieu enxerga como presentes na condição subproletária,

acarreta uma experiência do mundo e do tempo que é sentida pelo sujeito como sem-sentido. “Com seu

trabalho, os desempregados perderam os milhares de coisas nas quais se realiza e se manifesta

concretamente uma função socialmente conhecida e reconhecida, ou seja, exigências e urgências – encontros

‘importantes’, trabalhos para enviar, cheques a remeter, orçamentos a preparar -, e todo o futuro já contido

no presente imediato, sob forma de prazos, datas e horários a respeitar – horário do ônibus, cadências a

cumprir, trabalhos para concluir... Privados desse universo objetivo de incitações e indicações que orientam e

estimulam a ação e, por conseguinte, toda a vida social, eles só conseguem viver o tempo livre que lhes é

deixado como tempo morto, tempo para nada, esvaziado de qualquer sentido.” (271)

“Excluídos do jogo, esses homens destituídos da ilusão vital de ter uma função ou uma missão,

de ter que ser ou fazer alguma coisa, podem, para escapar ao não-tempo de uma vida onde não

acontece nada e da qual não se pode esperar nada, e para se sentir existir, recorrer a atividades

as quais, como as apostas no jóquei, a loteria esportiva, o jogo do bicho, e os demais jogos de

azar em todos os bairros miseráveis e favelas do mundo, permitem desguiar do tempo anulado

de uma vida sem justificativa... Para tentar se livrar do sentimento, tão bem expresso pelos

subproletários argelinos, de ser o joguete de constrições externas (“sou como uma casca boiando

n’água”), e tentar romper com a submissão fatalista às forças do mundo, também podem,

sobretudo os mais jovens, buscar em atos de violência que valem em si mesmos até mais – ou

tanto quanto – do que os ganhos que proporcionam, ou em jogos de morte com a moto ou o

carro, um meio desesperado de existir diante do outros, para os outros, de ter acesso a uma

forma reconhecida de existência social, ou simplesmente, de fazer com que aconteça algo em

lugar de nada.” (272)

Tanto que, evocando O Jogador de Dostoiévski, Bourdieu destaca que um dos maiores atrativos e

charmes da roleta – e outros jogos-de-azar onde aposta-se dinheiro – é a possibilidade de uma ascensão

social súbita, “milagrosa”, que dispensa o trabalho, pegando um atalho direto para a riqueza e a acumulação.

Bourdieu decerto não está sendo simplista a ponto de afirmar que o tedium vitae e o nonsense são as únicas

possibilidades existenciais para aqueles – como os subproletários – que não estão inseridos no mercado de

trabalho. O modo-de-vida dos subproletários “se contrapõe igualmente à skholè, tempo empregado

livremente com finalidades livremente escolhidas e gratuitas que, como nos casos do intelectual e do artista,

podem ser aquelas de um trabalho, mas libertado, em seu ritmo, seu momento e sua duração, de qualquer

constrição externa e, em particular, daquela que se impõe por intermédio da sanção monetária direta.

Quando da invenção da vida de artista como vida boêmia, dando continuidade à vida de pintor ou de

estudante, elabora-se essa temporalidade de contornos fluidos, ignorando os horários e a urgência (a não ser

aquela que cada um impõe a si mesmo), relação com o tempo encarnada na disposição poética como pura

disponibilidade diante do mundo, fundada, na verdade, na distância em relação ao mundo e a todas as

preocupações medíocres da existência comum das pessoas comuns...” (274)

A “identificação instintiva com os oprimidos” que, na opinião do biógrafo de Kafka, Ernst Pawel, é

uma das marca do modo-de-estar-no-mundo do autor de A Metamorfose, não deve ser compreendida como

uma efetiva pertença de classe. Franz Kafka não pertencia de fato a esta classe denominada por Bourdieu

“subproletariado” – Doutor em Direito, com um emprego estável no Instituto, e além do mais artista cujo

tempo vital incluía não somente o domínio do labor mas também o da skholè, Kafka, no entanto, criou uma

obra marcada pela reflexão sobre estratos sociais estigmatizados, perseguidos, oprimidos. Sua posição como

judeu vivendo em um gueto de Praga em tempos de anti-semitismo, além de sua posição como filho que

sentia-se diminuído e oprimido por um pai bruto e autoritário, condicionaram sua sensibilidade de modo a

capacitá-lo a descrever, em sua obra, o labirinto vital daqueles que não encontram reconhecimento social.

“Convém retornar a Josef K. A incerteza em que ele se encontra a respeito do futuro não passa

de uma outra forma de incerteza a propósito do que ele é, de seu ser social, de sua ‘identidade’,

como se diria hoje; destituído do poder de dar sentido, no duplo sentido, à sua vida, de nomear a

significação e a direção de sua existência, ele está condenado a viver num tempo orientado pelos

outros, alienado. Eis, exatamente, em que consiste o destino de todos os dominados, obrigados a

esperar tudo dos outros, detentores do poder sobre o jogo e sobre a esperança objetiva e

subjetiva de ganhos que pode proporcionar, logo mestres em jogar com a angústia que nasce

inevitavelmente da tensão entre a intensidade da espera e a improbabilidade da satisfação.”

(BOURDIEU: p. 290)

Em outras palavras: K., engolfado pelo Processo, não pode mais dispor de seu próprio tempo, que é

dominado pelo tribunal, pelas audiências a que tem que comparecer, pelas informações sobre seu caso que

precisa conquistar, pela defesa que é mister empreender. Esta experiência de tempo kafkiana, em que o

futuro é incerto e a possibilidade do pior está sempre aberta, é compreendida por Bourdieu como decorrente

de uma certa posição social onde a justificação de uma existência particular perde sua sustentação. A

existência singular de Josef K. “se mostra questionada em seu ser social mediante a calúnia inicial, espécie de

pecado original sem origem, como o estigma racista” (BOURDIEU: p. 290).

Novamente, como é comum quando exploramos a obra kafkiana, retornamos à questão

do estigma, uma espécie de tatuagem negativa imposta por certos grupos sociais, muitas vezes movidos por

racismo, xenofobia, anti-semitismo etc., e imposto a certos grupos sociais que são estigmatizados,

marginalizados, limitados em sua liberdade, ou mesmo exterminados de modo brutal. O III Reich, quando

impõe que os judeus portem a estrela de Davi no peito, de certo modo estigmatiza de modo semelhante ao

que faz um fazendeiro que marca seu gado com ferro fervente. A obra de Kafka contêm prenúncios dos

horrores que ocorreriam na Europa dos anos 1930 e 1940, e cujas raízes já se encontravam no espaço social

em que Kafka viveu – cabe lembrar que todas as suas irmãs morreram em campos de concentração e que o

próprio Kafka, se não tivesse morrido tão cedo (aos 40 anos de idade, vítima da tuberculose), muito

provavelmente também teria sido perseguido pelos nazistas. Talvez se possa, portanto, compreender em uma

perspectiva mais ampla o problema da calúnia que Josef K. sente que lhe foi cometida: mais do que mera

maledicência dirigida contra uma pessoa em particular, esta calúnia talvez seja o índice de uma prática social

mais disseminada e consiste em estigmatizar todo um grupo social que se deseja, assim, marginalizar ou até

aniquilar.

O pensamento de Bourdieu reconhece nos indivíduos um anseio por justificação, uma vontade de

“sentir-se justificado por existir tal como existe”, e é justamente isto que é negado a K. pelo estigma calunioso

que lhe é imposto. O “universo afetivo” de K. pode ser compreendido como uma representação da posição

existencial do oprimido, do dominado, do estigmatizado, que sente que os poderes dominantes da sociedade

se voltam contra ele, como naqueles pesadelos onde as paredes da cela vão estreitando até esmagar o sujeito.

Conforme acompanhamos a narrativa d’O Processo, sentimos que, para Josef K., the walls are always

closing in.

“Ninguém pode proclamar verdadeiramente, nem diante dos outros, e muito menos diante de si

mesmo, que ‘dispensa qualquer justificação’. Ora, se Deus está morto, a quem pedir tal

justificação? Resta apenas o julgamento dos outros, princípio decisivo de incerteza e

insegurança, mas também, e sem que haja contradição, de certeza, segurança, consagração.

Ninguém – salvo Proust, embora num registro menos trágico – soube evocar como Kafka o

confronto de pontos de vista inconciliáveis, de juízos particulares com pretensões à

universalidade, o enfrentamento permanente entre a suspeita e o desmentido, a maledicência e

o louvor, a calúnia e a reabilitação, terrível jogo de sociedade em que se elabora o veredicto do

mundo social, esse produto inexorável do juízo inominável dos outros. (...) Josef K., inocente

caluniado, obstina-se em buscar o ponto de vista dos pontos de vista, o tribunal supremo, a

última instância. (...) E a questão do veredicto, juízo solenemente proferido por uma autoridade

capaz de dizer de cada um o que se é na verdade, retorna ao fim do romance, por meio das

interrogações finais de Josef. K.: ‘Onde estava o juiz que ele jamais vira? Onde era o tribunal

supremo ao qual ele nunca tivera acesso?’” (BOURDIEU: 291)

Em O Processo, Deus, se existe, cala-se e esconde-se. Nenhum veredito cai do céu. O veredito é

produto inteiramente social, e Josef K. sabe que seu destino depende deste veredito nascido de uma caótica,

burocratizada e persecutória maquinaria social. Bourdieu, inspirado nas meditações de Pascal, julga, sobre a

finitude da existência humana: “ainda que seja a única coisa certa na vida, fazemos tudo para esquecê-la,

atirando-nos ao divertimento ou buscando refúgio na sociedade”. E é justamente “o mundo social que oferece

aos humanos aquilo de que eles são inteiramente destituídos: uma justificativa para existir.” (pg. 292) Em

outros termos: a finita existência humana só adquire justificação e sentido a partir de um reconhecimento

social que delegue ao sujeito a crença em seu próprio valor como alguém que serve para algo, como alguém

que desempenha alguma função social reconhecida e aplaudida pelos outros. Os subproletários, os judeus

perseguidos, os negros do guetos americanos, assim como os personagens kafkianos, são todos exemplos,

para Bourdieu, de existências que vivem na falta deste reconhecimento social indispensável para que o

sujeito sinta que sua vida tem sentido.

“Pode-se estabelecer um vínculo necessário entre três fatos antropológicos indiscutíveis e

indissociáveis: o homem é e sabe que é mortal, a idéia de que vai morrer lhe é insuportável ou

impossível e, condenado à morte, fim (no sentido de termo) que não pode ser tomado como fim

(no sentido de meta), o homem é um ser sem razão de ser, tomado pela necessidade de

justificação, de legitimação, de reconhecimento. Ora, como sugere Pascal, nessa busca de

justificativas para existir, o que ele chama ‘o mundo’, ou ‘a sociedade’, é a única instância capaz

de fazer concorrência ao recurso a Deus.” (BOURDIEU, 293)

Uma das originalidades do pensamento sociológico de Bourdieu é destacar que as desigualdades

sociais, em termos de distribuição de capital e propriedade, acarretam também uma desigualdade nas

justificações para existir:

“Dentre todas as distribuições, uma das mais desiguais e, em todo caso, a mais cruel, é decerto a

repartição do capital simbólico, ou seja, da importância social e das razões de viver. Sabe-se, por

exemplo, que até mesmo os cuidados e tratos prestados pelas instituições e agentes hospitalares

aos moribundos são proporcionais à sua importância social, ainda que de maneira mais

inconsciente do que consciente. Na hierarquia das dignidades e indignidades, que nunca se

superpõe inteiramente à hierarquia das riquezas e dos poderes, o nobre, em sua variante

tradicional, ou em sua forma moderna – o que denomino nobreza de Estado -, contrapõe-se ao

pária estigmatizado o qual, a exemplo do Judeu da época de Kafka, ou, hoje, o Negro dos guetos,

o Árabe ou o Turco dos subúrbios operários das cidades européis, carrega a maldição de um

capital simbólico negativo. (...) Não existe pior esbulho, pior privação, talvez, do que a dos

derrotados na luta simbólica pelo reconhecimento, pelo acesso a um ser social socialmente

reconhecido, ou seja, numa palavra, à humanidade.” (BOURDIEU, p. 295)

Kafka por Robert Crumb

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: A Propósito do décimo aniversário de sua morte.

BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas.

CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência & A sociedade contra o Estado.

CRUMB, Robert. Kafka.

KAFKA. O Processo & A Colônia Penal.

LÖWY, Michael. Kafka: Sonhador Insubmisso.

PAWEL, Ersnt. O Pesadelo da Razão.

TODOROV, Tzvetan. Em Face do Extremo.