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Protagonismo da Juventude Brasileira: teoria e debate

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BRENDA ESPINDULA (ORG.)

PROTAGONISMO DA JUVENTUDE BRASILEIRA: TEORIA E MEMÓRIA

1ª edição

São PauloInstituto ArteCidadania (IAC)

Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ)

2009

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seminário Memória do Protagonismo da Juventude BrasileiraCoordenação do seminário Brenda Espindula e Fabiana CostaApoio à organização do seminário Carlos Alexandre Pedroso Vianna Pesquisa Fernando Garcia e Rovilson Portela

Coordenação editorial Brenda EspindulaAssistente editorial Rovilson PortelaProjeto gráfico e diagramação Cláudio GonzalezRevisão Priscila LobregatteRealização Instituto ArteCidadania e Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ)Apoio Fundo Nacional de Cultura – Ministério da Cultura

Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 3.0 Brasil. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/.

INSTITUTO ARTECIDADANIASede filial: Alameda Nothmann, 1031 - Campos Elíseos São Paulo – SP - CEP: [email protected]

CENTRO DE ESTUDOS E MEMÓRIA DA JUVENTUDE (CEMJ)Av. Treze de maio, 1016 – Cj.02 - Bela Vista São Paulo – SP - CEP [email protected]

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Sumário

Apresentação........................................................................05Brenda Espindula

O conceito de protagonismo juvenil ....................................10Regina Magalhães de Souza

Protagonismo juvenil: um conceito em revisão....................25Maria Izabel Calil Stamato

O funcionalismo e a tese da moratória social na análise das rebeldias juvenis.............................................................36Luís Antonio Groppo

Protagonismo juvenil e projeto nacional..............................53Leopoldo Vieira

1968: Mobilização democrática e desencadeamento da luta armada no Brasil.......................................................60João Quartim de Moraes

Participação juvenil na conquista do Passe Livre na cidade do Rio de Janeiro.......................................................92Marjorie Botelho

A construção das Políticas Públicas para a Juventude no Brasil: idas e vindas.............................................................103Augusto Vasconcelos

O protagonismo juvenil na cultura e nas artes: duas gerações em debate............................................................134Itala Nandi e Alexandre Santini

Na contramão da produção teatral: o Teatro Oficina..........143 Miliandre Garcia de Souza

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APRESENTAÇÃO

A necessidade de um novo olhar sobre a temática juventude apresenta-se a pesquisadores e à socie-dade brasileira. Se em décadas atrás, a juventude era considerada problema, hoje o Estado brasileiro passa a encará-la como sujeito de direitos. Assim,

na medida em que o Estado se orienta para a retomada do de-senvolvimento nacional, para além de grupo social que deve ter seus direitos garantidos, a juventude também começa ser con-siderada como importante agente de construção do país, como segmento fundamental para o projeto democrático de desen-volvimento econômico e social a ser construído para o Brasil.

Em nosso país, o movimento juvenil marcou presença em grandes mobilizações e acontecimentos políticos. Empunhando bandeiras e reivindicações democráticas que mais tarde invaria-velmente acabariam se efetivando – em grande medida graças à sua luta enérgica e abnegada –, os jovens marcaram presença em praticamente todos os grandes momentos da vida de nosso país. Pode-se dizer que a juventude brasileira tem escrito capí-tulos importantes da história de lutas do povo brasileiro pela transformação progressista do país. Sempre sensível às grandes questões nacionais, a juventude é vista como ator decisivo dos processos de mudança.

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Para além da percepção da importância do protagonismo juvenil e da sua relação com os avanços da cidadania no país, a participação da juventude só poderá atingir prestígio enquanto tema a ser pensado na medida em que se realiza a preservação da sua memória, já que examinar em perspectiva histórica o que e como foi feito é chave para entender os significados históri-cos. Informada e subordinada pelas necessidades do presente, a reconstituição da memória alude ao passado a fim de delin-ear a trajetória que se seguiu e de revelar as significações que configuram o presente. Nas narrativas e nas lembranças sobre o passado, é possível ativar o sentimento de pertencimento à na-ção, à uma geração, bem como consagrar eventos que marcam a singularidade histórica de um país.

Por essa concepção, faz sentido declarar que uma juven-tude e um país sem memória é uma juventude e um país sem identidade. Entretando, a constatação é de que, de modo geral, a juventude não tem conhecimento do papel que desempenhou na história do nosso país. A privação desse conhecimento do passado leva à sensação de não-pertencimento, ao sentimento de vazio do espírito coletivo e de distanciamento da realidade e, até mesmo, de impotência diante do mundo. Fica estabelecido como imprescindível, então, contribuir com o reconhecimento da história da participação juvenil, com vistas a satisfazer essa privação que desconhece os caminhos históricos que configura-ram o presente.

Ainda, nunca é demais lembrar que a memória é um campo em disputa e que, na maioria das vezes, especialmente no caso brasileiro, predomina o que é consagrado pela historiografia ofi-cial. Essa historiografia reproduz valores que contribuem com a exclusão social, marca da história do país, priorizando a visão e a voz de apenas alguns segmentos da nossa sociedade. A quem não se contenta com essa prática, cabe ser ativo na construção do discurso histórico, sustentado pelo trabalho de reconstitu-ição da memória. Se lembrarmos o nosso passado de dita-dura militar, no qual as lutas travadas pela juventude brasileira foram clandestinas e reprimidas, o trabalho de memória toma significado de desvelamento, colocando em cena jovens protag-onistas que foram calados. Contemporaneamente, dado outro

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contexto político, contexto em que os movimentos juvenis têm a liberdade de “poder falar” (mesmo sendo contraditória com a concentração dos meios de comunicação), a memória passa a ser configurada por quem tem poder de formalizá-la, institucio-nalizá-la. Mais do que nunca, coloca-se a oportunidade de dar visibilidade para discursos historicamente oprimidos, para se repensar enquanto país, para a juventude se reconciliar com a sua história.

Assim, recuperar a memória da participação da juventude brasileira se faz relevante, aliando esse trabalho ao estudo e à análise de toda essa experiência – em um saudável exercício de reflexão que nos permita entender, por exemplo, de que forma o engajamento político-social da juventude contribui para a for-mação da identidade cultural brasileira e para a construção da nacionalidade. É resgatando o que e como foi feito em gerações anteriores que se poderá entender as características da juven-tude e suas novas formas de organização, manifestação e atu-ação política e cultural na atualidade.

Com essa intenção, o Instituto ArteCidadania e o Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ) puderam desenvolver o projeto “Memória do protagonismo da juventude brasileira”, que contou com o apoio do Ministério da Cultura. A publicação que apresentamos aqui é resultado dos debates promovidos durante a realização do Seminário “Memória do Protagonismo da Juventude Brasileira”, ocorrido nos dias 11 e 12 de junho de 2009, na Faculdade Anhanguera, na cidade de Campinas/SP.

Além de artigos dos pesquisadores que compuseram as mesas do Seminário, a publicação conta com contribuições de especialistas sobre protagonismo juvenil e memória. A sua estrutura foi desenhada a fim de apresentar as seguintes pro-postas: a) Problematizar a categoria de protagonismo juvenil, procurando situá-la historicamente; b) Apresentar análises das experiências históricas de participação da juventude; e c) Refle-tir sobre a articulação entre arte, cultura e protagonismo juvenil.

A categoria protagonismo juvenil é considerada um con-ceito polissêmico, já que diferentes segmentos sociais a demar-cam a partir de diferenciados pressupostos. Se por uma lado a expressão se aproxima da ideia de fortalecimento da partici-

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pação democrática dos jovens no cenário político nacional, por outro, ela é enquandrada como categoria que explica a concep-ção neoliberal sobre a juventude, já que a expressão foi recor-rentemente utilizada na década de 1990 para sustentar uma orientação política que desrresponsanilizava o poder público à garantia de direitos para a juventude.

Mesmo dada a polissemia, pode-se apontar uma con-vergência sobre a definição de protagonismo juvenil. Nas suas variadas acepções, todas elas se balizam a partir da experiência de participação política da juventude na década de 1960, prob-lematizando o comportamento político juvenil da geração de 1968 como parâmetro de análise. Assim, elas se posicionam em relação às revoltas da juventude, configurando diferenciadas significações para as rebeldias juvenis ou para as resistências dos jovens em seu tempo.

Essas interpretações para a categoria de protagonismo juvenil podem ser melhor conhecidas quando se procura anal-isar as experiências históricas de participação da juventude. A exemplo, o processo de mobilização de massas contra a ditadura militar pode revelar reflexões importantes sobre a participação juvenil. É saudável revisitar a elaboração sobre a presença deci-siva do movimento estudantil nesse processo, passando em re-vista o papel dos estudantes como categoria social mobilizadora por excelência e a sua função dirigente no seio do movimento de massas. Outro período da história do Brasil que deve ser estu-dado com vistas a analisar o protagonismo juvenil é o contexto da redemocratização, na segunda metade da década de 1970 e início dos anos 1980. A reorganização de partidos, sindicatos, associações e movimento estudantil ocorrido na época pode in-dicar caminhos originais para o entendimento das ações coleti-vas empreendidas por grupos juvenis.

Ainda, a publicação lança luz ao papel da protagonismo da juventude no período mais recente, nos anos 2000, quando se abre historicamente a possibilidade de democratização do Estado e de valorização de certos temas para a política pública. Atenta-se para o fato da construção do Conselho Nacional de Ju-ventude e um movimento crescente de conselhos de juventude em todas as esferas da federação. A relação do Estado com a

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sociedade civil começa a delinear uma nova postura dos movi-mentos sociais. Assim, o protagonismo juvenil é impactado por esta nova relação mais dialógica, mais aberta, mais instituciona-lizada, o que leva a juventude se posicionar e pautar a agenda política de uma forma mais propositiva, criando novas formas de organização coletiva e novas bandeiras.

Por fim, o dialógo entre Ittala Nandi e Alexandre Santini, realizado durante o Seminário, é reproduzido na íntegra na pre-sente publicação, a fim de valorizar o encontro de duas gerações, que, enquanto jovens, produziram cultura e arte sintonizados com a história do Brasil. Entender os significados da participa-ção pela cultura que os jovens artistas, integrantes do Teatro Oficina, na década de 1960 e 1970, e os jovens que constróem o CUCA (Circuito Universitário de Cultura e Arte), movimento promovido pela União Nacional dos Estudantes (UNE), iniciado no fim da década de 1990 e que se desenvolve até os dias atuais, é um das dimensões que esse encontro de gerações pode revelar.

Consideramos que a relação entre juventude, protagonis-mo e memória pode se desdobrar em muitos estudos e reflexões. Para além das dimensões acumuladas a partir da realização desse Seminário, apresentada nessa publicação, vale promover outros percursos explicativos para pensar a participação da juventude nos diversos momentos da história do nosso país, refinando as análises e procurando não cair em anacronismos. O trabalho de memória exige espírito aberto e questionador e, ao mesmo tem-po, postura analítica rigorosa, a fim de que não se resvale a con-statações distorcidas e interpretações inconsistentes.

Brenda Espindula (organizadora)

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O conceito de protagonismo juvenilRegina Magalhães de Souza*

Sempre ambiguamente definido, o enunciado protagonismo ju-venil começou a circular no discurso sobre a participação social da juventude em meados da década de 1990. Trata-se de discur-so internacional, produzido e reproduzido pelo Banco Mundial, agências das Nações Unidas, organizações não-governamentais e governos de diversos países europeus e americanos, entre eles o Brasil, e segundo o qual devem ser formuladas e implementadas as chamadas “políticas públicas” especificamente dirigidas aos segmentos jovens das populações (Souza, 2008; Souza e Arcaro, 2008). Este artigo faz uma breve identificação da forma de parti-cipação da juventude prescrita pelo discurso do qual emergiu o enunciado protagonismo juvenil, embora o próprio discurso im-peça a tentativa de definição precisa do conceito.

A imagem imediatamente evocada pelo enunciado protagonismo juvenil é a do jovem estudante da “geração 68” ou “geração anos 60”, transformada em mito – ente deslocado do tempo e da his-tória – referência para se interpretar e julgar o comportamento juvenil posterior, que aparece como negação e traição ao mito ou como repetição deficiente e inautêntica (CARDOSO, 2005). Em outras palavras, o mito do “movimento de 68” fixou um modelo irrealizável às gerações posteriores, que se viram diante de duas alternativas: reeditar o mito, convertendo seu comportamento em simulacro e arremedo, ou desprezar o mito, incorrendo em alienação e incapacidade de consciência crítica. É possível identi-ficar em grande parte dos textos acadêmicos produzidos no Brasil desde a década de 80 uma expectativa constante, nem sempre ex-

*Doutora em Sociologia e professora da Universidade Nove de Julho

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plicitada, e que pode ser assim formulada: “Agora que o movimen-to estudantil – o mito – não mais é possível, quais seriam as novas formas de participação da juventude?” “Na atual conjuntura po-lítica, econômica e cultural do país, qual seria a forma de partici-pação juvenil?” Ou seja, é possível identificar no discurso sobre a juventude dos anos 80 e 90 a expectativa de reencontrar a política (SOUZA, 2008).

Por outro lado, na década de 70 emergiram os “novos” movimen-tos sociais, cujo caráter de novidade deveu-se, fundamentalmen-te, à busca de autonomia em relação às instâncias “tradicionais” de representação e ordenação política (Estado, partidos, sindica-tos) e à defesa de direitos. Nos “novos” movimentos sociais, “no-vos sujeitos” construíram “novas formas” de política. As “novas formas” ampliaram o universo possível da política, estendendo a reivindicação de direitos ao âmbito das relações, situações e prá-ticas cotidianas e não-inseridas no processo de produção, e atri-buíram sentido a pequenos atos e manifestações que até então se-riam considerados inconsequentes e desprovidos de significado. “Ao observarmos as práticas desses movimentos, nós nos damos conta de que eles efetuaram uma espécie de alargamento do es-paço da política. Rechaçando a política tradicionalmente instituí-da e politizando questões do cotidiano dos lugares de trabalho e de moradia, eles “inventaram” novas formas de política (SADER, 1995, p. 20)”.

Também entre a juventude, os pesquisadores passaram a levan-tar a possibilidade de “novas formas” de política. Foi o caso do Dossiê: movimento estudantil hoje, publicado em 1985 pela revista Desvios, do Departamento de Ciências Sociais da USP. Os artigos então publicados (BELTRÃO, 1985; FERREIRA, 1985; RIBEIRO NETO, 1985) apontavam “outro horizonte de práticas coletivas” e anunciavam “novas questões para a universidade, para a socieda-de e para a política”, conforme afirmou Paoli (1985, p. 60) na apre-sentação do Dossiê. O esvaziamento do movimento estudantil não foi interpretado como apatia ou negação da política, mas como recusa da “forma de existência das entidades de representação estudantil” (PAOLI, 1985, p. 59).

A hipótese então levantada pela Desvios, de que outras formas de

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intervenção no espaço público, distantes das entidades tradicio-nais de representação e exercício da política (partidos, diretórios acadêmicos, centrais universitárias) poderiam constituir ações políticas legítimas, tornou-se expectativa corrente durante os anos que se seguiram. Nos anos 1990 e 2000, com mais frequ-ência e menos incertezas, autores diversos, sob perspectivas di-versas, seguiram tentando identificar comportamentos juvenis que pudessem ser interpretados como “novas formas de política” (SOUZA, 2008, p. 21-42). À pergunta que vem sendo repetida há 25 anos – “quais são as novas formas de participação da juventu-de”? – o discurso do poder oferece uma resposta: o protagonismo juvenil.

Em 1986, a Revista de la Cepal publicou um número especial, cujos artigos (FALLETO, 1986; KIRSCH, 1986, entre outros) fize-ram um balanço da participação da juventude na América Latina e indagaram sobre as perspectivas futuras. Cabe destacar o artigo de Kirsch (1986) que, embora tenha se referido especificamente aos universitários – um dos segmentos da noção cada vez mais ampliada de juventude produzida nos anos 80 e 90 –, sob alguns aspectos, pode ser considerado típico do discurso que foi sendo construído. O autor identifica um conjunto de transformações so-ciais, políticas e culturais ocorridas nos países latino-americanos – urbanização, modernização da economia, mudança da estrutura ocupacional, maior acesso à educação superior, democratização e, especialmente naquela década de 80, uma “crise econômica de proporções jamais vistas” (KIRSCH, 1986, p. 193). Na nova con-juntura da década de 80, a participação, qualificada cada vez mais como “social” e cada vez menos como “política” nos anos que se seguiram, deveria se aliar ao desenvolvimento, concebido cada vez mais como “social” e “humano” e menos como econômico. Assim a pergunta levantada por Kirsch (1986), sobre “como for-mular novas imagens de desenvolvimento condizentes com so-ciedades democráticas e estáveis, que permitam a integração das grandes maiorias sociais junto com a superação da atual situação econômica” (p. 194), já traz consigo premissas que delimitam o campo das respostas possíveis: a ideia do desenvolvimento como resposta à crise, o propósito de manutenção de certo modelo de democracia e os objetivos de estabilidade e integração sociais.

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Colocados os objetivos de desenvolvimento e democracia, além do diagnóstico de que a política do movimento estudantil não te-ria mais lugar no momento presente, Kirsch (1986) considera que a participação da juventude universitária nas sociedades latino-americanas deva assumir a forma de provisão de recursos huma-nos e de lideranças na negociação e defesa de interesses: “Dada a importância do movimento estudantil no passado e o conjunto de transformações sociais experimentadas nestes momentos de crise, se faz necessário averiguar em que termos as juventudes universitárias podem considerar-se como potenciais recursos humanos de capacidade cultural inovadora, cuja participação te-ria projeções para o fortalecimento ou criação da democracia e a constituição de alianças de onde se coordenam os interesses ge-rais dos distintos grupos (p. 196).

Nos termos de Kirsch (1986), a juventude universitária deve definir-se como “ator político e social significativo” (p. 194). Em linhas gerais, desempenhar o papel de ator social tem sido o mo-delo de participação da juventude prescrito pelos organismos in-ternacionais, órgãos de governo, ONGs e muitos acadêmicos que vêm se dedicando à construção do campo das políticas públicas de juventude. A participação dos jovens como atores sociais na formulação e implementação dos programas, projetos e medidas tem sido ponto fulcral dessas políticas desde, pelo menos, 1985. De lá para cá, o discurso da participação da juventude não perma-neceu estático e imutável, mas foi se alterando em decorrência de fatores diversos (reação a outros discursos, resposta às realida-des materiais exteriores e condições internas do próprio discur-so). A análise de toda essa movimentação do discurso, das suas condições de possibilidade e eficácia e do modo como se presta ao exercício do poder está sendo deixada de lado neste texto, que se fixa em um só ponto: a noção de ator social como modelo de participação juvenil.

A menção a “atores sociais” pode ser encontrada na maior par-te dos textos que vêm sendo produzidos no campo das políticas públicas. Pode-se dizer que o autor que mais bem delineou a atu-al noção de ator social foi Alain Touraine, que, em 1984, reuniu vários escritos na obra intitulada O retorno do ator (TOURAINE, 1996). Touraine (1996) defende a tese do esgotamento da ideia

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de sociedade e, consequentemente, da “sociologia clássica”, e propõe uma sociologia da ação. Para Touraine (1996), os novos movimentos sociais não poderiam ser explicados pelas condições estruturais da sociedade e pela “posição do ator no sistema” (p. 26). Em linhas gerais, pode-se afirmar que Touraine (1996) tenta distanciar-se tanto do marxismo (e da utopia de mudança social), que determinaria o comportamento dos indivíduos, quanto do in-dividualismo liberal, que explica o funcionamento da sociedade pela busca individual de satisfação de interesses e objetivos parti-culares. Opõe-se às ideias marxistas e socialistas, que impediriam a livre manifestação individual, e defende a ação do indivíduo, de-finida por “orientações culturais” ou um “pertencimento comum” e limitada pelos interesses dos outros indivíduos: “O ator social de antanho era um protesto contra as tradições, convenções, formas de repressão e privilégios que o impediam de ser reconhecido. Hoje, protesta com a mesma força, mas contra os aparelhos, os discursos, as evocações de perigos exteriores, que o impedem de fazer ouvir os seus projetos, de definir os seus objetivos próprios e de se envolver diretamente nos conflitos, nos debates e nas ne-gociações que desejar (TOURAINE, 1996, p. 36-37)”. “Os atores não se limitam a reagir a situações, mas produzem igualmente es-tas últimas. Eles definem-se, ao mesmo tempo, pelas suas orien-tações culturais e pelos conflitos sociais em que estão envolvidos. Por orientações culturais, não entenderemos valores opostos aos do adversário, mas, pelo contrário, comuns com ele e definidores do que está em jogo nos conflitos (TOURAINE, 1996, p. 49)”.

Desse modo, Touraine (1998a) define atores como “indivíduos ou grupos capazes de modificar seu meio e de afirmar ou de reforçar seu controle sobre as condições e as formas de suas atividades” (p. 40). A mesma concepção de ator social, o autor reafirma em ar-tigo escrito por ocasião de consultoria ao governo do Chile a ser-viço da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO): “um ator social é o homem ou a mulher que intenta realizar objetivos pessoais em um entorno constituído por outros atores, entorno que constitui uma coletividade a que ele sente que pertence e cuja cultura e regras de funcionamento insti-tucional faz suas, ainda que somente em parte. (Touraine, 1998b)”.

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Conforme Touraine (1998b), uma política de juventude deve ter como principal objetivo “incrementar nos jovens a capacidade de se comportarem como atores sociais, ou seja, de modificar seu entorno social para realizarem projetos pessoais”. Pode-se iden-tificar como premissa do argumento de Touraine a idéia de que o indivíduo contemporâneo não encontra mais segurança e ga-rantias de direitos nas instituições, na sociedade ou no Estado: ”A sociedade está em movimento, é uma espécie de maratona que se vai cada vez mais depressa e em que participam corredores cada vez mais numerosos e melhor preparados, mas é também uma corrida em que se deixa de lado muitos que não têm forças ou ânimos para correr, que não têm bons calçados ou que estão mal alimentados. Sociedade cada vez mais “dualista”, dizem os soció-logos, em que as antigas barreiras sociais têm sido substituídas por outras novas, em que a oposição principal não é mais os de cima e os de baixo, mas entre os que participam da corrida e os que têm tido que renunciar (TOURAINE, 1998b).

O enfrentamento da ameaça de exclusão é individual. O indiví-duo deve fortalecer-se para buscar, ele próprio, a sua integração social em termos de realização de objetivos particulares. Assim, Touraine (1998b) pergunta “Como fazer da participação social um objetivo numa sociedade em que tantos jovens se encontram excluídos ou marginalizados? Como falar de integração quando o que impera é o dualismo e a exclusão?”, ao que responde: “em vez de soluções coletivas e institucionais, há que buscar os meios que permitam iniciativas individualizadas e psicológicas. [...] há que fortalecer neles [jovens] a capacidade de ser atores de sua pró-pria vida, capazes de ter projetos, de escolher, de julgar de modo positivo ou negativo, e capazes também, mais simplesmente, de ter relações sociais, quer se trate de relações de cooperação, de consenso ou conflitivas (TOURAINE, 1998b). Não é evidente que há que ajudar os jovens que tropeçam com a indiferença ou com a hostilidade da sociedade que os rodeia – ou melhor dito, cujas margens eles mesmos constituem –, a adquirir uma forte capaci-dade de resistência frente à desorganização psicológica e social, a fortalecer sua personalidade para resistir a pressões e sobretudo à falta de estímulos e recompensas? Aos jovens mais desampa-rados lhes é muito difícil comportar-se como atores sociais, ou

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seja, modificar seu entorno social para realizar objetivos pessoais (TOURAINE, 1998b)”.

Cabem algumas considerações a respeito das formulações do so-ciólogo francês. Touraine (1998b) propõe, literalmente, o “forta-lecimento do indivíduo”, referindo-se à força física e psicológica, enquanto resistência orgânica e mental, o que não deve ser con-fundido, de modo algum, com poder.

A distinção entre força e poder aparece, por exemplo, na obra de Hannah Arendt, para quem “a força e o poder não constituem a mesma coisa; o poder surge apenas onde as pessoas agem em conjunto, mas não onde as pessoas se fortalecem como indivídu-os” (ARENDT, 1987, p. 29). Em outra passagem, Arendt (2002), reafirma que “enquanto a força é a qualidade natural de um in-divíduo isolado, o poder passa a existir entre os homens quando eles agem juntos, e desaparece no instante em que eles se dis-persam” (p. 212). A referência constante, nos textos dos projetos governamentais e não-governamentais, à suposta necessidade de desenvolver a “auto-estima” do jovem ou adolescente pode ser creditada, pois, à mesma intenção de “fortalecimento” do indiví-duo isolado, inseguro e sem garantias (cf. BAUMAN, 2000), pre-sente no pensamento de Alain Touraine.

Touraine (1998b) propõe o fortalecimento do indivíduo, não da individualidade. Os limites deste trabalho não permitem aprofun-dar o argumento, mas pode-se afirmar que a idEia de individua-lidade como originalidade, diferença e alteridade radicais esteja ausente do pensamento do sociólogo francês. A “diversidade” so-bre a qual escreve Touraine (1998a) assemelha-se, por sua vez, à variedade de formas pelas quais os indivíduos isolados – os atores sociais – dedicam-se a uma mesma dupla tarefa: a sobrevivência individual combinada à integração social.

A própria noção homogeneizadora de juventude, que inclui seg-mentos populacionais diferentes, reconhece, não a diferença e a contradição, mas a “diversidade” dos grupos juvenis. A diferença é reduzida a uma questão de estilo – grupos juvenis construiriam “identidades” diversas baseadas no modo de inserção no mer-cado de consumo e lazer. O discurso do poder atual não supõe nem a uniformidade nem as diferenças entre os indivíduos, mas

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a “diversidade”, variedade de modos e práticas de integração. O discurso pretende incluir todos e fabricar o consenso a partir do reconhecimento da diversidade de modos de inserção e contri-buição possíveis.

O ator social persegue “objetivos pessoais” ou interesses parti-culares. Cabe lembrar que interesses são, por definição, parciais e particulares, mesmo quando são os interesses da maioria1. Na medida em que não reconhece um propósito ou ideal comum à coletividade, a atuação social é uma (“nova”) forma de participa-ção individual. A relação entre os indivíduos-membros da socie-dade define-se pela negociação, atividade que requer “capacidade de comunicação” (TOURAINE, 1998b) e pode tomar a forma de alianças ou conflitos.

Na defesa dos seus “próprios interesses” e na qualidade de atores sociais, os jovens estão sendo chamados a participar da “formula-ção de políticas” e da “adoção de decisões” que lhes afetam (ONU, 1985, entre outros). Conforme análise anterior (SOUZA, 2008), pode-se supor que nos atuais processos e instâncias de consulta a organizações juvenis (conferências, conselhos, fóruns, reuniões diversas etc.) têm sido reduzidas as possibilidades de participação que provoque a ruptura do pré-estabelecido e a radical alteração do curso dos eventos. A definição da questão social é feita a partir de diagnósticos de problemas que já anunciam a solução possível, e o suposto debate ocorre no interior de um quadro analítico e se-mântico que impede a criação e a palavra transgressora. O quadro explicativo, regime de argumentação, objetos, categorias e formu-lações compõem um discurso que não admite contraposição, uma vez que se apresenta não como um discurso, mas como a própria realidade. Assim, o estímulo dos organismos internacionais e ór-gãos de governo à participação juvenil funciona mais como estra-tégia de construção de consenso em torno de políticas predefini-das e menos como oportunidade de reivindicação e intervenção.

Além de defender seus interesses, o ator social deve “agir sobre

1 “Politicamente, os interesses só são relevantes como interesses de gru-pos, e para a depuração desses interesses grupais parece ser suficiente que eles se façam representar de tal forma que seu caráter parcial seja preservado em quaisquer condições, mesmo na circunstância em que o interesse de um grupo possa eventu-almente ser o interesse da maioria” (Arendt, 1988, p. 181).

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seu ambiente” (TOURAINE, 1998a, p. 68), “modificar seu entorno social para realizar objetivos pessoais” (TOURAINE, 1998b), par-ticipar como “recursos humanos” ao desenvolvimento (KIRSCH, 1986, entre outros), ou seja, deve trabalhar por si próprio ao mes-mo tempo em que trabalha pela coletividade. Além da defesa de interesses, a atuação social, portanto, compõe-se da atividade de fazer coisas ou prestar serviços a si próprio e aos outros, trabalhar, enfim. Quando não-remunerado, o trabalho é, por vezes, denomi-nado “voluntário”, e sempre assume o sentido de contribuição ou contrapartida que deve o indivíduo-ator oferecer à “comunidade”, ao “meio ambiente” ou a seu “entorno social”. É fazendo coisas que os jovens atores sociais têm participado da “implementação” de programas, projetos e políticas públicos. Cabe observar que a participação concebida como fazer assume um caráter eminen-temente instrumental, próprio da lógica privada, uma vez que o fazer coisas é uma atividade regida pelos critérios de meios e fins (cf. ARENDT, 2002, p. 149-87).

A atuação social, composta essencialmente pela defesa de interes-ses e pelo fazer coisas, é prescrita pelo discurso do poder como a “nova forma” de participação que deve ocupar o lugar da política. Porém, a atuação social não implica deliberação ou participação no poder, mas a participação na execução de tarefas e na forma-lização de medidas de antemão decididas. Pode-se afirmar, por-tanto, que tal modelo de participação não consiste em “reinven-ção da política”, como se costuma dizer, mas na sua contrafação. A atuação social consiste em contrafação (conceito anteriormente usado por MARTINS, 2004, ao interpretar o comportamento da chamada “Geração AI-5”) na medida em que não é mera imitação ou falsificação, mas simulacro que assume sentido oposto ao das “novas formas” de política vislumbradas nos “novos movimentos sociais” e manifestações estudantis das décadas de 70 e 80.

As duas características básicas dos “novos movimentos sociais” da década de 70 – as já citadas autonomia e defesa de direitos – foram apropriadas e adequadamente incorporadas à noção de atuação social. A autonomia em relação ao direcionamento do partido ou do sindicato e à tutela estatal foi transformada na ca-pacidade do indivíduo de entrar em atividade, ou fazer coisas, so-zinho. E a noção de defesa de direitos passou a ser concebida não

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como reivindicação e luta política, mas como atividade individual de negociação ou de realização de coisas para assegurar o acesso (não a garantia de usufruto, mas o acesso) a serviços. Numa pala-vra, a atuação social é mecanismo de ajustamento e integração do indivíduo, transformado no único responsável pela manutenção da vida e pela sua inserção numa sociedade que não lhe oferece segurança e garantias.

Em resumo, a atual e disseminada noção de ator social compre-ende o indivíduo isolado e sem garantias que defende interesses particulares ou objetivos pessoais perante outros indivíduos, com os quais estabelece relações de negociação, e realiza atividades em seu próprio benefício e dos outros. A sociedade, e mais especi-ficamente a chamada “sociedade civil”, é concebida como um aglo-merado de atores sociais em atividade e em negociação. O espaço público é reduzido a “cenário” em que atores sociais atomizados (indivíduos, mas também ONGs, empresas e o próprio Estado, igualmente concebido como um ator social) defendem interesses particulares. As desigualdades e contradições estruturais da so-ciedade são omitidas.

Essa maneira de conceber a sociedade como um aglomerado de atores sociais em atuação num cenário consiste na matriz discur-siva subjacente à grande parte dos textos produzidos pelos orga-nismos internacionais, órgãos de governo, ONGs e acadêmicos hoje em dia. É essa matriz que possibilitou a produção de certos objetos de discurso, a ressignificação de várias noções e a emer-gência de alguns enunciados, entre eles, o protagonismo juvenil (SOUZA, 2008).

Enquanto o discurso internacional acerca da participação da ju-ventude, fundado sobre a matriz da atuação social, disseminou-se e tornou-se hegemônico no campo das chamadas “políticas pú-blicas” no Brasil, o mesmo não se pode dizer do enunciado prota-gonismo juvenil, acusado de imprecisão, ambiguidade, tautologia, pobreza de conteúdo, manipulação ideológica etc. De maneira bastante geral, podem ser detectados pelo menos dois grupos de objetos a que se refere o enunciado protagonismo juvenil nos documentos e textos produzidos pelos órgãos de governo e por inúmeras organizações não-governamentais (ONGs). Assim, a ex-

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pressão protagonismo juvenil tem sido usada para designar um método, eixo ou princípio de uma pedagogia, cuja ênfase na ativi-dade do jovem o deslocaria de uma situação de suposta passivi-dade para a posição de “participação ativa” no próprio desenvol-vimento e/ou no próprio conhecimento. Mas a expressão também evoca características que seriam inerentes ao indivíduo jovem, espelhado no “mito” da “geração anos 60”, especialmente a capa-cidade de colocar-se em posição de destaque ou de constituir-se no principal responsável por um conjunto de eventos.

O jovem protagonista é frequentemente definido como o ator principal do desenvolvimento individual e comunitário. Pode-se acrescentar que o jovem protagonista é o ator principal, não em relação aos atores da sociedade civil em atuação num cenário dito público, mas da sua própria vida, autorrresponsável que é por si próprio e pelos outros numa sociedade que não oferece garan-tias. O jovem protagonista não faz parte da “minoria ativa” ou da “vanguarda”; não é o líder, representante, organizador, o que vai à frente. Ao contrário, todo jovem é chamado a ser protagonista. Protagonista de que? De sua própria vida, já que nenhuma outra instância – Estado, instituições sociais, partido, sindicato, merca-do – garante a existência desse indivíduo.

O jovem protagonista é também aquele que oferece uma contra-partida (cf. SPOSITO e CORROCHANO, 2005). Ator social que é, ou mais exatamente o ator principal, o jovem protagonista ocu-pa uma dupla posição no campo das políticas públicas: objeto e agente das intervenções. Conforme Campos e Sousa (2000), o jo-vem protagonista “não seria apenas o beneficiado, mas também o promotor da transformação social” (p. 13), ou nos termos de Gilberto Dimenstein, “o protagonismo é quando a pessoa se sente coautora, quando você é agente e beneficiário do processo de mu-dança” (SABER 2004, anotações nossas). Enfim, o jovem protago-nista é aquele que recebe o benefício (o “serviço” de educação, de assistência), mas deve, em contrapartida, responsabilizar-se pelo próprio desenvolvimento e oferecer sua “contribuição” à comuni-dade, prestando serviços ditos voluntários (cf. SOUZA e ARCARO, 2008).

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A guisa de conclusão, pelo menos três ausências, já anunciadas nas páginas precedentes, podem ser destacadas no discurso do protagonismo juvenil. A primeira delas, presente na origem eti-mológica da palavra, sempre lembrada pelos autores que se propõem a definir o protagonismo, é a noção de luta. Na Grécia antiga, o protagonista era o principal competidor nos jogos pú-blicos, na assembleia ou reunião, e o vocábulo agõnía referia-se justamente à “luta nos jogos públicos; luta em geral” (HOUAISS e VILLAR, 2001, p. 2316). Ou seja, a noção de luta – corporal ou verbal – travada no espaço público encontra-se na origem do vo-cábulo. Nos dias de hoje, no entanto, realiza-se uma peculiar ope-ração discursiva: uma assepsia da palavra, que mantém a noção de espaço público, despida, no entanto, da noção de luta. O espaço público transforma-se em cenário para a atuação social.

A segunda ausência é a noção de poder. Como já se argumentou aqui, a atuação social e o protagonismo não implicam participa-ção no poder de decisão, mas participação na execução de tarefas e na formulação de medidas predeterminadas. Também não im-plicam a contestação do poder instituído em qualquer instância que se considere. A “contestação do poder nas suas diversas ma-nifestações” – poder de Estado, poder militar, poder do homem sobre a mulher, do pai sobre os filhos, do médico sobre o doente etc. – foi traço característico da mitológica “geração dos anos 60” (CARDOSO, 2005, p. 101), que não pretendia, necessariamente, encontrar soluções para os problemas. Enquanto os movimentos de juventude dos mitológicos anos 60 faziam um questionamento da ordem social e política, a atuação social de nossos dias promo-ve a integração e o ajustamento.

Interessante observar que, enquanto a noção de poder – como objeto de luta ou como alvo de contestação – estava presente nos movimentos de juventude das décadas passadas, a noção de pro-tagonismo estava ausente. Pode ser lembrado, a título de exem-plo, o livro de Artur José Poerner, publicado originalmente em 1968 com o propósito de contar a “história da participação políti-ca dos estudantes brasileiros” (POERNER, 1995). O título da obra é O poder jovem, e mesmo a edição posterior, atualizada e amplia-da em 1995, época de emergência do enunciado, não menciona o protagonismo juvenil. Nos dias de hoje, por outro lado, tanto o

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enunciado protagonismo juvenil quanto a noção contemporânea de juventude têm sido usadas para nomear, retrospectivamente, as manifestações do passado. A interpretação produzida no mo-mento presente projeta-se sobre o passado, que é reconstruído nos termos do presente.

A integração e o ajustamento promovidos pela atuação social evi-denciam a terceira ausência: a transgressão. Mais uma vez pode-se lembrar dos movimentos de juventude dos anos 60, que, além da contestação do poder, tiveram como marca distintiva a trans-gressão aos valores e padrões estabelecidos. A transgressão – no comportamento e na palavra – não significou pura negação, mas ampliação dos limites, conforme Cardoso (2005), “um movimento que é de negação de valores estabelecidos, mas que na sua face positiva se lança no risco da afirmação de novos valores” (p. 94). A palavra transgressora, essencial na política concebida como a possibilidade do novo e da mudança, está ausente no discurso que prescreve a atuação social.

Ausentes a transgressão, a luta e a contestação ao poder, a política pôde se reconciliar com a juventude, na forma da atuação social e do seu corolário, o protagonismo juvenil. Hoje toda a juventude (não mais a mesma juventude) é conclamada a “praticar” política (não mais a mesma política). Por outro lado, o passado transfor-mado em mito talvez possa iluminar os caminhos do presente, sugerindo não a repetição, mas a possibilidade de criação de no-vas formas de participação que não abdiquem da transgressão, da contestação e da luta.

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Protagonismo Juvenil: um conceito em revisão1

Maria Izabel Calil Stamato*

O presente artigo apresenta uma reflexão sobre o protagonismo juvenil, a partir de diferentes concepções teóricas, visando à cons-trução de uma referência conceitual que resgate o protagonismo juvenil enquanto práxis social de empoderamento do jovem e de consolidação de sua ativa participação na sociedade.

Emergindo no cenário político e econômico do final da década de 1980, a expressão protagonismo juvenil tem sido identificada, por um lado, como concepção de fortalecimento da participação de-mocrática dos jovens, e, por outro como um conceito impreciso e multifacetado, ancorado em diferentes referenciais teóricos, me-todológicos e ideológicos, muitas vezes contrários à sua própria raiz etimológica.

Esta contradição tem gerado, no interior de diferentes segmentos sociais, questionamentos a seu uso, apontando a necessidade de reflexões mais aprofundadas sobre o tema.

Um breve olhar sobre a origem do termo

A contextualização histórica do uso do termo protagonismo ju-venil mostra que este se apresenta tanto como conceito, quanto 1 O presente artigo integra um dos Capítulos da Tese de Doutoramento da autora: Protagonismo Juvenil: uma práxis sócio-histórica de ressignificação da juventude.

*Maria Izabel Calil Stamato, psicóloga, doutora e mestre em Psicologia Social pela PUC-SP; especialista em Estatuto da Criança e do Adolescente e Políticas Públicas para Crianças e Adolescentes em Situação de Risco; Co-autora do livro Adolescências Construídas – A visão da Psicologia Sócio-Histórica

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como estratégia, ou metodologia, sempre relacionado à participa-ção do jovem, embora não fique claro o significado desta partici-pação nem os caminhos para chegar a ela.

A própria origem etimológica da palavra, derivada do grego pro-tagnistés, que se refere ao ator principal no teatro grego ou o que ocupa papel central em um acontecimento (FERRETTI et alli, 2004), afirma o protagonismo como tema fundante de uma pers-pectiva que remete ao fortalecimento da participação do jovem no processo de transformação política e social, abrindo espaço para o resgate de sua condição de sujeito de direitos e cidadão. Entretanto, é preciso ter claro que esta participação não ocorre por si, de forma espontânea, natural, em função do ingresso na juventude, mas resulta de um processo que torne o jovem capaz de superar a condição de mero ator social, passando a questionar e intervir consciente e criticamente em sua vida e na sociedade.

A participação proposta pelo protagonismo juvenil remonta ao processo político de fortalecimento do protagonismo social da população, decorrente da abertura democrática do país, que le-vou ao fim do período de ditadura militar e a novas legislações norteadas pelo paradigma da democracia participativa.

Referenciado pela aprovação da Constituição Federal, em 1988, esse paradigma trouxe uma expressiva mudança de princípios e diretrizes, com relação à participação da população nos rumos da política nacional.

Enquanto forma de organização político-institucional, a democra-cia participativa fortalece o protagonismo da população e difere conceitualmente da democracia representativa. Na democracia representativa, “a representação política é uma forma de delega-ção de direitos e prerrogativas a um grupo de pessoas, para que elas exerçam o poder, em nome do povo, nas funções legislativas de governo” (MARTINEZ, 1997, p. 21).

Já a democracia participativa se caracteriza pela participação da sociedade na gestão e no controle das políticas sociais, por meio

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do poder de interferência dos cidadãos nas decisões, nas ações e no controle da sociedade, essencial à participação cidadã (TEI-XEIRA, 2000). De acordo com o autor, a participação cidadã é caracterizada por ações organizadas, planejadas e realizadas com vistas à co-gestão das políticas públicas. Envolve um processo de protagonismo so-cial, que se dá a partir da ocupação de espaços públicos institucio-nais, onde o cidadão rompa com a postura de espectador da vida coletiva, exercendo seu papel de deliberação e controle social.

Barrientos e Lascano (2000) definem protagonismo social como a participação ou atuação dos indivíduos em um determinado es-paço – comunidade, região ou país –, com possibilidades de in-fluir nas decisões e ações que os envolvem. Essa participação se dá de forma coletiva, em grupos organizados, e supõe o exercício de responsabilidades e direitos dentro de espaços democráticos, construindo-se a partir das ações e dos papéis assumidos pelos indivíduos.

O exercício do protagonismo social impõe o preparo para o exer-cício individual de responsabilidades e direitos, para a tomada de decisão e para a execução de ações coletivas, ou seja, para o pleno exercício da cidadania. Exercício este que se dá nas e pelas relações sociais, provocando, por meio da interação entre atuação individual e participação coletiva, a constituição de novos sujeitos sociais.

Buscando a conceituação de protagonismo juvenil

Barrientos e Lascano (2000) definem protagonismo juvenil como a capacidade dos jovens de participar ativamente das decisões que os envolvem, enfatizando a necessidade de algumas condi-ções específicas, que incluem de aspectos individuais à atuação coletiva. Classificam o protagonismo em dois níveis: um que ocor-re em espaço próprio, espontâneo, onde os jovens atuam livre-mente em seus grupos de pares, sem interferência de adultos; e outro criado pelos adultos junto aos jovens, para garantir sua voz e interferência nas relações com a sociedade e nas decisões que lhes dizem respeito.

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Costa (2001) postula o protagonismo juvenil como uma ação edu-cativa, que favorece a autoconstrução do ser em termos pessoais e sociais, com a finalidade de criar espaços e condições para pos-sibilitar aos jovens o envolvimento na solução de problemas reais, com iniciativa, liberdade e compromisso.

Estabelecendo uma estreita relação entre protagonismo e parti-cipação ativa e construtiva do jovem, o autor enfatiza o trabalho educativo cooperativo, fundamentado na pedagogia ativa e em ambiente democrático, em que o jovem é visto, ouvido e conside-rado como um ativo construtor de suas ideias e ideais.

Considera ainda como negação do protagonismo, prejudicial ao desenvolvimento pessoal e social do jovem, as participações em que o jovem é ilusoriamente colocado no papel de protagonista para servir a outros interesses. Já a possibilidade de participação autêntica favorece o desenvolvimento da autonomia, da auto-confiança e da autodeterminação do jovem, fundamentais para o momento de busca, experimentação e construção da identidade pessoal e social e do projeto de vida. Para Costa (2001), o protagonismo juvenil se caracteriza como um processo resultante de uma ação pedagógica ativa e contex-tualizada e de uma relação de interdependência entre indivíduo e sociedade, em que a construção do jovem, enquanto sujeito ativo, autônomo e participante do ambiente em que vive, se reflete na transformação da sociedade. E a transformação da sociedade se reflete na formação de uma juventude mais valorizada e conscien-te de si mesmo e do papel que desempenha na transformação e melhoria do mundo onde vive.

Escámez e Gil (2003) focalizam o desenvolvimento da autonomia e da autorresponsabilidade do jovem como os principais objeti-vos da educação. Enfatizando a relação entre responsabilidade e cidadania, definem responsabilidade como assumir a própria au-tonomia e ainda decidir o caminho a tomar, assumindo o papel de roteirista e ator da própria vida, de forma a conferir sentido e significado concreto ao futuro.

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A visão dos autores enfatiza a dimensão ética da responsabilida-de, pautada em valores presentes na Constituição e na Declaração dos Direitos Humanos, e expressa em ações comprometidas com a transformação dos cenários sociais em que são produzidas as relações interpessoais e as condições políticas e econômicas que provocam a injustiça social e a exclusão de pessoas e comunida-des inteiras.

Reforçam o papel da educação na construção da cidadania res-ponsável, na capacidade do jovem de pensar e decidir por si mes-mo, e se tornar um ser consciente de suas escolhas e eticamente responsável por seus atos, ressaltando o papel das contingências sociais e históricas no desenvolvimento da responsabilidade e na construção de significados coletivos, ao determinar escolhas e de-cisões pessoais.

Escámez e Gil (2003) conceituam cidadania como a integração en-tre direitos individuais e deveres frente à comunidade (definidos por leis, normas e papéis sociais), enfatizando que esta integração se dá pelo fortalecimento do vínculo da comunidade em relação aos seus membros, protegendo realmente os seus direitos, e dos membros em relação à comunidade.

Iulianelli (2003) define protagonismo como a atuação qualificada na sociedade, por meio de ações que têm por atores os próprios jovens, e que levam ao empoderamento destes, abrindo-lhes a possibilidade de se tornarem agentes ativos de desenvolvimento e transformações. Esta atuação se dá a partir de diferentes modelos de intervenção social que, pautados em demandas práticas, contêm um projeto político de luta por melhores condições de vida para todos, espe-cialmente para as maiorias empobrecidas, operacionalizado pela organização juvenil em redes, organizações sindicais, ações cultu-rais e movimentos.

Iulianelli (2003) ressalta que o verdadeiro protagonismo juvenil inclui ações coletivas, voltadas à construção da autonomia dos participantes e com o envolvimento da coletividade, que geram

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participação e cooperação social. Neste sentido, entende o pro-tagonismo como um modelo político-pedagógico centralizado na construção da cidadania e da participação do jovem.

Faz uma importante diferenciação entre protagonismo cênico, que envolve os jovens a partir de uma demanda externa, imposta ou colocada pelos adultos, e que repete a hierarquia de poder e submissão presente na sociedade. E o verdadeiro protagonismo, em que o jovem se torna ativo participante de todo processo de planejamento, definição, avaliação e controle das políticas públi-cas, por meio de intervenções nas realidades locais, que, expandi-das e fortalecidas, podem se tornar elementos de transformação da sociedade como um todo.

Krischke (2005) contribui para a reflexão sobre o protagonismo juvenil pontuando como o processo de democratização do país, desencadeado a partir de meados de 1980, ampliou as possibili-dades de integração social da juventude, por meio principalmen-te da participação em projetos culturais e processos decisórios, como o voto aos 16 anos, trazendo mudanças significativas na cultura política dos jovens.

Suas análises apontam elevados índices de participação política dos jovens, seja em formas de ação convencional, como partidos políticos, seja não convencional, como o ativismo político e o asso-ciativismo. Essa participação é acompanhada por um grande oti-mismo com relação à possibilidade de “mudar o mundo”, a partir do esforço pessoal e da capacidade de inovação e de conquista de um futuro melhor, para si mesmo, para seu bairro e seu país.

Para Krischke (2005), os jovens buscam construir este futuro me-lhor por meio de intervenções alternativas desenvolvidas junto com outros jovens em seu ambiente de vida e no espaço público, as quais também vão definindo suas opções políticas e seus perfis ideológicos.

Estas formas alternativas de atuação, que ele associa à participa-ção política não convencional, onde os jovens se agrupam em tor-

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no de objetivos comuns de construção de um mundo melhor para a coletividade, são bastante próximas das ações de protagonismo juvenil, revelando um compromisso com a transformação da so-ciedade, e possibilitando o amadurecimento político e ideológico dos jovens.

Relacionando participação política com protagonismo juvenil, po-demos dizer que este é uma prática que possibilita a transforma-ção do jovem e a transformação do mundo, numa relação dialética que favorece a formação de jovens mais conscientes de seu papel de agentes de mudança social.

Neste mesmo caminho, Schmidt (2001), partindo do pressuposto de que o ser humano é fruto das circunstâncias sociais e de suas opções pessoais, estuda a socialização política, definida como o processo de formação de atitudes e orientações políticas, que ocorre de forma permanente, em constante transformação, du-rante toda vida. Por resultar do processo de interiorização da cul-tura política existente no meio social, a socialização política pos-sibilita a compreensão dos processos subjetivos, que favorecem ou impedem a participação ou a omissão política dos cidadãos, e dos mecanismos mais adequados para impulsionar a inserção política ativa.

Para o autor, as agências de socialização exercem uma influência significativa na formação de crenças, valores, atitudes e orienta-ções políticas, mesmo que de forma diferente de indivíduo para indivíduo, sendo que a inexistência de mecanismos de participa-ção na família, na escola, no local de trabalho, prejudica de forma significativa a predisposição para a participação política.

Sem seguir um modelo universal, a socialização política resulta de uma multiplicidade de fatores e processos sociais que marcam cada sociedade, sendo que sua compreensão passa necessaria-mente pela análise dos diversos componentes do contexto social e histórico em que se insere.

Iniciando-se nos primeiros estágios do desenvolvimento, é in-

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fluenciada, em primeiro plano, pela relação de participação que se estabelece na família e, posteriormente, na escola, sendo que quanto maior o espaço de participação, maior a confiança do indi-víduo de que pode influenciar as decisões políticas que lhe dizem respeito.

Almond e Coleman (1969) diferenciam dois níveis de socializa-ção: a latente, que ocorre na infância, a partir da transmissão de orientações pela família e demais instituições, grupos e fatores sociais; e a manifesta, que envolve diferentes agências de socia-lização da sociedade, e que se torna cada vez mais predominante no amadurecimento do indivíduo.

A socialização manifesta se constitui processo fundante da socia-lização política, na medida em que a transmissão de valores de-mocráticos não se dá de forma espontânea, mas como resultado de um processo educativo dirigido a indivíduos com histórias de vida próprias, inseridos em um meio social com determinantes específicos. E, na medida em que fortalece atitudes e orientações democráticas e participativas, relaciona-se diretamente com a proposta de protagonismo juvenil.

Por se referir à transmissão sistemática, organizada e intencional de atitudes políticas, a socialização manifesta deveria ter na esco-la sua principal agência fomentadora, uma vez que a educação dá o contorno para as leituras de mundo, que determinam a forma do indivíduo se posicionar no sistema político.

Considerando que as condições históricas determinam as opor-tunidades para a experiência individual e o meio social fornece os estímulos necessários à formação de ideias políticas adequadas, a educação se torna responsável pelo nível de raciocínio e entendi-mento do processo de participação ativa democrática.

Assim, a qualificação e o fortalecimento da participação passam por práticas pedagógicas politizadoras, que possibilitem o diálogo e a discussão sobre política, uma vez que, conforme postula Vigos-tki (1998), a linguagem oral, ao ser internalizada, transforma-se

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em pensamento, tornando possível a antecipação e o planejamen-to da ação, a organização da percepção e a relação dinâmica entre situação imediata, ações passadas e possibilidades presentes e fu-turas. Integrando o desenvolvimento cognitivo, a linguagem oral favorece a socialização política, daí a importância de discussões sobre política com os jovens, seja no contexto escolar, seja em ati-vidades informais.

As análises sobre socialização política resgatam a dimensão sub-jetiva da construção da participação política, sem cair no indivi-dualismo e na responsabilização individual das atitudes. E refor-çam a dialética da dinâmica social, ressaltando que a adaptação do indivíduo à sociedade se dá de forma ativa, resultando em in-tervenções e alterações no meio social.

A concepção de socialização política reforça o processo de parti-cipação como resultado de um contexto, que privilegia o jovem como agente ativo de sua educação e de seu desenvolvimento, capaz de compreender os complexos conceitos e a complexa di-nâmica política, e de se envolver ativamente na transformação da sociedade, exercendo efetivamente seu papel de protagonista.

Conclusão

A análise sobre as diferentes leituras do termo protagonismo ju-venil revela a necessidade de subsídios teóricos e metodológicos consistentes de diferentes ciências, entre elas a psicologia, para que se consolide como conceito norteador de uma determinada forma de participação ativa, crítica e consciente da juventude nas questões individuais e coletivas, que resgate a historicidade pre-sente nos fenômenos sociais e subjetivos.

Para isso, é fundamental sua contextualização, considerando-se as condições sociais, históricas, econômicas e políticas, pano de fundo para o significado atribuído à juventude na sociedade con-temporânea, assim como seu aprofundamento teórico e meto-dológico, enquanto experiência pedagógica de resgate do jovem como sujeito de uma efetiva ação política.

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Isto implica em retomar o papel das interações sociais na cons-trução de significados sociais e sentidos subjetivos, ressaltando a importância de relações educativas dialógicas e participativas, baseadas no respeito, na parceria, no compromisso ético com a democracia e na solidariedade, mediadoras do processo de cons-tituição de sujeitos sociais participativos.

Neste sentido, a psicologia social oferece uma significativa con-tribuição para romper o caráter de encenação presente no pro-tagonismo juvenil e consolidá-lo como uma práxis que, focada no desenvolvimento da consciência crítica e no resgate da historici-dade da juventude, rompa com a cultura adultocêntrica e fortale-ça o jovem enquanto sujeito social, agente ativo de sua construção pessoal e da transformação da sociedade.

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O funcionalismo e a tese da moratória social na análise das rebeldias juvenisLuís Antonio Groppo*

Introdução

Falar de juventude foi, e é, falar sobre as revoltas das juventudes, tanto no discurso social endereçado à opinião pública quanto na própria Sociologia – que ao mesmo tempo reflete e informa aque-le discurso social. Os diversos modelos explicativos da Sociologia da Juventude, ao longo do século XX e no início do atual, quase sempre partiram, passaram ou desembocaram na tentativa de entender as resistências dos jovens de seu tempo. Aquilo que foi tido inicialmente como anormalidade ou disfunção, entretanto, em breve teria seus dias de glória – ainda que a rebeldia mais vi-sível deixasse de ser a delinqüência dos jovens das camadas po-pulares e se tornasse o radicalismo dos filhos das classes médias. A partir dos anos 1970, refletindo novamente as mudanças pelas quais passavam as juventudes e suas manifestações, as rebeldias e os grupos juvenis disfuncionais ou inconformados passaram a ser vistos, antes, como sub-culturas, identidades diferenciais, es-tilos de vida diversificados e liberdade na composição do curso da vida.

*Doutor em Ciências Sociais e Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. Pesquisador do CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimen-to Tecnológico). Professor do Unisal (Centro Universitário Salesiano de São Paulo) e da Unasp (Centro Universitário Adventista de São Paulo). Autor de diversos livros sobre Sociologia da Juventude e História dos movimentos estudantis, entre outros temas, como Juventude: Ensaios sobre Sociologia e História das Juventudes Mo-dernas (Rio de Janeiro: Difel, 2000), Uma onda mundial de revoltas: movimentos juvenis de 1968 (Piracicaba: Editora da Unimep, 2005), Autogestão, universidade e movimento estudantil (Campinas: Autores Associados, 2006) e 1968: retratos da revolta estudantil no Brasil e no mundo (Piracicaba: Biscalchin Editor, 2008).

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O objetivo deste artigo é discutir sobre dois modelos sociológicos clássicos de interpretação das rebeldias juvenis: o funcionalismo e a tese da moratória social. De formas diversas, com menor ou maior consciência, de modo franco ou disfarçado, e em diversas combinações, o imaginário social sobre os jovens ainda faz uso dos modelos aqui discutidos, que, em seu sentido mais estrito, refletem a Sociologia Funcionalista praticada nos Estados Unidos nos anos 1930/50 (e sua linguagem sobre a integração social) e o posicionamento de parte dos pensadores sociais progressistas europeus, norte-americanos e latino-americanos nos anos 1960 (e sua linguagem sobre a transformação social e os direitos de ci-dadania). A discussão sobre a Sociologia da Juventude a partir dos anos 1970, com seu foco na questão da identidade e da diferença, será feita em outra oportunidade.

A discussão aqui feita se faz a partir de uma interpretação da bi-bliografia clássica sobre as rebeldias juvenis, em destaque a So-ciologia Funcionalista da primeira metade do século XX (e, em parte, os estudos precursores da Escola de Chicago – informados principalmente pelo interacionismo simbólico) e a literatura so-ciológica sobre os movimentos juvenis dos anos 1960. Parte desta interpretação se faz a partir das críticas a esta bibliografia ema-nadas dos estudos sociais e culturais sobre as juventudes feitas a partir dos anos 1970.

1. Sociologia Funcionalista da Juventude

Uma releitura crítica de textos representativos da sociologia funcio-nalista, escritos em meados do século XX, principalmente entre os anos 1930 e 50 nos Estados Unidos, revela concepções nas quais a normalidade da condição juvenil é uma socialização integradora à estrutura social com baixo nível de conflitos.1 Tais concepções ten-dem a considerar as abundantes contradições da condição juvenil reveladas pelos movimentos juvenis de contestação comportamen-tal e política como anormalidades, desajustes ou disfunções.

Um dos mais marcantes estudos deste período é A Gangue, de Fre-

1 Cf. textos selecionados por Brito, 1968 e Burgess; Bogue, 1964.

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deric M. Trasher.2 Trata-se de uma vigorosa descrição do funcio-namento das gangues em Chicago, publicada em 1936. Segundo Trasher, as gangues eram fenômenos espontâneos nascidos nas regiões intersticiais da cidade. Deste modo, a marginalidade das gangues tinha a ver com a própria marginalidade dos bairros e lo-calidades onde surgiam ou que freqüentavam. Seus membros, em boa parte, eram filhos dos imigrantes europeus. As gangues, na verdade, se formavam praticamente apenas nos bairros “em de-cadência” que foram povoados pelas ondas de imigração européia do início do século XX, ou seja, populações também em posição ainda de grande ou relativa marginalidade. A reorganização urba-na e comunitária, por meio de programas públicos, poderia preve-nir a formação de gangues, segundo Trasher e outros estudiosos da Escola de Chicago, embasados por uma interessante Sociologia Urbana, que, do interacionismo simbólico original, iria cada vez mais abraçar o funcionalismo como aporte teórico.3

O pano de fundo desta produção é, em boa parte, a questão de como integrar em um mesmo projeto nacional uma recente po-pulação imigrante quantitativamente considerável e qualitativa-mente muito diversa, que ocupara repentinamente porções das grandes cidades norte-americanas, justo os locais que iriam en-frentar o lado mais duro da Depressão oriunda da crise de 1929.

É interessante notar, como podemos também inferir das discussões sobre a delinqüência em Abramo (1992), que nestes estudos sobre as gangues juvenis já se anuncia a tão importante idéia, para os re-centes estudos culturais e sociais sobre as identidades juvenis, que estes grupos juvenis tidos como desviantes desenvolviam em seu interior seus próprios mecanismos de socialização, controle e va-loração, distintos e mesmo em oposição aos da sociedade “oficial”.4 Mas, como dito, tal autonomia não era considerada como criativa fonte de sub-culturas, mas sim de anormalidade, desvio social.2 Para o presente trabalho, consultei o resumo da obra: Trasher, 1964.3 Cf. também Mays, 1956, que levou a metodologia da sociologia urbana para estudar Liverpool.4 Neste sentido, outro importante trabalho foi o de Foot-Whyte (1971), em obra original de 1943, relato a partir de observação participante sobre o fun-cionamento destes mecanismos em um grupo juvenil formado por jovens filhos de imigrantes de grande cidade norte-americana.

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David Matza (1968), numa versão bastante conservadora e que é quase um coroamento da sociologia funcionalista tardia5 – jus-tamente por seu explicito conservadorismo social e político – vai considerar que tais desvios da normalidade se explicam pela in-fluência perniciosa de “tradições ocultas”. Apesar dos pesares, a visão funcionalista e conservadora de Matza tem suas contribui-ções. Primeiro, dela é possível identificar os três principais tipos-ideais de revolta das juventudes desde o seu despontar no mundo moderno: o radicalismo, a boêmia e a delinqüência. Segundo, Mat-za busca compreender as fontes sócio-históricas que informam os modos de vida diferenciais dos rebeldes, tratando-as quase como sub-culturas, não apenas mera expressão de irracionalismos sel-vagens.

Sobre as “tradições ocultas”, segundo Matza (1968), a primeira era o radicalismo, derivado de doutrinas políticas da extrema-es-querda, que estimulava as rebeldias mais propriamente políticas – principalmente estudantis – e que tinha nos campi universitá-rios sua melhor acolhida. A segunda era a boêmia, derivada de tendências de libertinagem e amoralismo que tiveram na Boêmia parisiense do século XIX um de seus maiores exemplos; incentiva-va na juventude, portanto, principalmente revoltas de caráter cul-tural e comportamental (o exemplo citado por Matza é o existen-cialismo francês, mas a mais bem acabada expressão boêmia da juventude do século XX ainda estava por vir, o movimento hippie). A terceira forma de rebeldia era a delinqüência, forma de ação assumida pelos desviantes juvenis sob a influência de tendências imemoriais advindas do mundo do crime.

Era a delinqüência a principal forma de rebeldia assumida pelos jovens das camadas populares urbanas, pelo menos desde o início da Revolução Industrial. Pode-se mesmo dizer que, até meados do século XX, foi a mais freqüente das formas de rebeldia juvenil – o que de modo algum significa a não importância, muito menos a ausência, do radicalismo e da boêmia juvenis desde o final do século XVIII, bem ao contrário. (cf., por exemplo, Gillis, 1981). Isto ajuda a entender a preocupação maior até então dos sociólogos da 5 Seu texto foi publicado em 1961. Mas, apesar da data, reflete ainda o modelo funcionalista e até o aprofunda.

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juventude – e da própria proto-sociologia da juventude (cf. Flinter, 1968) – pelo fenômeno da rebeldia de jovens filhos das classes trabalhadoras urbanas. Até mesmo a concepção do senso comum sobre a delinqüência não deixou de penetrar a interpretação e a teorização desta sociologia funcionalista: era a forma de rebeldia mais reprovável, incompreensível, assustadora, irracional, bárba-ra e inclusive selvagem, que fazia (e faz) dos jovens “em conflito com a lei” das camadas populares serem tão temidos pela “boa sociedade”, que, em momentos de insegurança social, não teima em aplaudir e até requerer a punição exemplar destes jovens.

2. A tese da moratória social

No final da 2a Guerra Mundial, o sociólogo alemão radicado na Grã-Bretanha, Karl Mannheim (1961, 1972) elaborou importan-tes idéias sobre o papel das juventudes na construção de uma democracia participante, as quais teriam influência também ao longo dos anos 1950, mesmo após a morte do sociólogo. Em Man-nheim, a juventude é considerada como força social a se mobilizar em prol da defesa da democracia (é claro, ele pensa, sobretudo, nos jovens das classes médias). Mannheim se tornava um ideólo-go da Terceira Via, não esta recentemente criada por Tony Blair, mas aquela que apregoava a necessidade de um Planejamento Democrático, um meio termo entre o totalitarismo e o combalido liberalismo. Afigurava-se uma espécie de keynesianismo social, na verdade, um outro construto a respaldar o que seria conhecido em breve como Estado de Bem-Estar. (Groppo, 2003). Podem-se ler estas obras de Mannheim como prenúncios do que seria co-nhecido, logo, como o direito à juventude e, bem mais tarde, como protagonismo juvenil.

Nesta versão, e noutras igualmente moderadas, reformistas e mesmo social-democratas, a força juvenil serviria para consolidar um Estado democrático e propagar uma cidadania ativa, ou, em versões desenvolvimentistas e populistas em nações do Terceiro Mundo, um Estado interventor que estimularia o desenvolvimen-to econômico e a melhoria das condições de vida das classes tra-balhadoras. Entretanto, cada vez mais se proporia que esta par-

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ticipação juvenil se daria em espaços mais ou menos separados das instituições sociais “oficiais”, referendando a idéia de que a juventude era um tempo especial do curso da vida para a expe-rimentação, dando origem à tese da juventude como moratória social (mais do que protagonista imediato da vida social).

Considero que Mannheim prenunciou, bastante precocemente, o modelo da juventude protagonista, ainda que em prol da renova-ção das sociedades liberais em um sentido mais ou menos pré-estabelecido por ele. Mas as juventudes teriam papel importante e imediato para a consecução desta reforma, como força social de apoio e implementação das transformações em favor de uma sociedade organizada em torno do Planejamento Democrático. Não estava este prenúncio do modelo do protagonismo juvenil totalmente “domesticado” e limitado pela tese da juventude como moratória social. Mas o modelo da moratória social acabaria por ganhar hegemonia, ao menos entre os pensadores sociais mais moderados, nos anos 1960, primeiro na tentativa de canalizar a intensa mobilização juvenil autônoma destes anos, segundo na tentativa de exorcizá-la.

O modelo de juventude ativa (protagonista) de Mannheim con-tinha também a noção de que a juventude era um direito social. Tanto quanto o protagonismo juvenil, o “direito à juventude” pa-recia destinado a um natural percurso que, rapidamente, o levaria à hegemonia. Entretanto, ao contrário do que poderia se esperar, o percurso na prática foi acidentado e alongado.

Tal dificuldade pareceu mais típica das nações do Terceiro Mun-do, que enfrentaram regimes políticos de exceção e sentiram mais a crise da economia mundial desde o final dos anos 1960. Entre elas, o Brasil, que apenas nos anos 1980 ensaiou mais seriamen-te seu protótipo de Estado de Bem-Estar, em torno das lutas pela redemocratização e na construção da Constituição de 1988, a “Constituição Cidadã”. Aqui, por meio do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), de 1990, as crianças e os adolescentes passa-ram, ao menos formalmente, a ser considerados como “sujeitos de direitos” – e não apenas futuros cidadãos adultos – e a própria

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proteção e cuidados específicos a estas faixas etárias, em vez de mera separação e disciplinarização, passaram a ser vistos como direitos especiais. Mas o processo, desde então, pareceu travar, diante da hegemonia das políticas ditas neoliberais que passaram a ser a prática mais concreta do Estado brasileiro. Ainda assim, nesta e na atual década, não deixaria de ecoar com força no Bra-sil o slogan do protagonismo juvenil, bem como cobranças e pro-messas de Políticas Públicas para a Juventude, instituições, leis, estatutos etc.6

Mas a dificuldade não foi exclusiva destes países. De modo geral, inclusive no chamado Primeiro Mundo, que esboçara os modelos da juventude como direito e do protagonismo juvenil pelo menos desde Mannheim, o final dos anos 1950 e o ingresso nos anos 1960 fizeram de sua hegemonia algo errático e contraditório. O contexto da Guerra Fria, das ingerências das grandes potências, da corrida nuclear, da descolonização, das lutas antiimperialistas e da ascensão de novas formas de socialismo, apesar de um cres-cimento econômico de caráter mundial, fez do mundo algo inse-guro e irracional por demais aos jovens, algo sentido e expresso principalmente por aqueles vindos das classes médias. Isto não foi exclusivo do Primeiro Mundo, na verdade, sendo observado de diversos modos e graus também nos países ditos subdesenvolvi-dos e socialistas. De modo sintético, temos aí a causa mais profun-da das rebeldias radicais e boêmias dos jovens dos anos 1960, os movimentos estudantis e as contraculturas.

O primeiro impacto destes movimentos foi favorável ao modelo esboçado por Mannheim. Eles foram, em porção considerável, responsáveis pela revisão da concepção funcionalista sobre as re-beldias juvenis. De modo geral, pode-se dizer que, nos anos 1960, parte importante das ciências sociais procurou compreender as rebeldias como dramáticas revelações das contradições dos sis-temas sociais em crise e dos processos geoistóricos destrutivos, muitas vezes considerando a possibilidade destes movimentos levarem os sistemas a reformas e até a revoluções. Neste momen-to, os modelos de revolta boêmia e radicalismo tenderam a ser 6 Cf. artigos publicados em JOVENes, jan.-jun./2005.

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vistos com menos negatividade ou, ao menos, não mais apenas como mera disfunção, prejudicando a integração de indivíduos e grupos juvenis à estrutura social.7

Os pensadores que refletiram sobre as juventudes destes tempos, principalmente aqueles que não adotaram posturas nem conser-vadoras nem revolucionárias, que chamei acima de reformistas, tenderam primeiro a reviver o modelo esboçado por Mannheim. Mas acabaram por consolidar o paradigma da moratória social, em que o direito à juventude se tornava algo dúbio. É que neste mode-lo, ao mesmo tempo em que se concediam proteção e condições especiais condizentes com as dificuldades e características supos-tamente inerentes aos indivíduos neste momento de suas vidas, tornava-se a juventude um momento de separação, de exclusão da participação plena na vida social e na cidadania. Neste sentido, se tentava a um tempo explicar e “adestrar” o radicalismo e a boêmia.

Pierre Furter (1967), já sobre o impacto de movimentos juvenis que, para ele, tinham ido longe demais, afirmou que “além da timi-dez, o adolescente escolherá ante o mundo uma atitude derrotista [...]; ou então, pela originalidade, ele se engajará em uma atitude revolucionária, tentando impor seu ponto de vista original no meio em que vive” (p. 91). Para Furter, as “doutrinas radicais” (ou seja, as ideologias esquerdistas e/ou revolucionárias) tendiam a refor-çar esta ilusão adolescente de que a história e a sociedade podiam ser recriadas a partir do zero, pela pura vontade do adolescente de imprimir sua marca no mundo, sendo “necessário opor às doutri-nas radicais uma ética que permita o exercício de uma autonomia no eixo da história da comunidade [...]”. (ibid., p. 114). Os adoles-centes, para Furter, eram a possibilidade de renovação moral das sociedades, pelo exercício de auto-constituição de sua vida moral e dos valores. Entretanto, tal ensaio ainda devia ser feito “em separa-do”, anunciando a tese da moratória social da juventude:

Uma sociedade que pretende apenas adaptar os adolescen-tes à sociedade adulta é, de fato, uma sociedade que recusa um lugar real e construtivo à adolescência. Esse lugar existe

7 Esta mudança pode ser observada também nos textos selecionados em Brito, 1968.

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somente em uma sociedade que aceite o risco de colocar à parte seus adolescentes durante um período suficiente-mente longo em que eles poderão fazer suas experiências, que modificarão, em seguida, a estrutura social. É preciso que os adolescentes tenham o sentimento e a certeza de que são também considerados como sujeitos responsáveis da sociedade. (ibid., p. 229, grifo do autor).

Para Paul Goodman, em obra original de 1960, os jovens das mais diferentes classes estavam plenos de criatividade humana, que, entretanto, via-se desperdiçada diante de um sistema por demais conformista: “uma sociedade tem sentido quando compreende que sua riqueza fundamental reside precisamente nestas capaci-dades dos jovens”. (1971, p. 29). Entretanto, de modo semelhante a Furter, também Goodman afirma que o lugar deste exercício de criatividade, este espaço de ensaio e erro para a juventude devia ser um mundo à parte: “[...] considero que a juventude necessita realmente de um mundo autêntico, que valha a pena, com o fim de desenvolver-se plenamente nele, e confrontar esta autêntica necessidade com o mundo em que nos é dado viver. Esta é a fonte dos problemas da geração jovem”. (Goodman, 1971, p. 14).

No Terceiro Mundo, foram os jovens chamados a aderir aos pro-jetos desenvolvimentistas. Tratava-se muito mais de encaminhar as sociedades para o “desenvolvimento”, “progresso”, civilização, autonomia, independência. Ou seja, ao contrário do que indica-ram os trechos citados de Pierre Furter e Paul Goodman sobre os países desenvolvidos, a reforma nos países subdesenvolvidos era muito mais política e econômica do que moral e cultural. No Brasil, os discursos de políticos populistas sobre os jovens e es-tudantes, a rigor desde os anos 1930, reproduziam com limpidez este verdadeiro “mito” da juventude progressista, que encontrou acolhida mesmo no discurso de líderes estudantis, como o então presidente do DCE (Diretório Central Estudantil) da USP (Univer-sidade de São Paulo), em 1965:

A juventude sempre representou, na História, um papel fundamental na transformação da sociedade, na reformu-

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lação de suas estruturas. Esta função de agente renovador se torna mais clara no mundo subdesenvolvido, onde os jo-vens, desde cedo, são chamados a tomar posições maduras, devido à rapidez com que evolui o processo de transforma-ções. (Fagali Neto, 1965, p. 1).

Até o menos moderado Florestan Fernandes adota com precisão este modelo desenvolvimentista da juventude, a variação tercei-ro-mundista da juventude reformista – em muito assumindo um discurso que teria então, em 1965, já nos dias do Regime Militar, mais apelo entre autoridades e cidadãos adultos do que uma re-tórica por demais radical. Segundo Fernandes, a mudança nos va-lores da juventude brasileira, que deixa de desejar a maturidade, que pretere a “experiência acumulada” em troca da “capacidade para a experiência nova”, que busca (no âmbito da universidade) a auto-afirmação e o “domínio das técnicas sociais que asseguram eficácia à capacidade de lidar com a ‘experiência nova’”, estava er-roneamente sendo encarada como subversão:8

Esse raciocínio é monstruoso. O extremo radicalismo do jovem brasileiro parece ser, visto sociologicamente, um produto histórico de sua situação de existência. O desafio não parte da supressão ou da contenção desse radicalismo. Mas de seu aproveitamento útil e normal pela sociedade [...] Só há um meio para evitar que o radicalismo degenere em problema social: a sua canalização socialmente construtiva [...]. É preciso não temer-se o jovem; ele não é um perigo social [...]. Contudo, ele poderá tornar-se muito perigoso, se receber uma educação frustrada e alienada socialmente. (Fernandes, 1975, p. 30-1).

Florestan Fernandes conclui que para, canalizar o ímpeto radical da juventude, era necessário criar um ensino universitário autên-tico. A universidade faria então o papel de espaço que possibili-taria tanto quanto canalizaria as experimentações criativas dos

8 Percebe-se nos trechos citados, idéias retomadas e sistematicamente de-senvolvidas por Marialice M. Foracchi (1972), - socióloga do grupo de Florestan, na USP –, sobre o papel transformador da juventude (ela própria influenciada por Mannheim).

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jovens. Mas é preciso deixar claro que Florestan tinha, em seu horizonte, uma canalização socialmente criativa, não a mera su-blimação dos impulsos transformadores dos jovens. Não se tra-tava de criar ou manter seres alienados, mas sim de possibilitar o encaminhamento das juventudes e sua criatividade para a reno-vação das sociedades. Neste sentido, percebemos que ele foi mais fiel as propostas originais de Mannheim.

Fernando Pedreira, já nos dias do movimento estudantil de 1968, no Brasil, caminhou para conclusões semelhantes, refletindo principalmente sobre a necessidade de abertura política no país:O movimento dos estudantes, que assumiram a vanguarda do processo, é desorientado, afoito. Que fazer? Condená-los simples-mente. Isto equivaleria a jogar pela janela as melhores possibili-dades de educação do povo e de progresso.

Na verdade, se os verdadeiros democratas assumissem no Brasil uma atitude mais corajosa, mais firme e mais lúcida, é provável que a salutar rebeldia dos jovens encontrasse canais mais orde-nados, caminhos mais seguros e eficazes. (Pedreira, 1975, p. 119).

Cada qual ao seu modo, Furter, Goodman, Fernandes e Pedreira, faziam a tradução, seja para o público leigo, seja para o mundo acadêmico, do que seria definido como moratória juvenil, tese tão bem expressa pela obra de Erik Erikson (1987). Para Krauskopf (jul.-dez./2004), Erikson elaborou a versão mais nítida do mo-delo homogeneizador de juventude imaginado quase universal-mente e vivido muito restritamente (basicamente, apenas pelas classes médias dos países desenvolvidos) em seu tempo, o século XX. Erikson concebera a moratória psicosocial, algo especifico da juventude no seu entender, como um lapso de tempo em que o in-divíduo poderia experimentar, ensaiar e errar, provando distintos papéis até que consolidasse sua própria personalidade.

Segundo Kruskopf (ibid.), a tese da moratória social escondia, sob a roupagem do cuidado e espaço de criatividade, a negação do exercí-cio pelos jovens de verdadeiros papéis como sujeitos sociais, já que aí eram considerados como “imaturos”. Também, tendia a provocar a invisibilidade das ações dos jovens ou, quando estas ações se tor-

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navam visíveis, tendia a tachá-las como “perturbação da ordem”. A moratória seria menos uma “sabedoria social” e mais uma “poster-gação das possibilidades de participação” dos jovens via a estrutura rígida ocupacional e educacional que vigorava (ibid., p. 28).

Na verdade, desde muito cedo diversos intelectuais fizeram a crí-tica à tese da moratória social.9 Mas é preciso lembrar que esta crítica também foi feita já nos anos 1960 por universitários – tanto discentes quanto jovens docentes –, como aqueles que em Maio de 68 denunciaram, ao seu modo, a balela desta moratória, o aspecto segregacionista e desigual da separação entre crianças/ jovens (“os que nada sabem”) e adultos (“que tudo sabem”), em destaque na educação. (Natanson, out./1968). Assim, a própria juventude mobilizada em 1968 expressou, de modo contundente, sua insatisfação contra as muitas formas de dominação existentes, entre as quais aquelas de cunho geracional. Dentro dela chegou a ser proposto, em destaque nos movimentos na Itália e França, a “auto-educação”, o “poder estudantil” e a autogestão na educação. Versões mais moderadas recriaram a idéia da co-gestão, e ambos, moderados e mais radicais, falaram também da “educação per-manente”, para toda a vida, assim como a importância maior da disposição constante ao aprendizado (o “aprender a aprender”) em relação ao conteúdo por si só. Prenunciavam assim, temas e propostas hoje bastante disseminadas, ainda que atualmente te-nham um sentido bem pouco crítico em comparação com o tom radical de 1968. (Groppo, 2006).

Acredito, entretanto, que seja necessário reconsiderar a negação quase que absoluta de positividade no modelo de moratória so-cial feita por Krauskopf (jul.-dez./2004). Um olhar mais dialético sobre a moratória social pode ajudar a compreender não apenas suas negatividades e tradicionalismos, mas também suas reais e potenciais positividades. O modelo da moratória social continha dentro de si diversas dualidades. Ao mesmo tempo, conjugava o modelo funcionalista tradicional e anunciava o modelo do prota-gonismo juvenil. Agregava, mais ou menos em torno deste duplo referencial, a concepção da juventude e das categorias etárias 9 Como Armida Aberasturi, em 1971, citada em Krauskopf, jul.-dez./ 2004.

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tanto como integração social (e, portanto, sob uma rígida prática de socialização e a institucionalização do curso da vida) quanto como direitos sociais. Em ambos os sentidos, como integração e como direito social especial, a moratória era tanto uma descrição sobre o que parecia ser efetivamente a condição juvenil, quanto um juízo de valor sobre o que ela deveria ser. Funcionava, assim, como um indicador de civilização, civilidade, progresso social, cidadania. A juventude como direito é e era a possibilidade da moratória social, já que seria um momento destinado a especial proteção, orientação e livre experimentação.

Deste modo, a história do século XX foi também a da expansão da juventude como categoria social e como direito, não apenas para o interior das sociedades européias e norte-americanas – expandindo-se das elites para as classes médias e trabalhadoras –, mas também para o exterior das sociedades ditas ocidentais.

Entretanto, nas sociedades fora da Europa e dos EUA, tanto quanto a infância e outros direitos sociais, a juventude sempre foi para a maioria das pessoas apenas um desejo. Estas socieda-des sempre fizeram da infância e da juventude, tanto quanto os padrões ocidentais de desenvolvimento econômico, uma meta de civilização, um indicador de excelência. Constituíram tanto projetos imensos de desenvolvimento econômico quanto leis e instituições que supostamente protegiam a infância e os jovens. Em ambos os casos, normalmente se atingiram resultados práti-cos quase sempre muito aquém do esperado. No primeiro caso, revelando a posição subordinada e dependente destas nações à economia mundial. No segundo caso, revelando as contradições e os limites da cidadania num mundo capitalista baseado na concorrência e na acumulação de capitais – em vez da solidarie-dade e da acumulação de felicidade.

Considerações Finais

Apesar daquela dimensão cidadã presente no modelo da mo-ratória social, as análises progressistas dos anos 1960 sobre as rebeldias juvenis, informadas por este modelo, a rigor não romperam totalmente com o funcionalismo. Por baixo do mo-

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delo da moratória juvenil, ainda jazia o sistema funcionalista de integração social. Mas as diferenças são importantes: a integra-ção ideal dos jovens só é possível via a evolução da sociedade; esta evolução é necessária e só possível, diametralmente, por meio da mobilização dos jovens, ou melhor, da canalização de sua mobilização já em curso em prol dos novos ideais sociais. Enfim, tratava-se menos da repressão, vigilância e “reengenha-ria social” (supostamente mais apropriadas no trato para com a delinqüência) e mais da admoestação, canalização e orienta-ção – já que estaríamos lidando, “nós”, os “intelectuais”, com os jovens das classes médias, e não das camadas populares, ou seja, se tratavam dos “nossos” filhos e alunos.

Mas os próprios movimentos juvenis dos anos 1960, que ajuda-ram a pôr em causa o modelo funcionalista, que alimentaram o modelo da juventude como sujeito ativo da transformação social, iriam pôr em causa o paradigma da moratória social – negando, como se demonstrou acima, que os jovens deveriam estar segre-gados em relação aos adultos. Na verdade, ajudavam a revelar que, a rigor, o modelo da moratória social ainda não rompera totalmente com o funcionalismo.

O rumo tomado pelas ações rebeldes juvenis iria pôr em causa a plausibilidade deste modelo reformista e desenvolvimentista. Tanto pela profundidade surpreendente das ações, quanto por sua inesperada brevidade. Por um lado, os excessos das contra-culturas em matéria de sexualidade, drogas e irracionalismo – tão bem característicos do chamado movimento hippie. Por outro, a amplitude das negações e enfrentamentos, assim como a contun-dência, dos movimentos estudantis – características tão marcan-tes das mobilizações universitárias de 1968. Enfim, esta onda de radicalismo viu-se politicamente derrotada, ainda que, em con-luio com a boêmia contracultural, tenha promovido uma consi-derável revolução comportamental. Mas, para tanto, assistiu-se à metamorfose das culturas rebeldes, absorvidas que foram pela indústria cultural e pela flexibilizada sociedade de consumo.

Assim, os anos 1970 e 80 realmente foram, do ponto de vista das juventudes, os anos de uma maior dispersão e diversificação

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das rebeldias juvenis, que, enfim, passaram a ser lidas – e efeti-vamente se tornaram, em parte importante – sub-culturas de di-ferenciação (não necessariamente de contestação). Ficava mais difícil propor um modelo hegemônico para as revoltas juvenis. A diversidade passa, desde então, a dar o tom das análises sociais e culturais, que, tanto quanto as identidades juvenis diante da complexidade da vida social, tendem também a se fragmentar ao olhar o seu objeto. Trata-se de uma temática que pretendo abordar em um próximo texto.

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Protagonismo juvenil e projeto nacional

Leopoldo Vieira*

Discutir os jovens como protagonistas da construção das políti-cas públicas voltadas a eles pressupõe, antes de tudo, encontrar o lugar da juventude num projeto nacional, tendo bastante nitidez sobre o que está sendo conceitualmente tratado.

Se for verdade que quem faz a história não é o conceito de juven-tude, ele é essencial para se saber qual história está sendo realiza-da. E saber, principalmente, o que é ser jovem na formação social brasileira.

Grosso modo, juventude é, ao mesmo tempo, fase e grupo social. Fase porque consiste na etapa da vida em que o indivíduo, den-tro de um profícuo processo de socialização, forma seus valores – ideia de como deveria ser a realidade – e representações – ideia do que é a realidade. Mas, tem por característica construída pela nossa formação social a qualidade de ser transversal, tanto a questões étnico-raciais, de gênero, de condição física, sexualida-de etc., como em temas próprios à organização de produção em que estamos inseridos e, como não poderia deixar de ser, do mo-dus operandi das políticas públicas estatais nas áreas de saúde, educação, trabalho, agricultura, assistência et caterva. Tudo sob o guarda-chuva da condição juvenil, que cria as peculiaridades em cada micro-seara dessas.

*representante do Congresso da Juventude no Conselho da Cidade, da Prefeitura Municipal de Belém (2001-2002), Secretário de Políticas Públicas do Conselho de Juventude do Estado do Pará (COJUEPA) e Assessor de Juventude da Casa Civil do Governo do Pará (2007-2008) e autor do livro A Juventude e a Revolução Democrática.

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Todas as pesquisas recentes realizadas no país para entender o assunto (PNAD, Ipea, IBGE, Fundação Perseu Abramo, Instituto Datafolha e outros) revelam de modo quase padronizado as ten-dências fundamentais da condição social dos jovens brasileiros. Eles são marcados pelo signo “menos”, sofrendo com o desempre-go, a falta de inserção, a vulnerabilidade e precariedade no mundo do trabalho; são pressionados a ingressar precocemente no mer-cado para contribuir com a renda doméstica ou pela busca e/ou necessidade de autonomia; sofrem a incidência pesada e majori-tária do êxodo rural que engendra o incremento do recrutamen-to pela criminalidade; estão expostos à violência, à prostituição, à exploração sexual, à gravidez precoce, à evasão e à defasagem escolar; estão excluídos do acesso aos bens culturais, esportivos e de lazer e a uma larga lista cujo conteúdo é determinante na construção da condição social do Brasil de modo geral, através da reprodução geracional desta.

Portanto, a juventude é, por um lado, o ponto de partida de um país desigual e atrasado, mas, ao mesmo tempo, ponto de partida para a superação deste status quo. Essa determinação dialética, além das anteriores fases de gênese ideológica e transversalidade sócio-cultural, é o que assegura o caráter universal da juventude no contexto hodierno, isto é, para além de um segmento ou se-tor que demanda proteção ou investimento do Poder Público, ela se encontra no âmago dos caminhos que podemos imaginar para a superação de nosso impasse de “nação em desenvolvimento”. Colocá-la na centralidade de um projeto estratégico para o país é encontrar o meio de desatar este nó.

A crença em saídas universalistas, de apenas melhorar a vida dos “adultos” ou “mais velhos”, enfim, dos “pais”, por medidas que ne-gam a especificidade da juventude, não assegura que os “filhos” viverão num novo padrão societário, pois ao não investir na re-produção geracional de uma nova condição social, nada asse-gura que essa alteração quantitativa e qualitativa imediata será transmitida no processo de renovação social, uma vez que não se acerta as tendências fundamentais da condição juvenil. É gasto de energia e puro mecanicismo.

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Protagonismo juvenil: juventude para si

O conceito liberal do protagonismo juvenil, termo surgido e ali-mentado junto à “onda PPJ” que se espraia pela sociedade desde os anos 1990, pode ser sintetizado em quatro teses: 1) O jovem como senhor do seu próprio destino; 2) a hipotética negação, pelas mais recentes gerações, da luta pelo poder e do método de resolução “da vida” pela participação política (como teriam almejado e pra-ticado as “levas” de jovens dos anos 60 e 70, por exemplo); 3) a opção, consequentemente em tese, pelas saídas individuais, cuja expressão “política” mais bem alinhavada seria o voluntariado, ou seja, amenizar as mazelas do mundo aos poucos, cada qual fazen-do sua parte e, principalmente, a parte que gosta, de preferência numa ONG; 4) a rejeição do conceito de classes sociais e grupos sociais, substituindo-os por “ator social”. Nada mais falso.

Sobre a primeira tese, é pertinente a análise de Augusto Vascon-celos, doutorando em Ciências Sociais pela UFBA e membro do Núcleo de Pesquisa e Estudos sobre Juventudes e Identidades do CNPq, no artigo “Protagonismo juvenil e questão democrática”, publicado na revista Juventude.br, número 6: “o risco dessa ter-minologia é resvalar na ideia de que os jovens, na busca de sua au-tonomia, seriam os únicos responsáveis por trilhar os caminhos a serem perseguidos em suas vidas, desconsiderando-se assim os limites impostos pelas condições sociais”. Contudo, não se trata de uma “filosofia inocente”, mas de uma translúcida orientação política: a desrresponsabilização do poder público para com a ju-ventude no sentido da provisão dos direitos e oportunidades para corrigir os tais limites sociais. A segunda tese do liberalismo é a mais escabrosa, devido ao fato de que nos anos 1960 e 1970, quando os jovens – em sua maioria de classe média – foram à ação pelo não-cumprimento das pro-messas de desenvolvimento e liberdade, tanto no Rio de Janeiro e São Paulo, quanto em Paris ou Praga, não havia pesquisas como as que temos hoje, que medem difusamente essas identidades gera-cionais, como a do Instituto Datafolha do ano passado ou a recém-concluída “Juventude e Integração Sul-americana”, do Ibase.

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Paulo Carrano, professor da Universidade Federal Fluminense, em entrevista dada ao Instituto Humanitas, da Unisinos, datada de 29 de setembro de 2008, dá boas pistas sobre tais falácias: “Qualquer tentativa de estabelecimento de perfis unitários para os jovens ou qualquer outro grupo etário tende a resvalar em simplificações. A resposta para isso poderia ser outra indagação: é possível traçar um único perfil para a humanidade em qualquer século? A maio-ria das pessoas, cientistas sociais ou não, tenderá a dizer que a hu-manidade é composta de sujeitos e contextos múltiplos e que não seria possível estabelecer um padrão universal (...); somente em contextos muito específicos podemos falar em “unidades de gera-ção”. Fazer parte de uma classe ou de uma geração não é questão de escolha. Entretanto, no interior de uma mesma classe social, há uma multiplicidade de corpos jovens (homens, mulheres, bran-cos e não brancos etc.) que experimentam trajetórias biográficas únicas, são capazes de realizar escolhas alternativas, de elaborar projetos de vida e reagem diferentemente às adversidades e pos-sibilidades que a vida lhes oferece. E isso é algo que faz com que dentro de uma mesma classe social existam diferentes modos de experimentar a condição juvenil”. E completa: “as pesquisas têm demonstrado que há uma diminuição real do envolvimento dos cidadãos de todas as idades no envolvimento coletivo pela reso-lução dos problemas públicos. Os problemas contemporâneos se caracterizam pela incerteza, a insegurança e a falta de garantias”.

Segundo Zygmunt Bauman, sociólogo polonês e professor eméri-to de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia, “pessoas que se sentem inseguras, preocupadas com o que lhes reserva o futuro e temendo pela própria incolumidade, não podem real-mente assumir os riscos que a ação coletiva exige”. O que há, sim, e muito errôneo, é o comparativo entre as mino-rias mobilizadas de ontem (Paulo Carrano) – que deixaram, sem dúvida, um grande legado – com maiorias de hoje. É, entretanto, este grande legado que induz a esse erro comparativo, pois se ten-de a ver o jovem como sujeito da resolução das questões sociais, de onde emanou a ideia de “biologicamente revolucionário”; esta simplesmente não é e nunca foi em sua totalidade. De 1960 para

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cá, há décadas que se produz historiografia. Não se pode afirmar o mesmo dos tempos recentes. Usando de forma manhosa os estereótipos, sem qualquer compro-vação científica do que reproduzem a não ser a soma de plágios (ou referências bibliográficas, como prefiram) de outros “pensa-dores sociais” que se comportam de modo similar, os ideólogos do conceito liberal de protagonismo juvenil na verdade buscam dissuadir a juventude da participação política e do acesso ou bus-ca pelo acesso dos meios que de fato alteram a realidade social e individual.

Essa perspectiva se soma à derradeira tese, pela qual só há “atores sociais”. Ou seja: sem grupo social com identidades comuns e sem consciência para que as se crie para uma ação política em torno delas, sejam materiais ou espirituais, há a dispersão da força so-cial que a juventude, em potencial, possui. Por outro viés, os “ato-res” da quimera liberal seguem sendo diferenciados socialmente pela posição que ocupam no processo produtivo.

Porém, novamente, não se trata só de “ideias para o debate”. Ao propagar, massificar, midiatizar essa visão, a juventude, a atual geração, volta-se para consumir, pois é, afinal, o destino que lhe resta. É a simples vulgaridade, nada mais: arregimentar consumi-dores.

A ideia do voluntariado, terceira tese, é a expressão política disso. Embora não seja a fundo um mal, é a ação dispersa com coração quente. Todos, sem a “pachorra” de querer mudar o mundo, fa-zendo um pouco sem alterar nada, mas como a “alma lavada”. É a alternativa “política” que o liberalismo oferece para jovens porta-dores de uma condição social tão brutal.

Protagonismo juvenil e as tarefas políticas da juventude bra-sileira

Noberto Bobbio, o luminoso senador italiano, afirmava que a di-ferença entre direita e esquerda reside em a primeira tomar as desigualdades como naturais e a segunda como sociais, do que decorreria a ação política para transformá-la.

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Pesquisa de 2008 do Instituto Datafolha apontou que os grandes sonhos do jovem brasileiro são casar, se formar, ter um bom em-prego e uma casa. Sonhos prosaicos que começam a ter perspec-tivas menos movediças de se realizarem sob o governo do presi-dente Lula. A constatação de que juventude brasileira é a mais otimista do Mercosul – 83% – feita pela pesquisa “Diálogo com as juventudes sul-americanas”, lançada em 19 de junho de 2009, prova que estamos trilhando esse caminho. Mas, são ainda uto-pias.

Definido e desmascarado o conceito liberal de protagonismo ju-venil (direita), o que pode, então, sê-lo para a esquerda? Só pode ser a atitude do jovem em solucionar os limites impostos pelas condições sociais à sua trajetória de vida, a partir da conversão do auto-reconhecimento de sua condição em vontade de agir. Neste caso, inverte-se a lógica liberal de conceber o protagonismo juve-nil como busca da emancipação dele como algo dependente exclu-sivamente de sua subjetividade, e sim enxergando que sua eman-cipação depende justamente da postura dele frente ao Estado e à política. Logo, protagonismo juvenil, numa visão de esquerda, é o jovem politicamente engajado para mudar sua vida. É quando se transita da “juventude em si” para a “juventude para si”.

Ao contrário das gerações brasileiras de 1960 e 1970, que não pos-suíam meios para alterar o quadro político e social posto, já que o Brasil estava imerso em uma ditadura, e terminaram tendo como resposta deste regime seu extermínio físico e intelectual, as nasci-das em 1990 e 2000 têm toda uma democracia pela frente.

E o primeiro elemento é rechaçar a repetição – como farsa – do padrão de atividade política de parcelas da juventude dessas len-dárias décadas. Se a direita não pode tomar aquilo como mode-lo superado para afirmar “uma nova juventude”, a esquerda não pode se imiscuir no mesmo equívoco, pois ambas carecem da fal-ta de dados comparativos e de uma tendência à homogeneização que não passa de idealismo.

Assim, reafirmo questões centrais que abordo no meu livro “A Ju-ventude e a Revolução Democrática”: o horizonte da persuasão de vanguarda deve ser “para criar as condições para a realização

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dos sonhos da juventude brasileira de concluir os estudos, ter boa formação, trabalho decente, construir um lar e constituir família, alterando a condição juvenil. Isso pressupõe convencer as ju-ventudes sociais a reorientarem sua ação, tendo por método a institucionalização das bandeiras em políticas de governo e nor-mas estatais de forma pacífica, através do exercício das liberdades políticas – votar, governar, participar – e, por fim, ganhá-las para a ideia de voltar-se para a reflexão teórica acerca do Estado, das instituições democráticas e da demarcação legal como fim mais aprimorado para suas bandeiras, coesionando-as para uma es-tratégia comum na revolução democrática.

Se as “minorias mobilizadas” do professor Paulo Carrano empu-nharam em sua época a causa grande de um país desenvolvido com justiça social, partindo do ambientalismo, ecumenismo, fe-minismo, antirracismo, liberdades em todos os cantos da dimen-são individual e coletiva, no contexto hodierno, ao nos deparar-mos com a condição juvenil sendo ponto de partida e de supe-ração para a reprodução geracional da condição social brasileira, pode-se afirmar, sem embargo, que a causa nobre da juventude de hoje é ela própria lutando e construindo políticas públicas para a juventude, para realizar seus prosaicos sonhos, meio pelo qual se completa a “causa grande” das gerações anteriores: o Brasil como potência econômica e social.

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1968: Mobilização democrática e desencadeamento da luta armada no Brasil

João Quartim de Moraes1*

As importantes mobilizações de massa de 1968, impulsionadas principalmente pelos estudantes, obedeceram a fatores prepon-derantemente internos, assim como as primeiras ações armadas urbanas ocorridas em São Paulo no mesmo momento (março-abril de 1968). Embora não estejam casualmente concatenadas, as passeatas estudantis e os grupos guerrilheiros remetem à mes-ma causa histórica: o golpe de Estado de 1964 e a ditadura mi-litar. Constituíram, nessa medida, formas distintas de resistência democrática. Nem por isso se pode perder de vista a dimensão internacional dos acontecimentos de 1968 no Brasil, que é parti-cularmente evidente nas concepções teóricas sobre a estratégia revolucionária da guerrilha rural. Na prática, entretanto, a luta armada fixou-se nos centros urbanos e acabou por ser aniquilada antes de superar seu “impasse estratégico”.

O movimento de massas de 1968: características gerais

Em 1968 ocorreram manifestações contra a ditadura militar que só seriam superadas – quanto à amplitude (social e geográfica) da participação popular – pela campanha por eleições presiden-ciais diretas, em 1984. Permaneceram no entanto insuperadas no que se refere à duração do movimento. Enquanto que a campanha popular pelas diretas concentrou-se nos quatro primeiros meses de 1984, até a votação pelo Congresso, a 25 de abril, da emenda Dante de Oliveira (para cuja aprovação, nunca será demais repeti-1 * É professor de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (UNI-CAMP).

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lo, faltaram apenas 22 votos), a mobilização de 1968 durou quase o dobro: do assassinato do estudante Edson Luís por uma tropa de choque da PM-Rio à invasão da Faculdade de Filosofia da USP pelos comandos do CCC-Mackenzie apoiados pela PM-São Paulo, e à prisão em massa dos participantes do Congresso da UNE em Ibiúna, foram oito meses de manifestações e lutas praticamente ininterruptas.

A descrição sistemática desse multiforme processo de mobiliza-ção de massas contra a ditadura militar está ainda por ser elabo-rada. Embora dispersa, a documentação disponível (imprensa da época, arquivos pessoais, depoimentos de participantes e de tes-temunhas, além dos livros de memórias e estudos historiográficos etc) é ampla, sobretudo porque até o dia 13 de dezembro de 1968 (quando foi editado o AI-5, dando início à ditadura aberta) a im-prensa se exprimiu com alguma liberdade e a oposição pôde fazer valer publicamente suas críticas e suas denúncias. Particularmen-te abundante é a documentação iconográfica, cobrindo passeatas, mobilizações como a da greve de Osasco e manifestações como a do 19 de Maio de 1968 na Praça da Sé e na Praça da República, para citarmos apenas a imprensa paulista, notadamente a Folha da Tarde e o Jornal da Tarde, nos quais está registrada uma riquís-sima coleção de imagens daqueles e de outros eventos, ocorridos não apenas na capital, mas também no interior do estado.

Aliás, a “interiorização” da mobilização anti-ditatorial permanece um dos aspectos menos estudados dos acontecimentos políticos de 1968. Nos quadros descritivos do movimento estudantil em es-cala nacional incluídos na parte final de seu importante trabalho Movimento estudantil e ditadura militar, João Roberto Martins F. menciona a grande maioria das capitais brasileiras e, no interior do Estado de São Paulo, São Carlos, Presidente Prudente, Campi-nas e Piracicaba (Martins Fº, 1987, p. 151-166). Mas a listagem não é exaustiva: ampliá-la-ia consideravelmente uma investiga-ção pormenorizada da imprensa disponível. (O autor citado não consultou a Folha da Tarde, o que por si só permite supor que muitos dados sobre a mobilização estudantil em 1968 poderiam ser acrescentados ao seu esforço pioneiro de listagem.)

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Comparado a outros processos de mobilização de massas de nos-sa história social e política, a principal particularidade do de 1968 foi a presença decisiva do movimento estudantil. As “passeatas” que tanto exasperaram a reação e que asseguraram, meses a fio, o domínio das ruas à rebelião anti-ditatorial, nasciam quase sem-pre nas faculdades, quando não nas escolas secundárias. Nesse sentido, os estudantes constituíram a categoria social mobilizado-ra por excelência, vale dizer aquela que, pondo-se em movimento, movimentava as demais. Acabaram assumindo também, embora não fosse essa a intenção proclamada de seus militantes mais ex-pressivos, uma função dirigente no seio do movimento de massas. Função efêmera, sem dúvida, além de difusa, exercida por propa-gação espontânea a partir do meio estudantil em direção das cate-gorias sociais e profissionais adjacentes: professores, jornalistas, artistas e em geral profissionais ligados à cultura, assim como as correntes de opinião sensíveis ao idéario democrático e aos va-lores culturais avançados que aquela mobilização contrapunha à estreiteza reacionária da ditadura.

A famosa Passeata dos Cem Mil, realizada a 26 de junho de 1968 no Rio de Janeiro, constituiu-se no ponto mais alto da luta de massas desencadeada três meses antes, ao influxo da indignação provocada pela truculência assassina da repressão policial. Os es-tudantes, mais uma vez, atuavam como força motriz da impressio-nante manifestação, da qual participaram, como se sabe, todas as correntes da opinião democrática carioca.

O predomínio dos fatores internos na luta dos estudantes em 1968 no Brasil

A simultaneidade da mobilização estudantil brasileira em relação às que ocorriam na Europa Ocidental, especialmente na França, na Itália e na Alemanha Federal, tem sido ressaltada nos diferen-tes eventos realizados entre nós por ocasião do quadragésimo aniversário dos “acontecimentos de 1968”. A pertinência dessa aproximação entre a cena nacional e a cena internacional é ób-via. Menos clara, entretanto, é a natureza da ascendência desta sobre aquela. O aspecto genérico dessa influência, nos planos po-

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lítico e cultural, escapa a nosso tema, circunscrito ao exame das relações entre o movimento de massas e o desencadeamento da luta armada no Brasil em 1968. Notaremos apenas que os movi-mentos estudantis de massas no Brasil e na Europa Ocidental fo-ram demasiado simultâneos cronologicamente para que se possa falar em relação de causa e efeito. Basta lembrar que o primeiro ato da rebelião estudantil na França ocorreu na Universidade de Nanterre a 22 de março de 1968 (ocupação da sala do Conselho Universitário por 142 estudantes), apenas seis dias antes do as-sassinato de Edson Luís, ocorrido no restaurante “Calabouço” a 28 de março. Além desse período de tempo — cinco dias entre a divulgação da informação dos “distúrbios” de Nanterre e a inva-são do “Calabouço” — ser demasiado exíguo para responder por qualquer influência direta da rebelião estudantil francesa sobre a brasileira, acresce que a agitação no “Calabouço” começara em janeiro, sendo portanto cronologicamente anterior à de Nanterre.

É preciso notar ainda, e sobretudo, que o “22 de Março” passou desapercebido na própria França. Mesmo órgãos de imprensa an-ti-gaullistas, sem subestimar os acontecimentos daquele dia nem suas conseqüências, trataram o assunto como um episódio entre outros no processo de contestação estudantil da rigidez, dos ar-caísmos e do caráter politicamente conservador das instituições universitárias francesas. Foi assim com o semanário Le Nouvel Observateur (centro-esquerda liberal), para citar um exemplo. O número 177 daquele semanário (de 3 a 9 de abril de 1968), já com mais de uma semana de recuo sobre os incidentes de 22 de março, consagrou uma página de comentários políticos (secção On en parlera demain) a um balanço da agitação estudantil do dia 22 de março em diante. A conclusão dos comentários merece ser traduzida:

Se a massa dos estudantes ainda não segue o movimento, os debates de sexta-feira (29 de março) mostraram que a con-testação da Universidade e da sociedade em geral podia se desenvolver com calma e permitia, de outro lado, a grupos que até agora agiam separadamente, esquecer suas diver-gências ideológicas e levar adiante uma ação comum

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O jornalista percebeu com certa acuidade o que o “22 de Março” trazia de novo: a unidade de ação sobrepondo-se às querelas ide-ológicas dos grupelhos de esquerda. Mas não percebeu — e não vai nisso nenhuma falha, porque seria preciso um excepcional talento premonitório para fazê-lo — o caráter explosivo que iria assumir, um mês mais tarde, o movimento.

Fica portanto evidente que a mobilização estudantil de massas desencadeou-se primeiro no Brasil — e não na França. Confirma-o, por exemplo, a leitura do Correio da Manhã daqueles dias (de 23 a 31 de março de 1968). Como se sabe, esse jornal carioca oferecia a seus leitores ampla informação sobre a oposição ao re-gime militar e, em termos brasileiros, razoável informação inter-nacional. Ora, entre os dias 23 e 31 de março, nenhuma alusão é feita, no mencionado diário, aos acontecimentos de Nanterre. Em compensação, encontramos sucessivamente as seguintes notícias sobre o movimento estudantil brasileiro:

Correio da Manhã, 23 de março de 1968 – Informa que a Faculdade de Filosofia da USP continua fechada por tempo indeterminado. (Os “excedentes” do vestibular haviam in-vadido a Congregação para exigir a concessão de vagas, exa-tamente a mesma iniciativa que os estudantes de Nanterre tomariam a 22 de março. A Congregação da Filo-USP deci-diu então fechar a faculdade, exatamente como faria a de Nanterre.) Alguns professores, conhecidos por suas posi-ções reacionárias e por sua conivência com a ditadura, que não perdoavam ao professor Florestan Fernandes por sua atitude digna e corajosa durante os famigerados Inquéritos Policiais Militares (IPMs) que haviam assolado as facul-dades suspeitas de “subversão”, agarraram a ocasião para uma desforra, acusando Florestan de cumplicidade com os “excedentes” invasores da Congregação. O jornal, nessa edi-ção, publica declarações do acusado, desmentindo indigna-damente os intrigantes e condenando “veementemente o ato dos estudantes”, uma “violência sem cabimento, contra os professores e a Congregação”.

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Correio da Manhã, 24 de março de 1968 – Publica notí-cia com o título “Agrava-se crise estudantil em São Paulo: excedentes”.Correio da Manhã, 28 de março de 1968 – Dá notícia so-bre a preparação do XX Congresso Nacional da UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundários), informando nota-damente que Che Guevara havia sido escolhido como pre-sidente de honra “post mortem” daquele Congresso, cuja data seria 21 a 24 de abril.

Correio da Manhã, 29 de março de 1968 – Manchete da primeira página, em letras garrafais: “Polícia Militar mata estudante”. O editorial consagrado ao trágico desfecho da invasão do “Calabouço” leva o título “Assassinato”, denun-ciando com veemência a criminosa ação repressiva da PM carioca. A conclusão do editorial é lapidar: “A Guanabara, cidade civilizada e centro cultural do Brasil, não perdoará os assassinos”.

Correio da Manhã, 30 de março de 1968 – Manchete de primeira página informa que “Crise estudantil alastra-se às principais cidades do país”. Estava desencadeada a grande mobilização estudantil, com forte apoio da opinião pública. No dia em que o regime comemorava o quarto aniversário do golpe que lhe dera origem, uma vaga sem precedente de repúdio a seus métodos brutais sacudia o país. Até no Su-premo Tribunal Militar, o general Peri Bevilacqua declarava que o crime da PM “nos enche de legítima indignação”.

Foi portanto em função de fatores exclusivamente internos e caracterizadamente reivindicatórios (tanto na Filo-USP quan-to no “Calabouço”) que se desencadeou a mobilização estudan-til. Se não houve influência internacional na dinâmica de mas-sas do movimento estudantil, iniciativas como a homenagem prestada a Che Guevara pelos organizadores do XX Congresso da UBES mostram o quão forte era a sensibilidade internaciona-lista dos militantes de vanguarda daquele movimento. Não por acaso, dessa vanguarda sairiam, em boa medida, os membros

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das organizações revolucionárias clandestinas que partiriam (algumas já estavam partindo) para o combate frontal contra a ditadura militar e a dominação de classe por ela sustentada.

O desencadeamento da luta armada: a ordem dos fatores e as dificuldades metodológicas de uma historiografia objetiva

A pré-condição histórica fundamental do desencadeamento da luta armada no Brasil foi o golpe de 1964, assim como sua con-dição política fundamental foi a consolidação da ditadura militar — sob a forma auto-limitada do regime definido pela Constituição outorgada de 1967.

Por pré-condições entendemos aqui os fatores que contribuíram indiretamente para o desencadeamento da luta armada, criando as condições que a tornariam possível. A expulsão dos sargentos e marinheiros envolvidos na mobilização política dos subalternos das Forças Armadas entre 1961 e 1964 constituiu-se em uma des-sas pré-condições. Como se sabe, foi um núcleo de ex-sargentos e ex-marinheiros, agrupado em torno do ex-sargento Onofre Pinto, que iniciou a luta armada no Brasil. O nexo entre os dois fatos é evidente. A expulsão (pré-condição) condicionou o agrupamento de algumas dezenas de companheiros de expurgo, animados pela solidariedade recíproca na amarga situação de politicamente der-rotados, profissionalmente discriminados e socialmente margi-nalizados em que se encontravam, desde o golpe de 1964, os pro-tagonistas e os figurantes dos extintos movimentos dos sargentos e da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais Brasileiros. Muitos deles haviam sofrido prisões e brutalidades policialescas. O próprio Onofre havia sido hóspede do famigerado navio-prisão Raul Soares, onde se amontoaram, nos dias que se seguiram ao triunfo da sedição reacionária, numerosos presos políticos. Ao condicionar tal agrupamento, a expulsão pré-condicionou a for-mação, três anos mais tarde, do grupo do “Ali”, mais tarde do “Au-gusto”, pseudônimos adotados sucessivamente por Onofre Pinto (o pseudônimo “Ali” refletia provavelmente a simpatia de Onofre pela Revolução Argelina).

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A distinção entre pré-condições e condições apresenta o interes-se, estritamente analítico, de pôr em perspectiva a articulação dos nexos causais que explicam determinado resultado histórico – neste particular, a deflagração da luta armada no Brasil de 1968. O objetivo do historiador é identificar a concatenação completa dos fatores causais, reconstituindo, elo por elo, a cadeia dos an-tecedentes do processo em exame. Embora nos proporcione uma imagem clara e distinta dessa concatenação, a metáfora da cadeia – isto é, de uma série de elos, cada um entrelaçado num anterior (o condicionante) e num posterior (o condicionado), com exceção do primeiro e do último, aquele representando a pré-condição mais recuada, este o resultado final da série de antecedentes/conseqüentes – não oferece, no entanto, uma representação ade-quada da causalidade histórica. Pelo menos por duas razões prin-cipais:

1. A sucessão histórica comporta eventos e processos. Ora, a temporalidade de um evento é discreta, seu tempo pró-prio é o instante, átomo de duração, enquanto que a tempo-ralidade de um processo é contínua, duração indivisa. Por exemplo: o golpe de 1964 se inscreve na ordem dos even-tos, mas a ditadura militar na dos processos. Por serem es-táticos, os elos de uma corrente se prestam a representar a sucessão dos eventos sob a forma de uma série de imobili-dades sucessivas (teríamos como exemplo a série: golpe — Ato Institucional nº 1 — prorrogação do mandato de Caste-lo Branco — eleições para governador em outubro de 1965, com derrota fragorosa dos candidatos do regime — Ato In-titucional nº 2 — etc). Mas não se prestam a representar a persistência de processos subjacentes àqueles eventos, como a dominação social do grande capital agrário, indus-trial e financeiro, da ditadura militar etc. Analiticamente, somos levados a separar os eventos dos processos, tratan-do-os respectivamente em termos de descrição (estática) de uma situação e em termos de determinação dos nexos causais de uma evolução (por situação entendemos aqui o contexto global de um evento e por evolução a dinâmica de um processo). Sabemos no entanto que, objetivamente,

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a contradição entre o evento (e sua situação) e o processo (e sua dinâmica evolutiva), entre o discreto e o contínuo, se resolve na síntese histórica concreta. A ditadura militar consolidou-se como forma de poder de Estado reproduzin-do continuamente o ato de força com que se instaurara: na síntese histórica objetiva, a ditadura é o golpe continuado e o golpe o primeiro ato da ditadura. A separação entre o golpe (evento) e a ditadura (processo) é portanto analítica: concerne aos nossos métodos de conhecimento dos fenô-menos históricos e, mais precisamente, à nossa dificuldade em elaborar um modelo causal que dê conta, adequadamen-te, da síntese objetiva entre o evento e o processo. Donde o interesse metodológico da distinção entre pré-condições (condições passadas) e condições strictu sensu (condições presentes). Como notamos, ela permite pôr em perspectiva as diferentes dimensões temporais da determinação causal.

2. Um fenômeno histórico (seja ele um evento ou um pro-cesso) não se explica, em geral, apenas por uma série de antecedentes, mas constitui o efeito combinado do entre-cruzamento, num determinado “ponto”, de múltiplos fato-res causais, vale dizer, de múltiplas séries de antecedentes. Ou seja: como dizia Marx, “o concreto é síntese de múltiplas determinações”. A análise concreta de uma situação concre-ta — retomando a célebre fórmula de Lênin — será tanto mais concreta quanto mais completa for, vale dizer, quanto mais exaustivamente determinar a multiplicidade dos fato-res cuja síntese constitui o concreto. Essa determinação é sempre problemática, já que não se trata apenas de identi-ficar os fatores da síntese, mas também de avaliar a influ-ência particular de cada um deles sobre o resultado global. As fronteiras entre a avaliação objetiva e a interpretação subjetiva são, sabemo-lo todos, extremamente tênues. É pois intrínseco à explicação histórica um aspecto polêmi-co, já que não existe um parâmetro universal para medir a eficácia causal dos diferentes fatores que concorrem na de-terminação de um efeito histórico (quem de nós, formado na escola do marxismo-leninismo, já não ouviu à exaustão

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os argumentos e contra-argumentos em torno da luta pelo e no poder soviético após a morte de Lênin?). Assim, como avaliar a possibilidade objetiva de que uma política externa soviética distinta da que foi efetivamente praticada – base-ada na premissa do “socialismo num só país” – tivesse con-duzido à vitória do socialismo na Europa Ocidental em pra-zo útil para evitar o flagelo hitleriano? Ou a hipótese contrá-ria — sustentada pelos partidários de Stálin –, de que uma política diversa daquela teria, ao contrário, feito naufragar não somente a revolução proletária internacional, mas a própria República dos Soviets? Evidentemente essa não é a única questão importante na vexata quaestio do “stalinis-mo”. Outras são suscetíveis de uma comprovação históri-ca, a exemplo dos episódios do assassinato de Kirov ou do pretenso “putsch dos generais”. Outras ainda, embora não tão diretamente verificáveis, permitem uma avaliação mais precisa sobre o curso internacional da Revolução. É o caso do pacto nazi-soviético. Da inexistência de um parâmetro causal universal permitindo medir, por exemplo, o grau de viabilidade das propostas da chamada “oposição unificada” na Rússia Soviética da segunda metade dos anos 1920, não se infere, no entanto, que não se possa atingir, nessa e nou-tras questões, um grau satisfatório de objetividade. Infere-se disso apenas que a objetividade, em casos como este, de fenômenos históricos complexos e multidimensionais, re-quer um longo esforço de análise e de compreensão.

É o que ocorre, mutatis matandis, com o debate sobre as origens da luta armada no Brasil de 1968, em particular naquilo que con-cerne à identificação de sua causa histórica fundamental. Não somente a direita, mas também o centro liberal e até setores da esquerda privilegiam abusivamente os fatores externos (influên-cia cubana ou maoísta) em detrimento dos internos. No caso da direita (tanto a extrema-direita fascistóide quanto os liberais de direita), a motivação política é óbvia: se admitissem a tese (que aqui sustentamos) de que a causa histórica fundamental da luta armada foi a ditadura militar, estariam, ipso facto, reconhecendo sua própria responsabilidade, enquanto forças políticas que de-

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ram sustentação ao golpe, pelas conseqüências históricas daque-le evento e, notadamente, pelo espírito de rebeldia que o regime de força então instaurado (graças, repitamo-lo uma vez mais, aos liberais tanto quanto aos criptofascistas) suscitava na juventude, entre os estudantes, entre os intelectuais democratas, entre os militantes de esquerda, entre os sargentos e marinheiros expul-sos das Forças Armadas etc.

É inegável a influência dos fatores externos no processo que con-duziu considerável parcela da esquerda brasileira ao confronto violento com a ditadura militar reacionária. Os próprios revolu-cionários, sobretudo aqueles que, sob a direção de Carlos Mari-ghella e Joaquim Câmara Ferreira, aderiram publicamente à Or-ganização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS) – frustrada tentativa de criar uma internacional guerrilheira tendo por cen-tro Havana e por inspiração o testamento político de Guevara – encarregaram-se de propagar suas convicções internacionalistas. Fizeram-no sem exageros, no entanto, sempre salientando que a luta armada, no Brasil, seria obra de brasileiros. Isso não impediu, evidentemente, que os porta-vozes do regime denunciassem, em linguagem estereotipada, o caráter “exótico e sedicioso”, “contrá-rio à formação cristã e democrática da esmagadora maioria de nossa população”, da “ideologia alienígena” dos “subversivos”.

Afirmar a tese de que a condição política essencial da luta armada foi a ditadura militar significa dizer que sem ditadura não teria havido luta armada no Brasil a partir de 1968. Aos positivistas que denunciariam o caráter inverificável dessa tese respondemos apenas que não queremos demonstrá-la, mas apenas utilizá-la heuristicamente para, como já dissemos, pôr em perspectiva a complexa articulação causal do processo histórico. Sem dúvida, a História não se faz com projetos fracassados, nem com possi-bilidades abortadas. Mas só avaliamos plenamente o significado de um resultado histórico confrontando-o intelectualmente com a possibilidade contrária, vale dizer, tentando conceber como teria sido o curso da história se, em vez do resultado A, tivesse ocor-rido o resultado não-A – resultado que, obviamente, tanto pode ser imaginado como positivo, como tendo evitado uma catástrofe

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(por exemplo: o que teria ocorrido se, em vez de traírem a Re-pública Espanhola, as democracias liberais ocidentais a tivessem ajudado?) quanto como negativo (o que teria ocorrido se, em vez de derrotadas pelo heróico Exército Vermelho, as hordas nazistas tivessem ganhado a batalha de Stalingrado?). Os Tupamaros e o Sendero Luminoso: duas exceções à rela-ção de causa a efeito sobre ditadura militar reacionária e luta armada revolucionária

Sustentamos que sem o golpe de 1964 e, sobretudo, sem a crista-lização da ditadura militar, a possibilidade objetiva da ocorrência de um movimento de luta armada no Brasil teria sido mínima. Po-deriam, nessa hipótese, ter ocorrido tentativas isoladas de pre-parar focos guerrilheiros táticos ou estratégicos, acompanhados de ataques esporádicos a bancos e outras fontes diretas de “au-tofinanciamento”. Na expressão irônica de um dos melhores lu-tadores da resistência anti-ditatorial naquele período, o operário José Campos Barreto, a luta armada teria ficado reduzida a atos de “porra-louquismo esporádico” (Barreto, então militante da lª VPR, referia-se ao plano de ações espetaculares proposto por outro militante daquela organização, mais tarde conhecido pelo pseudônimo de “Jamil”). Nesse caso dificilmente teríamos tido o efeito mobilizador suscitado pelas primeiras (e bem sucedidas) ações armadas em parcelas ponderáveis da esquerda, condena-das ao “exílio interior” pelo regime ditatorial e dispostas, portan-to, a passar a formas ilegais (mas percebidas como historicamen-te legítimas) de luta e de resistência.

Na impossibilidade de verificar em laboratório hipóteses que a história não verificou na práxis, cumpre recorrer ao método da análise comparativa, muito menos rigoroso, é verdade, mas fecun-do se observarmos, na comparação, possíveis similaridades entre a possibilidade histórica não-realizada e realizações históricas de possibilidades análogas. No caso, cumpre examinar os dois exem-plos históricos pertinentes que não confirmam nossa hipótese, isto é, que constituem exemplos de processos de luta armada de-sencadeados no âmbito de regimes onde existiam ou persistiam

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liberdades públicas e que dispunham, portanto, de um mínimo de legitimidade. Esses dois exemplos são o dos Tupamaros e o do Sendero Luminoso.

O exemplo dos tupamaros apresenta o interesse suplementar de ter sido contemporâneo do movimento brasileiro de luta armada, muito embora, contrariamente ao que afirma Thomas Skidmore em seu Brasil de Castelo a Tancredo – isto é, que os guerrilheiros brasileiros “imitavam os êxitos até mais épicos dos guerrilheiros tupamaros do Uruguai” (Skidmore, 1988, p. 176) –, os militantes que lançaram a luta armada no Brasil pouco ou nada soubessem a respeito de seus congêneres uruguaios. É o que teria constatado o festejado brazilianista se, em vez de arriscar palpites, tivesse con-sultado a imprensa brasileira de 1968.

Conheceríamos os tupamaros mais tarde, em 1969-1970, quan-do sucessivos grupos de exilados brasileiros, acuados pelas forças repressivas da ditadura, cruzaram a fronteira uruguaia. Já então o poder político, no Uruguai, marchava para a ditadura. A guerrilha urbana dos tupamaros tornara-se um fator determinante da evo-lução política do país, contando com a simpatia discreta do Par-tido Socialista e dos anarquistas. Persistiam, no entanto, certas liberdades públicas e garantias judiciárias, como testemunhamos no primeiro semestre de 1969, quando um dos mais importantes dirigentes tupamaros, preso na véspera pela polícia, declarara ao juiz incumbido de instruir seu processo: “Hé cumplido mi deber y no diré nada!” Essa lapidar declaração, bem como a foto do decla-rante, foram reproduzidas nos jornais de Montevidéu. Será preci-so observar que no Brasil, na mesma época, era ao Sérgio Fleury e a outros esbirros assassinos que os presos políticos faziam “decla-rações” — sendo que quando não as faziam eram simplesmente destroçados por seus algozes?

Assim, a luta armada dos tupamaros parecia-nos, trânsfugas do inferno repressivo brasileiro, um delicioso conto de fadas. Mais tarde as coisas pioraram muito no Uruguai e a repressão política, como no Brasil, ficou “feia”. Os nexos causais, no entanto, apre-sentaram-se em ordem inversa: foi a ascensão da guerrilha tupa-

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mara nas condições da legalidade constitucional que precipitou a evolução do regime para a ditadura militar. Afinal, a primeira ação clandestina dos tupamaros remonta a julho de 1963, quando um grupo de militantes de origem socialista chefiados por Raul Sendic assaltou um clube de tiro situado no interior, apoderando-se de boa quantidade de armas de fogo. Não que caiba aos guer-rilheiros uruguaios a responsabilidade histórica principal pelo curso fascistóide e terrorista no qual enveredaria o poder político uruguaio ao longo dos anos 1970: tratava-se, naqueles anos infa-mes, de quebrar a espinha dorsal dos partidos de esquerda e do movimento sindical. Se a guerrilha tupamara exacerbou e agravou o ímpeto liberticida da reação uruguaia e de seu aparelho coerci-tivo, não foi somente contra ela, mas também contra o Frente Am-plio – que havia apoiado a candidatura do general Liber Seregni nas eleições presidenciais de 1971 – que se articulou, em 1972 e durante o primeiro semestre de 1973, o dispositivo golpista que conduziria à ditadura aberta instaurada a 26 de junho de 1973.

A questão que ora importa esclarecer não é, entretanto, a das conseqüências da guerrilha tupamara no agravamento da crise política uruguaia e em seu desfecho golpista de 1973, mas a dos fatores que explicam o prestígio adquirido pelos tupamaros junto a amplos setores da esquerda uruguaia ao longo da segunda me-tade dos anos 1960, quando, a despeito da corrosão rápida das instituições democrático-liberais que haviam assegurado ao Uru-guai, durante as décadas precedentes, a agradável reputação de “Suíça da América Latina”, persistiam, como notamos acima (com um pitoresco exemplo), liberdades públicas e garantias individu-ais. Indicaremos apenas aquele que nos parece ser o mais pecu-liar: a fortíssima sensibilidade continental da esquerda uruguaia, particularmente acentuada no Partido Socialista, do qual saíram muitos dos fundadores e militantes destacados do movimento tupamaro. Na época, o principal teórico do PS era o historiador Vivian Trias, que em numerosos trabalhos, dentre os quais Impe-rialismo y geopolítica en América Latina, insistiu incansavelmente na tese de que o Uruguai não era viável como unidade econômica autárquica, mesmo porque sua formação, como Estado indepen-dente, resultara de manobras do imperialismo inglês, interessado

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em dispor, na entrada do Rio de la Plata, de um Estado-tampão entre a Argentina e o Brasil. Teses semelhantes, insistindo na ine-xorável decadência do país (que perdera sua posição de grande fornecedor de carne no mercado internacional) e na necessidade de uma integração regional, e no limite continental, que criasse espaço econômico para o desenvolvimento industrial no âmbito latino-americano, eram regularmente sustentadas na imprensa e na literatura progressista da época. Basta lembrar o semanário Marcha, um dos mais importantes órgãos de imprensa progres-sista do continente “ao sul do Rio Bravo” (vale dizer, da fronteira mexicana à Terra do Fogo), além do semanário Izquierda, editado pelo Partido Socialista.

Compreende-se assim que, para a esquerda uruguaia, na deter-minação das perspectivas estratégicas do combate revolucioná-rio a situação global da América Latina constituía um dado tão relevante quanto a situação de seu próprio país. Mesmo os tupa-maros – embora forçados pelas próprias peculiaridades nacionais da sociedade uruguaia a desenvolver uma luta guerrilheira per-feitamente heterodoxa em relação aos cânones estratégicos pre-conizados tanto pela “linha cubana” quanto pela “linha chinesa” (com 70% da população vivendo em zonas urbanas, sendo que 45% somente em Montevidéu, o campo não poderia ser “o palco principal da luta”) – haviam enfatizado a inspiração continental de seu combate no próprio nome do movimento: o termo “tupa-maros”, como se sabe, vem do chefe inca Tupac-Amaru, herói da resistência de seu povo contra o colonizador espanhol.

Quanto ao Sendero Luminoso, é conhecido seu enraizamento nas comunidades camponesas de língua quechua, econômica e cultu-ralmente isoladas e discriminadas. Independentemente de qual-quer juízo de valor sobre os métodos e as concepções ideológicas dos “senderistas”, é inegável que foram bem sucedidos em seu esforço de integração com populações indígenas da zona andi-na. Na América do Sul, o único movimento guerrilheiro que havia atingido resultado semelhante (fundir-se às massas camponesas) era o colombiano, com a grande diferença, no entanto, de que na Colômbia a luta guerrilheira não foi desencadeada por uma orga-

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nização de militantes revolucionários executando um plano estra-tégico; ao contrário disso, ela surgiu do prolongamento da guerra civil provocada pela ditadura terrorista do conservador Laureano Gomez.

O êxito inicial do Sendero Luminoso deveu-se principalmente à sua identificação cultural com o movimento indígena. Não nos parece que sua doutrina rigidamente extremista e seus métodos sistematicamente terroristas tenham tornado maiores suas chan-ces de sucesso. O fanatismo posto a serviço de uma organização monoliticamente coesa tem sua eficácia, mas embota a lucidez tática e cristaliza os objetivos maiores numa imutável tábua de mandamentos.

O desencadeamento da luta armada em 1968 como “resposta retardada” ao golpe de 1964

A tese que ora sustentamos foi afirmada com ênfase na conclusão de Combate nas Trevas, livro de Jacob Gorender para o qual “a luta armada... teve a significação de violência retardada” (Gorender, 1987, p. 249). A seqüência dessa caracterização nos parece me-nos exata: “Não travada em março-abril de 1964 contra o golpe militar direitista, a luta armada começou a ser tentada em 1965 e desfechada em definitivo a partir de 1968, quando o adversário dominava o poder de Estado, dispunha de pleno apoio nas fileiras das Forças Armadas e destroçara os principais movimentos de massa organizados” (id., p. 249).

Essa última afirmação não parece tão precisa porque, antes de mais nada, o sujeito do processo “luta armada” não era o mesmo: a esquerda que não lutou em 1964 não era a mesma que lutou em 1968, com exceção dos dois dirigentes comunistas que rom-peram com o PCB para lançar a luta armada em São Paulo já em 1968 (Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira). Estamos, claro, nos referindo à esquerda não enquanto conjunto indife-renciado de indivíduos, mas enquanto uma certa configuração do “espaço político” e uma certa forma de articulação orgânica no interior desse “espaço”. Nesse sentido — que nos parece o mais

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importante — aqueles que tomaram a decisão de não lutar em 1964 continuaram decididos a não lutar em 1968, enquanto os que impulsionaram a luta armada a partir de 1965 foram os que a desencadearam de 1968 em diante, com uma única exceção signi-ficativa: Leonel Brizola, que se distinguira na resistência ao golpe militar de 1961 e tentara em vão resistir ao de 1964, iniciando em seguida os preparativos da luta guerrilheira contra a ditadura, tendo abandonado a empreitada sem maiores explicações após o fracasso do chamado “foco de Caparaó”, em 1967.

Além disso, a tese de Gorender é também inexata no que se refere às condições em que foi desencadeada a luta armada. Sem dúvida teria sido historicamente mais justo travar às claras o combate frontal contra os golpistas no dia 31 de março de 1964; indubi-tavelmente as chances de sucesso teriam sido bem maiores. Mas como, em vez disso, João Goulart e as forças que o sustentavam capitularam sem resistência, era compreensível que a geração de militantes de esquerda que se dispusera a resistir em 1964 – e só não o fizera por falta de qualquer comando político – tentasse contrapor “a violência revolucionária à violência reacionária” tão logo reunisse um mínimo de condições para tanto. Ora, em 1968, quando os grupos que mais tarde iriam formar a Aliança Liberta-dora Nacional (ALN) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) já haviam constituído o núcleo de suas organizações clandestinas respectivas, irromperam as lutas estudantis, logo ampliadas para largos setores da opinião democrática e reforçadas pelas greves de Contagem e de Osasco. Pela primeira vez desde o golpe, o re-gime militar era colocado na defensiva política. Dir-se-á que tal defensiva era tática, já que a ditadura dispunha de recursos estra-tégicos para contra-atacar, como o faria com o Ato-5 a partir de 13 de dezembro de 1968. De qualquer modo, não se pode negar que, na relatividade das circunstâncias, a situação nacional, no primei-ro semestre de 1968, era a mais favorável (ou menos desfavorá-vel) desde o golpe para uma ofensiva anti-ditatorial.

Embora importantes, esses erros de avaliação não invalidam a in-terpretação global proposta por Gorender, de que a luta armada constituiu resposta violenta à violência infligida contra a demo-

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cracia, quatro anos antes, pelos golpistas que derrubaram o presi-dente constitucional e rasgaram a Constituição vigente (de 1946). Parece-nos que ambos os erros se explicam pela compreensível interferência – em um esforço intelectual caracterizado, em suas linhas gerais, por meticuloso levantamento historiográfico – da experiência pessoal do autor. É com efeito muito difícil, senão impossível, a um autor que também foi protagonista do processo que descreve separar completamente a si próprio de si próprio. Gorender, como se sabe, ao lado de Apolônio de Carvalho e de Mário Alves, foi um dos dirigentes comunistas que viveu intensa-mente a experiência do pré-golpe com posições de esquerda den-tro do PCB. Ao sugerir que a esquerda que não pegou em armas em 1964, quando devia, tomou-as a partir de 1968, quando não devia, está pensando em seus companheiros mais próximos, no-tadamente os acima citados. Esquece-se de que seu caso foi a ex-ceção e não a regra, já que a maioria dos dirigentes da luta armada não tinha exercido nenhum papel dirigente na esquerda até 1964.

Acresce que sua experiência na luta armada transcorreu no Par-tido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), a organização que entrou por último na guerrilha urbana, quando as organiza-ções que a haviam desencadeado já se encontravam destroçadas e dizimadas por um aparelho de repressão aguerrido, copiosa-mente informado e totalmente embrutecido no uso sistemático da tortura e de outros métodos de terrorismo de Estado. Iniciar a luta armada urbana na virada de 1969-1970, como o fez o PCBR, constituiu uma temeridade suicida e, portanto, um erro de apre-ciação incomparavelmente mais grave do que o cometido pelos que começaram as ações armadas em 1968. Como observou com amarga ironia um veterano da ALN: “nós, pelo menos, começamos durante o oba-oba. Eles, durante o epa-epa”.

Mais do que mera hipótese interpretativa, a afirmação de que o desencadeamento da luta armada teve o caráter de resposta não exatamente à violência do golpe enquanto evento histórico, mas à cristalização dessa violência na ditadura militar enquanto golpe continuado constitui a constatação histórica de um fenômeno cul-tural expresso na atitude coletiva de uma determinada corrente

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de opinião muito mais ampla, em 1968, do que sugere a desig-nação de “ultra-esquerda” que lhe reservaram os bem-pensantes mal-intencionados.

Esse esclarecimento torna-se tanto mais importante à medi-da que uma crítica frontal a Combate nas Trevas (Cf. Henriques, 1988) está toda construída em cima da confusão entre a luta ar-mada como artigo doutrinário desta ou daquela estratégia revo-lucionária e a vontade ético-política de responder à violência rea-cionária com a violência revolucionária. A confusão é demasiado elementar para que seja necessário elucidá-la. Notaremos apenas que, ao contrapor às análises histórico-concretas de Gorender o preceito universal de que “o momento do consenso na política dos socialistas deve subordinar amplamente o da coerção, da violên-cia” (Henriques, 1988, p. 14), Henriques não está mais criticando nenhuma estratégia revolucionária, mas exprimindo o desejo de que a história social e política da humanidade não seja como é, mas como ele gostaria que fosse. Princípio normativo por princí-pio normativo, mais adequado às condições objetivas do Planeta Terra parece-nos o seguinte: o grau de violência das lutas sociais depende principalmente do grau de violência empregado pelos detentores dos meios materiais e intelectuais da coerção organi-zada.

Mais de perto nos interessa, no artigo crítico de Luis Henriques, a curiosa inversão dos nexos de causa e efeito na gênese da luta armada, que se explicaria não como resposta ao golpe reacioná-rio, mas como expressão persistente da “cultura do golpe” (sic) dominante na esquerda, notadamente na trajetória dos comunis-tas. Característica dessa cultura seria a “desvalorização do tema da democracia política”. Foi por tê-lo desvalorizado antes, durante e depois do golpe da direita, que a “cultura do golpe” da esquer-da conduziu às ações armadas, com os desastrosos resultados que conhecemos (id., p. 8). O próprio Gorender, segundo nosso crítico, “apesar de descrever severamente a aventura militarista, está substancialmente preso ao quadro conceitual que explica e dá sentido a essa mesma aventura” (id., p. 7, itálico no original). O “quadro conceitual” em questão recebe ao longo do texto de Hen-

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riques designações recorrentes e, no espírito do autor, convergen-tes: além de “cultura do golpe”, é apresentado como “perspectiva insurrecional[...] própria das realidades ‘orientais’” (id., p. 10), “tradição bolchevique e terceiro-internacionalista, que concebe as armas como a verdade última da política” (id., 13), “entendi-mento da luta armada como forma superior da política, esta pé-rola do pensamento jacobino” (id., p. 14), “tentação jacobina do golpe no ‘momento favorável’” (id., p. 14), etc.

Não temos nenhuma espécie de procuração para defender Go-render, o qual, de resto, há de se defender muito bem sozinho, se julgar necessário. De nossa parte, além das duas críticas já apon-tadas a respeito da sua apreciação sobre as condições do desen-cadeamento da luta armada (uso metafísico do sujeito “esquer-da” e avaliação inadequada da conjuntura de 1968), divergimos frontalmente da apreciação final de Combate nas Trevas, segundo a qual “o erro fundamental (das diversas correntes da esquerda) consistiu em não se prepararem a si mesmas, nem aos movimen-tos de massa organizados, para o combate armado contra o bloco de forças conservadoras e pró-imperialistas” (Gorender, 1987,p. 250). Mas divergimos a partir de critérios que nada têm a ver com os dos que, como Luis Henriques, fazem do “tema da democracia política” uma panacéia universal.

Pensamos que o erro teórico de Gorender consiste em erigir uma forma de luta em questão de princípio e, portanto, em apresentar a luta armada como uma fatalidade, isto é, como uma condição ne-cessária da transformação revolucionária da sociedade. As duas maiores revoluções da era moderna, aquelas que se tornaram, aos olhos da história, paradigmas da idéia mesma de revolução social, a saber a Francesa de 1789 e a Russa de 1917, embora tenham comportado enfrentamentos armados também historicamente emblemáticos (a tomada da Bastilha e do Palácio de Inverno, res-pectivamente), não constituíram, no essencial, processos de luta armada, no sentido que a expressão adquiriu nas revoluções con-temporâneas do terceiro mundo. Não o constituíram sobretudo naquele sentido em que, erroneamente, Gorender faz consistir a correta estratégia da esquerda: preparar-se e preparar as massas

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para o “combate armado”. Nada mais paralisante do que reduzir a política revolucionária da classe operária à “preparação” do com-bate armado. As situações históricas em que a solução das con-tradições sociais passa por uma guerra civil não são, felizmente, freqüentes. (Insistamos no felizmente: uma guerra civil é sempre atroz, sempre agrava as calamidades e os sofrimentos das massas populares, sempre exacerba as misérias da existência: sabem-no todos os povos que tiveram de passar por ela.) Se partimos da tese de que o dever dos revolucionários é preparar a luta armada, es-tamos preconizando que durante anos a fio, décadas a fio, suas energias se concentrem nessa “preparação” sem prazo. Na Améri-ca Latina, quem está aplicando essa orientação é o Sendero Lumi-noso. Não cremos que seja um exemplo a seguir.

De qualquer modo, no plano historiográfico em que se situa o presente estudo importa menos a persistência de Gorender na defesa da estratégia de preparação da luta armada do que sua avaliação histórico-concreta – bem como, através dela, a de seu aludido crítico – das condições políticas que conduziram ao de-sencadeamento das ações armadas no Brasil de 1968 em diante. Obviamente, a fórmula “violência retardada” de que se serve Go-render exprime não apenas uma constatação histórica, mas tam-bém uma avaliação crítica, denotada na expressão “retardada”. É justamente a propósito dessa avaliação crítica que o artigo de Luis Henriques opera a mais chocante de suas inversões das respon-sabilidades históricas do golpe de 1964 e da ditadura militar que instaurou, afirmando que Gorender, ao lamentar não ter havido resistência ao golpe, revela “escasso apreço pela institucionali-dade democrática e pelo papel que as classes e camadas subal-ternas... poderiam desempenhar, impondo concretamente limites substantivos (grifado pelo autor) à forma abertamente autoritária que veio a assumir a modernização capitalista a partir de 1964” (Henriques, 1988, p. 8).

Na mesma linha de raciocínio, os republicanos espanhóis, em 1936, ao se terem levantado contra o golpe fascista-militar de Franco et caterva, teriam mostrado seu escasso apreço pela ins-titucionalidade democrática espanhola e os partisans iugoslavos,

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italianos, franceses que se levantaram de armas na mão contra o fascismo e os ocupantes nazistas, não teriam passado de “terro-ristas” (como os chamavam, de resto, os colaboracionistas locais e os algozes da SS e da Gestapo).

Sairíamos de nosso tema se examinássemos outras aberrações in-telectuais e ético-cívicas que articulam a diatribe de L. Henriques contra Gorender. Limitar-nos-emos a duas observações a respeito da confiabilidade teórica de seus argumentos. A primeira concer-ne à passagem citada logo acima em que o Brasil do pós-golpe é caracterizado pela “modernização capitalista”, efetuada de “forma abertamente autoritária”, cabendo às “classes e camadas subalter-nas” impor limites não ao caráter capitalista da “modernização”, mas à sua forma “autoritária”. Como se o programa democrático fosse um cardápio onde pudéssemos escolher modernização ca-pitalista com acompanhamento de uma forma não-autoritária! Como se a forma fosse indiferente ao conteúdo! Como se o com-bate democrático da classe operária não constituísse a forma (no sentido dialético e não banalmente tipológico do termo) que assu-me a luta anti-capitalista no interior de uma sociedade capitalista!

Já a segunda observação refere-se ao uso abusivo do prestígio político, intelectual e moral que cerca merecidamente o nome de Antonio Gramsci para reforçar empreitadas ideológicas que vão exatamente no sentido oposto ao de suas convicções e posições as mais fundamentais. Será que L. Henriques, que crava sua discutí-vel bandeira na memória do grande morto (p. 9, nota 6), não co-nhece os textos de Gramsci sobre o “Risorgimento” italiano, onde o jacobinismo é valorizado como um fenômeno político decisivo e como a matriz histórica da concepção nacional-popular da he-gemonia? Será que ignora as passagens das Note sul Machiavelli, onde, no mais franco e claro estilo bolchevista, Gramsci sustenta que o elemento mais importante para a formação de um partido revolucionário é o “grupo de capitães” que lhe constituem a força “coesiva, centralizzatrice e disciplinatrice”, sem a qual um exérci-to se desfaz, ao passo que “l’esistenza di um gruppo di capitani, affiatati, d’accordo tra loro, con fini comuni, non tarda a formare un esercito anche dove non esiste”. Se Henriques desenvolvesse sua

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intrépida análise da “cultura do golpe” até a Itália dos anos 1920 e 1930, descobriria aquilo que estão cansados de saber todos os que conhecem minimamente a história do movimento comunista internacional: que Gramsci foi ardoroso defensor da política revo-lucionária tão vituperada pelos neoliberais d’aquém e d’além mar.

A tática contra a estratégia ou como os fins se adaptam aos meios

Na ética da esperteza, tão enraizada na cultura gelatinosa de nos-so país, o “idealista”, isto é, aquele que se guia principalmente por suas convicções e não por seus interesses pragmáticos, é um tolo inofensivo ou um louco perigoso. Na esquerda de 1968, as con-vicções predominavam amplamente sobre os interesses, o que explica, para além dos erros mortíferos cometidos pela geração da luta armada, a dificuldade que experimentam os “realistas de bom-senso” para compreender-lhe as motivações.

Deixemos claro, a este propósito, que nossa recusa da imagem grosseiramente caricatural da luta armada com que os arautos do bom-senso pretendem enterrá-la em efígie num caixão de terceira classe, bem como nossa insistência em que, longe de se reduzir a mais um dos tristes avatares da “tradição golpista” dominante no comunismo brasileiro, o envolvimento de parcela ponderável de nossa esquerda, a partir de 1968, no processo de violência revolu-cionária, constituiu uma decisão coletiva historicamente determi-nada e politicamente motivada, não implica em escamotear nem em edulcorar os componentes fortemente dogmáticos do pensa-mento político da esquerda armada. Com maior ou menor rigidez, as organizações de “ação direta” partilharam de um mesmo corpo de teses, algumas assumidas claramente, outras confusamente as-similadas, outras, ainda, implícitas no ambiente cultural democrá-tico de então, constituindo como que o guia de sua ação. Expô-las com objetividade é um imperativo tanto historiográfico quanto ético-político, em que se inspiram as considerações que seguem. a) Teses sobre a situação econômico-social do Brasil. É fre-qüente ouvirmos dizer que a esquerda armada de 1968 tinha uma

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concepção “catastrofista” sobre a economia brasileira. A afirmação é inexata. O debate teórico recebera forte munição nos anos que se seguiram ao golpe. Os dois mais importantes autores marxistas brasileiros, Nelson Werneck Sodré e Caio Prado, haviam lançado alguns de seus melhores estudos sobre a evolução do capitalismo em nosso país, aquele insistindo nos fatores de bloqueio, este cri-ticando as doutrinas do bloqueio e em geral as teses, predominan-tes no PCB, que viam na persistência dos entraves ao desenvolvi-mento do capitalismo o principal problema a ser resolvido pela revolução. As implicações político-estratégicas dessa polêmica concerniam à questão dita do “caráter da revolução”, que acabou se mostrando claramente secundária relativamente à questão tá-tica (no sentido leninista da expressão, que denota as formas de luta, por oposição a seu conteúdo), a saber, a da luta armada como forma principal (ou mesmo “superior”) da luta revolucionária. De qualquer modo, nos textos doutrinários e programáticos das or-ganizações que desencadearam a luta armada encontramos tanto concepções inspiradas na teoria do bloqueio, sendo esse o caso, notadamente, de A Crise Brasileira, de Carlos Marighella, publi-cado clandestinamente em 1965, quanto de concepções opostas — defendidas notadamente pelos militantes oriundos da POLOP, que, insistindo no caráter essencialmente capitalista da socieda-de brasileira, sustentavam que a revolução seria necessariamente socialista.

Nem a teoria do bloqueio nem a do caráter socialista da Revolução podem, no entanto, ser consideradas catastrofistas se não jogar-mos com as palavras, isto é, se por essa expressão entendermos a convicção de que a ordem social está prestes a desabar por força de catástrofes espontâneas. Afinal, não há concepção mais oposta ao bolchevismo (uma das “taras” ideológicas da luta armada, se-gundo Henriques) que o espontaneísmo.

Não convém, no entanto, tirar de um argumento mais constata-ções do que ele comporta. É errôneo afirmar que não houve ten-dências catastrofistas dentro do movimento armado. Elas se ma-nifestaram sobretudo quando, crescentemente isolados, os guer-rilheiros urbanos sofreram fortes tentações de se agarrar, num

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combate onde as trevas se adensavam mais e mais, a qualquer ilu-são que lhes trouxesse ânimo para continuar lutando — no caso, dando murros em ponta de faca. Mas tais tentações só se fizeram sentir nitidamente a partir de 1969 e sobretudo de 1970, quando a única esperança dos desesperados era dar mais um empurrão-zinho (armado) na situação objetiva para ver se tudo despencava. Foram eles que despencaram, como sabemos.

Em 1968, a opinião predominante entre os militantes da luta ar-mada era muito mais próxima, talvez mesmo indiscernivelmente próxima, da opinião democrática em geral a respeito da política econômica da ditadura militar. Considerava-se que ela iria fracas-sar, ou, mais exatamente, que a recessão de 1964-1967 e o forte arrocho que a acompanhava se prolongariam indefinidamente e que, portanto, ela já havia fracassado. Como se vê, tratava-se de uma apreciação solidamente amparada em evidências objetivas. Nenhum observador independente podia prever, àquela altura, o ciclo de expansão acelerada que, a partir de 1969, e à sombra lúgubre do Ato-5, iria consolidar o terrorismo militar-fascista de Garrastazu Médici. Mesmo os porta-vozes do governo Costa e Sil-va não se permitiam muito mais que aquele otimismo de fachada imposto pelo protocolo administrativo.

Nesse período o mais conhecido dos economistas da oposição, Celso Furtado, então exilado na França, lá publicou, em 1967, um artigo intitulado Brésil: de la République Oligarchique à l’Etat Mili-taire (Furtado, 1967), incluído num número da revista Les Temps Modernes (editada por Jean-Paul Sartre e amigos) inteiramente consagrado ao Brasil, no qual interpretava a política da ditadu-ra militar como uma tentativa de “livrar o Brasil de suas tensões sociais crescentes” sem alterar o statu quo social. Tal objetivo só poderia ser atingido mediante a imposição do retrocesso social e econômico, sob a forma de um modelo de pastorização, isto é, de uma rearticulação do sistema produtivo em torno de três eixos principais: a) deslocamento da mão de obra excedente para as “fronteiras agrícolas vazias”, o que permitiria não somente aliviar as pressões sociais como também aumentar a oferta de produtos agrícolas sem nenhuma mudança tecnológica; b) concentração da

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produção agrícola em larga escala nas melhores terras produtivas ocupadas; c) transformação em pastagens — donde o nome do modelo — das terras ocupadas restantes. Uma vez realizado “esse esquema de pastorização”, conclui o autor, “as tensões sociais se-rão reduzidas ao mínimo. Em seu esforço de preservação das es-truturas sociais, o Brasil terá se afastado da revolução tecnológica cujo ritmo se acelera de um dia para o outro em escala mundial” (Furtado, 1967, p. 5966).

Hoje sabemos que o que sucedeu foi exatamente o contrário: nos anos seguintes o país conheceria forte ritmo de crescimento in-dustrial e de urbanização e as tensões sociais, abafadas durante a primeira metade dos anos 70 pela ação combinada dos DOI-CODI e do “milagre” de Delfim Neto, ressurgiriam com força a partir de 1977-78. O importante para nosso argumento, no entanto, não é o desmentido que os fatos trouxeram às previsões estagnacionistas do ilustre economista, mas o fato de que, no contexto intelectual de 1968, mesmo os mais respeitados teóricos difundiam a convic-ção de que a ditadura estava consolidando o bloqueio regressivo da economia e da sociedade brasileiras. Que outra conclusão tirar senão a de que era preciso fazer logo alguma coisa para que o Bra-sil não se cristalizasse como país do atraso econômico metodica-mente induzido?

b) Teses sobre a estratégia revolucionária. Em torno das con-cepções estratégicas das organizações armadas se concentram suas mais sérias limitações históricas, isto é, tanto políticas quan-to intelectuais, a começar pela própria ênfase obsessiva na “estra-tégia”, expressão que não pertencia ao vocabulário de Marx, nem de Lênin, já que sua introdução no léxico comunista remonta pro-vavelmente a Stalin, embora Mao Tse-tung tenha sido o primei-ro grande chefe revolucionário de nosso tempo a conferir a essa noção importância crucial: uma de suas obras fundamentais se chama Problemas da guerra e da estratégia. Na verdade, Mao Tse-tung segue rigorosamente a definição apresentada por Stálin em 1924 em suas palestras na Universidade de Sverdlov, publicadas sob o título de As bases do leninismo: “a estratégia consiste em de-terminar a direção do golpe principal do proletariado e a cooorde-

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nar em vista dele a disposição das forças revolucionárias durante uma dada etapa da revolução” (Stalin, 1969, p. 140). Segue-se que cada situação histórica comporta uma e só uma estratégia. A bem da objetividade, observe-se que Stalin concebe metaforicamente a noção de estratégia, isto é, transpõe-na para a esfera das forças po-líticas (classes e alianças de classes), reservando para o domínio da tática (como o fizera Lênin, o qual no entanto não empregava, como notamos acima, o termo estratégia) a questão das formas de luta. Estritamente inspirado em Stalin, mas ampliando o uso do conceito de estratégia por aquele elaborado, Mao Tse-tung vincula as formas de luta à situação histórica e, mais ainda, à situação eco-nômico-geográfica. Embora longa, a passagem que segue de Pro-blemas da guerra e da estratégia merece ser reproduzida porque nela encontramos o fundamento teórico não somente — como é óbvio — da corrente maoísta, mas também do “castrismo” e, em ge-ral, do conjunto dos movimentos guerrilheiros latino-americanos.

Nos países capitalistas... o feudalismo não existe mais, o regime é de democracia burguesa; em suas relações exteriores, esses países não sofrem opressão nacional... Face essas particularidades, educar os operários e acumular forças por meio de lutas legais de longa dura-ção, preparando-se assim para mais tarde derrubar o capitalismo, são as tarefas do Partido do proletariado nos países capitalistas... Mas enquanto a burguesia não estiver realmente reduzida à impotência, enquanto o proletariado em sua grande maioria não estiver decidi-do a empreender a insurreição armada e a guerra civil, enquanto as massas camponesas não vierem ajudar voluntariamente o proleta-riado, essa insurreição e essa guerra não devem ser desencadeadas. E quando o forem, é preciso começar por ocupar as cidades para em seguida avançar sobre o campo, e não o contrário (grifos nossos). É o que fizeram os Partidos comunistas dos países capitalis-tas, é o que confirma a experiência da Revolução de Outubro na Rús-sia... Não é esse o caso da China. A particularidade da China é não ser um Estado democrático independente, mas um país semi-colonial e semi-feudal, onde o regime não é o da democracia, mas o da opressão feudal, um país que, em suas relações exteriores, não goza de inde-pendência nacional, mas sofre o jugo do imperialismo... Aqui, a tarefa essencial do Partido Comunista não é passar por uma longa luta

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legal para chegar à insurreição e à guerra (grifos nossos), nem ocupar primeiro as cidades e depois o campo, mas proceder em senti-do oposto (Tse-tung, 1964, p. 309-310)

As formas principais de luta se inferem diretamente da situação histórica e geográfica (países semi-coloniais e semi-feudais, isto é, aqueles que mais tarde seriam chamados de “terceiro mundo”, expressão que os comunistas nunca aceitaram por razões eviden-tes), deixando portanto de constituir a dimensão tática da ação revolucionária para se erigirem em componentes estratégicos do processo histórico.

A transposição direta dessa concepção maoísta para a América Latina implicava no pressuposto de que nela também as relações sociais se caracterizavam como “semi-coloniais e semi-feudais”. Pressuposto que não poderia ser aceito, como não o foi entre nós, pelos revolucionários que sustentavam ser o Brasil um país já pre-dominantemente ou mesmo essencialmente capitalista. Donde a importância teórica que representavam, para esses grupos, as te-ses “castristas”, tanto na versão de Che Guevara quanto naquela, conceptualmente mais elaborada, de Régis Debray. Se, com efeito, a inovação introduzida por Révolution das la Révolution? na teoria revolucionária consiste na autonomização da estratégia relativa-mente à dinâmica social, autonomizam-se também os executores da estratégia (isto é, a vanguarda revolucionária) relativamente às condições sociais sobre as quais atuam.

A ideologia da vanguarda constitui o fator decisivo para a deter-minação do caráter da revolução: ou revolução socialista ou cari-catura de revolução dirão uns; pela libertação nacional, dirão ou-tros, convencidos, no entanto (na prática, senão na teoria) de que, como dizia Debray, “a melhor propaganda é uma ação militar bem executada” e, como assegurava Marighella, “a ação faz a organiza-ção” (subentendido: e a organização redige o programa).

A introdução na teoria comunista do conceito de estratégia (Stá-lin), a introdução, no conceito de estratégia comunista, das formas de luta (Mao Tse-tung) e, enfim, a autonomização da estratégia

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(que passa a ser considerada como a essência da teoria revolucio-nária), constituem, em três etapas, a história da crispação volun-tarista do bolchevismo ou, mais genericamente, do jacobinismo do século XX. Régis Debray, nesse sentido, ultrapassou o limite filosófico do materialismo histórico (teoria da evolução social) para se situar no terreno da lógica imanente do poder, retomando uma tradição pré-jacobina: aquela inaugurada pelo Príncipe ma-quiaveliano.

Antes mesmo de ser objeto de uma intensa e áspera discussão in-terna nas organizações oriundas da cisão da POLOP (VPR em São Paulo, COLINA em Minas Gerais e no Rio de Janeiro), as teses de Debray haviam sido criticadas no Pronunciamento do agrupamen-to comunista de São Paulo, datado de fevereiro de 1968, primeiro documento político da futura ALN — então a dissidência mari-ghellista de São Paulo. Sem discutir sistematicamente a “teoria do foco guerrilheiro”, nem, menos ainda, sua expressão singular nos escritos de Régis Debray, o Pronunciamento recusa enfaticamente as acusações de “foquismo” que já se faziam ao grupo de Mari-ghella, insistindo em que, sem o apoio da cidade, a vitória da guer-rilha é impossível e em que a implantação da guerrilha na zona rural pressupõe o trabalho político junto aos camponeses, sem cujo apoio ela não conseguiria se consolidar.

Na experiência histórica concreta, a crítica ao foquismo limitou-se à busca do apoio das zonas urbanas. Todas as organizações arma-das, mesmo recusando as teses de Debray, estavam de acordo em que a luta estratégica se desenvolveria no campo e que, portanto, a preparação da guerrilha rural constituía a tarefa fundamental do desencadeamento da luta armada. Nenhuma delas, como sa-bemos retrospectivamente, realizou essa tarefa estratégica. A luta armada no Brasil foi, quase que exclusivamente, uma luta urbana (com a notória exceção da Guerrilha do Araguaia, a qual, de qual-quer modo, inspirou-se na concepção maoísta do cerco da cidade pelo campo e em nada se deixou influenciar pelo vanguardismo estratégico do foquismo). Foi, portanto, segundo seus próprios protagonistas, uma luta tática. Ironicamente, os sucessos táticos iniciais (nunca será demais repetir que, no fim de 1968, após ter

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realizado algumas ações espetaculares, dezenas de outras discre-tas e participado ativamente da greve de Osasco, a VPR não tinha nenhum militante na prisão) foram lentamente erodindo a pers-pectiva estratégica. No plano dos princípios estratégicos, conti-nuava-se a afirmar que apenas o destacamento guerrilheiro rural poderia tornar-se o embrião do Exército Popular Revolucionário. Mas os fatos, cabeçudos como sempre, teimavam em circunscre-ver a luta armada às zonas urbanas, ignorando acintosamente os cálculos estratégicos em que suspendiam suas esperanças os guerrilheiros do asfalto.

A prática das organizações armadas configurava pois, claramente, um desvio relativamente às suas concepções estratégicas, cons-tatado como tal por muitos de seus militantes já em 1968. A se-mântica do “desvio” é dialeticamente pobre. Constata a diferença entre a teoria e a prática. Mas à interpretação do filisteu (de que na prática a teoria é outra) contrapõe-se a consideração de que a diferença entre a linha política definida nos planos estratégicos e aquela materializada na ação significa não somente que a prá-tica mudou de teoria (isto é, que as ações armadas não estavam constituindo a preparação da guerra revolucionária no campo), mas sobretudo que, sem sabê-lo e sem querê-lo claramente, as or-ganizações envolvidas nesse desvio estavam perseguindo outros objetivos estratégicos.

O encontro (historicamente acidental, já que não há relação direta de causa e efeito entre ambos) do desencadeamento das lutas de massa e do desencadeamento das ações armadas, em 1968, aca-bou contribuindo decisivamente para a tomada de consciência de que a estratégia era outra. Mas qual? Esquematicamente, duas estratégias se delineavam, em estado prático, na ação das organi-zações armadas. Uma inspirava-se explicitamente na dinâmica do movimento de massas e considerava inseparável o destino militar da luta armada do destino político da mobilização e organização da classe operária e outras forças populares. Outra rejeitava como um corpo estranho ou pelo menos como um lastro inútil qualquer integração de setores de massa com a vanguarda revolucionária. Um dos apologistas desse ponto de vista, que um ano mais tarde

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se faria conhecer pelo cognome de Jamil, sustentava ardorosa-mente, com o apoio de Onofre Pinto — o chefe da VPR até 1969 — que os métodos da luta política de massas, inclusive a imprensa clandestina, eram velharias superadas da “esquerda tradicional”.

O enfrentamento dessas duas correntes iniciou-se já em 1968, na VPR. Em janeiro de 1969, os militantes que mais energicamente haviam defendido, na situação de terrorismo de Estado instaura-da pelo Ato-5, a necessidade de se ligar organicamente às massas operárias e de limitar a um mínimo indispensável as ações arma-das foram expulsos da organização. A seqüência dessa polêmica estratégica, que, ainda em 1969, levaria ao “racha” da Vanguar-da Armada Revolucionária (VAR-PALMARES), escapa aos limites históricos do período de fluxo das energias revolucionárias a que o ano de 1968 ficou associado em nossa memória coletiva. Mas, conforme a observação de Régis Debray, mais irônica do que ele imaginava, segundo a qual “nunca somos inteiramente contem-porâneos de nosso presente”, o ano político de 1968 terminou em outubro-novembro com o refluxo do movimento democrático de massas e em 13 de dezembro com a oficialização do Estado ter-rorista. Muitos militantes revolucionários, contudo, só o percebe-ram mais tarde, muito mais tarde, em 1969 ou 1970, quando a tragédia da luta armada estava já em seu último ato.

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Participação Juvenil na conquista do Passe Livre na cidade do Rio de Janeiro

Marjorie Botelho1

Esse artigo é fruto da pesquisa desenvolvida na dissertação de mestrado que investigou a ação coletiva estudantil na aprovação da Lei Orgânica2 que instituiu o passe livre nos transportes coletivos no Município do Rio de Janeiro para estudantes de escolas públicas do ensino médio. Foram entrevistadas lideranças estudantis que estavam na diretoria da Associação Municipal de Estudantes Secundaristas (AMES)3 e o vereador Guilherme Haeser4.

A literatura no campo da educação no Brasil sobre o tema “juventude” demonstra que os estudos acerca da relação entre movimento estudantil, juventude e participação política representavam 4,9% do total da produção discente da pós-graduação stricto sensu.5. O tema da participação política do 1 Mestre em Educação. Atualmente é coordenadora da organização Instituto de Imagem e Cidadania, Conselheira Estadual de Juventude do Rio de Janeiro e do Conselho Nacional de Juventude e pesquisadora-colaboradora do Observatório Jovem.

2 No dia 28 de março de 1990 na Câmara Municipal de Vereadores do Rio de Janeiro, foi aprovado o Artigo 151 da Lei Orgânica, tendo sido promulgada no dia 5 de abril de 1990.

3 As entrevistas foram feitas com as lideranças da gestão de 1989 e de 1990, a saber: Carlos Matos da Silva, Cláudio Marcio Paolino, Marcelo Morel, Flavio Mello, Guilherme Marques e Guilhermina Luzia da Rocha.

4 Autor do projeto de lei e vereador do PT.

5 Dissertações e teses dos Programas de Pós-graduação em Educação defendidos entre 1980-1995 (Sposito, 1997:45)

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jovem ocupou interesse entre os pesquisadores no final dos anos 60, sobretudo aquela derivada da participação estudantil, configurando uma importante produção para as Ciências Sociais, porém com pouca produção nos estudos educacionais sobre juventude, conforme o estudo “Juventude e Escolarização: Estado do Conhecimento” 6.

A preocupação com a “participação política do jovem estudante e com sua socialização política” apareceu somente em meados dos anos 80. Para Carrano (2002) está ausência “evidência o silêncio sobre a questão da participação política nos primeiros anos da redemocratização da vida nacional após duas décadas de ditadura militar”. A partir de 1985 foram defendidos trabalhos numa perspectiva histórica, objetivando recuperar as mobilizações estudantis, principalmente as décadas de 60 e 70 que ressaltavam a participação estudantil tanto nas escolas como nas universidades, abordando as práticas cotidianas dos estudantes.

A abordagem sobre a participação juvenil na década de 80, na maioria das vezes, fica submetida a uma leitura do período dos anos 90, onde a influência do neoliberalismo, a redução do papel do Estado, a ampliação de redes de participação estão mais acentuados. E conseqüentemente a análise da participação política dos jovens acaba por caracterizá-los como apáticos, identificando este período como um período de desmobilização. É como se o individualismo, disseminado pelo capitalismo e pelas propostas neoliberais, tivesse contaminado os movimentos sociais e retirado da cena política a participação juvenil.

Essa análise de desmobilização acaba por desconsiderar diversas ações coletivas empreendidas por grupos juvenis, de oposição ao regime militar (1964-1989); “diretas já” (1984); contra a dívida externa (1986); por uma universidade pública e gratuita (1987); entre outros. Ressalta-se também que a produção acadêmica que abrange a participação juvenil do movimento secundarista, além 6 O Estado do Conhecimento, coordenado por Marilia Spósito, identificou 387 trabalhos com a temática da juventude, sendo 332 dissertações e 55 teses, sobre total nacional de 8867 (7500 dissertações e 1167 teses).

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de ser muito restrita, normalmente está circunscrita ao registro das manifestações de massa e de manifestações com um grau menor.

Organização dos grêmios e o fortalecimento do Movimento Estudantil Secundarista

No contexto da redemocratização os estudantes em conjunto com outros setores da sociedade civil, na segunda metade da década de 70 e início dos anos 80, começaram a se reorganizar através de partidos, sindicatos, associações e movimentos estudantis. O movimento estudantil secundarista ressurgiu nos anos 80, época da reconstrução da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES) e da Associação Metropolitana de Estudantes Secundaristas (AMES) em 1981, conforme citação de Pereira (1991:87):

No Rio de Janeiro, a reconstrução da AMES, vai apresentar, a partir de 1980, um ritmo imposto pelos Encontros Nacionais e o encontro realizado para discutir o processo de reconstrução foi convocado em comum acordo entre as forças majoritárias do Movimento Secundarista do Rio de Janeiro na época.

Entre as origens da reconstrução da AMES em 1985 temos a Lei do Grêmio Livre7 que permitia aos estudantes dos estabelecimentos de 1º e 2º graus organizarem os grêmios estudantis como entidades autônomas e representativas dos interesses dos estudantes secundaristas, sendo suas finalidades educacionais, culturais, cívicas, desportivas e sociais. A lei garantia que: a coordenação, a implantação e a participação nos grêmios seriam dos estudantes, não haveria fiscalização por parte dos professores, as chapas concorrentes à diretoria seriam formadas pelos estudantes e que qualquer estudante poderia candidatar-se para ocupar cargo no grêmio estudantil.

Entre os fatores que contribuíram para a progressão e o crescimento do movimento estudantil nos anos 80 destaca-se a mobilização em 7 Lei n° 7.398 projeto do Deputado Aldo Arantes (ex-presidente da UNE, sancionada pelo Presidente José Sarney no dia 4 de novembro de 1985).

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torno da ampliação de grêmios nas escolas. Em 1987 a Associação Metropolitana dos Estudantes Secundaristas elegeu a bandeira pela construção de grêmios livres com a chamada “Grêmio Livre Já”. Esse movimento contribuiu para a redescoberta do espaço dos grêmios pelos estudantes, fortalecendo assim, o movimento em torno das entidades representativas no contexto da transição democrática iniciada na passagem do Governo Figueiredo para o governo José Sarney.

No ano de 1988 a AMES deixa de ser metropolitana e torna-se uma entidade municipal8, ou seja, Associação Municipal de Estudantes Secundaristas, representando estudantes das escolas públicas e particulares do ensino fundamental e médio do município do Rio de Janeiro. Essa mudança foi uma opção organizativa e entre seus objetivos estava priorizar a capital do Rio de Janeiro que concentrava o maior contingente de estudantes do Estado do Rio de Janeiro e incentivar a criação de organizações municipais.

A Conquista do Projeto de Lei do Passe Livre

O movimento secundarista tinha como prioridade a mobilização em torno de questões relacionadas com o cotidiano da escola como: ser contra a opressão da direção da escola, pela eleição direta para diretor, contra a falta de verbas para as escolas, pelo ensino público gratuito e de qualidade, a favor do aumento salarial dos professores, do grêmio livre e da meia-entrada no cinema e em casas de espetáculo. Verifica-se também a presença de temas mais gerais ou de amplitude nacional, conforme diz Pereira (1991: 6):

O movimento estudantil, como grupo social que se organiza e se mobiliza, historicamente, em torno de várias demandas, atua nas questões emergidas do cotidiano escolar, assim como nas questões mais amplas ligadas à conjuntura nacional, percebendo a ligação existente entre Educação e sociedade. A atuação dos estudantes, na escola e na sociedade, negando a relação de dominação, é uma

8 Essa passagem acontece no VI Congresso da AMES.

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prova concreta desses espaços gerados nas contradições da sociedade.

A aprovação do projeto de lei pelo passe livre foi resultado de diferentes momentos históricos que vão desde os tempos do Brasil-Colônia e do Império com o episódio da “Revolta do Vintém”9 conforme relatos de Poerner (1979) e nas inúmeras repressões que o movimento estudantil vivenciou em virtude dos protestos e campanhas contra o aumento dos preços dos transportes coletivos. Desde a recriação da AMES registra-se processos de luta no período de 85 a 88 oriundos de mobilizações realizadas por lideranças estudantis pela meia passagem10.

Mobilizações e Ações nos anos de 89/90

As correntes majoritárias na gestão da AMES de 1989 e 1990 eram a Convergência Socialista (CS) e a Organização da Juventude pela Liberdade (OJL). Outras forças políticas atuavam no movimento estudantil secundarista, entre elas: PCB e PC do B e outras três correntes do PT: Caminhando, Articulação e o TRABALHO.

A duas principais forças deste período, Convergência Socialista e OJL tinham perfis e propostas políticas diferenciadas. A primeira era uma corrente do PT com uma visão trotskista que em 1992 rompe com o Partido dos Trabalhadores e convoca a Frente Revolucionária composta por grupos e organizações, entre elas, a Democracia Operária, a Liga e a CS, fundando o Partido Socialista do Trabalhador Unificado (PSTU).11 A segunda era um grupo composto por jovens oriundos da União da Juventude Socialista (UJS) com uma formação stalinista vinculada ao PCdoB. A forma de atuação da CS era mais centralizadora, funcionando como um 9 Ver POERNER, Artur José, O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros. São Paulo: Centro de Memória da Juventude, 1995.

10 Para maiores informações ver a dissertação de Isabel Brasil Pereira em Rompendo a reprodução: Educação e movimento estudantil secundarista no Rio de Janeiro (1976-1990).

11 Os integrantes da Convergência Socialista que foram entrevistados permaneceram no Partido dos Trabalhadores.

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partido político, enquanto a OJL estava rompendo com os padrões impostos pelas regras partidárias e utilizando linguagens mais culturais.

Esses anos foram marcados por inúmeras mobilizações. Havia uma articulação entre as lideranças para mobilizar o maior número de estudantes. Eles combinavam roteiros, indicando a escola que sairia primeiro, em que momento encontraria com o outro grupo e quais estratégias seriam utilizadas para ampliar as ações. Além das passeatas os estudantes também realizavam os roletaços, ou seja, mobilizações de mais ou menos 20 estudantes, que entravam nos ônibus, pulando as roletas para discursar aos passageiros.

O espaço da rua - palco de muitas manifestações culturais e políticas - funcionava como espaço de reivindicação, como megafone das questões cotidianas e escolares, mas também como estratégia de tornar a voz dos estudantes, a forma de perceber o “estado de coisas”, visível para a sociedade. A ocupação da cidade ocorrida pelas passeatas e pelos roletaços demonstra a capilariedade que o movimento estudantil secundarista desencadeou neste processo de participação política e a necessidade da ocupação da cidade como território de disputas e enfrentamentos.

O dia 28 de março de 1990, dia da aprovação do projeto de lei do passe livre, movimentou intensamente a Câmara dos Vereadores. O embate no plenário ficou mais ameno somente quando foi negociado entre os vereadores que representavam os empresários de transporte coletivo e as lideranças estudantis que o projeto de lei teria que ser destinado apenas aos estudantes das escolas públicas do ensino médio, que deveriam estar uniformizados e em dia útil escolar, retirando os estudantes de escolas particulares e o do ensino superior. O projeto original do passe livre previa o passe livre para estudantes de escolas públicas e privadas, do ensino médio e superior.

A imprensa12 divulgou no dia seguinte que o transporte gratuito havia sido ganho na base dos gritos e que soldados da PM haviam

12 Jornal O Globo – Grande Rio – 29 de março de 1999.

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fechado as portas da Câmara para tentar impedir o acesso dos estudantes às galerias:

A votação das emendas supressivas ao artigo da Lei Orgânica do Município que assegura transporte gratuito nos ônibus para alunos uniformizados da rede pública de ensino levou ontem à tarde cerca de 2 mil estudantes a Câmara dos Vereadores. Eles queriam garantir o direito à condução, mas foram impedidos de entrar nas galerias, por determinação dos Presidentes da Mesa Diretora da Casa, Roberto Cid (PDT), e da mesa da Lei Orgânica, Francisco Milani (PCB). Um fato inédito, segundo os vereadores, já que o Regulamento Interno determina que todas as sessões da Lei Orgânica sejam públicas. Mesmo assim, os estudantes acabaram vitoriosos e as emendas que tratavam do assunto foram retiradas por seus autores.

O tumulto tomou conta tanto das escadarias da Câmara quanto do lado de dentro, onde os Vereadores Eliomar Coelho, Guilherme Haeser e Chico Alencar, do PT, e Edson Santos (PC do B), procurando defender a entrada dos estudantes para assistir a votação, foram empurrados por seguranças da Casa e quase agredidos...

Das emendas supressivas ao artigo que trata do transporte gratuito, a do Vereador Guilherme Haeser garantia o passe a todos os estudantes, inclusive aos da rede particular, e a do Vereador Jorge Pereira suprimia o passe para os estudantes de segundo grau da rede pública. Os dois vereadores entraram em acordo e retiraram suas emendas. Em seguida, os estudantes foram embora.

Para o autor do projeto de lei a gênese de todo o processo que culminou na conquista do passe livre está associada à constituição dos grêmios nas escolas, as reuniões das lideranças estudantis, aos encontros das associações estudantis e dos partidos. Guilherme Haeser relata que “se não tivesse tido essa conjunção toda de fatores o projeto não teria sido aprovado”.

Depois que o projeto de lei foi discutido, votado e aprovado pelo plenário, a Câmara dos Vereadores encaminhou para o Executivo13 13 O processo legislativo é composto por fases: a iniciativa, a discussão, a deliberação, a sanção, a promulgação e a publicação.

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que promulgou em 5 de abril de 1990, finalizando o processo de elaboração com a publicação no Diário Oficial. Os estudantes encontraram dificuldades para usufruir o direito ao passe livre, pois os motoristas dos ônibus não recebiam orientação das companhias de transporte urbano para cumprir a referida lei e conseqüentemente impediam a entrada dos estudantes. A Superintendência Municipal de Transportes Urbanos (SMTU) colocou fiscais nas ruas para fazer com que os motoristas e as empresas de transportes cumprissem o dispositivo da nova Lei Orgânica do Município, distribuiu cartas de advertência e esclarecimento e por fim multou as empresas que não cumpriam o Artigo 6º do Código Disciplinar14.

Algumas lideranças não creditam à vitória da aprovação do projeto de lei a publicação no diário oficial e sim aos meses seguintes, durante os conflitos com motoristas e trocadores, e nos atos de protestos contra a recusa dos empresários em aceitar a utilização do transporte coletivo. Para o estabelecimento da lei do passe livre enquanto política pública foram necessárias uma série de ações, que iniciou nos ambientes de socialização juvenil, na criação de grêmios, nas escolhas partidárias, nas mobilizações de ruas, na interlocução com vereadores, nos roletaços e nas invasões na Câmara dos Vereadores. Rua (1998:71) diz que

Políticas públicas são conjuntos de ações destinados à resolução de problemas políticos. Essas decisões e ações envolvem a atividade política compreendida como um conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e se destinam à solução pacífica de conflitos relacionados com bens públicos.

Sendo assim, podemos afirmar que essas manifestações juvenis lideradas pelo movimento estudantil secundarista durante esse período contribuíram para que a luta do passe livre deixasse de ser um “estado de coisas” e se transformasse num “problema político”, inserido na agenda governamental15, ainda segundo Rua.(1998:.731)

14 Conforme divulgação do Jornal O Globo em 20 de maio de 1990.

15 Rua identifica a existência de três processos na constituição de políticas públicas: a formação da agenda, a implementação e a avaliação. (1998, 731-733)

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Para que o estado de coisas se transforme num problema político e passe a figurar na agenda governamental faz-se necessário que apresente pelo menos uma das seguintes características: mobilize uma ação política de grandes ou pequenos grupos ou de atores individuais estrategicamente situados; constitua uma situação de crise, calamidade ou catástrofe e constitua uma situação de oportunidade para atores politicamente relevantes.

Esta ação coletiva foi conduzida entre o campo político polarizado entre o Estado (questionado pelas concessões às companhias de transporte e pelas altas tarifas do transporte público) e os estudantes secundaristas. Os jovens, na condição de estudantes, tiveram importante papel na aprovação do projeto de lei que instituiu o passe livre e na posterior legitimação e manutenção do mesmo. Este episódio comprova que os jovens foram sujeitos e atores da ação, desencadeada em virtude dos espaços de socialização política dos representantes da entidade estudantil secundarista e pelo envolvimento dos estudantes que foram às ruas participar das mobilizações pelo passe livre.

A participação juvenil não foi apenas conseqüência das condições estruturais, mas sim, a transformação das condições colocadas, onde os estudantes criaram possibilidades de interagir. Melucci descreve que os movimentos sociais são construções sociais, ou seja, “são sistemas de ação no sentido de que suas estruturas são construídas por objetivos, crenças, decisões e intercâmbios, todos eles operando em um campo sistêmico” (2001: 38). A ação coletiva desencadeada por esses atores articulou a dimensão do conflito, da solidariedade e do rompimento dos limites do sistema, dimensões analíticas, que constitui uma ação coletiva. O conflito entendido como a relação entre atores opostos, que valorizam e buscam os mesmos recursos. A solidariedade entendida como a capacidade dos atores compartilharem uma mesma identidade coletiva e o rompimento dos limites do sistema onde ocorre à ação.

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A construção das Políticas Públicas para a Juventude no Brasil: idas e vindas

Augusto Vasconcelos*

As políticas públicas em busca de uma definição

É possível identificar uma grande variedade de definições para o que vem a ser políticas públicas. O colombiano Carlos Salazar Var-gas1 nos apresenta uma definição: “el conjunto de sucesivas res-puestas del Estado frente a situaciones consideradas socialmente como problemáticas”.

Decompondo a definição de Salazar, podemos identificar que por ser um conjunto de respostas do Estado, quase nunca uma polí-tica pública é composta de apenas uma decisão, mas de uma va-riedade de decisões de um determinado regime político. Mesmo quando o Estado não toma decisão acerca de um problema, ou seja, omite-se, está tomando uma posição. Além do mais, a defini-ção de políticas públicas vale para situações consideradas social-mente como problemáticas.

Em qualquer sociedade, seja ela desenvolvida ou em vias de de-senvolvimento, existe sempre um conjunto grande de problemas por resolver. Todavia, em uma visão reformista, o Estado não pode enfrentar a todos por múltiplas razões: falta de recursos huma-

1 Las politicas publicas: nueva perspectiva de analisis. In: Universitas. Nº 83. Pontificia Universidad Javeriana; nov. 1992.

*doutorando em Direito (UMSA), Mestre em Políticas Sociais e Cidadania (UCSal), Especialista em Direito do Estado (UFBA).

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nos e materiais, tempo, pressões, diversidade de interesses, etc. Portanto, o Estado enfrenta de maneira prioritária aqueles pro-blemas que sofrem uma maior pressão social ou apresentam uma maior incidência, ou seja, aqueles problemas que passam a ser so-cialmente considerados como tais. Para que os problemas sejam considerados socialmente, entram em cena os atores políticos e sociais que buscam pressionar o Estado para que ele considere as suas demandas e formule respostas através de políticas públicas.

No entanto, as análises sobre a política social habituadas ao racio-nalismo tecnocrático limitam-se a discutir sua eficiência e eficácia na “resolução de problemas sociais”, sem questionar sua impossi-bilidade de assegurar justiça social e equidade no capitalismo. A análise das políticas sociais, sob o enfoque dialético, precisa con-siderar a natureza do capitalismo, seu grau de desenvolvimento e as estratégias de acumulação prevalecentes; o papel do Estado na regulamentação e implementação das políticas sociais; e o papel das classes sociais. (BEHRING & BOSCHETTI, 2006, p. 36-37).

Para Behring e Boschetti, “as políticas sociais e a formatação de padrões de proteção social são desdobramentos e até mesmo respostas e formas de enfrentamento – em geral, setorializadas e fragmentadas – às expressões multifacetadas da questão social no capitalismo, cujo fundamento se encontra nas relações de explo-ração do capital sobre o trabalho.” (2006, p. 51)

Daí porque o advento das primeiras iniciativas de política social não podem ser encaradas como ruptura do Estado Liberal pelo Estado Social, visto que em ambos predominava o reconhecimen-to de alguns direitos sem colocar em “xeque” os fundamentos do capitalismo, mesmo considerando que houve um certo abranda-mento dos princípios liberalizantes. Ou seja, “(...) a política social, no contexto do capitalismo em sua fase madura, não é capaz de reverter esse quadro, nem é essa sua função estrutural.” (Idem, p. 190).

Contudo, mesmo entendendo as dificuldades que daí decorrem, “levar as políticas sociais ao limite de cobertura numa agenda de

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lutas dos trabalhadores é tarefa de todos os que têm compromis-sos com a emancipação política e a emancipação humana, tendo em vista elevar o padrão de vida das maiorias e suscitar necessi-dades mais profundas e radicais. Debater e lutar pela ampliação dos direitos e das políticas sociais é fundamental porque engen-dra a disputa pelo fundo público, envolve necessidades básicas de milhões de pessoas com impacto real nas suas condições de vida e trabalho e implica um processo de discussão coletiva, socialização da política e organização dos sujeitos políticos.” (Idem, p. 190).

Toda política pública comporta três elementos fundamentais: o planejamento, pois não é possível pensar em uma decisão sem ter em mente, pelo menos, uma referência dos resultados futuros, por isso toda decisão implica em uma expectativa com relação ao que está por vir; a decisão, pois significa escolher dentre as alter-nativas apresentadas qual a melhor resposta do Estado para en-frentar um problema socialmente considerado; a ação, que dife-rencia a política pública de um simples discurso ou manifestação de intenções, pois o que a caracteriza é o fato de que ela se exe-cuta, materializa-se e é concretizada através de intervenções na realidade. Portanto, as leis e normas são apenas parte da política pública, correspondendo à sua formalização. Daí que preocupar-se com políticas públicas é investigar como se decide e quais são os procedimentos para a tomada de decisões, identificando quais são os atores que exercem influência na decisão.

Trazendo à tona nossa reflexão sobre as políticas públicas de juventude, podemos afirmar que não basta a aprovação de um marco legal para que elas dêem certo, mas a transformação das decisões políticas em leis e sua consequente formalização repre-sentam um passo importante para transformar as discussões re-lacionadas aos jovens em problemas socialmente considerados, transformando-os em alvo de ações por parte do aparelho estatal.

No entanto, o simples fato de identificar os problemas relaciona-dos aos jovens como socialmente considerados não os coloca em situação privilegiada diante da sociedade, até porque, conforme iremos avaliar no desenrolar da pesquisa, ao longo da história

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das políticas públicas de juventude chegou-se ao tempo em que o jovem era visto como sinônimo de problema social, ótica que vem mudando, ainda que com mais ênfase no plano acadêmico e reflexivo, com fracas repercussões na implementação de políticas, com a concepção do jovem enquanto sujeito de direitos e agente das mudanças sociais.

Para que um estado de conflito ou demanda converta-se em um problema político é necessária a conjugação em maior ou menor proporção das seguintes condições2:

• - que exista uma mobilização de recursos de poder por parte de grandes ou pequenos grupos, ou de atores in-dividuais estrategicamente situados;

• - que o estado de conflito ou demanda constitua uma situação de crise, calamidade ou catástrofe;

• - que o problema seja uma situação de oportunidade para que atores sociais adquiram ou incrementem seu capital político.

Por tudo isso, as políticas públicas são também instrumentos de governabilidade democrática, pois promovem a interação entre Estado e Sociedade, ao tempo em que remontam à convivência cidadã.

Em documento da Câmara Temática “Desenvolvimento Integral” do Conselho Nacional de Juventude (2006:22), apresenta-se a dis-tinção de três níveis de atividades do governo federal com foco na juventude: políticas estruturais, programas e ações. Ressaltan-do que este rol não é exaustivo, explica-se que políticas estrutu-rais relacionam-se com políticas continuadas, visando à garantia dos direitos fundamentais, dentre as quais se cita a ampliação do acesso ao ensino superior médio e profissional, educação do campo, expansão do ensino de jovens e adultos; educação para a diversidade.

2 ABAD, Miguel. Las politicas de juventud en Colômbia. In Politicas pu-blicas de juventud en America Latina: Politicas nacionales. [org.] Oscar Dávila Leon. CIDPA: Viña Del mar, 2003.

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Os programas governamentais que podem estar ou não subordi-nados às políticas estruturais teriam prazo definido de existência, tendo como objetivo atuar sobre uma realidade social mais espe-cífica. Destacam-se como programas, cuja maioria foi iniciada a partir de 2003: Escola de Fábrica, Escola Aberta, Diversidade na Universidade, Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projo-vem), Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego, Pro-grama de Educação de Jovens e Adultos (Proeja), Fazendo Escola, Projeto Rondon, Soldado Cidadão, Brasil Alfabetizado (com foco em juventude), Programa Universidade Para Todos (Prouni), Pro-grama de Apoio à Extensão Universitária para Políticas Públicas (Proext), Nossa Primeira Terra, Programa Nacional de Fortale-cimento da Agricultura Familiar para os Jovens (Pronaf Jovem), Terra Negra, Agente Jovem.

Vale ressaltar que em 5 de setembro de 2007, o governo federal apresentou o novo ProJovem, que nasce da unificação de programas já existentes resultando em quatro subdivisões: ProJovem Urbano, ProJovem Campo, ProJovem Trabalhador e ProJovem Adolescente. Destaca-se que o ProJovem será uma ação integrada de diversos ministérios do governo federal. De acordo com Beto Cury, Secretá-rio nacional de Juventude, existem hoje 4,5 milhões de jovens entre 15 e 29 anos no Brasil que estão fora da escola, desempregados e que não concluíram o ensino fundamental. Segundo o secretário, o novo ProJovem permite integrar melhor as ações, ampliar a escala de jovens participando dos programas, otimizar os recursos e au-mentar a qualidade do que está sendo oferecido aos jovens. A pre-visão de investimentos é de R$5,4 bilhões nos próximos três anos, cujo objetivo é aumentar o número de vagas ofertadas nos progra-mas dos atuais 467 mil para 4,2 milhões de jovens até 2010. (www.agenciabrasil.gov.br , acessado em 05/09/2007)

Quanto às ações, trata-se de medidas de curto prazo ou restritas a determinado público, podendo se articular com as políticas es-truturais e com os programas. São exemplos de ações: Consórcio Social da Juventude, Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio, Pontos de Cultura, Diversidade Sexual nas Escolas (Brasil sem homofobia).

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Para o Conjuve, “em geral, apenas os programas e algumas ações têm sido considerados “políticas de juventude”, isto é, políticas go-vernamentais que, em sua elaboração, demonstram preocupação com a singularidade da condição daqueles nascidos entre 15 e 24 ou 29 anos atrás” (Conjuve, 2006:22).

Como motivo para tal associação, cogita-se a hipótese de que as políticas estruturais, com forte presença no campo educacional, surgiram e existem com pretensões universalizantes, sem uma preocupação específica com a juventude, apesar de contemplá-la em sua ampla maioria. Ou seja, antes mesmo de se fortalecer um movimento juvenil vocacionado para a defesa de políticas públicas, já havia essas políticas estruturais, surgindo a partir daí uma série de programas e ações governamentais no bojo de uma maior articulação da sociedade em torno da temática, dando esta sensação. Contudo, torna-se necessário aprofundarmos mais o tema para evitarmos conclusões precipitadas.

A institucionalização de Políticas Públicas de Juventude

Em um breve relato, a Unesco3 apresenta sistematização formula-da por Ernesto Rodriguez, que ABAD (2003:233-238) traz à tona, em que aponta ao longo das últimas décadas quatro modelos ins-titucionais de implementação de políticas de juventude na Amé-rica Latina.

Um primeiro modelo concentrou-se em duas esferas importan-tes da condição juvenil: a educação e o tempo livre. Esse período coincidiu com certo crescimento econômico. Assim, enquanto que no início dos anos 50 as taxas de escolarização no nível primário estavam próximas dos 48%, no fim dos anos 1990 chegaram a 98%, bem como as taxas de escolarização secundária aumenta-ram de 36% a quase 60% e as da educação superior de 6% a 30%.

No transcurso do tempo, porém, as oportunidades de mobilida-de social ascendente, oferecidas pela educação, se reduziram. Os investimentos em infraestrutura, equipamento e capacitação do-

3 Políticas públicas de/para/com juventudes. 2004. Brasília. p. 59-63

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cente foram insuficientes conduzindo a uma deterioração de sua qualidade (UNESCO, 2004:60). Por outro lado, a estagnação eco-nômica e as dificuldades na geração de emprego podem ser inclu-ídas como fatores limitadores à mobilidade social referida, visto que não podemos depositar apenas na educação as dificuldades do modelo de desenvolvimento.

Ao lado disso, da expansão do sistema educacional, os governos procuraram oferecer um maior controle do uso do chamado tem-po livre entre os jovens. O objetivo era evitar que os jovens incidis-sem em condutas como o abuso de drogas, o consumo excessivo de álcool, assim como o controle da sexualidade.

Outro modelo pode ser caracterizado pelo controle social de jo-vens mobilizados em um marco de crescentes tensões. A partir dos anos 1960 a mobilização juvenil contra as ditaduras existen-tes na América Latina faz com que os governos orientassem os programas para os jovens com acentuado elemento de controle e como estratégia de isolamento do movimento estudantil.

O terceiro modelo apresentado pela Unesco caracteriza-se pelo enfrentamento da pobreza e o delito em um marco de crise ge-neralizada. Como um paliativo transitório aos graves problemas sociais, ocasionados em grande parte por medidas de ajuste es-trutural, foram implementados diversos programas de combate à pobreza, sustentados na transferência de renda, assim como mecanismos de assistência alimentar e de saúde e criação de em-pregos transitórios. Alguns desses programas tinham entre seus objetivos a prevenção de condutas delituosas.

Um quarto modelo de políticas de juventude ressalta a importân-cia do que a Unesco (2004) denomina de capital humano para o desenvolvimento estruturado em torno da inserção social e no mercado de trabalho dos jovens, a partir da reestruturação pro-dutiva nos anos 90.

Por outro lado, há que se questionar a efetividade prática de pro-gramas que colocam no centro de sua ação a “capacitação” e “qua-

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lificação” dos jovens para assumir postos no mercado de trabalho, o que pode acarretar em uma concepção que coloca a responsa-bilidade pelo desemprego nos próprios jovens, isentando as deci-sões no campo da política econômica, bem como os modelos de desenvolvimento pelas dificuldades ocasionadas pelo baixo cres-cimento observado nos últimos anos.

“Algunos programas asumieron de tal forma la idea de capacitaci-ón del joven para un mercado de trabajo con muy pocas oportu-nidades sin proponer cualquier camino de cuestionamento de la realidad socioeconómica de un período histórico que experimen-tó la recesión provocada por las altas tajas de interés y los efectos agudos de la crisis del mundo del trabajo.” (Sposito & Carrano, 2003:289).

Essa formatação em quatro grandes modelos das políticas de ju-ventude trouxe implicações no âmbito da legislação brasileira. As propostas estatais, de caráter desenvolvimentista, que visavam à formação de adultos aptos a ingressar no mercado de trabalho, encontram respaldo no primeiro código de menores, sancionado em 1927. O código Mello Matos, como ficou conhecido por conta de seu relator, marca o início da intervenção do Estado na elabo-ração das primeiras políticas públicas para a juventude no Brasil.

Baseado na ideologia conservadora de “moralização do indivíduo e na manutenção da ordem social”, o código Mello Matos tinha como preocupação principal o “saneamento social” de tipos inde-sejáveis, propondo para sua concretização a criação de mecanis-mos que protegessem a criança dos perigos que a desviassem do caminho do trabalho e da ordem. Esse código orientou a formu-lação de políticas públicas direcionadas aos jovens até o final da década de 70, quando foi extinto.

Em 1964, sob o regime militar, foi criada a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), responsável pela Política Nacio-nal de Bem-Estar do Menor (PNBEM). A Funabem substituiu o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), criado em 1941 sob forte influência do Código Mello Matos. A ação do Funabem perpetuou

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a lógica do SAM, estando em perfeita harmonia com a lei de segu-rança nacional implantada na década de 60.

Atualmente, a legislação brasileira, em geral, compreende os jo-vens até 18 anos sob a proteção do Estatuto da Criança e do Ado-lescente, enquanto que entre os 18 e 29 anos essa população não possui nenhuma proteção específica. No entanto, mesmo com o advento do Estatuto da Juventude abarcando os jovens compre-endidos entre 15 e 18 anos, não cabe falar em sobreposição de uma legislação sobre a outra, mas tão-somente que estas se com-plementam tendo em vista que a Política Nacional de Juventude tem por intuito promover a emancipação do jovem, dotando-o de autonomia e condições para que possa tomar as suas próprias de-cisões, enquanto “agente de mudanças”, objetivo este não explíci-to no Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa forma, não há conflito aparente entre os dois dispositivos.

Em alguns casos específicos, em que a lei brasileira apresenta algumas disposições sobre o tema juventude, o fazem de forma fragmentada, não-sistemática, sem levar em consideração um en-foque estratégico e geral, pois são criadas em face de situações emergenciais e de curto prazo na maioria das vezes. Portanto, a ausência de um marco legal dificulta uma ação articulada das diversas políticas para juventude brasileira, além de não definir responsabilidades entre os entes federativos (União, estados, Dis-trito Federal e municípios).

A Constituição Federal, por exemplo, faz menção ao termo “juven-tude” uma única vez, no artigo 24, XV ao estabelecer que “compe-te à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrente-mente sobre: (...) XV – proteção à infância e à juventude”.

O Código Civil, o Código Penal e a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) tratam da questão atinente aos jovens, levando em conta apenas algumas delimitações cronológicas. Sem dúvida al-guma, ao nos debruçarmos sobre a problemática de um Estatuto da Juventude devemos entender os novos conceitos trazidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

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Ao substituir o artigo do Código de Menores de 1979, o ECA al-terou a doutrina da situação irregular pela doutrina da proteção integral, entendendo crianças e adolescentes como seres huma-nos em condição peculiar de direitos que devem ser prioridade absoluta da família, da sociedade e do Estado. Na mesma linha, a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) em seu artigo 2º afir-ma: “A assistência social tem por objetivos: I – a proteção à fa-mília, à maternidade, à infância, à adolescência e a velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; (...).

Todavia, o avanço no trato da infância e da adolescência, apesar de representar um aspecto importante, ainda não conseguiu viabili-zar a totalidade dos equipamentos públicos que permitam aplicar a lei em sua integralidade. Mesmo assim, a partir da mudança do paradigma legal e institucional vêm sendo desenvolvidos progra-mas e ações voltadas ao atendimento dos direitos desse segmen-to, de que é exemplo o Bolsa Família, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), o programa de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, dentre outros.

O segmento jovem entre 18 e 29 anos, no entanto, não possui ne-nhum ato normativo legal que realize a delimitação cronológica dessa faixa etária e defina um conjunto de direitos e benefícios a que este segmento deva ter acesso. Em função disso, diferente da criança e adolescente, é difícil levar adiante qualquer discussão em torno de medidas de proteção à juventude. O próprio ECA prevê em seu artigo 98 que “as medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconheci-dos nesta lei forem ameaçados ou violados: I – por ação ou omis-são da sociedade ou do Estado; II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III – em razão de sua conduta”.

Por ausência de um dispositivo constitucional que proteja a ju-ventude, a construção de políticas públicas para esse segmento deve ser realizada com base no Art. 6º da Constituição Federal que estabelece: “São direitos sociais a educação, a saúde, o tra-balho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a pro-teção à maternidade e à infância, a assistência aos desampara-

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dos, na forma desta Constituição”.

Portanto, ao contrário do que foi feito com a criança e o adoles-cente, protegidos pelos artigos 227 e 228 da Constituição, verifi-ca-se o entendimento de que a partir dos 18 anos a proteção do cidadão deve ser feita sem qualquer tipo de distinção, deixando de lado as especificidades e necessidades de tratamento espe-cial para a juventude brasileira.

Para SPOSATI4, no que se refere às políticas sociais, temos que associar políticas de proteção social com políticas de desenvol-vimento social, sendo que as primeiras devem garantir a cober-tura de vulnerabilidades, a redução de riscos sociais e o estabe-lecimento de um padrão básico de vida. Enquanto que as polí-ticas de desenvolvimento social são aquelas que atentam para as possibilidades humanas e o concurso do avanço científico e tecnológico para que se viva mais e melhor. São exemplos de políticas de desenvolvimento social as relacionadas à educação, cultura, esporte, lazer, saúde, entre outras. Se quisermos levar a frente um projeto de Estatuto de direitos e Plano de Diretrizes e Metas para juventude devemos enfocar as duas dimensões aci-ma referidas.

Um Estatuto da Juventude poderia apoiar-se nas diretrizes apre-sentadas no artigo 5º da Loas que orientaram a organização da assistência social no Brasil, quais sejam: a descentralização político-administrativa para os estados, o Distrito Federal e os municípios; a participação da população, por meio de organiza-ções representativas, na formulação das políticas e controle das ações em todos os níveis; e a primazia da responsabilidade do Estado na condução da política.

Para dar consistência à implementação do Estatuto da Juventude é necessário criar uma série de espaços institucionais e de arti-culação com a sociedade, no sentido de assegurar o exercício dos direitos, bem como acompanhar e fiscalizar as políticas a serem desenvolvidas. Por isso mesmo, já está em funcionamento há mais 4 SPOSATI, A. Mínimos Sociais e seguridade social: uma revolução da cons-ciência da cidadania. Serviço Social e Sociedade. a. 18, n. 55, p. 9-38, nov. 1997.

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de um ano a Secretaria Nacional de Juventude, que atua ligada di-retamente à Secretaria-geral da Presidência da República, assim como o Conselho Nacional de Juventude (instância de interlocu-ção entre Poder Público e organizações da sociedade que atuam com jovens).

No âmbito dos Estados e Municípios, experiências anteriores de coordenadorias, secretarias, departamentos e divisões da juven-tude formaram o embrião de uma rede nacional de políticas pú-blicas para a juventude. Contudo, apesar de alguns avanços, no geral, em virtude da falta de uma maior articulação entre os espa-ços institucionais, bem como a ausência de um plano nacional de juventude, contribuem para que a maioria dos programas e ações tenha alcance limitado.

Por esse motivo, a construção do plano nacional de juventude e do Estatuto da juventude é fundamental para definir os papéis de cada um dos poderes públicos, assim também estabelecendo direitos e garantias para a juventude brasileira. O projeto de lei do Estatuto da Juventude que tramita na Câmara dos Deputados, já em seu artigo 3º corresponsabiliza a família, a comunidade, a sociedade e o poder público pela garantia da efetivação do direito à vida; à cidadania e à participação social e política; à liberdade, ao respeito e à dignidade; à igualdade racial e de gênero; à saúde e à sexualidade; à educação; à representação juvenil; à cultura; ao desporto e ao lazer; à profissionalização, ao trabalho e à renda; ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado.

O Estatuto da juventude pode colaborar na mudança de enfoque: os jovens não são apenas “grupo de risco” 5, mas sim sujeitos de direito. Para a Unesco (2004:138) esta visão tem impacto decisivo na formatação dos programas de juventude: “o enfoque de ‘grupo de risco’ não faz nenhuma referência à condição cidadã dos jovens e aos direitos inalienáveis que lhes correspondem. Essa perspec-tiva condicionou que muitos desses programas permanecessem limitados ao desenvolvimento de iniciativas que tendem a con-tribuir com o acesso a serviços, em geral, mas incentivados com

5 Idem. p. 247-250.

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critérios paternalistas, que geram certa rejeição entre os benefici-ários e avaliações críticas.”

Além do mais, aquela concepção não levava em conta o elemento da participação dos jovens na dinâmica social, política e econô-mica do país, deixando de responder a suas demandas e pouco contribuindo para a construção da autonomia. Com a mudança de paradigma, os jovens passam a ser encarados como cidadãos e, portanto, o acesso a serviços não deve ser visto como uma con-cessão do Estado para os jovens, mas sim como direito a ser asse-gurado.

De outra sorte, o Estatuto e Plano da Juventude devem servir para legalizar outra perspectiva: os jovens como “atores estratégicos do desenvolvimento” (Rodriguez, 2003: 72) e de ”transforma-ções” (Castro, 2006). Sob essa perspectiva, as políticas públicas para juventude devem articular iniciativas orientadas ao fomento da participação juvenil. De acordo com Rodríguez (2003, p. 63), “ así como en el caso de las políticas públicas de infancia la palabra clave es protección, y en las relacionadas con la mujer la palabra clave es igualdad, en el caso de los jóvenes esa palabra clave es participación”.

Fruto desse enfoque, postula-se a participação dos jovens na im-plementação de políticas públicas, como combate à pobreza e campanhas de alfabetização, construídas a partir do diálogo com os próprios jovens, mas também se refere ao “empoderamento” dos jovens. A pertinência dessa abordagem está centrada na ideia de identificar áreas estratégicas para a construção de projetos ju-venis de vida. Empoderar o jovem significa dotá-lo de recursos que lhe permitam negociar (entendido em sentido amplo, capaci-tando-o para o enfrentamento das questões coletivas e de tomada de decisão em que interesses distintos estejam presentes) com aqueles que tomam as decisões. Significa a capacidade empre-endedora dos jovens para enfrentar os diversos desafios de seu desenvolvimento pessoal e social e os apoios com os quais eles contam para a concretização de seus projetos de vida referencia-dos de maneira individual, mas também em dimensões coletivas.

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Entraves institucionais para implementação das PPJs

De acordo com o Banco Mundial (2007) em 2001, 82% dos paí-ses do mundo contavam com uma política nacional de juventude, 89% tinham um mecanismo de coordenação nacional e 60% es-tariam implementando um programa de ação para jovens. Toda-via, em 70% das experiências haveria focalização da política de juventude num estreito leque de ações, limitando-se a poucos de-partamentos e, via de regra, sem vínculos com outros ministérios, prevalecendo uma lista de programas e políticas em detrimento de um programa estratégico de ação. (Castro, 2007:4)

Na América Latina tem se multiplicado o número de estruturas do Estado especializadas nos jovens. Abad6 nos traz importante avaliação das dificuldades para um bom funcionamento dessas instituições e levanta algumas questões que iremos debater.

Os órgãos do Estado relacionados à juventude têm uma pretensão, legítima por sinal, de atuar transversalmente, numa perspectiva geracional dentro dos planos setoriais do Estado. Ou seja, o Minis-tério da Saúde deverá desenvolver políticas destinadas ao jovem e terá nessas políticas a coordenação do órgão responsável pela juventude no aparelho de Estado. De fato, estes órgãos eminen-temente novos precisam em primeiro lugar legitimarem-se den-tro da estrutura do Estado, ao mesmo tempo em que existe uma desproporção entre as suas responsabilidades e sua verdadeira capacidade técnica e política. A estrutura voltada para políticas de juventude passa a depender de uma disposição de outros setores do governo em ceder recursos e poder para uma estrutura recém-criada. Dessa forma, as estruturas de juventude que deveriam as-sumir uma função coordenadora, acabam por assumir apenas as tarefas periféricas, preenchendo um vazio deixado pelas grandes estruturas da Administração pública. (ABAD, 2003, p. 247)

6 Castro & Abramovay (2005:38) advertem que devemos levar em con-ta a existência de “estruturas vulnerabilizantes” que limitam as possibilidades de mobilidade e de realização dos jovens, ou seja, não devemos enfatizar tanto as “características ‘ruins’ dos jovens ao abordar o sentido de ‘vulnerabilidades’, mas compatibilizá-la com a dos jovens enquanto sujeito de direitos e agentes do desen-volvimento.

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Outro problema apresentado nessa institucionalização é que, via de regra, as políticas de juventude oferecem programas de cober-tura massiva, com pouca diferenciação e que desconhecem a hete-rogeneidade dos jovens. Mesmo em uma política destinada a uma classe social menos favorecida, acaba por desconhecer diferenças de idade, etnia, sexo, tempo de escolaridade, etc. Como o progra-ma de governo tende a ser genérico, acaba por desconhecer os interesses, potencialidades, dificuldades e resistências específicas de cada grupo. (Idem, p. 248).

Ocorrem ações desarticuladas e, não raras vezes, sobreposição de projetos com objetivos, público-alvo e áreas geográficas comuns, revelando assim, a falta de diálogo e comunicação dentro da pró-pria máquina administrativa (Sposito & Carrano, 2003:289). O pró-prio Conselho Nacional de Juventude afirma que “é necessário que haja um esforço pela construção de canais de diálogo que possam, em um futuro próximo, estabelecer um marco institucional que deve, este sim, servir de referencial para a composição de políticas públicas de juventude com alto grau de coerência e que formem um sistema de ações minimamente harmônico” (Conjuve, 2006:24).

A centralização e concentração de decisões é outro aspecto negativo das experiências latino-americanas. As instâncias governamentais de juventude tendem a concentrar decisões sobre financiamento, desenho, coordenação, execução e evolução de seus distintos pro-gramas e projetos (Idem, p. 248). Ao avaliarem a gestão dos pro-gramas existentes no período do mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, Sposito & Carrano (2003:291) sintetizaram que “de los 33 programas y proyectos federales relacionados a los jóve-nes mayores de 18 años, permite afirmar que no existen canales de-mocráticos que aseguren espacios de debates y participación para la formulación, acompañamiento y evaluación de esas acciones”

Some-se a isso, a baixa capacidade de interferência dos municí-pios, que muitas vezes são os principais executores das políticas, mas que não questionam diretrizes, métodos, tampouco objetivos “pré-fabricados”, preocupando-se tão somente com a questão or-çamentária dos programas e projetos (Sposito & Carrano, 2003:

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291). Ainda devemos considerar a existência de experiências em que a participação da sociedade civil, em especial através das ONGs, consolidaram-se simplesmente como “forma mercantil de prestação de serviços” (Sposito & Carrano, 2003: 291).

Aspecto negativo também é o relacionado a uma visão instrumen-talista dos jovens. Via de regra, os jovens pobres são entendidos como simples beneficiários de alguns serviços especiais ou tipos de assistência, fomentando relações de dependência, estigmatiza-ção social e baixos níveis de exercício da cidadania. Entretanto, é bem verdade que há um avanço da concepção que enxerga o jovem como agente do desenvolvimento, a despeito das práticas que o tornam sujeito passivo das políticas. (Idem, p. 249)

Ao analisar a herança deixada pelo governo Fernando Henrique Cardoso no campo das políticas de juventude, Sposito e Carrano (2003: 290) afirmam que prevaleceram projetos isolados, sem avaliação, inexistindo um desenho institucional mínimo capaz de assegurar a unidade que permitisse dizer que caminhávamos face à consolidação de formas democráticas de gestão. Concluem preliminarmente que “el diagnóstico que surge de los datos empí-ricos, aunque preliminar, indica que Brasil, bajo el punto de vista global se decidió por un conjunto diversificado de acciones – mu-chas de ellas realizadas con base en el ‘ensayo y el error’ – en la falta de concepciones estratégicas que permitan delinear priori-dades y formas orgánicas y duraderas de acción institucional que compatibilicen intereses y responsabilidades entre organismos del Estado y de la Sociedad Civil” (Sposito & Carrano, 2003: 290).

Combinado a isso, há uma excessiva focalização das políticas para os jovens a partir da família, escola e trabalho. Ou seja, há pouca política pública para os jovens que se encontram “desfiliados” 7,

7 Vale citar a polêmica gerada em torno da composição do Conselho Na-cional de Juventude (CONJUVE) no Brasil, que provocou reações de alguns seg-mentos de organizações juvenis, em virtude de seu caráter inter-geracional, pois queriam um “Conselho de jovens”. Apontamos item 90 do relatório do Grupo de Trabalho “Conselho” que funcionou no âmbito do CONJUVE com objetivo de fa-zer um diagnóstico de sua própria atuação a ser levada à apreciação do conjunto de seus Conselheiros: “90. (...) sobretudo no início das atividades do conselho, havia uma tensão declarada entre conselheiros “especialistas” e demais conselheiros. Ha-

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ou seja, não estão integrados em nenhuma dessas estruturas e, portanto, encontram-se mais suscetíveis aos riscos sociais pela sua posição de maior vulnerabilidade8.

Ainda persistem nos espaços públicos relacionados à juventude poucos operadores especializados no assunto. As instituições, principalmente em nível municipal e estadual, carecem de maio-res dados estatísticos relacionados à realidade da juventude, o que dificulta que se acumulem informações e experiências para a geração de aprendizagem na própria organização. Não quero com isto defender uma visão tecnocrata dos espaços institucio-nais relacionados à juventude, mas compreender que, apesar da vontade política e da capacidade de articulação serem as virtu-des principais para uma boa implementação de políticas públicas, é fundamental que exista um conhecimento técnico da matéria, sem o qual as experiências, estudos e teorizações de nada lhes serviriam para entender melhor a realidade da juventude em seu local de atuação. É necessária a combinação dos pressupostos po-líticos, com a profissionalização de pessoal técnico especializado na matéria para o bom desempenho das ações de Estado.

Krauskopf (2005: 144) considera que ainda é comum e frequen-te um uso indiscriminado do conceito de política de juventude. Às vezes, basta que em um país existam preocupação e pequenas ações governamentais dirigidas aos jovens para considerá-las po-líticas de juventude. Para ela, esta simplificação oculta a ausência real de política, ignorando que não só existem diferenças de natu-reza entre políticas públicas e planos de ação, mas também entre políticas de governo e políticas de Estado.

Outra herança trazida pelas políticas orientadas à juventude como etapa-problema é que esta dá uma percepção generalizadora da juventude a partir de pólos sintomáticos como a delinquência, as drogas, a evasão escolar, a gravidez precoce, etc.

via também uma tensão entre conselheiros jovens e adultos. Pensar se e como essas tensões foram resolvidas também deveria ser objeto de reflexão”. 8 Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4º ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 232.

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“Según este paradigma, la causa última de las ‘patologias’ juveni-les se identifica en el mismo sujeto juvenil, de ahí que la interven-ción prioriza la acción sobre él y descuida el contexto.” (Krauskopf, 2005: 146).

A Unesco (2004) lista outros elementos que caracterizariam obs-táculos para o salto qualitativo e quantitativo das políticas públi-cas de juventude, os quais citamos a seguir. Um dos problemas que requerem enfrentamento está relacionado à imagem com que os meios de comunicação abordam a questão da juventude, prin-cipalmente porque prepondera uma visão do “jovem-problema”, “raras vezes enfatizando as experiências positivas de iniciativa dos mesmos e tampouco suas potencialidades – assuntos que não ‘dão notícia’” (Unesco, 2004: 193.).

O “adultismo”, que se apresenta em torno dos enfoques paterna-listas e assistencialistas presentes em algumas iniciativas de po-líticas, é um dos problemas levantados pela Unesco (2004), que resvala muitas vezes para o campo da repressão. Destaca-se ain-da que nas relações entre adultos e jovens, por exemplo, existe a problemática relação com a polícia, pois “quando a polícia vê cada jovem pobre como um ‘delinquente’ em potencial, baseando-se simplesmente em sua indumentária (roupa, tatuagens, piercin-gs, cortes de cabelo, etc.), ela estigmatiza esses jovens, e quando prende aqueles que efetivamente cometeram crimes e têm perfil semelhante, a ‘profecia que cumpre a si mesma’, reforça significa-tivamente esse modelo.” (Unesco, 2004:194).

Daí a importância de trabalhar com os adultos que se relacionam com jovens, combatendo seus preconceitos e valorizando uma cultura juvenil com ideias e vontades próprias, o que não pode descambar para outro traço negativo: o ‘juvenilismo’. As políticas de juventude não devem ser assunto de exclusiva responsabilida-de dos jovens, mas sim de toda a sociedade. Frequentemente o ‘juvenilismo’ manifesta-se na idéia de que os que estiverem acima de determinada idade não poderiam participar dos espaços de formulação e decisão das políticas de juventude (UNESCO, 2004: 196). Essa atitude pode gerar uma situação de “isolamento” para

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um debate que começa a ganhar força e possui ainda “pouca mus-culatura” institucional e jurídica.9

Por fim, a Unesco (2004: 196) aponta o “burocratismo” como obs-táculo a ser superado. O “burocratismo” se expressa através da formulação de respostas simples e convencionais a problemas complexos, que exigem criatividade e inovações, sendo bastante comum e manifestando-se nas diversas instâncias do Poder Exe-cutivo, Legislativo e Judiciário.

Levando em conta observações críticas acerca das políticas de juventude, o Banco Mundial apresenta a recomendação de que estas sejam articuladas a um sistema de planejamento nacional com mecanismos de implementação, colaborando na “prestação de contas” dos resultados. Aliás, considera-se que a auferição de resultados é mais fácil ao delimitarem-se os objetivos nacionais, bem como se são desenvolvidos em parceria com ministérios e demais agentes com poder de decisão. Para isso, torna-se neces-sária uma coordenação que desenvolva uma estratégia de resul-tados em relação aos jovens, designando responsabilidades entre governo, sociedade, organizações e setor privado. Note-se, entre-tanto, que na modelagem do Banco Mundial, caberia ao governo o papel de articulador, administrador de contas públicas e observa-ção da qualidade de serviços prestados, cabendo ao setor privado a gestação dos serviços, o que é questionável se o paradigma de nação pensado vai além do modelo de Estado mínimo e das políti-cas neoliberais (Castro, 2007: 7).

9 Vale citar a polêmica gerada em torno da composição do Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE) no Brasil, que provocou reações de alguns segmentos de organizações juvenis, em virtude de seu caráter inter-geracional, pois queriam um “Conselho de jovens”. Apontamos item 90 do relatório do Grupo de Trabalho “Conselho” que funcionou no âmbito do CONJUVE com ob-jetivo de fazer um diagnóstico de sua própria atuação a ser levada à apreciação do conjunto de seus Conselheiros: “90. (...) sobretudo no início das atividades do conselho, havia uma tensão declarada entre conselheiros “especialistas” e demais conselheiros. Havia também uma tensão entre conselheiros jovens e adultos. Pensar se e como essas tensões foram resolvidas também deveria ser objeto de reflexão”.

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A criação de um marco legal das políticas de juventude no Brasil

A Constituição de um país é, em essência, a soma dos fatores reais do poder que o regem. Portanto, do ponto de vista sociológico, os dispositivos constitucionais representam a resultante de for-ças em disputa por um projeto de Estado. Dessa forma, uma nor-ma jurídica convertida em dispositivo constitucional, manifesta a emergência das forças políticas, do poder ativo dentro de uma sociedade.

Tércio Sampaio Ferraz10 afirma que “Constituição é lei fundamen-tal, é um conjunto de normas articuladas, que tecnicamente viabi-lizam os procedimentos para que realmente a atividade organiza-da da sociedade possa se desenvolver”.

Na mesma linha, Kildare Gonçalves Carvalho (2006, p. 8) coloca que “a Constituição deve ser entendida não apenas como norma, mas também como estatuto do político, para o que há de se re-portar ao Estado, cuja existência concreta é pressuposto de sua existência.”.

A Proposta de Emenda à Constituição nº. 138-A, de 2003, que tra-mita no Congresso Nacional, caso aprovada pelo poder constituin-te derivado, no entendimento do Direito Constitucional passará a ser entendida como um comando do Estado brasileiro para im-plementação de políticas sociais específicas para os cidadãos dos 15 aos 29 anos. Ou seja, como toda norma constitucional, o dis-positivo acrescido pela PEC 138-A caso aprovado produzirá efei-tos jurídicos, a despeito de se tratarem de normas programáticas. Aliás, a doutrina clássica entende que as normas programáticas dependem de uma complementação normativa para produção de seus efeitos, o que inviabilizaria a busca de prestação jurisdicional que visasse sua implementação por vedar a atuação do judiciário como legislador positivo, pois, caso contrário, estaria violando o princípio da separação dos poderes (Ferreira Filho, 1990). No en-

10 Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4º ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 232.

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tanto, como bem assevera Dworkin (1999, p. 465), “o objetivo da decisão judicial constitucional não é meramente nomear direitos, mas assegurá-los, e fazer isso no interesse daqueles que têm di-reitos.”

Daí a possibilidade de se recorrer ao Judiciário, a partir da nova hermenêutica constitucional, com o intuito de assegurar a aplica-ção do texto da Constituição, ainda que de norma programática. Por isso mesmo, ainda que a PEC em debate incorpore a termi-nologia “juventude” como sujeito de políticas públicas de modo genérico, há a possibilidade de o indivíduo exigir do Estado que se abstenha de atuar de forma contrária ao conteúdo da norma, inclusive valendo-se do expediente judicial para cumprir tal desi-derato. Além do mais, pode ser exigida a invalidação de norma in-fraconstitucional que revogue a regulamentação da norma consti-tucional programática sem a aprovação de outra que a substitua, o que se convencionou chamar de “proibição do retrocesso”, co-rolário da eficácia negativa da norma constitucional programáti-ca. Portanto, se ao interpretar o juiz reconhecer a existência de determinado direito na Constituição, terá o dever de assegurar os meios necessários para torná-lo realidade, concretizando-o.

Vale ressaltar que a Convenção Ibero-americana de direitos da ju-ventude, já em seu Artigo 6º, “reconhece a igualdade de gênero dos jovens e declara o compromisso dos Estados signatários de impulsionar políticas, medidas legislativas que assegurem a equi-dade entre homens e mulheres jovens no marco da igualdade de oportunidades e do exercício dos direitos”

O substitutivo à PEC 138-A apresentado pela relatora na Câmara dos Deputados (deputada Alice Portugal – PCdoB/BA) introduz a palavra “jovem” no caput do artigo 227, no § 1º, nos incisos II, III, e IV, além de introduzir os incisos VIII e IX no mesmo artigo. O inciso VIII passaria a prever a criação de unidades de referência juvenil, com pessoal especializado na área de hebiatria e o inciso IX prevê a implementação de políticas públicas específicas des-tinadas a garantir a formação profissional, o acesso ao primeiro emprego e habitação, ao lazer e à segurança social.

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O substitutivo acrescenta ao mesmo artigo 227 o §8º que trans-forma em previsão constitucional a aprovação de lei que estabe-leça o Plano Nacional de Juventude, de duração decenal, visando à articulação das várias esferas do Poder Público para a execução de políticas. Passa a ter previsão constitucional, de acordo com o substitutivo, a aprovação de lei que estabeleça o Estatuto da Ju-ventude destinado a regulamentar os direitos dos jovens.

Apesar da disposição da PEC, como falamos anteriormente, já está em tramitação no Congresso o projeto de lei 4.530/2004 que ins-titui o Plano Nacional de Juventude, bem como o projeto de lei nº. 4.529/2004 que dispõe sobre o Estatuto da Juventude, ambos de autoria da Comissão Especial destinada a acompanhar e estudar propostas de políticas públicas para a juventude da Câmara dos Deputados. Do ponto de vista da construção de um marco legal, poderíamos ainda citar a promulgação e sanção presidencial da lei 11.129/2005 que criou a Secretaria Nacional e o Conselho Na-cional de Juventude no âmbito do Poder Executivo Federal.

Com o intuito de compreender melhor em que medida o Plano poderia ser entendido como integrante do marco legal, podemos citar seus objetivos:

a) incorporar integralmente os jovens ao desenvolvimen-to do país, por meio de uma Política Nacional de Juventude voltada aos aspectos humanos, sociais, culturais, educacio-nais, econômicos, desportivos, religiosos e familiares;b) Tornar as Políticas Públicas de Juventude responsabili-dade do Estado e não de governos, efetivando-as em todos os níveis institucionais – Federal, Estadual e Municipal;c) Articular os diversos atores da sociedade, governo, or-ganizações não-governamentais, jovens e legisladores para construir políticas públicas integrais de juventude;d) Construir espaços de diálogo e convivência plural, tole-rantes e equitativos, entre as diferentes representações ju-venis;e) Criar políticas universalistas, que tratem do jovem como pessoa e membro da coletividade, com todas as singulari-

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dades que se entrelaçam;f) Partir dos códigos juvenis para a proposição de políticas públicas;g) Garantir os direitos da juventude, considerando gêne-ro, raça e etnia nas mais diversas áreas: educação, ciência e tecnologia, cultura, desporto, lazer, participação política, trabalho e renda, saúde, meio ambiente, terra, agricultura familiar, entre outros, levando-se em conta a transversali-dade dessas políticas de maneira articulada;h) Apontar diretrizes e metas para que o jovem possa ser o ator principal em todas as etapas de elaboração das ações setoriais e intersetoriais.

O Estatuto da juventude como carta de direitos teria importância no sentido de vincular condutas do Estado e da sociedade, bem como estipular formas de exercício de direitos tão importan-tes para o jovem como o direito à participação. O Projeto de lei 4529/2004 que dispõe sobre o Estatuto da Juventude apresenta em seu Art. 3º que: “a família, a comunidade, a sociedade e o Po-der Público estão obrigados a assegurar aos jovens a efetivação do direito:

I. à vida; II. à cidadania e à participação social e política; III. à liberdade, ao respeito e à dignidade; IV. à igualdade racial e de gênero; V. à saúde e à sexualidade; VI. à educação;VII. à representação juvenil; VIII. à cultura; IX. ao desporto e ao lazer; X. à profissionalização, ao trabalho e à renda; e XI. ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.

De acordo com o Projeto de lei, as obrigações decorrentes do ca-put do artigo 3º compreendem: atendimento individualizado jun-to aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à popu-lação, visando ao gozo de direitos simultaneamente nos campos educacional, político, econômico, social, cultural e ambiental; par-ticipação na formulação, na proposição e na avaliação de políticas públicas específicas; destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção do jovem; atendimento educacional visando ao pleno desenvolvimento físico e mental do

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jovem e seu preparo para o exercício da cidadania; formação pro-fissional progressiva e contínua, objetivando a formação integral capaz de garantir ao jovem sua inserção no mundo do trabalho; viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do jovem com as demais gerações; divulgação e aplica-ção da legislação antidiscriminatória, assim como a revogação de normas discriminatórias na legislação infraconstitucional, capaci-tação e reciclagem dos recursos humanos nas áreas de hebiatria e na prestação de serviços públicos destinados aos jovens; estabe-lecimento de mecanismos que favoreçam a divulgação de infor-mações de caráter educativo sobre os aspectos biopsicossociais da juventude; garantia de acesso à rede de serviços de saúde e de assistência social locais.

Dessa forma, a legislação ordinária irá estabelecer uma série de normas programáticas, mas também medidas executáveis no âm-bito da administração pública, da sociedade e das famílias, no sen-tido de assegurar esses direitos aos jovens, inclusive recaindo sob o Ministério Público e o Judiciário o dever de determinar medidas específicas de proteção sempre que os direitos previstos no Esta-tuto forem ameaçados ou violados. Ou seja, o Estatuto da Juven-tude além de instituir direitos aos jovens, os regulamenta e esta-belece mecanismos de proteção, sendo uma verdadeira inovação jurídica do Estado brasileiro para esse segmento tão importante e numeroso de nossa população. Dentre outros direitos previstos no PL 4.529/2004, destaca-se o direito à participação como ele-mento fundante de uma Política Nacional de Juventude.

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O protagonismo juvenil na cultura e nas artes: duas gerações em debate

Ittala Nandi e Alexandre Santini*

Ittala nandi: Se vocês me permitem, quero apresentar um breve trecho do livro “Teatro Oficina: onde a arte não dormia”:

“Nasci na Granja Nandi ou Piave, na 7ª légua na cidade serrana de Caxias do Sul, no Estado do Rio Grande do Sul, no ano de 1942, du-rante a II Guerra Mundial. Quarenta dias antes, meu pai Mássimo Nandi, foi preso como Quinta Coluna, nome que era dado a todos os italianos, alemães, japoneses que, sem provas, eram tidos como simpatizantes do Eixo Ro-Ber-To (Roma – Berlim – Tóquio), por-que supostamente estariam contra os Aliados , ou seja, os ame-ricanos e os russos, e o Brasil de Getúlio Vargas, que ficou desse lado, felizmente, diga-se de passagem, mas o que não justificava as ditas perseguições.

Guerrra é guerra e ela existia dentro das nossas casas de estran-geiros e filhos deles: Edith, minha mãe, estava com oito meses de gravidez na noite em que meu pai foi preso. Quando o carregaram para a prisão, ela entrou em desespero e todo o seu corpo come-

*Diálogo entre Ittala Nandi, atriz, professora e realizadora do Festival do Paraná de Cinema Ibero-Americano, e Alexandre Santini, ator, dramaturgo e produtor cultural (na ocasião era coordenador-geral do Instituto Circuito Universitário de Cultura e Arte – CUCA/UNE), durante o seminário “Memória do Protagonismo da Juventude Brasileira”, realizado dia 12 de junho de 2009, na Faculdade Anhangue-ra, Campinas (SP)

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çou a tremer, principalmente a barriga, numa espécie de convul-são nervosa. Quem estava lá dentro era eu, que encontrei essa for-ma de demonstrar o meu protesto pelo o que estava acontecendo. Só não houve um parto prematuro, porque, claro, saquei que do lado de fora a coisa estava preta mesmo.”

Minha trajetória está ligada à história de cultura dentro do mo-vimento jovem brasileiro. Atuar é ação, é agitar, é agir. A partir desse aprendizado que eu tive muito cedo na barriga da minha mãe, nunca consegui me afastar do movimento revolucionário e das lutas da juventude brasileira. Não só no Brasil, mas também na França. Em maio de 1968, eu estava em Paris como bolsista do governo francês. Estava guerreando nas ruas, desviando das bombas de efeito moral, do gás lacrimogêneo da polícia france-sa. Muitos foram hospitalizados. Nasci durante a Segunda Guerra Mundial, vivenciei 1968 e também a ditadura brasileira. Quando os militares chegaram ao poder, minha geração tinha vinte e pou-cos anos. E logo se instaurou o Ato Institucional número 5.

Naquele momento, eu fazia parte do Teatro Oficina, um grupo que tinha uma atitude revolucionária, ativista, jovem. Seu elenco tra-balhava a resistência usando uma linguagem bastante brasileira, procurando o jeito de nosso povo. Tal caminho era diferente dos adotados pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), bem como do teatro Maria Della Costa, que sofria as influências do teatro euro-peu, ou seja, um teatro colonizado.

Em síntese, a batalha que travamos naquele momento, sobrevi-vendo à ditadura, era uma batalha por nosso ideal: ser brasileiro. A antropofagia do Oswald de Andrade e o modernismo tiveram uma influência fundamental em nossas vidas. Queríamos que a antropologia fosse comida pela antropofagia.

No Brasil, pouco se estuda o movimento modernista, o que talvez nos tornasse um pouco mais tinhosos e revoltados contra certos comportamentos sociais que vivemos. Todos aqui nasceram du-rante a ditadura, que formou três, quatro gerações. A ditadura não é um casaco que a gente tira quando um decreto acaba com ela. A ditadura é uma doença que o Brasil vai levar muito tempo

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para curar. Estamos ainda numa democracia muito primitiva, que pouco descobriu sobre nossa própria história. A ditadura, de cer-ta forma, permanece entre nós com muita violência. Posso dizer isso por minha própria experiência de ativista. Tudo o que faço está ligado a esse Estado revoltado, que pintou a barriga da minha mãe. Tenho isso dentro de mim, sou uma revoltada de sobrenome e detesto as injustiças e essa experiência é algo visceral em mim.

Não gosto da política reformista que temos. Nunca consegui com-preender muito bem certos conceitos. Nunca fui universitária; sou contadora e logo depois de formada, fui para o Teatro Oficina, como produtora, contadora e atriz. Sou isso até hoje.

Em 2003, ganhei o título de Notório Saber pelo Ministério da Edu-cação e hoje sou educadora em Artes Cênicas. Todas as participa-ções que faço são voltadas para o espírito da não-acomodação. E detesto partidos, nunca tive nenhum em minha vida. O meu parti-do é não me acomodar às condições em que eu vivo. Nunca estou acomodada, sempre estou querendo mudar.

A partir de 2000, comecei a dar aulas de interpretação na Univer-sidade do Rio de Janeiro. Há 15 anos tenho contato com alunos. Criei em 2005 a Escola Superior Sul-americana de Cinema e Te-levisão, no Paraná, que foi uma revolução. Ainda, há muita coisa pra ser feita, está muito no início. A nossa democracia é muito infantil. Precisamos criar tudo de novo. E com um agravante: a ditadura nos fez supor que tudo estava feito, que tudo estava aca-bado, que o Brasil estava maravilhoso, que não havia mais nada a fazer. E que os nossos filhos tinham que ser bonzinhos, acomoda-dos, estudarem direitinho com professores imbecis, casar, serem bons papais e boas mamães, morrer e se foder! E é isso que ainda vejo em meus alunos. Tenho que batalhar muito para fazer eles se revoltarem porque estão acomodados. Pensam que sua grande revolta está em beber e se drogar no final de semana. Não sou contra as drogas, faço campanha pela liberalização da maconha. A acomodação proposta à nossa juventude é um vício que a acomo-da, que a faz aceitar tudo que existe. A acomodação não leva a ne-nhum tipo de criatividade. E o problema da política brasileira é a absoluta falta de criatividade. Um déjà-vu atrás do outro. Ninguém

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pode sair do caminho traçado, o trilho é aquele.

Todo meu trabalho sempre foi voltado para a arte, sou educadora para a arte. Tudo está interligado à arte porque tudo é arte. Se você vê um lixeiro na rua que limpa muito bem, ele é um artista no que está fazendo. Não esqueçam que a cultura vem antes da educação, são coisas diferentes que às vezes as pessoas confun-dem achando que a educação é anterior à cultura. Mas, o que vem antes é a cultura. A educação é o momento em que começamos a ser domados. E no Brasil, 99% da educação ainda estão repletos dos valores da ditadura. Por isso, repito, é preciso que haja revolta desde as coisas menores até as maiores. Assim, teremos uma ju-ventude mais criativa.

A vida da gente é um eterno representar, nós, os artistas, sabemos disso. O único momento em que somos verdadeiros é quando es-tamos no palco; ali você é verdadeiro quando está mentindo com-pletamente. Aqui fora é uma representação constante, com atores canastrões, que dizem todo tipo de estupidez. Depois a gente chei-ra umas e outras e faz a revolução aqui dentro (na cabeça) e aqui dentro (no útero), no pau, na boceta. Mas não é este o caminho. A grande revolução vem da criatividade própria, de fazer do nosso corpo nosso grande teatro; é fazer sair de dentro dele a criação. A acomodação é assustadora.

Nós somos brasileiros, temos que estudar o nosso povo. E nada melhor do que a gente entrar no Oswald de Andrade, no moder-nismo, na antropofagia, que falava da poesia de exportação, de co-mer o bispo Sardinha e vomitar o que é nosso! A diferença entre canibal e antropófago é que o canibal come para viver, come bra-ço, come perna, come olho. O antropófago comia o coração, para adquirir a sabedoria do outro. Nossos índios eram antropófagos, não canibais. Essa é a nossa origem, é a nossa história que tem de ser estudada, tem de ser trazida à tona para que possamos ser re-volucionários de novo. Que nova revolução vai ser feita? Não im-porta. O que importa é acabar com o marasmo, que nos faz achar que tudo está feito. E nada foi feito. Tudo está no início de novo.

O atraso que a ditadura impingiu ao nosso país é algo absurdo. A

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gente pode estar com o nosso PIB bom, mas isso não interessa, é um engodo, uma mistificação! O que interessa é a nossa cultura, que está sufocada com um monte de balela que vem de fora, en-quanto permanecemos apartados de nossas origens.

Talvez eu não tenha falado de arte, do que devia falar. Mas a mi-nha história na arte é toda voltada ao amor, à loucura boa e cria-tiva que é esse país em sua história desconhecida. O que o Brasil exporta de criação atualmente? Pouquíssima coisa. Nossos filmes estão bons, tecnicamente nunca foram melhores, mas de conteú-dos estranhos. O cinema está buscando encontrar novas formas e fórmulas. Mas essa maldição do mercado, de acreditar que tudo está pronto, que tudo já foi feito, é um massacre.

A única mensagem que queria deixar a vocês é que acreditem que nada, nada foi feito ainda. E as coisas boas que foram feitas estão sendo destruídas por uma mentalidade colonizadora. Estamos vi-vendo um colonialismo pior do que foi o do português quando chegou aqui. Hoje é mais cruel porque é subliminar. Então, se tudo isso que estou dizendo a vocês despertar um pouco do desejo de virar a mesa, é o que importa. Não acreditem em tudo que dizem para que possam ser criativos, entrar na antropofagia, nas origens deste país, na nossa terra. É aí que reside o gérmen da nossa histó-ria e que vai nos possibilitar erguer outra grande história!

Alexandre santini: Não poderia começar a falar sem destacar a minha felicidade, a minha emoção por compartilhar esta mesa com a Ittala Nandi. Pra mim, é uma honra. Considero-a uma gran-de dama do teatro brasileiro. Para mim e para a história da cultura brasileira, ela está no panteão do teatro brasileiro...

Ittala nandi: Dama, não!

Alexandre santini: Como você prefere?

Ittala nandi: Sou uma grande guerreira do teatro brasileiro...

Alexandre santini: Uma grande guerreira, porque dama fica pa-recendo aristocrático. Também acho.

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Ittala nandi: Eu não acredito no mito da estrela, minha gente...

Alexandre santini: É por isso que você está onde está: na nossa história. Quando se pensa nas grandes mulheres do teatro bra-sileiro, falamos de Cacilda Becker, da própria Maria Della Costa, de todas que vieram antes e depois, Fernanda Montenegro, Dercy Gonçalves. Mas temos de reverenciar e colocar nesse mesmo lu-gar a Ittala Nandi, especialmente por ter feito parte de uma gera-ção tão importante para o teatro e para a cultura brasileira que até hoje é uma referência para nós e ilumina o que fazemos. É em homenagem a ela e a essa geração que vou falar sobre a questão do protagonismo da juventude a partir do binômio cultura e ju-ventude.

Estamos pensando sobre o protagonismo da juventude no cam-po da cultura no período histórico dos anos 1960 e 1970. Um dia estávamos fazendo uma entrevista com o cineasta Silvio Tendler e perguntamos: “Quando surge a juventude, enquanto categoria histórica protagonista no Brasil? Tendemos a pensar que é a par-tir dos anos 1960 que a juventude começa a ter um papel protago-nista na história e na cultura”. E ele fala: “Que anos 60, rapaz! Pen-sa em Castro Alves. Castro Alves com vinte e pouco anos, no século 19, era um poeta genial, revolucionário, um jovem”. E não somente na sua obra. Ele morreu muito jovem, com 24 anos, e deixou uma obra vastíssima. Mas além de escritor, foi um militante do seu tempo. Era um estudante engajado, voltado para as lutas sociais, para o abolicionismo, para as questões do seu tempo. Acho que a juventude brasileira tem uma história de protagonismo, de luta, de transformação. É importante que a gente resgate esses ícones, pessoas que fizeram a diferença na trajetória da cultura, na histó-ria, no pensamento, nas artes, na política e que têm nome, cara, identidade. É importante que a gente dê nome àqueles e àquelas que foram importantes na vida brasileira, jovens que tiveram uma atuação destacada na vida cultural do país.

Ítala nandi: Você falou do Castro Alves. Os jovens brasileiros são resistentes. Esta história é muito concreta. Temos, por exemplo, Tiradentes e tantos outros nomes na cultura negra. É disso que falo: do homem brasileiro das ruas, que tem de vir à tona, que tem

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de ressurgir. É como um ritual de candomblé, que também tem de ser revivido porque é parte de uma história que existe e não é nova.

Alexandre santini: É por aí. A gente tem de começar a resgatar nossos símbolos, a construir uma história, uma identidade a partir de momentos, de pessoas e de situações em que a juventude teve esse papel, o que tem a ver também com o fetiche da juventude, a juventude como produto do consumo, da indústria cultural, que é muito do nosso tempo atual. Mas acho que temos de estabelecer um contraponto. Para isso, é importante resgatar a simbologia de determinados momentos da participação da juventude brasileira na história do país. Vou fazer um recorte temporal específico. Em 1958, o Teatro Paulista do Estudante foi criado por dois jovens de 18, 19 anos, que se chamavam Gianfrancesco Guarnieri e Oduval-do Vianna Filho. O Teatro Paulista do Estudante era ligado à União Paulista dos Estudantes Secundaristas (UPES). Ou seja, a partir de uma organização do movimento estudantil se construiu um mo-vimento cultural. Na época chamaram o Rogério Jacob para ser o presidente de honra. A experiência que partiu do movimento es-tudantil teve papel definitivo em toda a trajetória do teatro brasi-leiro que veio na sequência. Logo, com vinte e poucos anos, Guar-nieri escreveu uma peça chamada “Eles não usam black-tie”, a pri-meira em que a classe operária entra em cena como protagonista do drama brasileiro, a primeira vez que o teatro brasileiro aborda a questão da luta de classes pela porta da frente. Eles estavam na Faculdade de Direito no Largo São Francisco, em São Paulo, todos eram estudantes de Direito, faziam parte do Centro Acadêmico 11 de Agosto, que ainda existe. Lá estavam Zé Celso Martinez Corrêa, Amir Haddad, Renato Borghi, César Vieira, toda uma geração que definiu a trajetória do teatro brasileiro nesses últimos 50 anos. Sua iniciação na vida cultural, na vida artística, se deu através do movimento estudantil, pela participação juvenil na vida política e cultural do país.

Ítala nandi: Eles podem não ter mudado o governo, mas muda-ram os costumes pela importância do movimento de grupos como o Opinião, o Arena, o Oficina, que vieram do movimento estudan-til. Mudar a ética e a estética é uma grande revolução.

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Alexandre santini: Exatamente. A gente vem acompanhando essa trajetória e percebendo essa importância. Por exemplo, o pessoal do Teatro Oficina recuperou Oswald de Andrade, o pensa-mento do modernismo brasileiro, a antropofagia, a visão de uma produção intelectual brasileira, descolonizada, ligada às fontes populares da nossa cultura...

Ítala nandi: Se a gente não tivesse revivido o Oswald de Andrade, não teria o Caetano, o Gil, o tropicalismo, não haveria a música moderna. A música brasileira seria um estafermo de acomodada se não fossem os modernistas, os tropicalistas que a ditadura fez de tudo para mostrar que eram uns merdas.

Alexandre santini: Falo isso para as pessoas que estão aqui hoje para que não sintam esse processo como algo totalmente distante de suas vidas. Eles fizeram isso aos vinte e poucos anos. O Glauber Rocha tinha 24 anos quando ganhou a Palma de Ouro em Can-nes, com “Deus e Diabo na Terra do Sol”. É preciso trazer esses momentos da história e torná-los algo presente e em constante diálogo com a gente, como se a gente tivesse hoje necessidade de tomar contato com essa experiência histórica. A ditadura, como a Ítala bem lembrou, provocou um grande corte nesse processo e impediu o contato mais direto, a passagem de bastão daquela geração para esta geração; é, de fato, como se tivéssemos de co-meçar do zero.

Outro corte: você tem a implantação da ditadura, em 1964, junto com a entrada no Brasil da indústria cultural, ou seja, a televisão, o cinema em grande escala, a produção de cultura de massa no cam-po da publicidade, da mídia e dos meios de comunicação. Ela se instala e se consolida no período ditatorial. Com a ofensiva ideoló-gica por parte do Estado, do regime militar, do mercado, o conteúdo cultural que passou a ser produzido e consumido no país via in-dústria cultural rompia com aquele caminho que a geração anterior estava desenvolvendo, no sentido de construir, através da cultura, uma identidade nacional popular, de recuperar o pensamento mo-dernista e o conceito de antropofagia. A juventude de hoje é vítima desse corte, de não ter estabelecido um diálogo com aquilo que vi-nha sendo produzido antes e durante a ditadura militar.

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Se analisarmos para onde é direcionado o marketing da indústria cultural, dos meios de comunicação e da publicidade, veremos que ele tem a juventude como ícone do mercado. O corpo, o ca-belo, a roupa, tudo é direcionado para uma visão ideológica da ju-ventude. Esse é o jogo do espelho que temos de entender para es-tabelecer um contraponto cultural porque a juventude é, de certa forma, protagonista no sentido negativo que esse termo pode ter...

Ítala nandi: Vítima!

Alexandre santini: Protagonista-vítima porque ao mesmo tem-po em que se vê o anúncio da televisão de que a liberdade é uma calça azul, velha e desbotada, vivemos um período em que a ju-ventude é identificada com os padrões de consumo da indústria cultural. Estamos vivendo um período de ausência de uma produ-ção artística, estética, cultural, feita pela juventude com um con-teúdo mais crítico, mais propositivo e de questionamento dessa realidade. Por isso, é importante que a gente recupere, conheça e reivindique aquilo que foi produzido de mais consequente, de mais importante, de mais revolucionário pela juventude no cam-po da cultura deste país. Por isso que é importante e bonito estar aqui ao lado de uma figura eternamente jovem, como Ittala Nandi.

Ittala nandi: É importante que vocês compreendam uma coisa: nada está acabado, está tudo no início. Não se sintam como se tudo tivesse sido feito. Isso é a coisa mais antirrevolucionária que pode haver. Nada está acabado. A nossa democracia é um bebê de colo. Precisa ser amamentada, precisa crescer. E vai depender de milhões de tentativas novas. Mas o importante é acreditar que nada está feito. Essa história de o jovem ser mostrado na televisão como vítima serve apenas para acomodá-lo. Está tudo começan-do. Não podemos é ficar na inércia.

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Na contramão da produção teatral: o Teatro Oficina

Miliandre Garcia de Souza*

Na década de 1960, o Teatro Oficina destacou-se no cenário brasi-leiro por negar a estética tradicional do teatro, fundamentada no modelo aristotélico, questionar a produção teatral nacional, ca-racterizada pela estética importada ou pela cultura de esquerda, desafiar o público convencional do teatro, constituído pela platéia burguesa, e propiciar a emergência da estética tropicalista, ins-pirada no movimento antropofágico de Oswald de Andrade. Tais características, no entanto, não surgiram no momento de criação do grupo, mas se consolidaram no curso da década de 1960.

Fundado em 1958, o grupo de caráter amador congregava estu-dantes de nível superior do Centro Acadêmico 11 de Agosto da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Para manter o núcleo ativo e montar as peças teatrais, o grupo Oficina apresenta-va-se em residências familiares. Uma prática comum para famílias abastadas que podiam pagar por teatro em casa e uma fonte de renda para grupos amadores que dispunham de poucos recursos. Nas apresentações em domicílio, junto com atores do grupo Ofi-cina iam também músicos da bossa nova. Segundo José Celso, “a gente fazia espetáculos em festas, em algumas casas de grã-finos conhecidos de uma ou outra pessoa do grupo. E assim a gente ar-ranjava grana pro trabalho e pra gente”.1 Houve inicialmente uma aproximação do Teatro Oficina com o elenco do Teatro de Arena e também com ícones da música engajada, a exemplo de Carlos Lyra

1 CORRÊA, Entrevista..., p. 190.

*mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (2002) e doutora em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008)

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e Geraldo Vandré que participaram das produções do Teatro de Arena e integraram o núcleo musical do CPC (Centro Popular de Cultura). Isso evidencia que no final da década de 1950 ainda não havia uma divisão clara entre esses núcleos de produção.

Com o dinheiro dessas apresentações, o grupo Oficina desligou-se do centro acadêmico para fundar a companhia teatral em 1961. Nos primeiros anos de atividade teatral, a equipe do Oficina apos-tou na produção de peças de autoria dos próprios integrantes como Vento Forte para Papagaio Subir, de José Celso Martinez Corrêa; A Ponte, de Carlos Queiroz Telles; A Incubadeira, de José Celso Martinez Corrêa, e na direção de textos de autores estran-geiros como Jenny no Pomar, de autor norte-americano, e O Gui-chet, de Jean Tardieu.2

Para Edélcio Mostaço, o desprezo dos estudantes universitários pela produção teatral vigente associado à desconfiança dos pro-fissionais de teatro acerca do grupo de teatro amador, ambos ali-mentados pelo sucesso repentino de Vento Forte para Papagaio Subir e súbita notoriedade do grupo Oficina, resultaram no con-senso de que se tratava da atividade de “intelectuais esnobes”.3

Na passagem da década de 1950 para 1960, o grupo Oficina ade-riu às ideias existencialistas de Jean-Paul Sartre e montou duas peças do filósofo francês: As Moscas, em 1959, e A Engrenagem, no ano seguinte. A estreia em São Paulo de A Engrenagem, em 16 de setembro de 1960, coincidiu com a visita ao Brasil de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, no período de 15 de agosto a 1º de novembro de 1960. Nessa época, o filósofo francês exerceu forte influência sobre parte da intelectualidade brasileira, sobretudo ao apresentar uma alternativa possível de engajamento político que articulava a participação na sociedade com a autonomia de pensa-mento; ou seja, a luta pela transformação social não se restringia à adesão partidária ao comunismo soviético.

O engajamento intelectual desvinculado da ideologia soviética

2 PEIXOTO, Fernando. Teatro em aberto. São Paulo: Hucitec, Primeiro Ato, 2002. p. 190.3 MOSTAÇO, Op. cit., p. 51.

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atendia aos anseios do grupo de teatro experimental que dese-java discutir os problemas da sociedade burguesa sem, contudo, reproduzir as diretrizes do Partido Comunista, da Internacional Comunista e integrar a “hegemonia cultural de esquerda”. Numa entrevista, José Celso afirmou que começou a ler Sartre com força e medo porque a liberdade de escolha se, por um lado, instiga-va os jovens da época, por outro, amedrontava também4. Quan-to à encenação de A Engrenagem, Augusto Boal não só traduziu e adaptou o texto em parceria com José Celso Martinez Corrêa como também dirigiu a peça no grupo Oficina.

Em fins da década de 1950, o Teatro de Arena cedia o espaço físi-co para o grupo Oficina apresentar-se em horários alternativos à programação oficial. No formato em arena, o grupo Oficina apre-sentou A Incubadeira, de autoria de José Celso Martinez Corrêa e direção Amir Haddad. A peça foi bem recebida pelo público e crí-tica e ganhou vários prêmios no Festival do Teatro do Estudante, em Santos.

Além das direções de Augusto Boal e da utilização do espaço circu-lar, o grupo Oficina e o Teatro de Arena dividiram a produção das peças Fogo Frio, em 1960, e José, do Parto à Sepultura, em 1961. De autoria de Benedito Rui Barbosa e direção de Augusto Boal, a peça Fogo Frio revelou-se “mais uma continuidade do trabalho do próprio Arena do que as preocupações do grupo dirigente do Oficina, a preocupação de trazer para o palco as contradições da sociedade, iniciando um diálogo sobre as condições objetivas de existência dilacerada do povo brasileiro”.5 No caso de José, do Par-to à Sepultura, a peça foi escrita por Augusto Boal, mas dirigida por Antônio Abujamra.

A essa época, a ruptura do grupo Oficina com a produção teatral vigente, caracterizada pelo padrão estético do TBC, com o públi-co tradicional de teatro, constituído pela plateia burguesa, e com a “hegemonia cultural de esquerda”, representada pelo Teatro de Arena e Grupo Opinião, não se evidenciava com nitidez.

4 CORRÊA, Entrevista..., p. 190.5 PEIXOTO, Teatro em aberto..., p. 191.

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Desde a criação do grupo, em 1958, até a extinção da companhia, em 1972, o elenco do Oficina apresentou divergências importan-tes. Como afirmou José Celso, “as pessoas pensam que o Oficina foi uma coisa só, que no Oficina tudo se dava como eu queria ou pra onde eu tendia. Nada, tinha diversas tendências, apontando para um lado ou para outro”.6 O primeiro impasse referiu-se à ins-titucionalização do grupo: enquanto alguns preferiram permane-cer como grupo amador, outros almejavam ingressar na carreira profissional. Às divergências acerca do projeto de profissionali-zação do grupo agregou-se a oportunidade de ingresso no Teatro de Arena.

No início de 1960, Augusto Boal formalizou o convite para o grupo Oficina integrar o elenco do Teatro de Arena. Nessa ocasião, o gru-po Oficina apresentava o seguinte dilema: manter-se independen-te no circuito teatral ou anexar-se à companhia teatral existente? Optou-se, então, por manter a autonomia e investir na profissio-nalização sem, contudo, afastar-se de Augusto Boal e do Teatro de Arena. Segundo Fernando Peixoto, “a opção vencedora, em certo sentido, é a de profissionalizar-se e permanecer como um grupo autônomo, mantendo uma vinculação ideológica, não sem diver-gências, com o trabalho do Arena e de Boal”.7

No final dos anos 1950, as diferenças entre os núcleos teatrais do Arena e do Oficina situavam-se não só na questão formal ou no impasse político como também no plano da sociabilidade. Segun-do José Celso, a equipe do Arena achava o elenco do Oficina muito psicológica, emocional demais e, além disso, tinha a questão do homossexualismo.8

Sobre a fusão, Chico de Assis relatou que propôs uma fusão entre o Arena e o Oficina, mas nenhum dos dois grupos aceitou.9 Como afirmou Izaías Almada, “havia uma ligação entre os dois grupos, no nascimento do Oficina, mas não necessariamente um entrosa-mento perfeito”.10

6 CORRÊA, Entrevista..., p. 196.7 PEIXOTO, Teatro em aberto..., p. 191.8 CORRÊA, Entrevista..., p. 191.9 In: ALMADA, Op. cit., p. 84.10 Idem, p. 84.

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Para Edélcio Mostaço a tentativa de aproximação do Teatro de Are-na com o grupo Oficina atestou a incapacidade de união de núcleos com propostas estético-ideológicas distintas. Como principal críti-co do engajamento teatral, o autor afirmou que o Teatro de Arena nutria preconceito contra as manifestações artísticas que não fos-sem ao encontro da cultura de esquerda ou que fugissem da idéia de teatro popular, com exceção de Augusto Boal, cuja capacidade intelectual e distanciamento ideológico conquistou a simpatia do grupo.11 Apesar das divergências entre os dois grupos, o elenco do Teatro Oficina tinha muito respeito por Augusto Boal.

A natureza das divergências, portanto, não se encontra no grupo que não aceitou a fusão, pois parece que ambos refutaram a ideia, mas nas propostas que se distanciavam não apenas no quesito ideológico como também sob a perspectiva estética.

Depois de seis meses de intenso trabalho, desde arrecadação de fundos até problemas com a censura, o grupo Oficina transfor-mou-se em companhia teatral em 1961, ano da inauguração da sede da rua Jaceguai, antigo Teatro Novos Comediantes, e da es-treia da peça A Vida Impressa em Dólar, de Clifford Odetts. A inau-guração da sede própria não assinalou ruptura com o Teatro de Arena. Em 1962, Augusto Boal dirigiu no Teatro Oficina a peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams. Essa foi a última contribuição de Augusto Boal no Teatro Oficina.

Paulatinamente, o grupo Oficina delineava projeto próprio e afas-tava-se das ideias preexistentes. Em manifesto intitulado “Veja hoje porque amanhã vai ser diferente” e publicado no jornal O Es-tado de S. Paulo, o grupo Oficina recusava a regressão ao “teatro estatístico”, a reprodução do “catecismo tacanho” e a separação de grandes temas de natureza moral, política e filosófica dos dramas humanos. Para os integrantes do grupo, “o teatro seria, portan-to, uma Oficina de pesquisa contínua para exploração do nosso potencial de recém-chegados, em benefício de uma constante re-novação dramática. O Oficina nos transformou e ainda nos está transformando. De amadores em profissionais. De inconscientes na interpretação à adoção de uma consciência de representação 11 MOSTAÇO, Op. cit., p. 52.

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pelo aprendizado de Stanislavski. De um simplismo impressionis-ta em nossa ideologia a uma constatação da complexidade de uma arte engajada”.12

Nessa ocasião, Eugênio Kusnet ingressou no Teatro Oficina. Nas-cido na região dos Bálcãs e formado em interpretação em Mos-cou, Eugênio Kusnet chegou ao Brasil em 1926, mas só estreou no teatro nacional em 1951 quando aceitou o convite do encenador polonês Zbigniew Ziembinski para participar do elenco da peça Paiol Velho, de Abílio Pereira de Almeida. No período de 1951 a 1962, Eugênio Kusnet integrou o elenco de montagens importan-tes no TBC e no Teatro de Arena e atuou na direção de espetáculos teatrais no Teatro Popular de Arte e no Teatro Maria Della Costa.

Em 1962, Eugênio Kusnet não só integrou o elenco do Teatro Ofi-cina como também ministrou curso de interpretação para turmas iniciantes e profissionais da área. Para Fernando Peixoto, a admis-são de Eugênio Kusnet na equipe do Teatro Oficina associou-se ao “ciclo russo-soviético” que intercalou a montagem de autores russos com a encenação de peças nacionais, a exemplo de Quatro Num Quarto, de Valentin Kataiev (1962), Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki (1963), Sorriso de Pedra, de Pedro Bloch (1963), Andorra, de Max Frisch (1964), Toda Donzela Tem Um Pai Que é Uma Fera, de Gláucio Gill (1964), Aconteceu em Irkutsk, de Alexei Arbusov (1965) e Os Inimigos, de Máximo Gorki (1966). Dessa re-lação de autores, apenas Max Frisch é de nacionalidade alemã, os demais são russos ou brasileiros.

No final de 1962 e início de 1963, a encenação da peça Quatro Num Quarto, comédia que misturava sexo e política, apresentou-se como fonte de lucros e propiciou tranquilidade financeira para o Teatro Oficina planejar as próximas atividades. Segundo Fer-nando Peixoto, quando Eugênio Kusnet apresentou, traduziu e adaptou o texto russo, Maurice Vaneau iniciou a direção do espe-táculo e o Teatro Oficina estreou a comédia teatral ninguém apos-tava em sucesso, “era somente um tapa-buraco”, afirmou o ator do

12 Apud NANDI, Ítala. Teatro Oficina: onde a arte não dormia. Rio de Ja-neiro: Nova Fronteira, 1989. p. 25-26.

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elenco.13 Ao contrário das previsões, a peça fez grande sucesso e deu tempo para o grupo planejar o espetáculo seguinte.

Como primeira opção cogitou-se solicitar subsídio ao SNT para montar A Torre em Concurso, de Joaquim Manuel de Macedo. Com a revogação do edital suspenderam-se os ensaios do clássico bra-sileiro e partiu-se para a representação de Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki. Na época, a montagem do grupo Oficina se con-trapôs à produção teatral vigente. Para José Celso, enquanto o te-atro nacional-popular almejava “fazer teatro sobre o povo, sobre a classe popular, classe que não era a deles, nem do público deles”, em Pequenos Burgueses “a gente se abria como classe, abria no palco nossas contradições de classe e se usava como matéria do próprio trabalho. Acho que essa foi nossa diferença básica”.14

O êxito de público a partir do 17º dia de apresentação surpreendeu o elenco da peça que havia cogitado retirar o espetáculo de cartaz, pois no segundo dia compareceram 29 pessoas, no quinto dia ape-nas nove e nos primeiros quinze dias uma média de 40 espectado-res por sessão. Essa pequena frequência indicava fracasso de públi-co e prejuízo para a companhia quando 17º dia compareceram 193 espectadores para assistir ao espetáculo. Êxito sem precedentes no Teatro Oficina. Da estreia em 30 de agosto de 1963 até o golpe em 1º de abril 1964, o elenco fez 225 apresentações nas cidades de São Paulo, Santos, Santo André e Moji das Cruzes e reuniu cerca de 27 mil espectadores. No dia seguinte ao golpe a peça recebeu 26 espectadores e no dia 3 de abril o espetáculo foi suspenso pela censura estadual. Na ocasião, o grupo escondeu José Celso, Rena-to Dobal e Fernando Peixoto por precaução num sítio próximo. Em menos de um mês, com a situação sob controle, os três integrantes retomaram as atividades do grupo e, depois de alguns meses, com a substituição do hino da Internacional pela Marselhesa, Pequenos Burgueses continuou a trajetória interrompida.15

Na década de 1960, a sucessão de apresentações da peça Peque-nos Burgueses evidenciou o processo de transformação do Teatro

13 PEIXOTO, Teatro em aberto..., p. 204.14 CORRÊA, Entrevista..., p. 194.15 PEIXOTO, Teatro em aberto..., p. 206-207 e NANDI, Op. cit., p. 38-39.

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Oficina “do realismo psicológico e social e uma versão quase dis-tanciada, que passa a uma incorporação do radicalismo antropo-fágico até, surpreendentemente, servir de veículo a uma monta-gem irretocável de anárquica contracultura”.16

O projeto de preparação da peça de Máximo Gorki ocorreu simul-taneamente à realização do curso de interpretação de Eugênio Kusnet. A análise detida do método de Stanislavski aliada à mon-tagem da peça do autor russo transformou o Teatro Oficina num dos melhores grupos teatrais do país e Pequenos Burgueses num marco histórico da encenação brasileira.17 Segundo Fernando Peixoto, Pequenos Burgueses alcançou o ponto extremo de apro-fundamento no realismo psicológico de Konstantin Stanislavski e anunciou a etapa seguinte em direção ao teatro dialético de Ber-tolt Brecht.18

Com a interrupção temporária de Pequenos Burgueses, o grupo lançou, no primeiro semestre de 1964, a comédia Toda Donzela Tem Um Pai Que é Uma Fera, alternativa para manter o teatro em funcionamento e financiar o pessoal escondido e, no segundo se-mestre, o drama Andorra, resposta ao golpe militar e introdução ao universo brechtiano. Nessa ocasião, “Brecht começa a ser de-vorado nos ensaios. Mas o texto básico para penetrar no mecanis-mo da perseguição é o ensaio Reflexões sobre o racismo, de Sartre, livro que carregávamos conosco o tempo todo”.19 Ou seja, o Teatro Oficina adentrou no universo de Bertolt Brecht por intermédio da obra de Jean-Paul Sartre.

Depois da realização do curso de interpretação, do sucesso de Pe-quenos Burgueses, da interrupção temporária da peça, da excur-são do elenco para o Uruguai, da estreia do Studio Um com a peça Aconteceu em Irkutsk e da introdução ao teatro épico de Bertolt Brecht, a estreia de Os Inimigos, em 22 de janeiro de 1966, en-cerrava o “ciclo russo-soviético”. A essa época, segundo Fernando Peixoto, crescia, no interior do grupo, um processo de politização

16 PEIXOTO, Teatro em aberto..., p. 207.17 MOSTAÇO, Op. cit., p. 73.18 PEIXOTO, Teatro em aberto..., p. 203.19 Idem, p. 210.

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consequente e responsável, marcado inclusive pela presença de militantes do Partido Comunista Brasileiro. Alguns de nós tive-mos a oportunidade de viajar por países da Europa, sobretudo regressando com o fascínio da descoberta do projeto artístico-político de Brecht, conhecido na plateia do Berliner Ensemble, na República Democrática Alemã.20

A introdução ao universo brechtiano coincidiu com o incêndio do Teatro Oficina em 31 de maio de 1966. Em Paris, o ator Fer-nando Peixoto recebeu da atriz Etty Fraser o seguinte telegrama: “INCÊNDIO DESTRUIU TEATRO PONTO VENHA RECONSTRUIR TUDO ABRAÇO ETTY”.21 Para reconstruir a sede destruída pelo incêndio, o Teatro Oficina revisitou antigos sucessos como Qua-tro Num Quarto e contou com a solidariedade de profissionais do teatro paulista como Cacilda Becker e representantes da política nacional como Paulo Pimentel. Marco na trajetória do Teatro Ofi-cina, a reconstrução do teatro não foi apenas física, mas também simbólica, afirmou Fernando Peixoto, pois propiciou ampla revi-são no processo de trabalho. “O incêndio seria o momento de re-descobrir tudo”.22

Com o golpe militar, o episódio do incêndio e a falta de perspecti-va, o grupo do Oficina encontrava-se desmotivado com a repetição do repertório que não dialogava com o momento sócio-político nem tampouco oferecia atitude nova ou transformadora.23 Nessa ocasião, o grupo do Oficina viajou para o Rio de Janeiro onde as-sistiu às aulas de filosofia, política e cultura de Leandro Konder e realizou laboratórios de interpretação com Luiz Carlos Maciel, de quem o Teatro Oficina recebeu a indicação do texto O Rei da Vela e do teatro de Oswald de Andrade como também as primeiras orientações no trânsito da contracultura. Como afirmou José Cel-so Martinez Corrêa, “sem o golpe militar, sem o desgaste da festi-vidade pós-golpe, sem talvez o incêndio do Teatro Oficina, que nos obrigou a rever nosso trabalho anterior em nossas remontagens, sem as reflexões de todos os sentidos, desde o político até o es-

20 PEIXOTO, Teatro em aberto, p. 204.21 Idem. p. 213.22 Idem, p. 194.23 Idem, p. 194-195.

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tético mais imediato, e principalmente sem o enfado absoluto de tudo que fizemos até então, como forma e conteúdo, O Rei da Vela talvez não tivesse existido” 24.

Em 29 de setembro de 1967, a estreia de O Rei da Vela sintetizou o projeto artístico do Teatro Oficina que, em linhas gerais, visa-va discutir o padrão comportamental apresentado pelas plateias burguesas, questionar o engajamento artístico praticado por gru-pos expoentes do teatro nacional-popular como Teatro de Arena e Grupo Opinião, criticar o padrão estético propagado pelo TBC, resgatar as manifestações artísticas consideradas legítimas ex-pressões da cultura brasileira como o espetáculo circense, a revis-ta musical e os concertos de ópera, restaurar a “linha evolutiva” da cultura brasileira iniciada com a Semana de 1922 e interrompida pela geração de 1945, e, por fim, inaugurar o tropicalismo.

A estreia do espetáculo causou estranheza no público. A apresen-tação terminou num silêncio desconcertante, com apenas uma pessoa batendo palma.25 Segundo José Celso, O Rei da Vela “agride intelectualmente, formalmente, sexualmente, politicamente. Isto é, chama muitas vezes o espectador de burro, recalcado e reacio-nário. E a nós mesmos também. Ora ela não podia ter a adesão de um público que não está disposto a se transformar”.26

A crítica do grupo Oficina ao padrão estético adotado pelo TBC e ao projeto de teatro engajado atribuído ao Teatro de Arena e ao grupo Opinião concentrava-se na eleição do público alvo. Ao afastar-se da função social do teatro como instrumento de educa-ção popular (nesse grupo José Celso colocou o Teatro de Arena) ou como porta-voz do “falso proletariado” (nessa categoria Edél-cio Mostaço situou o Teatro Opinião), o Teatro Oficina buscava o caminho da provocação do público e a ruptura com a cultura de esquerda. Segundo José Celso, “o teatro não pode ser um instru-mento de educação popular, de transformação de mentalidades 24 CORRÊA, José Celso Martinez. A guinada de José Celso. Revista Ci-vilização Brasileira, Rio de Janeiro, a. 4, n. 2, p. 115-129, jul. 1968. Entrevista realizada por Tite de Lemos. p. 120-121.25 Idem, p. 198.26 Idem, p. 127.

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na base do bom meninismo. A única possibilidade é exatamen-te pela deseducação, provocar o espectador, provocar sua inteli-gência recalcada, seu sentido de beleza atrofiado, seu sentido de ação protegido por mil e um esquemas teóricos abstratos e que somente levam à ineficácia. Num momento de desmistificação, o importante é a procura de caminhos que levem a ações novas. Neste momento, portanto o sentido da inovação, da descoberta, do rompimento com o passado no campo de teatro deve ecoar, ser o reflexo e ao mesmo tempo refletir todo um esquema de projetos e de conscientização de nossa realidade”.27

Em linhas gerais, enquanto o TBC buscava satisfazer o gosto das plateias burguesas e o Arena e o Opinião almejavam entrar em contato com as classes populares, o Oficina pretendia provocar as classes médias que frequentavam as salas de teatro. Assim, “ao eleger a ótica da burguesia (que era, afinal, o público), o Oficina põe em xeque o ideário solapador de distinções classistas da he-gemonia cultural. Os três grupos aqui enfocados dividiam o mes-mo público; só que o Oficina optou por não mistificá-lo como os outros dois”.28

De qualquer forma, essa relação com o público não se estabeleceu de imediato com a criação do grupo universitário, mas se cons-truiu aos poucos com o amadurecimento do Teatro Oficina. Como afirmou José Celso em entrevista a José Arrabal, o Teatro Oficina começou com a negação de tudo para só depois delinear um pro-jeto próprio.29

Esse menosprezo pela produção teatral brasileira da década de 1940 em diante levou o Teatro Oficina a procurar a “linha evolu-tiva” da cultura nacional e buscar fontes de inspiração nas mani-festações artísticas do início do século. Nesse sentido, o teatro de Oswald de Andrade adequava-se perfeitamente às aspirações do grupo Oficina, pois “ele descobre uma forma de expressão total-mente brasileira, um “pop” brasileiro, quando ainda não se falava em “pop”. Nós não podemos ter um teatro na base dos compensa-

27 Idem, p. 117.28 MOSTAÇO, Op. cit., p. 88.29 CORRÊA, Entrevista..., p. 197.

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dos do TBC, nem da frescura da comedia dell’arte de interpreta-ção, nem de russismo socialista dos dramas piegas do operaria-do, nem muito menos do joanadarquismo dos shows festivos de protestos. Nossa forma de arte popular está na revista, no circo, na chanchada da Atlântida, na verborragia do baiano, na violência de tudo que recalcamos e do nosso inconsciente. É isso que temos que devorar e esculhambar”.30

Nessa sucessão de rupturas, a peça O Rei da Vela transformou-se em “manifesto” do Teatro Oficina e Oswald de Andrade em fon-te de inspiração. Segundo José Celso, “nós procurávamos uma peça que traduzisse toda nossa vontade de rompimento conos-co mesmo. Fizemos, no grupo, uma espécie de revolução cultu-ral. Principalmente num laboratório, espécie de psicoterapia do grupo que tivemos no Rio com Luiz Carlos Maciel. Faltava o tex-to. O Rei da Vela foi encontrado. E por isso passamos a chamá-lo de nosso “manifesto””.31

Nessa época, as produções teatrais sofriam interferências ex-ternas à criação artística, a exemplo da censura de costumes re-alizada pelo SCDP, do controle policial efetuado pelo DOPS e do monitoramento extra-oficial de organizações clandestinas como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Em outubro de 1967, quatro agentes policiais, dois do SCDP e dois do DOPS, invadiram o Teatro Oficina com a missão de apreender um canhão de ma-deira e um sorvete de plástico do cenário de O Rei da Vela e, em última instância, intimidar o diretor da peça.32

O trabalho seguinte de José Celso, a idealização do espetáculo Roda Viva radicalizou as propostas estéticas de O Rei da Vela. Em 1968, Roda Viva estreou primeiro no Rio de Janeiro, no Teatro Princesa Isabel, em seguida, em São Paulo, no Teatro Ruth Esco-bar.

A direção de José Celso Martinez Corrêa, com cenografia e figu-

30 CORRÊA, A guinada..., p. 123.31 Idem, p. 121.32 PACHECO, “O teatro e o poder”. In: ARRABAL; LIMA, Anos 70..., p. 81.

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rino de Flávio Império, transformaram o texto de Chico Buarque de cerca 40 minutos de leitura corrida, que tratava da vida de um ídolo da canção popular manipulado pela indústria fonográfica e pelos veículos de comunicação, num espetáculo de quase 3 horas de duração, que aprofundava a crítica à sociedade de consumo representada pelos espectadores presentes e radicalizava o con-tato entre elenco e plateia.

Com o principal objetivo de mexer com a passividade da plateia, a criação de Roda Viva lançou mão de todos os elementos possí-veis: mímicas pornográficas, indumentárias de sacerdotes, uni-formes de soldados, cenas de homossexualismo, símbolos da so-ciedade de consumo, fígado cru etc. Além da manipulação desses símbolos, o espetáculo subvertia a relação palco-plateia, descon-certando os espectadores com as longas cenas de silêncio e inco-modados com os atores que pediam para assinarem manifestos, faziam perguntas embaraçosas, encaravam, chacoalhavam e até se jogavam sobre as pessoas sentadas.

A utilização de expressivo universo simbólico associado à supos-ta agressividade da peça despertou reações antagônicas, desde entusiastas que se surpreenderam com os resultados do espetá-culo até detratores que se escandalizaram com a ousadia da peça. Impressionado com a riqueza de detalhes e a crítica mordaz, Marco Antônio de Menezes, crítico do Jornal da Tarde, concluiu: “José Celso, na realidade, mais que dirigir, celebrou Roda Viva”.33 Yan Michalski, por sua vez, comparou o trabalho de José Celso com o comportamento de uma criança: a “atitude intelectual do encenador de Roda Viva é comparável à atitude de uma criança de três anos que faz xixi no meio de um salão cheio de visitas e fica espiando com curiosidade a reação refletida no rosto dos pais e dos convidados”.34

Para Anatol Rosenfeld, o artifício da violência só tinha sentido no teatro quando se constituía em elemento estético e não “prin-cípio supremo”. Desse modo, o teórico alemão e também crítico

33 MENEZES, Marco Antônio de. Roda Viva, de Francisco Buarque de Holanda. Jornal da Tarde, São Paulo, 2 fev. 1968. Divirta-se, p. 1.34 In: CORRÊA, Entrevista..., p. 199.

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de teatro considerou, no ensaio “Teatro Agressivo”, que a mera provocação de Roda viva, por si só, representou sinal de impo-tência, ou seja, “é descarga gratuita e, sendo apenas descarga que se comunica ao público, chega a aliviá-lo e confirmá-lo no seu conformismo”.35 Na interpretação de Paulo Francis, O Rei da Vela e Roda Viva revelaram o desespero do pequeno-burguês, pois atacavam as banalidades da ética cristã, as pretensões do capita-lismo e as homilias da classe dirigente, mas não empreenderam uma análise profunda da sociedade capitalista nem tampouco apresentavam soluções para os problemas apontados.36

Essa recepção crítica da peça Roda Viva explica-se, segundo José Celso, pelo predomínio do pensamento acadêmico e intimista e pelo ambiente “super-careta”, “super-intelectual” e “super-so-cial-democrata” que predominavam nos campos do teatro e da política, respectivamente.

Nesse cenário solidificado buscava-se “o nascimento de uma coisa nova”, “o nascimento de outro teatro”.37 Para José Celso, a emer-gência desse novo teatro dependia da constituição de uma men-talidade nova que influenciasse os atores, os cenógrafos, os dire-tores, o público e também a crítica. Nessa busca incessante por experiências inéditas, a crítica vigente não correspondia ao novo teatro porque, de um lado, os críticos não analisavam a encenação em si, mas projetavam um espetáculo ideal,38 de outro, ao buscar categorias preexistentes para enquadrar o espetáculo, a crítica te-atral invalidava o caráter inovador das criações artísticas.39

Em suma, o diretor do Teatro Oficina e expoente da estética tro-picalista julgava inadequados à apreensão do novo teatro os ins-trumentos utilizados pela crítica teatral da época, afinal, dizia ele, “dirigir não é como no tempo do TBC, manter o equilíbrio dos atos, iluminar direitinho, fazer o ator falar impostado, dar ritmo aqui e ali, meter uns cenários bem pesados de compensado e 35 In: ARRABAL; LIMA, Anos 70..., p. 22.36 FRANCIS, Paulo. Censura. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 mar. 1968.37 CORRÊA, Entrevista..., p. 201.38 CORRÊA, A guinada..., p. 125.39 Idem, p. 126.

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pronto. Há já mais de um século de arte supercriadora de direção que hoje é a única forma de produzir um teatro como arte”.40

Essa reação adversa ao espetáculo Roda Viva em particular e à “estética da porrada”41 em geral não partiu apenas da crítica te-atral, mas também de organizações clandestinas de ofensiva ao comunismo. Em meados de 1968, o jornal Folha da Tarde noti-ciou que o pronunciamento “Vou acabar com Roda Viva”, da de-putada Conceição Costa Neves, em rede nacional, influenciou os atos de violência contra o espetáculo teatral.42 Em 17 de julho de 1968, cerca de 30 homens armados com revólveres, cassetetes e socos-ingleses invadiram o Teatro Ruth Escobar, depredaram a casa de espetáculo, destruíram o cenário da peça, invadiram o camarim dos atores e agrediram não só o elenco como também a equipe técnica.43

O confronto físico durou cerca de três minutos e meio e resultou na detenção de três homens. Como o delegado de plantão recu-sou-se a lavrar flagrante, a queixa-crime não serviu sequer para identificar os agressores. O “sucesso da operação” aumentou a confiança dos agressores que dias depois escreveram ao jornal O Estado de S. Paulo para comunicar que os ataques continuariam e que a “operação quadro negro” tratava-se apenas de uma amos-tra do que eles podiam fazer.44

40 Idem.41 Segundo José Celso, o teatro agressivo é invenção da imprensa. O grupo Oficina nunca incitou a violência física. “Eu me lembro que falávamos nessa es-tória de dar uma, duas três, muitas bofetadas no gosto do público. Mas é no gosto do público e não na cara do público. Torceram tudo e disseram que era na cara do público. Ou não entenderam nada ou estavam a fim de derrubar o trabalho, porque ele questiona, revoluciona essa de teatro cultural, de postura acadêmica diante da arte e do conhecimento”. In: CORRÊA, Entrevista..., p. 200 e 205.42 O TEATRO exige justiça. Artistas foram a Sodré, estão indignados por-que dois terroristas sumiram. Folha da Tarde, São Paulo, 23 jul. 1968. p. 9.43 Para maiores detalhes sobre a invasão do teatro, consultar CORRÊA, Entrevista..., p. 201, AMEAÇAS aumentam nervosismo de Ruth. Folha da Tarde, São Paulo, 23 jul. 1968. p. 9, AS CENAS da violência. Veja, São Paulo, n. 6, p. 20, 22 e 24, 16 out. 1968. Apud STEPHANOU, Censura no regime militar..., p. 283 e PACHECO, “O teatro e o poder”. In: ARRABAL; LIMA, Anos 70..., p. 86.44 Sobre as conseqüências do episódio, ver O TEATRO exige justiça... e PACHECO, “O teatro e o poder”. In: ARRABAL; LIMA, Anos 70..., p. 86.

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Nessa época, respaldada pela política do governo Costa e Silva e apoiada na estrutura do Estado, a ofensiva militar e paramilitar transferiu os ataques das entidades estudantis e instituições ci-vis para os comunistas do teatro e profissionais da área. Atores foram espancados, sequestrados, humilhados e teatros pichados, destruídos e bombardeados. Teoricamente, o “terrorismo branco” visava aterrorizar as pessoas sem fazer vítimas. Nessa época, o tenente-coronel Luiz Helvecio da Silveira Leite – da ativa, no Cen-tro de Informações do Exército (CIE) – e o coronel Alberto For-tunato – da reserva, na Divisão de Segurança e Informações do Ministério do Interior – participaram de dez atentados à bomba aos teatros Gláucio Gil e João Caetano, editoras e redutos estu-dantis. A explicação dessa ofensiva sobre o teatro estava no fato de que o consideravam o braço mais fraco do comunismo e, por isso, mais fácil de desarticulação. Segundo oficial do Exército que participou da ofensiva ao setor teatral, “nós fizemos uma reunião no CIE e resolvemos agir contra a esquerda. Definimos qual era o campo mais fraco e decidimos que era o setor do teatro. Em se-guida, começamos a aporrinhar a vida dos comunistas no teatro. A gente invadia, queimava, batia, mas nunca matava ninguém”.45 Essa afirmação revela a progressiva preocupação com o meio tea-tral, também minimiza o grau de persuasão das manifestações de oposição organizadas pelo setor teatral e o nível de violência dos atentados terroristas cometidos por organizações de direta.

Com a omissão dos fatos e a continuidade das ameaças, artistas paulistas se reuniram com o governador do Estado para solicitar proteção aos teatros. Nesse encontro, o diretor do Teatro de Are-na, Augusto Boal, falou da falta de segurança dos teatros e citou o exemplo da peça Roda Viva. Diante da ameaça externa, o meio teatral uniu-se em torno de metas comuns. Como resultado dessa reunião, o governador Abreu Sodré solicitou ao secretário de Se-gurança Pública proteção dos teatros a partir daquela data.46

Em Porto Alegre, a encenação da peça enfrentou problema seme-lhante. No dia seguinte à estreia do espetáculo no Teatro Leopol-dina, em 4 de outubro de 1968, as paredes do teatro amanheceram 45 Apud GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada...46 O TEATRO exige justiça...

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com pichações do tipo “fora os agitadores”, “comunistas” e “abai-xo a pornografia”47 e, em 7 de outubro de 1968, o chefe do SCDP interditou a encenação do espetáculo porque considerou-a “um amontoado de palavrões, cenas imorais e frases de incitamento contra o regime, a ordem pública, as autoridades e seus agentes”. Além disso, “os responsáveis pela peça vêm desrespeitando de há muito as determinações da censura federal através de marcações improvisadas e gestos indecentes provocando tumulto”.48

Sem alternativa, os atores procuraram a rodoviária de Porto Ale-gre para fretar um ônibus e voltar para São Paulo. No caminho de volta, um grupo de aproximadamente 30 homens – todos eles “altos, fortes, armados de revólveres e cassetetes de borracha com fio de aço por dentro”, como publicou a revista Veja – atacou os atores, alguns ficaram feridos, dois foram hospitalizados49 e a atriz gaúcha Elizabeth Gasper e seu marido Zelão foram seques-trados, levados para um sítio próximo e obrigados a representar partes da peça.50

Entre a criação de Roda Viva e a encenação de Galileu Galilei, dois espetáculos emblemáticos da direção de José Celso, o Teatro Ofi-cina montou a peça O Poder Negro, de autoria de Leroy Jones e direção de Fernando Peixoto, também sofreu graves problemas com a censura em Brasília e gerou ampla mobilização dos profis-sionais de teatro.

A peça Galileu Galilei, de Bertolt Brecht, estreou no dia da decre-tação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968. Com 14 quadros, 2 atos e 3 horas e meia de duração, a peça Galileu Galilei discutiu

47 In: AS CENAS da violência... Apud STEPHANOU, Censura no regime militar..., p. 283.48 Em 1968, essa peça recebeu classificação para maiores de 14 anos, de-pois aumentaram para maiores de 18 anos até cassarem o certificado de censura e suspenderem a liberação da peça. VerPortaria n.º 02/68-SCDP. Brasília, 26 jan. 1968 e portaria n.º 63/68-SCDP. Brasília, 7 out. 1968. DCDP/OR/NO49 In: AS CENAS da violência. Apud STEPHANOU, Censura no regime militar..., p. 283.50 Ver relato da agressão em DECKES, Flavio. Teatro: cena de 1968. In: Radiografia do Terrorismo no Brasil: 1966/1980. São Paulo, Ícone Editora, 1985. p. 63-67.

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desde aspectos da política brasileira até métodos de criação cêni-ca. Segundo José Arrabal, o espetáculo não só discutiu elementos de ordem estética como a naturalização da escritura cênica e a utilização do sistema de signos como instrumento de construção do espetáculo, como também analisou manifestações de natureza ideológica como a recusa do racionalismo burguês em contrapar-tida à adoção do materialismo dialético como método de análi-se concreta do real, os impasses da intelectualidade brasileira, a compreensão da luta de classes, as matizes da prática política e a relação com as classes populares.51

A encenação de Galileu Galilei acentuou as divergências inter-nas do grupo Oficina. O alvo do impasse localizou-se principal-mente na cena do Carnaval de Florença. De um lado, os atores profissionais do elenco defendiam a integridade do espetáculo na transmissão de ideias e reflexão intelectual. De outro, os ato-res recém-ingressos no grupo buscavam dar continuidade ao espírito de Roda Viva e ao desenvolvimento do teatro sensório e irracional. Segundo Fernando Peixoto, do grupo fundador do Teatro Oficina, “a célebre cena do ‘carnaval’ [...] provocou difí-ceis discussões internas no grupo, em termos de concepção, que quebravam um entendimento, entre nós, que nunca antes havia sofrido qualquer tipo de inconciliável contradição”.52

A próxima montagem inédita do Teatro Oficina procurou assimilar as experimentações cênicas do diretor polonês Jersy Grotowsky que criou o Teatro Laboratório e o conceito de “teatro pobre”. No Brasil, os profissionais do teatro tiveram contato com essas expe-riências através da publicação do livro Em busca do teatro partido, de Eugenio Barba, que trabalhou três anos com Grotowsky e pôde observar o desenvolvimento do seu método de trabalho, a prepa-ração das produções teatrais e a transformação do pequeno Teatr 13 Rzedow na instituição Teaterlaboratorium.

O “irracionalismo” da peça Na Selva das Cidades contrapôs-se ao “racionalismo” da montagem de Galileu Galilei, ambas de autoria

51 ARRABAL, LIMA, Anos 70..., p. 25.52 PEIXOTO, Teatro em aberto..., p. 130-131.

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de Bertolt Brecht.53 Considerado um dos trabalhos mais fasci-nante do grupo e uma das direções mais sensíveis de José Cel-so, o elenco de Na Selva das Cidades aprofundou o processo de autoconhecimento. Para Fernando Peixoto, ator do personagem Skinny, simbolicamente a peça de Brecht traduziu o impasse do Oficina e a destruição do palco acabou com as perspectivas de continuidade.

A criação do espetáculo transformou a crise interna em objeto de reflexão. Segundo José Arrabal, a fala “vende a tua opinião e você tem tudo, do contrário eu te mato, e você vende na marra”, do texto de Na Selva das Cidades, sintetizou o dilema enfrenta-do pelo Teatro Oficina durante a década de 1970: adequar-se ao modelo de teatro empresarial vigente ou converter-se em grupo experimental de produção amadora.54

Ao término do espetáculo, o grupo Oficina parou por três me-ses para refletir sobre o trabalho artístico e a estrutura admi-nistrativa. As contradições internas resultaram no afastamento de integrantes do elenco original: primeiro, Ítala Nandi, depois, Fernando Peixoto. De 1970 a 1972, sem dois integrantes importantes e com sérios problemas financeiros, a preocupação do grupo concentrava-se em manter a companhia ativa. Com esse espírito, o Teatro Ofici-na remontou antigos sucessos para saldar dívidas como Galileu Galilei, Pequenos Burgueses e O Rei da Vela e resgatou a ideia ori-ginal do Oficina Brasil. Denominada “salto para o salto”, a excur-são consistia em remontar antigos sucessos com nova equipe. A experiência itinerante resultou no predomínio ideológico de José Celso, no desgaste da convivência em grupo e na separação imediata do elenco. Nessa época, José Celso esboçava o princípio estético da “devoração cultural” como instrumento político de “descolonização cultural”. Como movimento de baixo para cima, 53 Essa dicotomia entre “racionalismo” versus “irracionalismo” deve ser melhor investigado, pois parece que no teatro brasileiro ambos não se colocaram como experiências antagônicas nem tampouco reproduziram as formulações con-ceituais.54 Apud ARRABAL; LIMA, Anos 70..., p. 26.

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o processo de descolonização cultural consistia na recriação da cultura ocidental.55

O elenco do Oficina voltou a se reunir na produção de Gracias, Señor, criação coletiva do Teatro Oficina. Com a interrupção do es-petáculo teatral, a hostilidade de organismos policiais, a precária condição financeira e a ausência de subvenção estatal, o Teatro Oficina investiu na produção do clássico As Três Irmãs, do autor russo Anton Tchecov. No dia 31 de dezembro de 1972, com a peça em andamento, Renato Borghi, que integrava o elenco, abando-nou o grupo. “Com As Três Irmãs é o fim da empresa, sem viagem de volta”, afirmou a principal liderança do Teatro Oficina.56

Isolado do circuito profissional de teatro e à procura de novos rumos artísticos, José Celso fundou comunidade Oficina Samba (Sociedade de Amigos do Brasil Animações) que reuniu os grupos Oficina, Pão e Circo, Ananke e Ex-jornal. No processo de negação da estrutura de mercado e de predomínio do “irracionalismo” te-atral, o Teatro Oficina não só mudou de nome e de equipe como também de estrutura. Na análise de José Arrabal, “é todo um pro-cesso em que o Oficina se desinstitucionaliza. Sua negação solitá-ria e voluntária do mercado se, por um lado, leva o grupo à produ-ção de trabalhos extremamente polêmicos, numa linha viva, ainda que discutível, de busca por uma prática teatral alternativa à vio-lência do sistema de produção de bens simbólicos que se implan-ta de modo dominante, por outro lado, essa solidão remete seus atores a um impasse de tal monta, num meio cultural desarticu-lado, que uma nova tentativa de intervenção (nos últimos dias de 72) nesse mesmo meio, com um espetáculo da dramaturgia clás-sica – As Três Irmãs, de Tchecov – não chega a ter durabilidade”.57

Dessa forma, a desestruturação do Teatro Oficina na década de 1970 explica-se por uma conjunção de fatores internos como da radicalização dos princípios estéticos, o embate direto com pú-blico e as teorias de irracionalismo teatral e externos como as

55 CORRÊA, José Celso Martinez. A hora é de libertar. Folha de S. Paulo, São Paulo, 9 jul. 1978. Folhetim, p. 2-4. Entrevista realizada por Jary Cardoso. p. 2.56 CORRÊA, Entrevista..., p. 211.57 ARRABAL; LIMA, Anos 70..., p. 30.

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políticas culturais, as instâncias censórias e a repressão policial. Como se vê, o Teatro Oficina não foi assassinado por um único algoz nem tampouco se suicidou por opção própria, a despeito das análises divergentes de Fernando Peixoto e Edélcio Mostaço, respectivamente.58

Em 1974, esse processo de desestruturação culminou com a inva-são do Teatro Oficina, a prisão dos atores e, em seguida, a deten-ção de José Celso. No mês de maio, a polícia estadual, auxiliada por um oficial infiltrado, invadiu o Teatro Oficina e prendeu os atores. No dia da operação, o diretor José Celso e o ator Celso de Luccas encontravam-se no Rio de Janeiro e só souberam da prisão por um amigo jornalista. Com receio de ser preso, José Celso voltou para São Paulo e escreveu o texto S.O.S. Na avaliação do drama-turgo, “é um documento muito importante daquela época, que ca-racteriza muito bem as coisas como estavam. Mas ele me deu uma porção de problemas. Na polícia os caras ficavam me gozando, me chamando de Zé S.O.S. Por causa do documento eu fui preso, quer dizer, mas eles queriam me prender mesmo. Acusaram-me de ter assaltado banco, de ter ligações com a ALN [Aliança Libertadora Nacional]. Quando me torturaram, alegaram isso” 59.

No final do mês, a Delegacia Especializada de Entorpecentes do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC) enca-minhou ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo o material aprendido na sede do Teatro Oficina e na casa de José Celso.60 O material apreendido, sobretudo a literatura socialista,61 levou à prisão de José Celso e mais quatro pessoas que se encontravam na sua residência. Sem a notificação do paradeiro dos presos e sob a suspeita de tratar-se de uma operação do Cen-tro de Operações de Defesa Interna – Destacamento de Operações 58 Ver PEIXOTO, Teatro em questão, p. 69 e MOSTAÇO, Op. cit., p. 160.59 CORRÊA, Entrevista..., p. 212.60 Ofício do delegado adjunto do DEIC, Raul Nogueira de Lima, ao de-legado de polícia, titular da DIG, Severino Duarte. São Paulo, 20 maio 1974. In: Processo n.º 3ª Auditoria, da 2ª Circunscrição Judiciária Militar.61 Entre os livros apreendidos consta: Le socialisme et l’homme à Cuba, História de la URSS, História do Socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, O socialismo difícil, de André Gorz, Que faire?, de Lenine, Psicologia Militar, de Emílio Mira Y Lopez, V.I. Lenin contra el revisionismo, Socialismo com liberdade, de Sebastião Nery, 1938 – Terrorismo em campo verde, de Hélio Silva.

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de Informações (CODI-DOI), o advogado da família de José Cel-so solicitou a instância jurídica militar a oficialização da prisão, a restituição da comunicabilidade ou a liberação dos presos.62

Mediante a representação, o juiz auditor da Justiça Militar solici-tou ao chefe de Estado Maior do II Exército maiores esclarecimen-tos sobre o destino dos presos63 que, por sua vez, informou que o DOI/CODI/II Ex não tinha envolvimento na operação.64 Entre a queixa do advogado e a troca de informações dos órgãos militares, o delegado de polícia do DOPS determinou a abertura de inqué-rito policial para apurar as ligações de José Celso Martinez Cor-rêa com a ALN, com Moacyr Urbano Vilela65 e também com Bety Chachomovitz. Os dois tinham sido condenados a dois anos e seis meses de reclusão pela Justiça Militar por participar de “ativida-des subversivas” e promover reuniões com integrantes da ALN no apartamento onde moravam juntos.

No dia 30 de maio, o delegado de polícia comunicou ao juiz au-ditor a prisão de José Celso Martinez Corrêa, Celso de Luccas e Jorge Bouquet e, no dia 1º de junho, o Jornal da Tarde publicou a matéria “Zé Celso: preso”.66 O DOPS responsabilizou a Justiça Mili-tar pela notificação da prisão aos órgãos da imprensa que, por sua vez, negou qualquer envolvimento com a publicação da matéria.67 Segundo o delegado de polícia, a divulgação da notícia prejudicou as investigações sobre a ALN, “grupo subversivo do qual José Cel-so Martinez Corrêa fazia parte e mantinha ligações, uma vez que 62 Representação do advogado Tales Castelo Branco à 3ª Auditoria, da 2ª Circunscrição Judiciária Militar. São Paulo, 24 maio 1974. In: Processo n.º 3ª Au-ditoria, da 2ª Circunscrição Judiciária Militar.63 Ofício do juiz auditor da 3ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Mi-litar, Raphael Carneiro Maia, ao Chefe do Estado Maior do II Exército, general-de-brigada Gentil Marcondes Filho. São Paulo, 30 maio 1974. In: Idem.64 Ofício do Chefe do Estado Maior do II Exército, general-de-brigada Gentil Marcondes Filho, ao juiz auditor da 3ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judici-ária Militar, Raphael Carneiro Maia. São Paulo, 14 jun. 1974. In: Idem.65 Portaria do delegado de polícia adjunto da Delegacia Especializada de Ordem Social, Edsel Magnotti. São Paulo, 27 maio 1974. In: Idem.66 ZÉ CELSO: preso. São Paulo, Jornal da Tarde, 1º jun. 1974.67 Ofício do juiz auditor 3ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar, Raphael Carneiro Maia, ao delegado de polícia adjunto da Delegacia Especializada de Ordem Social, Edsel Magnotti, São Paulo, 4 jun. 1974. In: Processo n.º 3ª Audi-toria, da 2ª Circunscrição Judiciária Militar.

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se aguardava a chegada de Moacir Urbano Vilela, que teria ‘ponto’ com o epigrafado” e tudo levava “a crer que o episódio em tela foi premeditadamente preparado para prejudicar as investigações”.68 Entre o pedido de entrevista do advogado e a autorização da Jus-tiça Militar, o delegado de polícia procedeu ao interrogatório de liberação do ator Celso de Luccas e do cineasta Jorge Bouquet e à qualificação, identificação e interrogatório do diretor José Cel-so Martinez Corrêa. No primeiro auto de qualificação e interro-gatório, José Celso falou dos princípios estéticos que nortearam 17 anos de atividade teatral, relatou o encontro ocasional com o ator amador e integrante da ALN e justificou a tradução de livro de conteúdo socialista.69 No mesmo dia, Celso Luccas e Jorge Bou-quet prestaram declarações ao DOPS e endossaram a versão de José Celso.70 Mesmo assim, o diretor continuou preso e foi subme-tido a novo interrogatório no qual ratificou o primeiro depoimen-to e relatou dois encontros com Moacyr Urbano Vilela.71

Depois de 20 dias de prisão de José Celso, entidades de repre-sentação e profissionais de teatro enviaram telegramas à Justiça Militar para evidenciar a importância de José Celso para o teatro brasileiro, solicitar a liberação do teatrólogo e manifestar preocu-pação com o episódio.72 Uma semana depois, o DOPS procedeu à liberação de José Celso Martinez Corrêa. Na conclusão do delega-do de política, o diretor teatral foi preso não só porque manteve contato com integrante da ALN, mas também porque possuía li-vros de natureza subversiva.73 Além disso, José Celso tinha rein-68 Ofício do delegado de polícia adjunto da Delegacia Especializada de Ordem Social, Edsel Magnotti, ao juiz auditor 3ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar, Raphael Carneiro Maia. São Paulo, 3 jun. 1974. 69 Auto de qualificação e de interrogatório de José Celso Martinez COR-RÊA. 5 jun. 1974. In: Idem.70 Termo de declarações de Celso de Luccas e Jorge Bouquet. São Paulo, 5 jun. 1974. In: Idem.71 Auto de qualificação e de interrogatório de José Celso Martinez COR-RÊA. São Paulo, 10 jun. 1974. In: Idem.72 Telegramas da ACET e dos artistas Procópio Ferreira, Regina Duarte, Dina Sfat, Juca de Oliveira, Jardel Filho, Tônia Carrero, Walmor Chagas, Bibi Fer-reira, Paulo Pontes, Paulo José, Agildo Ribeiro, Claudio Marzo, Milton Moraes, Nívea Maria, Carlos E. Dolabella, Fúlvio Stefanini, Marcos Paulo, Cecil Thiré e Betty Faria.10 jun. 1974. In: Idem.73 Relatório do delegado de polícia adjunto da Delegacia Especializada de Ordem Social, Edsel Magnotti. São Paulo, 1 jun. 1974. In: Idem.

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cidência no DOPS: em 1964, foi interrogado por que era suspeito de atividade comunista e, em 1972, porque trazia consigo filmes do exterior. Em liberdade, José Celso só foi liberado de assinar o livro de presença do DOPS porque pediu autorização para viajar para fora do país.74

Em instância militar, o procurador responsável pela análise do processo afirmou não haver provas suficientes para atestar que o encontro entre José Celso Corrêa Martinez e Moacyr Urbano Vi-lela tivesse natureza política ou envolvimento com organizações clandestinas e que os livros apreendidos na casa do diretor visas-sem à propaganda subversiva ou constituísse em crime contra a segurança nacional. Se assim não o fosse, afirmou o procurador do Supremo Tribunal Militar (STM), “estaríamos diante da con-clusão teratológica de que todos os intelectuais que, para própria ilustração, possuam livros de extrema esquerda ou direita, são criminosos”.75

Mediante a falta de provas, a negação do indiciado de envolvimen-to com organizações da luta armada e baseado em andamento de processo anterior, a Justiça Militar inocentou o diretor teatral e procedeu ao arquivamento do processo porque “‘ter em seu po-der literatura que, de certo modo, pode ser traduzida como de na-tureza comunista, não induz necessariamente, à apuração de que estava o acusado’ agindo contra a ordem pública e muito menos que houve distribuição de material considerado subversivo”.76

Com a conclusão do processo, José Celso partiu para Lisboa onde resgatou a experiência do Oficina Samba e apresentou alguns espetáculos, em seguida, foi para Moçambique onde produziu o filme Vinte e Cinco sobre a independência da colônia portuguesa 74 Sobre a dispensa, ver Procuração do advogado Antonio Rubens Soares ao juiz auditor 3ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar, Raphael Carneiro Maia. São Paulo, São Paulo, 17 jul. 1974 e Ofício do juiz auditor 3ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar, Raphael Carneiro Maia, ao diretor do DOPS. São Paulo, 18 jul. 1974. In: Idem.75 Relatório do procurador Nicolau D’Ambrosio ao juiz auditor da 3ª Au-ditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar, Raphael Carneiro Maia. São Paulo, 5 ago. 1974. In: Idem.76 Decisão do juiz auditor em exercício da 3ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar, Raphael Carneiro Maia. São Paulo, 6 ago. 1974. In: Idem.

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em 25 de junho de 1975 e, depois de quatro anos, voltou para São Paulo onde atuou como “agitador cultural” e tentou reativar o Te-atro Oficina com o nome Uzyna Uzona.

Na contramão das experiências do nacional-popular, o Teatro Ofi-cina, surgido em fins dos anos de 1950 e atuante até os dias de hoje, apresentou propostas alternativas para a consolidação do teatro engajado no Brasil e digeriu concepções teatrais de várias ordens, desde os métodos de interpretação de Stanislavski, pas-sando pelo realismo clássico de Gorki e Tchecov e pelo “teatro épi-co” de Brecht, até o “teatro da crueldade” de Artaud. De qualquer forma e desde sempre, as intenções do Teatro Oficina foi revolu-cionar de dentro para fora as estruturas do teatro brasileiro em suas diversas interfaces.

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