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9 INTRODUÇÃO Muito se tem controvertido na doutrina penalista acerca da expansão do Direito Penal, de modo geral, e, em especial, do Direito Penal do Inimigo em nossos dias. No contexto de uma teoria que classifica indivíduos que cometeram determinados tipos de crime como criminosos diferentes dos demais, surgem tormentosas discussões. Afinal, como enquadrar um arcabouço teórico que sugere o desenho, ainda que sutil, de um direito penal de autor no âmbito do ordenamento jurídico-penal brasileiro, calcado no direito penal do fato? De outro lado, como ceder às investidas de constantes propostas de expansão do Direito Penal dentro de uma perspectiva redutora e garantista, capaz de assegurar o necessário respeito aos direitos e garantias fundamentais? É essa dicotomia entre direito penal do fato e direito penal de autor que permeará o desenvolvimento da análise do Direito Penal do Inimigo enquanto uma das vertentes do movimento de expansão do Direito Penal, de um lado, e como estratégia de enfrentamento e neutralização dos inimigos do Estado (in casu, traficantes de entorpecentes), do outro. As acirradas discussões teóricas em torno da legitimidade e validade do Direito Penal do Inimigo justificam uma análise mais detida do assunto, principalmente em sede de um trabalho monográfico cujo objetivo é voltar as lentes de análise a um ponto ainda mais específico. Mas não seria possível analisar esta teoria, em toda a sua extensão, se esta não fosse considerada enquanto parte de um todo mais amplo e orgânico, qual seja, a expansão do Direito Penal, que é objeto de análise no Capítulo 1 deste trabalho monográfico. O objetivo da monografia que ora se apresenta consiste em expor, da forma mais completa possível dentro dos lindes próprios desse tipo de escrito, a doutrina do Direito Penal do Inimigo enquanto parte de um movimento maior de expansão do Direito Penal, bem como sua função legitimadora do tratamento penal que vem sendo dispensado aos traficantes de entorpecentes com base na Lei 11.343/06. Sem pretensões de adentrar a complexa seara dos elementos constituintes da política criminal do Estado, a análise ora empreendida se conteve nos limites dos institutos jurídicos, previstos na Lei 11.343/06, voltados à neutralização dos traficantes de entorpecentes que, como se buscará testar, constituiriam a personalização da hostilidade da classe dominada ao Estado, aparato dominante, recebendo tratamento jurídico próprio de inimigo. A principal ferramenta de pesquisa utilizada para a exposição do tema escolhido foi a pesquisa bibliográfica exploratória, a qual teve por base leituras selecionadas em função do

Raphael Judice Monografia partes textuais

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9

INTRODUÇÃO

Muito se tem controvertido na doutrina penalista acerca da expansão do Direito Penal,

de modo geral, e, em especial, do Direito Penal do Inimigo em nossos dias. No contexto de

uma teoria que classifica indivíduos que cometeram determinados tipos de crime como

criminosos diferentes dos demais, surgem tormentosas discussões. Afinal, como enquadrar

um arcabouço teórico que sugere o desenho, ainda que sutil, de um direito penal de autor no

âmbito do ordenamento jurídico-penal brasileiro, calcado no direito penal do fato? De outro

lado, como ceder às investidas de constantes propostas de expansão do Direito Penal dentro

de uma perspectiva redutora e garantista, capaz de assegurar o necessário respeito aos direitos

e garantias fundamentais?

É essa dicotomia entre direito penal do fato e direito penal de autor que

permeará o desenvolvimento da análise do Direito Penal do Inimigo enquanto uma das

vertentes do movimento de expansão do Direito Penal, de um lado, e como estratégia de

enfrentamento e neutralização dos inimigos do Estado (in casu, traficantes de entorpecentes),

do outro.

As acirradas discussões teóricas em torno da legitimidade e validade do Direito Penal

do Inimigo justificam uma análise mais detida do assunto, principalmente em sede de um

trabalho monográfico cujo objetivo é voltar as lentes de análise a um ponto ainda mais

específico. Mas não seria possível analisar esta teoria, em toda a sua extensão, se esta não

fosse considerada enquanto parte de um todo mais amplo e orgânico, qual seja, a expansão do

Direito Penal, que é objeto de análise no Capítulo 1 deste trabalho monográfico.

O objetivo da monografia que ora se apresenta consiste em expor, da forma mais

completa possível dentro dos lindes próprios desse tipo de escrito, a doutrina do Direito Penal

do Inimigo enquanto parte de um movimento maior de expansão do Direito Penal, bem como

sua função legitimadora do tratamento penal que vem sendo dispensado aos traficantes de

entorpecentes com base na Lei 11.343/06.

Sem pretensões de adentrar a complexa seara dos elementos constituintes da política

criminal do Estado, a análise ora empreendida se conteve nos limites dos institutos jurídicos,

previstos na Lei 11.343/06, voltados à neutralização dos traficantes de entorpecentes que,

como se buscará testar, constituiriam a personalização da hostilidade da classe dominada ao

Estado, aparato dominante, recebendo tratamento jurídico próprio de inimigo.

A principal ferramenta de pesquisa utilizada para a exposição do tema escolhido foi a

pesquisa bibliográfica exploratória, a qual teve por base leituras selecionadas em função do

10

critério de pertinência temática e de expertise dos respectivos autores quanto ao tema

abordado. Também foi feita uma análise da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (“Lei de

Drogas”), a qual buscará investigar se, e em que medida, os institutos jurídicos voltados a

apenar os traficantes de entorpecentes são mais severos do que aqueles institutos jurídicos

destinados a apenar condutas que violam os mesmos bens jurídicos tutelados por tal lei,

dentre os quais se destaca a saúde pública.

Para fins da monografia que será produzida, interessa principalmente investigar o

seguinte: em um contexto de expansão do Direito Penal, sob o aspecto específico do Direito

Penal do Inimigo, o traficante de entorpecentes é tratado como inimigo com base nos

institutos previstos na Lei 11.343/06? Eis o problema que norteará a pesquisa ora

empreendida.

O tema escolhido como objeto de estudo é bastante controvertido na doutrina. Não há

como ser diferente, sobretudo na era pós 11 de setembro, em que as garantias individuais e

coletivas vivem confrontadas com a reativação de uma espécie de doutrina de segurança

nacional global, calcada no enquadramento do diferente enquanto indivíduo potencialmente

perigoso, na esteira do movimento de expansão do Direito Penal.

É desse princípio que Jakobs parte para, textualmente, afirmar que

...quem não participa na vida em um „estado comunitário-legal‟ deve retirar-se, o

que significa que é expelido (ou impelido à custódia de segurança); em todo caso,

não há que ser tratado como pessoa, mas pode ser „tratado‟...‟como um inimigo‟”.1

Contrapõe-se a tão contundente doutrina um crítico igualmente contundente: Raúl

Zaffaroni. Esse penalista argentino enquadra as formas de manifestação do poder punitivo

enquanto instrumentos de dominação, desenvolvidos ao longo da história humana, destinados

a servir aos interesses da classe dominante contra a classe dominada. O conceito de

“emergência” é amplamente utilizado para justificar os recrudescimentos da tutela penal

exercida em favor das camadas superiores contra os indesejáveis, criminosos, párias. Nesse

contexto, é o criminoso, assim diferenciado pelo rótulo (como mais adiante se verá em

Baratta2) de desviante, alçado à categoria jurídica de inimigo, com todas as conseqüências

jurídico-penais daí advindas. Ainda segundo esse autor, existiram inimigos eleitos pelas

estruturas de poder em todas as sociedades, excetuando-se o período compreendido entre a

queda do Império Romano (início da Idade das Trevas, sobre a qual pouco se sabe) e os

1 JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, p. 27.

2 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito: introdução á sociologia do Direito Penal

Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro. Revan, 2002.

11

séculos XII e XIII (começo da Idade Média), durante o qual, conforme defende o autor, há o

desbaratamento momentâneo do poder punitivo.

A construção e melhor compreensão da figura do inimigo serão auxiliadas por Baratta

e sua exposição do labeling approach ou teoria do etiquetamento, uma vez que tal vertente da

Criminologia é imprescindível para a compreensão do fenômeno que conduz uma pessoa

comum à condição de criminoso e de inimigo.

Esquematicamente, as considerações teóricas expostas acima estão divididas em

quatro capítulos, assim dispostos: i) um capítulo introdutório sobre a teoria do Direito Penal

do Inimigo; ii) um capítulo específico sobre o quadro atual da expansão do Direito Penal e

seus desdobramentos; iii) um capítulo exclusivamente destinado à crítica do Direito Penal do

Inimigo e iv) um capítulo reservado à análise mais detida da Lei 11.343/06, que constitui o

foco deste estudo. A conclusão representa uma retomada das diversas leituras utilizadas como

fonte de pesquisa em um todo sintético, unitário e orgânico, de forma a afinar a compreensão

acerca do tema abordado.

12

1 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE O DIREITO PENAL DO INIMIGO

Este capítulo apresenta a teoria do Direito Penal do Inimigo e as primeiras críticas que

se lhe pode fazer. Apesar de seu nome, o Direito Penal do Inimigo é uma teoria jurídica que

se manifesta sob várias formas nas legislações contemporâneas. É por esse motivo que cabe

diferenciá-la das legislações mesmas cuja elaboração inspira.

Cabe diferenciá-la, em síntese, situando-a no contexto das teorias jurídicas

propriamente ditas. Para tanto é preciso, em primeiro lugar, estabelecer uma definição de

teoria jurídica. Não se encontra uma definição suficientemente precisa de teoria jurídica, ou

ainda de teoria em sentido amplo, até mesmo em autores que tratam de temas carecedores

desse detalhamento.

Insta ressaltar aqui que, mais do que deixar em segundo plano a elaboração de uma

definição para as teorias jurídicas, os autores normalmente partem desse conceito para

elaborar outras definições, como se ele já estivesse dado em um primeiro momento.

Entretanto, em se tratando de situar o Direito Penal do Inimigo no campo das teorias

jurídicas, uma definição, ainda que geral, talvez seja suficiente para que se possa avançar nas

análises e considerações subseqüentes.

Vários são os autores dos quais se pode colher elementos capazes de estabelecer uma

definição de teoria jurídica, ainda que tal definição seja carecedora de uma melhor unidade

sistemática, posto que as visões apresentadas são extraídas de ramos distintos do Direito.

Para que esta abordagem inicial não se estenda além do necessário, restringir-se-á a

apresentação à análise de dois autores: Orlando Secco3 e Manuel Atienza

4. Apesar de não

tratar do tema em profundidade, Secco tangencia a definição de teoria no capítulo

introdutório de sua obra, nos seguintes termos:

A Introdução ao Direito, segundo o saudoso tratadista ANTÔNIO LUÍS

MACHADO NETO, em sua obra “Compêndio de Introdução à Ciência do Direito”:

“é, tal como ocorre com sua irmã gêmea Teoria Geral do Estado, uma

ENCICLOPÉDIA de conhecimentos científicos, filosóficos, gerais e introdutórios

ao estudo da ciência jurídica”5

Tal definição, apesar de elaborada levando em consideração a Introdução ao Direito,

é geral o bastante para abarcar as mais diversas teorias jurídicas, independente do ramo do

direito ao qual tais teorias se possam aplicar.

3 SECCO, Orlando de Almeida. Introdução ao Estudo do Direito. 9ª ed. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris,

2005. 4 ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. 3ª ed. São Paulo. Landy Editora,

2006. 5 SECCO, Orlando de Almeida. Introdução ao Estudo do Direito., p. 4.

13

Manuel Atienza presta relevante contribuição à análise aqui empreendida. Dele se

podem colher os elementos indispensáveis à elaboração de uma definição de teoria jurídica.

Observe-se o que é escrito em uma das primeiras laudas de As razões do direito: “A

teoria (ou teorias) da argumentação jurídica tem como objeto de reflexão, obviamente, as

argumentações produzidas em contextos jurídicos”6.

Mais adiante, prossegue o autor:

Na filosofia da ciência costuma-se distinguir (cf. Reichenbach, 1951) entre o

contexto de descoberta e o contexto de justificação. Assim, de um lado está a

atividade que consiste em descobrir ou enunciar uma teoria e que, segundo a

opinião geral, não é suscetível de uma análise de tipo lógico; nesse plano, cabe

unicamente mostrar como se gera e se desenvolve o conhecimento científico, o que

constitui tarefa para o sociólogo e o historiador da ciência. Mas do outro lado está o

procedimento que consiste em justificar ou validar a teoria, isto é, em confrontá-la

com os fatos a fim de mostrar sua validade; essa última tarefa exige uma análise de

tipo lógico (embora não apenas lógico) e se rege pelas regras do método científico

(que não são aplicáveis no contexto da descoberta).7

Entretanto, embora Atienza forneça elementos teoricamente mais ricos e consistentes

acerca do que seria uma teoria jurídica, incorre no mesmo erro de outros autores ao

mencionar uma teoria, que por acaso é objeto de estudo em sua obra já citada, sem a

preocupação de defini-la previamente8, construindo aí um conceito a priori do qual parte para

otimizar o conjunto de sua exposição. Apesar de entendermos o caráter prático de semelhante

atitude, guardado todo o respeito a um teórico como é o autor, insistimos que a exposição há

pouco iniciada carece de uma definição mais precisa do objeto ora explorado.

Deve ser assim pela multiplicidade de facetas do tema expansão do direito penal

enquanto pluralidade de vertentes expansivas. Também deve ser assim, conforme já foi dito,

porque a palavra direito, que integra o nome Direito Penal do Inimigo, pode eventualmente

induzir o leitor menos habituado com o tema a interpretações equivocadas, posto que não se

trata de uma legislação propriamente dita baseada na construção de uma categoria jurídica de

inimigo, mas em um paradigma que, nos dias atuais, orienta em alguma medida a elaboração

de leis penais.

Ultrapassada a abordagem dos autores eleitos para compor uma definição própria de

teoria jurídica, pode-se enunciá-la, genericamente, mediante composição dos elementos

reunidos acima, como sendo um todo orgânico e sistemático de conhecimentos científicos

6 ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica, p. 18. 7 Ibidem, p. 20.

8 Ibidem, p. 22, quando o autor menciona a “teoria padrão da argumentação jurídica”, sem em momento algum

defini-la.

14

variados, dotado de um contexto de descoberta e de um contexto de justificação, que tem por

objeto de reflexão um aspecto específico do saber jurídico.

Fixado, em abstrato, o conceito de teoria jurídica, cabe agora ensaiar uma definição

para a teoria jurídica do Direito Penal do Inimigo.

A idéia básica que permeia a teoria do Direito Penal do Inimigo consiste em enunciar

que deve haver dois tipos de tratamento penal, de acordo com a natureza do delito cometido

pelo agente e também com as condições e características subjetivas do agente, como no caso

do terrorista, que comete vários delitos de natureza muito diversa.

Dessa forma, agentes que cometessem crimes, por assim dizer, “comuns”, não

destinados a abalar ou subverter a estrutura do Estado e de suas instituições, mereceriam

tratamento penal típico de cidadão, com todos os direitos e garantias que constitucional e

processualmente se lhe assegura.

Entretanto, àqueles que representassem um perigo potencial permanente para a

sociedade, dos quais não se pudesse esperar uma sólida reintegração ao corpo social ou que

cometessem delitos capazes de afrontar a higidez do Estado, deveria ser dispensado

tratamento penal típico de inimigo, cuja abordagem encontra-se disposta no próximo item

desta exposição.

Os elementos que permitiram a elaboração de tal síntese podem ser colhidos do

seguinte trecho, extraído da obra Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, o qual descreve

o tratamento penal a ser dispensado ao cidadão:

Em princípio, um ordenamento jurídico deve manter dentro do Direito também o

criminoso, e isso por uma dupla razão: por um lado, o delinqüente tem direito a

voltar a ajustar-se com a sociedade, e para isso deve manter seu status de pessoa, de

cidadão, em todo caso: sua situação dentro do Direito. Por outro, o delinqüente tem

o dever de proceder à reparação e também os deveres têm como pressuposto a

existência de personalidade, dito de outro modo, o delinqüente não pode despedir-se

arbitrariamente da sociedade através de seu ato.9

Outro trecho há, extraído dessa mesma obra, que aborda o tratamento penal que deve

ser dispensado ao inimigo:

Imediatamente, coloca-se a seguinte questão: o que diz Kant àqueles que não se

deixam obrigar? Em seu escrito “Sobre a paz eterna”, dedica uma extensa nota, ao

pé de página, ao problema de quando se pode legitimamente proceder de modo

hostil contra um ser humano, expondo o seguinte: “Entretanto, aquele ser humano

ou povo que se encontra em um mero estado de natureza, priva... [da] segurança

[necessária], e lesiona, já por esse estado, aquele que está ao meu lado, embora não

de maneira ativa (ato), mas sim pela ausência de legalidade de seu estado (statu

iniusto), que ameaça constantemente; por isso, posso obrigar que, ou entre comigo

em um estado comunitário-legal ou abandone minha vizinhança”.

Conseqüentemente, quem não participa da vida em um “estado comunitário-legal”

9 JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, pp. 25-26.

15

deve retirar-se, o que significa que é expelido (ou impelido à custódia de

segurança); em todo caso, não há que ser tratado como pessoa, mas pode ser

“tratado”, como anota expressamente Kant, “como um inimigo”.10

Considerando tudo quanto fora exposto até aqui, pode-se definir o Direito Penal do

Inimigo, nas palavras de Jakobs:

Resumindo o que foi dito até o momento em relação a esta evolução, que não é

precisamente nova: o Direito Penal dirigido especificamente contra terroristas tem,

no entanto, mais o comprometimento de garantir a segurança do que o de manter a

vigência do ordenamento jurídico, como cabe inferir do fim da pena e dos tipos

penais correspondentes. O direito penal do Cidadão e a garantia da vigência do

Direito mudam para converter-se em – agora vem o termo anatemizado – Direito

Penal do inimigo, em defesa frente a um risco.11

Sem prejuízo da definição acima estabelecida, Bernd Schunemann, catedrático de

Direito Penal da Universidade de Munique, na apresentação da obra Prolegômenos para a

luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a crítica do discurso de

resistência, de Gracia Martín, apresenta ainda outro conceito acerca da teoria ora estudada.

Este penalista alemão esboça um conceito de Direito Penal do Inimigo como sendo:

O Direito Penal do cidadão é o direito de todos, o Direito Penal do inimigo é

daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física,

até chegar à guerra. Esta coação pode ficar limitada em um duplo sentido. Em

primeiro lugar, o estado não necessariamente excluirá o inimigo de todos os

direitos. Neste sentido, o sujeito á custódia de segurança fica incólume em seu

papel de proprietário de coisas. E, em segundo lugar, o estado não tem por que

fazer tudo o que é permitido fazer, mas pode conter-se, em especial, para não

fechar a porta a um posterior acordo de paz. Mas isso em nada altera o fato de que a

medida executada contra o inimigo não significa nada, mas só coage. O Direito

Penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito Penal do inimigo (em

sentido amplo: incluindo o Direito das medidas de segurança) combate perigos;12

A definição acima, até certo ponto, carece de utilidade prática para a exposição há

pouco iniciada, pois reduz o Direito Penal do Inimigo a uma forma exacerbada de reação à

criminalidade econômica e ambiental, substituta do Direito Penal tradicional. Apesar de esse

conceito se confundir um pouco com a análise que Silva Sánchez traça da expansão do

Direito Penal enquanto reação à criminalidade majoritariamente globalizada e organizada,

pouco tem a ver com o conceito geral de relativização de direitos e garantias próprios do

chamado, para utilizar a terminologia de Jakobs, “direito penal do cidadão”.

Sobre a distinção entre direito penal do cidadão e Direito Penal do Inimigo, são

ilustrativas as palavras de Luís Greco a respeito do assunto:

O direito penal pode ver no autor um cidadão, isto é, alguém que dispõe de uma

esfera privada livre do direito penal, na qual o direito só está autorizado a intervir

10

JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, p. 27. 11

Ibidem, pp. 28-19. 12

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 11.

16

quando o comportamento do autor representar uma perturbação exterior; ou pode o

direito penal enxergar no autor um inimigo, isto é, uma fonte de perigo para os bens

a serem protegidos, alguém que não dispõe de qualquer esfera privada, mas que

pode ser responsabilizado até mesmo por seus mais íntimos pensamentos. "O

direito penal do inimigo optimiza proteção de bens jurídicos, o direito penal

cidadão optimiza esferas de liberdade". Ao contrário de uma difundida opinião,

Jakobs não vê no princípio da proteção de bens jurídicos uma idéia liberal, mas o

responsabiliza pelas cada vez mais freqüentes antecipações da proibição penal.13

São igualmente ilustrativas as palavras do Prof. Dr. Diogo Malan a respeito do tema:

Em estudo sobre a legitimidade da tipificação de condutas antecedentes à efetiva

lesão de um bem jurídico datado de 1985, o sobredito autor [Jakobs] estabelece,

pela primeira vez, uma distinção entre o Direito Penal do Cidadão

(Bürgerstrafrecht), o qual otimiza as esferas de liberdade, e Direito Penal do

Inimigo (Feindstrafrecht), que potencializa a proteção a bens jurídicos.

A esse propósito, faz ele uma distinção entre a intangibilidade da vida privada do

cidadão, sobre a qual é ilegítima a criminalização, e os atos materialmente

preparatórios de crimes praticados pelo inimigo, em relação aos quais é legítima a

intervenção do sistema penal.14

Ora, em relação ao trecho acima exposto, bem se observa que a criminalização de atos

preparatórios, ainda que praticados pelo indivíduo definido como inimigo, não se

compatibiliza com o que propõe o sistema jurídico-penal pátrio. Assim se pode afirmar

porque a realização de condutas meramente preparatórias não está revestida da necessária

lesividade a bens jurídico-penais, a partir da qual é possível delimitar o começo da

punibilidade das condutas.

Ainda em linha com a distinção entre direito penal do cidadão e direito penal do

inimigo, Diogo Malan tece ainda mais algumas considerações a esse respeito no artigo já

citado:

Em trabalho bem mais recente, JAKOBS voltou a examinar o conceito de Direito

Penal do Inimigo, dessa vez o aprofundando e sistematizando. Tomando como

ponto de partida a teoria da pena, ele diferencia as suas funções de contradição e de

eliminação de um perigo.

A primeira é característica do chamado Direito Penal do Cidadão, representando a

interação simbólica entre o fato criminoso e a coação penal, a qual traduz a resposta

social ao ataque à norma jurídica representado pelo fato criminoso. A segunda, por

sua vez, é típica do Direito Penal do Inimigo, servindo exclusivamente aos fins de

prevenção especial (negativa), sem qualquer conotação simbólica. Ambas as

funções referidas acima podem eventualmente ser legítimas e representam tipos

ideais, nunca sendo encontradas em uma configuração pura.15

Essa associação entre fins da pena e direito penal do cidadão, em Jakobs, ainda que

situada no plano teórico, carece de uma conexão efetiva capaz de revesti-la de maior

13

GRECO, Luís. Sobre o chamado Direito Penal do Inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São

Paulo, v. 56, n. 909, p. 80-97, set. 2005, p. 80. 14

MALAN, Diogo. Processo penal do inimigo. Disponível em:

<http://www.malanleaoadvs.com.br/artigos/processo_penal_inimigo.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2011, p. 2. 15

Ibidem, p. 3.

17

concretude porque, como bem se sabe, a teoria dos fins da pena traduz uma construção

ideológica destinada a legitimar a existência desta, não constituindo um critério concreto para

aferição da existência de um direito penal do cidadão, entendido um direito penal de viés

garantista.

Apesar de ser incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, como adiante se

procurará demonstrar, o Direito Penal do Inimigo, enquanto forma jurídica correspondente à

necessidade de eliminação de um perigo, traduz uma associação mais concreta entre o

paradigma funcionalista que propõe e as medidas (de eliminação) que recomenda executar no

campo da prática do sistema penal.

Nesse contexto, apresenta-se o modelo penal baseado em todo um arcabouço de

garantias duplamente enfraquecido: a uma porque o modelo de direito penal do cidadão, ao

qual corresponde, nada mais faz senão corresponder às exigências de um conceito de

prevenção especial negativa; a duas porque o Direito Penal do Inimigo, ao propor a

neutralização concreta de um perigo, que pretende eliminar, atende a objetivos concretos

capazes de realizar efetivamente o programa punitivo nele contido.

A exposição das idéias de Jakobs a respeito do papel do bem jurídico enquanto limite

de atuação da intervenção penal, como se pode muito bem ler acima, é que se afigura um

tanto quanto distorcido. O princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos que pode, no

contexto dado, ser encarado como pertencente ao direito penal do cidadão, não pode ser

responsável pela antecipação das barreiras de intervenção penal.

É justamente a intervenção de tal princípio que é capaz de frustrar iniciativas que

buscam expandir o Direito Penal, como a incriminação de atos preparatórios e a proliferação

sistemática de delitos de perigo. Ocorre que a atuação de princípios de garantia, no âmbito do

Direito Penal do Inimigo, é minimizada ou negada com relação àqueles aos quais, convém

frisar, por decisão política se decidiu atribuir o rótulo de inimigo, como adiante se verá.

É no bojo de semelhante onda punitiva, representada por esta vertente teórica em

exame, que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, ou até mesmo o próprio bem

jurídico enquanto produto de construção dogmática capaz de traçar os lindes da intervenção

penal, são postos em cheque enquanto elementos delimitadores da intervenção penal do

Estado na esfera das liberdades de seus cidadãos.

À medida que a exposição de Luís Greco, há pouco citado, avança, as idéias de

Jakobs vão sendo expostas paulatinamente e começam a formar um todo mais homogêneo,

não sem um tom um tanto quanto preocupante. A relativização das garantias tituladas pelo

18

inimigo é tão ampla que atingem o ápice de seu enfrentamento enquanto não-pessoa.

Observe-se o que esse autor escreve a respeito do assunto:

E o mesmo vale para a personalidade do autor. Pessoa, em Jakobs, é um termo

técnico, que designa o portador de um papel, isto é, aquele em cujo comportamento

conforme à norma se confia e se pode confiar. "Um indivíduo que não se deixa

coagir a viver num estado de civilidade, não pode receber as bençãos do conceito

de pessoa". Inimigos são "a rigor não-pessoas", lidar com eles não passa de

"neutralizar uma fonte de perigo, como um animal selvagem". Características do

direito penal do inimigo são uma extensa antecipação das proibições penais, sem a

respectiva redução da pena cominada, e a restrição das garantias processuais do

estado de direito, tal qual é o caso principalmente nos âmbitos da delinqüência

sexual e econômica, do terrorismo e da chamada legislação de combate à

criminalidade. Na mais recente manifestação, são mencionados como ulteriores

exemplos do direito penal do inimigo alguns pressupostos da prisão preventiva, as

medidas de segurança, a custódia de segurança e as prisões de Guantánamo.16

A mediação entre a realidade dos conceitos e sua representação no mundo das idéias,

ao ser efetuada somente pelas normas jurídicas, como propõe Jakobs (ex.: “tirar a vida”

enquanto homicídio porque o Código Penal assim dispõe; “pessoa” enquanto organismo

humano vivo enquanto titular de direitos e garantias porque o Código Civil assim dispõe)

representa uma limitação que em muito prejudica a compreensão e crítica do tema em voga,

como até mesmo propõe problemas relativos à gênese do próprio direito.

Abstraindo-se a realidade proposta pela ideologia dominante, que propõe pensar tudo

o que existe como dado previamente constituído, obliterando a reflexão e a crítica,

suponhamos que em algum momento os indivíduos viveram em desordem, sem lei, em algo

como o aparentemente fictício “estado de natureza” hobbesiano. Ora, se o conceito de que

matar alguém é errado, por ser contra o direito,é definido por uma norma legal, ou de que ser

ou não ser pessoa igualmente o é, como se chegou à construção não só desses, mas de todos

os conceitos atualmente existentes e qualificados por normas jurídicas?

Sem entrar em considerações de cunho jusnaturalista, avaliamos ser esta hipótese

pouco provável. Antes de existir o direito, os homens, que em algum momento, deliberaram

fazer as leis que o regeriam, precisaram, de alguma forma, entrar em acordo acerca daquilo

que sua lei regularia. Por exemplo: como é possível elaborar uma legislação que coíba a

alienação parental sem delimitar as características desse fenômeno? Como regular situações

de fraude, cominando-lhes penas, sem distinguir o que é legítimo e o que é fraudulento?

Uma coisa não obedece determinada forma tão só porque a norma jurídica assim

define. Ou há um consenso originalmente estabelecido sobre o âmbito de proteção da norma

16

GRECO, Luís. Sobre o chamado Direito Penal do Inimigo, pp. 81-82.

19

ou, de outra forma, esse acordo houve de ser feito em algum momento, anterior ou

concomitante à respectiva regulação.

É nesse particular aspecto que se destaca o viés funcionalista do Direito Penal do

Inimigo pois, ao legitimar, com argumentos semelhantes a estes ora abordados, a aplicação

do Direito Penal, ainda que em detrimento de determinados indivíduos, busca reforçar-lhe a

(aparente) função deste ramo do direito de preservar a “ordem social estabelecida”, ou de

“manter a coesão social”, ou qualquer desses valores nitidamente inspirados nas recorrentes

campanhas de lei e ordem que refluem de tempos em tempos.

Sem embargo dos elementos já apresentados, Luís Greco expõe uma tripla

conceituação que julgamos bastante útil registrar a bem da abordagem teórica que ora se faz

do tema. Esse autor, por entender que o tema carece de uma conceituação mais precisa, busca

formular um conceito mais claro de Direito Penal do Inimigo. Para isso, recorre a uma tripla

conceituação baseada nas finalidades que esse conceito traz consigo. Observe-se a

justificação para a adoção dessa metodologia:

Bem se poderia responder ceticamente à tese que acabo sumariamente de formular.

Afinal, não pareceria suficientemente claro qual o sentido da expressão "direito

penal do inimigo"? De um ponto de vista semântico, sim: o direito penal do inimigo

é o tipo ideal de um direito penal que não respeita o autor como pessoa, mas que

almeja neutralizá-lo como fonte de perigo. Mas se o conceito é claro do ponto de

vista semântico, permanece ele deveras obscuro no que diz respeito ao seu

significado pragmático, isto é, às finalidades ou funções que se tentam alcançar

com sua utilização no discurso científico. A rigor, podem-se almejar ao menos três

finalidades com o conceito de direito penal do inimigo, o que levará a três

conceitos de direito penal do inimigo.17

O primeiro conceito se confunde com um conceito descritivo. Sob tal perspectiva, o

Direito Penal do Inimigo seria utilizado como uma ferramenta capaz de descrever melhor o

direito positivo. Por exemplo, algumas normas do ordenamento jurídico positivo poderiam

ser classificadas como Direito Penal do Inimigo, sem a emissão de um juízo de valor positivo

ou negativo a respeito dessas normas.

Como crítica, pode-se dirigir a esse conceito o fato de ser uma forma acrítica de

raciocínio, que se preocupa em descrever uma realidade sem avaliar suas implicações

jurídico-penais. Em nosso sentir, identificar o Direito Penal do Inimigo como uma ferramenta

meramente descritiva, capaz de efetuar categorizações dentro do sistema, permitiria a sua

mais fácil aceitação, legitimando-o como mais um modelo teórico, sem pretensões além do

aprimoramento na explicação e descrição de um fenômeno. Entretanto, como se verá adiante,

não é esse o nosso posicionamento a respeito do tema.

17

GRECO, Luís. Sobre o chamado Direito Penal do Inimigo, p. 83.

20

O segundo conceito tratado por Luís Greco em sua exposição é aquele que viria

carregado de uma função nomeada pelo autor como crítico-denunciadora. Essa função seria

cumprida a partir, necessariamente, da emissão de um juízo de valor negativo a respeito de

uma determinada norma ao categorizá-la como sendo Direito Penal do Inimigo. Nesse

sentido, Direito Penal do Inimigo apareceria como um rótulo carregado de uma conotação

anti-liberal e contrária ao estado de direito, passível de ser conferida às normas.

Apesar de analisarmos semelhante perspectiva com reservas, posto que parece

constituir um argumento de defesa para normativos de viés nitidamente anti-democrático e

capazes de violar garantias, tal concepção é a que mais se aproxima da concepção ora adotada

e que permeará toda a exposição, sobretudo no capítulo seguinte, que cuida da crítica ao

Direito Penal do Inimigo.

O terceiro conceito se confundiria com um conceito legitimador-afirmativo do Direito

Penal do Inimigo. Apesar do nome, esse conceito não implica na emissão de um juízo de

valor positivo acerca do Direito Penal do Inimigo. Esse terceiro e último conceito

representaria a aceitação de uma norma, classificável como Direito Penal do Inimigo, em

bases diversas daquelas tidas como direito penal do cidadão.

Nesse sentido, normas que se enquadrassem no paradigma da flexibilização de

direitos e garantias penais de determinados indivíduos possuiriam pressupostos de

legitimidade diversos daqueles próprios das normas que não o fazem. Esse conceito, sem

ingressar em maiores âmbitos de discussão, viola flagrantemente o princípio da isonomia, que

permeia todo o ordenamento jurídico.

Admitir que uma norma editada em detrimento de determinados cidadãos e, assim

sendo, em claro benefício de outros, malfere a igualdade constitucionalmente assegurada a

todos os indivíduos. A igualdade, inclusive formal, que deve haver entre todos os membros

de uma sociedade é afrontada pela legitimação de normas com tais características.

Apesar de Luís Greco não tomar uma posição a respeito, atitude que motiva a partir

da ambigüidade do discurso de Jakobs, diga-se que a função exercida pelo precursor desta

teoria penal é flagrantemente legitimadora de suas próprias idéias e, por via de conseqüência,

do Direito Penal do Inimigo propriamente dito.

A exposição do autor em comento não soluciona definitivamente a questão, ao menos

constitui uma análise satisfatoriamente isenta da problemática própria do tema. Aliado à

dificuldade natural de estabelecer um conceito, fazê-lo com certo grau de isenção e critério

por si só constitui um mérito. Acreditamos que tudo quanto até aqui foi exposto basta, por

ora, para firmar um conceito satisfatório sobre o Direito Penal do Inimigo.

21

Dessa forma, fica estabelecido o alcance do Direito Penal do Inimigo enquanto teoria.

Tal teoria diferencia-se do direito penal e do direito processual penal positivados porque estes

constituem seu objeto de estudo. Esse estudo é orientado pela divisão do corpo social em

cidadãos e em inimigos. Portanto, trata-se de um modelo de abordagem do Direito Penal e do

Direito Processual Penal, de um paradigma que propõe, de algum modo, uma relativização de

conceitos clássicos que estruturam o Direito Penal tradicional, vigente em nosso país, de viés

garantista, com todos os seus consentâneos.

Trata-se de modelo que propõe uma reavaliação dos princípios que orientam o Direito

Penal tradicional, sobretudo no que tange a uma certa gama de indivíduos (os inimigos), na

linha da expansão do Direito Penal. Pode o Direito Penal do Inimigo também, conforme visto

em Luís Greco, ser triplamente conceituado com base na função com da qual seja imbuído.

Sem entrar em maiores detalhes sobre as conseqüências da adoção deste modelo para

o Estado democrático de direito, que serão tratadas no capítulo seguinte, adiantamos que,

certamente, sua predominância ou, até mesmo, simples aceitação pode ser elemento capaz de

proporcionar um alargamento das margens do poder punitivo, até o Estado de exceção. Essa

via de hipotética escalada do Direito Penal do Inimigo, até o limite de seus desdobramentos

na legislação brasileira, é que será percorrida daqui por diante.

Estabelecido o conceito que principiamos por expor, para conferir celeridade à escrita,

a teoria jurídica do Direito Penal do Inimigo será indicada simplesmente como Direito Penal

do Inimigo, sem prejuízo de tudo quanto foi escrito até então.

1.1. O tratamento penal típico de inimigo

Conforme exposto na seção precedente e de acordo com a concepção de Jakobs,

inimigo é aquele de quem não se pode racionalmente esperar uma conduta em conformidade

com as normas social e juridicamente estabelecidas. Na concepção kantiana, essa situação de

rebeldia frente ao direito e aos demais membros da sociedade autoriza a atuação hostil em

face do inimigo.

Afinal, como se poderia satisfatoriamente tutelar os interesses de alguém, enquanto

membro da comunidade, que se recusa a aceitar os deveres e obrigações a todos impostos,

sobretudo o comportamento natural e esperado relativo ao não cometimento de infrações

penais? Se, para a constituição de um Estado, todos precisaram abrir mão de parte das

liberdades conaturais ao ser humano, é ainda mais natural que haja revolta direcionada contra

quem rompe com essa lógica de sujeição à vontade da maioria.

22

Apesar de se tratar de um argumento logicamente constituído com base na melhor

filosofia, é fácil de observar que esta sólida construção despreza, sem nenhum acanhamento,

o fenômeno do desvio e introduz em cena a problemática das liberdades. Ora, se há uma

sanção destinada àquele que se comporta de uma determinada forma perante o corpo social,

há a opção de agir daquela forma, ainda que haja um contra-estímulo.

Admitir que quem o faz de forma reiterada representa um perigo significa negar ao ser

humano a capacidade de se autodeterminar, delinqüindo, ou, já o tendo feito, de se reabilitar,

para utilizar uma terminologia própria da função de prevenção especial positiva. Dizer que

quem delinqüe reiteradamente é perigoso, ou, tendo cometido um crime muito grave, não

deve ser tratado mais como pessoa, mas como inimigo, representa negar contrafaticamente a

possibilidade de o ser humano fazer de outra forma.

Observe-se que, até certo ponto, ao definir delitos e cominar penas, o direito atua

contrafaticamente pois, milenarmente, por narrativas às vezes históricas e, outras vezes,

fantásticas18

, tomamos conhecimento de acontecimentos praticados mesmo contra

disposições expressas de lei, tendo a proibição uma tendência quase que natural de incentivar

a prática da conduta.

Isso, se não comprova, ao menos indica uma tendência humana natural ao desvio que

pode, até certo ponto, minimizar a idéia de que quem delinqüe é naturalmente perigoso. Feita

essa constatação, não seríamos perigosos todos nós, posto que potencialmente desviantes?

Dados que apontam para essa tendência humana ao desvio podem ser encontrados na

exposição de Alessandro Baratta, quando expõe a teoria estrutural-funcionalista da anomia e

da criminalidade:

A teoria estrutural-funcionalista da anomia e da criminalidade afirma:

1) As causas do desvio não devem ser pesquisadas nem em fatores bioantropológicos

e naturais (clima, raça), nem em uma situação patológica da estrutura social.

2) O desvio é um fenômeno normal de toda estrutura social.

3) Somente quando são ultrapassados determinados limites, o fenômeno do desvio é

negativo para a existência e o desenvolvimento da estrutura social, seguindo-se um

estado de desorganização no qual todo o sistema de regras de conduta perde valor,

enquanto um novo sistema ainda não se afirmou (esta é a situação de “anomia”).

18

No sentido de fantasia. A título de exemplo, note-se que a Bíblia contém o relato do primeiro homicídio, em

uma realidade, em princípio, pré-jurídica. Interessante observar que, já aí, o ato de matar um semelhante é

valorado negativamente, tendo conseqüências muito graves, sem que houvesse um código de conduta

previamente estabelecido, posto que os habitantes do “paraíso” aparentemente não tinham outra obrigação

senão cuidar de si mesmos, somado ao fato de que, pela ordem dos acontecimentos de tal narrativa, a lei

mosaica, que continha o “não matarás”, ter sido escrita depois.

23

Ao contrário, dentro de seus limites funcionais, o comportamento desviante é

elemento necessário e útil para o equilíbrio e o desenvolvimento sócio-cultural.19

Essa consideração do desvio como elemento natural e, até certo ponto benéfico, vai na

contramão do que propõe o Direito Penal do Inimigo. Essa teoria, ao definir o inimigo como

potencial fonte de perigo, como diferente, chegando ao extremo de caracterizá-lo como “não-

pessoa”, na prática, acaba negando essa função do desvio como uma espécie de lubrificante

das relações sociais. Afinal, que mente resistiria, permanecendo perfeitamente sã, a uma

obediência cega às regras o tempo todo?

O paradigma proposto pelo Direito Penal do Inimigo, ressalte-se, cumpre uma função

de vigilância, tanto quanto ou até mais forte do que a apontada por Foucault com relação à

prisão. Afinal, trata-se da possibilidade de neutralizar um indivíduo tão só pela expectativa de

que possa vir a cometer crimes semelhantes aos que já cometera (periculosidade), ou tão só

pelo fato de pertencer, ou se acreditar que pertença, a uma organização criminosa.Todos esses

juízos são inadmissíveis sob o ponto de vista do estado democrático de direito e sua aceitação

tem sérias implicações sobre a conformação das instituições republicanas, sobretudo sob o

prisma dos direitos e garantias, como adiante se verá.

Note-se que a resposta penal em face do inimigo não é dada em função da violação da

lei penal decorrente de um ato por ele praticado (função retributiva da pena). Trata-se da

tentativa de neutralizar um perigo, tentativa essa que é motivada e justificada, no dizer de

Zaffaroni, pelas “emergências”20

. É essa definição de Zaffaroni que começa por desconstruir

a possibilidade de existência de um “conceito ôntico”, no dizer deste renomado penalista

argentino, de inimigo.

A construção do inimigo ocorre a partir de uma decisão política que alcança,

normalmente, aqueles indivíduos que o Estado quer combater, por necessidade, geralmente

criada, ou por simples capricho ou ódio. Foi o caso, por exemplo, da caça às bruxas da idade

média, ou da perseguição aos judeus durante a II Guerra Mundial ou, ainda, em período mais

recente, da onda anticomunista própria do período da Guerra Fria.

Todos esses movimentos têm em comum o fato de a persecução estatal ter sido

sistematicamente direcionada a um determinado grupo de indivíduos, e em seu prejuízo, por

uma estrutura de Estado capaz de despi-los de seus direitos e garantias mais básicos. A

19

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito

Penal, p. 59-60. 20 Ver a definição de emergência em ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 143, a qual é dada

como sendo os “momentos em que cabe definir e enfrentar o inimigo”.

24

construção de uma categoria de “não-pessoas”, conforme já colocado, é fundamental para

esse processo e em tudo contribui para o surgimento e alargamento de um Direito Penal do

Inimigo.

Dentre as mais diversas idéias cultivadas por Jakobs em torno da figura do inimigo, a

que mais chama a atenção é a legitimação da custódia de segurança. Esse instituto de direito

alemão, recentemente condenado pela Corte Européia de Direitos Humanos, nada mais é

senão a continuação da prisão por cautela, depois do cumprimento da pena, para os

criminosos perigosos com risco de reincidência21

.

Essa continuação da pena via custódia de segurança muito se assemelha ao sistema de

duplo binário, que recomenda a aplicação sucessiva de pena e de medida de segurança. Ao

passo que a primeira é adotada em resposta ao cometimento de uma infração penal, a segunda

é levada a cabo enquanto elemento de combate de um perigo.

Esse fundamento diferenciado, em realidade, constitui, de certa forma, um bis in idem,

posto que, para uma mesma conduta, pune-se o agente duas vezes: aplicando-se-lhe uma pena

e submetendo-lhe a uma custódia que, fundamentada na periculosidade do agente, tem

natureza jurídica, em nosso ver, de medida de segurança. Essa duplicidade no momento da

punição é, de princípio, uma evidência do tratamento privilegiado, em sentido obviamente

negativo, dos indivíduos que o Estado discricionariamente elevou à categoria de inimigos.

Essa função legitimadora exercida pelo discurso de Jakobs e sua posição acerca do

tratamento penal que deve ser dispensado ao inimigo são sintetizadas no seguinte trecho:

Certamente, o Estado tem direito a procurar segurança frente a indivíduos que

reincidem persistentemente na comissão de delitos. Afinal de contas, a custódia de

segurança é uma instituição jurídica. Ainda mais: os cidadãos têm direito de exigir

do Estado que tome medidas adequadas, isto é, têm direito à segurança, com base

no qual Hobbes fundamenta e limita o Estado: finis oboedientiae est protectio. Mas

neste direito não se encontra contido, em Hobbes, o réu de alta traição; em Kant,

quem permanentemente ameaça; trata-se do direito dos demais. O Direito Penal do

cidadão é de todos, o Direito Penal do inimigo é daqueles que o constituem contra

o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra.22

;

Essa pequena amostra do discurso de Jakobs, ao identificar o tipo de tratamento que

deve ser destinado ao inimigo, é suficiente para descortinar um amplo leque de reflexões. À

primeira vista, revela-se a flagrante incompatibilidade do Direito Penal do Inimigo com o

ordenamento jurídico-penal brasileiro. Um direito penal de garantias não comporta traços

21

Para a definição de custódia de segurança, ver MAGALHÃES, Graça. A legião de criminosos que assusta a

Alemanha. Ministério das Relações Exteriores, 05 set. 2010. Disponível em:

<http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-de-noticias/midias-nacionais/brasil/o-

globo/2010/09/05/a-legiao-de-criminosos-que-assusta-a-alemanha>. Acesso em: 21 ago. 2011. 22 JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, pp. 28-29.

25

típicos de direito penal de autor, como se estudará com mais atenção logo adiante. Esse traço

típico de direito penal de autor fica evidente quando o inimigo em si é considerado um perigo

a ser neutralizado, não sendo necessariamente perigoso pela conduta que praticou, mas pelas

ações que dele se pode esperar.

Essa falta de garantias cognitivas, que junto de uma série de outras premissas, está na

base da teoria do Direito Penal do Inimigo, não é suficiente para que se possa infligir ao

indivíduo uma sanção penal ou, sob o prisma da periculosidade, uma medida de segurança.

Apenas para antecipar um pouco a discussão, admitir uma verdade como essa significa, em

última análise, negar a um egresso do sistema carcerário, por exemplo, sua reintegração ao

meio social, que constitui inclusive uma das funções declaradas da pena (ideologias re,

próprias da função de prevenção especial positiva).

Supor que aquele que praticou um crime grave é incapaz de agir conforme o direito

enquanto durar sua vida é uma atitude, além de atentatória a direitos e garantias, irracional do

ponto de vista lógico. Afinal, não há como prever, no lapso de tempo que dura uma vida

humana, com um grau satisfatório de certeza, que um determinado evento certamente voltará

a ocorrer. Em último grau, o Direito Penal do Inimigo peca por transformar a exceção em

regra, admitindo que desvios no comportamento de um indivíduo voltarão a ocorrer

sistematicamente com base em um abstrato juízo de periculosidade.

Em que pesem as considerações acerca de nossa perversa distribuição de renda, em

que muitos, dia após dia, são empurrados para o crime sem qualquer alternativa, admitir,

como já foi dito, que alguém que tenha passagens freqüentes pela polícia continuará levando

uma vida à margem da lei, ou que um homicida jamais se reintegrará à sociedade, constitui

um juízo que não apresenta nenhum prognóstico possível de verificação.

A argumentação acima seria totalmente verdadeira caso não fosse considerada uma

variável importante: o desvio secundário. O indivíduo, ao receber reiteradamente o rótulo de

criminoso, sendo segregado primeiramente pelo sistema prisional, que o marca por toda a

vida, e depois pela sociedade, que não o aceita de volta, segundo a lógica irrepreensível da

profecia que realiza a si mesma, assume esse rótulo como uma verdade e passa a se

comportar dentro desse modelo.

Uma vez dado esse passo, talvez se pudesse dizer que assiste alguma razão á teoria

que aponta justamente para isto: para uma periculosidade intrínseca, pré-determinada,

qualificada por atos que não autorizam um prognóstico favorável para aquele indivíduo em

termos de comportamento. Bem, de qualquer forma, isso representaria tomar um pouco os

efeitos pelas causas: esse fenômeno de desvio secundário, caracterizado pela interiorização

26

do rótulo de criminoso por um determinado indivíduo, é gerado justamente pelo estigma que

se lhe atribui, e não o contrário. Não se trata de uma característica que o acompanha e que se

manifesta, mas de uma reação aos estímulos do meio, que o segrega. Isto posto, torna-se

possível avançar ainda mais nessa exposição.

Sem prejuízo de tudo quanto já foi dito, a partir da análise do pensamento de Jakobs,

fica claro que, no contexto do Direito Penal do Inimigo, o aparato penal do Estado é

manejado necessariamente contra quem é definido como sendo inimigo. Esse dado revela

“uma forma exacerbada de reprovação”23

, no dizer de Cancio Meliá, que pode ser entendida

como uma acentuação da função retributiva da pena (desde que se entenda as medidas

tomadas contra o inimigo como pena, o que é, sob todos os aspectos, discutível).

Essa acentuação da função retributiva da pena fica evidente na seguinte passagem do

texto de Cancio Meliá:

Por isso, de certo modo, enquanto o discurso legitimante do Direito Penal do

inimigo positivo na discussão político-criminal parece afirmar que há algo “menos”

que o direito penal da culpabilidade (a reação imprescindível, mas serena, sem

censura, tecnocrática frente a um risco gravíssimo; uma reação frente a um perigo

examinado de modo neutro), na realidade é algo “mais” (a construção de uma

categoria de representantes humanos do mal; algo mais grave que ser

“simplesmente” culpado).24

A “construção de uma categoria de representantes humanos do mal” (inimigos), de

um lado, e a exacerbação da reprovação dirigida a esses inimigos, de outro, constitui o núcleo

duro do Direito Penal do Inimigo. Essa ideia a uma velha ideologia que, historicamente,

permeia todo o pensamento criminológico. Trata-se da ideologia da defesa social, dissecada

por Alessandro Baratta em sua obra Criminologia crítica e crítica do Direito Penal:

introdução à sociologia do Direito Penal.

Em síntese, a ideologia da defesa social pode ser enunciada como sendo aquela que

postula a existência de uma comunhão de interesses, supostamente existente na sociedade,

que justifica e legitima a punição dos delitos25

. Na atualidade, essa concepção coincide, com

o que Zaffaroni designa por “novo autoritarismo cool do século XXI”26

, que nada mais é

senão a reedição pós-moderna das campanhas de lei e ordem, marcadas pela necessidade

crescente de frear uma suposta criminalidade. No dizer desse brilhante penalista argentino,

23

JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, p. 106. 24

Ibidem. 25

Para um maior detalhamento acerca da ideologia da defesa social e de seus princípios, ver BARATTA,

Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal, pp. 41 e

seguintes. 26

ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 59.

27

Este novo autoritarismo, que nada tem a ver com o velho ou o de entre-guerras, se

propaga a partir de um aparato publicitário que se move por si mesmo, que ganhou

autonomia e se tornou autista, impondo uma propaganda puramente emocional que

proíbe denunciar e que, ademais – e fundamentalmente -, só pode ser caracterizado

pela expressão que esses mesmos meios difundem e que indica, entre os mais

jovens, o superficial, o que está na moda e se usa displicentemente: é cool. É cool

porque não é assumido como uma convicção profunda, mas sim como uma moda, à

qual é preciso aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar e

para não perder espaço publicitário.

Com isso se quer dizer que a construção do inimigo, nos moldes propostos por

Jakobs, não é novidade, tampouco movimento autônomo e independente, descolado da

realidade social e vivo apenas na mente de um doutrinador. Tal movimento se dá a partir da

concatenação de vetores cuja resultante é uma categoria de inimigo (ou inimigos) destinada a

atender às “emergências” do Estado, já definidas. Esse propósito, bem como as críticas que

lhe podem ser dirigidas, está disposto no próximo item deste capítulo, assunto que será objeto

de maiores reflexões no terceiro capítulo deste breve estudo.

1.2. Críticas

Não se pode tecer uma crítica séria do pensamento de Jakobs sem passar pelas

pertinentes considerações de Raúl Zaffaroni acerca do conceito de inimigo e de suas

conseqüências em matéria de Direito Penal e de política criminal. Tais conseqüências são

especialmente relevantes quando se trata da América Latina, especialmente marcada por

desigualdades históricas que em muito facilitam a seletividade do controle penal27

, cuja

acentuação pode ser apontada como conseqüência direta da adoção do Direito Penal do

Inimigo enquanto bússola para elaboração de leis penais.

Um dado que chama a atenção na análise de Zaffaroni acerca da conjuntura carcerária

latino-americana é a quantidade de “processados não condenados” que habita o sistema

prisional:

A característica mais destacada do poder punitivo latino-americano atual em relação

ao aprisionamento é que a grande maioria – aproximadamente 3/4 – dos presos está

submetida a medidas de contenção, porque são processados não condenados. Do

ponto de vista formal, isso constitui uma inversão do sistema penal, porém,

segundo a realidade descrita e percebida pela criminologia, trata-se de um poder

punitivo que há muitas décadas preferiu operar mediante a prisão preventiva ou por

medida de contenção provisória transformada definitivamente em prática. Falando

mais claramente: quase todo o poder punitivo latino-americano é exercido sob a

27

Para uma análise da seletividade do controle penal, ver ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA,

Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, pp. 45 e ss.

28

forma de medidas, ou seja, tudo se converteu em privação de liberdade sem

sentença firme: apenas por presunção de periculosidade.28

Curiosamente, essa prática reiterada de manutenção de presos provisórios, que se

encontram na situação anômala de cerceamento da liberdade sem o trânsito em julgado de

sentença penal condenatória, muito se aproxima do instituto germânico da custódia de

segurança, abordado no item precedente. Essa aproximação se dá principalmente porque se

tem a contenção do indivíduo em função da crença em sua periculosidade, a despeito da não

condenação (caso da prisão provisória) ou do cumprimento integral da pena (caso da custódia

de segurança). Ambas as situações evidenciam tratamento penal típico de inimigo, na mais

crua acepção de Jakobs.

Esse encarceramento sem “sentença firme”, conforme apontado pelo autor em

comento, coloca em cheque muitos valores do processo penal e do ordenamento jurídico

como um todo. O devido processo legal é afrontado quando se admite a manutenção no

cárcere de tantos indivíduos sem um título apto a fundamentar esta medida. Além do que essa

tática de neutralização das classes subalternas, que no Brasil já atinge escandalosas

proporções, gera problemas de dimensões catastróficas no ordenamento social e econômico,

como o alto custo político e econômico da manutenção de prisões, enquanto outros serviços

públicos vitais padecem à míngua.

Outra questão que se coloca em face desse quadro é a sobrecarga dos juízos

responsáveis pelas execuções penais, que historicamente representa uma história de miséria

em muitas partes do mundo, inclusive nos países mais desenvolvidos29

. Apesar de Foucault

apresentar a idéia de que o direito das execuções penais foi originalmente pensado para não

funcionar, mantendo os indesejáveis por mais tempo, e em piores condições, nas prisões,

verifica-se que essa funesta conjunção das estruturas de poder se opera em detrimento dos

presos, que são a categoria de jurisdicionados mais interessados em seu funcionamento.

Apesar de cumprir uma pena por um ato que cometeu, apurado em um procedimento

que, ao menos em tese, observou todas as garantias constitucionalmente asseguradas, o preso

não está privado de todos os seus direitos e faz jus à tutela jurisdicional, sobretudo com

relação à situação de periculum in mora que se apresenta em determinados casos (p. ex.

celeridade no deferimento de um habeas corpus, capaz de proporcionar a liberdade ao preso

ou o escorreito cumprimento da pena privativa de liberdade, que deixa o indivíduo quite com

28

ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 70. 29

Para um quadro da miséria carcerária na Europa do século XIX, é bastante ilustrativa a análise feita em

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 35ª ed. Petrópolis, Vozes, 2008.

29

o Poder Judiciário). Dessa forma, o funcionamento precário da execução penal, apesar de

atendera razões de Estado, sendo uma das possíveis respostas, entre outras, nas chamadas

emergências, brilhantemente definidas por Zaffaroni, se dá contra aqueles que mais precisam

a prestação jurisdicional a cargo desses órgãos jurisdicionais e agrava a situação de um

sistema prisional em crise, como é o sistema prisional brasileiro. Apenas a título de reflexão:

não seria o sucateamento do sistema prisional, por si só, uma medida exercida em face dos

ditos inimigos?

Isto posto, cabe analisar os demais aspectos da crítica de Zaffaroni ao Direito Penal do

Inimigo, começando pela ameaça materializada na individualização de inimigos sem

características físicas imediatamente perceptíveis, que constitui uma questão extremamente

interessante e um argumento muito contundente no combate a essa tendência no âmbito do

Direito Penal.

a) Zaffaroni

A idéia central que permeia a análise crítica do Direito Penal do Inimigo, à luz do

pensamento de Raúl Zaffaroni, é bastante simples: se é buscada a individualização de

inimigos que não ostentam características físicas a priori identificáveis, deverão ser feitas

investigações complementares no intuito de individualizar e, conseqüentemente, tomar as

medidas próprias aplicáveis aos inimigos do Estado (tratamento penal típico de inimigo,

abordado na seção anterior). É no trâmite dessas investigações que os direitos e garantias dos

demais cidadãos (não inimigos) estão em risco, posto que as investigações mencionadas

podem, potencialmente, dirigir-se a eles. Sobre tal ponto, assim se expressa Zaffaroni:

Quando os destinatários do tratamento diferenciado (os inimigos) são seres

humanos não claramente identificáveis ab initio (um grupo com características

físicas, étnicas ou culturais bem diferentes), e sim pessoas misturadas ao e

confundidas com o resto da população e que só uma investigação policial ou

judicial pode identificar, perguntar por um tratamento diferenciado para eles

importa interrogar-se acerca da possibilidade de que o Estado de direito possa

limitar as garantias e as liberdades de todos os cidadãos com o objetivo de

identificar e conter os inimigos.

Isso é assim porque, por exemplo, ao se permitir a investigação das comunicações

privadas para individualizar os inimigos, a intimidade de todos os habitantes será

afetada, pois esta investigação incluirá as comunicações de milhares de pessoas que

não são inimigos. Ao se limitarem as garantias processuais, mediante a falta de

comunicações, restrições ao direito de defesa, prisões preventivas prolongadas,

presunções, admissão de provas extraordinárias, testemunhas sem rosto,

magistrados e acusadores anônimos, denúncias anônimas, imputações de co-

processados, de arrependidos, de espiões, etc., todos os cidadãos serão colocados

30

sob o risco de serem indevidamente processados e condenados como supostos

inimigos.30

Trazendo essa análise para a realidade brasileira, vislumbra-se uma tentativa, ainda

que frustrada, de evitar a propagação indiscriminada de arbitrariedades investigativas,

sobretudo em direção à camada mais rica da população. De modo que a classe dominante não

sofra constrangimentos, a pobreza é estrategicamente estigmatizada e criminalizada,

viabilizando a produção de um inimigo facilmente identificável31

. A criação de estereótipos

em muito contribui para esse processo e se afigura indispensável para a produção da categoria

jurídica de inimigo, como mais adiante se verá.

Tal processo é capaz de atender às emergências de Estado, minimizando os

inconvenientes relativos às verdadeiras imunidades penais das quais goza, p. ex., a

criminalidade econômica32

. Apesar de ter sido muito alardeado por Silva Sánchez a expansão

do direito penal contra a grande criminalidade organizada e a criminalidade econômica, neste

estudo se adota uma postura cética a respeito do assunto.

b) Direito Penal do Inimigo enquanto direito penal de autor

Esta seção analisa o Direito Penal do Inimigo enquanto direito penal de autor

(consideração da pessoa do criminalizado), denunciando a contradição intrínseca, e

conseqüente incompatibilidade, dessa doutrina com o ordenamento jurídico-penal brasileiro,

calcado no direito penal do fato (privilégio à conduta delituosa quando da aplicação da lei

penal). Antes, porém, de ingressar no mérito dessa análise, insta fazer breves comentários a

um e a outro modelo.

Dizer que um dado modelo de Direito Penal do fato privilegia o direito penal do fato,

em detrimento do direito penal de autor, significa dizer que, para efeitos de apuração da

responsabilidade penal, é a conduta do agente que contém elementos decisivos capazes de

constituir a imputação. Em relação ao modelo do direito penal de autor, este conta com a

consideração da pessoa do agente, o que introduz uma série de questionamentos relativos à

30

ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, pp. 116-117. 31

Ver ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal

Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, na parte em que os autores brilhantemente dissertam acerca da

“obra tosca da criminalidade”, ou seja, delitos de autoria quase que exclusiva das classes baixas, de pouca ou

nenhuma instrução. 32

Ver SUTHERLAND, Edwin H. Is “white collar crime” crime?. American Sociological Review. Vol. 10, No.

2, 1944 Annual Meeting Papers (Apr., 1945), pp. 132-139, artigo em que a própria definição de crime é

questionada em face da criminalidade econômica e organizacional.

31

sua legitimidade. Um dado importante introduzido pelo direito penal de autor, além de servir

de fundamentação para o Direito Penal do Inimigo, diz respeito ao fato de aprofundar o dado

de seletividade presente em todos os sistemas penais, como logo adiante se verá.

À primeira vista, o sistema jurídico-penal brasileiro parece confuso quando se trata de

fixar seus princípios cardeais. Enquanto se afirma que tal sistema se move no marco teórico

do direito penal do fato, o art. 59, caput do Código Penal parece dispor o oposto:

“Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta

social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências

do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja

necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime... (grifei)”

O legislador eleva a personalidade do agente à categoria de critério orientador para

aplicação da pena. A partir daí, abre-se a via propícia à investida do Direito Penal do Inimigo

em direção ao ordenamento jurídico-penal brasileiro. A recepção dessa teoria jurídica

enquanto critério orientador para a elaboração de leis penais só se torna possível graças a uma

característica presente, em maior ou menor grau, em todos os sistemas penais33

: a

seletividade na aplicação das leis penais. Esse elemento de seletividade na aplicação das leis

penais, conforme já ventilado há poucas linhas atrás, é fundamental para a compreensão do

Direito Penal do Inimigo e será fundamental para a conclusão desta análise.

A análise do Direito Penal do Inimigo enquanto teoria jurídica que fundamenta um

direito penal de autor parte, portanto, da análise preliminar da seletividade do controle penal.

Esta característica estruturante de todos os sistemas penais surge a partir da aplicação

diferenciada das leis penais a determinadas categorias de indivíduos e se verifica na razão

direta das desigualdades sociais. O processo mencionado ocorre à medida que as

desigualdades sociais geram conflitos capazes de comprometer a higidez do Estado, que,

prontamente, busca defender-se.

A resposta para tais conflitos normalmente é uma resposta penal mais ou menos

severa, dirigida a grupos dissidentes ou que, de alguma forma, gerem conflitos capazes de

romper a ordem social imposta coercitivamente pelo soberano. Esses grupos dissidentes,

conforme exposto por Zaffaroni, são inicialmente perseguidos e postos à margem da

sociedade como indesejáveis. Aos poucos, no bojo de um processo de construção de “não-

33

Esta afirmação pode ser encontrada em ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro,

SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 51, quando os autores

escrevem que “... a seletividade é estrutural e, por conseguinte, não há sistema penal no mundo cuja regra

geral não seja a criminalização secundária em razão da vulnerabilidade do candidato...” (grifo no original).

É com base nessa obra que se faz as afirmações iniciais sobre seletividade penal contidas neste capítulo.

32

pessoas”, é que se tornarão os inimigos que o Estado buscará perseguir de forma

diferenciada. É de se notar que, sem a diferenciação de uma dada gama de sujeitos a quem se

dirige uma estratégia de neutralização baseada no perigo que tais sujeitos possam representar

(construção da categoria penal de inimigo), não há Direito Penal do Inimigo possível.

Essa criminalização seletiva, cuja manifestação preponderante é o fenômeno

carcerário, processa-se mediante três variáveis fundamentais: i) aplicação do Direito Penal

pelos juízes, a qual, em sua concretude, acaba criando direito, não apenas aplicando o direito

vigente, ii) criminalidade “de colarinho branco”, dificilmente punida, a qual exclui da

clientela do sistema penal uma dada classe social, e iii) a chamada “cifra oculta da

criminalidade”, que corresponde à diferença, de instância a instância do sistema jurídico-

penal, entre a totalidade das infrações cometidas e aquelas que são efetivamente perseguidas

(isso se tratando da fase investigativa, a cargo da Polícia.

Para verificação da cifra oculta no âmbito do Judiciário, a diferença a considerar é a

existente entre a totalidade dos delitos averiguados pela Polícia e aqueles que são

efetivamente denunciados, e daí por diante). O resultado dessa perversa engrenagem é a

execução penal, cujo resultado final é a seleção de determinados indivíduos, sempre os

mesmos, que constituem seu “público” ou “clientela”. Essa produção em série de indivíduos,

por definição, nocivos à sociedade conforma um Direito Penal excludente, oposto a um

Direito Penal de garantias, que deve servir de elemento de contenção do poder punitivo,

última salvaguarda do cidadão perante a fúria persecutória do Estado.

A seletividade do sistema penal não ocorre por acaso, possuindo funcionalidade

própria dentro de tal sistema. Os estudos acerca da cifra oculta da criminalidade revelam que

esse número é superior, em muito, ao número de infrações efetivamente punido34

. Essa

discrepância é funcional na medida em que, se todas as infrações penais fossem punidas, toda

a população, ou pelo menos a maior parte dela, seria criminalizada, provavelmente mais de

uma vez. Isso acarretaria uma redução ao absurdo, na medida em que traria à baila uma

distorção para o sistema.

Selecionando-se quantitativamente os clientes do sistema penal é possível, a um só

tempo, exercer racionalmente o poder de punir, de forma a intimidar a classe dominada

mediante o encarceramento de parte de seus membros e, além disso, exercê-lo de modo a

imunizar a classe dominante, que pode delinqüir sem conhecer a punição. Essa estrutura

perversa é a base de um sistema penal que, à semelhança do brasileiro, pune os delitos de

34

Esse dado pode ser encontrado em BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal:

introdução à sociologia do Direito Penal, p. 102, sob o epíteto de “cifra negra”, com igual significado.

33

pouca repercussão, cometidos por muitos, e deixa à solta os responsáveis por delitos de muita

repercussão, salvos raríssimos casos em que a intervenção da mídia, provocada pelo clamor

público, atrai a ação repressiva das agências que compõem o sistema penal.

Passa-se, dessa forma, de uma seleção quantitativa a uma seleção qualitativa,

mediante o seguinte raciocínio: não é funcional para o sistema que toda a população seja

criminalizada. Logo, parte dela o será e outra parte, não. Considerando que o poder de definir

a criminalidade encontra-se nas mãos da classe dominante, ela se imuniza e joga aos leões do

sistema penal uma parcela significativa da classe dominada. Nesse particular, um detalhe

afigura-se fundamental: o discurso oficial das instâncias punitivas se legitima a partir do

discurso da Criminologia positivista tradicional.

Esta, ao investigar supostas causas da criminalidade (paradigma etiológico) e as

encontrar em meio a uma maior tendência das classes baixas à delinqüência, legitima o

exercício do poder punitivo pelas agências que compõem o sistema penal e, por via de

conseqüência, contribui de forma expressiva para a individualização do inimigo. Essa função

do saber como fonte de poder não é nova, mas é apontada por Foucault na obra Vigiar e punir

como elemento conatural a todo e qualquer sistema que produza saber no escopo de suas

atividades.

A título de exemplo, ao conjunto de saberes, classificações, doutrinas e os mais

diversos conhecimentos acerca do sistema prisional, somados àqueles agentes que os

produziam (médicos em geral, psiquiatras, em particular, diretores de presídios, etc.) Foucault

atribui o rótulo genérico de “o Carcerário”. Essa criminologia tradicional, que fundamenta a

produção de um Direito Penal excludente, que, como se examinará, apresenta traços

embrionários de um Direito Penal do Inimigo, é o saber que fundamenta o poder exercido

contra os indesejáveis que o Estado se propõe perseguir.

Essa função legitimadora do discurso oficial vem, nos últimos tempos, sendo mitigada

por um novo paradigma da Sociologia Criminal. Trata-se do labelling approach,

brilhantemente analisado por Baratta em obra já citada. Tal paradigma propugna que os

índices de criminalidade não são definidos por uma maior ou menor tendência de uma ou de

outra classe social para delinqüir, mas por uma maior ou menor tendência, de acordo com

critérios definidos pelas instâncias detentoras do poder punitivo, de ser criminalizado.

Esse processo de criminalização recebe o nome de “etiquetamento” (labelling),

constituindo o ponto de partida para análise dos fenômenos de criminalização. Sob a

perspectiva do labelling approach, o fenômeno da criminalização ganha contornos mais

concretos enquanto atribuição do rótulo social negativo de criminoso. Essa noção de

34

criminalidade enquanto bem jurídico negativo, ao conferir concreção à tese exposta, constitui

uma ferramenta a msia para a compreensão do fenômeno da criminalidade e, por via de

conseqüência, da seletividade do controle penal.

Passa-se, dessa forma, a avaliar a criminalidade como um ente social e juridicamente

construído, deixando-se de lado a naturalização que se traduz em assumi-la como um dado

prévio, quase que natural, não no sentido na normalidade do desvio, mas no sentido das

teorias das causas da criminalidade, que buscam explicá-la a partir de um paradigma estranho

ao das ciências sociais, dentre as quais o próprio direito.

A partir do confronto do discurso das agências35

oficiais com a proposta da sociologia

criminal do labelling approach, desnuda-se magistralmente o fenômeno da seletividade do

controle penal. Tal seletividade pode ser então dada como resultante da aplicação diferencial

de estratégias punitivas a indivíduos, em tese, iguais perante a lei.

Ora, pela simples análise dessa proposição, pode-se concluir que tratar

diferencialmente indivíduos teoricamente iguais com base em diferenças construídas, social

ou juridicamente, é algo que praticamente se confunde com a proposta do Direito Penal do

Inimigo (tomado na acepção de flexibilização de direitos e garantias de indivíduos com fulcro

na alegação de sua periculosidade intrínseca ou outro elemento individualizante que o

justifique).

Se esse tratamento diferencial, calcado na seletividade do controle penal, no caso do

Direito Penal do Inimigo, é aplicado levando-se em consideração alguma característica do

indivíduo, e não da conduta por ele praticada, ingressa-se no campo nebuloso do direito penal

de autor e de todas as considerações que se pode fazer sobre suas implicações, seja de curto

ou de longo prazo.

Apesar do longo raciocínio desenvolvido para chegar até aqui, é lugar comum entre os

críticos identificar o Direito Penal do Inimigo com direito penal de autor. Para ilustrar essa

afirmação, observe-se o que escreve Cancio Meliá: “... o „Direito Penal‟ do inimigo –

dedicado essencialmente a definir categorias de sujeitos – é de modo estrutural um Direito

Penal de autor”.36

Assim prossegue esse mesmo autor: “... a incorporação do binômio pena-inimigo é

categoricamente incompatível com o Estado de Direito”37

. Sobre essa segunda afirmação,

seria lógico perguntar-se: tal incorporação seria compatível com outro modelo de Estado,

35

A nomenclatura está presente e é largamente utilizada em ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA,

Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. 36

JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, p. 111. 37

Ibidem, p. 112.

35

mais exatamente com o estado de polícia? Reflexões interessantes podem ser encontradas em

Salo de Carvalho38

, que aparentemente fornece resposta afirmativa a esta pergunta. Indo

ainda mais além: para esse autor, o Direito Penal do Inimigo é a forma jurídica própria do

Estado de polícia, com ele se confundindo por suas características estruturais e sua

conformação enquanto direito de exceção. Essa exceção, segundo Salo, ao se tornar regra e

somada à natural capacidade expansiva do Direito Penal, instaura progressivamente o Estado

de exceção, até os limites de autoritarismo que tal modelo é capaz de alcançar.

Ora, caso se conclua pela compatibilidade do Direito Penal do Inimigo com o estado

de polícia, conclui-se pelo definitivo rompimento dessa teoria jurídica com o Estado de

Direito. Zaffaroni e Nilo Batista expõem com muita clareza esta questão ao afirmarem que

“O estado de direito é concebido como o que submete todos os seus habitantes á lei e opõe-se

ao estado de polícia, onde todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que

mandam”39

(grifado no original). Igualmente corroboram essa assertiva outros dois

fragmentos dessa mesma obra, colacionados abaixo:

“Sem a contenção jurídica (judicial) o poder punitivo ficaria liberado ao puro

impulso das agências executivas e políticas e, por conseguinte, desapareceriam o

estado de direito e a própria república (...)

O estado de direito contém os impulsos do estado de polícia que encerra à medida

que resolve melhor os conflitos (provê maior paz social)40

.

Nesse contexto, o Direito Penal do Inimigo gera um dilema sem solução possível:

caso se entenda ser a medida aplicável ao inimigo uma pena, o Direito Penal do Inimigo, no

dizer de Meliá, automaticamente se incompatibiliza com o Estado de Direito. Essa

incompatibilidade aproxima o Direito Penal do Inimigo do estado de polícia ou estado de

exceção, diametralmente oposto ao Estado de Direito.

Caso não se entenda ser a medida aplicável ao inimigo uma pena, ainda assim o

Direito Penal do Inimigo é incompatível com o Estado de Direito porque preconiza, dentre

outras coisas, o cerceamento da liberdade do cidadão mediante uma abstrata noção de

periculosidade (ver nossas considerações sobre a custódia de segurança, no item 1.2).

Ainda que se argumente que esse fundamento é perfeitamente aplicável às medidas de

segurança, previstas no ordenamento jurídico brasileiro, há de se frisar que estas têm seu

alcance restrito aos penalmente inimputáveis, ao passo que a custódia de segurança é capaz

de atingir imputáveis, dentro de uma lógica de sistema duplo binário, e, pior que isso,

38

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06). 39

ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal

Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 41. 40

Ibidem, pp. 40 e 41.

36

imputáveis que já cumpriram suas penas e não são libertados por razões de política criminal.

Em nosso sistema, situações como essa constituiriam aberrações jurídicas, dado que a Lei

Maior, como é sabido e consabido, veda penas perpétuas.

Na prática, o prolongamento indefinido da custódia de segurança traduziria uma pena

perpétua, inadmitida pelo sistema pátrio. Reflexões sobre a sistemática das medidas de

segurança e sua natureza jurídica, quanto a esse aspecto da vedação de perpetuidade das

penas, apesar de constituir tema interessantíssimo, em tudo foge à abordagem deste estudo.

Esse raciocínio é complementado eficazmente por Meliá, quando afirma que “... as

medidas de exceção deveriam ser identificadas... formalmente como tais”41

. Ora, não há

espaço, no ordenamento jurídico brasileiro, para tais “medidas de exceção”. O art. 5º, inciso

XXXIX da Constituição da República Federativa do Brasil deixa isso bem claro: “XXXIX –

não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Qualquer

prática diferente desta pode configurar ilícitos que vão desde a afronta ao texto constitucional

até as mais escancaradas práticas de terrorismo de Estado, como verificado em período

histórico recente.

Outro doutrinador que denuncia esta teoria como partidária do direito penal de autor é

Luiz Regis Prado. Em seu Curso de Direito Penal Brasileiro, ao explicar a teoria da

imputação objetiva de Jakobs, Prado revela que, de acordo com a teoria mencionada, “O

agente, cujo comportamento deve passar pelo filtro da imputação objetiva, deve ser definido

de modo normativo, através do papel social que desempenha” 42

(grifos do autor).

Ora, a definição do autor de um fato penalmente relevante, levada a efeito pela própria

norma jurídico-penal, representa um aprofundamento da seleção criminalizante, já analisada.

Esta outra forma de seleção, operada nas próprias leis penais, revela-se ainda mais perversa

que aquela executada pelas agências do sistema penal, posto que reserva reduzida margem às

estratégias de contenção do poder punitivo.

A incompatibilidade do Direito Penal do Inimigo com o direito penal do fato, em

última análise, deve-se ao abandono da análise objetiva da conduta em favor da análise

subjetiva da intenção do agente. Por outras palavras, desloca-se o foco do injusto,

tradicionalmente entendido como o binômio tipicidade-antijuridicidade, para a culpabilidade.

Além disso, há uma antecipação da verificação da culpabilidade, que se converte em uma

espécie de preliminar aferida a priori. Jakobs, com sua teoria da imputação objetiva, vai

ainda mais além ao indicar que o infrator deve ser definido normativamente.

41

JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, p. 117. 42

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, p. 338.

37

De outra forma, pode-se afirmar que a dogmática penal tradicional resta subvertida

pelo Direito Penal do Inimigo, posto que, se o indivíduo é submetido a medidas penais pelo

simples fato de representar um perigo, qual seria a solução para os delitos de dano? Haveria

dois sistemas penais operando em paralelo, apesar do princípio da isonomia?

Esses dois simples questionamentos, para os quais o Direito Penal do Inimigo não é

capaz de oferecer resposta, são suficientes por si só para torná-lo incompatível com um

sistema jurídico-penal de garantias, calcado no direito penal do fato, como é o brasileiro. O

fato é que, apesar do ulterior desenvolvimento das pertinentes críticas, que virá, o Direito

Penal do Inimigo aparentemente não se coaduna com um sistema penal de garantias e, mais

ainda, com o próprio Estado de direito.

Muitas são as instituições democráticas, sobretudo em caráter penal, que o repelem

enquanto paradigma, ainda que meramente teórico, segundo seu conceito meramente

descritivo, já apresentado. As reflexões nessa seara carecem não só de um aprofundamento

teórico e dogmático, como também de considerações que fogem à fria lógica do Direito Penal

e perpassam toda a política criminal, o direito das execuções penais e a criminologia, até

mesmo de produção mais recente.

À semelhança de Jakobs, precursor desta doutrina, pensar o Direito Penal do Inimigo

como incapaz de contagiar o chamado direito penal do cidadão é uma alternativa no mínimo

ingênua. A análise dos movimentos expansivos do Direito Penal, sobretudo em Gracia

Martín, objeto do capítulo precedente, mostra que existe uma aparente unidade, ou ao menos

densos elementos de conexão, entre as vertentes expansivas do Direito Penal.

Esse grande movimento, apesar de dar seus passos iniciais, conta com uma

fundamentação teórica que, apesar de criticável, é construída com boa técnica e se afigura um

tanto quanto convincente. Do ponto de vista prático, o clamor público que uma multidão de

cidadãos indignados pode gerar certamente constitui uma força superior a milhões de críticas

teóricas que possam ser redigidas, mesmo que com notável brilhantismo, a respeito do tema.

É por isso que uma reflexão cuidadosa, com base na melhor técnica jurídico-dogmática

disponível, mais do que a repulsa imediata, é o remédio mais adequado aos efeitos nocivos

que o Direito Penal do Inimigo possa ter sobre o sistema jurídico brasileiro.

38

2 A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL

A proposta de expansão do Direito Penal está entre o que há de mais atual nessa seara

e, apesar disso, vai de encontro ao pensamento de verdadeiros expoentes que integram a

vanguarda da doutrina brasileira43

. Atualmente, momento em que tantas arbitrariedades são

cometidas, atrai a atenção um movimento destinado a alargar as margens punitivas do Estado.

Um movimento nesses moldes se destaca principalmente porque vai na contramão dos

fins do Direito Penal tradicionalmente preconizados pela doutrina mais progressista. Nesse

sentido, veja-se o que escreve Nilo Batista a respeito da missão do Direito Penal:

Podemos, assim, dizer que a missão do direito penal é a proteção de bens jurídicos,

através da cominação, aplicação e execução da pena. Numa sociedade dividida em

classes, o direito penal estará protegendo relações sociais (ou “interesses”, ou

“estados sociais”, ou “valores”) escolhidos pela classe dominante, ainda que

aparentem certa universalidade, e contribuindo para a reprodução dessas relações.

Efeitos sociais não declarados da pena também configuram, nessas sociedades, uma

espécie de “missão secreta” do direito penal44

.

A forma pela qual tal embate se desenvolve e quais são as críticas que podem ser

formuladas aos movimentos de expansão do Direito Penal serão abordadas a seguir, iniciando

pela exposição do modelo de expansão penal proposto por Luis Gracia Martín45

.

Gracia Martín fornece uma grande contribuição para a compreensão do fenômeno de

expansão do Direito Penal. Ainda que calcada numa perspectiva eurocêntrica desse

fenômeno, sua abordagem teórica permite identificar traços fundamentais desse fenômeno

expansivo e, até certo ponto, contribuir na análise sobre em qual medida essa expansão se dá,

de fato, no cenário político-criminal brasileiro.

A leitura da obra deste penalista espanhol permite apreender, em síntese, que o

fenômeno de expansão do Direito Penal apresenta um duplo aspecto: quantitativo e

qualitativo. Seu aspecto quantitativo é traduzido pela criação de novos tipos penais, sobretudo

de delitos de perigo, os quais, na visão deste autor, legitimam-se em função dos novos riscos

criados principalmente pelas atividades econômicas em escala global que progridem dia após

dia na sociedade contemporânea.

O aspecto qualitativo pode ser visto como o avanço do Direito Penal sobre novos

âmbitos de tutela, como o denominado “Direito penal do risco”, o novo Direito penal

econômico e do meio ambiente, o Direito penal da empresa, a criminalidade e o Direito penal

43

Como por exemplo, BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro,

Revan, 2007, que aborda o Direito Penal sob uma perspectiva redutora do poder punitivo. 44

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 116. 45

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a

crítica do discurso de resistência. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 2005.

39

da globalização, o Direito penal da União Européia e, por fim, o Direito Penal do Inimigo.

Dessa forma, Gracia Martín situa o Direito Penal do Inimigo enquanto manifestação especial

do “direito penal moderno”, o qual, segundo esse mesmo autor, é um movimento de

reformulação das normas penais motivado principalmente pela incapacidade de as leis penais

atuais atenderem às novas necessidades punitivas da sempre mutante dinâmica social. Cabe,

nessa etapa inicial de análise, descer às minúcias de cada um desses movimentos penais de

expansão.

2.1. As vertentes de expansão do Direito Penal segundo Gracia Martín

As vertentes de expansão do Direito Penal, tal qual descritas por Gracia Martín, são: i)

Direito penal do risco; ii) Direito penal econômico e do meio ambiente; iii) Direito penal da

empresa; iv) Direito penal da globalização; v) Direito penal da União Européia e vi) Direito

Penal do Inimigo. Abaixo, far-se-á a abordagem de cada uma dessas vertentes expansivas.

O denominado “Direito penal do risco” envolve, no dizer de Gracia Martín,

... um grupo de tipos delitivos com um conteúdo de injusto relativamente

homogêneo em virtude do dado comum de que em todos eles se constata a

realização de condutas que representam apenas, no máximo, um simples e mero

perigo abstrato para bens jurídicos principalmente individuais46

.

Gracia Martín identifica nessa nova categoria de normas penais, que integra um

movimento maior de expansão do Direito Penal, a resposta à produção diária de novos riscos

associados às “atividades relativas à tecnologia atômica, à informática, à genética, à

fabricação e comercialização de produtos potencialmente perigosos para a vida e a saúde,

etc”47

.

Um capítulo criticável da exposição desta frente expansiva do Direito Penal é aquele

em que o autor revela ser esse novo “Direito penal do risco” destinado a prevenir não só

riscos calculáveis, como também aqueles de muito pouco provável ou, ainda, de remota

possibilidade de concretização. Trata-se, como afirma Gracia Martín, de

precaução ante a incerteza e a impossibilidade de cálculo dos riscos que, conforme

estimativas meramente estatísticas, podem se produzir com maior ou menor

probabilidade em conseqüência de determinadas atividades, como por exemplo

aquelas de caráter científico cujo conhecimento ainda é incerto48

.

46

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a

crítica do discurso de resistência, p. 47. 47

Ibidem, p. 49. 48

Ibidem, p. 50.

40

Ora, esse pequeno trecho da exposição pode ser alvo de severa crítica na medida em

que a “incerteza e a impossibilidade de cálculo dos riscos” põem em cheque uma das

principais garantias penais: o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos.

Segundo o magistério de Luiz Regis Prado, “A noção de bem jurídico implica a

realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social de

sua [sic] relevância para o desenvolvimento do ser humano”49

. Prossegue este autor da

seguinte forma:

... resta precisar o conceito de bem jurídico penal, como sendo um ente (dado ou

valor social) material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade

individual ou metaindividual, reputado como essencial para a coexistência e o

desenvolvimento do homem50

.

Nesse sentido, uma conduta, seja ela comissiva ou omissiva, só deve ser criminalizada

à medida que traduza uma ofensa, imediata (delito de dano) ou potencial (para delitos de

perigo), a determinado bem jurídico. Sob este prisma garantista de análise, necessariamente

redutor da tutela penal, questionamos até que ponto, para os delitos de perigo, a incerteza ou

até mesmo a impossibilidade de mensuração dos riscos penalmente tutelados compromete a

validade da incriminação de condutas.

Em síntese, tal crítica pode ser assim formulada: se os delitos de perigo abstrato, que

constituem o núcleo duro do “Direito penal do risco”, tutelam a possibilidade de lesão a

determinado bem jurídico, uma vez que o risco de concretização de tal possibilidade não

possa ser avaliado de maneira objetiva, ainda que aproximada, verifica-se a construção de

tipos penais que contrariam o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, que constitui,

a nosso ver, uma das garantias penais da qual o Estado democrático de direito não pode

prescindir.

Outra crítica que pode ser legitimamente dirigida ao pensamento de Gracia Martín

quando trata da expansão do direito penal, sob o aspecto particular do “Direito penal do

risco”, é aquela radicada na tutela penal dos riscos anteriormente apontados como resposta à

reivindicação de segurança jurídica por parte dos jurisdicionados. Leia-se o que esse autor

escreve a respeito do assunto:

Características desses novos riscos são tanto suas grandes dimensões como a

indeterminação do número de pessoas potencialmente ameaçadas. Essa realidade,

própria da dinâmica da sociedade moderna, permitiria compreender esta mesma

sociedade como uma “sociedade de insegurança „objetiva‟”, dimensão objetiva que

ao se combinar com a subjetiva da “insegurança sentida” pelos cidadãos daria lugar,

finalmente, a uma situação de “sensação geral de insegurança” que levaria a

49

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume 1, parte geral, arts. 1º a 120. 7ª Ed. São

Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 53. 50

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume 1, parte geral, arts. 1º a 120, p. 142.

41

sociedade a uma forte demanda de segurança por parte do Estado e a que este

respondesse a tal exigência mediante a criminalização de comportamentos que se

desenvolvem nas novas esferas de risco51

.

A questão que se coloca diante de tal afirmação é a seguinte: seria a resposta penal a

medida mais adequada, sob o duplo aspecto da razoabilidade e da proporcionalidade, para

atender às expectativas de segurança jurídica da população? Não teriam as sanções civis de

caráter pecuniário, calcadas na teoria do risco do empreendimento, maior eficácia contra

abusos potencialmente danosos à população?

Pensar a pena, dentre todas as conseqüências jurídicas possíveis para dado

comportamento, enquanto a conseqüência mais gravosa, em todos os sentidos, para o

indivíduo e para a coletividade ajuda a elaborar as respostas adequadas a esses

questionamentos. Ensaiando um posicionamento até onde o atual desenvolvimento da

presente exposição permite alcançar, faculta-nos uma dupla via conclusiva: i) há medidas

mais adequadas do que a resposta penal à contenção dos abusos e dos riscos inerentes ao

estágio atual de desenvolvimento tecnológico; ii) a sanção civil, sem prejuízo de sua natureza

jurídica majoritariamente indenizatória, comporta ainda, sob a égide do ordenamento jurídico

brasileiro, uma marcante característica punitivo-pedagógica que, em princípio, revela-se

eficaz na contenção de abusos das mais diversas ordens.

Essa característica tão relevante aparece principalmente no desenvolvido sistema de

multas administrativas e, com maior proeminência, na tutela dos direitos do consumidor. Na

esfera consumerista, o caráter punitivo-pedagógico apontado reside principalmente na

sistemática de atribuição de responsabilidade objetiva ao fornecedor de produtos ou de

serviços defeituosos. Nessa linha, observe-se a esclarecedora exposição de Sergio Cavalieri

Filho:

Que dever jurídico é esse? Quando se fala em risco, o que se tem em mente é a idéia

de segurança. O dever jurídico que se contrapõe ao risco é o dever de segurança. E

foi justamente esse dever que o Código do Consumidor estabeleceu no § 1º dos seus

arts. 12 e 14. Criou o dever de segurança para o fornecedor, verdadeira cláusula

geral – o dever de lançar no mercado produto ou serviço sem defeito -, de sorte que

se houver defeito e este der causa ao acidente de consumo, por ele responderá

independente mente de culpa. A produção de produto defeituoso é, portanto, a

violação do dever jurídico de zelar pela segurança dos consumidores. Aí reside a

contrariedade da sua conduta ao direito, e com isso fica caracterizada a ilicitude

como elemento da responsabilidade civil. Em suma, para quem se propõe fornecer

produtos e serviços no mercado de consumo, a lei impõe o dever de segurança;

dever de fornecer produtos e serviços seguros, sob pena de responder

independentemente de culpa (objetivamente) pelos danos que causar ao

consumidor. Esse dever é imanente ao dever de obediência às normas técnicas de

segurança. O fornecedor passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece

51

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a

crítica do discurso de resistência, p. 49.

42

no mercado de consumo. Aí está, em nosso entender, o verdadeiro fundamento da

responsabilidade do fornecedor52

.

Em síntese, o estabelecimento, no âmbito da lei civil, de um dever geral de segurança,

a ser observado por todo aquele que desenvolva atividade de risco, não só o fornecimento de

produtos e serviços, mas toda e qualquer atividade que implique possibilidade de lesão a bem

jurídico titulado por indivíduos ou coletividade destes, é uma alternativa à pura e simples

elaboração de leis penais fundamentadas no risco infundido pela dinâmica atual das relações

sociais.

A vantagem de tal alternativa é a ausência de lesão a garantias individuais como o

princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, abordado logo acima. A atribuição de

responsabilidade objetiva a quem violar o dever de segurança que lhe fora atribuído em razão

da atividade desenvolvida constitui, em tal contexto, uma medida de dissuasão muito próxima

à função de prevenção especial positiva pretensamente desempenhada pela pena, mas no

âmbito civil. Destaque-se o caráter punitivo-pedagógico de semelhante medida, que apresenta

vantagem em relação à resposta penal, uma vez que não vem acompanhada de seus efeitos

deletérios.

Contudo, sem prejuízo de tudo quanto se ponderou acima acerca das considerações de

Gracia Martín sobre o “Direito penal do risco”, também é possível alinhar as considerações

deste penalista com o raciocínio de Luiz Regis Prado acerca das funções da lei penal:

Nesse particular aspecto, cabe salientar que, mais que um instrumento de controle

social normativo – primário e formalizado -, assinala-se à lei penal uma função de

proteção e de garantia. Entretanto, tem sido destacado, com razão, que o Direito

penal está se convertendo, cada vez mais, em um instrumento de direção ou

orientação social, sobretudo em matéria de tutela de bens jurídicos

transindividuais53

.

Analisando-se o Direito Penal, sob o aspecto específico da lei penal, enquanto

“instrumento de direção ou orientação social”, até que as colocações de Gracia Martín sobre

o “Direito penal do risco” não são de todo incompreensíveis, sem prejuízo das críticas que lhe

podem ser contrapostas.

Em sua exposição sobre as manifestações especiais do Direito Penal moderno

enquanto movimentos penais de expansão, Gracia Martín prossegue na abordagem do “novo

Direito penal econômico e do meio ambiente”. De princípio, esse autor destaca o interesse

que o Direito Penal econômico vem despertando na doutrina, advertindo, no entanto, não se

tratar de fenômeno novo.

52

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo, Atlas, 2008, p. 44. 53

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, p. 53.

43

O autor prossegue estabelecendo uma noção do campo de intervenção penal que

pretende delimitar:

O comportamento delitivo não é exclusivo de uma classe social determinada, mas

se pratica por igual em todas as camadas sociais, e as classes média e alta

desenvolvem uma forma particular de delinqüência que se relaciona sobretudo com

as atividades econômicas e os negócios54

.

Sobre a associação específica dessa, por assim dizer, modalidade criminal com as

atividades econômicas e os negócios, são relevantes as considerações de Alessandro Baratta a

respeito do tema:

Sutherland, no seu fundamental ensaio de 1940, se servia precisamente dos dados

por ele analisados sobre a cifra negra da criminalidade de colarinho branco, para

projetar, em alternativa à teoria funcionalista, a sua teoria da “associação

diferencial”. Segundo esta teoria, como será exposto em seguida, a criminalidade,

como qualquer outro modelo de comportamento, se aprende (aprendizagem de fins

e de técnicas) conforme contatos específicos aos quais está exposto o sujeito, no seu

ambiente social e profissional55

.

Isto posto, e de forma a lançar as bases da exposição que se inicia, pode-se definir a

criminalidade econômica, de um modo bastante simples, como aquela que se verifica no

cotidiano de atividades em princípio lícitas e que é praticada por indivíduos que aprendem,

no seu ambiente social e profissional, fins e técnicas destinados às referidas práticas

delituosas.

A definição acima traz uma série de elementos capazes de induzir uma profunda

reflexão sociológica sobre o tema. Essa é, por si só, a primeira crítica que se pode fazer à

abordagem de Gracia Martín. Observe-se a síntese de sua concepção a respeito do Direito

Penal econômico:

O Direito penal econômico não é mais do que um setor da Parte Especial que

agrupa um certo número de tipos delitivos em virtude de determinados critérios

reitores materiais e formais. Trata-se de um Direito penal que se rege integralmente

pelo “princípio do fato”, pois o mesmo se funda em decisões político-criminais que

têm como base a desvaloração de determinados fatos em razão de apenas seu

caráter prejudicial para a ordem social independentemente do dado sociológico de

que sua realização seja acessível e possível só para sujeitos pertencentes às classes

sociais poderosas56

(grifei).

Ora, ignorar o fato de os chamados crimes do colarinho branco serem acessíveis

somente a determinada camada da população, conjugado ao fato de que, pelo menos no

Brasil, tais crimes serem raramente punidos, significa ignorar um dado capaz de explicar, ou

54

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 52. 55

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito

Penal, p. 66. 56

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, pp. 52-53.

44

ao menos ilustrar, um dado de suma importância na análise de qualquer sistema penal: a

seletividade. Sobre esse aspecto específico, valem as considerações enumeradas na seção 2.3

desta exposição.

Ao contrário do que fora exposto quanto aos delitos de perigo abstrato, que

constituem o cerne do chamado “Direito penal do risco”, Gracia Martín reconhece que “...

hoje é majoritária a opinião de que também os tipos do Direito penal econômico se

configuram e se legitimam a partir da proteção de bens jurídicos57

”. Entretanto, apesar dessa

referência expressa à proteção de bens jurídicos enquanto critério de fundamentação do

Direito Penal econômico, o autor se contradiz ao afirmar que

Em minha opinião, é preciso renunciar à pretensão de definir o delito econômico, e

o conteúdo do Direito penal econômico, mediante um único critério de validade

geral. Se o circunscrevermos às transgressões à ordem jurídico-econômica em

sentido estrito, entendendo-o como aquela parte da ordem econômica dirigida e

conduzida diretamente pelo Estado mediante a imposição coativa de normas de

planificação do comportamento dos sujeitos econômicos, então, e como já constatou

Muñoz Conde, o Direito penal econômico se reduziria praticamente aos delitos

contra a Fazenda Pública, aos monetários, aos de contrabando e aos relativos à

determinação e formação de preços58

.

Abrir mão de definir, ainda que de forma genérica, o substrato fático sobre o qual

deve incidir a tutela penal própria do Direito Penal econômico significa deixar de lado uma

melhor identificação do bem jurídico tutelado por esse ramo do Direito Penal. Essa lacuna,

conforme analisado quando da abordagem do novo “Direito penal do risco”, representa

ofensa ao princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, que constitui garantia das mais

elementares no âmbito penal.

Além disso, o próprio Gracia Martín, em que pese sua resistência no sentido de

estabelecer uma definição geral para o delito econômico, acaba por ensaiar tal definição ao

escrever que

Não obstante, todos esses fatos devem estar integrados também no Direito penal

econômico se, como me parece correto, formula-se um conceito amplo que reúna

em seu âmbito todo fato delitivo realizado no contexto e na prática de uma atividade

econômica (fator criminológico)59

.

Quanto ao Direito Penal econômico, o autor ora comentado acrescenta, por derradeiro,

que sua esfera de proteção abarca bens jurídicos novos, distintos dos tradicionais, de caráter

coletivo, universal ou supraindividual. Em sua opinião, também devem integrar esse ramo do

Direito Penal os tradicionais tipos contra o patrimônio e outros que sejam conexos com

57

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 53. 58

Ibidem, pp. 54-55. 59

Ibidem, pp. 55.

45

atividades econômicas, como o homicídio e as lesões nos casos de responsabilidade penal

pelo produto.

Essa possibilidade de extensão da tutela penal, em nosso sentir, revela-se quase que

ilimitada, principalmente considerando a extensão e o volume das atividades econômicas de

nossos dias. Uma conjugação das concepções de Gracia Martín acerca do Direito Penal do

risco e do Direito Penal econômico, levada até as últimas conseqüências e aplicada na prática,

é capaz de conduzir a um importante aprofundamento dos processos de criminalização. Essa

conjunção perversa, aliada à capacidade natural de expansão do Direito Penal, é capaz de

alterar sensivelmente a conformação do Estado democrático de direito tal qual o conhecemos.

Considerações mais elaboradas e críticas a esse respeito constituem objeto de reflexão mais

adiante na presente exposição.

Apesar de aglutinar sob o mesmo título o Direito Penal econômico e o Direito Penal

do meio ambiente, Gracia Martín dedica muito mais atenção ao primeiro, legando ao segundo

tão somente um parágrafo. Nesse parágrafo, o autor se limita a dizer que o Direito Penal do

meio ambiente é a representação por excelência do “direito penal moderno”, epíteto geral sob

o qual qualifica os movimentos atuais de expansão do Direito Penal.

Entretanto, por essa mesma razão, talvez fosse oportuno ter dedicado um trecho mais

amplo de sua obra para tratar do assunto. Não foi possível determinar até que ponto

semelhante omissão guarda relação com o caráter introdutório de seu ensaio ou, de outra

forma, se relaciona com a marcante atualidade do assunto, que ainda não deu azo a debates

mais aprofundados na doutrina.

Gracia Martín prossegue sua digressão escrevendo algumas laudas acerca do “Direito

penal da empresa”. Em uma exposição um tanto quanto resumida, o autor descreve, em linhas

gerais, a criminalidade de empresa como sendo aquela levada a cabo pelo homem de

negócios, no âmbito de sua atividade rotineira, marcada pelo diferencial de se desenvolver

sob a égide de uma organização sujeita à subordinação hierárquica e à repartição de funções,

pensada em contrapartida à criminalidade tradicional, individual e violenta.

Note-se o que o penalista em comento escreve a respeito do autor dos delitos da

espécie ora exposta:

... as condutas só podem ser realizadas de modo típico, ou seja, na qualidade de

autor, por um círculo de sujeitos qualificados por determinadas condições pessoais

especiais como, por exemplo, e conforme o caso, as de comerciante, de exportador,

de empregador, de obrigado tributário, etc. Contra o que defende a opinião

dominante, o fundamento material dos delitos não pode ser vislumbrado na infração

do dever jurídico específico que obriga os autores qualificados, mas sim na posição

especial e na capacidade de domínio (social) destes sobre o âmbito social no qual se

encontram determinados bens jurídicos que só necessitam de proteção penal em

46

face de determinadas ações típicas desses sujeitos com domínio social e não frente

àquelas próprias de quem carece desse domínio60

.

Apesar de essa definição sugerir traços característicos de direito penal de autor para o

Direito penal de empresa, o que o colocaria a um passo de integrar plenamente as fileiras do

Direito Penal do Inimigo, tal integração, considerando a realidade brasileira, não se verifica.

Apesar de o ordenamento jurídico pátrio conter uma quantidade apreciável de normas

esparsas que tratam da criminalidade de empresa, dentre as quais pode-se destacar a Lei nº

9.613, de 03 de março de 1998, que dispõe sobre os crimes de “lavagem” e ocultação de

bens, direitos ou valores, e a Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, na parte específica em

que trata dos crimes falimentares, a aplicação de tais leis revela-se pouco eficaz no dia a dia,

sendo observadas inúmeras decisões favoráveis em favor de indiciados por sua prática61

.

Entretanto, interessa continuar a exposição do que esse autor tem a dizer acerca do

“Direito penal da empresa”. Mais à frente, Gracia Martín desenvolve mais a idéia de conexão

necessária entre o Direito Penal empresarial e a organização desse tipo de criminalidade sob a

forma de um empreendimento lícito:

... hoje a realização da maior parte da atividade econômica – e,

correspondentemente, da atividade delitiva econômica – de fato só é imaginável e

possível a partir da organização de um conjunto de meios e de pessoas na forma de

uma empresa, e, por isso, no exercício de uma atividade tipicamente empresarial

ou em relação com ela62

.

A exposição de Alessandro Baratta acerca da criminalidade de colarinho branco em

Merton e Sutherland é de grande valia para a compreensão do fenômeno criminal

empresarial. Segundo expõe esse criminólogo, Merton propunha que os meios lícitos para a

conquista dos fins culturais estabelecidos em uma dada sociedade não estavam disponíveis

para todos. Em face dessa verdade inarredável, os indivíduos se propunham estratégias para

superar tal condição.

Uma dessas estratégias, segundo Merton, seria o desvio inovador, próprio dos homens

de negócios que praticavam crimes chamados “de colarinho branco”, na expressão

amplamente utilizada por Sutherland. Esse perfil desviante corresponderia à obtenção dos

fins culturais sem a respectiva interiorização dos meios lícitos socialmente estabelecidos,

dando azo ao comportamento desviante típico da classe dominante, escassamente perseguido

60

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 61-62. 61

Ver, a título de exemplo, ementa do habeas corpus concedido a Daniel Valente Dantas e a Verônica Valente

Dantas em julgamento um tanto quanto recente. Habeas Corpus nº 95.009/SP, Relator MIn. Eros Grau, DJE nº

241, divulgado em 18/12/2008, publicado em 19/12/2008. 62

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 62.

47

penalmente. A crítica de Alessandro Baratta ao valor explicativo da tese de Merton é severa

e, por sua lógica irrepreensível, merece destaque nesta exposição:

Em primeiro lugar, não será negligenciado o fato de que, na tentativa de integrar a

criminalidade de colarinho branco no esquema do desvio inovador, Merton foi

constrangido a acentuar a consideração de um elemento subjetivo-individual (a falta

de interiorização das normas institucionais), em relação a de um elemento-estrutural

objetivo (a limitada possibilidade de acesso aos meios legítimos para a obtenção do

fim cultural, o sucesso econômico). Parece-me evidente que este último elemento,

que constitui a variável principal do desvio inovador das classes mais favorecidas,

na teoria de Merton, desde a sua formulação originária, não pode ter a mesma

função explicativa em relação à criminalidade de colarinho branco, especialmente

quando se trata de indivíduos pertencentes aos grupos economicamente mais

avantajados e poderosos. Limitando sua análise, como é característica da sociologia

tradicional, ao fenômeno da distribuição de recursos, Merton não vê o nexo

funcional objetivo, que reconduz a criminalidade de colarinho branco (e também a

grande criminalidade organizada) à estrutura do processo de produção e do processo

de circulação do capital: ou seja, o fato posto em evidência por não poucos

estudiosos sobre a grande criminalidade organizada, que entre circulação legal e

circulação ilegal, entre processos legais e entre processos ilegais de acumulação,

existe, na sociedade capitalista, uma relação funcional objetiva. Assim, por

exemplo, uma parte do sistema produtivo legal se alimenta de lucros de atividades

delituosas em grande estilo. E, por isto, é fruto de uma visão superficial fazer da

criminalidade das camadas privilegiadas um mero problema de socialização e de

interiorização de normas63

.

Baratta, ao chamar a atenção para a relação necessária que existe entre processos

legais e processos ilegais de acumulação do capital na sociedade capitalista, dado ignorado

por Gracia Martín, revela um dos traços característicos da criminalidade empresarial

enquanto espécie do gênero criminalidade de colarinho branco: a imbricação de atividades

ilícitas com atividades lícitas ou o disfarce de atividades ilícitas sob uma fachada de licitude

(p. ex., criação de empresas com o fim específico de elisão tributária, lavagem de dinheiro

efetivada a partir da realização de empreendimentos lícitos64

, etc.). Tais considerações são

importantes para ampliar a percepção tanto acerca da criminalidade empresarial quanto sobre

o crime organizado propriamente dito65

.

Frente à constatação dessa relação necessária entre atividades lícitas e ilícitas, talvez a

proposta de Gracia Martín quanto á expansão do direito penal para criminalizar mais

63

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito

Penal, pp. 66-67. 64

Sobre este aspecto, ver DURRIEU, Roberto. Redefining Money Laundering and Financing of Terrorism.

Disponível em:

<http://www.iae.edu.ar/pi/Documentos%20Investigacin/Research%20Seminars/New%20Defiition%20of%20

Money%20Laundering_RD.pdf>. Acesso em: 02 out. 2011. 65

Como caso emblemático na história do crime organizado, quanto ao fato de atividades ilícitas alimentarem

atividades, em princípio lícitas, ver LA SORTE, Mike. Gaetano Badalamenti and the Pizza Conection. Rick

Porrello‟s AmericanMafia.com, jul. 2004. Disponível em: <

http://americanmafia.com/Feature_Articles_271.html>. Acesso em: 02 out. 2011, sobretudo no que tange ao

esquema denominado “Pizza Conection” (1975-1984), que foi nada menos senão uma operação de US$ 1,65

bi em heroína e cocaína cuja logística era operacionalizada por uma rede de pizzarias de fachada.

48

eficazmente tais condutas se afigure sedutora. Entretanto, em uma perspectiva redutora do

poder punitivo, uma vez considerada a vocação natural deste para a expansão, nem mesmo

esse dado torna defensável a proposta do penalista espanhol cuja obra ora examinamos.

Admitir o contrário significaria abrir uma brecha para a implantação do Estado de

Permanente Exceção, cujos contornos são expostos por Salo de Carvalho em sua análise da

Lei nº 11.343/0666

. Por Estado de Permanente Exceção, pode-se entender a

instrumentalização dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, no sentido de sua

flexibilização, de modo a tornar legítimo o desrespeito desses mesmos direitos e garantias

fora de um contexto constitucionalmente previsto (p. ex., estados de exceção e de sítio).

Conforme coloca o autor em comento:

Importante perceber, pois, que o processo de naturalização da exceção, com a

minimização de direitos e garantias a determinadas (não) pessoas, adquire feição

eminentemente punitiva, atingindo diretamente a estrutura do direito e do processo

penal, os quais passam a ser percebidos como instrumentos e não como freios aos

aparatos da segurança pública. Assim, dado o papel essencialmente repressivo que

adquirem os Estados na atualidade, fato que levou inclusive a sua ressignificação e

adjetivação como Estado Penal, os históricos instrumentos de contenção das

violências públicas (direito e processo penal) são convertidos, com a ruptura do seu

sentido garantidor, em mecanismos de agregadores de beligerância.67

Em outra frente, Sutherland, com sua teoria das associações diferenciais, com base na

qual teceu inúmeras considerações a respeito dos crimes de colarinho branco em artigo

escrito na primeira metade do século XX68

, afirmou não ser possível, com as ferramentas

sociológicas até então disponíveis, estabelecer uma teoria geral da criminalidade. Baratta

expõe muito bem as causas dessa impossibilidade:

Estas generalizações, afirma Sutherland, são errôneas por três razões. Em primeiro

lugar, porque se baseiam sobre uma falsa amostra de criminalidade, a criminalidade

oficial e tradicional, onde a criminalidade de colarinho branco é quase que

inteiramente descuidada (embora Sutherland demonstre, por meio de dados

empíricos, a enorme proporção deste fenômeno na sociedade americana). Em

segundo lugar, as teorias gerais do comportamento criminoso não explicam

corretamente a criminalidade de colarinho branco, cujos autores, salvo raras

exceções, não são pobres, não cresceram em slums, não provém de famílias

desunidas,e não são débeis mentais ou psicopatas. Enfim, aquelas teorias não

explicam nem mesmo a criminalidade dos estratos inferiores.69

.

Um dado muito caro à percepção de Sutherland era a chamada “cifra oculta”, que,

grosso modo, corresponde à diferença entre a criminalidade real e a criminalidade

66

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06). 5ª ed. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2010. 67

Ibidem, p. 79. 68

SUTHERLAND, Edwin H. Is “white collar crime” crime?. American Sociological Review. Vol. 10, No. 2,

1944 Annual Meeting Papers (Apr., 1945), pp. 132-139. 69

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito

Penal, pp. 71-72.

49

efetivamente perseguida no âmbito penal. Essa, por assim dizer, “grandeza criminológica”

assumia ampla magnitude no âmbito dos crimes do colarinho branco e merece alguma

atenção nesse estudo, correspondente às reflexões que inspira nos autores da Criminilogia.

Entre esses autores, Albrecht examina a questão com incomparável propriedade, utilizando o

epíteto “cifra negra” para qualificá-la.

Esse autor, em sua obra de Criminologia70

, estabelece, em princípio, duas definições

de “cifra negra”: i) “... a cifra negra é o conjunto de acontecimentos, em princípio,

capazes de criminalização”71

; ii) “... a criminalidade não registrada, ocultada das instâncias

de controle („cifra negra‟)”72

, explicando, em seguida, o conceito: “Produz-se portanto,

portanto, uma diferença entre criminalidade real e criminalidade registrada que, então, a

correspondente cifra negra deve identificar”73

.

Segundo este autor, as “pesquisas de cifra negra” buscam conferir uma medida à

criminalidade, em tese, punível, mas que de fato não é punida. Essa quantificação constitui

uma medida, em um primeiro momento, do grau de funcionalidade da criminalidade não

punida no âmbito de um sistema penal e, em um segundo momento, do grau de seletividade

do sistema penal ao qual a pesquisa é aplicada. É nas seguintes palavras que Albrecht

justifica a relevância das pesquisas de cifra negra:

A „visibilidade‟ da criminalidade é um processo altamente complexo – tudo menos

casualidade – e, com toda razão, nenhum processo apenas técnico, ou seja,

apolítico, mas um processo estreitamente ligado com as camadas e estruturas

sociais, econômicas e políticas de uma sociedade74

.

Quanto à amplitude dessa “visibilidade”, Albrecht sentencia o seguinte, conciso:

“Esta tese do necessário esclarecimento da cifra negra provém de uma compreensão da

ordem social como ausência de delinqüência”75

. Ora, essa conclusão é fundamental para

explicar um fenômeno recorrente na sociedade atual, sobretudo no Brasil, e que em tudo se

relaciona com a expansão do direito penal: trata-se da reiteração das campanhas de lei e

ordem, tão cara aos movimentos criminalizantes nascidos de tempos em tempos.

Essa avalanche de elementos sedentos de uma pseudo-justiça, abundantes no cenário

político nacional, que reivindica, dia após dia, um recrudescimento das leis penais em prol de

mais penas, ou de penas mais severas para os crimes já existentes, valora positivamente a

70

ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal. Tradução de Juarez

Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Curitiba, ICPC. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010. 71

Ibidem, p. 238. 72

Ibidem, p. 239. 73

Ibidem. 74

Ibidem, p. 240. 75

Ibidem, p. 242.

50

ausência de criminalidade não punida. Esse dado, segundo Albrecht, é disfuncional para o

sistema penal, que se alimenta da lacuna entre infrações cometidas e infrações efetivamente

punidas (“cifra negra”). Veja-se o que diz o autor a respeito:

A ordem não é de estabilizar, contudo, sem delinqüência e sem delinqüência não

descoberta. Nós já tínhamos discutido... que a criminalidade (e uma característica

cifra negra) é normal e funcional... Criminalidade é funcional na medida em que,

no caso de compreensão completa, perder-se-ia o efeito discriminatório da

criminalização. Com isso, também estaria perdida a norma jurídico-penal. Aquilo

que pode acontecer a qualquer um não é mais demonstrável como ilegal e desviante.

Nisso, o desvio tem um efeito estabilizador de conformidade, mas que também se

baseia no caráter de exceção da criminalidade registrada76

.

Essas afirmações constituem um importante contra argumento contra a legitimidade

da expansão do direito penal. Ora, se a existência de uma “cifra negra”, correspondente,

evidentemente, a uma fração impune de criminalidade é funcional para o sistema e, por outro

lado, uma superabundância de normas penais, combinado a um recrudescimento nas práticas

das agências do sistema penal, esperado nesse tipo de situação, tende a reduzir a “cifra

negra”, movimentos como esse são disfuncionais para o sistema, gerando distorções. Como

exemplo, podem ser citadas as edições de normas penais com caráter meramente simbólico77

,

de um lado, e a eficácia inicial de uma norma na redução de determinada conduta punível,

que tende a diminuir conforme o apelo dessa mesma norma se dilui no tempo78

.

Outro aspecto importante da “cifra negra” é desenvolvido por Albrecht quando trata

da ubiqüidade do desvio. É bastante interessante o resultado apurado nessa seara, o qual

corrobora a tese da funcionalidade da “cifra negra” nos contextos social e penal:

... a imensa maioria de adolescentes e jovens adultos praticou, no curso de seu

desenvolvimento, formas de condutas delinqüentes. Esta conduta, por sua vez,

desaparece na imensa maioria dos casos, em alguns poucos, contudo, não. Na

medida em que a sociedade trabalha semelhantes desvios mediante controle social

informal, o Sistema de justiça Criminal permanece poupado da compreensão e da

solução. Este modo de consideração sociológico-jurídico, que parece correr

estritamente contra as premissas jurídico-penais centrais, como intimidação,

igualdade, Justiça, conduz à análise das funções centrais da cifra negra para a

sociedade e para o Sistema de Justiça Criminal79

.

Essa presença unânime do desvio no corpo social é quase um argumento para

justificar a escassa punição dos crimes de colarinho branco, entre eles aqueles cometidos no

ambiente empresarial, objeto do direito penal da empresa, nas palavras de Gracia Martín.

76

ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal, p. 242. 77

Ver, como exemplo, a edição da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei de Crimes Hediondos), editada em

momento de comoção nacional. 78

Ver, como exemplo, a edição da Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008 (Lei Seca), que, apesar do alardeado

sucesso inicial, tem tido seus resultados questionados. Uma evidência desse questionamento pode ser

encontrada em Departamento de Jornalismo. Estatísticas indicam fracasso da Lei Seca. Blog da União, 01 jul.

2009. Disponível em: < http://www.redeuniao.com.br/blogdauniao/?p=1867 >. Acesso em: 02 out. 2011. 79

ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal, p. 245.

51

Entretanto, não é legítimo argumentar-se em tal sentido porque a aceitação do cometimento

de crimes dessa natureza, sem maiores reflexões, conduz á sua naturalização, o que tende a

esconder dados inerentes à seletividade do controle penal, sempre embutidos nesse contexto.

Ainda segundo essa lógica da seletividade do controle penal, é lícito perguntar porque

uma “cifra negra” de magnitude semelhante à dos delitos de colarinho branco não é

verificada em infrações penais tipicamente patrimoniais de natureza diversa, e de menor

monta, como o furto e o roubo, por exemplo. Deixar de empreender tais reflexões conduz

necessariamente à aceitação irrefletida de uma criminalização seletiva que cabe a qualquer

penalista denunciar, seja por convicção ideológica, seja pela fidelidade científica à adequada

e completa descrição dos fenômenos.

Outro dado que chama a atenção é o fato de Gracia Martín categorizar o Direito Penal

empresarial como gênero do qual o Direito penal econômico e do meio ambiente é espécie,

ao escrever que “o Direito penal econômico e do meio ambiente, em realidade, tem que ser

configurado e compreendido em sua maior parte também como Direito penal da empresa”80

.

Classificar o Direito penal econômico e do meio ambiente enquanto espécie do Direito Penal

empresarial é até compreensível porque as condutas praticadas em detrimento do sistema

econômico e contra o meio ambiente necessitam, via de regra, de uma materialização

institucional. Entretanto, o autor se contradiz logo em seguida ao afirmar que

o Direito penal da empresa, ou seja, o conjunto de regulamentos jurídico-penais

relativos aos fatos delitivos cometidos no exercício de uma atividade empresarial,

tem que ser reconhecido também como uma manifestação típica – e ademais, de

grande importância e transcendência – do Direito penal moderno81

.

Um pouco antes nesta exposição, foi constatado que Gracia Martín considera uma

impropriedade definir os delitos econômicos e contra o meio ambiente. Pois bem, não seria

igualmente uma impropriedade definir a criminalidade de empresa, pela qual estão

abarcados? Se é impossível determinar um critério geral de identificação da criminalidade

econômica e ambiental, não seria igualmente possível fazê-lo quanto à criminalidade

empresarial? À luz da exposição do autor, essas perguntas permanecem sem resposta e

constituem uma das muitas falhas da proposta de expansão do Direito Penal, denominada

“direito penal moderno”, por ele perfilhada.

Apesar da pouca fundamentação de que o autor lança mão para embasar seus pontos

de vista, talvez a reflexão final incrustada na parte da obra em que Gracia Martín se manifesta

80

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 63. 81

Ibidem, p. 63-64.

52

sobre a criminalidade empresarial contenha uma ponte para um mundo de reflexões. Quando

escreve que

... os problemas que origina [a criminalidade empresarial] no plano da imputação

constituem sobretudo um duro teste para a validade de uma teoria geral da

responsabilidade penal (sc. do delito) que, como aquela vigente até agora, foi

construída sobre a base de um modelo de criminalidade violenta e individual82

.

Essa é uma questão interessante de se cogitar porque, quando se pensa em direito de

propriedade, p. ex., o Código Penal brasileiro assegura sua tutela com base no tipo penal do

furto, seguido por outros que constituem suas variações. Esse corpo de leis penais, que pensa

autor e vítima enquanto sujeitos singulares, não está preparado para abarcar delitos de mesma

natureza que atinjam, enquanto vítimas, ou tenham por autores uma coletividade de pessoas.

Esse é o caso, p. ex., dos delitos contra a economia popular e/ou o sistema financeiro, que via

de regra tem uma quantidade praticamente indeterminada de vítimas e cujo autor pode ser um

ente que se identifica com uma coletividade de sujeitos: uma empresa.

Daí decorre, conforme bem colocado por Gracia Martín, em primeiro grau, uma

perplexidade no momento da imputação e, em um segundo momento, quando há

identificação de possíveis autores e sua persecução penal, esta se frustra porque o corpo de

leis vigente não foi pensado para abarcar crimes dessa natureza. Ressalte-se que o objetivo

aqui não é defender qualquer movimento de expansão do Direito Penal. Entretanto, é muito

interessante notar que, até mesmo no bojo de uma obra que trata exclusivamente desse

assunto, é possível encontrar trechos capazes de abrir caminhos para reflexões bastante

interessantes.

Se existe um aspecto inegável na obra em comento é a capacidade de seu conteúdo

para fomentar o debate. Avançando na exposição, quando aborda a “criminalidade e o Direito

penal da globalização”, Gracia Martín dispara que “... os Estados claudicaram ante os poderes

econômicos internacionais...” 83

. E, mais adiante, complementa: “... a prática da atividade e

das transações econômicas obedece a pautas e a regras uniformes que, de fato, são impostas

aos Estados...” 84

.

Apesar de não estar expresso no texto, aparentemente se trata de uma oposição frontal

ao princípio da intervenção mínima85

, que constitui uma das notas distintivas da configuração

política do modelo contemporâneo dominante de Estado. Tais contornos, além de manterem

82

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 64. 83

Ibidem, p. 66. 84

Ibidem, p. 64. 85

Constituem exemplos práticos de aplicação deste princípio os arts. 8º, I e 34, caput, ambos da Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988.

53

as liberdades individuais a salvo de atentados, destinam-se a fomentar a atividade econômica

ou, ao menos, não inviabilizá-la, permitindo que o país que os adote ganhe competitividade

na órbita internacional.

De qualquer forma, a crítica aqui presente se restringe à análise dessa aparente

oposição na esfera das liberdades dos cidadãos. Salo de Carvalho, ao tecer uma análise do

permanente Estado de exceção em que vive a sociedade contemporânea, relacionando-o com

o Direito Penal do Inimigo, escreve algumas linhas de extremo valor para esta exposição:

Na tensão entre a crise de segurança individual, vivenciada pela sociedade, que se

vê cada vez mais como vítima em potencial,e a falência da segurança pública,

representada pela incapacidade de os órgãos de Estado administrar minimamente os

riscos, tentações autoritárias brotam com a aparência de instrumentos eficazes ao

restabelecimento da lei e da ordem. No cálculo entre custos e benefícios, o

sacrifício de determinados direitos e garantias fundamentais aparenta ser o preço

razoável a ser pago pela retomada da segurança. Sua assimilação resta ainda mais

fácil se estes direitos e garantias integrarem o patrimônio jurídico de alguém

considerado como inimigo, de outrem, considerado como obstáculo ou ameaça que

deve ser reputado como ninguém, como não ser86

.

Ora, se a pretexto de um, diga-se, “presenteísmo” no trato estatal, contraposto ao

“absenteísmo” do Estado globalizado e neoliberal, chegar-se ao ponto de instituir a tirania,

transformando-se a intervenção, que no Estado democrático de direito deve ser exceção, em

regra, chega-se facilmente ao Estado de polícia, no dizer de Nilo Batista, ou ao Estado de

Permanente Exceção, conforme o magistério de Salo de Carvalho, os quais constituem

nomenclaturas muito próximas em seu significado. Portanto, a crítica levantada por Gracia

Martín, ainda que velada, pode ter seus desdobramentos na legitimação daqueles que

aproveitam as emergências87

, tão caras a Zaffaroni em sua análise crítica do Direito Penal do

Inimigo, para se estabelecer no poder.

O autor prossegue em sua crítica categorizando os crimes cometidos no contexto da

globalização: i) a primeira categoria seria composta por aqueles crimes cometidos, em regra,

no bojo de uma atividade em princípio lícita, mas desempenhadas com abuso de poder

econômico, infração de normas internacionais ou fraude, por exemplo; ii) a segunda categoria

é integrada por atividades já ilícitas de per si, “... como é o caso, por exemplo, do tráfico

internacional de drogas, de moeda falsa, de armas, de órgãos humanos, de pessoas para a

86

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06), pp. 78-79. 87

ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro, Revan, 2007, p. 143, página na

qual o autor define “emergência” como sendo o momento em que cabe definir e enfrentar o inimigo.

54

prostituição, de crianças para a adoção internacional, bem como o de imigrantes e

trabalhadores, ou a lavagem de capitais, etc”88

.

Essa lista de atividades ilícitas, que o autor chama de “economia submergida” ou

“mercados negros”, em seu conjunto, se aproxima de uma visão mais aprofundada de crime

organizado: “... a realização exitosa de toda essa macrocriminalidade internacional é

dificilmente imaginável à margem das burocracias administrativas estatais e, por isso, sem a

cooperação de funcionários e de agentes estatais”89

.

Nesse contexto, surge, ainda que de maneira fugaz, uma noção mais aprofundada do

que se poderia entender por crime organizado. Tal aproximação associa essa modalidade

criminosa, necessariamente, àquela criminalidade que mantém relações com as estruturas

estatais, longe, p. ex., da criminalidade “mambembe”, de organização muito incipiente, que o

discurso midiático de “lei e ordem” insiste em taxar de crime organizado, como é o caso da

atividade desenvolvida pelo pequeno traficante de drogas no Brasil. O estabelecimento de

uma ligação entre o crime organizado e as estruturas estatais, apesar de não ser reflexão das

mais triviais, constitui um raciocínio bastante difundido, que pode ser encontrado em

inúmeros autores e analistas políticos especializados no tema90

.

Ainda sobre esse ponto, Gracia Martín prossegue definindo a criminalidade

organizada como sendo “... uma criminalidade de organizações dedicadas a atividades ab

initio ilícitas e que agem totalmente em mercados ilegais e à margem do Direito”91

,

relacionando-a com a criminalidade econômica da globalização ao dizer que esta constitui um

complexo de realidades delitivas que praticamente se confunde com a criminalidade

organizada tradicional.

O ponto nevrálgico dessa parte da exposição diz respeito à aparente

institucionalização, com caráter de perpetuidade, da criminalidade organizada em âmbito

global. Como bem assinala o autor: A delinqüência econômica em geral, e, dentro dela, sua

macroscópica e mais complexa dimensão ligada à internacionalização e à globalização da

economia, já não se mostra como um fenômeno social de tipo isolado mas, ao contrário,

88

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 68. 89

Ibidem, p. 69. 90

Ver, por exemplo, PRIETO, José Ricardo. O crime organizado... pelo Estado. A Nova Democracia, nº 32.

Disponível em: <http://www.anovademocracia.com.br/no-32/405-o-crime-organizado-pelo-estado>. Acesso

em: 02 out. 2011, reportagem na qual o doutor em Sociologia José Cláudio Souza Alves, entrevistado pela

reportagem do periódico em referência, afirma haver um acordo tácito entre o Estado e a chamada

criminalidade organizada, o qual é rompido pelo primeiro de tempos em tempos. 91

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 70.

55

como um fenômeno que ocorre, como destaca Silva Sánchez, a partir de “elementos de

organização, transnacionalidade e poder econômico, ou, como indica Albrecht, a partir de

uma „organização permanente e estável‟”92

.

Gracia Martín prossegue em sua exposição tratando do “Direito penal da União

Européia”, o qual representa, em síntese, o corpo de leis destinado a conferir proteção aos

bens jurídicos europeus. Assim se expressa o autor nesse particular:

Em uma esfera mais concreta, deve-se considerar que a integração européia provoca

o aparecimento de todo um conjunto de “bens jurídicos europeus” claramente

diferenciados dos reconhecidos nos âmbitos nacionais específicos de cada um dos

Estados membros93

.

Ora, em sendo a coletividade uma interação de interesses de seus respectivos

membros, não há porque supor que tal interação, enquanto resultado final, constitua algo de

natureza distinta dos elementos que a compõe. Ou seja: não há por quê supor que os desafios

no âmbito penal, próprios da União Européia, sobretudo se considerado o avançado processo

de integração regional hoje verificável, sejam muito diferentes daqueles enfrentados no

cotidiano dos Estados que a compõe. Assim sendo, resta a interrogação acerca do porquê

dessa proposta de expansão do Direito Penal. Gracia Martín assim justifica:

Como não poderia deixar de ser, os processo [sic] de integração supranacional

comportam também importantes implicações de criminalidade,e estas motivam

diversas respostas político criminais e jurídico-penais que vão formando – e

finalmente configuram – um Direito penal específico da integração que, sem

dúvida, deve ser valorado como Direito penal moderno94

.

Contudo, que interesses estariam por trás de uma alternativa que, em última análise,

poderia ampliar os lindes de atuação do poder punitivo, conservando-o sem fronteiras

nacionais no âmbito da União Européia? Semelhante proposta, ainda que calcada em uma

noção de bem jurídico, choca-se frontalmente com o princípio da territorialidade absoluta da

lei penal (“Lex comissi delicti”, segundo a regra consagrada de Direito Internacional),

subvertendo o sistema de aplicação do Direito Penal hoje conhecido. Admitir a validade de

semelhante proposta traria, inevitavelmente, implicações sobre as noções relativas à aplicação

da lei penal e sobre a soberania tal qual as conhecemos.

Apesar de sua proposta radicalmente expansiva do Direito Penal no contexto da União

Européia, Gracia Martín demonstra serenidade ao afirmar o caráter fragmentário e subsidiário

da tutela penal, ainda que no âmbito da integração:

92

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 70. 93

Ibidem p. 73. 94

Ibidem, p. 72.

56

A proteção penal dos bens jurídicos europeus, porém, também tem que ser, como

nos ordenamentos nacionais, possuidora de um caráter fragmentário e subsidiário,

ou seja, deve ter lugar só frente às formas de agressão mais graves e quando não

bastem para esse efeito as sanções de caráter administrativo95

.

A posição contida no excerto acima colacionado sem dúvida deve ser levada em

consideração enquanto fator capaz de mitigar uma possível radicalização nesse campo,

devendo integrar toda e qualquer crítica séria que se queira fazer a respeito da obra em

comento. Entretanto, a última parte desse fragmento chama a atenção quando menciona “as

sanções de caráter administrativo”.

É importante para a análise aqui empreendida registrar que existe atualmente um

movimento de “administrativização do direito penal”, inclusive invocado por Jakobs e Meliá

em suas análises acerca do Direito Penal do Inimigo. Segundo esses autores, de alguma

maneira, o inimigo seria “heteroadministrado” pelo Estado, não sendo pena a medida contra

ele desferida, mas medida administrativa, sendo este um entre outros exemplos possíveis de

administrativização do direito penal96

. Uma síntese crítica deste movimento de

administrativização do direito penal também pode ser encontrada em Zaffaroni e Nilo Batista,

em obra redigida na companhia de dois outros penalistas, cujos termos são importantes para

ilustrar a argumentação ora empreendida:

Existe um fenômeno relativamente recente, ou seja, a chamada administrativização

do direito penal, que se caracteriza pela pretensão de um uso indiscriminado do

poder punitivo para reforçar o cumprimento de certas obrigações públicas (em

especial de âmbito fiscal, societário, previdenciário, etc.), o que banaliza o conteúdo

da legislação penal, destrói o conceito limitativo de bem jurídico, aprofunda a

ficção do conhecimento da lei, põe em crise a concepção de dolo, vale-se de

responsabilidade objetiva e, em geral, privilegia o estado em sua relação com o

patrimônio dos habitantes. Nesta modalidade, o poder punitivo é distribuído mais

por acaso do que nas áreas tradicionais dos delitos contra a propriedade, tendo em

vista que a situação de vulnerabilidade ante o mesmo depende do mero fato de

participar de empreendimentos lícitos. Há suspeitas de que recentes teorizações do

direito penal sejam orientadas para explicar tal modalidade em detrimento do direito

penal tradicional97

.

Isto posto, é mais que lícito questionar se a posição defendida por Gracia Martín não

se enquadra nessas teorizações orientadas para legitimar a administrativização do Direito

Penal. Apesar disso, não foi possível, pela análise da obra em comento, determinar se foi

95

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 74. 96

Uma análise interessante sobre a administrativização do Direito Penal pode ser encontrada em MACHADO,

Fábio Guedes de Paula e GIACOMO, Roberta Catarina. Breves reflexões sobre a administrativização do

Direito Penal, delitos por acumulação e antecipação da tutela penal na proteção do bem jurídico ecológico.

Disponível em: < http://www.diritto.it/pdf/28544.pdf>. Acesso em: 03 out. 2011. 97

ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal

Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. Vol. 1. Rio de Janeiro, Revan, 2007, p. 50.

57

intenção do autor empreender semelhante legitimação, mas é oportuno registrar essa possível

relação para o bom andamento das reflexões desenvolvidas a seguir.

O autor, ao longo de sua abordagem sobre o que entende por Direito penal europeu

revela-se, de certa forma, frustrado pelo fato de a União Européia não ter ainda podido

construir um Direito Penal próprio, capaz de tutelar os bens jurídicos que interessam à

comunidade de Estados que a compõem: “De outra parte, a União Européia carece de poder

penal, pois os Estados membros ainda não decidiram conceder-lhe nenhuma parte desse

componente de sua soberania”98

.

De princípio, surge uma primeira impropriedade em tal argumentação: no contexto de

uma integração regional, os Estados que a compõem não concedem partes componentes de

sua soberania, mas a compartilham, até porque esse atributo do Estado nação, enquanto

insubmissão no plano externo e monopólio do uso da força no plano interno, não pode ser, de

nenhuma forma, divisível.

No mais, restam as considerações de ordem dogmática acerca do princípio da

territorialidade absoluta da lei penal, já abordado. Admitir um Direito Penal regional, que

pudesse prescindir dos mecanismos tradicionais de cooperação jurídica internacional (e.g.,

extradição), passaria necessariamente por uma reformulação de todos os conceitos (ou de boa

parte deles) concebidos nessa seara.

Não que uma mudança de paradigma, de tempos em tempos, seja algo

necessariamente negativo. Entretanto, conforme já consignado em outros pontos dessa

exposição, os movimentos de expansão do Direito Penal representam, por si só, um

retrocesso, uma vez que asseguram uma necessária expansão do poder punitivo, contrária ao

fim máximo do Direito Penal, que é a redução desse mesmo poder, ressalvadas as posições

em contrário cuja abordagem é consignada ao longo desta exposição.

Apesar de construir diversas categorias, em princípio autônomas, dentro do projeto de

expansão do Direito Penal, observa-se na obra de Gracia Martín uma progressiva redução

mútua dessas categorias, com umas integrando-se as outras à medida que a exposição avança.

Pode-se constatar tal fato, dentre outras passagens, pela leitura do seguinte excerto:

O Direito penal da União Européia está orientado para a proteção de bens jurídicos

europeus, os quais têm um conteúdo essencialmente econômico,e por isso pode-se

dizer que o Direito Penal europeu é fundamentalmente um Direito penal econômico

e da empresa99

.

98

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 75. 99

Ibidem, p. 85.

58

Ora, se o Direito Penal econômico e da empresa é gênero do qual o Direito Penal

europeu é espécie, por quê não consignar essa relação logo de princípio, de forma a organizar

a análise em categorias que facilitem a compreensão do fenômeno que se pretende descrever?

Essas e outras falhas aparentes na exposição de Gracia Martín levam a crer que existe alguma

intencionalidade em expor a matéria da forma pela qual ela é exposta, fazendo com que

pairem ainda mais dúvidas sobre a já controversa proposta de expansão do Direito Penal.

Pode-se argumentar que a construção de um Direito Penal tipicamente europeu,

destinado à proteção de bens jurídicos próprios da Comunidade Européia de Estados

nacionais está relacionada com a concepção de Spencer acerca da existência de povos

superiores aos demais, polarizando, em termos globais, a construção de um Direito Penal no

âmbito da, por assim dizer, “sociedade européia” e do mundo “não europeu”.

Ora, por quê as necessidades de criminalização européias seriam distintas daquelas

que se impõem atualmente nas demais partes do mundo? Ou, para ser mais específico, por

quê tais necessidades se diferenciariam, em qualidade, daquelas próprias das demais

integrações regionais? Ainda que se questione serem tais necessidades distintas em virtude do

grau de integração atingido pela União Européia, é válido contra argumentar dizendo que

essa diferença poderia acarretar uma variação no grau dessas necessidades, jamais em sua

qualidade.

Os principais desafios criminais da atualidade dizem respeito exatamente à

criminalidade definida por Gracia Martín como globalizada (correspondente ao “Direito

penal da globalização”), constituída pelas conexões mundiais de lavagem de dinheiro e

tráfico de pessoas, p. ex., que dependem necessariamente de cooperação jurídica

internacional para atingirem um grau de punição mais eficaz.

Admitir que as necessidades de criminalização e punição desse gênero assumem, no

âmbito da União Européia, caráter diverso do assumido no resto do mundo acarretaria o

desmanche de muito do que foi construído até então em termos de cooperação jurídica

internacional, pois afastaria um dos principais blocos econômicos, senão o principal, dos

esforços internacionais dirigidos ao combate comum dessas atividades ilícitas.

Por derradeiro, finalizando sua exposição acerca das vertentes sob as quais se dá a

expansão do Direito Penal, Gracia Martín aborda a problemática do Direito Penal do Inimigo

em sucinta exposição sobre seus postulados fundamentais. Assim se expressa o autor em

comento:

O Direito Penal do cidadão define e sanciona delitos ou infrações de normas

realizados pelos indivíduos de um modo incidental e que são normalmente uma

simples expressão de um abuso por parte dos mesmos nas relações sociais nas quais

59

participam com seu status de cidadão, ou seja, na sua condição de sujeitos

vinculados ao Direito e pelo Direito. Os inimigos, ao contrário, são indivíduos que

abandonaram o Direito de um modo permanente e, com isso, o status de cidadão.

As atividades e a ocupação profissional de tais indivíduos não têm lugar no âmbito

das relações sociais legitimamente reconhecidas, mas à margem dessas, pois as

mesmas são expressão e expoente da vinculação daqueles a uma organização

estruturada que opera á margem do Direito e que se dedica a atividades

inequivocamente “delitivas”. Esse é o caso, por exemplo, dos indivíduos que

pertencem a organizações terroristas, de narcotráfico, de tráfico de pessoas, etc. e,

em geral, de quem realiza atividades típicas do denominado crime organizado100

.

A partir do exposto acima e na linha do postulado por Jakobs, o inimigo é aquele que

não apresenta garantias cognitivas suficientes de que permanecerá dentro do limite imposto

pelas normas, sobretudo pelo fato, dentre outros possíveis, de pertencer a uma organização

criminosa. A partir dessas considerações, por óbvio, ingressa-se na perigosa seara do direito

penal de autor, oposto a um direito penal do fato, próprio do paradigma garantista.

Ainda que o sistema jurídico brasileiro seja calcado no direito penal do fato, apresenta

notas de direito penal de autor, uma vez que as leis penais consideram a existência ou não de

reincidência para a concessão de determinados benefícios, entre outras normas. A questão

que se coloca, nesse particular, diz respeito à expansão desse modelo do direito penal de

autor, proposto pelo Direito Penal do Inimigo.

Afinal, até que ponto pertencer a uma organização criminosa produz um indivíduo

irrecuperável para o convívio social? Seria o membro de uma organização criminosa um

indivíduo de per si perigoso, organizado e instruído a ponto de subverter as estruturas

estatais? Ou tais indivíduos, em sua maioria, seriam vítimas da sociedade de consumo que,

com suas metas culturais exageradas, tendem a arrastar os pobres para a criminalidade? O

modelo de inimigo proposto por Jakobs não corresponderia, com mais acerto, ao estereótipo

do criminoso econômico, detentor dos meios intelectuais e materiais capazes de comprometer

a ordem estatal?

Essa superabundância de questionamentos serve para demonstrar que as reflexões

sobre a matéria podem, com um mínimo de esforço, ser levadas ao infinito. O campo do

Direito Penal do Inimigo hoje, como em nenhuma outra época poderia ter sido, apresenta um

sem número de variáveis a serem consideradas antes de sua aceitação irrefletida. O

paradigma bélico que identifica um inimigo dentre os cidadão, interno aos Estados, próximo

da figura do subversivo das legislações de “segurança nacional”, coloca uma série de

questões sob o prisma dos direitos e garantias individuais dos cidadãos.

100

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 86.

60

Prossegue o autor qualificando o Direito penal do Inimigo enquanto engrenagem da

máquina de expansão de seu “direito penal moderno”:

Para enfrentar os inimigos recorre-se nas sociedades modernas a normativas com

determinadas características identificadas como típicas de um Direito penal do

inimigo no sentido descrito, e que, como mencionado, também deveriam ser

incluídas no Direito penal moderno. Assim, a circunstância específica de pertencera

uma organização é levada em consideração para estabelecer agravações, às vezes

significativas, das penas correspondentes aos fatos delitivos concretos realizados

pelos indivíduos no exercício de sua atividade habitual ou profissional a serviço da

organização101

.

Conforme pontuado logo acima, a atribuição de uma qualificadora específica

(pertencer a uma organização criminosa) como nota distintiva por si só suficiente para definir

o inimigo é uma alternativa perigosa capaz de violar direitos e garantias individuais. A

possibilidade de conferir tratamento diverso para indivíduos que praticaram o mesmo fato

típico (p. ex., tráfico de entorpecentes) pela circunstância de pertencerem ou não a uma

organização criminosa, a nosso ver, viola direitos e garantias fundamentais, como o princípio

da isonomia. Isso sem prejuízo da aferição, em cada caso, da participação do indivíduo em

eventual delito de quadrilha ou bando.

Deseja-se consignar aqui, de qualquer sorte, que o fato de pertencer a uma

organização criminosa, apesar de implicar maior desvalor da ação, não justifica uma punição

mais severa da conduta típica mediante retirada de direitos e garantias. Ainda que se admita o

contrário, o fato de não ser levada em consideração, na maioria dos casos, o grau de

participação do indivíduo na organização criminosa justifica essa afirmação.

Indo um pouco mais além na crítica formulada, é acertado dizer, com Zaffaroni, que

os esforços de construção de um Direito Penal do Inimigo na atualidade coincidem com um

momento de emergência102

, ou seja, momento em que é necessário definir e combater o

inimigo. A incapacidade do modelo de Estado contemporâneo em lidar com os conflitos que

se avolumam dia após dia cria uma opção pela resposta penal aos conflitos, caracterizada pela

agravação das medidas contra um determinado grupo de indivíduos.

Ainda segundo Zaffaroni, essa reação criminalizadora não é privilégio do mundo

contemporâneo, tendo-se verificado em diversos momentos históricos, como a Inquisição, p.

ex., onde as bruxas personificavam um mal que, na verdade, radicava na opressão imposta à

sociedade pela Igreja e em todo o caos ocasionado pela queda do Império Romano, que

101

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 87. 102

Segundo ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 143, “emergência” traduz o momento em que

cabe definir e enfrentar o inimigo.

61

rompeu com uma lógica centralizadora até então vigente e estabeleceu um controle social

difuso a cargo dos suseranos e do clero.

Tomando por base esse exemplo histórico, parece óbvio que o estabelecimento de um

Direito Penal do Inimigo serve a razões de Estado, dentre as quais se pode destacar a

incapacidade de as autoridades governamentais resolverem, pela via política, conflitos de sua

alçada e a necessidade de reafirmação da ordem estabelecida, constantemente ameaçada pelo

fenômeno criminal.

Causa verdadeira perplexidade a forma pela qual Gracia Martín conclui sua digressão

acerca dos fenômenos de expansão do Direito Penal ao abordar as legislações identificáveis

como Direito Penal do Inimigo:

Tais regulações se caracterizam pelo fato de que seu objetivo já não é a prática de

fatos delitivos concretos e determinados, mas de qualquer conduta informada e

motivada pela qualidade de membro da organização que atua fora do Direito.

Mediante tais regulações se procede a uma criminalização de condutas no âmbito

prévio à prática de qualquer fato delitivo, que teriam, em síntese, o significado de

atos preparatórios, ou de condutas que simplesmente favorecem a existência da

organização e alimentam sua subsistência e permanência. E assim são

criminalizados, por exemplo, os comportamentos de mera colaboração com bandos

ou organizações terroristas (art. 576 CP) e inclusive a apologia das infrações de

terrorismo ou de seus autores (art. 578 CP)103

.

A incriminação de atos preparatórios (“condutas no âmbito prévio à prática de

qualquer fato delitivo”) é, segundo o sistema jurídico-penal brasileiro, contrária ao direito. Se

o limite mínimo da punibilidade se encontra na tentativa (art. 14, II, CP) não é possível a

incriminação de atos preparatórios à luz do nosso sistema. Logo, a adoção do modelo

proposto pelo Direito Penal do Inimigo para a elaboração de leis penais é inviável porque

contrária ao sistema jurídico então vigente.

Isto posto, há ainda que se considerar que esse raciocínio radica no princípio da

lesividade, ou princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, conforme enunciam os

penalistas, de forma que a incriminação de atos preparatórios, á luz de tal princípio, é

igualmente inviável. Admitir o contrário significaria dar azo à expansão do poder punitivo na

direção exata da violação sistemática de direitos e garantias individuais.

Apesar de se ter notícia de que semelhante violação já ocorre mediante a

operacionalização de todo um “sistema penal subterrâneo”, no dizer de Zaffaroni, admitir o

ingresso do poder punitivo para além da fronteira mínima da ofensa a bens jurídicos

representaria a institucionalização do arbítrio como forma legítima de exercício do poder

punitivo. Normas penais que assim dispusessem poderiam até encontrar retenção pelo sistema

103

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 88.

62

de direitos e garantias assegurado constitucionalmente. Entretanto, a barreira primordial da

dogmática penal, que garante a regularidade de tais normas sob o ponto de vista formal, já

teria sido rompida em prejuízo de direitos fundamentais.

Outra crítica que pode ser dirigida com relação às normas cuja elaboração é orientada

pelo Direito Penal do Inimigo é o fato de não se dirigirem a todos igualmente, assim como

toda e qualquer norma penal. Em função da seletividade dos sistemas penais, cuja análise se

encontra no Capítulo 2 deste trabalho, as chances de criminalização variam em função de

determinados fatores, sobretudo em função do pertencimento a uma (dominante) ou outra

(dominada) classe social.

Pode ser observado que, no contexto do Direito Penal do Inimigo, há um duplo

processo de seleção que torna a lógica da seletividade do controle penal ainda mais perversa:

se em um momento as agências do sistema penal definem, entre todos os cidadãos, quem será

criminalizado, em um segundo momento esses mesmos agentes definem, dentre os

criminalizados, aqueles merecedores de tratamento penal típico de inimigo.

Esse processo configura uma dupla seleção muito influenciada pela construção de

estereótipos104

, iniciada por Lombroso e até hoje considerada pela criminologia do labelling

approach. Todos esses dados, desde a seletividade, passando pela construção de estereótipos

até chegar a qualificadoras específicas, como o simples fato de pertencer a uma organização

criminosa, vai delineando uma espécie de filtro cuja substância depurada é o fiel retrato de

um direito penal de autor.

Conclui o autor escrevendo, sobre o Direito Penal do Inimigo, que “Tratar-se-ia, isso

sim, de uma legislação de luta ou guerra contra o inimigo cujo único fim seria sua exclusão

ou inocuização”105

em que “... se renunciaria às garantias materiais e processuais do Direito

penal da normalidade”106

. Ambos os fragmentos trazem uma mensagem preocupante. O

primeiro carreia uma solução que em pouco se distancia da eliminação física do inimigo

(“inocuização”), ou de seu afastamento permanente do meio social (“exclusão”). Ambas as

finalidades distanciam-se em muito das funções da pena como tradicionalmente as

conhecemos.

104

Um exemplo interessante de construção de estereótipos criminais pode ser encontrado em BINGHAM,

Tileodore A. Foreign Criminals in New York. The North American Review. , vol. 188, n. 634. University of

Northern Iowa, 1908, pp. 383-394, em que o autor, um policial, traça um zoneamento da cidade de Nova

Iorque de acordo com a etnia dos criminosos que controlariam cada área dessa cidade. 105

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência, p. 88-89. 106

Ibidem, p. 89.

63

Quanto ao segundo fragmento, quando o autor escreve que “se renunciaria às

garantias materiais e processuais do Direito penal”, uma questão que se coloca é a de quem

renunciaria às ditas garantias. O processado poderia fazê-lo? Certamente que não. Enquanto

direitos fundamentais, as garantias atinentes ao processo penal, intimamente ligadas ao

devido processo legal (art. 5º, inciso LIV da CRFB/1988), são irrenunciáveis, tendo em vista

se tratar de direitos indisponíveis.

Dessa forma, a alternativa que resta é a de que terceiros – a sociedade, diretamente ou

representada pelas instâncias de controle penal – possam fazê-lo, o que se afigura

originalmente impossível. Dessa forma, a conclusão a que se chega é que não se trata de

renúncia de direitos e garantias, mas de supressão ou confisco destes, sem supedâneo legal

algum. A conclusão a que se chega é que se trata de uma proposta, em tudo arbitrária, de

supressão de direitos e garantias.

Esse movimento, caso ocorra, simboliza um retrocesso, posto que consagra um

vilipêndio frontal ao devido processo legal, sob o aspecto específico das garantias penais, que

já são objeto de violações sistemáticas. Assim sendo, o Direito Penal do Inimigo, enquanto

modelo orientador da elaboração de leis penais, apresenta problemas, tanto do ponto de vista

formal quanto material, insuperáveis à luz das ferramentas jurídicas então disponíveis no

campo penal.

Como adendo final à exposição sobre os movimentos de expansão do Direito Penal,

Gracia Martín ainda delimita suas características gerais: introdução de novos delitos,

ampliação dos tipos penais existentes, antecipação da intervenção punitiva para aquém dos

limites de proteção de bens jurídicos e agravação (por vezes desproporcional) de penas.

Desse modo, fica ainda mais flagrante o retrocesso observável sob o prisma dos direitos e

garantias.

O Direito Penal do Inimigo, enquanto parte de um movimento maior de expansão do

Direito Penal, tem sua carga potencializada pelo conjunto dessas diversas interações. Talvez

por esse motivo tenha sido conveniente apresentar os movimentos expansivos em bloco. Pode

ser que, para olhares menos críticos, uma proposta de flexibilização das garantias tituladas

pelos cidadãos pareça mais aceitável se concatenada com um sem número de movimentos

cujo mote seja a difusão de uma incontrolável sanha punitiva.

64

2.2. A expansão do Direito Penal sob a ótica de Silva Sánchez

Silva Sánchez, em sua obra A expansão do Direito Penal107

, inicia por apontar a

existência de diversos movimentos na atualidade que sinalizam para a construção de um

direito penal mínimo. A primeira crítica que de plano desfere contra essa corrente de

pensamento é o fato de esta não ter um conteúdo bem definido, com seus autores divergindo

acerca do que seria um direito penal mínimo: Baratta, por exemplo, empreenderia uma

aproximação de cunho sociológico do fenômeno, ao passo que, em Ferrajoli, a construção de

um direito penal mínimo se confundiria com um Direito Penal tradicional de viés garantista.

Sem embargo de todas as idéias introduzidas por esses autores, Silva Sánchez aponta,

logo em um primeiro momento, uma tendência global de introdução de novos tipos penais ou

de agravamento dos tipos penais já existentes. Essa postura, apesar de confirmada por tudo

quanto expõe Gracia Martín, conforme já abordado, carece de um estudo mais aprofundado.

Apesar de em ambos os autores poder ser verificada essa afirmação, os estudos, para fins de

confirmação do que se afirma, carecem de um estudo quantitativo das legislações penais que

apontam no sentido da expansão do Direito Penal.

Do contrário, nada se poderá dizer sobre uma tendência global generalizada no

sentido da expansão do Direito Penal. Somado a isso, em Gracia Martín pode-se apontar que

há uma proposta de construção de um Direito Penal claramente expansivo, a qual não é

acompanhada da indicação das ferramentas aptas a promover tal expansão sem afetar a

coletividade sob o prisma dos direitos e garantias individuais e coletivos, bem como sob o

prisma das liberdades constitucionalmente asseguradas. Propostas como essas devem ser

avaliadas com cautela, ainda que no plano doutrinário, posto que sua aplicação irrefletida

pode acarretar conseqüências devastadoras sobre o Estado democrático de direito.

Aliado a isso, atrai igualmente a atenção o fato de Silva Sánchez afirmar

categoricamente que existe um consenso amplo e generalizado no sentido da expansão do

Direito Penal. Assim se expressa esse penalista:

A representação social do Direito Penal que comporta a atual tendência expansiva

mostra, pelo contrário, e como se verá, uma rara unanimidade. A divisão social

característica dos debates clássicos sobre o Direito Penal foi substituída por um

consenso geral, ou quase geral, sobre as “virtudes” do direito penal como

instrumento de proteção dos cidadãos. Desde logo, nem as premissas ideológicas

nem os requerimentos do movimento de “lei e ordem” desapareceram: ao contrário,

107

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades

pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011.

65

se integraram (comodamente) nesse novo consenso social sobre o papel do Direito

Penal108

.

A formação, por assim dizer, espontânea de consenso em uma seara de tão pesada

intervenção como é o Direito Penal é tema, no mínimo, controvertido. É lícito se indagar até

que ponto esse consenso verdadeiramente se verifica ou, de outra forma, é imposto pelo

legislador no campo dos mais diversos movimentos de expansão do Direito Penal. Afinal,

dizer que o movimento de expansão do Direito penal é fruto de um clamor geral nesse sentido

é radicalmente diferente de dizer que tal fenômeno é um fato da realidade que ocorre

independente da vontade dos jurisdicionados, ou de legítimas pressões populares nesse

sentido. Afirmações como essa são especialmente contestáveis no Brasil, em que

historicamente se verifica um déficit de participação popular no processo democrático.

A criação de consenso, nesse cenário, se constituiria, como de fato se constitui, mais

por um apelo generalizado dos meios de comunicação, movidos por uma ou por outra

motivação conflitiva social. É no contexto desse apelo dos meios de comunicação de massa

que se deflagram as chamadas “campanhas de lei e ordem”, acima citadas por Silva Sánchez,

bem como é nesse mesmo contexto que atuam os empresários morais. Observe-se o que Raúl

Zaffaroni e Nilo Batista escrevem a respeito do tema:

A empresa criminalizante é sempre orientada pelos empresários morais, que

participam das duas etapas de criminalização; sem um empresário moral, as

agências políticas não sancionam uma nova lei penal nem tampouco as agências

secundárias selecionam pessoas que antes não selecionavam. Em razão da

escassíssima capacidade operacional das agências executivas, a impunidade é

sempre a regra e a criminalização secundária, a exceção, motivo por que os

empresários morais sempre dispõem de material para seus empreendimentos. O

conceito de empresário moral foi enunciado sobre observações relativas a outras

sociedades, mas na nossa pode ser tanto um comunicador social, um grupo religioso

á procura de notoriedade, quanto um chefe de polícia à cata de poder ou uma

organização que reivindica os direitos das minorias etc. Em qualquer um dos casos,

a empresa moral acaba desembocando em um fenômeno comunicativo: não

importa o que seja feito, mas sim como é comunicado. A reivindicação contra a

impunidade dos homicidas, dos estupradores, dos ladrões e dos meninos de rua, dos

usuários de drogas etc., não se resolve nunca com a respectiva punição de fato, mas

sim com urgentes medidas punitivas que atenuam as reclamações na comunicação

ou permitem que o tempo lhes retire a centralidade comunicativa109

.

Considerando tudo quanto acima se expõe, não é possível visualizar com clareza e

precisão necessárias a criação de consenso no sentido da expansão do Direito Penal enquanto

um processo natural ocorrido mediante atuação da força das coisas. O consenso generalizado

apontado por Silva Sánchez, se é que ele existe enquanto dado da realidade, é fruto de todo

108

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades

pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 32. 109

ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal

Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 45.

66

um processo de criação de consenso levado a efeito pelos empresários morais que atuam em

nossa sociedade.

Nesse sentido, a luta contra as drogas se converte em uma bandeira brandida por esses

formadores de opinião, a qual ostenta estampada em sua face a doutrina do Direito Penal do

Inimigo. Em última análise, o suposto consenso verificado por Silva Sánchez é, na verdade,

fruto das mais diversas campanhas de lei e ordem empreendidas pelos empresários morais.

Daí o fruto dessas duas iniciativas – campanhas de lei e ordem e movimento de expansão do

Direito Penal – se encaixar tão bem, como tão claramente aponta o penalista em comento.

Após a aludida introdução, ao longo da qual trata do consenso gerado pela expansão

do Direito Penal, Silva Sánchez inicia sua exposição a partir da análise dos intrincados

fenômenos que embasam a cultura da sociedade por ele designada “sociedade de riscos”110

. A

existência dessa sociedade se comprovaria, de forma bastante sintética, pela constatação de

que em nenhuma outra época se viveu tão bem e, igualmente, se sofreu tanto.

Tal sofrimento se explicaria por um grau exacerbado de sensibilidade ao risco. Essa

sensibilidade à flor da pele, por assim dizer, acarretaria uma sensação generalizada de

insegurança que, progressivamente, conduziria à expansão do direito penal a partir da

formação do consenso já aludido acima. Essa sensação generalizada de insegurança, aos

poucos, seria capaz de iniciar a expansão do Direito Penal a partir, sobretudo, de uma

avalanche de novos tipos de perigo.

A digressão de Silva Sánchez passa ainda pela consideração, diga-se de passagem

muito interessante, que são as normas atualmente existentes que intermedeiam as relações

entre os indivíduos, não existindo uma relação horizontal indivíduo-indivíduo, mas uma

relação triangular indivíduo-norma-indivíduo, sendo a norma elemento indispensável de

conexão entre os sujeitos dessa relação.

Isto posto, cabem algumas considerações a respeito desse ponto. Em nosso modesto

entendimento, a relação entre indivíduos intermediada necessariamente pelas normas conduz

progressivamente a uma despersonificação das relações humanas e a uma resposta cada vez

mais passiva dos cidadãos em face dos problemas sociais, sobretudo no que tange á

possibilidade de autocomposição dos conflitos.

Nesse sentido,a verticalização das relações sociais que se verifica nesse desenho é

capaz de ocasionar uma desintegração dos laços de solidariedade existentes em uma dada

110

A referência pode ser encontrada em SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal:

aspectos da política criminal nas sociedades pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais,

2011, p. 35.

67

sociedade, entendida como uma comunidade de pessoas que, de forma integrada, partilham

laços jurídicos e culturais entre si. Esse desfazimento de um dos aspectos fundamentais da

vida de relação é muito útil às instâncias de poder, sobretudo no tocante à construção da

categoria jurídica de inimigo, posto que o rompimento ou até mesmo o enfraquecimento das

relações sociais horizontais torna mais fácil a construção da categoria de “não pessoa”

(entendida como “não membro” da sociedade, que não merece privilégio a seus direitos e

garantias), fundamental para a construção da categoria de inimigo, sem a qual não nasce o

respectivo modelo de elaboração de normas penais (Direito Penal do Inimigo).

Esse traço característico da obra de Silva Sánchez o coloca na trilha do Direito Penal

do Inimigo de maneira irrefutável, devendo-se analisar com mais cuidado tudo quanto mais

adiante se propõe. É com esse olhar crítico que a obra desse autor, no que tange ao Direito

Penal do Inimigo, deve ser lida: sob o prisma do desfazimento dos laços sociais de

fraternidade e solidariedade que os fundamentos da expansão do direito penal carreiam

consigo.

Ainda segundo o autor em comento, a sociedade contemporânea passa por um

momento de identificação majoritária com a vítima do que com o Estado ou com o criminoso.

Isso significa dizer que a maioria da população, segundo Silva Sánchez, se vê mais como

uma vítima em potencial do que como um possível autor de delitos. Isso seria um elemento a

mais a reforçar a tese de que a expansão do Direito Penal se processa em um ambiente de

consenso ideológico no qual a maioria dos membros da sociedade apoiaria os fenômenos

expansivos.

Essa criação de consenso se reforçaria pela visão da maioria no sentido de se

visualizar mais como potencial vitimizado. Há, por trás disso, na visão de Silva Sánchez, a

idéia de que a pena não só visa a reinserir e reeducar o criminoso (as chamadas ideologias re,

próprias da racionalização promovida pela função de prevenção especial positiva) como

também, ao isolar o criminoso, privando-o de sua liberdade, possibilitar a reintegração da

vítima ao corpo social.

Nesse sentido, a pena apareceria como uma forma de a sociedade apagar o seu erro

junto à vítima, da seguinte forma: como os mecanismos de controle social não foram capazes

de evitar que a vítima sofresse o mal que sofreu, é uma questão de justiça que punam o

criminoso para que possam se reconciliar com o vitimizado, fazendo-lhe justiça. Sobressai,

nesse aspecto particular, uma prevalência da função retributiva da pena sobre as demais

funções que se lhe atribuem.

68

Essa função da pena, vinculada à idéia básica de pagar o mal com o mal, em nosso

sentir, não é capaz de reparar o mal causado à vítima, tampouco reinseri-la, pois, sobretudo

no nosso sistema em que são vedadas as penas perpétuas, um dia a pena terminará de ser

executada e, segundo esse raciocínio, o quê seria da vítima? Ela seria privada da justiça que

lhe fora feita pelo fato de o criminoso não mais estar sofrendo as conseqüências de seus atos?

Ou tudo seria como antes, quando não havia mal algum perpetrado de parte à parte? Ora, não

é racionalmente aceitável que a perpetração do mal causado pela pena seja capaz de

reintegrar á vítima à sociedade, sob qualquer aspecto.

Pagar o mal do crime com o mal da pena, como é da essência da função retributiva,

não é capaz de restituir as partes ao status quo ante: o criminoso sofrerá as conseqüências do

estigma próprio desse rótulo, as quais o acompanharão pelo resto de sua vida, mesmo depois

de cumprida a pena. A vítima não terá seu mal reparado. Ao contrário: o Estado, ao aplicar

uma pena promove o confisco do conflito, ou seja, a vítima é alijada da relação conflitiva na

qual se envolveu, não tendo participação em sua solução.

Essa saída, que apenas suspende o conflito mediante a aplicação de uma sanção penal,

sem o resolver, gera na realidade uma situação de vulnerabilidade, tanto do ponto de vista do

criminoso, selecionado pelo sistema penal e inserido em uma lógica de submissão, quanto da

vítima, que deixa de ser parte ativa do conflito para assumir a situação de jurisdicionado, ou

seja, de administrado pela justiça estatal.

Um ponto interessante da exposição de Silva Sánchez é a sua posição acerca das

diversas formas de “justiça negociada”. Essa categoria jurídica, conforme esse autor,

constituiria uma degenerescência no âmbito do sistema penal porque “O Direito Penal

aparece assim, sobretudo, como mecanismo de gestão eficiente de determinados problemas,

sem conexão alguma com valores”111

. Um pouco antes em sua exposição, o autor em

comento complementa a idéia já apresentada:

Diante do modelo de justiça penal clássico surgem, assim, modelos de justiça

negociada, nos quais a verdade e a justiça ocupam, quando muito, um segundo

plano. A penetração da idéia de justiça negociada é muito profunda e tem

manifestações muito diversas, nem sempre coincidindo com seus partidários.

Assim, compreende desede os pactos de imunidade das promotorias com certos

imputados (por exemplo, os “arrependidos”), até as diversas formas de mediação,

passando pelas já generalizadas “conformidades” entre as partes112

.

Conforme a Nota do Tradutor 5, presente na página 91 da obra em comento, o autor,

ao referir-se a justiça negociada, aí engloba a transação penal e a suspensão condicional do

111

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades

pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, pp. 90-91. 112

Ibidem, p. 90.

69

processo, já há algum tempo inseridas no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 9.099/95.

Ora, não é defensável, sobretudo em um país como o Brasil, em que há um contingente

enorme de presos encarcerados por crimes de pouca gravidade, criticar a existência mesma de

dois institutos destinados à despenalização.

É óbvio que, como nada que existe, podem estar essas criações do legislador imunes a

toda e qualquer crítica. Entretanto, questionar a existência dessas medidas de despenalização

enquanto formas degeneradas de justiça vai de encontro a um movimento legislativo que, no

Brasil, começa a questionar a lógica do encarceramento por delitos aos quais são cominados

penas menores e passa a dirigir seu foco às condutas penalmente relevantes que até então

careciam da necessária tutela, como ocorre com o direito das mulheres e das minorias de um

modo geral.

Admitir que as formas de justiça negociada sejam formas degeneradas de justiça e,

por extensão de conceito, formas distorcidas de Direito Penal, pois o conduzem á mera gestão

de interesses privados, representa um retrocesso na medida em que representa um movimento

destinado a retirar a legitimidade de conquistas de cunho garantista há pouco alcançadas.

Esse raciocínio automaticamente conduz ao tópico seguinte desta exposição. Silva

Sánchez propõe que, na contramão do que ocorria outrora, em épocas passadas, o movimento

expansivo do Direito Penal, no sentido da criminalização de condutas, não mais se orienta no

sentido de apenas a criminalidade dos despossuídos, mas se volta sobretudo á criminalidade

daqueles que detém e manejam o poder.

Ora, uma afirmação de tal monta é complicado porque, uma vez incorporado o dado

inafastável da seletividade do controle penal, que informa ser o Direito Penal manejado em

desfavor dos mais vulneráveis, sobretudo do ponto de vista econômico, pelos menos

vulneráveis (e em favor destes) na proporção inversa das condições materiais detidas por uns

e por outros, facilmente se percebe que um movimento de expansão da criminalização só com

dificuldade atingirá a criminalidade dos mais poderosos.

Até porque, conforme será analisado mais adiante neste estudo, aqueles que detém as

ferramentas capazes de mantê-los no poder se inclinam para uma criminalidade capaz de

graus de refinamento não atingidos por aqueles responsáveis pelas chamadas obras grosseiras

ou, popularmente, crimes de sangue (a obra tosca da criminalidade). Isso refuta, logo em um

primeiro momento, o argumento de que a expansão do Direito Penal se dá, ou em alguma

medida se dará, pelo clamor do consenso já analisado, em desfavor da classe dominante. Uma

suposição dessa natureza é, no mínimo, obra da mais pura ingenuidade.

70

Esse Direito Penal destinado a combater a criminalidade perpetrada pelas classes

dominantes seria o Direito Penal da globalização, em escala macro, e, em grande escala mais

no plano das integrações regionais, o Direito Penal da integração e, no caso específico das

nações européias, do Direito Penal da União Européia. Nesse contexto, Silva Sánchez fornece

alguns dados fundamentais para que se possa alinhavar um conceito de criminalidade

globalizada.

Escreve esse autor que esse tipo de criminalidade se traduz sobretudo pela

criminalidade no âmbito das grandes organizações e da grande criminalidade organizada.

Essas duas, por assim dizer, “carreiras criminais” se caracterizariam muito mais por

comprometer uma estrutura de Estado do que por afetar o cotidiano dos cidadãos comuns,

que se preocupariam mais com a média criminalidade organizada de cunho patrimonial.

Essa criminalidade da globalização contaria ainda com uma estrutura hierarquizada

capaz de operar à distância, através das organizações criminosas, fazendo com que a autoria

dos delitos se dispersasse e, dessa forma, pudesse ser menos sentida de modo imediato. Essa

dispersão dos autores de delitos, diluídos em meio a uma estrutura típica de crime

organizado, traria novos desafios à imputação, que precisariam ser resolvidos por critérios de

imputação coletiva, ou por delitos de mera conduta, que traduzissem um perigo, como o

simples fato de pertencer a uma organização criminosa.

Ora, tal tendência traduz um amplo programa de criminalização que não se satisfaria

apenas com a punição das classes mais favorecidas, como certamente abrangeriam as turbas

de maltrapilhos que, incorporado o dado da seletividade, já abordado superficialmente acima,

poderiam facilmente ser transformados em grandes ameaças pela pressão da mídia ou das

campanhas de lei e ordem da ocasião.

De qualquer forma, trata-se de um projeto de criminalização que precisa ser pensado

pela doutrina porque se, ao contrário do que afirma Silva Sánchez, não há um consenso

acerca da expansão do Direito Penal, há ao menos uma corrente bastante coesa de pensadores

que se movimenta no sentido do recrudescimento das normas penais e até mesmo do

retrocesso do sistema de direitos e garantias que respalda o Direito Penal. Essa corrente,

ainda que aparentemente difusa, engloba, com assustadora convergência de idéias e intenso

71

intercâmbio113

, Gracia Martín, Silva Sánchez e Gunther Jakobs enquanto partidários desse

retrocesso e tem por críticos, entre outros, Cancio Meliá, Raúl Zaffaroni e Nilo Batista114

.

Silva Sánchez passa, no momento seguinte de sua exposição, a exemplificar aquilo

que entende por expansão do Direito Penal. Enquanto primeira linha de expansão, o autor

propõe uma mudança de escala do Direito Penal, propondo seu aprofundamento ao adquirir

abrangência supranacional, a começar pelas integrações regionais. Este ponto é em tudo

discutível porque esbarra no princípio de absoluta territorialidade das leis penais.

Admitir uma alteração nesses termos levaria necessariamente a repensar princípios

elementares de Direito penal, como a absoluta territorialidade das leis penais, com reflexos

sobre sistemas igualmente importantes (como é o caso da resolução dos conflitos de leis,

próprios do Direito Internacional Privado). Esse aprofundamento, a semelhança de todo o

movimento de expansão, traduz um incremento do punitivismo que, segundo argumenta Silva

Sánchez, é conseqüência natural da globalização: o maior deslocamento de pessoas e de

capitais, que tende a fugir do controle dos Estados, acarretaria um incremento correlato da

criminalidade. Nesse sentido, mediante a progressiva derrubada das fronteiras nacionais,

estaria aberta a via para a internacionalização do Direito penal enquanto etapa de seu projeto

de expansão.

Outro aspecto digno de nota é o que tange à expansão do Direito Penal proposta em

moldes que se contrapõem frontalmente ao Direito Penal clássico, nascido no século XIX.

Segundo Silva Sánchez, o arcabouço de direitos e garantias que configura e conforma o

Direito Penal clássico do século XIX não é mais adequado á realidade do Direito Penal atual

porque o conteúdo do Direito Penal contemporâneo daquele se distingue.

As penas mais brandas de nosso tempo não mais justificariam as garantias qde que

escolheram se cercar nossos antepassados. Dessa forma, o que se propõe é um Direito Penal

com menos garantias e mais penas, ainda que mais leves que as atuais, com uma especial

tendência de redução ou até mesmo de supressão das penas privativas de liberdade, que

tenderiam a ser progressivamente substituídas pelas penas restritivas de direitos.

Esse ideal de expansão do Direito Penal pode ser criticado sob três aspectos. Se a

relativização de direitos e garantias em matéria penal é levada a cabo a pretexto de propor

penas mais brandas, mas que serão aplicadas com mais freqüência, por que não manter os

113

Ver, por exemplo, a quantidade de referências a Silva Sánchez e Gunther Jakobs em GRACIA MARTÍN,

Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a crítica do discurso

de resistência. 114

Entendemos que os críticos não conformam um corpo de doutrina tão coeso quanto o de seus opositores.

Entretanto, podem ser percebidos diversos pontos de contato, sob o prisma de uma contundente crítica à

expansão do Direito Penal e ao Direito Penal do Inimigo na doutrina produzida pelos autores citados.

72

mesmos direitos e garantias com penas mais graves, aplicadas de forma menos reiterada? A

proposta parece oferecer somente uma troca de intensidade por quantidade e freqüência com

que as penas de um dado sistema penal seriam aplicadas.

E é essa quase equivalência entre o que já existe e o que o movimento expansionista

propõe que chama a atenção. Em um segundo momento, essa transição parece semelhante à

transição, denunciada por Foucault115

, entre os suplícios corporais e a pena privativa de

liberdade: ao se trocar o suplício pelas prisões, reduzindo ou anulando a publicidade do

espetáculo de execução das penas, passou-se a punir mais (encarcerava-se com mais

freqüência do que se submetia os indivíduos aos suplícios públicos) e melhor (a infração

recebia uma pena mais “leve” – a de prisão; em compensação, menos infrações passaram a

ficar impunes). Aparentemente, é de um ganho qualitativo como esse de que trata a expansão

do Direito Penal enquanto proposta de ampliação do punitivismo em nossos tempos.

A terceira e última crítica que pode ser dirigida contra esse ponto da exposição reside

no fato de o Direito Penal possuir uma tendência natural à expansão. Essa tendência é

facilmente explicável quando se constata que as agências responsáveis pelo exercício do

poder punitivo não aceitam perder e, para isso, recorrem aos mais diversos expedientes, até

chegar à construção de um verdadeiro sistema penal subterrâneo, interior e, na maior parte

das vezes, oposto ao oficial. Dessa forma, nada garante que a flexibilização ou a supressão de

direitos e garantias necessariamente virá acompanhada de uma redução na intensidade das

penas aplicáveis.

Não é possível, mediante qualquer consenso, garantir que os atores envolvidos nessa

espécie de pacto se comprometam a cumprir o pactuado. Portanto, é provável que direitos e

garantias sejam flexibilizados sem a correlata redução da magnitude das penas cominadas.

Isso conduziria a uma expansão do Direito Penal em moldes ainda mais agressivos do que os

propostos por Silva Sánchez em sua obra, com inegáveis conseqüências para a conformação

do Estado democrático de direito.

O clamor público gerado pelo consenso, tão caro a Silva Sánchez, não é capaz, por si,

de mudar a lógica do sistema penal, fazendo “do redondo, quadrado”, eliminando o dado de

seletividade penal, construído ao longo da secular história dos delitos e das penas e, por

derradeiro, fazendo com que o legislador e as agências que exercem o poder punitivo unam

forças para fazer valer uma salutar expansão do Direito Penal. Mudanças como essa, se é que

são possíveis, passam necessariamente por uma profunda alteração estrutural que só com

115

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 35ª ed. Petrópolis, Vozes, 2008.

73

muito esforço e mudanças se promoverá. E certamente não é uma proposta expansiva do

Direito Penal, de cunho eminentemente autoritário, a alternativa mais inclinada a promover

essa mudança.

74

3 POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES DECORRENTES DA ADOÇÃO DO DIREITO

PENAL DO INIMIGO ENQUANTO MODELO PARA A ELABORAÇÃO DE

NORMAS PENAIS

Conforme foi possível verificar nos capítulos precedentes, o Direito Penal do Inimigo,

quer no contexto da expansão do Direito penal, quer como teoria jurídica capaz de nortear a

elaboração de normas penais que flexibilizam direitos e garantias, é merecedor de uma crítica

mais aprofundada, sobretudo no que tange aos seus desdobramentos no âmbito do sistema

penal. Este capítulo aborda, sob três eixos temáticos principais – aumento da margem de

discricionariedade no exercício do poder punitivo, implosão do Estado democrático de direito

e extensão da flexibilização de garantias processuais aos “não inimigos” – algumas das

críticas que podem ser feitas à teoria em exame.

Apresentados os eixos temáticos em que se baseia a crítica ora empreendida, resta

proceder aos seus termos iniciais. Quanto ao primeiro eixo temático desta crítica - aumento

da margem de discricionariedade no exercício do poder punitivo – insta ressaltar, por óbvio,

que o poder punitivo, tal qual concebido no âmbito do Estado democrático de direito

contemporâneo, se exerce com determinada margem de discricionariedade. É essa margem

que vale a pena, neste primeiro momento, investigar.

Antes de proceder à análise dessa dita “margem”, é preciso tecer alguns comentários

sobre o conceito de discricionariedade e sobre sua validade na seara penal.

Discricionariedade, segundo se pode depreender da análise dos elementos fornecidos

por José dos Santos Carvalho Filho116

, é o juízo de conveniência e oportunidade feito pela

Administração Pública (por ente ou agente público) quando da tomada de uma decisão.

Apesar de a decisão tomada discricionariamente precisar ter, necessariamente, previsão legal,

a discricionariedade tem lugar quando a lei não prevê exatamente como, ou quando,

determinado ato deva ser praticado, ficando esta decisão a cargo do bom juízo (de

conveniência e oportunidade, ou seja, juízo discricionário) daquele ente ou agente público

que aplica a lei.

Isto posto, e antes mesmo de tecer nossas considerações acerca da aplicabilidade

desse juízo discricionário, ou simplesmente discricionariedade, na seara penal, faz-se

necessário antecipar a tese central que fundamenta a presente crítica: o poder punitivo,

sobretudo na esfera da criminalização secundária, é exercido, em maior ou menor grau, com

116

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22ª Ed. Rio de Janeiro, 2009.

Lumen Juris Editora, pp. 47 e seguintes.

75

discricionariedade pelas agências117

que compõem o sistema penal. Por discricionariedade,

deve-se entender que a clientela penal, entre todos aqueles que cometem crimes, é

selecionada a partir de um juízo discricionário, efetuado primeiramente pelas agências

policiais do sistema penal, que fundamenta a persecução das infrações penais cometidas por

determinados indivíduos, e não por outros.

As resultantes da formulação desse juízo discricionário são a criminalização seletiva,

ou seletividade do controle penal, e a cifra oculta (ou “cifra negra”, segundo Albrecht),

ambas examinadas em passagens dos capítulos precedentes. Antes de proceder às demais

considerações que fundamentam nossa crítica, insta fazer uma pausa para tecer algumas

breves considerações acerca da dinâmica dos processos de criminalização primária e

secundária.

De forma bastante resumida, pode-se definir a criminalização primária como sendo o

programa extenso e fragmentário de criminalização, originalmente estabelecido pelo

legislador penal na forma de leis penais. Ou, por outra forma, o conjunto de infrações penais

contidas na legislação penal de um determinado ordenamento jurídico. Quanto à

criminalização secundária, esta pode ser traduzida como sendo a realização prática e concreta

do programa criminalizante originalmente estabelecido pelo legislador penal. Ou seja, trata-se

da concreção da criminalização primária, na forma de práticas punitivas estatais, que visa a

dar efetividade ao programa originalmente estabelecido em lei. Zaffaroni e Nilo Batista

traçam um panorama bastante completo desses dois movimentos sinérgicos e

complementares:

O processo seletivo de criminalização se desenvolve em duas etapas denominadas,

respectivamente, primária e secundária. Criminalização primária é o ato e o efeito

de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas

pessoas. Trata-se de um ato formal fundamentalmente programático: o deve ser

apenado é um programa que deve ser cumprido por agências diferentes daquelas

que o formulam. Em geral, são as agências políticas (parlamentos, executivos) que

exercem a criminalização primária, ao passo que o programa por elas estabelecido

deve ser realizado pelas agências de criminalização secundária (policiais,

promotores, advogados, juízes, agentes penitenciários). Enquanto a criminalização

primária (elaboração de leis penais) é uma declaração que, em geral, se refere a

condutas e atos, a criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre

pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa

que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado primariamente, a investigam,

em alguns casos privam-na de sua liberdade de ir e vir, submetem-na à agência

judicial, que legitima tais iniciativas e admite um processo (ou seja, o avanço de

uma série de atos em princípio públicos para assegurar se, na realidade, o acusado

praticou aquela ação); no processo, discute-se publicamente se esse acusado

praticou aquela ação e , em caso afirmativo, autoriza-se a imposição de uma pena de

117

O conceito de agência, na acepção aqui empregada, pode ser encontrado em ZAFFARONI, E. Raúl,

BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do

Direito Penal, p. 43.

76

certa magnitude que, no caso de privação de liberdade de ir e vir da pessoa, será

executada por uma agência penitenciária (prisonização)118

.

A criminalização secundária, enquanto “ação punitiva exercida sobre pessoas concretas”, vai

desde a investigação arbitrária, feita mais ou menos ao acaso, pela prática cotidiana do

chamado “policiamento ostensivo”, atividade ao longo da qual indivíduos constantemente são

abordados e, se sua atitude ou prática for considerada suspeita, conduzidos à delegacia, até a

prisão em flagrante, que inicia o inquérito policial, o qual posteriormente poderá dar azo á

propositura de uma ação penal.

Uma completa análise histórica das técnicas punitivas pode ser encontrada em

Foucault119

, o qual analisa os mecanismos pelos quais a ordem pública e os valores do Estado

se impõem a partir de táticas de disciplina e aprisionamento que evoluíram desde os suplícios

públicos, que serviam de exemplo para a maioria da população (função de prevenção geral

positiva), até a pena privativa de liberdade, a qual, com todo um arcabouço de técnicas e

saberes que Foucault designa, em seu conjunto, sob o epíteto de “O Carcerário”, foi capaz de

moldar a sociedade industrial.

É impressionante notar, a partir da análise da obra desse pensador, como o sistema

penal permaneceu, ressalvadas mínimas variações, praticamente inalterado, desde os seus

primórdios, e como a função desempenhada por determinados conceitos foi interiorizada

como verdade pelo senso comum. Um desses conceitos, que muito tem a ver com a

legitimação da prática prisional, integrante da criminalização secundária, é a falência do

sistema prisional. Foucault denuncia, com propriedade, que o sistema prisional, tal qual

surgido na aurora do capitalismo industrial, é um sistema originalmente pensado para a

própria falência. Entretanto, essa falência aparente, apresenta uma função no conjunto do

sistema penal.

Nesse contexto, o sistema prisional falharia em cumprir suas funções declaradas

(funções re – reeducar, ressocializar, reinserir, etc.) relativas à reabilitação do apenado, mas

cumpriria funções ocultas, dentre as quais as mais importantes seriam funções de vigilância e

disciplina. O mais interessante dessa análise é notar que as referidas funções não se

restringiriam à clientela do sistema penal, mas atingiriam indistintamente a população em

geral, que em tese se encontra bem longe dos muros dos presídios. Com isso se quer dizer

que a função de vigilância exercida sobre os presos era capaz de produzir, acerca deles, um

saber penal útil à manutenção do controle sobre os demais membros da sociedade.

118

ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal

Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 43. 119

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 35ª ed. Petrópolis, Vozes, 2008.

77

Quanto à função de disciplina, esta teve alcance ainda maior, ao moldar, por exemplo,

todo um esquema de orientação para o trabalho no século XIX. Nessa época, como noticia

Foucault, houve críticas oriundas dos setores formais da economia que se pronunciavam

contra o trabalho dos presos porque estes eliminariam postos de trabalho para além dos muros

das prisões. Esses dados se relacionam intimamente com a tese defendida porque a seleção

desses indivíduos para integrarem a população carcerária sempre guardou íntima relação com

um grau maior ou menor de discricionariedade na aplicação em concreto das leis penais,

ainda que se tratasse de uma discricionariedade informada por estereótipos das mais variadas

ordens (raciais120

, de gênero, de classe social, etc.).

Essa discricionariedade no exercício do poder punitivo, no marco da criminalização

secundária, é verificável até os dias atuais. De outra forma, como explicar a “cifra oculta”, ou

“cifra negra”, que traduz uma parcela de criminalidade não alcançada pela força das agências

que integram o sistema penal? Se a criminalização secundária se fundasse em critérios

estritamente objetivos, não haveria espaço para uma criminalidade não alcançada pela

punição. Ainda que esse modelo de sociedade, por assim dizer, “pan punitiva” seja

completamente disfuncional, essa é a única conclusão possível a que se chega quando da

análise dessa questão.

Por outro lado, pode-se argumentar, com Zaffaroni e Nilo Batista, que a

criminalização seletiva, da qual resulta a cifra oculta da criminalidade, é resultado da limitada

capacidade operacional das agências de controle penal. Observe-se o que esses autores

escrevem a respeito do tema:

As agências de criminalização secundária têm limitada capacidade operacional e

seu crescimento sem controle desemboca em uma utopia negativa. Por conseguinte,

considera-se natural que o sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização

secundária apenas como realização de uma parte ínfima do programa primário... a

muito limitada capacidade operativa das agências de criminalização secundária não

tem outro recurso senão proceder sempre de modo seletivo. Desta maneira, elas

estão incumbidas de decidir quem são as pessoas criminalizadas e, ao mesmo

tempo, as vítimas potenciais protegidas. A seleção não só opera sobre os

criminalizados, mas também sobre os vitimizados. Isto corresponde ao fato de que

as agências de criminalização secundária, tendo em vista sua escassa capacidade

perante a imensidão do programa que discursivamente lhes é recomendado, devem

optar pela inatividade ou pela seleção. Como a inatividade acarretaria seu

desaparecimento, elas seguem a regra de toda burocracia e procedem à seleção. Este

poder corresponde fundamentalmente às agências policiais121

.

120

Para um bom exemplo de discriminação, incidente sobre a construção de um estereótipo criminal, ver

BINGHAM, Tileodore A. Foreign Criminals in New York. 121

ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal

Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, pp. 44-45.

78

Entretanto, ao contrário do que possa parecer, esta não constitui explicação alternativa

à tese da discricionariedade do controle penal para o fenômeno da seletividade. Ambas as

considerações são complementares, como breve se passará a demonstrar. Conforme muito

bem pontuam os autores na obra citada logo acima, as agências responsáveis pela

criminalização secundária, em razão de sua reduzida capacidade operacional, selecionam as

condutas, ou seus respectivos praticantes, que serão objeto da persecução penal.

Tal seleção nem de longe corresponde a um retrato fiel daquilo que o legislador penal

originalmente programara, constituindo somente uma parte de tal programação. Ora, é

exatamente neste ponto que se verifica a discricionariedade no controle penal: é com base em

um juízo de conveniência e oportunidade que as agências responsáveis pela criminalização

secundária selecionam a clientela do sistema penal entre os praticantes de condutas típicas.

O momento de avaliar o elemento conveniência no exercício do poder de punir é

exercido caso a caso na prática punitiva, apesar de ser definido previamente pela construção

de estereótipos criminais: indivíduos em atitude dita “suspeita”, portadores de determinadas

características físicas, como a ostentação de tatuagens, ou, como no princípio da

criminologia, que ostentassem esta ou aquela configuração do crânio, como no clássico

estudo de Lombroso; estes estereótipos podem ser ainda orientados por considerações de

cunho étnico, conforme já pontuado anteriormente.

O momento de verificação do elemento oportunidade coincide com o da prática da

infração penal: a título de exemplo, uma dada quantidade de entorpecentes, apreendida com

um indivíduo de determinada classe social, pode ser tipificada como porte para mero uso, ao

passo que, para outro indivíduo, sobre o qual recaia algum estereótipo criminal, pode ser

tipificada como tráfico. É esse juízo de valor acerca da própria verificação da conduta típica

(conveniência), assim como da necessidade de perseguir ou não a referida conduta

(oportunidade), que neste estudo denominamos discricionariedade no exercício do poder

punitivo.

Anteriormente foi dito que seriam feitas considerações teóricas acerca da

discricionariedade no exercício do poder punitivo antes de verificar sua aplicabilidade na

seara penal. Pois bem: ainda que se propugne pela não aplicabilidade desse conceito de

Direito Administrativo na área penal, o fato é que tal aplicação se verifica na realidade. Do

contrário, não haveria seletividade possível.

Dada a limitada capacidade operacional das agências responsáveis pela criminalização

secundária, é com base em um juízo discricionário que essas agências selecionam sua

clientela e exercem sua atividade. Não é possível realizar todo o trabalho que a

79

criminalização primária propõe originalmente. Logo, a escolha de que trabalho realizar, e em

que medida, fica a cargo de um juízo discricionário da respectiva agência, que, a partir daí,

procederá à seleção criminalizante.

A seleção de criminalizados leva à análise de uma, por assim dizer, “grandeza” que

busca mensurar o grau de seletividade de um sistema penal. Trata-se da “cifra negra”, acerca

da qual já foram tecidos alguns comentários. Não é o caso de repetir as considerações feitas

até então acerca do tema. Entretanto, vale consolidar algumas conclusões e críticas às quais a

atividade de pesquisa permitiu chegar.

O modelo mais interessante para correto entendimento e interpretação das pesquisas

de cifra negra, em nossa modesta opinião, é o “modelo de funil”, apresentado por Albrecht122

.

Essa interpretação gráfica do fenômeno da seletividade do controle penal dá uma boa

dimensão dessa realidade e incentiva a reflexão crítica a respeito do assunto, além de

evidenciar que a persecução de determinadas condutas traduz uma escolha de quem é

encarregado de sua persecução (escolha, a nosso ver, informada pelo elemento

discricionário).

A seletividade do controle penal, informada pela discricionariedade no exercício do

poder punitivo, é favorecida pela construção da categoria de inimigo, própria do Direito Penal

do Inimigo. O Direito Penal do Inimigo, caso adotado como modelo para a elaboração de leis

penais, terá algo a ver com o aprofundamento da seletividade do controle penal, uma vez que

interfere com uma de suas variáveis chave – a discricionariedade no exercício do poder

punitivo, já examinada.

O aprofundamento exacerbado do Direito Penal do Inimigo, e da seletividade e

discricionariedade do controle penal, que lhe são correlatas, conduz inexoravelmente ao

Estado de Permanente Exceção, do qual é forma jurídica típica. Esse último tópico será

melhor desenvolvido no subitem seguinte quando for analisada a questão do risco de

implosão do Estado democrático de direito, tal qual o conhecemos, pelo Direito Penal do

Inimigo.

Guardadas as considerações até então tecidas a respeito da discricionariedade no

exercício do poder punitivo, cabe determinar como o Direito Penal do Inimigo é capaz de

influenciar um aprofundamento dessa margem de discricionariedade operada pelas agências

de criminalização secundária. Para o sucesso dessa análise, devem ser tomadas por base as

seguintes desenvolvidas a seguir.

122

ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal, p. 251.

80

As agências responsáveis pela criminalização secundária agem com uma dada

margem de discricionariedade no exercício de suas funções. Esse juízo discricionário informa

todo o processo de criminalização secundária, sendo um dos fatores determinantes da

seletividade do controle penal. Em um sistema constitucional de freios e contrapesos, como é

o sistema brasileiro, o contraponto desse poder em concreto é o estabelecimento, em abstrato,

de direitos e garantias fundamentais aptos a informar, regulamentando e limitando, as práticas

cotidianas do poder, inclusive do poder punitivo, o qual, se exercido sem limites, conduz ao

Estado de exceção, ou de polícia.

Ou seja: as categorias discricionariedade penal e direitos e garantias fundamentais

interagem em um processo dialético cuja resultante é a conformação do Estado democrático

de direito tal qual o conhecemos. A expansão de um, em detrimento do outro, rompe esse

equilíbrio dinâmico e gera prejuízos para a higidez do sistema como um todo.

O Direito Penal do Inimigo, a partir da proposta de flexibilização de direitos e

garantias, é elemento capaz de romper o equilíbrio mencionado e acarretar problemas para o

conjunto do sistema penal. Ora, se a discricionariedade no exercício do poder punitivo é

contrabalanceada por todo um arcabouço jurídico de direitos e garantias fundamentais,

qualquer elemento que tenda a enfraquecer, ou flexibilizar, direitos e garantias é favorável à

ampliação da margem de discricionariedade com base na qual atuam as agências de

criminalização secundária.

Afinal, o quê aconteceria com o número de conduções arbitrárias caso o identificado

civilmente pudesse legitimamente sofrer identificação criminal fora das hipóteses previstas

em lei (art. 5º, inciso LVIII da CRFB/1988)? E em quanto aumentaria o número de presos

provisórios caso os juízes não mais tivessem a prerrogativa de relaxar prisões ilegais? Se com

essas garantias o número de arbitrariedades constantemente cometidas pelas agências

policiais já salta aos olhos, imagine-se o cenário resultante da supressão ou mitigação

excepcional de direitos e garantias fundamentais.

É nesse sentido que ora se identifica o Direito Penal do Inimigo como catalisador do

processo de aumento da discricionariedade no exercício do poder punitivo. Enquanto

proposta de flexibilização de direitos e garantias, o Direito Penal do Inimigo é capaz de

romper o equilíbrio dinâmico existente entre esses direitos e garantias e a discricionariedade

das agências punitivas, dando azo ao cometimento das mais diversas arbitrariedades.

Ainda que se argumente que o surgimento de novas leis com traços punitivos típicos

de Direito Penal do Inimigo (p. ex., estabelecimento de figuras delitivas que vedem o início

de cumprimento de pena em regime mais benéfico para reincidentes) possa vir temperado de

81

medidas que visem a assegurar o equilíbrio em comento, como fiscalização por parte das

autoridades, com participação da sociedade, isso não invalida o raciocínio desenvolvido:

qualquer legislação, ainda que aparentemente severa ou radical, que não se baseie na

flexibilização incondicionada de direitos e garantias de uma determinada classe de indivíduos

não é orientada pelo Direito Penal do Inimigo, mas segue os ditames do Direito Penal

tradicional, sendo imune às críticas ora consignadas.

Uma última consideração que cabe fazer a respeito desse assunto é a diferenciação

entre discricionariedade e arbitrariedade. José dos Santos Carvalho Filho procede

expressamente a essa categorização no corpo de sua obra lapidar123

no campo do Direito

Administrativo. Em sua digressão, esse autor consigna que o limite da discricionariedade é a

lei, não havendo discricionariedade contra legem.

Discricionariedade contra legem, segundo o melhor direito, se confundiria com a

arbitrariedade, que é vedada pelo ordenamento por ir de encontro, dentre outras garantias, ao

fundamento de motivação das decisões administrativas, o que constitui o núcleo da teoria dos

motivos determinantes. Dessa forma, poder-se-ia argumentar que tudo quanto se falou até

agora não passa de arbitrariedade, tratada por um nome diverso.

Contra essa eventual crítica, é possível argumentar que a discricionariedade no

exercício do poder punitivo é um dado inafastável e estrutural do sistema penal, não se

confundindo com a arbitrariedade porquanto exercida nos lindes da lei, tanto quando a

respectiva agência penal aplica a lei para criminalizar (subsunção do fato á norma) quanto

quando deixa de fazê-lo (como, por exemplo, pela conveniente apuração de uma excludente

de ilicitude da conduta ou pela não verificação de um flagrante). Dessa forma, há

discricionariedade, não arbitrariedade. Por outro lado, sendo a decisão da agência responsável

pela criminalização secundária contrária à lei, verifica-se de plano a arbitrariedade e se

ingressa na seara do direito penal subterrâneo, próprio do Estado de exceção.

3.1. Implosão do Estado democrático de direito

A tese ora analisada, e que constitui o segundo dos eixos temáticos sob os quais se

processa a crítica contida neste capítulo, é a de que a prevalência do Direito Penal do Inimigo

enquanto modelo para a elaboração de leis penais conduz, necessariamente, à implosão do

Estado democrático de direito tal qual o conhecemos. Por implosão, entenda-se o

123

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, p. 48.

82

esfacelamento completo das instituições democráticas em sua configuração atual ou,

conforme conceitua Nilo Batista, o desbaratamento do Estado democrático de direito a partir

da expansão do Estado de polícia.

Uma alternativa à idéia de esfacelamento do Estado democrático de direito pode ser

encontrada na obra de Salo de Carvalho, quando este autor trata da configuração do Estado de

permanente exceção. Paulatinamente, o autor em comento vai construindo um conceito de

Estado de exceção que se fundamenta na possibilidade de flexibilização dos direitos e

garantias de determinados indivíduos (inimigos), passando à extensão dessa flexibilização

aos membros de organizações criminosas em geral, até a transformação dessa medida,

revestida de um caráter de excepcionalidade, em regra, donde se verifica instalado o Estado

de Permanente Exceção.

Observe-se o que Salo de Carvalho escreve a respeito desse assunto:

O combate ao narcotráfico e ao crime organizado, no marco do direito penal do

inimigo e da fixação do Estado de exceção permanente, dirime as fronteiras entre as

políticas de segurança e o direito penal. O problema, desde a perspectiva do

garantismo, é que o direito e o processo penal devem representar as barreiras de

contenção das violências constantemente emanadas dos instrumentos de polícia

repressiva. Do contrário, se operarem na legitimação e não na deslegitimação da

violência, a tendência é o extravasamento e a perda de controle dos atos de poder124

.

Sobre o “extravasamento e a perda de controle dos atos de poder”, é preciso remeter o

leitor para as considerações feitas no começo deste capítulo. É importante dizer, por ora, que

a discricionariedade no controle penal desempenha, nesse particular, um papel fundamental,

pois é sua ampliação que viabiliza a flexibilização de direitos e garantias processuais

fundamentais.

Quanto à generalização do combate ao crime organizado, no marco do Direito Penal

do Inimigo, enquanto elemento capaz de deflagrar este processo de desestruturação do Estado

democrático de direito, é muito útil voltar os olhos às lições de Zaffaroni a respeito do tema.

Este penalista se expressa brilhantemente ao apontar a impossibilidade da construção de um

conceito limitado de inimigo. Essa impossibilidade se calca, sobretudo, na ausência de

controle sobre quem detém o poder de definição sobre que indivíduos devem ser

considerados inimigos. Assim,

A proposta de Jakobs, embora – insistimos – não parta nem se apóie em Schmitt,

inexoravelmente se enreda em sua própria lógica. Quando afirma que, em casos

excepcionais, o estado de direito deve cumprir sua função de proreção e que está

legitimado para isso em razão da necessidade – ou seja, que a esta não se podem

opor obstáculos derivados de um conceito abstrato do Estado de direito (abstrakten

124

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06), p. 83.

83

des Rechtsstaates) -, Jakobs pressupõe que alguém deve julgar a necessidade e que

este alguém não pode ser outro senão o soberano, em sentido análogo ao de

Schmitt. O Estado de direito concreto de Jakobs, deste modo, torna-se inviável,

porque seu soberano, invocando a necessidade e a emergência, pode suspendê-lo e

designar como inimigo quem considerar oportuno, na extensão que lhe permitir o

espaço de poder de que dispõe125

.

A possibilidade de o soberano definir, a seu bel prazer e segundo o modelo proposto

pelo Direito Penal do Inimigo, a quem deve, com base em um juízo de conveniência e

oportunidade (discricionariedade do controle penal), perseguir, abala fundamentalmente as

estruturas e a conformação do Estado democrático de direito tal qual este hoje se apresenta.

Isso se dá basicamente pelas razões aduzidas nos parágrafos seguintes.

A concentração do poder de definição quanto a quem é o inimigo nas mãos do

soberano rompe com a lógica dos freios e contrapesos, na medida em que não possibilita a

fiscalização dessa decisão pelas demais esferas de poder em que se subdivide o Estado (posto

que no Estado de exceção, ou Estado de polícia, essa separação de poderes se torna muito

pouco nítida ou quase inexistente). Definir discricionariamente quem é o inimigo a perseguir

viola os princípios consagrados da razoabilidade e da proporcionalidade, que constituem

corolários do discurso e da prática democrática que fundamentam o Estado de direito.

A definição acerca de quem é o inimigo se dá à revelia e apesar de alguns indivíduos

em benefício de outros, o que viola o princípio da isonomia. A definição de inimigo é uma

decisão que se baseia em um critério de periculosidade (fato de não apresentar garantias

cognitivas suficientes de que não se manterá nos lindes impostos pela lei), não

necessariamente em sua conduta, consagrando a violação do princípio da exclusiva proteção

de bens jurídicos. Isso ilide o juízo de lesividade que acompanha a verificação da

contrariedade de uma conduta ao direito

Falar-se de um sistema de freios e contrapesos implica necessariamente supor-se

algum grau de separação dos poderes constitutivos do Estado. A Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988, ao mencionar a divisão do Estado brasileiro em três poderes –

legislativo, executivo e judiciário – “independentes e harmônicos entre si” (art. 2º) marca não

só a separação de poderes como a existência de um equilíbrio necessário (harmonia) entre

eles. Esse equilíbrio é dado pela possibilidade de fiscalização mútua entre os poderes da

República.

Essa fiscalização mútua é exercida a partir de um sistema de freios e contrapesos,

dado pela possibilidade de ao atos emanados de um dos poderes ter sua legitimidade aferida

125

ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 163.

84

e, em determinados casos, questionada por outro (p. ex., uma lei aprovada nas Casas

Legislativas pode ser objeto de veto presidencial). O adequado exercício desse mecanismo

configura o Estado de direito, no Brasil, tal qual o conhecemos hoje e é indispensável para o

exercício da democracia.

O estabelecimento de uma definição acerca de quem é o inimigo, levada a cabo pelo

soberano, quer diretamente, quer por meio de agências a seu comando, põe em cheque essa

sistemática e compromete fundamentalmente toda essa construção. Ressalte-se que a

concentração de qualquer atividade nas mãos de qualquer um dos poderes republicanos, sem

possibilidade de controle e fiscalização, ainda que indireta, pelos demais poderes põe esse

sistema igualmente em cheque.

Entretanto, é de se afirmar que tal questão se agrava na medida em que a definição

sobre o inimigo envolve direitos e garantias comuns a todos os cidadãos, e se insere no

contexto penal, que é área de intervenção estatal das mais sensíveis sob o ponto de vista

democrático. A impossibilidade de controle de uma eventual definição acerca do inimigo

torna o seu potencial de expansão concretamente infinito, na medida que concede a uma só

instância de poder o monopólio dessa definição.

Ainda que essa escolha política acerca de quem é o inimigo fosse pulverizada por toda

a engrenagem de poder estatal, não seria aceitável à luz de princípios outros que informam o

Estado democrático de direito. Um desses princípios é aquele referente aos axiomas maiores

da proporcionalidade e da razoabilidade. Não pode uma lei, uma escolha política ou uma

política pública ser conforme à Constituição se não passar pelo crivo desses princípios.

O Direito Penal do Inimigo, enquanto modelo que informa a qualificação de

indivíduos enquanto dignos de tratamento distinto do conferido aos demais, de plano não

passa pelo exame mais detido feito à luz dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade.

Afinal, é razoável admitir-se, considerando o princípio da isonomia, que determinados

membros da sociedade recebam tratamento diferenciado daqueles que se encontram em uma

mesma situação (a de alguém que cometeu um delito)? É proporcional a medida que se

desfere contra um indivíduo no sentido de sua despersonalização, ou coisificação, sob o único

fundamento de ser considerado perigoso?

Nem pelo primeiro aspecto da proporcionalidade, qual seja, a adequação da medida

que se propõe para resolver a problemática para a qual é proposta, o Direito penal do Inimigo

é capaz de resistir a essa prova. E não há maneira de se supor sua legitimidade democrática

apesar do vilipêndio a dois postulados básicos do Estado de direito.

85

A violação do princípio da isonomia é outra implicação básica da adoção do Direito

Penal do Inimigo enquanto modelo apto a informar a elaboração de leis penais. Lê-se da

Constituição da República que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer

natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade

do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos

seguintes...” (art. 5º).

Logo, nada justifica o tratamento diferenciado a ser dispensado, de forma expressa ou

velada, a um determinado indivíduo ou grupo de cidadãos, isso sob pena de se vilipendiar um

princípio básico e inafastável do Estado democrático de direito que é a igualdade. Do

contrário, caminhar-se-á inexorável e inegavelmente para o Estado de exceção, que não

conhece limites informados por quaisquer dos princípios em comento.

É de se ressaltar, por oportuno, que a aplicação mesma da lei penal, no âmbito do

Estado democrático de direito tal qual o conhecemos, uma vez reconhecido o seu dado

fundamental, que é a seletividade, por si só vulnera o princípio da isonomia. Observe-se o

que a esse respeito escrevem Nilo Batista e Raúl Zaffaroni:

No plano jurídico, é óbvio que esta seleção lesiona o princípio da igualdade,

desconsiderado não apenas perante a lei, mas também na lei. O princípio

constitucional da isonomia (art. 5º CR) é violável não apenas quando a lei distingue

pessoas, mas também quando a autoridade pública promove uma aplicação

distintiva (arbitrária) dela126

.

Essa aplicação distintiva ou arbitrária da lei penal se dá, em grande medida, em razão

da discricionariedade na aplicação das leis penais, examinada no tópico precedente. Esse

critério antidemocrático, que envolve a emissão expressa ou implícita de um juízo de

conveniência e oportunidade acerca da persecução penal, viabiliza a aplicação seletiva da lei

penal e a qualificação distintiva dos indivíduos para fins da criminalização, em tudo

aprofundadas pelo Direito Penal do Inimigo.

Esses dados, uma vez incorporados à prática das agências responsáveis pela apuração

e conseqüente persecução das infrações penais, dão origem ao vilipêndio do princípio

constitucional de igualdade. Essa ofensa ao conteúdo da Carta Magna vai, progressivamente,

minando o Estado democrático de direito, segundo o melhor raciocínio dialético que informa

serem as mais ínfimas mudanças quantitativas capazes de conduzir, dia após dia, a uma

alteração qualitativa de maiores proporções.

126

ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal

Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 46.

86

Outro dado, necessariamente incorporado à noção de um Direito Penal do Inimigo, é a

violação da garantia penal da exclusiva proteção de bens jurídicos. O bem jurídico marca o

começo e o fim da intervenção penal na conduta dos cidadãos. É penalmente relevante a

conduta que afete, imediata ou mediatamente, bem jurídico titulado por outrem. Não é

penalmente relevante a conduta que não afete bem jurídico algum, exaurindo-se na esfera

mesma do agente ou produzindo efeitos incapazes de prejudicar qualquer bem jurídico

pertencente a outrem.

Pois bem: admitir a punição de indivíduos tão somente por sua periculosidade (não

fornecimento de garantias cognitivas, por parte do sujeito, de que se manterá dentro das

normas preconizadas pelo direito) é inadmissível sob o prisma da exclusiva proteção de bens

jurídicos porque, na hipótese, não há conduta lesiva a bem jurídico capaz de autorizar a

intervenção penal. Infração penal, se houve, foi devidamente apenada no passado, em

procedimento judicial em que foram (ou, em tese, deveriam ter sido) observadas as devidas

garantias processuais do contraditório e do devido processo legal.

Vai contra direito, sob todos os ângulos possíveis, que um indivíduo possa continuar

sendo objeto de intervenção penal tão só por ostentar um rótulo de “perigoso”. A

periculosidade não autoriza a intervenção penal porque não traduz lesão ou possibilidade de

lesão a bem jurídico, sendo qualquer raciocínio construído nesse sentido eivado da mais pura

inconstitucionalidade sob o aspecto material. A periculosidade não traduz lesão a bem

jurídico porque, se é que ela de fato existe, insere-se na esfera mesma do sujeito e pode ser

traduzida enquanto fruto de um processo de construção e atribuição do rótulo de perigoso,

muito bem analisados por Foucault e Baratta em suas respectivas obras.

Sobre esses dois pensadores, algumas linhas ainda devem ser escritas. Foucault, ao

analisar os mecanismos de controle e disciplina da sociedade capitalista industrial, traça um

panorama das instituições de internamento coletivo, como orfanatos, prisões e hospitais.

Essas instituições tinham de comum o fato de serem regradas por um rígido conjunto de

normas internas, submeter sua clientela aos mais sofisticados mecanismos de disciplina e

vigilância e produzir sobre os internos um corpo de conhecimentos correlato ao poder que

exerciam (isso sob o império do axioma de Foucault que propugna a todo poder corresponder

um dado saber).

Em relação às instituições de internamento coletivo, esse corpo de conhecimentos e

práticas de controle e disciplina dos indivíduos foi definido por Foucault como “O

Carcerário”, aplicando-se sobre todos (inclusive sobre os operadores do sistema) de forma

indistinta. Com isso se quer dizer que o rótulo de “perigoso”, de fundamental importância

87

para o Direito Penal do Inimigo, foi sendo construído a partir desse corpo de conhecimentos

das instituições disciplinares.

Os internos eram classificados segundo critérios variados: “periculosidade”, tipo de

crime praticado e comportamento para as prisões; tipo de enfermidade e sua capacidade de se

propagar para os hospitais; idade e graus de progressão para as escolas e demais instituições

para menores. Ali, como até hoje se verifica, o indivíduo era classificado e a classificação que

se lhe atribuísse influenciava seu destino dentro e fora dos muros da instituição disciplinar.

Em Baratta, encontramos a atribuição do rótulo de “perigoso”, ou de “criminoso”, ou

de quaisquer outros que se possam atribuir aos indivíduos, como bens jurídicos negativos

fornecidos a um determinado número de sujeitos por aqueles que detém o poder de definição.

Esses detentores do poder de definição são membros da classe dominante, que exercem seu

poder em detrimento da classe dominada.

O conceito de bem jurídico negativo, nesse sentido, assemelha-se ao de bem jurídico

positivo (um bem da vida, como educação, boas oportunidades, acesso aos sistemas de saúde,

etc.), à exceção de seu conteúdo ser o de uma característica determinante, em algum grau, da

personalidade do sujeito. Ora, essa atribuição do rótulo de “perigoso”, de “criminoso”, ou de

qualquer outro que se possa atribuir aos indivíduos, em tudo toca ao Direito Penal do

Inimigo.

Enquanto teoria que preconiza o tratamento diferenciado dos indivíduos em razão de

fornecerem, ou não, garantias de um comportamento futuro conforme o direito, o Direito

Penal do Inimigo depende fundamentalmente de um elemento que diferencie os indivíduos

para fins de sua viabilização e legitimação enquanto modelo de elaboração de leis penais. E

nada melhor para essa finalidade que a atribuição, a determinados indivíduos, do rótulo de

perigoso, que a partir daí poderão ser legitimamente perseguidos por aquele a quem cabe

definir e combater o inimigo, o soberano.

Todo o raciocínio desenvolvido em combate ao Direito Penal do Inimigo seria

perfeita e imediatamente válido se não fosse por um detalhe: as medidas de segurança. A

sistemática de aplicação das medidas de segurança tem por base, precisamente, a adoção de

tais medidas enquanto a situação do agente assim determinar. A medida de segurança, que, ao

menos no plano ideológico, não é pena, assombra pela sua possibilidade de perpetuação

indefinida no tempo (art. 97, § 1º do Código penal).

A redação do dispositivo penal em comento é questionável porque viola a garantia

constitucional de vedação às penas perpétuas (art. 5º, inciso XLVII da Constituição da

República). É nesse plano que labora a distinção entre pena e medida de segurança no plano

88

ideológico e no plano teórico-dogmático do direito penal: ao ser definida não como pena, mas

como espécie do gênero “medida sancionadora de caráter penal”, a medida de segurança fica

assim legitimada como possível de se estender indefinidamente

É neste ponto que as medidas de segurança fundamentalmente nos interessam: por

constituírem medidas sancionadoras de caráter penal, cuja aplicação é calcada precisamente

na periculosidade do agente, as medidas de segurança possuem um caráter que as aproxima

do Direito Penal do Inimigo. A identificação do inimputável como indivíduo dotado de

periculosidade intrínseca e, portanto, merecedor de medida de segurança, e não de pena,

representa uma nota distintiva típica de Direito Penal do Inimigo.

Nesse sentido, a adoção expressa do Direito Penal do Inimigo enquanto modelo

orientador para a elaboração de normas penais apresenta um perigo a mais porque nosso

sistema, de alguma forma, a partir da sistemática das medidas de segurança, já o recepciona.

Esse flanco aberto representa terreno dos mais férteis para a recepção dessa doutrina penal e

de toda sorte de abusos que sua aceitação irrefletida pode ensejar.

A implosão do Estado democrático de direito, a partir da adoção do Direito Penal do

Inimigo, não seria possível se não fosse a impossibilidade flagrante no sentido da construção

de um conceito limitado de inimigo. Zaffaroni brilhantemente denuncia essa impossibilidade

em mais de uma passagem de sua obra dedicada ao tema, assumindo que a aceitação da

categoria penal de inimigo implica estendê-la, em algum grau, a todos os indivíduos, posto

que, na persecução do inimigo, a violação de garantias de todos os indivíduos que compõem

a sociedade apresenta-se como uma espécie de “dano colateral”.

Essa propagação desmedida da prática penal, calcada no Direito Penal do Inimigo,

adquire formulação primorosa na seguinte passagem desse penalista argentino:

Tudo isso se coloca como uma limitação aos princípios do estado de direito,

imposta pela necessidade e em sua estrita medida. Sem dúvida, esta tática de

contenção está destinada ao fracasso, porque não reconhece que para os teóricos – e

sobretudo para os práticos – da exceção, esta sempre invoca uma necessidade que

não conhece lei nem limites127

.

Essa necessidade, justificada pelas mais variadas emergências de Estado, não

conhece, e nem poderia se propor a conhecer limites. Dada a mais marcante característica do

poder punitivo, qual seja, a de se expandir indefinidamente a partir dos vácuos de poder, até a

instalação definitiva do Estado de polícia em sua formulação mais pura, que corresponde ao

modelo de Estado totalitário, é até inocente admitir que o poder de punir, fortalecido pelo

127

ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 161.

89

Direito Penal do Inimigo, optasse por recuar quando também tivesse por opção continuar se

expandindo.

O inimigo seria, nesse cenário, progressivamente utilizado como fundamentação, no

nível ideológico, para o acúmulo de mais e mais poder punitivo. Essa tendência à

generalização da categoria de inimigo, que progressivamente abarcaria mais e mais

indivíduos, é também formulada por Zaffaroni com inestimável precisão:

Considerando que não se propõe introduzir e ampliar o uso do conceito de inimigo

no direito penal, mas sim admiti-lo em um compartimento estanque perfeitamente

delimitado, para que não se estenda e contamine todo o direito penal, caberia pensar

que este preço não é tão caro assim, tendo em conta que, na prática, opera numa

medida mais extensa, o que importaria, em muitos casos, até numa redução de seu

âmbito. O princípio do Estado de direito, permanentemente invocado para rechaçar

o tratamento diferenciado, se encontraria, de fato e de direito, rompido em função

do que se faz e se legitima até o presente. Se os criminalizados – e nem sequer os

processados puros – não são tratados como pessoas, não haveria razão para objetar

que isso seja proposto para um grupo de apenados e não para os demais. Se o poder

punitivo se desloca para outras pessoas que não os terroristas, seria possível afirmar

que há muito mais oportunidades de deslocamento quando todos os infratores e

suspeitos são tratados como inimigos do que quando se faz isso com relação a

apenas um determinado grupo128

.

No sentido do que acima foi exposto, a generalização do tratamento penal típico de

inimigo serve ao propósito funcionalista de, por alguma forma, conferir maior celeridade à

persecução penal daqueles indivíduos que, em tese, ameaçam a sociedade por sua

periculosidade intrínseca. Entretanto, é impossível fazê-lo sem que a lógica própria do Direito

Penal do Inimigo contamine todo o sistema de direitos e garantias próprios do Direito Penal

ordinário.

Nesse particular, a adoção do Direito Penal do Inimigo enquanto modelo para a

elaboração de leis penais constitui ameaça ao Estado de direito estabelecido, uma vez que

configura uma via aberta à expansão ilimitada do poder punitivo, capaz de instaurar o

império do Estado de polícia. Essa impossibilidade de construção de um conceito limitado de

inimigo, com a qual finalizamos a presente análise, conduz ao próximo eixo temático da

crítica aqui empreendida: a extensão da flexibilização de direitos e garantias aos “não

inimigos”.

3.2. Extensão da flexibilização de garantias processuais aos “não inimigos”

A impossibilidade de construção de um conceito limitado de inimigo, em última

análise, conduz inexoravelmente à flexibilização, e conseqüente violação, de direitos e

128

ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 165.

90

garantias daqueles que, ao menos originalmente, não foram definidos como tal. Nesse

sentido, a flagrante impossibilidade do sucesso dessa construção demonstra a fragilidade do

Direito Penal do Inimigo para se sustentar perante as instituições tradicionais do Estado

democrático de direito. Isto quer dizer: ou se adota o Direito Penal do Inimigo enquanto

modelo orientador da elaboração de leis penais, em detrimento dos direitos e garantias

assegurados a todos os cidadãos, flexibilizando-os ou suprimindo-os, ou se mantém o Estado

democrático de direito passando ao largo de toda consideração teórica ou prática que envolva

a categoria de inimigo enquanto ponto de partida.

O caráter antidemocrático da flexibilização de direitos e garantias proposta pelo

Direito Penal do Inimigo pode ser percebido em Zaffaroni quando este autor menciona as

dificuldades de ordem prática de se promover a persecução penal do inimigo, nos moldes do

proposto pelo Direito Penal que lhe é correlato, sem comprometer os direitos e garantias dos

cidadãos, não definidos expressamente como inimigos. Assim se expressa Zaffaroni quando

da exposição deste tópico:

Quando os destinatários do tratamento diferenciado (os inimigos) são seres

humanos não claramente identificáveis ab initio (um grupo com características

físicas, étnicas ou culturais bem diferentes), e sim pessoas misturadas ao e

confundidas com o resto da população e que só uma investigação policial ou

judicial pode identificar, perguntar por um tratamento diferenciado para eles

importa interrogar-se acerca da possibilidade de que o Estado de direito possa

limitar as garantias e as liberdades de todos os cidadãos com o objetivo de

identificar e conter os inimigos.

Isso é assim porque, por exemplo, ao se permitir a investigação das comunicações

privadas para individualizar os inimigos, a intimidade de todos os habitantes será

afetada, pois esta investigação incluirá as comunicações de milhares de pessoas que

não são inimigos. Ao se limitarem as garantias processuais, mediante a falta de

comunicações, restrições ao direito de defesa, prisões preventivas prolongadas,

presunções, admissão de provas extraordinárias, testemunhas sem rosto,

magistrados e acusadores anônimos, denúncias anônimas, imputações de co-

processados, de arrependidos, de espiões, etc., todos os cidadãos serão colocados

sob o risco de serem indevidamente processados e condenados como supostos

inimigos129

.

A definição de determinados membros do corpo social como sendo inimigos, da qual

depende a construção dessa categoria teórica de inimigo, passa pela atribuição do rótulo de

perigoso a determinados indivíduos. É na periculosidade, como adrede verificado neste

estudo, que reside o fundamento do tratamento penal diferenciado, que dá origem ao inimigo

no Direito Penal.

A atribuição do rótulo de perigoso passa, conforme muito bem apontado por Baratta,

pela distribuição desse rótulo entre determinada classe de indivíduos. A distribuição apontada

é feita por quem detém o poder de definição na sociedade, em desfavor de quem não o detém.

129

ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, pp. 116-117.

91

Dessa forma, a classe política e economicamente dominante, a seu bel prazer, vai construindo

uma classe de (não) pessoas contra as quais é instrumentalizado um tratamento penal

diferente daquele atribuído às demais.

O problema desse tratamento penal diferenciado é que, à medida que avança em

desfavor das classes dominadas, com o aumento da sensação de insegurança gerada pelos

conflitos existentes em nossa sociedade, não alcança limites nem critérios objetivos de

previsibilidade possíveis. Sobre essa sensação de insegurança generalizada e a ilusão de que o

Direito Penal (do Inimigo) seria capaz de trazer de volta a segurança perdida (aspecto

simbólico do Direito Penal), assim se pronuncia Salo de Carvalho:

Na tensão entre a crise de segurança individual, vivenciada pela sociedade, que se

vê cada vez mais como vítima em potencial,e a falência da segurança pública,

representada pela incapacidade de os órgãos de Estado administrar minimamente os

riscos, tentações autoritárias brotam com a aparência de instrumentos eficazes ao

restabelecimento da lei e da ordem. No cálculo entre custos e benefícios, o

sacrifício de determinados direitos e garantias fundamentais aparenta ser o preço

razoável a ser pago pela retomada da segurança. Sua assimilação resta ainda mais

fácil se estes direitos e garantias integrarem o patrimônio jurídico de alguém

considerado como inimigo, de outrem, considerado como obstáculo ou ameaça que

deve ser reputado como

ninguém, como não ser130

.

Essa progressiva construção deliberada de “não pessoas”, ou seja, de inimigos em

sentido estrito, privados de suas garantias mais elementares, constitui o embrião do Estado de

exceção (ou Estado de polícia). Dada a natureza majoritariamente expansiva do poder

punitivo, qualquer enfraquecimento do Direito Penal de cunho garantista, que tem a missão

de contê-lo, representa um risco para o bom funcionamento das instituições democráticas.

Conforme já fora constatado mais acima neste estudo, é ingênuo conceber que o

conceito de inimigo, uma vez brandido enquanto ente a ser combatido, o quê representa a

grande bandeira de um dos movimentos de expansão do Direito Penal com maior

representatividade nos dias atuais, possa ser elaborado de forma limitada. Ainda que o

estigma de inimigo recaia limitadamente sobre uma parcela restrita da população, a

investigação capaz de averiguar se o poder público está diante de um cidadão comum ou de

um inimigo violará, necessariamente, direitos e garantias individuais titulados por ambos,

fato que fere os princípios mais elementares da isonomia, de um modo geral, e, em particular,

da exclusiva proteção de bens jurídicos.

130

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06), pp. 78-79.

92

Neste sentido, quando se trata da peculiar construção da categoria jurídico-penal de

inimigo, relacionando-a com a administrativização do Direito Penal, fazem sentido as

palavras de Nilo Batista:

Existe um fenômeno relativamente recente, ou seja, a chamada administrativização

do direito penal, que se caracteriza pela pretensão de um uso indiscriminado do

poder punitivo para reforçar o cumprimento de certas obrigações públicas (em

especial de âmbito fiscal, societário, previdenciário, etc.), o que banaliza o conteúdo

da legislação penal, destrói o conceito limitativo de bem jurídico, aprofunda a

ficção do conhecimento da lei, põe em crise a concepção de dolo, vale-se de

responsabilidade objetiva e, em geral, privilegia o estado em sua relação com o

patrimônio dos habitantes. Nesta modalidade, o poder punitivo é distribuído mais

por acaso do que nas áreas tradicionais dos delitos contra a propriedade, tendo em

vista que a situação de vulnerabilidade ante o mesmo depende do mero fato de

participar de empreendimentos lícitos. Há suspeitas de que recentes teorizações do

direito penal sejam orientadas para explicar tal modalidade em detrimento do direito

penal tradicional131

.

Este cenário, em que um movimento no âmbito do Direito Penal legitima uma

situação de privilégio do estado em face de seus habitantes, coincide com o cenário de

construção da categoria de inimigo e de sua operacionalização prática. Nesse sentido, não é

possível constituir uma categoria limitada de inimigo porque as arbitrariedades investigativas,

ou seja, a colocação do Estado em posição de privilégio com relação aos bens jurídicos (dos

quais a integridade física, dignidade e intimidade dos cidadãos constituem excelentes

exemplos) dos seus cidadãos o impede.

É também no contexto dessas considerações de cunho teórico e dogmático sobre o

movimento de administrativização do Direito Penal que a afirmação sobre ser o inimigo

heteroadministrado pelo Estado passa a fazer sentido. A administração comum e ordinária

dos direitos e interesses dos cidadãos corresponderia ao Direito Penal do Cidadão, em cujo

âmbito direitos e garantias são respeitados e o patrimônio (em sentido amplo, como o

conjunto de todos os bens, direitos e relações jurídicas que acompanham uma pessoa) dos

cidadãos é tratado com equidade pelo Estado. A administrativização do Direito penal, ou

heteroadministração de bens, direitos e interesses, corresponderia ao Direito Penal do

Inimigo: construção de “não pessoas”, flexibilização ou até mesmo violação de direitos e

garantias e cometimento de toda sorte de arbitrariedades.

Quanto à situação de extensão de flexibilização dos direitos e garantias aos “não

inimigos”, chama a atenção o dado apontado por Zaffaroni: é sob o império da prisão

temporária que vive a esmagadora maioria dos presos da América Latina. Essa prática

punitiva, originalmente pensada, em nosso ver, para situações de exceção, constitui a regra de

131

ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal

Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 50.

93

um bem arquitetado direito penal paralelo (no sentido que lhe atribui o próprio Zaffaroni, de

práticas punitivas adotadas no âmbito de atuação do próprio Estado, mas que se movimentam

à margem do Direito penal oficial). Assim se expressa esse renomado penalista:

A característica mais destacada do poder punitivo latino-americano atual em relação

ao aprisionamento é que a grande maioria – aproximadamente 3/4 – dos presos está

submetida a medidas de contenção, porque são processados não condenados. Do

ponto de vista formal, isso constitui uma inversão do sistema penal, porém,

segundo a realidade descrita e percebida pela criminologia, trata-se de um poder

punitivo que há muitas décadas preferiu operar mediante a prisão preventiva ou por

medida de contenção provisória transformada definitivamente em prática. Falando

mais claramente: quase todo o poder punitivo latino-americano é exercido sob a

forma de medidas, ou seja, tudo se converteu em privação de liberdade sem

sentença firme: apenas por presunção de periculosidade132

.

Essa presunção de periculosidade, que está na base de toda a elaboração teórica do

Direito Penal do Inimigo, tomada na acepção de risco criado ou representado por determinada

pessoa, sem dúvida integra o movimento mais amplo de expansão do Direito Penal que é

objeto deste estudo. Todos os dados anteriormente colacionados acerca do tratamento penal

típico de inimigo, bem como toda a crítica que se lhe pode dirigir, são engrenagens de um

engenho maior que tem por substrato básico o agravamento do risco, representado pelos

conflitos contemporâneos das mais diversas naturezas, que o homem moderno, com toda a

sua tecnologia, ainda não foi capaz de resolver.

Esse controvertido movimento contemporâneo de expansão do Direito Penal, acerca

do qual Silva Sánchez afirma133

inclusive existir consenso, é, ao contrário, capaz de fomentar

os mais acalorados debates e possui profundos desdobramentos, inclusive sob o aspecto legal,

no Brasil. São esses desdobramentos, sob o prisma da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), que

constituirão o objeto de nossas reflexões no Capítulo 4 deste estudo.

132

ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 70. 133

Trata-se de afirmação expressa que pode ser encontrada em SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do

Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora

Revista dos Tribunais, 2011, p. 32.

94

4 A LEI 11.343/06 ENQUANTO REFLEXO DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL

NO BRASIL

Este capítulo contém uma análise pormenorizada da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas),

tanto sob o aspecto dogmático, quanto o aspecto criminológico dessa legislação. Também

fazem parte dessa análise algumas considerações de política criminal das quais discussões

teóricas como essa não podem prescindir. No mais, enquanto crítica pessoal e proposta de

reflexão, ainda que possam parecer estranhas ao tema, são apresentadas algumas propostas de

descriminalização relativas aos tipos penais inseridos na lei em comento.

O cerne da análise, por óbvio, como se deu em todos os capítulos precedentes, passa

por considerações próprias da temática do Direito Penal do Inimigo enquanto vertente

expansiva do Direito Penal. A problemática aqui apresentada pode ser assim subdividida: i) o

Direito Penal do Inimigo, enquanto teoria jurídica e modelo para a elaboração de leis penais,

é uma das vertentes sob as quais se dá um movimento mais amplo de expansão do Direito

Penal como um todo; ii) a Lei 11.343/06 é uma legislação relativamente recente que contém,

em certo sentido, elementos capazes de defini-la como parte desse movimento expansivo, na

linha do Direito Penal do Inimigo.

Nesse sentido, o traficante de entorpecentes seria o inimigo construído, pelo exercício

dos preconceitos cotidianos e pelo estigma levado a efeito a partir de um amplo e bem

pensado movimento de criminalização. Esse movimento de criminalização se dá, no âmbito

da criminalização primária, a partir da própria Lei 11.343/06 e dos tipos penais nela

definidos.

No contexto específico da criminalização secundária, essa estigmatização se dá pela

prática penal, muito difundida nesse nosso Estado da federação, de pouco prender e muito

eliminar em termos de tráfico de entorpecentes. A guerra urbana que se dá, todos os dias, em

torno das drogas é objeto de um folhetim que permite seu acompanhamento diário por toda e

qualquer pessoa disposta a passar os olhos em um jornal a cada manhã, dispensando maiores

apresentações.

A resposta penal rotineira para o tráfico de entorpecentes no Rio de Janeiro costuma

ser a aniquilação física dos supostos responsáveis por esse tipo de crime, a qual é operada por

um sistema penal subterrâneo que se mostra muito eficiente em equacionar autos de

resistência, avolumando as estatísticas das execuções extrajudiciais ou “sem processo”.

Recentemente, o Brasil atingiu o terceiro lugar no ranking latino-americano de homicídios a

cada 100 mil habitantes, ocupando o primeiro lugar em números absolutos.

95

Esse triste quadro penal, repleto de ilegalidades cometidas com certa dose de

conivência estatal, serve tão somente para demonstrar como a figura do inimigo, na pessoa do

traficante de entorpecentes, foi sendo paulatinamente construída e como essa construção

influenciou a elaboração da atual legislação de drogas no Brasil. Apesar de se ter observado

uma tentativa de minimizar a punição, ainda é possível observar anacronismos.

Exemplo disso é a criminalização do porte para uso próprio, apesar de não ser

cominada pena privativa de liberdade para esse crime. Conforme já mencionado

anteriormente, o consumo de entorpecentes e o tráfico ilícito por ele fomentado, além, por

óbvio, de todo o conjunto de atividades ilícitas que igualmente vai a reboque, deveria ser

tratado preferencialmente como um problema de saúde pública, de forma a se obter

resultados mais eficazes do que aqueles que até hoje vem sendo obtidos.

Entretanto, não é assim que o problema é tratado em termos de política criminal. Nilo

Batista, no artigo Política criminal com derramamento de sangue134

, faz um retrospecto da

legislação de combate às drogas no Brasil. Segundo esse autor, a problemática do combate às

drogas, que partiu de um paradigma sanitário predominante em toda a primeira metade do

século XX, passou, a partir da Ditadura Militar, a ser considerada sob o prisma bélico.Essa

mudança de paradigmas foi capaz de causar um enorme retrocesso porque colocou em

marcha uma política de enfrentamento capaz de ceifar milhares de vidas ao longo de sua

história.

Nesse contexto, o remédio encontrado para a dependência de entorpecentes acabou-se

tornando muito mais amargo que o próprio mal, adquirindo alto custo social e político. Os

quase cinqüenta anos de existência do paradigma bélico do tráfico de drogas ilícitas no Brasil

foram capazes de introduzir uma deterioração nunca antes vista das instituições

administrativas, uma imagem negativa das polícias e dos indivíduos que as integram, bem

como um elevado dispêndio financeiro para aparelhamento da máquina de guerra ao tráfico.

Por outro lado, setores responsáveis pelo fornecimento de armas e pessoal

especializado acumularam lucros astronômicos na conta da mencionada política bélica de

enfrentamento. Setores da mídia também foram favorecidos, quer pela venda ininterrupta de

notícias para uma sociedade ávida pelo espetáculo, quer pela manipulação do noticiário

oficial que, vez por outra, deixa de pintar as coisas como elas são.

No meio desse complexo e intrincado jogo de interesses, existe uma população

amedrontada que observa a violência que a atinge até nas mais singelas atividades diárias. A

134

BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências

Criminais, São Paulo, v. 20, p. 129-142, out. 1997.

96

construção do inimigo interno, própria da ideologia de segurança nacional das diversas

ditaduras que povoaram a América Latina em período recente, permeia o imaginário coletivo,

exercendo um papel de estigmatização que se dirige em prejuízo dos moradores de

comunidades carentes, supostamente dominadas pelo tráfico.

Contribui para essa política excludente, ainda segundo Nilo Batista, a compreensão do

tráfico de entorpecentes e drogas afins enquanto delito natural, ontológico. Na concepção

desse autor, o tráfico ilícito de entorpecentes, assim como qualquer outro delito, constitui

crime porque assim foi definido pelo legislador. E, uma vez definido como crime, é

combatido a partir da elaboração de uma política de enfrentamento porque as instâncias de

poder assim estabeleceram. Tratar o problema como uma questão de saúde pública é um

possível caminho para reduzir os enormes custos sociais e econômicos desse cenário.

Entretanto, ao que parece, esse conceito utilitarista contraria os interesses de uma poderosa

minoria que insiste em se impor pela força das armas.

Essa política criminal vem sendo responsável pelo surgimento e também pelo

crescimento de novos atores capazes de pôr em cheque a própria configuração das

instituições democráticas tais quais as conhecemos. O vácuo de poder recentemente deixado

pela aparente derrota de grupos armados nas comunidades cariocas fomentou o surgimento e

a exploração de nichos variáveis de poder por outros grupos armados, agora egressos das

próprias fileiras estatais.

A temática introduzida pela inserção dos milicianos no conturbado cenário da política

estatal de enfrentamento das drogas conduz à conclusão de que o paradigma bélico não é um

caminho razoável. O surgimento desses novos atores tem imenso potencial de alavancagem

dos sistemas penais subterrâneos incrustados no combalido Estado democrático de direito.

Essa complexa rede de múltiplos problemas obviamente não apresenta um prognóstico de

solução no curto prazo. Tal solução, se é que pode ser vislumbrada no estágio em que se

encontram as ciências criminais atualmente, não passa pelo paradigma bélico por sobre o qual

se deita a atenção deste estudo.

O objetivo primordial deste capítulo é verificar se, com base nos institutos próprios da

Lei 11.343/06, é possível dizer que tal legislação representa um reflexo do movimento de

expansão do Direito Penal no Brasil, em linha com o que propõe o Direito Penal do Inimigo.

Essa categorização parte do modelo expansionista proposto por Gracia Martín e exposto no

Capítulo 2, o qual define o Direito Penal do Inimigo enquanto uma das seis vertentes sob as

quais se dá a expansão do Direito Penal no mundo contemporâneo.

97

4.1 O quadro geral da política de combate às drogas no Brasil: uma análise da Lei

11.343/06

A análise da legislação em comento demonstra ser uma questão controvertida porque,

ao passo que essa mesma legislação traduziu os clamores de um movimento de

descriminalização, com êxito parcial, ainda conserva institutos compatíveis com a mais dura

política de enfrentamento e que traduzem iniciativas cruas de construção de um inimigo

interno na pessoa do traficante.

A autorização expressa ao fomento do flagrante esperado, mediante autorização legal

para “a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos e

outros produtos utilizados em sua produção... com a finalidade de identificar e

responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição” (art. 53,

inciso II da Lei 11.343/06), traduz em grande medida os postulados desse paradigma

persecutório e coloca esse mesmo paradigma no centro das reflexões sobre o modelo atual de

combate ao narcotráfico.

Ainda nessa linha de combate ao tráfico de entorpecentes, o artigo em comento traz “a

infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos

especializados pertinentes” (art. 53, I da Lei 11.343/06) como uma alternativa em termos de

“persecução criminal” para os delitos tipificados na lei ora analisada (art. 53, caput da Lei

11.343/06).

Quanto à possibilidade de infiltração policial em tarefas de investigação, vale registrar

os comentários de Guilherme de Souza Nucci em relação à iniciativa para infiltração de

agentes e à absoluta impossibilidade de esse procedimento ser requerido pelo juiz:

Nesse sentido, parece-nos óbvia a exclusão do representante do Ministério Público

para requerer a referida infiltração, aliás, assunto tipicamente policial. Pelo

magistrado, de ofício, seria completamente fora de propósito qualquer determinação

para a infiltração de policiais em associações de delinqüentes, pois é inadmissível

que se cultive a imagem do juiz inquisidor, mormente na fase policial.135

A par de todas as possíveis considerações que se possa fazer a respeito, dispositivos

como esse remetem, ainda que de forma sutil, a um passado recente em que a infiltração de

agentes no âmbito dos movimentos armados que se propunham combater a Ditadura Militar

era uma estratégia da guerra à “subversão”. Sem dúvida, essa estratégia em muito contribuiu

para a identificação dos dissidentes do regime em questão, cujo estereótipo de periculosidade

foi fundamental para autorizar a movimentação de todo um aparato de poder em desfavor

135

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 5ª Ed. São Paulo, Editora

Revista dos Tribunais, 2010, p. 406.

98

dessa mesma dissidência. Esta, até certo ponto, similitude de estratégias de combate é um

indício a autorizar a constatação no sentido da construção de um novo inimigo interno: o

traficante de entorpecentes. Recentes notícias do cotidiano da guerra ao tráfico na cidade do

Rio de Janeiro são elementos auxiliares capazes de ampliar a compreensão do fenômeno ora

descrito136

.

No contexto de uma análise inicial e, até certo ponto, superficial da Lei 11.343/06,

pode-se dizer que a legislação em comento traz á baila duas abordagens distintas da

problemática do combate ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Conjugam-se, no

sistema instituído por esta lei, um paradigma policial, militarizado e bélico, de um lado, e um

paradigma médico sanitário, de outro. Essas duas abordagens, atuando em conjunto de forma

harmônica, se é que isto é possível dentro de um modelo pautado na lógica do enfrentamento

e, portanto, do conflito, visam a atuar sobre as duas frentes em que se desdobra o complexo

problema das drogas e de seus consentâneos: o traficante de drogas ilícitas e o usuário de tais

substâncias.

Como exemplo dessa distinção, enquanto a conduta do art. 28 (porte para uso próprio)

da lei em comento é infração de menor potencial ofensivo, estando seu processo e julgamento

regulado na forma da Lei 9.099/95, com possibilidade de composição de danos e transação

penal, as condutas dos tipos penais relacionados ao tráfico possuem um tratamento

extremamente gravoso. Quanto à conduta tipificada no art. 28 da Lei de Drogas, observa-se

que é definida pelo penalista Guilherme de Souza Nucci não como de menor, mas de ínfimo

potencial ofensivo. Observe-se o que escreve este comentador a respeito do assunto:

Não se trata de infração de menor potencial ofensivo, mas de ínfimo potencial

ofensivo. Além da possibilidade de transação (art. 48, § 5º), não se imporá prisão

em flagrante (art. 48, § 2º) e, ao final, poderá ser aplicada simples advertência.

Denominamos de ínfimo potencial ofensivo o crime previsto no art. 28 desta lei,

tendo em vista que, mesmo não sendo possível a transação, ainda que reincidente o

agente, com maus antecedentes ou péssima conduta social, jamais será aplicada

pena privativa de liberdade.137

136

Ver, por exemplo, AGÊNCIA ESTADO. Rio investiga contradição entre testemunhas e polícia sobre a

morte de Marcelinho Niterói. Disponível em: <http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/rio-investiga-

contradicao-entre-testemunhas-e-policia-sobre-a-morte-de-marcelinho-niteroi-20111104.html> Acesso em:

05 nov. 2011, sobretudo no trecho que descreve a suposta estratégia da polícia para capturar Marcelinho

Niterói, a qual, segundo a versão oficial, traduziu verdadeira tática de guerrilha.

137

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p. 343.

99

Outra posição de destaque nesse particular é aquela adotada pela Profª Luciana

Boiteux em sua tese de doutorado. Ainda que redigida com base na legislação pretérita (Lei

6.368/76), seu estudo lança luz sobre aspectos relevantes desse tema:

O mais controvertido dos problemas é a criminalização do porte de drogas, criticada

por vários aspectos. Sob o ponto de vista material-constitucional, é apontada como

violação do princípio da privacidade e da intimidade, por se considerar que “ter em

sua posse drogas qualificadas de ilícitas para seu consumo pessoal, ou consumi-las

em circunstâncias que não tragam um perigo concreto, direto e imediato para outras

pessoas, são condutas privadas, que estão situadas na esfera individual”, protegidas

pelo art. 5º, X da Constituição de 1988.138

Mais adiante em sua exposição, Nucci desenvolve as prováveis causas da brandura na

punição do porte para uso próprio, ressaltando seu viés simbólico no âmbito do Direito Penal:

“Parece que, temendo a reação social à eventual descriminalização da conduta do

consumidor, o legislador preferiu eliminar a pena privativa de liberdade, optando por outras

formas de sanção extremamente brandas”139

.

Apesar de tratar com aparente benevolência a conduta do usuário, é marcante a

diferença de posicionamento observada em Guilherme Nucci com relação aos demais

penalistas abordados neste capítulo. Observe-se o que está escrito em suas notas ao art. 27 da

Lei 1.343/06, quando trata dos critérios gerais para a condenação do usuário de drogas:

7. Critérios gerais para a condenação do usuário de drogas: como primeiro

ponto a destacar, não cabe mais, em hipótese alguma, a sua condenação a pena

privativa de liberdade. Parece-nos, como regra geral, medida salutar, pois o usuário

habitual ou o eventual da droga , por si mesmo, não representa à sociedade um real

perigo, muito embora se possa dizer que ele, ao comprar e fazer uso de

entorpecentes, estimula o tráfico, o que não deixa de ser verdadeiro.140

É interessante notar que na análise deste autor está compreendida uma reprovação

implícita da conduta do usuário. E, além disso, em se tratando de uma obra dogmática,

portanto científica, no campo do Direito Penal, é interessante se observar a reprodução de

uma opinião de senso comum no sentido de o usuário fomentar o tráfico ilícito de

entorpecentes, financiando-o. O que se observa é o fomento desta atividade pelas próprias

autoridades a partir do momento que declararam que algumas drogas são legais e outras não.

Esse estímulo ocorre naturalmente, tanto conforme aponta o conceito, também de

senso comum, que registra os atos proibidos como os melhores de serem praticados, quanto

em relação a uma opção pela proscrição de determinadas substâncias. Como é sabido, a

138

RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do

proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Orientador Prof. Dr. Sergio Salomão Shecaira. São Paulo,

2006, pp. 219-220. 139

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p. 344. 140

Ibidem, p. 337.

100

proscrição de tais substâncias decorre, dentre outros fatores, do menoscabo da cultura de

determinados povos e também de uma determinada ética religiosa de sacralização do corpo

humano, cujas funções não devem ser dilapidadas pelo consumo de estupefacientes.

Sobre este ponto, é importante registrar o que diz o autor ora pesquisado a respeito da

utilização de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso, o qual é expressamente

excepcionado pela Lei 11.343/06 como exceção à proibição do plantio, da cultura e da

colheita de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas drogas (art. 2º):

5. Ressalva quanto ao uso de plantas de uso ritualístico religioso: dispõe o art.

32.4 da Convenção de Viena, ratificado pelo decreto 79.388/77, o seguinte: “O

Estado em cujo território cresçam plantas silvestres que contenham substâncias

psicotrópicas dentre as incluídas na Lista I, e que são tradicionalmente utilizadas

por pequenos grupos, nitidamente caracterizados, em rituais mágicos ou religiosos,

poderão, no momento da assinatura, ratificação ou adesão, formular reservas em

relação a tais plantas, com respeito às disposições do art. 7º, exceto quanto ás

disposições relativas ao comércio internacional”.141

Os países contratantes foram claros ao estabelecer os limites da mencionada

Convenção. Observe-se que, ao mesmo tempo em que houve uma clara preocupação com a

consagração dos direitos das minorias étnico-religiosas (Ex.: i) colhedores de coca da Bolívia,

que precisam mascar a folha para suportar os efeitos da altitude; ii) adeptos do Santo Daime

no Brasil, que utilizam uma infusão supostamente estupefaciente em seus rituais para

entrarem em contato com o Divino), houve igual preocupação em resguardar os fins da

norma, destinada sobretudo a combater o comércio de entorpecentes, quer na órbita interna

dos países, quer no plano internacional.

Em outra frente, o paradigma de enfrentamento, levado a efeito por um modelo

policial e militarizado, que se propõe realizar um programa muitas vezes confundido com a

guerra em sentido estrito, incide principalmente sobre o traficante de drogas e é sob sua égide

que se dá a batalha cotidiana no seio das regiões mais carentes dos grandes centros urbanos,

já explorada a título de introdução deste capítulo.

É essa frente de combate à qual corresponde um modelo de política criminal que

traduz um alto custo em vida e, ao mesmo tempo, ao correlato desgaste econômico e político

das instituições estatais. Essa mesma frente de combate encontra-se muito bem marcada na

Lei 11.343/06 a partir de uma série de dispositivos, com alto grau de detalhamento, que

constituem os termos deste sangrento contrato que vincula criminalizados, sociedade civil e

instituições policiais, os quais dividem o mesmo espaço, dentro das funções que lhes foram

atribuídas normativamente, como se verá.

141

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.333.

101

Esse modelo de combate, cuja construção normativa começa no artigo 27 da Lei

11.343/06, ocupou praticamente dois terços da atenção do legislador (a lei em comento

possui 75 artigos), ao passo que as políticas públicas que voltam sua atenção sobre o usuário

ocuparam apenas os primeiros vinte e seis artigos da referida lei. Essa constatação denota, ao

menos, senão uma predominância do modelo bélico de enfrentamento ao tráfico e aos crimes

que lhes são conexos (tráfico de precursores químicos, de armas e lavagem de dinheiro) em

relação às políticas de tratamento do usuário, ao menos um maior grau de detalhamento dos

dispositivos que cuidam desse modelo de enfrentamento em face daqueles que traçam as

linhas gerais de uma incipiente programação genérica de políticas públicas.

Adiantando a temática, e esse ponto chama a atenção no contexto de uma análise mais

cuidadosa da legislação em apreço, observa-se que os artigos de lei que cuidam dessa política

de enfrentamento ao tráfico ilícito de entorpecentes são bem mais detalhados e construídos,

do ponto de vista da técnica legislativa, do que aqueles que cuidam das políticas públicas de

atenção e tratamento ao usuário, sobretudo no tocante às medidas concretas que visam a

promover esse tratamento, que permanecem no nível da mera enunciação.

Com relação às medidas de combate ao narcotráfico, estas assumem uma concretude

impressionante e certamente receberam um cuidado privilegiado da parte do legislador, que

incluiu até um bem elaborado subsistema para processo e julgamento dos delitos tratados na

Lei de Drogas (arts. 48 a 64 da Lei 11.343/06).

No intuito de marcar essa maior preocupação do legislador com a política de

enfrentamento ao narcotráfico, quando comparada com a atenção dispensada ao tratamento e

recuperação de usuários, podem ser cotejados alguns dispositivos da Lei 11.343/06:

Art. 4o São princípios do Sisnad:

I - o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à

sua autonomia e à sua liberdade;

II - o respeito à diversidade e às especificidades populacionais existentes;

III - a promoção dos valores éticos, culturais e de cidadania do povo brasileiro,

reconhecendo-os como fatores de proteção para o uso indevido de drogas e outros

comportamentos correlacionados;

(...)

Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta

Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e

ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:

102

I - a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos

órgãos especializados pertinentes;

II - a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos

ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território

brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de

integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal

cabível.

Parágrafo único. Na hipótese do inciso II deste artigo, a autorização será concedida

desde que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do

delito ou de colaboradores.

Observe-se que, ao enunciar princípios do Sistema Nacional de Políticas Públicas

sobre Drogas (Sisnad), o legislador o fez de forma muito mais genérica e programática do

que ao enumerar taxativamente (art. 53 da lei 11.343/06, anteriormente citado nesta

exposição) os expedientes passíveis de serem utilizados em sede de investigação criminal,

inclusive no intuito de punir mais agentes envolvidos em crimes tipificados na legislação em

comento.

Essas disposições, além de implicarem em uma opção óbvia pelo incremento da

criminalização, em linha com o que propõem os movimentos de expansão do Direito Penal,

revelam de forma bastante clara a supremacia do modelo de enfrentamento sobre o modelo

médico-sanitário, que lhe é subsidiário e se tenta impor, ainda que com dificuldade, sobre

uma minoria de usuários criminalizados que volta e meia tem problemas com a justiça.

Um contraponto importante a esta opção pela criminalização, apontada acima, foi a

inovação trazida pela tentativa de descriminalização, com êxito parcial, do porte para uso

próprio, ao qual anteriormente era cominada pena de detenção, de seis meses a dois anos e

multa, na forma do art. 16 da Lei 6.368/76. A Lei 11.343/06, em seu art. 28, comina penas

não privativas de liberdade para essa mesma conduta.

Diz-se dessas penas, e seu conjunto, “não privativas de liberdade” porque não é

possível entender a pena de “advertência sobre os efeitos das drogas” (art. 28, I da Lei

11.343/06) nem a “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”

como penas restritivas de direitos, em nossa modesta opinião. Nesse contexto, poderia ser

entendida como pena restritiva de direitos a pena cominada no artigo 28, II da Lei 11.343/06,

que prevê a “prestação de serviços á comunidade”.

Em relação à advertência sobre os efeitos das drogas, cominada no art. 28, I da Lei

11.343/06, observem-se os comentários de Guilherme de Souza Nucci acerca de sua natureza

jurídica e de seus efeitos para fins de reincidência:

103

Parece-nos fundamental que a advertência, cuja natureza jurídica é de pena, seja

reduzida a termo e assinada pelo magistrado, pelo réu, seu defensor e pelo

representante do Ministério Público. Aliás, constituindo pena, pode gerar, no futuro,

reincidência (art. 63, CP), não podendo mais, sob pena de consagração da

impunidade, o magistrado aplicar outra advertência, mas partir para medidas mais

eficientes, como a restrição de direitos.142

Ressalte-se que a cominação de penas não privativas de liberdade, conforme anotado

anteriormente, representou um êxito parcial dessa tentativa de descriminalização porque a

conduta ainda é definida como crime, ao qual, diga-se, de forma excepcionalíssima em nosso

sistema, não se comina uma pena privativa de liberdade. Observe-se que a conduta ainda é

definida como crime em sentido lato e que sua prática ainda vem acompanhada de um

desvalor social que não pode ser desprezado.

Entretanto, conforme adiante será explorado, frise-se que o paradigma médico de

tratamento ambulatorial, igualmente previsto na lei em comento, contribui ainda mais para a

estigmatização do usuário perante a sociedade, posto que o coloca na posição de diferente,

sendo um passo embrionário no sentido da construção de uma categoria de não pessoa, que é

prévia à construção da categoria penal de inimigo.

Este ciclo se completa a partir de um arremate ideológico que propugna a confusão

entre usuário e traficante, quer na prática (imposição de prisão em flagrante sobre portadores

de pequenas quantidades de droga, a partir de uma imputação de tráfico, como

freqüentemente se observa), quer mediante ilações ideológicas impostas pelas campanhas de

“lei e ordem”, que buscam construir, a partir do usuário, a imagem do grande financiador do

tráfico de drogas, como se houvesse um grande consumidor coletivo, formado pela soma dos

pequenos consumidores individuais.

Essa construção, guardado o devido respeito àqueles que detém posicionamento

diverso, é uma falácia porque, como se sabe, os maiores mercados consumidores das drogas

produzidas na América Latina são Europa e América do Norte. Portanto, atribuir a posição de

“sócio majoritário” aos usuários, no âmbito interno, é uma construção no mínimo pouco

informada.

Essa estigmatização a partir do tratamento ambulatorial, que, por força do artigo 28, §

7º da Lei 11.343/06, pode ser, em certa medida, imposto pelo juiz143

, é, de alguma forma,

142

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.347. 143

Art. 28, § 7º da Lei 11.343/06: “O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator,

gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado”.

Ora, pode-se dizer que se trata, em certa medida, de uma imposição para que o infrator se trate porque não é

razoável a expedição de uma ordem judicial, capaz de movimentar a máquina do Estado no sentido de uma

determinada finalidade, incapaz de vincular quem pratica uma conduta contrária lei. Há, nessa hipótese, um

104

mais forte do que o impacto criminal que o cometimento do delito tipificado no artigo 28,

caput da lei em comento pode ter sobre a vida do usuário. Em que pese o prisma de análise

em tela, cabe registrar posição diversa de Guilherme Nucci nesse sentido, que qualifica o

parágrafo citado enquanto norma extrapenal:

Cuida-se de medida benéfica a quem usa drogas, para que se submeta a um

tratamento especializado, afastando-se, com isso, eventual reincidência. Não sendo

pena ou efeito da condenação, se o sentenciado não se valer da medida tomada pelo

juiz, nenhuma conseqüência negativa lhe pode ocorrer.144

E é dessa forma porque, de acordo com o que dispõe o artigo 48, § 2º dessa mesma

lei, para a conduta prevista no artigo 28 não se imporá prisão em flagrante, sendo o agente

processado e julgado na forma dos artigos 80 e seguintes da Lei 9.099/95 (art. 48, § 1º da Lei

11.343/06), conforme se pode concluir a partir da interpretação sistemática do artigo 48 da

Lei de Drogas:

Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título

rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições

do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.

§ 1o O agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se

houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será

processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei no 9.099, de 26 de

setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais.

(...)

§ 5o Para os fins do disposto no art. 76 da Lei n

o 9.099, de 1995, que dispõe sobre os

Juizados Especiais Criminais, o Ministério Público poderá propor a aplicação

imediata de pena prevista no art. 28 desta Lei, a ser especificada na proposta.

O artigo 48, § 5º da Lei 11.343/06, reproduzido acima, ao tratar da “aplicação

imediata de pena prevista no art. 28 desta Lei, a ser especificada na proposta”, refere-se a

nada além da transação penal, importante instituto descriminalizador presente no Direito

Processual Penal Brasileiro, cujos contornos são dados pelo artigo 76 da Lei 9.099/95, que

dispõe sobre o procedimento dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais:

Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública

incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá

constrangimento oficial para que o infrator seja submetido ao referido tratamento ambulatorial, apesar de o

Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas se pautar, dentre outros princípios, pelo prestígio aos

direitos humanos (art. 4º, I da Lei 11.343/06). Pode-se entender que, na espécie, há uma certa pressão dos

órgãos oficiais, autorizada pelo dispositivo em comento, para que o agente se submeta a tratamento, ainda

que contra sua livre vontade, que traduz à manifestação do direito fundamental á liberdade, estampado no

art. 5º, caput da Constituição da República. 144

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.353.

105

propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser

especificada na proposta.

Em relação à transação penal prevista no art. 48, § 5º da Lei 11.343/06, Nucci é

bastante sintético ao tratar da transação penal cabível na hipótese, cingindo sua análise à

existência de uma transação penal limitada: “184. Transação limitada: o § 5º deixou caro

que a proposta do Ministério Público deve cingir-se às penas previstas no art. 28 da lei

11.343/06, não podendo optar por outras penalidades não previstas na lei especial”145

.

A diferença essencial entre a transação penal pura e simples, disposta no art. 76 da Lei

9.099/95, e a hipótese de transação penal proposta na forma do artigo 48, § 5º da Lei

11.343/06, diz respeito ao objeto da transação: ao passo que, na Lei 9.099/95, a transação

penal pode-se dar mediante aplicação de penas restritivas de direitos ou multas especificadas

na proposta (art. 76, caput da Lei 9.099/95), no contexto da Lei 11.343/06 a transação penal

pode ocorrer a partir da imposição de pena prevista no artigo 28 da referida lei (artigo 48, § 5º

da Lei 11.343/06), tratando-se de uma transação penal limitada, conforme preceitua Nucci.

Insta ressaltar que, conforme apontado pelo próprio comentador pesquisado, trata-se

de uma transação penal limitada, portanto diferentes das demais transações penais

tradicionalmente obtidas na forma da Lei 9.099/95. Portanto, observe-se que os agentes que

pratiquem delitos tipificados na Lei 11.343/06 recebem tratamento penal diferenciado

daquele que os praticantes de outros delitos recebem quanto à transação penal, caracterizando

uma distinção que remonta ao direito penal de autor.

A admissão da transação penal no âmbito dos delitos tipificados na Lei 11.343/06 é

uma importante via para a redução da criminalização dessas condutas, haja vista serem outros

importantes benefícios interditados àqueles cuja prática desses delitos fora imputada. O artigo

44, caput da lei em comento veda expressamente benefícios como liberdade provisória, com

ou sem fiança, sursis, graça, indulto e anistia aos agentes que tenham praticado delitos

capitulados nos artigos 33, caput e § 1º e 34 a 37 da Lei 11.343/06:

Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei são

inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória,

vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.

Parágrafo único. Nos crimes previstos no caput deste artigo, dar-se-á o livramento

condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua concessão ao

reincidente específico.

145

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.402.

106

Sobre a inafiançabilidade do delito de tráfico ilícito de entorpecentes, cabem ainda

algumas considerações de cunho constitucional. Essa inafiançabilidade é originada por uma

pauta criminalizadora constitucional, mais especificamente pelo art. 5º, XLIII da CRFB/88,

que declara o tráfico ilícito de entorpecentes, entre outros crimes, inafiançável e insuscetível

de graça e anistia. Interessante é notar no comentador intensamente consultado até aqui a

posição a respeito dessa interdição de benefício:

O legislador brasileiro ainda não se deu conta de que o magistrado pode conceder

para qualquer crime – exceto para os hediondos e equiparados – liberdade

provisória sem fiança, desde que não estejam presentes os requisitos para decretação

da prisão preventiva. Logo, é pura bobagem estabelecera vedação para a concessão

de fiança. Ao contrário, pensamos que o ideal devesse ser, sempre, possibilitar a

liberdade provisória, com fiança, até para delitos mais graves, pois algum custo,

pelo menos, traria para o indiciado ou réu.146

A possibilidade jurídica de se acolher a transação penal, tendo em vista esse quadro

geral de interdição de benefícios, é uma alternativa importante no sentido de minimização da

criminalização nessa seara, sobretudo no que tange a réus primários, de modo a evitar a

verdadeira profissionalização de criminosos que tem lugar no sistema prisional brasileiro.

Entretanto, a impossibilidade de conversão das penas cominadas em penas restritivas

de direito, talvez, seja elemento apto a autorizar a impossibilidade, ainda que por via indireta,

de mais esse benefício. Contudo, impossibilitada a conversão em pena restritiva de direitos,

resta a imposição de multa, a qual é prevista expressamente no artigo 76, caput da Lei

9.099/95.

Adotando-se uma interpretação teleológica da norma, talvez não faça sentido admitir-

se que o legislador abriu, no silêncio da lei, ao não vedar expressamente a transação penal

enquanto benefício, uma brecha para que fosse aplicada somente a pena de multa para os

delitos ali tipificados.

Entretanto, nesse particular, vem em nosso socorro a jurisprudência do Egrégio

Superior Tribunal de Justiça, no sentido de determinar se a transação penal pode ser, de fato,

aplicável aos delitos tipificados na Lei 11.343/06. Observe-se o teor da ementa colacionada

logo abaixo:

HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O

TRÁFICO DE DROGAS (ARTS. 33 E 35 DA LEI 11.343/06. PRISÃO

PREVENTIVA EM 18.12.07. ALEGAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL

DECORRENTE DA AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA A CUSTÓDIA

CAUTELAR. DECRETO SUFICIENTEMENTE FUNDAMENTADO.

GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. ENVOLVIMENTO EM ASSOCIAÇÃO

146

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.395.

107

COM 24 INTEGRANTES. ACURADA DIVISÃO DE TAREFAS VISANDO, AO

QUE TUDO INDICA, À DISTRIBUIÇÃO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE

EM BAIRROS NOBRES DA CAPITAL FLUMINENSE. CONCESSÃO DA

ORDEM A CORRÉU. PEDIDO DE EXTENSÃO NEGADO NA ORIGEM POR

AUSÊNCIA DE IDENTIDADE ENTRE SITUAÇÕES FÁTICAS DOS RÉUS.

REVISÃO QUE DEMANDARIA APROFUNDADA ANÁLISE DE PROVAS.

VIA ELEITA INADEQUADA. PARECER DO MPF PELA CONCESSÃO DA

ORDEM. ORDEM DENEGADA.

1. Sendo induvidosa a ocorrência do crime e presentes suficientes indícios de

autoria, não há ilegalidade na decisão que determina a custódia cautelar do paciente,

se presentes os temores receados pelo art. 312 do CPP.

2. In casu, a segregação provisória foi determinada para garantir a ordem púbica,

uma vez há fundados indícios de que o paciente integre numerosa associação

voltada para o tráfico de drogas que, repetidamente e em acurada divisão de

tarefas, promove a distribuição de substância entorpecente principalmente entre os

bairros nobres da capital fluminense.

3. Para conceder a ordem a corréu e negar sua extensão ao paciente, o Tribunal

impetrado apontou o fato de que a persecução penal iniciada em desfavor daquele

continha imputações diferenciadas dos demais e terminara em decorrência de

transação penal. Tais circunstâncias não se repetiam em favor do paciente.

4. A revisão da dessemelhança apontada na origem demandaria aprofundado exame

do conjunto probatório dos autos, o que, como é sabido, afigura-se inviável nesta

Ação Mandamental.

5. Parecer ministerial pela concessão da ordem.

6. Ordem denegada. (Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus 123523/RJ,

Quinta Turma, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em

09/06/2009, publicado no Diário de Justiça eletrônico em 03/08/2009)

A leitura do julgado acima ementado sugere que a transação penal, em algum

momento do processo, foi facultada a algum(ns) dos 24 corréus indiciador por tráfico de

drogas no curso da ação penal. Entretanto, da leitura do inteiro teor do julgado, não foi

possível determinar em que condições se teria dado a transação penal, sendo a possibilidade

jurídica de aplicação da transação penal aos crimes tipificados nos artigos 33, caput e § 1º e

34 a 37 da lei 11.343/06 incerta sob a ótica da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Quanto à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não foram localizados julgados que

dissessem respeito ao tema.

Concluídas essas considerações gerais sobre o crime de porte para uso próprio e sobre

a possibilidade de transação penal para os crimes tipificados na Lei 11.343/06, cabem

algumas considerações acerca do crime tipificado no art. 33 desta mesma lei (tráfico ilícito de

entorpecentes). Observe-se o que escreve Salo de Carvalho a respeito do tema:

Especificamente em relação ao tráfico ilícito de entorpecentes, a Constituição

determina sua equiparação aos delitos hediondos, estabelecendo a impossibilidade

de fiança, graça e anistia, bem como a responsabilização criminal dos mandantes,

executores e aos que, podendo evitar a prática de do crime, se omitirem (art. 5º,

XLIII). Delineia a Constituição, portanto, o máximo grau de resposta punitiva ao

sistema de direito e de processo penal brasileiro com a adjetivação de nova espécie

108

de delito – crime hediondo, regulamentado posteriormente pela Lei 8.072/90 -,

estendendo seus efeitos ao comércio ilegal de drogas, à tortura e ao terrorismo.147

Esse “máximo grau de resposta punitiva” conferido constitucionalmente a uma gama

de delitos, dentre eles o tráfico de entorpecentes, sob o rótulo de crimes hediondos,

corresponde, em certa medida, um desdobramento do movimento de expansão do Direito

Penal no Brasil. Esse desdobramento se move no eixo do Direito Penal do Inimigo, uma vez

que a incriminação realizada a partir do programa introduzido pela Lei 11.343/06 se dá

sobretudo em desfavor dos penalmente vulneráveis, incorporado o dado da seletividade

estruturante de todo e qualquer sistema penal, conforme previamente abordado.

Nesse sentido, o traficante de entorpecentes surge como o inimigo contra o qual se

dirige o rigor da legislação penal de drogas e suas medidas de enfrentamento e médico-

sanitárias, com todo o dano colateral, quantificado pelo custo em termos de vidas humanas,

representados por essa política. Essa lógica, que notadamente serve a interesses de classe, é

articulada a partir do etiquetamento (“labelling”) de determinados indivíduos como

potencialmente perigosos, em um primeiro momento, e como criminosos, em momento

posterior, conforme propõe o paradigma criminológico do labelling approach, dissecado por

Alessandro Baratta.

Esse processo de criminalização seletiva, promovido a partir de um paradigma

incriminador, de um lado, e de um programa criminalizador, por outro, é responsável pela

construção da imagem do traficante de entorpecentes enquanto inimigo, que é tema do

próximo item desta exposição.

A relação dialética entre tráfico ilícito de entorpecentes e porte para uso próprio

dessas mesmas substâncias também constitui objeto de abordagem na obra de Salo de

Carvalho, que aponta a existência de um “movimento criminalizador pendular”, o qual, a

partir de uma zona nebulosa gerada pela inexistência de cláusulas de barreira (um mínimo,

em termos de quantidade, para a tipificação do tráfico, p. ex.), acaba sendo responsável pela

tipificação equivocada dos delitos de porte para uso próprio e de tráfico ilícito de

entorpecentes. Abaixo, seguem transcritas as palavras do autor citado para melhor ilustração

de tais idéias:

Com a nova categorização e hierarquização dos crimes a partir da Constituição de

1988, as principais condutas incriminadas pela Lei de Drogas, assim como o eram

na Lei 6.368/76, são dicotomizadas nos pólos opostos da resposta penal. Se havia,

desde a publicação do texto constitucional, a equiparação do comércio ilegal de

entorpecentes aos crimes hediondos (hard crimes), o porte de drogas para consumo,

147

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06), p. 193.

109

na vigência da Lei 6.368/76, assumia, com o advento da Lei 9.099/95, característica

de crime de médio potencial ofensivo, sendo possibilitada a suspensão condicional

do processo. A partir da Lei 10.259/01, com a chamada da jurisprudência e

posteriormente com as Leis 11.313/06 e 11.343/06 (art. 48, § 1º), ocorre sua

inclusão formal e explícita no rol dos crimes de menor potencial ofensivo (soft

crime), com processamento perante os Juizados Especiais Criminais, sendo

facultada ao autor do fato a transação penal pré processual.

Percebe-se, portanto, que os crimes relativos aos entorpecentes, notadamente o

comércio ilegal e o porte para uso próprio, oscilam entre o máximo e o mínimo da

resposta punitiva. O movimento criminalizador pendular, porém, em casos

relevantes e muito comuns no cotidiano forense, é definido por circunstâncias

nebulosas, de baixa perceptividade e de difícil comprovabilidade, motivo pelo qual

é fundamental estabelecer rígidos critérios de definição.148

Ainda segundo a ótica de Salo de Carvalho, uma solução para as conseqüências

deletérias que essa criminalização pendular pode provocar (como a equiparação, a título de

capitulação e conseqüente condenação, de usuários a traficantes) seria a comprovação, a

título de defesa, de um especial fim de agir no sentido do consumo pessoal. Observem-se

algumas linhas de tudo quanto escrito pelo referido autor a respeito do tema:

Assim, do que se depreende da dogmática penal, a única forma de diferenciação

entre as condutas seria a comprovação do objetivo para consumo pessoal (art. 28).

Em não ficando demonstrado este especial fim de agir, qualquer outra intenção,

independente de destinação comercial, direcionaria a subsunção da conduta ao art.

33, decorrência da generalidade, abstração e universalidade do dolo. Cria-se, em

realidade, espécie de zona gris de alto empuxo criminalizador na qual situações

plurais são cooptadas pela univocidade normativa. Esta situação, inclusive, não

invariavelmente potencializa na jurisprudência tendência à inversão do ônus da

prova, recaindo ao réu o dever de provar durante a cognição a especial finalidade de

agir, eximindo a acusação do dever processual imposto pela Constituição, qual seja,

confirmar, á exaustão, todas as hipóteses narradas na denúncia e efetivamente

apresentar as evidências que permitem concluir não ser a ação direcionada ao uso

próprio ou compartilhado.149

Como corolário do princípio de Direito Processual Penal in dubio pro reo, Salo de

Carvalho propõe a mais lógica solução para os casos em que não restar comprovado o

especial fim de agir no sentido do comércio de entorpecentes:

Frise-se, porém, que cabe ao agente acusador o ônus da prova de que as

circunstâncias empíricas indiciadoras são congruentes com o animus de comércio

em caso de imputação de tráfico de entorpecentes. Em não havendo prova robusta

ou restando esta dúbia, imperativa a desclassificação para o caput do art. 28 da Lei

de Drogas.150

Por derradeiro, insta pontuar algumas das considerações de Guilherme de Souza

Nucci a respeito do delito de tráfico ilícito de entorpecentes, que ora ocupa a presente

148

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06), p. 196. 149

Ibidem, pp. 211-212. 150

Ibidem, p. 218.

110

exposição. Este comentador, a partir da análise do tipo objetivo, frisa que o crime previsto no

art. 33 da Lei 11.343/06 tem lugar independente do intuito de lucro de quem o pratica:

Todas as condutas passam a ter, em conjunto, o complemento ainda que

gratuitamente (sem cobrança de qualquer preço ou valor). Logo, é indiferente haver

ou não lucro, ou mesmo intuito de lucro. Lembremos, ainda, que o tipo é misto

alternativo, ou seja, o agente pode praticar uma ou mais condutas, respondendo por

um só delito (ex.: se importar, tiver em depósito e depois vender determinada droga

= um crime de tráfico ilícto de entorpecentes previsto no art. 33).151

É importante observar que, além do destaque dado a ausência do intuito de lucro

como circunstância inapta a afastar a tipicidade da conduta, o fato de o tipo ser misto

alternativo (multiplicidade de condutas fungíveis entre si) não visa, obviamente, a permitir

que o agente, pela mesma conduta, incorra em mais de um delito, o que consagraria

inaceitável bis in idem. É possível concluir que é buscada a máxima efetividade da lei penal

mediante a enumeração da maior quantidade possível de condutas.

Após mencionar a superabundância de núcleos típicos no delito de tráfico ilícito de

entorpecentes, Nucci prossegue expondo uma hipótese plausível de concurso de crimes:

Eventualmente, pode-se acolher o concurso de crimes, se entre uma determinada

conduta e outra transcorrer período excessivamente extenso. Caso o agente venda

drogas provenientes de um carregamento, recém-importado, em janeiro de um

determinado ano, e torne a fazê-lo no mês de setembro desse mesmo ano, mas

relativamente a entorpecentes originários de outro carregamento, parece-nos haver

dois delitos em concurso, restando a discussão se cabe o concurso material ou o

crime continuado.152

Ultrapassadas essas considerações acerca do paradigma de enfrentamento no qual se

pauta a Lei de Drogas, passa-se às considerações acerca do modelo médico-sanitário que

igualmente inspira tal legislação. Conforme fora escrito há poucas linhas atrás, os primeiros

vinte e seis artigos da legislação em comento se referem mais especificamente às políticas

públicas de atenção e tratamento ao dependente de drogas, trazendo à tona um modelo

sanitário que, de certa forma, já inspirou as legislações sobre drogas de tempos pretéritos153

.

O Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas é regulado nos artigos 3º a 5º

da Lei 11.343/06. Atrai um poço a atenção para essa construção o fato de se ter ocupado tão

pouco o legislador com um assunto da mais alta relevância em se tratando do cuidado e da

atenção a usuários de drogas, uma vez que, segundo o melhor entendimento, esse “sistema”

151

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.357. 152

Ibidem. 153

Ver BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue, especificamente à parte em que o

autor se refere ao tratamento da problemática das drogas em meados do século XX, no contexto de um

modelo que ele mesmo classifica como “sanitário” e de cuja fonte foi extraída a presente classificação.

111

seria a base programática maior para todo um conjunto de políticas públicas que, a nosso ver,

carece de implementação até os dias de hoje.

Conforme já ventilado linhas atrás, esse programa de tratamento e atenção a usuários

de drogas se conteve no plano enunciativo, tendo sido propostas poucas, ou praticamente

nenhuma, medida concreta nesse sentido. Um bom exemplo de medida concreta que visa ao

tratamento de dependentes de drogas, ainda que estejam cumprindo pena ou medida de

segurança, encontra-se inserto no artigo 26 da lei 11.343/06, transcrito a seguir:

Art. 26. O usuário e o dependente de drogas que, em razão da prática de infração

penal, estiverem cumprindo pena privativa de liberdade ou submetidos a medida de

segurança, têm garantidos os serviços de atenção à sua saúde, definidos pelo

respectivo sistema penitenciário.

Observe-se que, em relação aos artigos 3º a 5º, adrede comentados, o dispositivo

acima ganha contornos de concretude que escapam ao caráter meramente enunciativo desta

parte da legislação. Para marcar essa distinção, observe-se a construção de alguns dos

dispositivos que tratam do Sisnad:

Art. 3o O Sisnad tem a finalidade de articular, integrar, organizar e coordenar as

atividades relacionadas com:

I - a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e

dependentes de drogas;

II - a repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas.(...)

(...)

Art. 5o O Sisnad tem os seguintes objetivos:

I - contribuir para a inclusão social do cidadão, visando a torná-lo menos vulnerável

a assumir comportamentos de risco para o uso indevido de drogas, seu tráfico ilícito

e outros comportamentos correlacionados;(...)

Observe-se que, quanto ao artigo 3º, inciso II da Lei 11.343/06, que trata da repressão

à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, a referida lei trará mais adiante, como

já fora comentado, todo um arsenal de medidas, sobretudo no que se refere à tipificação de

condutas criminosas às quais se cominam penas privativas de liberdade de elevada dosimetria

e se interditam benefícios fundamentais, medidas essas destinadas ao enfrentamento da

produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas. Quanto ao restante dos dispositivos

acima elencados, estes permanecem no campo programático, sem medidas assecuratórias

capazes de lhes conferir eficácia.

112

Tampouco o Decreto nº 5.912/06, que regulamenta a Lei 11.343/06, a nosso ver, foi

capaz de retirar esta norma do campo meramente enunciativo no que tange ao tratamento e

atenção a usuários de drogas, apesar de criar para o Sisnad uma estrutura burocrática e uma

composição bem definidas (especificamente no caso do Conselho Nacional Antidrogas –

CONAD, cuja composição é dada pelo artigo 5º do referido decreto).

Essa alternativa atribui á legislação em comento um caráter muito mais simbólico do

que prático no âmbito da realidade sobre à qual pretende atuar, constituindo uma espécie de

resposta aos súditos dada por um soberano que se vê às voltas com um problema que é

incapaz de resolver, ao menos sem que tal solução implique desgaste político e um mínimo

de comprometimento. Certamente, no contexto do estabelecimento de um modelo médico-

sanitário para o equacionamento da problemática das drogas no Brasil, a legislação em

comento não foi capaz de obter êxito, prevalecendo o se segundo, mas não menos importante,

pilar: o da política de enfrentamento que cotidianamente ceifa milhares de vidas.

Essa prevalência, longe de traduzir um acontecimento fortuito, filho do fracasso

natural de um modelo médico-sanitário mal elaborado para lidar com o desafio do consumo

de drogas no país, traduziu-se em premeditada escolha política pelo conflito, o qual,

conforme aqui se defende, depende de um elemento fundamental para continuar existindo:

depende de um inimigo, cuidadosamente construído e pintado como raiz de todos os males,

elemento que, quando extirpado, será capaz de deixar lugar para a concórdia e o bem comum.

Esse inimigo, cuidadosamente construído e meticulosamente utilizado nos momentos

de emergência, conforme definidos brilhantemente por Zaffaroni, é encarnado na figura do

traficante de drogas, aquele que, em bandos, aterroriza a sociedade e promove o caos,

atraindo legiões de filhos e filhas de cidadãos de bem para o consumo de drogas ilícitas. Esse

inimigo, cujo estereótipo corrente corresponde ao morador de comunidade carente que, por

gosto ou falta de uma melhor alternativa, aderiu a criminalidade, é o núcleo duro dessa

máquina de poder que dele se alimenta para justificar a própria existência. Um retrato mais

aprofundado dessa realidade se encontra mais à frente neste capítulo.

Por ora, interessa apontar mais uma faceta desse paradigma de enfrentamento ao qual

praticamente se reduz, a toda evidência, a legislação de (combate às) drogas no Brasil. Em

capítulos precedentes, foi apontado que a administrativização do Direito Penal é um

movimento que, atualmente, encontra-se no olho do furacão das propostas de expansão do

Direito Penal e, segundo Nilo Batista, traduz, entre outras coisas, uma posição de privilégio

do estado com relação ao patrimônio dos seus cidadãos.

113

É sob esse prisma de análise que aqui se tecerá algumas notas a respeito da previsão,

que pode ser encontrada na Lei 11.343/06, no sentido da expropriação de bens imóveis,

especialmente terras, além de direitos e valores utilizados para fins do tráfico ilícito de

entorpecentes e drogas afins.

O artigo 60 da Lei 11.343/06 contém uma previsão expressa nesse sentido:

Art. 60. O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante

representação da autoridade de polícia judiciária, ouvido o Ministério Público,

havendo indícios suficientes, poderá decretar, no curso do inquérito ou da ação

penal, a apreensão e outras medidas assecuratórias relacionadas aos bens móveis e

imóveis ou valores consistentes em produtos dos crimes previstos nesta Lei, ou que

constituam proveito auferido com sua prática, procedendo-se na forma dos arts. 125

a 144 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal.

§ 1o Decretadas quaisquer das medidas previstas neste artigo, o juiz facultará ao

acusado que, no prazo de 5 (cinco) dias, apresente ou requeira a produção de provas

acerca da origem lícita do produto, bem ou valor objeto da decisão.

O procedimento para apreensão e tomada de outras medidas assecuratórias relativas

aos bens móveis e imóveis que sejam produto de crime, na forma do dispositivo em comento,

são dissecados por Guilherme Nucci nos seguintes termos:

Nesse caso, a polícia não necessita de mandado judicial, bastando lavrar o auto de

apreensão. Entretanto, há o proveito do crime, que significa a vantagem obtida pelo

delinqüente, mascarada de licitude. O traficante pode adquirir, por exemplo,

imóveis e veículos com o dinheiro arrecadado em virtude da venda de drogas. Não

pode a polícia judiciária simplesmente apreender tais bens, uma vez que é,

constitucionalmente, assegurado o direito de propriedade. Ingressa no cenário o

Judiciário, que pode, como dispõe a lei, seqüestrar os proveitos da infração penal.154

Para além de uma medida com natureza jurídica de pena de perdimento, segundo o

conhecido brocardo de ninguém poder se beneficiar da própria torpeza, essa medida pode ser

entendida como um indício de administrativização do Direito Penal, sob o prisma do

privilégio do soberano com relação ao patrimônio de seus súditos, posto que a medida

judicial apontada acima, em que pese a posterior reversão dos bens assim expropriados em

iniciativas de combate ao crime ou, de outra forma, em favor do poder público, apresenta

nítidos contornos de confisco.

E é assim porque, já estando o acusado envolvido em acusações certamente muito

mais graves do que essas que lhe podem causar uma diminuição patrimonial, óbvio está que

seu direito de defesa em relação a este incidente processual fica limitado, dada sobretudo a

154

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.414.

114

exigüidade do prazo para produção de provas acerca da licitude dos bens apreendidos (artigo

60, § 1º da Lei 11.343/06, logo acima).

Sobre esse movimento geral de administrativização do Direito Penal, no âmbito de um

contexto maior de expansão do Direito Penal, são bastante ilustrativas as palavras de Silva

Sánchez sobre tal tema:

Como se verá, o decisivo aqui volta a ser o critério teleológico: a finalidade que

perseguem, respectivamente, o Direito Penal e o administrativo-sancionador. O

primeiro persegue a proteção de bens concretos e segue critérios de lesividade ou

periculosidade concreta e de imputação individual de um injusto próprio. O segundo

persegue a ordenação, de modo geral, de setores da atividade (isto é, o reforço,

mediante sanções, de um determinado modelo de gestão setorial). Por isso não tem

por que seguir critérios de lesividade ou periculosidade concreta, senão que deve

preferencialmente atender a considerações de afetação geral, estatística; ainda

assim, não tem por que ser tão estrito na imputação, nem sequer na persecução

(regida por critérios de oportunidade e não de legalidade).155

Ora, considerando que financiar ou custear o tráfico de drogas é crime definido na

forma do artigo 36 da Lei 11.343/06, essa medida judicial de confisco de bens destinados ao

tráfico ilícito de entorpecentes, ou que dele sejam fruto, funciona muito mais como uma

medida administrativa de desestímulo à prática dessa conduta do que como uma norma

propriamente penal, com natureza pura e simples de pena de perdimento.

Afinal, imagina-se que assusta a qualquer patrocinador que tenha a pretensão de se

tornar uma espécie de “empresário da droga” a perspectiva de perder todo o capital investido

e mais os lucros que obtiver com esse comércio. Nesse sentido, essa previsão no sentido do

perdimento de bens e valores empregados na prática dos delitos tipificados na Lei 11.343/06

funciona muito mais como ferramenta de gestão desse tipo de ilegalidade, atuando a serviço

do Estado enquanto medida de caráter intimidatório em face daqueles que pretendem fazer do

tráfico ilícito de entorpecentes uma atividade econômica.

Esse ponto de contato, a nosso ver, é capaz de enquadrar a Lei 11.343/06 no âmbito

de um contexto de expansão do Direito Penal, sobretudo sob a ótica de Silva Sánchez, posto

que, conforme demonstrado logo acima, atua tanto sobre um tipo de criminalidade, até certo

ponto, econômica (financiamento de uma atividade ilícita) e, ao mesmo tempo, se volta ao

combate de uma criminalidade globalizada, posto que possui um título específico que trata da

cooperação internacional no combate às drogas, abaixo colacionado:

Art. 65. De conformidade com os princípios da não-intervenção em assuntos

internos, da igualdade jurídica e do respeito à integridade territorial dos Estados e às

leis e aos regulamentos nacionais em vigor, e observado o espírito das Convenções

155

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades

pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 150.

115

das Nações Unidas e outros instrumentos jurídicos internacionais relacionados à

questão das drogas, de que o Brasil é parte, o governo brasileiro prestará, quando

solicitado, cooperação a outros países e organismos internacionais e, quando

necessário, deles solicitará a colaboração, nas áreas de:

I - intercâmbio de informações sobre legislações, experiências, projetos e programas

voltados para atividades de prevenção do uso indevido, de atenção e de reinserção

social de usuários e dependentes de drogas;

II - intercâmbio de inteligência policial sobre produção e tráfico de drogas e delitos

conexos, em especial o tráfico de armas, a lavagem de dinheiro e o desvio de

precursores químicos;

III - intercâmbio de informações policiais e judiciais sobre produtores e traficantes

de drogas e seus precursores químicos.

Esse dado, além do que se poderia supor quando da elaboração preliminar desse

estudo, põe a legislação em comento em linha com a mais acirrada corrente de expansão do

Direito Penal, em que pese a aparente tentativa de descriminalização nela contida a partir da

não cominação de pena privativa de liberdade para o porte de drogas para uso próprio.

Frise-se, além disso, que as iniciativas internacionais de combate à criminalidade, sob

uma perspectiva histórica, parecem nunca terem sido elaboradas para atender ás necessidades

dos países da América Latina. Conforme escreve Rosa Del Olmo em sua obra sobre a

Criminologia latino-americana:

Todavia, Candido Mendes de Almeida – que, lembramos, era delegado oficial na

Comissão Penal e Penitenciária – afirmou que as elevadas temperaturas em seu país

tornariam impraticável a reclusão celular. Nas conclusões, não se levou em conta

este importante comentário, que não atinge somente o Brasil, mas três quartos do

planeta. Não se levou em conta porque as “normas universais” são criadas de

acordo com a necessidade dos países hegemônicos e, neste caso, não interessam as

dificuldades que o clima tropical possa gerar, porque não afeta esses países.156

A realidade apontada revela a elaboração de normas internacionais que, muitas vezes,

não se coadunam com as necessidades dos países que as subscrevem. A assinatura de

Convenções que visam ao enfrentamento da problemática das drogas, p. ex., acaba levando

mais em consideração a preocupação dos países centrais com o estabelecimento e acúmulo de

poder nas mãos de narcotraficantes internacionais. A preocupação com questões internas,

próprias da realidade de cada país, acaba sendo deixada em segundo plano, comprometendo o

sucesso das próprias políticas adotadas.

156

DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro, Revan, 2004, pp. 114-115.

116

Ressalte-se, ainda, que a política de combate às drogas no mundo, mediante

cooperação internacional, foi forjada sobretudo pela influência norte-americana, que conferiu

à mencionada política um viés proibicionista, conforme anota Luciana Boiteux:

No plano internacional, a influência norte-americana foi decisiva na elaboração de

uma política proibicionista internacional de drogas, notadamente na Convenção da

ONU de 1961 sobre entorpecentes, que previa a implementação de uma política

única mundial, baseada no modelo norte-americano de incremento do controle

penal da droga, que previa como objetivo a ser alcançado a erradicação do consumo

e do tráfico.157

Esse proibicionismo relativo ao consumo de drogas, segundo a doutrinadora adrede

mencionada, se vincula a aspectos moralistas da sociedade norte-americana, em linha com

estereótipos sócio-culturais previamente construídos, conforme se extrai do fragmento

abaixo:

Por outro lado, de acordo com a literatura especializada consultada, nota-se um

destacado viés sócio-racial na política norte-americana de proibição e controle de

drogas. Nos EUA, a bandeira da reprovação moral ao uso de substâncias

psicotrópicas foi empunhada pelas ligas puritanas, que influenciaram fortemente a

inauguração do controle formal e a proibição de substâncias psicotrópicas,

associada a determinados grupos sociais minoritários e descriminados. Muito

embora o hábito de consumir drogas não fosse restrito a pessoas de baixo status

social, visto que muitas pessoas das classes média e alta também as consumiam,

havia uma propaganda oficial que relacionava o uso de drogas com determinados

tipo de pessoas: negros, mexicanos, chineses, tarados, desempregados e

criminosos.158

É o estereótipo social vinculado à drogas, em nossa concepção, o grande responsável

pelo tratamento penal dispensado ao usuário e, principalmente, ao traficante. Esse estereótipo

é um dos elementos que autoriza dizer que a legislação de drogas trata, em princípio, de uma

concepção própria do direito penal de autor, uma vez que leva em conta características

próprias do agente no momento da criminalização: classe social, antecedentes, fato de possuir

ou não uma ocupação fixa, ou seja, condições que nem sempre dependem da vontade livre de

quem é usuário de drogas ou se vê diante de uma imputação de tráfico.

Sob outro prisma, cabe ainda lembrar, quer se tratando do paradigma de

enfrentamento, quer se tratando do paradigma médico-sanitário, a legitimidade e, em certa

medida, a eficácia das medidas adotadas para lidar com a problemática das drogas no Brasil

depende de um prévio exame de aferição de critérios de razoabilidade e de proporcionalidade,

conforme preleciona Salo de Carvalho em sua análise dogmática da Lei 11.343/06: “A

necessária relação de simetria entre meio e fim, segundo a doutrina, deve orientar os

157

RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do

proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 53. 158

Ibidem, pp. 62-63.

117

operadores e os intérpretes do direito para constatar se em determinadas circunstâncias (casos

penais específicos ou conjuntos normativos) houve ou não ruptura na razoabilidade”159

.

Esse critério é da mais lídima lógica e se coaduna perfeitamente com um ambiente em

que prevaleçam, como devem sempre prevalecer, os princípios básicos da lógica discursiva

democrática, ao menos enquanto se viva sob a égide do Estado democrático de direito. Em

outra frente, no subitem seguinte, serão apresentadas reflexões acerca de como, e em que

medida, o traficante de drogas é apresentado enquanto um inimigo no contexto do paradigma

de combate às drogas que informou a elaboração da Lei 11.343/06.

4.2 O traficante de entorpecentes como inimigo

Todas as considerações feitas até aqui, em linha com o movimento de expansão do

Direito Penal e, como projeção desse mesmo movimento, com o Direito Penal do Inimigo,

permitem qualificar o traficante de entorpecentes como inimigo a partir da incorporação ao

sistema penal de diversas variáveis já abordadas ao longo desta exposição, dentre as quais se

encontram os próprios dispositivos da Lei 11.343/06.

Esse processo de eleição de uma categoria de indivíduos aos quais se dirige uma

repressão penal mais gravosa em relação àquela destinada aos demais se dá, principalmente,

mediante atuação de duas das variáveis abordadas ao longo deste estudo: i) a incorporação ao

sistema penal de um dado de seletividade dirigido contra indivíduos penalmente vulneráveis e

ii) o tratamento penal extremamente severo calcado na Lei 11.343/06 e na respectiva

interdição de benefícios jurídico-penais em tese aplicáveis ao traficante de entorpecentes.

Como é sabido, a seletividade do controle penal constitui um dado estruturante de

todos os sistemas penais, distribuindo-se dentro desses mesmos sistemas de forma mais ou

menos aparente, em maior ou menor grau. Essa seletividade é viabilizada, de um lado, pela

atribuição do rótulo de criminoso, muito bem explorada pela criminologia do labelling

approach, e, de outro, pela escolha de caráter prático que é efetuada pelas agências

componentes do sistema penal, punindo determinadas infrações e deixando outras impunes.

Tal escolha acaba sendo informada, conforme critérios práticos que orientam toda e

qualquer burocracia, pelo imperativo de se fazer o mais simples. E fazer o mais simples, em

matéria de persecução penal, significa punir quase tão somente a chamada “obra tosca da

159

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06), p. 208.

118

criminalidade”, produto da parca educação e dos igualmente parcos recursos de uma

categoria de oprimidos, aqui designados vulneráveis, para adotar a terminologia utilizada por

Salo de Carvalho em sua obra160

.

Dentre essa ampla categoria de vulneráveis, que no Brasil estatisticamente

corresponde a um grande número de criminalizados por furto e abortamento, encontram-se

também os traficantes de drogas e a crônica cotidiana, amplamente divulgada pela mídia, da

suposta barbárie por eles perpetrada. Essa faceta do discurso oficial encobre, em grande

medida, sobretudo em função do cultivado hábito de não se raciocinar de forma crítica, todo

um enredo direcionado no sentido da criminalização desses indivíduos.

Exemplo dessa tendência de criminalização baseada em estereótipos pode ser extraído

do estudo de Vera Malaguti Batista sobre drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro:

A visão que esses operadores têm das favelas do Rio de Janeiro revela as estruturas

inconscientes de um apartheid social que só vem se consolidando. Uma assistente

social do instituto Padre Severino afirma em seu relatório de estudo de caso em

1988(!): “O local onde reside – área favelada – propicia seu envolvimento com

pessoas perniciosas á sua formação moral”. Outro caso de 1988 em que a assistente

social do IPS fala da favela em sua síntese informativa: “Reside em área favelada,

num ambiente propício à marginalização”. Um oficial de justiça, também em 1988,

justifica a não entrega de uma intimação: “Área de difícil acesso e que por certo

porá em risco tantos quantos ali penetrarem, povoada de malfeitores, todos

atualmente temidos pelos moradores da localidade”.161

Tal presunção de periculosidade direcionada às comunidades carentes acaba lançando

sobre seus moradores a pecha de possivelmente perigosos e também de traficantes em

potencial, o que não é uma verdade. A soma de toda uma série de preconceitos cotidianos

atua como catalisador de uma reação cujo produto é a construção da imagem do traficante de

drogas enquanto inimigo.

Esse enredo apresenta pontos de contato iniciais na Constituição da República,

espraiando-se pelo ordenamento infraconstitucional via Lei de Drogas, principalmente

através de suas gravosas disposições atinentes à interdição de benefícios como sursis, indulto

e liberdade provisória, por exemplo. Tais disposições legais são claramente inspiradas pela

ideologia da defesa social, a qual é abordada por Rosa Del Olmo no seguinte fragmento de

sua obra:

“Era o ponto de chegada de uma longa revolução do pensamento penal e

penitenciário, que corresponde a uma ideologia caracterizada por uma concepção

abstrata e a-histórica da sociedade, onde se destacam fundamentalmente os

160

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06). 161

BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de

Janeiro, Revan, 2003

119

princípios do bem e do mal e da culpabilidade”, então necessária como

centralizadora e unificadora das “normas universais” que se iriam impor.162

Ressalte-se que a ideologia da defesa social não é algo novo, tendo surgido no pós-

guerra e passado a fundamentar os esforços internacionais de difusão do controle social.

Como apontado por Rosa Del Olmo:

Ainda em 1947, no mês de novembro, realiza-se na cidade de San Remo o I

Congresso de Defesa Social, graças aos esforços do Centro para o Estudo da Defesa

Social, fundado em 1945 em Gênova, por Filippo Gramatica. A finalidade principal

desse primeiro congresso – bem como do segundo, que se reuniria em 1949, em

Liège – foi discutir o novo movimento de defesa social, o que – embora não se vá

detalhar no presente trabalho – precisa ser detalhado como doutrina-chave da futura

transnacionalização do controle social.163

Em relação à transnacionalização do controle social, a autora em comento tece ainda

algumas considerações relativas à maneira pela qual esta fora operacionalizada:

Criavam-se, além disso, as bases para a futura transnacionalização do controle

social. Não era suficiente que cada organização difundisse internacionalmente seus

princípios, sobretudo quando exigia ideologicamente um denominador comum.

Decidiu-se, portanto, pela realização de reuniões qüinqüenais entre as quatro

sociedades, não somente para planejar seus respectivos congressos, mas para

coordenar seus esforços e discutir temas de interesse comum.164

Pode-se dizer, com base nos elementos colhidos logo acima, que a ideologia da defesa

social, como elemento de transnacionalização do controle social, é em grande parte

responsável pelo direcionamento de medidas de neutralização (tratamento penal típico de

inimigo) contra o homem delinqüente. Conforme Rosa Del Olmo prossegue expondo:

Nas resoluções do Congresso de San Remo apresenta-se a necessidade de serem

acolhidos internacionalmente os princípios da defesa social, sem que se explique

detidamente que princípios são esses. Marc Ancel, todavia, tenta fazê-lo quando

diz: “1º A defesa social pressupõe que os meios de manejar o delito deveriam ser

concebidos como um sistema de proteção da sociedade contra os fatos delituosos;

2º Essa proteção social é obtida por meio de um conjunto de medidas que

geralmente está fora do âmbito do direito penal e está delineada para „neutralizar‟ o

delinqüente, seja removendo-o ou segregando-o ou aplicando-lhe métodos

educativos reabilitadores”.165

A necessidade de neutralização do delinqüente chama a atenção porque, ao mesmo

tempo que permeia a idéia de defesa social, fundamenta a persecução penal ao inimigo, que

não deve ser tratado como criminoso comum, mas neutralizado em função de sua

162

DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia, pp. 119. 163

Ibidem, p. 118. 164

DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia, p. 134. 165

Ibidem, p. 120.

120

periculosidade. Sobre esse ponto, prossegue a autora em comento acerca dos princípios gerais

da ideologia da defesa social:

Existe uma clara conexão entre as idéias de defesa social e a noção de

periculosidade da União Internacional de Direito Penal; 3º A defesa social conduz à

promoção de uma política criminal que favorece o enfoque individual de

prevenção, e não o coletivo. Esta política de criminal está dirigida à socialização

sistemática do delinqüente; 4º Este processo de ressocialização somente é obtido

por uma crescente humanização do novo direito penal; 5º Esta humanização do

direito penal está baseada, tanto quanto possível, na compreensão científica do

fenômeno delituoso e na personalidade do delinqüente.166

Uma concepção que se baseia na personalidade do delinqüente em muito se aproxima

do conceito de direito penal de autor, fundamento do Direito Penal do Inimigo. A

compreensão científica do fenômeno delituoso e a consideração da personalidade do

delinqüente remontam a uma concepção ontológica de criminalidade, a qual, desde seus

primórdios, busca identificar no delinqüente alguém diferente dos demais.

O estigma imposto ao usuário de drogas, a partir da criminalização de sua conduta

(porte para uso próprio), bem como as severas medidas penais destinadas ao traficante de

entorpecentes pela Lei 11.343/06 demonstram que as disposições desse diploma legal estão

em linha com o que propõe a ideologia da defesa social.

Para uma síntese do que propõe a ideologia da defesa social, em termos gerais, Rosa

Del Olmo sintetiza sua exposição da seguinte forma: “A defesa social se imiscui diretamente

no problema essencial das relações entre o indivíduo e o Estado. Baseia-se em uma filosofia

política que tende ao individualismo social”167

.

Essa adoção de medidas de combate ao tráfico ilícito de entorpecentes, desde um

paradigma de enfrentamento, já explorado na seção precedente, encontra seu ponto de partida

na Constituição da República a partir da equiparação do tráfico ilícito de entorpecentes aos

crimes hediondos. Atente-se para o que escreve Salo de carvalho a respeito do tema:

Especificamente em relação ao tráfico ilícito de entorpecentes, a Constituição

determina sua equiparação aos delitos hediondos, estabelecendo a impossibilidade

de fiança, graça e anistia, bem como a responsabilização criminal dos mandantes,

executores e aos que, podendo evitar a prática de do crime, se omitirem (art. 5º,

XLIII). Delineia a Constituição, portanto, o máximo grau de resposta punitiva ao

sistema de direito e de processo penal brasileiro com a adjetivação de nova espécie

de delito – crime hediondo, regulamentado posteriormente pela Lei 8.072/90 -,

estendendo seus efeitos ao comércio ilegal de drogas, à tortura e ao terrorismo.168

166

DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia, p. 120. 167

Ibidem. 168

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06), p. 193.

121

Esse comando constitucional, de per si, já agrava a situação daqueles que se vejam

envolvidos na prática do tráfico ilícito de entorpecentes. A Lei 8.072/90, ao dispor sobre tais

crimes, vem concretizar no ordenamento infraconstitucional o programa criminalizador

originalmente previsto na Carta Magna. Por derradeiro, a Lei de Drogas, ao vedar a

concessão de determinados benefícios aos implicados em crimes nela tipificados, dirige

contra esses indivíduos uma resposta penal especialmente gravosa em relação a outros delitos

que não gozam do mesmo tratamento penal e, no entanto, destinam-se à proteção do mesmo

bem jurídico, qual seja, a saúde pública169

.

Esse tratamento diferenciado que, a nosso ver, marca nitidamente a eleição de um

inimigo e, de outro lado, a clara restrição de direitos e garantias fundamentais, encontra-se,

sem sombra de dúvida, no marco teórico de um movimento de expansão do Direito Penal. O

trecho abaixo ilustra com precisão tal afirmação:

Maximizou-se o espectro de incidência do direito penal aos atos de discriminação

(art. 5º, XLI); à prática de racismo (art. 5º, XLII), aos crimes hediondos, tortura,

tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e ao terrorismo (art. 5º, XLIII), à ação

de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado de direito (art. 5º,

XLIV). Neste local da Constituição coabitam, portanto, normas distintas com

funções igualmente diferenciadas.170

Essa maximização do espectro de incidência do Direito Penal sem dúvida corresponde

a um reflexo do movimento global de expansão do Direito Penal, objeto de investigação

científica para Gracia Martín171

e Silva Sánchez172

, previamente analisadas. Antes de

representar um consenso, conforme propõe Silva Sánchez, ou uma tendência natural das

legislações da União Européia, conforme propugna Gracia Martín, essa resposta mais severa

traduz anseios dos mais diversos momentos de comoção social.

Esse eterno mal a ser veementemente combatido pelas instâncias de poder, dentro de

um paradigma de enfrentamento, encontra sua personificação no traficante de drogas e em

169

Note-se que os crimes contra a saúde pública, dispostos nos arts. 267 e seguintes do Código Penal, não tem

interditados os mesmos benefícios que a Lei de Drogas não faculta aos crimes nela tipificados e que tutelam,

em tese, o mesmo bem jurídico. Observe-se que a dosimetria penal é igualmente mais branda, sobretudo nos

tipos de “Emprego de processo proibido ou de substância não permitida” (art. 274 do Código Penal) ou,

ainda, de “Outras substâncias nocivas à saúde pública” (art. 278 do Código Penal), tipos que, a nosso ver, se

aproximam de determinadas modalidades previstas na Lei de Drogas. 170

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06), p. 193. 171

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para

a crítica do discurso de resistência. 172

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades

pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011.

122

todo o estereótipo que se lhe atribui173

. Esse indivíduo, selecionado dentre os vulneráveis, os

desvalidos, aqueles que muitas vezes tem sede de justiça ou, para utilizar a terminologia de

Merton, dentre aqueles que não tiveram acesso aos meios institucionais tradicionais para

aquisição dos bens da vida e encontraram no crime uma solução, é erigido ao ápice das

conjecturas acerca de um criminoso muito perigoso. Essa imagem fortemente marcada pelo

estereótipo criminal exposto, divulgada diariamente nos telejornais, representa um pilar

fundamental para a naturalização do dado de seletividade do sistema penal e para a

construção do inimigo como mal a ser combatido.

Ultrapassado esse primeiro ponto atinente à seletividade dos sistemas penais e à

atribuição do rótulo de criminoso, passar-se-á à programação incriminadora que viabiliza, em

termos práticos, a perseguição do inimigo. Salo de Carvalho aponta a existência de

“microssistemas jurídicos”, fora das legislações codificadas, ou seja, legislação penal

extravagante, como dito pela doutrina pátria, como uma das causas da acentuação da

punitividade no âmbito do sistema penal brasileiro. Observe-se o que anota este autor a

respeito do tema:

Inegável, portanto, a constãncia do horizonte maximizado de incriminação,

circunstância potencializada pela fragmentação e autonomia do direito penal das

drogas dos estatutos penais. Percebe-se, no processo histórico, como conseqüência

direta da descodificação, a conversão das leis especiais em direito penal de

diferenciado valor. Formam-se microssistemas jurídicos nos quais os rígidos

princípios da lei codificada são flexibilizados, quando não absolutamente ignorados,

acentuando rupturas com a base garantista do direito penal, conforme diagnostica

Zaffaroni: „la legislación penal latinoamericana padece de um mal endêmico, que

son lãs „leyes penales especiales‟ cuya proliferación acarrea um enrome

componente de inseguridad juridica‟.”174

Essa questão, aparentemente apenas de técnica legislativa, acaba por redefinir toda

uma estrutura jurídico-penal pensada a atender imperativos de garantia. Uma vez que se retira

grande parte, ou a maior parte, talvez, da legislação penal de dentro do Código Penal e se

deixa a cargo do legislador fazê-lo, de forma esparsa, via legislação penal extravagante, o

conjunto da obra certamente perde em termos de sistematização. E é nesse vácuo discursivo,

aparentemente formal, que o poder punitivo encontra meios de se expandir, sempre em

desfavor dos inimigos, in casu, do traficante de entorpecentes, alvos preferenciais da

persecução penal do Estado.

173

Ver BINGHAM, Tileodore A. Foreign Criminals in New York, pp. 383-394 quanto ao papel fundamental do

estereótipo, que, no caso deste artigo, assume contornos étnicos, para a construção de uma imagem geral da

criminalidade. 174

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06), p. 197.

123

Em relação à “base garantista do direito penal”, apontada por Salo de Carvalho no

fragmento acima, a Profª Junya Barletta tece algumas considerações em sua dissertação:

O modelo penal garantista é uma construção de Luigi Ferrajoli a partir de uma

profunda revisão crítica do chamado modelo penal garantista clássico, de matriz

ilustrada. Percorrendo não apenas as bases epistemológicas do modelo clássico,

mas também seus fundamentos axiológicos externos (critérios de justificação ético-

política) e internos (jurídicos), o autor visa alcançar um modelo penal que permita

fundamentalmente legitimar ou deslegitimar os sistemas jurídico-penais concretos

ou mesmo determinados institutos penais e processuais penais, de acordo com os

parâmetros do Estado Constitucional de Direito.175

Esse modelo penal garantista é o objeto das investidas da expansão do Direito Penal,

em geral, e do Direito Penal do Inimigo, em particular, que buscam o questionamento de

alguns dos seus postulados básicos. Nesse sentido, pode-se entender as “rupturas com a base

garantista do direito penal”, apontadas em Salo de Carvalho, como o questionamento desse

modelo inicial, exposto acima, bem como dos parâmetros constitucionais que o orientam.

Outro elemento importante passível de ser extraído da dissertação citada diz respeito

aos limites para aplicação da lei penal:

A concepção convencionalista encontra-se em dois legados ou ganhos

fundamentais para a teoria clássica do direito penal e para a tradição jurídica

liberal. Primeiramente, a noção de liberdade negativa (como não-interferência):

como a lei penal define com rigidez as condutas proibidas e conseqüentemente

puníveis, toda conduta que não é definível pela lei como infração penal é permitida,

ou seja, encontra-se na esfera de liberdade de atuação do cidadão. O segundo

legado é a idéia de igualdade jurídica em seu sentido formal, ou seja, a igualdade de

todos perante uma lei que vincula, de forma precisa, uma pena determinada a uma

conduta determinada, sem distinção das pessoas que a cometeram, evitando assim

discriminações apriorísticas referentes à personalidade e às condições subjetivas

antropológicas, políticas ou sociais do imputado.176

Observa-se que os limites à atuação da lei penal expostos acima, estabelecidos

segundo a concepção de Ferrajoli, são sistematicamente desconstruídos a partir do Direito

Penal do Inimigo. O estabelecimento do conceito de inimigo necessariamente rompe com o

postulado da igualdade de todos perante a lei, pondo em cheque os pilares da concepção

supra. Como se vê, o Direito Penal do Inimigo mina o garantismo penal em suas bases ao

propor uma revisão de sua fundamentação.

A persecução penal mais gravosa dos inimigos, que é tema central deste subitem,

também possui implicações do ponto de vista da razoabilidade e da proporcionalidade,

conforme muito bem anota Salo de Carvalho:

175

BARLETTA, Junya Rodrigues. Fundamentos críticos para a deslegitimação da prisão provisória. Orientador

Prof. Dr. João Ricardo Wanderley Dornelles. Rio de Janeiro, 2007, p. 31. 176

Ibidem, p. 35.

124

Em decorrência do postulado da proporcionalidade em sentido amplo, o critério

ideal de definição legal e judicial das sanções deve ser aquele fornecido pela

equação dano-pena. No momento em que a teoria do bem jurídico passou a ser o

principal recurso de interpretação dogmática, não se admite que a resposta penal

deixe de guardar estreita relação de simetria com a lesão produzida pela conduta

incriminada. Percebe-se, pois, a intersecção entre dois clássicos princípios do

direito penal: princípio da proporcionalidade e princípio da ofensividade. Assim,

não apenas o critério legislativo de cominação abstrata mas, igualmente, o judicial

de aplicação individualizada, são balizados pela ponderação e ajuste da pena ao

dano. Não por outro motivo o direito penal se antecipou aos demais ramos do

direito brasileiro na discussão sobre o tema da proporcionalidade.177

Nesse sentido, extrai-se do fragmento supra, em síntese, que a pena há de ser

proporcional à lesão provocada ao bem jurídico penalmente tutelado pela conduta criminosa.

Observa-se, entretanto, que o Direito Penal do Inimigo propõe uma resposta exacerbada à

conduta criminosa do agente em razão de um juízo prévio elaborado, frise-se, em função de

estereótipos que não condizem com a realidade.

Em nenhum momento a maior reprovação da guarda qualquer relação com a lesão

provocada ao bem jurídico tutelado pela norma. Esse fato representa uma ofensa ao princípio

da proporcionalidade, contaminando o arcabouço teórico do Direito Penal do Inimigo de um

vício insanável: o desrespeito de um princípio cardeal em uma esfera tão relevante quanto a

esfera penal.

Outra posição que corrobora a existência de estruturas próprias do Direito Penal do

Inimigo na legislação nacional sobre drogas, igualmente colhida da obra de Salo de Carvalho,

pode ser encontrada na doutrina espanhola, trazida e colocada em discussão e análise pelo

autor em comento:

Muñoz Conde, ao avaliar a tendência universal de intervenção omnicompreensiva

em todas as fases do ciclo da droga – “La penalización de todo comportamiento que

suponga uma contribuición, por mínima que sea, a su consumo -, alerta para os

resultados autoritários que tal perspectiva produz, notadamente em relação á sua

incorporação nas decisões judiciais. A recepção da interpretação omnicompreensiva

pelos Tribunais, agregada à estrutura aberta da tipicidade no direito penal das

drogas, induz a introdução de critérios ampliadores das hipóteses de criminalização.

Assim, advoga Muñoz Conde a necessidade de „interpertación restrictiva em base al

princípio de proporcionalidad que atempera la excesiva amplitud de esos conceptos,

excluyéndose, además del autoconsumo, lãs [condutas] adecuadas socialmente o lãs

que no tienen capacidad de expansión.‟”178

Quanto a esse modelo “omnicompreensivo” de interpretação da Lei de Drogas, Salo

de Carvalho prossegue ainda tecendo mais algumas considerações:

Contudo o modelo de intervenção omnicompreensivo (Muñoz Conde) que

prescinde os sistemas proibicionistas, cujo escopo é a punibilidade integral do ciclo

da droga – da mínima contribuição ao consumo -, produz leis penais que ofuscam

177

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06), p. 206. 178

Ibidem, p. 210.

125

os critérios mínimos de razoabilidade. No caso do direito penal das drogas, o efeito

é a criminalização de condutas essencialmente preparatórias.179

O tipo penal inserto no art. 34 da Lei de Drogas traduz com perfeição a incriminação

de meros atos preparatórios, indo ao encontro da lição de Salo de Carvalho a respeito do

tema. São tecidas outras considerações ainda a respeito dessa resposta penal ampla, que visa a

uma, por assim dizer, punitividade total do inimigo eleito.

Observe-se o que escreve o Profº Salo a respeito do art. 34 da Lei 11.343/06:

O art. 34 da Lei de Entorpecentes não apenas expõe sua natureza de ato preparatório

ao vincular os verbos nucleares aos instrumentos e objetos de destinação à produção

de drogas, violando o princípio da lesividade, como cria tipo penal vago e

impreciso, em frontal ofensa à taxatividade (previsibilidade mínima). Greco Filho,

em comentário ao art. 13 da Lei 6.368/76, diagnosticava a indeterminação desta

espécie de tipo penal incriminador de comércio e manutenção de maquinário e

instrumento de preparação de entorpecentes em face de „não existirem aparelhos de

destinação exclusivamente a essa finalidade‟”.180

Essa incriminação de atos evidentemente preparatórios, uma vez que não apresenta

dado que indique lesão, ao menos imediata, a determinado bem jurídico, parece ter sido fruto

de uma preocupação do legislador no sentido de não deixar impunes quaisquer tentativas de

auxílio ou fornecimento de instrumental e matéria prima ao tráfico ilícito de entorpecentes,

como estratégia para promover o isolamento do inimigo e sua sucumbência pela falta de

suprimentos. Esse fato seria mais um indício a apontar para a adoção e o direcionamento de

medidas de combate ao inimigo (traficante de entorpecentes) pela Lei 11.343/06.

Em relação à proliferação de verbos nos núcleos dos diversos tipos penais que

compõem a Lei 11.343/06, cabem considerações de índole constitucional. Essas

considerações dizem respeito aos direitos fundamentais, com viés de crítica à persecução

penal escancarada dirigida aos inimigos do Estado.

Em comentário ao art. 33, § 2º da Lei 11.343/06, que incrimina a indução, instigação,

auxílio e apologia ao uso de drogas, Salo de Carvalho tece as seguintes considerações:

Outro grave problema decorrentes desta estrutura de tipicidade aberta e volátil –

fato que por si só gera dúvidas quanto a sua constitucionalidade – é a criminalização

da livre manifestação do pensamento, tanto por ações de grupos antiproibicionistas

quanto por exposição de idéias no ambiente artístico e cultural.181

A análise em questão foi feita no contexto de crítica à criminalização do movimento

internacional antiproibicionista conhecido no Brasil como “Marcha da Maconha”, bem como

em relação ao indiciamento de músicos como Planet Hemp, MV Bill e MC Colibri por

179

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06), p. 238. 180

Ibidem, p. 238. 181

Ibidem, p. 258.

126

apologia ao crime182

. Levando em consideração que a Carta Magna veda expressamente a

criminalização do crime político ou de opinião, e considerando também que a vedação ao

anonimato é corolário da livre manifestação do pensamento em nosso sistema, tipos penais

como os ora em comento precisam ser revistos à luz de uma interpretação conforme à

constituição.

Sustentar o contrário significa afirmar que pode haver lei, em matéria penal, o que é

mais grave, editada contra a vontade do legislador constitucional, o quê não é possível.

Entretanto, sob o prisma de análise ora eleito, essas estratégias de criminalização podem ser

interpretadas como mais uma maneira de combater eficientemente o tráfico ilícito de

entorpecentes e os inimigos do Estado que militam em suas fileiras, no contexto de uma

práxis penal informada pelo funcionalismo próprio do Direito Penal do Inimigo.

Outro elemento que milita em favor da tese ora abraçada é a possibilidade de

aplicação de pena e de outras medidas de caráter punitivo em relação a um mesmo fato

tipificado na Lei 11.343/06, conforme previsto no art. 27 desse diploma legal. Em relação a

essa possibilidade de cumulação, que configura bis in idem, Salo de Carvalho escreve ainda

algumas ilustrativas linhas:

Todavia a Criminologia Crítica demonstra exaustivamente que a tendência das

agências de punitividade é ultrapassar a barreira da legalidade, incrementando

metarregras para exceder nas formas de punir. Dessa forma, as possibilidades

excepcionais de cumulatividade, visto a aplicação exclusiva constituir direito

subjetivo do acusado, pois menos aflitiva, abrem espaço para que a cominação

conjunta de penas e de medidas se estabilize como regra, criando verdadeiras

dobras punitivas no sistema.183

Essa pluralidade nas formas de punir, mediante a criação das referidas “metarregras”,

nada mais é senão uma estratégia do poder punitivo para desferir sua sanha expansionista

contra os inimigos do Estado. O traficante de entorpecentes, nesse contexto, torna-se alvo de

uma resposta penal anômala, não compartilhada pelos demais infratores de normas penais.

Nesse sentido, é correto afirmar que este inimigo, primeiramente eleito pelo Estado

para ocupar tal posição e ato contínuo perseguido, recebe, de fato, um tratamento penal

diferenciado que o define e qualifica como tal, conforme sustentado até aqui pelos mais

diversos fundamentos expostos.

182

As referências e o histórico desses acontecimentos podem ser encontrados em CARVALHO, Salo de. A

política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06), pp. 262-265. 183

CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei

11.343/06), p. 281.

127

CONCLUSÃO

O quadro geral da expansão do Direito Penal, conforme tratado no Capítulo 1,

apresenta toda uma gama de questões controversas e de críticas que se podem formular. Em

linha com o que propõe esse movimento de ampliação dos domínios do poder punitivo, o

Direito Penal do Inimigo se apresenta como ferramenta a serviço do Estado em termos de

persecução penal. Essas e outras considerações foram amplamente exploradas ao longo do

estudo que ora se conclui e em muito auxiliaram no sentido de, ao menos, dar mais um passo

em direção do aprofundamento de um tema capaz de suscitar tantas controvérsias e servir de

base para reflexão acerca de uma série de dilemas penais contemporâneos.

Tendo analisado as posições de Gracia Martín e de Silva Sánchez a respeito da

expansão do Direito Penal, é possível se chegar a algumas linhas conclusivas acerca desse

movimento que em muito pode impactar a constituição do Estado democrático de direito tal

qual o conhecemos hoje. Em primeiro lugar, é necessário comparar o que escreveram esses

dois autores a respeito do tema.

De certa forma e em linha com o que já foi ressaltado, as posições assumidas pelos

penalistas mencionados convergem sob o prisma das idéias centrais e da necessidade

percebida de se ampliar o âmbito das condutas penalmente relevantes. Em ambos os autores,

a construção de um novo Direito Penal, completamente reformulado e de viés expansionista,

passa por uma revisão do paradigma clássico do Direito Penal, a qual visa a alcançar, mais do

que uma adaptação, um produto sensivelmente diferente daquele que existia no ponto de

partida.

Nesse sentido, o Direito Penal clássico, de garantias, se torna matéria prima para a

construção de um Direito Penal de caráter expansionista, destinado a enfrentar os desafios do

mundo globalizado, algoz da criminalidade econômica e da grande criminalidade organizada.

Dessa forma, faz-se a transição do Direito Penal, do papel de redutor do poder punitivo, para

o papel de elemento de combate à criminalidade.

Tal transição, ao pôr em cheque o papel do Direito Penal, introduz novos desafios,

tanto práticos quanto dogmáticos e acadêmicos, em um campo de observação já bastante

controverso. A transição de um Direito Penal redutor e garantista para um Direito Penal de

combate, nos moldes propostos, geraria a necessidade de rever os princípios básicos que

fundamentam esse ramo do direito. Entretanto, entendemos a questão de modo oposto: antes

de se verificar a legitimidade de um movimento de expansão do Direito Penal, é necessário

128

verificar a sua compatibilidade com todo um sistema de garantias previamente constituído e

em funcionamento.

Esse ideal de expansão do Direito Penal, que se afigura até certo ponto heróico, pois

esbarra na quase absoluta imunidade daqueles que delinqüem ao abrigo de uma condição

econômica privilegiada, carece de mecanismos efetivamente capazes de lhe conferirem uma

plena realização no mundo dos fatos. Com isso se quer dizer que, tanto em Silva Sánchez,

ainda que em menor grau, quanto em Gracia Martín encontra-se uma proposta expansiva

carente da indicação de meios capazes de lhe dar efetividade. São apontadas muitas direções,

sem o oferecimento de nenhuma alternativa concreta capaz de tirar daquelas páginas o meio

idôneo para expandir o Direito Penal ou, ao menos, fazê-lo sem romper com o Estado

democrático de direito e inaugurar, de forma imediata, o Estado de exceção.

Conforme já ventilado, outro prisma crítico relevante é o das implicações da expansão

do Direito Penal sobre o Estado democrático de direito. Não é admissível que as instituições

democráticas, assim como a própria Constituição da República, fiquem incólumes às

propostas de expansão abordadas nas linhas precedentes. A adoção de tais propostas,

enquanto programa concreto, transcende o Direito Penal e é capaz de desencadear

desdobramentos em esferas inicialmente não previstas.

Para evitar a multiplicação de exemplos, pense-se nos desdobramentos tributários que

uma proposta de administrativização do Direito Penal poderia ter. Considerando que as

garantias, em matéria tributária, são essencialmente inspiradas nas garantias penais184

,

colocar em curso um movimento de administrativização do Direito Penal que transbordasse

para a seara tributária, com ampliação das atribuições de cunho sancionador do Fisco, poderia

inibir a atividade econômica, acarretando, por exemplo, perda de competitividade no mercado

externo e desestímulo da atividade empresarial, com todos os problemas sócio-econômicos

que o acompanhariam.

Uma problemática igualmente relevante a abordar é a questão da inserção do Direito

Penal do Inimigo no quadro geral da expansão do Direito Penal. Gracia Martín

expressamente identifica o Direito Penal do Inimigo enquanto movimento expansionista

autônomo, dentre outros que também nomina e explica. A abordagem de Silva Sánchez sobre

o tema é diferenciada na medida em que identifica apenas dois movimentos de expansão do

Direito Penal dentro do quadro geral de consenso que analisa: uma das vertentes expansivas é

184

Ver, por exemplo, os princípios da isonomia, da legalidade e da taxatividade em matéria tributária.

129

aquela que se ergue diante da criminalidade econômica e, a outra, da criminalidade

globalizada.

Cada uma dessas categorias comporta muitas modalidades delitivas diferentes, que

normalmente e em ambos os casos se dão em escala global: criminalidade das grandes

organizações, tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro, etc. Todas essas condutas, por se

darem no âmbito da associação para o cometimento de crimes ou, por outras palavras, pelo

concurso de pessoas organizado hierarquicamente, desafiam novos critérios de imputação de

cunho coletivo.

Tal imputação coletiva é uma questão que se coloca diante do Direito Penal atual, que

requer a individualização das condutas de cada agente para fins de aferição da culpabilidade.

Essa individualização atende a um critério de justiça e evita igual dosimetria de pena para os

mentores, p. ex., e para agentes cuja participação se afigura reduzida em relação à atuação

dos demais. A introdução de critérios de imputação coletiva configuraria, de fato, expansão

do Direito Penal, sobretudo quanto às penas aplicadas aos crimes cometidos por organização

criminosa. Nesses casos, a tipificação da mera conduta de pertencer a uma organização

criminosa, ao criar uniformidade com relação aos seus membros, exclui da culpabilidade a

posição ocupada na organização185

.

Apesar de Silva Sánchez defender que a expansão do Direito Penal se dirigiria muito

mais em desfavor dos poderosos que cometessem crimes, nossa posição é crítica quanto a

essa afirmação. Sem entrar em considerações relativas ao caráter seletivo do sistema penal, já

abordadas, ao se assumir a tendência expansiva natural do Direito Penal, facilmente se

percebe que a expansão do Direito Penal pode alcançar, em maior grau, não só a

criminalidade dos powerful, mas também acentuar a persecução penal aos powerless.

Esse dado, por si só, é capaz de aumentar o grau de seletividade da persecução penal

que existe em todos os sistemas. A par dessas considerações de cunho teórico, outro ponto

que se pode questionar é a afirmação categórica inicial sobre a eficácia de um resultado que

só se verificará posteriormente, na exata medida do avanço da expansão do direito penal. Por

outras palavras: não há evidências mais concretas a favor da tese de que a expansão do

Direito Penal se dará em desfavor dos poderosos que cometem crimes.

Ao contrário: o dado de seletividade que estrutura os sistemas penais em todo o

mundo permite inferir que qualquer expansão criminalizante se dá, preferencialmente, em

185

Exemplo desse fato no Brasil é o crime de quadrilha ou bando (art. 288, CP), cujo tipo não gradua penas na

exata proporção da maior ou menor participação na organização criminosa, ficando a cargo do juiz, segundo

sua própria apreciação subjetiva, determinar o grau de participação de cada agente e fixar a medida de sua

culpabilidade.

130

desfavor daqueles que, por possuírem uma condição econômico-social vulnerável,

naturalmente possuem menos meios de defesa.

Ao longo da pesquisa, foi possível perceber que a doutrina brasileira carece de maior

desenvolvimento do tema abordado, haja vista ter sido a quase totalidade das obras

pesquisadas de autores estrangeiros. O conceito legitimador do Direito Penal do Inimigo em

relação à persecução penal, apresentada no começo deste trabalho, tem a função de ocultar a

sua própria existência e, assim, infiltrar-se sub-repticiamente no interior de um Direito Penal

de garantias, ao qual deve corresponder o modelo penal pátrio, tudo isso dentro de uma

perspectiva redutora tal qual proposta por Nilo Batista.

A infiltração do Direito Penal do Inimigo, enquanto paradigma para a elaboração de

normas penais no âmbito do Direito Penal brasileiro, deve ser objeto de denúncia pelos

doutrinadores nacionais, que, a nosso ver, tem dedicado pouca atenção a essa temática. Caso

este trabalho possa contribuir, ainda que de forma mínima, para voltar a atenção no sentido

da necessidade de se conhecer melhor e de se refletir criticamente sobre o Direito Penal do

Inimigo, seus objetivos se terão esgotado ao menos em parte.

Em relação ao problema apresentado e à hipótese formulada para respondê-lo, pode-se

concluir com segurança pela confirmação de tal hipótese. O traficante de entorpecentes,

mediante aplicação da Lei 11.343/06, recebe tratamento penal típico de inimigo porque, na

forma de tal lei, lhe são destinadas respostas penais mais gravosas do que aquelas

normalmente destinadas ao restante da clientela penal em geral.

A confirmação, pelo menos no plano teórico, da hipótese levantada permite constatar

alguns desdobramentos que o tratamento penal típico de inimigo destinado aos traficantes de

entorpecentes pode, imediatamente, trazer à reflexão. Em primeiro lugar, no que tange ao

princípio constitucional da isonomia, observa-se que a adoção de uma estratégia de

persecução ao inimigo, uma vez consagrada em lei como o é na Lei de Drogas, rompe com a

necessária igualdade formal que deve existir entre os indivíduos.

Por todo o exposto, e conforme abordado incidentalmente ao longo deste trabalho, o

quadro geral do sistema penal no Brasil, em consonância com a Carta Constitucional de 1988,

não comporta alternativas que visem à ampliação do poder punitivo, como é o caso da

expansão do Direito Penal, do Direito Penal do Inimigo e da administrativização do Direito

Penal. As estatísticas de aprisionamento, o quadro caótico de superlotação das prisões e as

freqüentes denúncias de maus tratos no âmbito carcerário provam que esse sistema penal

carece de uma reforma ampla, de aprimoramento de seu viés garantista.

131

Tal reforma deve conciliar a prevalência de direitos e garantias fundamentais com

uma pauta de descriminalização gradativa de condutas como o porte de drogas para consumo

próprio. Condutas como essa, que não transcendem o âmbito pessoal do agente, poderiam ser

descriminalizadas em definitivo mediante a imposição de uma cláusula de barreira, com base

em critérios quantitativos. Essa medida ajudaria a tipificar o porte para uso próprio com base

em uma determinada quantidade de droga em poder do agente, desde que constatada, na

hipótese, o não exercício da mercancia em relação aos entorpecentes transportados186

.

Certamente, uma alternativa penal que aponte no sentido de punições mais severas,

como atualmente ocorre, para o delito de tráfico ilícito de entorpecentes não é a mais

adequada caso se queira romper com o paradigma de confronto que impera em relação à

questão das drogas no Brasil, o qual apresenta tão alto custo em vidas humanas desperdiçadas

e em recursos públicos equivocadamente investidos.

Um paradigma de tutela sanitária da problemática das drogas é igualmente

inapropriado porque estabelece a segregação do dependente e sua progressiva tutela perante

as instituições estatais de controle hospitalar, traduzindo uma verdadeira capitis diminutio

desacompanhada do devido e necessário processo legal. Além disso, essa abordagem carrega

consigo a pressuposta periculosidade do agente e uma solução no sentido da neutralização

deste.

Uma terceira via, que constituiria alternativa viável tanto ao paradigma de

enfrentamento quanto ao modelo médico sanitário, poderia ser traduzida por um amplo

movimento de descriminalização do consumo próprio de entorpecentes, acompanhado das

devidas iniciativas de conscientização da população acerca de seus efeitos. Entretanto, essa

iniciativa teria de ser feita no sentido de informar a população, não no sentido de demonizar

os entorpecentes, de modo a não interferir no direito de autodeterminação que é projeção

necessária dos direitos inerentes à personalidade humana.

O “combate” ao tráfico ilícito de entorpecentes, que se alimenta principalmente da

extrema pobreza e da quase ausência do Estado nas comunidades carentes, poderia mudar de

estratégia atacando, entre outros fatores, as causas desse problema, dentre as quais as duas já

apontadas. A questão das drogas no Brasil também perpassa questões econômicas e sociais

próprias da realidade nacional. Figuras como o consumo compartilhado de entorpecentes, por

exemplo, poderiam ser equiparadas ao uso próprio para efeitos de descriminalização. Em

sentido mais amplo, o financiamento ao tráfico ilícito de entorpecentes poderia ter

186

A proposta é apresentada em CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo

criminológico e dogmático da Lei 11.343/06), sendo a Espanha um exemplo de país que a adota.

132

conseqüências penais patrimoniais, como penas de perdimento e multas, ou, se tratando de

pessoas jurídicas, inabilitação para licitar com entes públicos por um determinado período de

tempo ou restrições para a concessão de alvarás de funcionamento.

Afigura-se essencial, sobretudo, apontar aqui, por mais que a reação afirme o

contrário, que há alternativa aos principais paradigmas – médico-sanitário e de enfrentamento

– então vigentes no que tange à abordagem da questão das drogas no Brasil. E, certamente,

essa alternativa não passa pelo recrudescimento da legislação penal, inspirado quer pela

expansão do Direito Penal, quer pelo Direito Penal do Inimigo.

Como potencial resposta ao problema proposto na introdução deste trabalho, foi eleita

a seguinte: o traficante de entorpecentes é tratado como inimigo com base na Lei 11.343/06

porque recebe tratamento penal diferenciado em relação ao tratamento penal dispensado aos

criminosos que cometem crimes igualmente ofensivos á saúde pública, que é o bem jurídico

tutelado pela Lei de Drogas. Tal tratamento penal pode ser sentido principalmente nos artigos

27; 28; 33, §2º; 34; 44, parágrafo único e 48, § 5º, todos da Lei 11.343./06, que atribuem uma

resposta penal extremamente gravosa aos praticantes das condutas tipificadas na lei em

comento.

Esses dispositivos legais podem ser materialmente colocados sob a égide do Direito

Penal do Inimigo porque consagram um tratamento penal peculiar conferido a uma

determinada categoria de indivíduos em função tanto do crime que cometeram quanto dos

estereótipos sociais que os acompanham. Todo esse instrumental normativo faculta ao Estado

segregar o usuário e encurralar os traficantes de drogas, principalmente os pequenos

traficantes, cuja organização incipiente sequer autoriza sua inclusão no rol de atividades que

podem ser materialmente definidas como crime organizado.

O estabelecimento desse amplo programa incriminador ocorre a partir do art. 5º,

inciso XLIII da Constituição da República, que define o tráfico ilícito de entorpecentes como

crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia. Por assim dizer, a “genealogia

constitucional” deste delito marca sua persecução mais gravosa desde o nascimento da atual

Carta Magna brasileira.

No descortinar deste quadro crítico, em que vários desafios se apresentam, uma

tomada de posição deve se dar de maneira cautelosa e de forma a preservar a integridade de

todo o sistema de direitos e garantias processuais e penais com as quais contamos. Assumir

uma postura de aceitação irrefletida e imediata do suposto consenso com o qual contaria a

expansão do Direito Penal significaria renunciar ao exercício capaz de evitar pesados

retrocessos em matéria penal. O “penso logo existo” dos filósofos assume, nesse ponto e mais

133

do que em nenhum outro momento, uma concretude capaz de evitar a ruptura do Estado de

direito, com todo o seu aporte de garantias, ou de legitimá-la, dependendo da forma, mais ou

menos refletida, com que seja exercido.

134

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