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INTRODUÇÃO
Muito se tem controvertido na doutrina penalista acerca da expansão do Direito Penal,
de modo geral, e, em especial, do Direito Penal do Inimigo em nossos dias. No contexto de
uma teoria que classifica indivíduos que cometeram determinados tipos de crime como
criminosos diferentes dos demais, surgem tormentosas discussões. Afinal, como enquadrar
um arcabouço teórico que sugere o desenho, ainda que sutil, de um direito penal de autor no
âmbito do ordenamento jurídico-penal brasileiro, calcado no direito penal do fato? De outro
lado, como ceder às investidas de constantes propostas de expansão do Direito Penal dentro
de uma perspectiva redutora e garantista, capaz de assegurar o necessário respeito aos direitos
e garantias fundamentais?
É essa dicotomia entre direito penal do fato e direito penal de autor que
permeará o desenvolvimento da análise do Direito Penal do Inimigo enquanto uma das
vertentes do movimento de expansão do Direito Penal, de um lado, e como estratégia de
enfrentamento e neutralização dos inimigos do Estado (in casu, traficantes de entorpecentes),
do outro.
As acirradas discussões teóricas em torno da legitimidade e validade do Direito Penal
do Inimigo justificam uma análise mais detida do assunto, principalmente em sede de um
trabalho monográfico cujo objetivo é voltar as lentes de análise a um ponto ainda mais
específico. Mas não seria possível analisar esta teoria, em toda a sua extensão, se esta não
fosse considerada enquanto parte de um todo mais amplo e orgânico, qual seja, a expansão do
Direito Penal, que é objeto de análise no Capítulo 1 deste trabalho monográfico.
O objetivo da monografia que ora se apresenta consiste em expor, da forma mais
completa possível dentro dos lindes próprios desse tipo de escrito, a doutrina do Direito Penal
do Inimigo enquanto parte de um movimento maior de expansão do Direito Penal, bem como
sua função legitimadora do tratamento penal que vem sendo dispensado aos traficantes de
entorpecentes com base na Lei 11.343/06.
Sem pretensões de adentrar a complexa seara dos elementos constituintes da política
criminal do Estado, a análise ora empreendida se conteve nos limites dos institutos jurídicos,
previstos na Lei 11.343/06, voltados à neutralização dos traficantes de entorpecentes que,
como se buscará testar, constituiriam a personalização da hostilidade da classe dominada ao
Estado, aparato dominante, recebendo tratamento jurídico próprio de inimigo.
A principal ferramenta de pesquisa utilizada para a exposição do tema escolhido foi a
pesquisa bibliográfica exploratória, a qual teve por base leituras selecionadas em função do
10
critério de pertinência temática e de expertise dos respectivos autores quanto ao tema
abordado. Também foi feita uma análise da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (“Lei de
Drogas”), a qual buscará investigar se, e em que medida, os institutos jurídicos voltados a
apenar os traficantes de entorpecentes são mais severos do que aqueles institutos jurídicos
destinados a apenar condutas que violam os mesmos bens jurídicos tutelados por tal lei,
dentre os quais se destaca a saúde pública.
Para fins da monografia que será produzida, interessa principalmente investigar o
seguinte: em um contexto de expansão do Direito Penal, sob o aspecto específico do Direito
Penal do Inimigo, o traficante de entorpecentes é tratado como inimigo com base nos
institutos previstos na Lei 11.343/06? Eis o problema que norteará a pesquisa ora
empreendida.
O tema escolhido como objeto de estudo é bastante controvertido na doutrina. Não há
como ser diferente, sobretudo na era pós 11 de setembro, em que as garantias individuais e
coletivas vivem confrontadas com a reativação de uma espécie de doutrina de segurança
nacional global, calcada no enquadramento do diferente enquanto indivíduo potencialmente
perigoso, na esteira do movimento de expansão do Direito Penal.
É desse princípio que Jakobs parte para, textualmente, afirmar que
...quem não participa na vida em um „estado comunitário-legal‟ deve retirar-se, o
que significa que é expelido (ou impelido à custódia de segurança); em todo caso,
não há que ser tratado como pessoa, mas pode ser „tratado‟...‟como um inimigo‟”.1
Contrapõe-se a tão contundente doutrina um crítico igualmente contundente: Raúl
Zaffaroni. Esse penalista argentino enquadra as formas de manifestação do poder punitivo
enquanto instrumentos de dominação, desenvolvidos ao longo da história humana, destinados
a servir aos interesses da classe dominante contra a classe dominada. O conceito de
“emergência” é amplamente utilizado para justificar os recrudescimentos da tutela penal
exercida em favor das camadas superiores contra os indesejáveis, criminosos, párias. Nesse
contexto, é o criminoso, assim diferenciado pelo rótulo (como mais adiante se verá em
Baratta2) de desviante, alçado à categoria jurídica de inimigo, com todas as conseqüências
jurídico-penais daí advindas. Ainda segundo esse autor, existiram inimigos eleitos pelas
estruturas de poder em todas as sociedades, excetuando-se o período compreendido entre a
queda do Império Romano (início da Idade das Trevas, sobre a qual pouco se sabe) e os
1 JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, p. 27.
2 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito: introdução á sociologia do Direito Penal
Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro. Revan, 2002.
11
séculos XII e XIII (começo da Idade Média), durante o qual, conforme defende o autor, há o
desbaratamento momentâneo do poder punitivo.
A construção e melhor compreensão da figura do inimigo serão auxiliadas por Baratta
e sua exposição do labeling approach ou teoria do etiquetamento, uma vez que tal vertente da
Criminologia é imprescindível para a compreensão do fenômeno que conduz uma pessoa
comum à condição de criminoso e de inimigo.
Esquematicamente, as considerações teóricas expostas acima estão divididas em
quatro capítulos, assim dispostos: i) um capítulo introdutório sobre a teoria do Direito Penal
do Inimigo; ii) um capítulo específico sobre o quadro atual da expansão do Direito Penal e
seus desdobramentos; iii) um capítulo exclusivamente destinado à crítica do Direito Penal do
Inimigo e iv) um capítulo reservado à análise mais detida da Lei 11.343/06, que constitui o
foco deste estudo. A conclusão representa uma retomada das diversas leituras utilizadas como
fonte de pesquisa em um todo sintético, unitário e orgânico, de forma a afinar a compreensão
acerca do tema abordado.
12
1 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE O DIREITO PENAL DO INIMIGO
Este capítulo apresenta a teoria do Direito Penal do Inimigo e as primeiras críticas que
se lhe pode fazer. Apesar de seu nome, o Direito Penal do Inimigo é uma teoria jurídica que
se manifesta sob várias formas nas legislações contemporâneas. É por esse motivo que cabe
diferenciá-la das legislações mesmas cuja elaboração inspira.
Cabe diferenciá-la, em síntese, situando-a no contexto das teorias jurídicas
propriamente ditas. Para tanto é preciso, em primeiro lugar, estabelecer uma definição de
teoria jurídica. Não se encontra uma definição suficientemente precisa de teoria jurídica, ou
ainda de teoria em sentido amplo, até mesmo em autores que tratam de temas carecedores
desse detalhamento.
Insta ressaltar aqui que, mais do que deixar em segundo plano a elaboração de uma
definição para as teorias jurídicas, os autores normalmente partem desse conceito para
elaborar outras definições, como se ele já estivesse dado em um primeiro momento.
Entretanto, em se tratando de situar o Direito Penal do Inimigo no campo das teorias
jurídicas, uma definição, ainda que geral, talvez seja suficiente para que se possa avançar nas
análises e considerações subseqüentes.
Vários são os autores dos quais se pode colher elementos capazes de estabelecer uma
definição de teoria jurídica, ainda que tal definição seja carecedora de uma melhor unidade
sistemática, posto que as visões apresentadas são extraídas de ramos distintos do Direito.
Para que esta abordagem inicial não se estenda além do necessário, restringir-se-á a
apresentação à análise de dois autores: Orlando Secco3 e Manuel Atienza
4. Apesar de não
tratar do tema em profundidade, Secco tangencia a definição de teoria no capítulo
introdutório de sua obra, nos seguintes termos:
A Introdução ao Direito, segundo o saudoso tratadista ANTÔNIO LUÍS
MACHADO NETO, em sua obra “Compêndio de Introdução à Ciência do Direito”:
“é, tal como ocorre com sua irmã gêmea Teoria Geral do Estado, uma
ENCICLOPÉDIA de conhecimentos científicos, filosóficos, gerais e introdutórios
ao estudo da ciência jurídica”5
Tal definição, apesar de elaborada levando em consideração a Introdução ao Direito,
é geral o bastante para abarcar as mais diversas teorias jurídicas, independente do ramo do
direito ao qual tais teorias se possam aplicar.
3 SECCO, Orlando de Almeida. Introdução ao Estudo do Direito. 9ª ed. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris,
2005. 4 ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. 3ª ed. São Paulo. Landy Editora,
2006. 5 SECCO, Orlando de Almeida. Introdução ao Estudo do Direito., p. 4.
13
Manuel Atienza presta relevante contribuição à análise aqui empreendida. Dele se
podem colher os elementos indispensáveis à elaboração de uma definição de teoria jurídica.
Observe-se o que é escrito em uma das primeiras laudas de As razões do direito: “A
teoria (ou teorias) da argumentação jurídica tem como objeto de reflexão, obviamente, as
argumentações produzidas em contextos jurídicos”6.
Mais adiante, prossegue o autor:
Na filosofia da ciência costuma-se distinguir (cf. Reichenbach, 1951) entre o
contexto de descoberta e o contexto de justificação. Assim, de um lado está a
atividade que consiste em descobrir ou enunciar uma teoria e que, segundo a
opinião geral, não é suscetível de uma análise de tipo lógico; nesse plano, cabe
unicamente mostrar como se gera e se desenvolve o conhecimento científico, o que
constitui tarefa para o sociólogo e o historiador da ciência. Mas do outro lado está o
procedimento que consiste em justificar ou validar a teoria, isto é, em confrontá-la
com os fatos a fim de mostrar sua validade; essa última tarefa exige uma análise de
tipo lógico (embora não apenas lógico) e se rege pelas regras do método científico
(que não são aplicáveis no contexto da descoberta).7
Entretanto, embora Atienza forneça elementos teoricamente mais ricos e consistentes
acerca do que seria uma teoria jurídica, incorre no mesmo erro de outros autores ao
mencionar uma teoria, que por acaso é objeto de estudo em sua obra já citada, sem a
preocupação de defini-la previamente8, construindo aí um conceito a priori do qual parte para
otimizar o conjunto de sua exposição. Apesar de entendermos o caráter prático de semelhante
atitude, guardado todo o respeito a um teórico como é o autor, insistimos que a exposição há
pouco iniciada carece de uma definição mais precisa do objeto ora explorado.
Deve ser assim pela multiplicidade de facetas do tema expansão do direito penal
enquanto pluralidade de vertentes expansivas. Também deve ser assim, conforme já foi dito,
porque a palavra direito, que integra o nome Direito Penal do Inimigo, pode eventualmente
induzir o leitor menos habituado com o tema a interpretações equivocadas, posto que não se
trata de uma legislação propriamente dita baseada na construção de uma categoria jurídica de
inimigo, mas em um paradigma que, nos dias atuais, orienta em alguma medida a elaboração
de leis penais.
Ultrapassada a abordagem dos autores eleitos para compor uma definição própria de
teoria jurídica, pode-se enunciá-la, genericamente, mediante composição dos elementos
reunidos acima, como sendo um todo orgânico e sistemático de conhecimentos científicos
6 ATIENZA, Manuel. As razões do Direito: teorias da argumentação jurídica, p. 18. 7 Ibidem, p. 20.
8 Ibidem, p. 22, quando o autor menciona a “teoria padrão da argumentação jurídica”, sem em momento algum
defini-la.
14
variados, dotado de um contexto de descoberta e de um contexto de justificação, que tem por
objeto de reflexão um aspecto específico do saber jurídico.
Fixado, em abstrato, o conceito de teoria jurídica, cabe agora ensaiar uma definição
para a teoria jurídica do Direito Penal do Inimigo.
A idéia básica que permeia a teoria do Direito Penal do Inimigo consiste em enunciar
que deve haver dois tipos de tratamento penal, de acordo com a natureza do delito cometido
pelo agente e também com as condições e características subjetivas do agente, como no caso
do terrorista, que comete vários delitos de natureza muito diversa.
Dessa forma, agentes que cometessem crimes, por assim dizer, “comuns”, não
destinados a abalar ou subverter a estrutura do Estado e de suas instituições, mereceriam
tratamento penal típico de cidadão, com todos os direitos e garantias que constitucional e
processualmente se lhe assegura.
Entretanto, àqueles que representassem um perigo potencial permanente para a
sociedade, dos quais não se pudesse esperar uma sólida reintegração ao corpo social ou que
cometessem delitos capazes de afrontar a higidez do Estado, deveria ser dispensado
tratamento penal típico de inimigo, cuja abordagem encontra-se disposta no próximo item
desta exposição.
Os elementos que permitiram a elaboração de tal síntese podem ser colhidos do
seguinte trecho, extraído da obra Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, o qual descreve
o tratamento penal a ser dispensado ao cidadão:
Em princípio, um ordenamento jurídico deve manter dentro do Direito também o
criminoso, e isso por uma dupla razão: por um lado, o delinqüente tem direito a
voltar a ajustar-se com a sociedade, e para isso deve manter seu status de pessoa, de
cidadão, em todo caso: sua situação dentro do Direito. Por outro, o delinqüente tem
o dever de proceder à reparação e também os deveres têm como pressuposto a
existência de personalidade, dito de outro modo, o delinqüente não pode despedir-se
arbitrariamente da sociedade através de seu ato.9
Outro trecho há, extraído dessa mesma obra, que aborda o tratamento penal que deve
ser dispensado ao inimigo:
Imediatamente, coloca-se a seguinte questão: o que diz Kant àqueles que não se
deixam obrigar? Em seu escrito “Sobre a paz eterna”, dedica uma extensa nota, ao
pé de página, ao problema de quando se pode legitimamente proceder de modo
hostil contra um ser humano, expondo o seguinte: “Entretanto, aquele ser humano
ou povo que se encontra em um mero estado de natureza, priva... [da] segurança
[necessária], e lesiona, já por esse estado, aquele que está ao meu lado, embora não
de maneira ativa (ato), mas sim pela ausência de legalidade de seu estado (statu
iniusto), que ameaça constantemente; por isso, posso obrigar que, ou entre comigo
em um estado comunitário-legal ou abandone minha vizinhança”.
Conseqüentemente, quem não participa da vida em um “estado comunitário-legal”
9 JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, pp. 25-26.
15
deve retirar-se, o que significa que é expelido (ou impelido à custódia de
segurança); em todo caso, não há que ser tratado como pessoa, mas pode ser
“tratado”, como anota expressamente Kant, “como um inimigo”.10
Considerando tudo quanto fora exposto até aqui, pode-se definir o Direito Penal do
Inimigo, nas palavras de Jakobs:
Resumindo o que foi dito até o momento em relação a esta evolução, que não é
precisamente nova: o Direito Penal dirigido especificamente contra terroristas tem,
no entanto, mais o comprometimento de garantir a segurança do que o de manter a
vigência do ordenamento jurídico, como cabe inferir do fim da pena e dos tipos
penais correspondentes. O direito penal do Cidadão e a garantia da vigência do
Direito mudam para converter-se em – agora vem o termo anatemizado – Direito
Penal do inimigo, em defesa frente a um risco.11
Sem prejuízo da definição acima estabelecida, Bernd Schunemann, catedrático de
Direito Penal da Universidade de Munique, na apresentação da obra Prolegômenos para a
luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a crítica do discurso de
resistência, de Gracia Martín, apresenta ainda outro conceito acerca da teoria ora estudada.
Este penalista alemão esboça um conceito de Direito Penal do Inimigo como sendo:
O Direito Penal do cidadão é o direito de todos, o Direito Penal do inimigo é
daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física,
até chegar à guerra. Esta coação pode ficar limitada em um duplo sentido. Em
primeiro lugar, o estado não necessariamente excluirá o inimigo de todos os
direitos. Neste sentido, o sujeito á custódia de segurança fica incólume em seu
papel de proprietário de coisas. E, em segundo lugar, o estado não tem por que
fazer tudo o que é permitido fazer, mas pode conter-se, em especial, para não
fechar a porta a um posterior acordo de paz. Mas isso em nada altera o fato de que a
medida executada contra o inimigo não significa nada, mas só coage. O Direito
Penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito Penal do inimigo (em
sentido amplo: incluindo o Direito das medidas de segurança) combate perigos;12
A definição acima, até certo ponto, carece de utilidade prática para a exposição há
pouco iniciada, pois reduz o Direito Penal do Inimigo a uma forma exacerbada de reação à
criminalidade econômica e ambiental, substituta do Direito Penal tradicional. Apesar de esse
conceito se confundir um pouco com a análise que Silva Sánchez traça da expansão do
Direito Penal enquanto reação à criminalidade majoritariamente globalizada e organizada,
pouco tem a ver com o conceito geral de relativização de direitos e garantias próprios do
chamado, para utilizar a terminologia de Jakobs, “direito penal do cidadão”.
Sobre a distinção entre direito penal do cidadão e Direito Penal do Inimigo, são
ilustrativas as palavras de Luís Greco a respeito do assunto:
O direito penal pode ver no autor um cidadão, isto é, alguém que dispõe de uma
esfera privada livre do direito penal, na qual o direito só está autorizado a intervir
10
JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, p. 27. 11
Ibidem, pp. 28-19. 12
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 11.
16
quando o comportamento do autor representar uma perturbação exterior; ou pode o
direito penal enxergar no autor um inimigo, isto é, uma fonte de perigo para os bens
a serem protegidos, alguém que não dispõe de qualquer esfera privada, mas que
pode ser responsabilizado até mesmo por seus mais íntimos pensamentos. "O
direito penal do inimigo optimiza proteção de bens jurídicos, o direito penal
cidadão optimiza esferas de liberdade". Ao contrário de uma difundida opinião,
Jakobs não vê no princípio da proteção de bens jurídicos uma idéia liberal, mas o
responsabiliza pelas cada vez mais freqüentes antecipações da proibição penal.13
São igualmente ilustrativas as palavras do Prof. Dr. Diogo Malan a respeito do tema:
Em estudo sobre a legitimidade da tipificação de condutas antecedentes à efetiva
lesão de um bem jurídico datado de 1985, o sobredito autor [Jakobs] estabelece,
pela primeira vez, uma distinção entre o Direito Penal do Cidadão
(Bürgerstrafrecht), o qual otimiza as esferas de liberdade, e Direito Penal do
Inimigo (Feindstrafrecht), que potencializa a proteção a bens jurídicos.
A esse propósito, faz ele uma distinção entre a intangibilidade da vida privada do
cidadão, sobre a qual é ilegítima a criminalização, e os atos materialmente
preparatórios de crimes praticados pelo inimigo, em relação aos quais é legítima a
intervenção do sistema penal.14
Ora, em relação ao trecho acima exposto, bem se observa que a criminalização de atos
preparatórios, ainda que praticados pelo indivíduo definido como inimigo, não se
compatibiliza com o que propõe o sistema jurídico-penal pátrio. Assim se pode afirmar
porque a realização de condutas meramente preparatórias não está revestida da necessária
lesividade a bens jurídico-penais, a partir da qual é possível delimitar o começo da
punibilidade das condutas.
Ainda em linha com a distinção entre direito penal do cidadão e direito penal do
inimigo, Diogo Malan tece ainda mais algumas considerações a esse respeito no artigo já
citado:
Em trabalho bem mais recente, JAKOBS voltou a examinar o conceito de Direito
Penal do Inimigo, dessa vez o aprofundando e sistematizando. Tomando como
ponto de partida a teoria da pena, ele diferencia as suas funções de contradição e de
eliminação de um perigo.
A primeira é característica do chamado Direito Penal do Cidadão, representando a
interação simbólica entre o fato criminoso e a coação penal, a qual traduz a resposta
social ao ataque à norma jurídica representado pelo fato criminoso. A segunda, por
sua vez, é típica do Direito Penal do Inimigo, servindo exclusivamente aos fins de
prevenção especial (negativa), sem qualquer conotação simbólica. Ambas as
funções referidas acima podem eventualmente ser legítimas e representam tipos
ideais, nunca sendo encontradas em uma configuração pura.15
Essa associação entre fins da pena e direito penal do cidadão, em Jakobs, ainda que
situada no plano teórico, carece de uma conexão efetiva capaz de revesti-la de maior
13
GRECO, Luís. Sobre o chamado Direito Penal do Inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São
Paulo, v. 56, n. 909, p. 80-97, set. 2005, p. 80. 14
MALAN, Diogo. Processo penal do inimigo. Disponível em:
<http://www.malanleaoadvs.com.br/artigos/processo_penal_inimigo.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2011, p. 2. 15
Ibidem, p. 3.
17
concretude porque, como bem se sabe, a teoria dos fins da pena traduz uma construção
ideológica destinada a legitimar a existência desta, não constituindo um critério concreto para
aferição da existência de um direito penal do cidadão, entendido um direito penal de viés
garantista.
Apesar de ser incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, como adiante se
procurará demonstrar, o Direito Penal do Inimigo, enquanto forma jurídica correspondente à
necessidade de eliminação de um perigo, traduz uma associação mais concreta entre o
paradigma funcionalista que propõe e as medidas (de eliminação) que recomenda executar no
campo da prática do sistema penal.
Nesse contexto, apresenta-se o modelo penal baseado em todo um arcabouço de
garantias duplamente enfraquecido: a uma porque o modelo de direito penal do cidadão, ao
qual corresponde, nada mais faz senão corresponder às exigências de um conceito de
prevenção especial negativa; a duas porque o Direito Penal do Inimigo, ao propor a
neutralização concreta de um perigo, que pretende eliminar, atende a objetivos concretos
capazes de realizar efetivamente o programa punitivo nele contido.
A exposição das idéias de Jakobs a respeito do papel do bem jurídico enquanto limite
de atuação da intervenção penal, como se pode muito bem ler acima, é que se afigura um
tanto quanto distorcido. O princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos que pode, no
contexto dado, ser encarado como pertencente ao direito penal do cidadão, não pode ser
responsável pela antecipação das barreiras de intervenção penal.
É justamente a intervenção de tal princípio que é capaz de frustrar iniciativas que
buscam expandir o Direito Penal, como a incriminação de atos preparatórios e a proliferação
sistemática de delitos de perigo. Ocorre que a atuação de princípios de garantia, no âmbito do
Direito Penal do Inimigo, é minimizada ou negada com relação àqueles aos quais, convém
frisar, por decisão política se decidiu atribuir o rótulo de inimigo, como adiante se verá.
É no bojo de semelhante onda punitiva, representada por esta vertente teórica em
exame, que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, ou até mesmo o próprio bem
jurídico enquanto produto de construção dogmática capaz de traçar os lindes da intervenção
penal, são postos em cheque enquanto elementos delimitadores da intervenção penal do
Estado na esfera das liberdades de seus cidadãos.
À medida que a exposição de Luís Greco, há pouco citado, avança, as idéias de
Jakobs vão sendo expostas paulatinamente e começam a formar um todo mais homogêneo,
não sem um tom um tanto quanto preocupante. A relativização das garantias tituladas pelo
18
inimigo é tão ampla que atingem o ápice de seu enfrentamento enquanto não-pessoa.
Observe-se o que esse autor escreve a respeito do assunto:
E o mesmo vale para a personalidade do autor. Pessoa, em Jakobs, é um termo
técnico, que designa o portador de um papel, isto é, aquele em cujo comportamento
conforme à norma se confia e se pode confiar. "Um indivíduo que não se deixa
coagir a viver num estado de civilidade, não pode receber as bençãos do conceito
de pessoa". Inimigos são "a rigor não-pessoas", lidar com eles não passa de
"neutralizar uma fonte de perigo, como um animal selvagem". Características do
direito penal do inimigo são uma extensa antecipação das proibições penais, sem a
respectiva redução da pena cominada, e a restrição das garantias processuais do
estado de direito, tal qual é o caso principalmente nos âmbitos da delinqüência
sexual e econômica, do terrorismo e da chamada legislação de combate à
criminalidade. Na mais recente manifestação, são mencionados como ulteriores
exemplos do direito penal do inimigo alguns pressupostos da prisão preventiva, as
medidas de segurança, a custódia de segurança e as prisões de Guantánamo.16
A mediação entre a realidade dos conceitos e sua representação no mundo das idéias,
ao ser efetuada somente pelas normas jurídicas, como propõe Jakobs (ex.: “tirar a vida”
enquanto homicídio porque o Código Penal assim dispõe; “pessoa” enquanto organismo
humano vivo enquanto titular de direitos e garantias porque o Código Civil assim dispõe)
representa uma limitação que em muito prejudica a compreensão e crítica do tema em voga,
como até mesmo propõe problemas relativos à gênese do próprio direito.
Abstraindo-se a realidade proposta pela ideologia dominante, que propõe pensar tudo
o que existe como dado previamente constituído, obliterando a reflexão e a crítica,
suponhamos que em algum momento os indivíduos viveram em desordem, sem lei, em algo
como o aparentemente fictício “estado de natureza” hobbesiano. Ora, se o conceito de que
matar alguém é errado, por ser contra o direito,é definido por uma norma legal, ou de que ser
ou não ser pessoa igualmente o é, como se chegou à construção não só desses, mas de todos
os conceitos atualmente existentes e qualificados por normas jurídicas?
Sem entrar em considerações de cunho jusnaturalista, avaliamos ser esta hipótese
pouco provável. Antes de existir o direito, os homens, que em algum momento, deliberaram
fazer as leis que o regeriam, precisaram, de alguma forma, entrar em acordo acerca daquilo
que sua lei regularia. Por exemplo: como é possível elaborar uma legislação que coíba a
alienação parental sem delimitar as características desse fenômeno? Como regular situações
de fraude, cominando-lhes penas, sem distinguir o que é legítimo e o que é fraudulento?
Uma coisa não obedece determinada forma tão só porque a norma jurídica assim
define. Ou há um consenso originalmente estabelecido sobre o âmbito de proteção da norma
16
GRECO, Luís. Sobre o chamado Direito Penal do Inimigo, pp. 81-82.
19
ou, de outra forma, esse acordo houve de ser feito em algum momento, anterior ou
concomitante à respectiva regulação.
É nesse particular aspecto que se destaca o viés funcionalista do Direito Penal do
Inimigo pois, ao legitimar, com argumentos semelhantes a estes ora abordados, a aplicação
do Direito Penal, ainda que em detrimento de determinados indivíduos, busca reforçar-lhe a
(aparente) função deste ramo do direito de preservar a “ordem social estabelecida”, ou de
“manter a coesão social”, ou qualquer desses valores nitidamente inspirados nas recorrentes
campanhas de lei e ordem que refluem de tempos em tempos.
Sem embargo dos elementos já apresentados, Luís Greco expõe uma tripla
conceituação que julgamos bastante útil registrar a bem da abordagem teórica que ora se faz
do tema. Esse autor, por entender que o tema carece de uma conceituação mais precisa, busca
formular um conceito mais claro de Direito Penal do Inimigo. Para isso, recorre a uma tripla
conceituação baseada nas finalidades que esse conceito traz consigo. Observe-se a
justificação para a adoção dessa metodologia:
Bem se poderia responder ceticamente à tese que acabo sumariamente de formular.
Afinal, não pareceria suficientemente claro qual o sentido da expressão "direito
penal do inimigo"? De um ponto de vista semântico, sim: o direito penal do inimigo
é o tipo ideal de um direito penal que não respeita o autor como pessoa, mas que
almeja neutralizá-lo como fonte de perigo. Mas se o conceito é claro do ponto de
vista semântico, permanece ele deveras obscuro no que diz respeito ao seu
significado pragmático, isto é, às finalidades ou funções que se tentam alcançar
com sua utilização no discurso científico. A rigor, podem-se almejar ao menos três
finalidades com o conceito de direito penal do inimigo, o que levará a três
conceitos de direito penal do inimigo.17
O primeiro conceito se confunde com um conceito descritivo. Sob tal perspectiva, o
Direito Penal do Inimigo seria utilizado como uma ferramenta capaz de descrever melhor o
direito positivo. Por exemplo, algumas normas do ordenamento jurídico positivo poderiam
ser classificadas como Direito Penal do Inimigo, sem a emissão de um juízo de valor positivo
ou negativo a respeito dessas normas.
Como crítica, pode-se dirigir a esse conceito o fato de ser uma forma acrítica de
raciocínio, que se preocupa em descrever uma realidade sem avaliar suas implicações
jurídico-penais. Em nosso sentir, identificar o Direito Penal do Inimigo como uma ferramenta
meramente descritiva, capaz de efetuar categorizações dentro do sistema, permitiria a sua
mais fácil aceitação, legitimando-o como mais um modelo teórico, sem pretensões além do
aprimoramento na explicação e descrição de um fenômeno. Entretanto, como se verá adiante,
não é esse o nosso posicionamento a respeito do tema.
17
GRECO, Luís. Sobre o chamado Direito Penal do Inimigo, p. 83.
20
O segundo conceito tratado por Luís Greco em sua exposição é aquele que viria
carregado de uma função nomeada pelo autor como crítico-denunciadora. Essa função seria
cumprida a partir, necessariamente, da emissão de um juízo de valor negativo a respeito de
uma determinada norma ao categorizá-la como sendo Direito Penal do Inimigo. Nesse
sentido, Direito Penal do Inimigo apareceria como um rótulo carregado de uma conotação
anti-liberal e contrária ao estado de direito, passível de ser conferida às normas.
Apesar de analisarmos semelhante perspectiva com reservas, posto que parece
constituir um argumento de defesa para normativos de viés nitidamente anti-democrático e
capazes de violar garantias, tal concepção é a que mais se aproxima da concepção ora adotada
e que permeará toda a exposição, sobretudo no capítulo seguinte, que cuida da crítica ao
Direito Penal do Inimigo.
O terceiro conceito se confundiria com um conceito legitimador-afirmativo do Direito
Penal do Inimigo. Apesar do nome, esse conceito não implica na emissão de um juízo de
valor positivo acerca do Direito Penal do Inimigo. Esse terceiro e último conceito
representaria a aceitação de uma norma, classificável como Direito Penal do Inimigo, em
bases diversas daquelas tidas como direito penal do cidadão.
Nesse sentido, normas que se enquadrassem no paradigma da flexibilização de
direitos e garantias penais de determinados indivíduos possuiriam pressupostos de
legitimidade diversos daqueles próprios das normas que não o fazem. Esse conceito, sem
ingressar em maiores âmbitos de discussão, viola flagrantemente o princípio da isonomia, que
permeia todo o ordenamento jurídico.
Admitir que uma norma editada em detrimento de determinados cidadãos e, assim
sendo, em claro benefício de outros, malfere a igualdade constitucionalmente assegurada a
todos os indivíduos. A igualdade, inclusive formal, que deve haver entre todos os membros
de uma sociedade é afrontada pela legitimação de normas com tais características.
Apesar de Luís Greco não tomar uma posição a respeito, atitude que motiva a partir
da ambigüidade do discurso de Jakobs, diga-se que a função exercida pelo precursor desta
teoria penal é flagrantemente legitimadora de suas próprias idéias e, por via de conseqüência,
do Direito Penal do Inimigo propriamente dito.
A exposição do autor em comento não soluciona definitivamente a questão, ao menos
constitui uma análise satisfatoriamente isenta da problemática própria do tema. Aliado à
dificuldade natural de estabelecer um conceito, fazê-lo com certo grau de isenção e critério
por si só constitui um mérito. Acreditamos que tudo quanto até aqui foi exposto basta, por
ora, para firmar um conceito satisfatório sobre o Direito Penal do Inimigo.
21
Dessa forma, fica estabelecido o alcance do Direito Penal do Inimigo enquanto teoria.
Tal teoria diferencia-se do direito penal e do direito processual penal positivados porque estes
constituem seu objeto de estudo. Esse estudo é orientado pela divisão do corpo social em
cidadãos e em inimigos. Portanto, trata-se de um modelo de abordagem do Direito Penal e do
Direito Processual Penal, de um paradigma que propõe, de algum modo, uma relativização de
conceitos clássicos que estruturam o Direito Penal tradicional, vigente em nosso país, de viés
garantista, com todos os seus consentâneos.
Trata-se de modelo que propõe uma reavaliação dos princípios que orientam o Direito
Penal tradicional, sobretudo no que tange a uma certa gama de indivíduos (os inimigos), na
linha da expansão do Direito Penal. Pode o Direito Penal do Inimigo também, conforme visto
em Luís Greco, ser triplamente conceituado com base na função com da qual seja imbuído.
Sem entrar em maiores detalhes sobre as conseqüências da adoção deste modelo para
o Estado democrático de direito, que serão tratadas no capítulo seguinte, adiantamos que,
certamente, sua predominância ou, até mesmo, simples aceitação pode ser elemento capaz de
proporcionar um alargamento das margens do poder punitivo, até o Estado de exceção. Essa
via de hipotética escalada do Direito Penal do Inimigo, até o limite de seus desdobramentos
na legislação brasileira, é que será percorrida daqui por diante.
Estabelecido o conceito que principiamos por expor, para conferir celeridade à escrita,
a teoria jurídica do Direito Penal do Inimigo será indicada simplesmente como Direito Penal
do Inimigo, sem prejuízo de tudo quanto foi escrito até então.
1.1. O tratamento penal típico de inimigo
Conforme exposto na seção precedente e de acordo com a concepção de Jakobs,
inimigo é aquele de quem não se pode racionalmente esperar uma conduta em conformidade
com as normas social e juridicamente estabelecidas. Na concepção kantiana, essa situação de
rebeldia frente ao direito e aos demais membros da sociedade autoriza a atuação hostil em
face do inimigo.
Afinal, como se poderia satisfatoriamente tutelar os interesses de alguém, enquanto
membro da comunidade, que se recusa a aceitar os deveres e obrigações a todos impostos,
sobretudo o comportamento natural e esperado relativo ao não cometimento de infrações
penais? Se, para a constituição de um Estado, todos precisaram abrir mão de parte das
liberdades conaturais ao ser humano, é ainda mais natural que haja revolta direcionada contra
quem rompe com essa lógica de sujeição à vontade da maioria.
22
Apesar de se tratar de um argumento logicamente constituído com base na melhor
filosofia, é fácil de observar que esta sólida construção despreza, sem nenhum acanhamento,
o fenômeno do desvio e introduz em cena a problemática das liberdades. Ora, se há uma
sanção destinada àquele que se comporta de uma determinada forma perante o corpo social,
há a opção de agir daquela forma, ainda que haja um contra-estímulo.
Admitir que quem o faz de forma reiterada representa um perigo significa negar ao ser
humano a capacidade de se autodeterminar, delinqüindo, ou, já o tendo feito, de se reabilitar,
para utilizar uma terminologia própria da função de prevenção especial positiva. Dizer que
quem delinqüe reiteradamente é perigoso, ou, tendo cometido um crime muito grave, não
deve ser tratado mais como pessoa, mas como inimigo, representa negar contrafaticamente a
possibilidade de o ser humano fazer de outra forma.
Observe-se que, até certo ponto, ao definir delitos e cominar penas, o direito atua
contrafaticamente pois, milenarmente, por narrativas às vezes históricas e, outras vezes,
fantásticas18
, tomamos conhecimento de acontecimentos praticados mesmo contra
disposições expressas de lei, tendo a proibição uma tendência quase que natural de incentivar
a prática da conduta.
Isso, se não comprova, ao menos indica uma tendência humana natural ao desvio que
pode, até certo ponto, minimizar a idéia de que quem delinqüe é naturalmente perigoso. Feita
essa constatação, não seríamos perigosos todos nós, posto que potencialmente desviantes?
Dados que apontam para essa tendência humana ao desvio podem ser encontrados na
exposição de Alessandro Baratta, quando expõe a teoria estrutural-funcionalista da anomia e
da criminalidade:
A teoria estrutural-funcionalista da anomia e da criminalidade afirma:
1) As causas do desvio não devem ser pesquisadas nem em fatores bioantropológicos
e naturais (clima, raça), nem em uma situação patológica da estrutura social.
2) O desvio é um fenômeno normal de toda estrutura social.
3) Somente quando são ultrapassados determinados limites, o fenômeno do desvio é
negativo para a existência e o desenvolvimento da estrutura social, seguindo-se um
estado de desorganização no qual todo o sistema de regras de conduta perde valor,
enquanto um novo sistema ainda não se afirmou (esta é a situação de “anomia”).
18
No sentido de fantasia. A título de exemplo, note-se que a Bíblia contém o relato do primeiro homicídio, em
uma realidade, em princípio, pré-jurídica. Interessante observar que, já aí, o ato de matar um semelhante é
valorado negativamente, tendo conseqüências muito graves, sem que houvesse um código de conduta
previamente estabelecido, posto que os habitantes do “paraíso” aparentemente não tinham outra obrigação
senão cuidar de si mesmos, somado ao fato de que, pela ordem dos acontecimentos de tal narrativa, a lei
mosaica, que continha o “não matarás”, ter sido escrita depois.
23
Ao contrário, dentro de seus limites funcionais, o comportamento desviante é
elemento necessário e útil para o equilíbrio e o desenvolvimento sócio-cultural.19
Essa consideração do desvio como elemento natural e, até certo ponto benéfico, vai na
contramão do que propõe o Direito Penal do Inimigo. Essa teoria, ao definir o inimigo como
potencial fonte de perigo, como diferente, chegando ao extremo de caracterizá-lo como “não-
pessoa”, na prática, acaba negando essa função do desvio como uma espécie de lubrificante
das relações sociais. Afinal, que mente resistiria, permanecendo perfeitamente sã, a uma
obediência cega às regras o tempo todo?
O paradigma proposto pelo Direito Penal do Inimigo, ressalte-se, cumpre uma função
de vigilância, tanto quanto ou até mais forte do que a apontada por Foucault com relação à
prisão. Afinal, trata-se da possibilidade de neutralizar um indivíduo tão só pela expectativa de
que possa vir a cometer crimes semelhantes aos que já cometera (periculosidade), ou tão só
pelo fato de pertencer, ou se acreditar que pertença, a uma organização criminosa.Todos esses
juízos são inadmissíveis sob o ponto de vista do estado democrático de direito e sua aceitação
tem sérias implicações sobre a conformação das instituições republicanas, sobretudo sob o
prisma dos direitos e garantias, como adiante se verá.
Note-se que a resposta penal em face do inimigo não é dada em função da violação da
lei penal decorrente de um ato por ele praticado (função retributiva da pena). Trata-se da
tentativa de neutralizar um perigo, tentativa essa que é motivada e justificada, no dizer de
Zaffaroni, pelas “emergências”20
. É essa definição de Zaffaroni que começa por desconstruir
a possibilidade de existência de um “conceito ôntico”, no dizer deste renomado penalista
argentino, de inimigo.
A construção do inimigo ocorre a partir de uma decisão política que alcança,
normalmente, aqueles indivíduos que o Estado quer combater, por necessidade, geralmente
criada, ou por simples capricho ou ódio. Foi o caso, por exemplo, da caça às bruxas da idade
média, ou da perseguição aos judeus durante a II Guerra Mundial ou, ainda, em período mais
recente, da onda anticomunista própria do período da Guerra Fria.
Todos esses movimentos têm em comum o fato de a persecução estatal ter sido
sistematicamente direcionada a um determinado grupo de indivíduos, e em seu prejuízo, por
uma estrutura de Estado capaz de despi-los de seus direitos e garantias mais básicos. A
19
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito
Penal, p. 59-60. 20 Ver a definição de emergência em ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 143, a qual é dada
como sendo os “momentos em que cabe definir e enfrentar o inimigo”.
24
construção de uma categoria de “não-pessoas”, conforme já colocado, é fundamental para
esse processo e em tudo contribui para o surgimento e alargamento de um Direito Penal do
Inimigo.
Dentre as mais diversas idéias cultivadas por Jakobs em torno da figura do inimigo, a
que mais chama a atenção é a legitimação da custódia de segurança. Esse instituto de direito
alemão, recentemente condenado pela Corte Européia de Direitos Humanos, nada mais é
senão a continuação da prisão por cautela, depois do cumprimento da pena, para os
criminosos perigosos com risco de reincidência21
.
Essa continuação da pena via custódia de segurança muito se assemelha ao sistema de
duplo binário, que recomenda a aplicação sucessiva de pena e de medida de segurança. Ao
passo que a primeira é adotada em resposta ao cometimento de uma infração penal, a segunda
é levada a cabo enquanto elemento de combate de um perigo.
Esse fundamento diferenciado, em realidade, constitui, de certa forma, um bis in idem,
posto que, para uma mesma conduta, pune-se o agente duas vezes: aplicando-se-lhe uma pena
e submetendo-lhe a uma custódia que, fundamentada na periculosidade do agente, tem
natureza jurídica, em nosso ver, de medida de segurança. Essa duplicidade no momento da
punição é, de princípio, uma evidência do tratamento privilegiado, em sentido obviamente
negativo, dos indivíduos que o Estado discricionariamente elevou à categoria de inimigos.
Essa função legitimadora exercida pelo discurso de Jakobs e sua posição acerca do
tratamento penal que deve ser dispensado ao inimigo são sintetizadas no seguinte trecho:
Certamente, o Estado tem direito a procurar segurança frente a indivíduos que
reincidem persistentemente na comissão de delitos. Afinal de contas, a custódia de
segurança é uma instituição jurídica. Ainda mais: os cidadãos têm direito de exigir
do Estado que tome medidas adequadas, isto é, têm direito à segurança, com base
no qual Hobbes fundamenta e limita o Estado: finis oboedientiae est protectio. Mas
neste direito não se encontra contido, em Hobbes, o réu de alta traição; em Kant,
quem permanentemente ameaça; trata-se do direito dos demais. O Direito Penal do
cidadão é de todos, o Direito Penal do inimigo é daqueles que o constituem contra
o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra.22
;
Essa pequena amostra do discurso de Jakobs, ao identificar o tipo de tratamento que
deve ser destinado ao inimigo, é suficiente para descortinar um amplo leque de reflexões. À
primeira vista, revela-se a flagrante incompatibilidade do Direito Penal do Inimigo com o
ordenamento jurídico-penal brasileiro. Um direito penal de garantias não comporta traços
21
Para a definição de custódia de segurança, ver MAGALHÃES, Graça. A legião de criminosos que assusta a
Alemanha. Ministério das Relações Exteriores, 05 set. 2010. Disponível em:
<http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-de-noticias/midias-nacionais/brasil/o-
globo/2010/09/05/a-legiao-de-criminosos-que-assusta-a-alemanha>. Acesso em: 21 ago. 2011. 22 JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, pp. 28-29.
25
típicos de direito penal de autor, como se estudará com mais atenção logo adiante. Esse traço
típico de direito penal de autor fica evidente quando o inimigo em si é considerado um perigo
a ser neutralizado, não sendo necessariamente perigoso pela conduta que praticou, mas pelas
ações que dele se pode esperar.
Essa falta de garantias cognitivas, que junto de uma série de outras premissas, está na
base da teoria do Direito Penal do Inimigo, não é suficiente para que se possa infligir ao
indivíduo uma sanção penal ou, sob o prisma da periculosidade, uma medida de segurança.
Apenas para antecipar um pouco a discussão, admitir uma verdade como essa significa, em
última análise, negar a um egresso do sistema carcerário, por exemplo, sua reintegração ao
meio social, que constitui inclusive uma das funções declaradas da pena (ideologias re,
próprias da função de prevenção especial positiva).
Supor que aquele que praticou um crime grave é incapaz de agir conforme o direito
enquanto durar sua vida é uma atitude, além de atentatória a direitos e garantias, irracional do
ponto de vista lógico. Afinal, não há como prever, no lapso de tempo que dura uma vida
humana, com um grau satisfatório de certeza, que um determinado evento certamente voltará
a ocorrer. Em último grau, o Direito Penal do Inimigo peca por transformar a exceção em
regra, admitindo que desvios no comportamento de um indivíduo voltarão a ocorrer
sistematicamente com base em um abstrato juízo de periculosidade.
Em que pesem as considerações acerca de nossa perversa distribuição de renda, em
que muitos, dia após dia, são empurrados para o crime sem qualquer alternativa, admitir,
como já foi dito, que alguém que tenha passagens freqüentes pela polícia continuará levando
uma vida à margem da lei, ou que um homicida jamais se reintegrará à sociedade, constitui
um juízo que não apresenta nenhum prognóstico possível de verificação.
A argumentação acima seria totalmente verdadeira caso não fosse considerada uma
variável importante: o desvio secundário. O indivíduo, ao receber reiteradamente o rótulo de
criminoso, sendo segregado primeiramente pelo sistema prisional, que o marca por toda a
vida, e depois pela sociedade, que não o aceita de volta, segundo a lógica irrepreensível da
profecia que realiza a si mesma, assume esse rótulo como uma verdade e passa a se
comportar dentro desse modelo.
Uma vez dado esse passo, talvez se pudesse dizer que assiste alguma razão á teoria
que aponta justamente para isto: para uma periculosidade intrínseca, pré-determinada,
qualificada por atos que não autorizam um prognóstico favorável para aquele indivíduo em
termos de comportamento. Bem, de qualquer forma, isso representaria tomar um pouco os
efeitos pelas causas: esse fenômeno de desvio secundário, caracterizado pela interiorização
26
do rótulo de criminoso por um determinado indivíduo, é gerado justamente pelo estigma que
se lhe atribui, e não o contrário. Não se trata de uma característica que o acompanha e que se
manifesta, mas de uma reação aos estímulos do meio, que o segrega. Isto posto, torna-se
possível avançar ainda mais nessa exposição.
Sem prejuízo de tudo quanto já foi dito, a partir da análise do pensamento de Jakobs,
fica claro que, no contexto do Direito Penal do Inimigo, o aparato penal do Estado é
manejado necessariamente contra quem é definido como sendo inimigo. Esse dado revela
“uma forma exacerbada de reprovação”23
, no dizer de Cancio Meliá, que pode ser entendida
como uma acentuação da função retributiva da pena (desde que se entenda as medidas
tomadas contra o inimigo como pena, o que é, sob todos os aspectos, discutível).
Essa acentuação da função retributiva da pena fica evidente na seguinte passagem do
texto de Cancio Meliá:
Por isso, de certo modo, enquanto o discurso legitimante do Direito Penal do
inimigo positivo na discussão político-criminal parece afirmar que há algo “menos”
que o direito penal da culpabilidade (a reação imprescindível, mas serena, sem
censura, tecnocrática frente a um risco gravíssimo; uma reação frente a um perigo
examinado de modo neutro), na realidade é algo “mais” (a construção de uma
categoria de representantes humanos do mal; algo mais grave que ser
“simplesmente” culpado).24
A “construção de uma categoria de representantes humanos do mal” (inimigos), de
um lado, e a exacerbação da reprovação dirigida a esses inimigos, de outro, constitui o núcleo
duro do Direito Penal do Inimigo. Essa ideia a uma velha ideologia que, historicamente,
permeia todo o pensamento criminológico. Trata-se da ideologia da defesa social, dissecada
por Alessandro Baratta em sua obra Criminologia crítica e crítica do Direito Penal:
introdução à sociologia do Direito Penal.
Em síntese, a ideologia da defesa social pode ser enunciada como sendo aquela que
postula a existência de uma comunhão de interesses, supostamente existente na sociedade,
que justifica e legitima a punição dos delitos25
. Na atualidade, essa concepção coincide, com
o que Zaffaroni designa por “novo autoritarismo cool do século XXI”26
, que nada mais é
senão a reedição pós-moderna das campanhas de lei e ordem, marcadas pela necessidade
crescente de frear uma suposta criminalidade. No dizer desse brilhante penalista argentino,
23
JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, p. 106. 24
Ibidem. 25
Para um maior detalhamento acerca da ideologia da defesa social e de seus princípios, ver BARATTA,
Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal, pp. 41 e
seguintes. 26
ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 59.
27
Este novo autoritarismo, que nada tem a ver com o velho ou o de entre-guerras, se
propaga a partir de um aparato publicitário que se move por si mesmo, que ganhou
autonomia e se tornou autista, impondo uma propaganda puramente emocional que
proíbe denunciar e que, ademais – e fundamentalmente -, só pode ser caracterizado
pela expressão que esses mesmos meios difundem e que indica, entre os mais
jovens, o superficial, o que está na moda e se usa displicentemente: é cool. É cool
porque não é assumido como uma convicção profunda, mas sim como uma moda, à
qual é preciso aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar e
para não perder espaço publicitário.
Com isso se quer dizer que a construção do inimigo, nos moldes propostos por
Jakobs, não é novidade, tampouco movimento autônomo e independente, descolado da
realidade social e vivo apenas na mente de um doutrinador. Tal movimento se dá a partir da
concatenação de vetores cuja resultante é uma categoria de inimigo (ou inimigos) destinada a
atender às “emergências” do Estado, já definidas. Esse propósito, bem como as críticas que
lhe podem ser dirigidas, está disposto no próximo item deste capítulo, assunto que será objeto
de maiores reflexões no terceiro capítulo deste breve estudo.
1.2. Críticas
Não se pode tecer uma crítica séria do pensamento de Jakobs sem passar pelas
pertinentes considerações de Raúl Zaffaroni acerca do conceito de inimigo e de suas
conseqüências em matéria de Direito Penal e de política criminal. Tais conseqüências são
especialmente relevantes quando se trata da América Latina, especialmente marcada por
desigualdades históricas que em muito facilitam a seletividade do controle penal27
, cuja
acentuação pode ser apontada como conseqüência direta da adoção do Direito Penal do
Inimigo enquanto bússola para elaboração de leis penais.
Um dado que chama a atenção na análise de Zaffaroni acerca da conjuntura carcerária
latino-americana é a quantidade de “processados não condenados” que habita o sistema
prisional:
A característica mais destacada do poder punitivo latino-americano atual em relação
ao aprisionamento é que a grande maioria – aproximadamente 3/4 – dos presos está
submetida a medidas de contenção, porque são processados não condenados. Do
ponto de vista formal, isso constitui uma inversão do sistema penal, porém,
segundo a realidade descrita e percebida pela criminologia, trata-se de um poder
punitivo que há muitas décadas preferiu operar mediante a prisão preventiva ou por
medida de contenção provisória transformada definitivamente em prática. Falando
mais claramente: quase todo o poder punitivo latino-americano é exercido sob a
27
Para uma análise da seletividade do controle penal, ver ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA,
Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, pp. 45 e ss.
28
forma de medidas, ou seja, tudo se converteu em privação de liberdade sem
sentença firme: apenas por presunção de periculosidade.28
Curiosamente, essa prática reiterada de manutenção de presos provisórios, que se
encontram na situação anômala de cerceamento da liberdade sem o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória, muito se aproxima do instituto germânico da custódia de
segurança, abordado no item precedente. Essa aproximação se dá principalmente porque se
tem a contenção do indivíduo em função da crença em sua periculosidade, a despeito da não
condenação (caso da prisão provisória) ou do cumprimento integral da pena (caso da custódia
de segurança). Ambas as situações evidenciam tratamento penal típico de inimigo, na mais
crua acepção de Jakobs.
Esse encarceramento sem “sentença firme”, conforme apontado pelo autor em
comento, coloca em cheque muitos valores do processo penal e do ordenamento jurídico
como um todo. O devido processo legal é afrontado quando se admite a manutenção no
cárcere de tantos indivíduos sem um título apto a fundamentar esta medida. Além do que essa
tática de neutralização das classes subalternas, que no Brasil já atinge escandalosas
proporções, gera problemas de dimensões catastróficas no ordenamento social e econômico,
como o alto custo político e econômico da manutenção de prisões, enquanto outros serviços
públicos vitais padecem à míngua.
Outra questão que se coloca em face desse quadro é a sobrecarga dos juízos
responsáveis pelas execuções penais, que historicamente representa uma história de miséria
em muitas partes do mundo, inclusive nos países mais desenvolvidos29
. Apesar de Foucault
apresentar a idéia de que o direito das execuções penais foi originalmente pensado para não
funcionar, mantendo os indesejáveis por mais tempo, e em piores condições, nas prisões,
verifica-se que essa funesta conjunção das estruturas de poder se opera em detrimento dos
presos, que são a categoria de jurisdicionados mais interessados em seu funcionamento.
Apesar de cumprir uma pena por um ato que cometeu, apurado em um procedimento
que, ao menos em tese, observou todas as garantias constitucionalmente asseguradas, o preso
não está privado de todos os seus direitos e faz jus à tutela jurisdicional, sobretudo com
relação à situação de periculum in mora que se apresenta em determinados casos (p. ex.
celeridade no deferimento de um habeas corpus, capaz de proporcionar a liberdade ao preso
ou o escorreito cumprimento da pena privativa de liberdade, que deixa o indivíduo quite com
28
ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 70. 29
Para um quadro da miséria carcerária na Europa do século XIX, é bastante ilustrativa a análise feita em
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 35ª ed. Petrópolis, Vozes, 2008.
29
o Poder Judiciário). Dessa forma, o funcionamento precário da execução penal, apesar de
atendera razões de Estado, sendo uma das possíveis respostas, entre outras, nas chamadas
emergências, brilhantemente definidas por Zaffaroni, se dá contra aqueles que mais precisam
a prestação jurisdicional a cargo desses órgãos jurisdicionais e agrava a situação de um
sistema prisional em crise, como é o sistema prisional brasileiro. Apenas a título de reflexão:
não seria o sucateamento do sistema prisional, por si só, uma medida exercida em face dos
ditos inimigos?
Isto posto, cabe analisar os demais aspectos da crítica de Zaffaroni ao Direito Penal do
Inimigo, começando pela ameaça materializada na individualização de inimigos sem
características físicas imediatamente perceptíveis, que constitui uma questão extremamente
interessante e um argumento muito contundente no combate a essa tendência no âmbito do
Direito Penal.
a) Zaffaroni
A idéia central que permeia a análise crítica do Direito Penal do Inimigo, à luz do
pensamento de Raúl Zaffaroni, é bastante simples: se é buscada a individualização de
inimigos que não ostentam características físicas a priori identificáveis, deverão ser feitas
investigações complementares no intuito de individualizar e, conseqüentemente, tomar as
medidas próprias aplicáveis aos inimigos do Estado (tratamento penal típico de inimigo,
abordado na seção anterior). É no trâmite dessas investigações que os direitos e garantias dos
demais cidadãos (não inimigos) estão em risco, posto que as investigações mencionadas
podem, potencialmente, dirigir-se a eles. Sobre tal ponto, assim se expressa Zaffaroni:
Quando os destinatários do tratamento diferenciado (os inimigos) são seres
humanos não claramente identificáveis ab initio (um grupo com características
físicas, étnicas ou culturais bem diferentes), e sim pessoas misturadas ao e
confundidas com o resto da população e que só uma investigação policial ou
judicial pode identificar, perguntar por um tratamento diferenciado para eles
importa interrogar-se acerca da possibilidade de que o Estado de direito possa
limitar as garantias e as liberdades de todos os cidadãos com o objetivo de
identificar e conter os inimigos.
Isso é assim porque, por exemplo, ao se permitir a investigação das comunicações
privadas para individualizar os inimigos, a intimidade de todos os habitantes será
afetada, pois esta investigação incluirá as comunicações de milhares de pessoas que
não são inimigos. Ao se limitarem as garantias processuais, mediante a falta de
comunicações, restrições ao direito de defesa, prisões preventivas prolongadas,
presunções, admissão de provas extraordinárias, testemunhas sem rosto,
magistrados e acusadores anônimos, denúncias anônimas, imputações de co-
processados, de arrependidos, de espiões, etc., todos os cidadãos serão colocados
30
sob o risco de serem indevidamente processados e condenados como supostos
inimigos.30
Trazendo essa análise para a realidade brasileira, vislumbra-se uma tentativa, ainda
que frustrada, de evitar a propagação indiscriminada de arbitrariedades investigativas,
sobretudo em direção à camada mais rica da população. De modo que a classe dominante não
sofra constrangimentos, a pobreza é estrategicamente estigmatizada e criminalizada,
viabilizando a produção de um inimigo facilmente identificável31
. A criação de estereótipos
em muito contribui para esse processo e se afigura indispensável para a produção da categoria
jurídica de inimigo, como mais adiante se verá.
Tal processo é capaz de atender às emergências de Estado, minimizando os
inconvenientes relativos às verdadeiras imunidades penais das quais goza, p. ex., a
criminalidade econômica32
. Apesar de ter sido muito alardeado por Silva Sánchez a expansão
do direito penal contra a grande criminalidade organizada e a criminalidade econômica, neste
estudo se adota uma postura cética a respeito do assunto.
b) Direito Penal do Inimigo enquanto direito penal de autor
Esta seção analisa o Direito Penal do Inimigo enquanto direito penal de autor
(consideração da pessoa do criminalizado), denunciando a contradição intrínseca, e
conseqüente incompatibilidade, dessa doutrina com o ordenamento jurídico-penal brasileiro,
calcado no direito penal do fato (privilégio à conduta delituosa quando da aplicação da lei
penal). Antes, porém, de ingressar no mérito dessa análise, insta fazer breves comentários a
um e a outro modelo.
Dizer que um dado modelo de Direito Penal do fato privilegia o direito penal do fato,
em detrimento do direito penal de autor, significa dizer que, para efeitos de apuração da
responsabilidade penal, é a conduta do agente que contém elementos decisivos capazes de
constituir a imputação. Em relação ao modelo do direito penal de autor, este conta com a
consideração da pessoa do agente, o que introduz uma série de questionamentos relativos à
30
ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, pp. 116-117. 31
Ver ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, na parte em que os autores brilhantemente dissertam acerca da
“obra tosca da criminalidade”, ou seja, delitos de autoria quase que exclusiva das classes baixas, de pouca ou
nenhuma instrução. 32
Ver SUTHERLAND, Edwin H. Is “white collar crime” crime?. American Sociological Review. Vol. 10, No.
2, 1944 Annual Meeting Papers (Apr., 1945), pp. 132-139, artigo em que a própria definição de crime é
questionada em face da criminalidade econômica e organizacional.
31
sua legitimidade. Um dado importante introduzido pelo direito penal de autor, além de servir
de fundamentação para o Direito Penal do Inimigo, diz respeito ao fato de aprofundar o dado
de seletividade presente em todos os sistemas penais, como logo adiante se verá.
À primeira vista, o sistema jurídico-penal brasileiro parece confuso quando se trata de
fixar seus princípios cardeais. Enquanto se afirma que tal sistema se move no marco teórico
do direito penal do fato, o art. 59, caput do Código Penal parece dispor o oposto:
“Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta
social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências
do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja
necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime... (grifei)”
O legislador eleva a personalidade do agente à categoria de critério orientador para
aplicação da pena. A partir daí, abre-se a via propícia à investida do Direito Penal do Inimigo
em direção ao ordenamento jurídico-penal brasileiro. A recepção dessa teoria jurídica
enquanto critério orientador para a elaboração de leis penais só se torna possível graças a uma
característica presente, em maior ou menor grau, em todos os sistemas penais33
: a
seletividade na aplicação das leis penais. Esse elemento de seletividade na aplicação das leis
penais, conforme já ventilado há poucas linhas atrás, é fundamental para a compreensão do
Direito Penal do Inimigo e será fundamental para a conclusão desta análise.
A análise do Direito Penal do Inimigo enquanto teoria jurídica que fundamenta um
direito penal de autor parte, portanto, da análise preliminar da seletividade do controle penal.
Esta característica estruturante de todos os sistemas penais surge a partir da aplicação
diferenciada das leis penais a determinadas categorias de indivíduos e se verifica na razão
direta das desigualdades sociais. O processo mencionado ocorre à medida que as
desigualdades sociais geram conflitos capazes de comprometer a higidez do Estado, que,
prontamente, busca defender-se.
A resposta para tais conflitos normalmente é uma resposta penal mais ou menos
severa, dirigida a grupos dissidentes ou que, de alguma forma, gerem conflitos capazes de
romper a ordem social imposta coercitivamente pelo soberano. Esses grupos dissidentes,
conforme exposto por Zaffaroni, são inicialmente perseguidos e postos à margem da
sociedade como indesejáveis. Aos poucos, no bojo de um processo de construção de “não-
33
Esta afirmação pode ser encontrada em ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro,
SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 51, quando os autores
escrevem que “... a seletividade é estrutural e, por conseguinte, não há sistema penal no mundo cuja regra
geral não seja a criminalização secundária em razão da vulnerabilidade do candidato...” (grifo no original).
É com base nessa obra que se faz as afirmações iniciais sobre seletividade penal contidas neste capítulo.
32
pessoas”, é que se tornarão os inimigos que o Estado buscará perseguir de forma
diferenciada. É de se notar que, sem a diferenciação de uma dada gama de sujeitos a quem se
dirige uma estratégia de neutralização baseada no perigo que tais sujeitos possam representar
(construção da categoria penal de inimigo), não há Direito Penal do Inimigo possível.
Essa criminalização seletiva, cuja manifestação preponderante é o fenômeno
carcerário, processa-se mediante três variáveis fundamentais: i) aplicação do Direito Penal
pelos juízes, a qual, em sua concretude, acaba criando direito, não apenas aplicando o direito
vigente, ii) criminalidade “de colarinho branco”, dificilmente punida, a qual exclui da
clientela do sistema penal uma dada classe social, e iii) a chamada “cifra oculta da
criminalidade”, que corresponde à diferença, de instância a instância do sistema jurídico-
penal, entre a totalidade das infrações cometidas e aquelas que são efetivamente perseguidas
(isso se tratando da fase investigativa, a cargo da Polícia.
Para verificação da cifra oculta no âmbito do Judiciário, a diferença a considerar é a
existente entre a totalidade dos delitos averiguados pela Polícia e aqueles que são
efetivamente denunciados, e daí por diante). O resultado dessa perversa engrenagem é a
execução penal, cujo resultado final é a seleção de determinados indivíduos, sempre os
mesmos, que constituem seu “público” ou “clientela”. Essa produção em série de indivíduos,
por definição, nocivos à sociedade conforma um Direito Penal excludente, oposto a um
Direito Penal de garantias, que deve servir de elemento de contenção do poder punitivo,
última salvaguarda do cidadão perante a fúria persecutória do Estado.
A seletividade do sistema penal não ocorre por acaso, possuindo funcionalidade
própria dentro de tal sistema. Os estudos acerca da cifra oculta da criminalidade revelam que
esse número é superior, em muito, ao número de infrações efetivamente punido34
. Essa
discrepância é funcional na medida em que, se todas as infrações penais fossem punidas, toda
a população, ou pelo menos a maior parte dela, seria criminalizada, provavelmente mais de
uma vez. Isso acarretaria uma redução ao absurdo, na medida em que traria à baila uma
distorção para o sistema.
Selecionando-se quantitativamente os clientes do sistema penal é possível, a um só
tempo, exercer racionalmente o poder de punir, de forma a intimidar a classe dominada
mediante o encarceramento de parte de seus membros e, além disso, exercê-lo de modo a
imunizar a classe dominante, que pode delinqüir sem conhecer a punição. Essa estrutura
perversa é a base de um sistema penal que, à semelhança do brasileiro, pune os delitos de
34
Esse dado pode ser encontrado em BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal:
introdução à sociologia do Direito Penal, p. 102, sob o epíteto de “cifra negra”, com igual significado.
33
pouca repercussão, cometidos por muitos, e deixa à solta os responsáveis por delitos de muita
repercussão, salvos raríssimos casos em que a intervenção da mídia, provocada pelo clamor
público, atrai a ação repressiva das agências que compõem o sistema penal.
Passa-se, dessa forma, de uma seleção quantitativa a uma seleção qualitativa,
mediante o seguinte raciocínio: não é funcional para o sistema que toda a população seja
criminalizada. Logo, parte dela o será e outra parte, não. Considerando que o poder de definir
a criminalidade encontra-se nas mãos da classe dominante, ela se imuniza e joga aos leões do
sistema penal uma parcela significativa da classe dominada. Nesse particular, um detalhe
afigura-se fundamental: o discurso oficial das instâncias punitivas se legitima a partir do
discurso da Criminologia positivista tradicional.
Esta, ao investigar supostas causas da criminalidade (paradigma etiológico) e as
encontrar em meio a uma maior tendência das classes baixas à delinqüência, legitima o
exercício do poder punitivo pelas agências que compõem o sistema penal e, por via de
conseqüência, contribui de forma expressiva para a individualização do inimigo. Essa função
do saber como fonte de poder não é nova, mas é apontada por Foucault na obra Vigiar e punir
como elemento conatural a todo e qualquer sistema que produza saber no escopo de suas
atividades.
A título de exemplo, ao conjunto de saberes, classificações, doutrinas e os mais
diversos conhecimentos acerca do sistema prisional, somados àqueles agentes que os
produziam (médicos em geral, psiquiatras, em particular, diretores de presídios, etc.) Foucault
atribui o rótulo genérico de “o Carcerário”. Essa criminologia tradicional, que fundamenta a
produção de um Direito Penal excludente, que, como se examinará, apresenta traços
embrionários de um Direito Penal do Inimigo, é o saber que fundamenta o poder exercido
contra os indesejáveis que o Estado se propõe perseguir.
Essa função legitimadora do discurso oficial vem, nos últimos tempos, sendo mitigada
por um novo paradigma da Sociologia Criminal. Trata-se do labelling approach,
brilhantemente analisado por Baratta em obra já citada. Tal paradigma propugna que os
índices de criminalidade não são definidos por uma maior ou menor tendência de uma ou de
outra classe social para delinqüir, mas por uma maior ou menor tendência, de acordo com
critérios definidos pelas instâncias detentoras do poder punitivo, de ser criminalizado.
Esse processo de criminalização recebe o nome de “etiquetamento” (labelling),
constituindo o ponto de partida para análise dos fenômenos de criminalização. Sob a
perspectiva do labelling approach, o fenômeno da criminalização ganha contornos mais
concretos enquanto atribuição do rótulo social negativo de criminoso. Essa noção de
34
criminalidade enquanto bem jurídico negativo, ao conferir concreção à tese exposta, constitui
uma ferramenta a msia para a compreensão do fenômeno da criminalidade e, por via de
conseqüência, da seletividade do controle penal.
Passa-se, dessa forma, a avaliar a criminalidade como um ente social e juridicamente
construído, deixando-se de lado a naturalização que se traduz em assumi-la como um dado
prévio, quase que natural, não no sentido na normalidade do desvio, mas no sentido das
teorias das causas da criminalidade, que buscam explicá-la a partir de um paradigma estranho
ao das ciências sociais, dentre as quais o próprio direito.
A partir do confronto do discurso das agências35
oficiais com a proposta da sociologia
criminal do labelling approach, desnuda-se magistralmente o fenômeno da seletividade do
controle penal. Tal seletividade pode ser então dada como resultante da aplicação diferencial
de estratégias punitivas a indivíduos, em tese, iguais perante a lei.
Ora, pela simples análise dessa proposição, pode-se concluir que tratar
diferencialmente indivíduos teoricamente iguais com base em diferenças construídas, social
ou juridicamente, é algo que praticamente se confunde com a proposta do Direito Penal do
Inimigo (tomado na acepção de flexibilização de direitos e garantias de indivíduos com fulcro
na alegação de sua periculosidade intrínseca ou outro elemento individualizante que o
justifique).
Se esse tratamento diferencial, calcado na seletividade do controle penal, no caso do
Direito Penal do Inimigo, é aplicado levando-se em consideração alguma característica do
indivíduo, e não da conduta por ele praticada, ingressa-se no campo nebuloso do direito penal
de autor e de todas as considerações que se pode fazer sobre suas implicações, seja de curto
ou de longo prazo.
Apesar do longo raciocínio desenvolvido para chegar até aqui, é lugar comum entre os
críticos identificar o Direito Penal do Inimigo com direito penal de autor. Para ilustrar essa
afirmação, observe-se o que escreve Cancio Meliá: “... o „Direito Penal‟ do inimigo –
dedicado essencialmente a definir categorias de sujeitos – é de modo estrutural um Direito
Penal de autor”.36
Assim prossegue esse mesmo autor: “... a incorporação do binômio pena-inimigo é
categoricamente incompatível com o Estado de Direito”37
. Sobre essa segunda afirmação,
seria lógico perguntar-se: tal incorporação seria compatível com outro modelo de Estado,
35
A nomenclatura está presente e é largamente utilizada em ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA,
Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. 36
JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, p. 111. 37
Ibidem, p. 112.
35
mais exatamente com o estado de polícia? Reflexões interessantes podem ser encontradas em
Salo de Carvalho38
, que aparentemente fornece resposta afirmativa a esta pergunta. Indo
ainda mais além: para esse autor, o Direito Penal do Inimigo é a forma jurídica própria do
Estado de polícia, com ele se confundindo por suas características estruturais e sua
conformação enquanto direito de exceção. Essa exceção, segundo Salo, ao se tornar regra e
somada à natural capacidade expansiva do Direito Penal, instaura progressivamente o Estado
de exceção, até os limites de autoritarismo que tal modelo é capaz de alcançar.
Ora, caso se conclua pela compatibilidade do Direito Penal do Inimigo com o estado
de polícia, conclui-se pelo definitivo rompimento dessa teoria jurídica com o Estado de
Direito. Zaffaroni e Nilo Batista expõem com muita clareza esta questão ao afirmarem que
“O estado de direito é concebido como o que submete todos os seus habitantes á lei e opõe-se
ao estado de polícia, onde todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que
mandam”39
(grifado no original). Igualmente corroboram essa assertiva outros dois
fragmentos dessa mesma obra, colacionados abaixo:
“Sem a contenção jurídica (judicial) o poder punitivo ficaria liberado ao puro
impulso das agências executivas e políticas e, por conseguinte, desapareceriam o
estado de direito e a própria república (...)
O estado de direito contém os impulsos do estado de polícia que encerra à medida
que resolve melhor os conflitos (provê maior paz social)40
.
Nesse contexto, o Direito Penal do Inimigo gera um dilema sem solução possível:
caso se entenda ser a medida aplicável ao inimigo uma pena, o Direito Penal do Inimigo, no
dizer de Meliá, automaticamente se incompatibiliza com o Estado de Direito. Essa
incompatibilidade aproxima o Direito Penal do Inimigo do estado de polícia ou estado de
exceção, diametralmente oposto ao Estado de Direito.
Caso não se entenda ser a medida aplicável ao inimigo uma pena, ainda assim o
Direito Penal do Inimigo é incompatível com o Estado de Direito porque preconiza, dentre
outras coisas, o cerceamento da liberdade do cidadão mediante uma abstrata noção de
periculosidade (ver nossas considerações sobre a custódia de segurança, no item 1.2).
Ainda que se argumente que esse fundamento é perfeitamente aplicável às medidas de
segurança, previstas no ordenamento jurídico brasileiro, há de se frisar que estas têm seu
alcance restrito aos penalmente inimputáveis, ao passo que a custódia de segurança é capaz
de atingir imputáveis, dentro de uma lógica de sistema duplo binário, e, pior que isso,
38
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06). 39
ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 41. 40
Ibidem, pp. 40 e 41.
36
imputáveis que já cumpriram suas penas e não são libertados por razões de política criminal.
Em nosso sistema, situações como essa constituiriam aberrações jurídicas, dado que a Lei
Maior, como é sabido e consabido, veda penas perpétuas.
Na prática, o prolongamento indefinido da custódia de segurança traduziria uma pena
perpétua, inadmitida pelo sistema pátrio. Reflexões sobre a sistemática das medidas de
segurança e sua natureza jurídica, quanto a esse aspecto da vedação de perpetuidade das
penas, apesar de constituir tema interessantíssimo, em tudo foge à abordagem deste estudo.
Esse raciocínio é complementado eficazmente por Meliá, quando afirma que “... as
medidas de exceção deveriam ser identificadas... formalmente como tais”41
. Ora, não há
espaço, no ordenamento jurídico brasileiro, para tais “medidas de exceção”. O art. 5º, inciso
XXXIX da Constituição da República Federativa do Brasil deixa isso bem claro: “XXXIX –
não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Qualquer
prática diferente desta pode configurar ilícitos que vão desde a afronta ao texto constitucional
até as mais escancaradas práticas de terrorismo de Estado, como verificado em período
histórico recente.
Outro doutrinador que denuncia esta teoria como partidária do direito penal de autor é
Luiz Regis Prado. Em seu Curso de Direito Penal Brasileiro, ao explicar a teoria da
imputação objetiva de Jakobs, Prado revela que, de acordo com a teoria mencionada, “O
agente, cujo comportamento deve passar pelo filtro da imputação objetiva, deve ser definido
de modo normativo, através do papel social que desempenha” 42
(grifos do autor).
Ora, a definição do autor de um fato penalmente relevante, levada a efeito pela própria
norma jurídico-penal, representa um aprofundamento da seleção criminalizante, já analisada.
Esta outra forma de seleção, operada nas próprias leis penais, revela-se ainda mais perversa
que aquela executada pelas agências do sistema penal, posto que reserva reduzida margem às
estratégias de contenção do poder punitivo.
A incompatibilidade do Direito Penal do Inimigo com o direito penal do fato, em
última análise, deve-se ao abandono da análise objetiva da conduta em favor da análise
subjetiva da intenção do agente. Por outras palavras, desloca-se o foco do injusto,
tradicionalmente entendido como o binômio tipicidade-antijuridicidade, para a culpabilidade.
Além disso, há uma antecipação da verificação da culpabilidade, que se converte em uma
espécie de preliminar aferida a priori. Jakobs, com sua teoria da imputação objetiva, vai
ainda mais além ao indicar que o infrator deve ser definido normativamente.
41
JAKOBS, Günter e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas, p. 117. 42
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, p. 338.
37
De outra forma, pode-se afirmar que a dogmática penal tradicional resta subvertida
pelo Direito Penal do Inimigo, posto que, se o indivíduo é submetido a medidas penais pelo
simples fato de representar um perigo, qual seria a solução para os delitos de dano? Haveria
dois sistemas penais operando em paralelo, apesar do princípio da isonomia?
Esses dois simples questionamentos, para os quais o Direito Penal do Inimigo não é
capaz de oferecer resposta, são suficientes por si só para torná-lo incompatível com um
sistema jurídico-penal de garantias, calcado no direito penal do fato, como é o brasileiro. O
fato é que, apesar do ulterior desenvolvimento das pertinentes críticas, que virá, o Direito
Penal do Inimigo aparentemente não se coaduna com um sistema penal de garantias e, mais
ainda, com o próprio Estado de direito.
Muitas são as instituições democráticas, sobretudo em caráter penal, que o repelem
enquanto paradigma, ainda que meramente teórico, segundo seu conceito meramente
descritivo, já apresentado. As reflexões nessa seara carecem não só de um aprofundamento
teórico e dogmático, como também de considerações que fogem à fria lógica do Direito Penal
e perpassam toda a política criminal, o direito das execuções penais e a criminologia, até
mesmo de produção mais recente.
À semelhança de Jakobs, precursor desta doutrina, pensar o Direito Penal do Inimigo
como incapaz de contagiar o chamado direito penal do cidadão é uma alternativa no mínimo
ingênua. A análise dos movimentos expansivos do Direito Penal, sobretudo em Gracia
Martín, objeto do capítulo precedente, mostra que existe uma aparente unidade, ou ao menos
densos elementos de conexão, entre as vertentes expansivas do Direito Penal.
Esse grande movimento, apesar de dar seus passos iniciais, conta com uma
fundamentação teórica que, apesar de criticável, é construída com boa técnica e se afigura um
tanto quanto convincente. Do ponto de vista prático, o clamor público que uma multidão de
cidadãos indignados pode gerar certamente constitui uma força superior a milhões de críticas
teóricas que possam ser redigidas, mesmo que com notável brilhantismo, a respeito do tema.
É por isso que uma reflexão cuidadosa, com base na melhor técnica jurídico-dogmática
disponível, mais do que a repulsa imediata, é o remédio mais adequado aos efeitos nocivos
que o Direito Penal do Inimigo possa ter sobre o sistema jurídico brasileiro.
38
2 A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL
A proposta de expansão do Direito Penal está entre o que há de mais atual nessa seara
e, apesar disso, vai de encontro ao pensamento de verdadeiros expoentes que integram a
vanguarda da doutrina brasileira43
. Atualmente, momento em que tantas arbitrariedades são
cometidas, atrai a atenção um movimento destinado a alargar as margens punitivas do Estado.
Um movimento nesses moldes se destaca principalmente porque vai na contramão dos
fins do Direito Penal tradicionalmente preconizados pela doutrina mais progressista. Nesse
sentido, veja-se o que escreve Nilo Batista a respeito da missão do Direito Penal:
Podemos, assim, dizer que a missão do direito penal é a proteção de bens jurídicos,
através da cominação, aplicação e execução da pena. Numa sociedade dividida em
classes, o direito penal estará protegendo relações sociais (ou “interesses”, ou
“estados sociais”, ou “valores”) escolhidos pela classe dominante, ainda que
aparentem certa universalidade, e contribuindo para a reprodução dessas relações.
Efeitos sociais não declarados da pena também configuram, nessas sociedades, uma
espécie de “missão secreta” do direito penal44
.
A forma pela qual tal embate se desenvolve e quais são as críticas que podem ser
formuladas aos movimentos de expansão do Direito Penal serão abordadas a seguir, iniciando
pela exposição do modelo de expansão penal proposto por Luis Gracia Martín45
.
Gracia Martín fornece uma grande contribuição para a compreensão do fenômeno de
expansão do Direito Penal. Ainda que calcada numa perspectiva eurocêntrica desse
fenômeno, sua abordagem teórica permite identificar traços fundamentais desse fenômeno
expansivo e, até certo ponto, contribuir na análise sobre em qual medida essa expansão se dá,
de fato, no cenário político-criminal brasileiro.
A leitura da obra deste penalista espanhol permite apreender, em síntese, que o
fenômeno de expansão do Direito Penal apresenta um duplo aspecto: quantitativo e
qualitativo. Seu aspecto quantitativo é traduzido pela criação de novos tipos penais, sobretudo
de delitos de perigo, os quais, na visão deste autor, legitimam-se em função dos novos riscos
criados principalmente pelas atividades econômicas em escala global que progridem dia após
dia na sociedade contemporânea.
O aspecto qualitativo pode ser visto como o avanço do Direito Penal sobre novos
âmbitos de tutela, como o denominado “Direito penal do risco”, o novo Direito penal
econômico e do meio ambiente, o Direito penal da empresa, a criminalidade e o Direito penal
43
Como por exemplo, BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro,
Revan, 2007, que aborda o Direito Penal sob uma perspectiva redutora do poder punitivo. 44
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 116. 45
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a
crítica do discurso de resistência. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 2005.
39
da globalização, o Direito penal da União Européia e, por fim, o Direito Penal do Inimigo.
Dessa forma, Gracia Martín situa o Direito Penal do Inimigo enquanto manifestação especial
do “direito penal moderno”, o qual, segundo esse mesmo autor, é um movimento de
reformulação das normas penais motivado principalmente pela incapacidade de as leis penais
atuais atenderem às novas necessidades punitivas da sempre mutante dinâmica social. Cabe,
nessa etapa inicial de análise, descer às minúcias de cada um desses movimentos penais de
expansão.
2.1. As vertentes de expansão do Direito Penal segundo Gracia Martín
As vertentes de expansão do Direito Penal, tal qual descritas por Gracia Martín, são: i)
Direito penal do risco; ii) Direito penal econômico e do meio ambiente; iii) Direito penal da
empresa; iv) Direito penal da globalização; v) Direito penal da União Européia e vi) Direito
Penal do Inimigo. Abaixo, far-se-á a abordagem de cada uma dessas vertentes expansivas.
O denominado “Direito penal do risco” envolve, no dizer de Gracia Martín,
... um grupo de tipos delitivos com um conteúdo de injusto relativamente
homogêneo em virtude do dado comum de que em todos eles se constata a
realização de condutas que representam apenas, no máximo, um simples e mero
perigo abstrato para bens jurídicos principalmente individuais46
.
Gracia Martín identifica nessa nova categoria de normas penais, que integra um
movimento maior de expansão do Direito Penal, a resposta à produção diária de novos riscos
associados às “atividades relativas à tecnologia atômica, à informática, à genética, à
fabricação e comercialização de produtos potencialmente perigosos para a vida e a saúde,
etc”47
.
Um capítulo criticável da exposição desta frente expansiva do Direito Penal é aquele
em que o autor revela ser esse novo “Direito penal do risco” destinado a prevenir não só
riscos calculáveis, como também aqueles de muito pouco provável ou, ainda, de remota
possibilidade de concretização. Trata-se, como afirma Gracia Martín, de
precaução ante a incerteza e a impossibilidade de cálculo dos riscos que, conforme
estimativas meramente estatísticas, podem se produzir com maior ou menor
probabilidade em conseqüência de determinadas atividades, como por exemplo
aquelas de caráter científico cujo conhecimento ainda é incerto48
.
46
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a
crítica do discurso de resistência, p. 47. 47
Ibidem, p. 49. 48
Ibidem, p. 50.
40
Ora, esse pequeno trecho da exposição pode ser alvo de severa crítica na medida em
que a “incerteza e a impossibilidade de cálculo dos riscos” põem em cheque uma das
principais garantias penais: o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos.
Segundo o magistério de Luiz Regis Prado, “A noção de bem jurídico implica a
realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social de
sua [sic] relevância para o desenvolvimento do ser humano”49
. Prossegue este autor da
seguinte forma:
... resta precisar o conceito de bem jurídico penal, como sendo um ente (dado ou
valor social) material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade
individual ou metaindividual, reputado como essencial para a coexistência e o
desenvolvimento do homem50
.
Nesse sentido, uma conduta, seja ela comissiva ou omissiva, só deve ser criminalizada
à medida que traduza uma ofensa, imediata (delito de dano) ou potencial (para delitos de
perigo), a determinado bem jurídico. Sob este prisma garantista de análise, necessariamente
redutor da tutela penal, questionamos até que ponto, para os delitos de perigo, a incerteza ou
até mesmo a impossibilidade de mensuração dos riscos penalmente tutelados compromete a
validade da incriminação de condutas.
Em síntese, tal crítica pode ser assim formulada: se os delitos de perigo abstrato, que
constituem o núcleo duro do “Direito penal do risco”, tutelam a possibilidade de lesão a
determinado bem jurídico, uma vez que o risco de concretização de tal possibilidade não
possa ser avaliado de maneira objetiva, ainda que aproximada, verifica-se a construção de
tipos penais que contrariam o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, que constitui,
a nosso ver, uma das garantias penais da qual o Estado democrático de direito não pode
prescindir.
Outra crítica que pode ser legitimamente dirigida ao pensamento de Gracia Martín
quando trata da expansão do direito penal, sob o aspecto particular do “Direito penal do
risco”, é aquela radicada na tutela penal dos riscos anteriormente apontados como resposta à
reivindicação de segurança jurídica por parte dos jurisdicionados. Leia-se o que esse autor
escreve a respeito do assunto:
Características desses novos riscos são tanto suas grandes dimensões como a
indeterminação do número de pessoas potencialmente ameaçadas. Essa realidade,
própria da dinâmica da sociedade moderna, permitiria compreender esta mesma
sociedade como uma “sociedade de insegurança „objetiva‟”, dimensão objetiva que
ao se combinar com a subjetiva da “insegurança sentida” pelos cidadãos daria lugar,
finalmente, a uma situação de “sensação geral de insegurança” que levaria a
49
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume 1, parte geral, arts. 1º a 120. 7ª Ed. São
Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 53. 50
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume 1, parte geral, arts. 1º a 120, p. 142.
41
sociedade a uma forte demanda de segurança por parte do Estado e a que este
respondesse a tal exigência mediante a criminalização de comportamentos que se
desenvolvem nas novas esferas de risco51
.
A questão que se coloca diante de tal afirmação é a seguinte: seria a resposta penal a
medida mais adequada, sob o duplo aspecto da razoabilidade e da proporcionalidade, para
atender às expectativas de segurança jurídica da população? Não teriam as sanções civis de
caráter pecuniário, calcadas na teoria do risco do empreendimento, maior eficácia contra
abusos potencialmente danosos à população?
Pensar a pena, dentre todas as conseqüências jurídicas possíveis para dado
comportamento, enquanto a conseqüência mais gravosa, em todos os sentidos, para o
indivíduo e para a coletividade ajuda a elaborar as respostas adequadas a esses
questionamentos. Ensaiando um posicionamento até onde o atual desenvolvimento da
presente exposição permite alcançar, faculta-nos uma dupla via conclusiva: i) há medidas
mais adequadas do que a resposta penal à contenção dos abusos e dos riscos inerentes ao
estágio atual de desenvolvimento tecnológico; ii) a sanção civil, sem prejuízo de sua natureza
jurídica majoritariamente indenizatória, comporta ainda, sob a égide do ordenamento jurídico
brasileiro, uma marcante característica punitivo-pedagógica que, em princípio, revela-se
eficaz na contenção de abusos das mais diversas ordens.
Essa característica tão relevante aparece principalmente no desenvolvido sistema de
multas administrativas e, com maior proeminência, na tutela dos direitos do consumidor. Na
esfera consumerista, o caráter punitivo-pedagógico apontado reside principalmente na
sistemática de atribuição de responsabilidade objetiva ao fornecedor de produtos ou de
serviços defeituosos. Nessa linha, observe-se a esclarecedora exposição de Sergio Cavalieri
Filho:
Que dever jurídico é esse? Quando se fala em risco, o que se tem em mente é a idéia
de segurança. O dever jurídico que se contrapõe ao risco é o dever de segurança. E
foi justamente esse dever que o Código do Consumidor estabeleceu no § 1º dos seus
arts. 12 e 14. Criou o dever de segurança para o fornecedor, verdadeira cláusula
geral – o dever de lançar no mercado produto ou serviço sem defeito -, de sorte que
se houver defeito e este der causa ao acidente de consumo, por ele responderá
independente mente de culpa. A produção de produto defeituoso é, portanto, a
violação do dever jurídico de zelar pela segurança dos consumidores. Aí reside a
contrariedade da sua conduta ao direito, e com isso fica caracterizada a ilicitude
como elemento da responsabilidade civil. Em suma, para quem se propõe fornecer
produtos e serviços no mercado de consumo, a lei impõe o dever de segurança;
dever de fornecer produtos e serviços seguros, sob pena de responder
independentemente de culpa (objetivamente) pelos danos que causar ao
consumidor. Esse dever é imanente ao dever de obediência às normas técnicas de
segurança. O fornecedor passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece
51
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a
crítica do discurso de resistência, p. 49.
42
no mercado de consumo. Aí está, em nosso entender, o verdadeiro fundamento da
responsabilidade do fornecedor52
.
Em síntese, o estabelecimento, no âmbito da lei civil, de um dever geral de segurança,
a ser observado por todo aquele que desenvolva atividade de risco, não só o fornecimento de
produtos e serviços, mas toda e qualquer atividade que implique possibilidade de lesão a bem
jurídico titulado por indivíduos ou coletividade destes, é uma alternativa à pura e simples
elaboração de leis penais fundamentadas no risco infundido pela dinâmica atual das relações
sociais.
A vantagem de tal alternativa é a ausência de lesão a garantias individuais como o
princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, abordado logo acima. A atribuição de
responsabilidade objetiva a quem violar o dever de segurança que lhe fora atribuído em razão
da atividade desenvolvida constitui, em tal contexto, uma medida de dissuasão muito próxima
à função de prevenção especial positiva pretensamente desempenhada pela pena, mas no
âmbito civil. Destaque-se o caráter punitivo-pedagógico de semelhante medida, que apresenta
vantagem em relação à resposta penal, uma vez que não vem acompanhada de seus efeitos
deletérios.
Contudo, sem prejuízo de tudo quanto se ponderou acima acerca das considerações de
Gracia Martín sobre o “Direito penal do risco”, também é possível alinhar as considerações
deste penalista com o raciocínio de Luiz Regis Prado acerca das funções da lei penal:
Nesse particular aspecto, cabe salientar que, mais que um instrumento de controle
social normativo – primário e formalizado -, assinala-se à lei penal uma função de
proteção e de garantia. Entretanto, tem sido destacado, com razão, que o Direito
penal está se convertendo, cada vez mais, em um instrumento de direção ou
orientação social, sobretudo em matéria de tutela de bens jurídicos
transindividuais53
.
Analisando-se o Direito Penal, sob o aspecto específico da lei penal, enquanto
“instrumento de direção ou orientação social”, até que as colocações de Gracia Martín sobre
o “Direito penal do risco” não são de todo incompreensíveis, sem prejuízo das críticas que lhe
podem ser contrapostas.
Em sua exposição sobre as manifestações especiais do Direito Penal moderno
enquanto movimentos penais de expansão, Gracia Martín prossegue na abordagem do “novo
Direito penal econômico e do meio ambiente”. De princípio, esse autor destaca o interesse
que o Direito Penal econômico vem despertando na doutrina, advertindo, no entanto, não se
tratar de fenômeno novo.
52
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo, Atlas, 2008, p. 44. 53
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, p. 53.
43
O autor prossegue estabelecendo uma noção do campo de intervenção penal que
pretende delimitar:
O comportamento delitivo não é exclusivo de uma classe social determinada, mas
se pratica por igual em todas as camadas sociais, e as classes média e alta
desenvolvem uma forma particular de delinqüência que se relaciona sobretudo com
as atividades econômicas e os negócios54
.
Sobre a associação específica dessa, por assim dizer, modalidade criminal com as
atividades econômicas e os negócios, são relevantes as considerações de Alessandro Baratta a
respeito do tema:
Sutherland, no seu fundamental ensaio de 1940, se servia precisamente dos dados
por ele analisados sobre a cifra negra da criminalidade de colarinho branco, para
projetar, em alternativa à teoria funcionalista, a sua teoria da “associação
diferencial”. Segundo esta teoria, como será exposto em seguida, a criminalidade,
como qualquer outro modelo de comportamento, se aprende (aprendizagem de fins
e de técnicas) conforme contatos específicos aos quais está exposto o sujeito, no seu
ambiente social e profissional55
.
Isto posto, e de forma a lançar as bases da exposição que se inicia, pode-se definir a
criminalidade econômica, de um modo bastante simples, como aquela que se verifica no
cotidiano de atividades em princípio lícitas e que é praticada por indivíduos que aprendem,
no seu ambiente social e profissional, fins e técnicas destinados às referidas práticas
delituosas.
A definição acima traz uma série de elementos capazes de induzir uma profunda
reflexão sociológica sobre o tema. Essa é, por si só, a primeira crítica que se pode fazer à
abordagem de Gracia Martín. Observe-se a síntese de sua concepção a respeito do Direito
Penal econômico:
O Direito penal econômico não é mais do que um setor da Parte Especial que
agrupa um certo número de tipos delitivos em virtude de determinados critérios
reitores materiais e formais. Trata-se de um Direito penal que se rege integralmente
pelo “princípio do fato”, pois o mesmo se funda em decisões político-criminais que
têm como base a desvaloração de determinados fatos em razão de apenas seu
caráter prejudicial para a ordem social independentemente do dado sociológico de
que sua realização seja acessível e possível só para sujeitos pertencentes às classes
sociais poderosas56
(grifei).
Ora, ignorar o fato de os chamados crimes do colarinho branco serem acessíveis
somente a determinada camada da população, conjugado ao fato de que, pelo menos no
Brasil, tais crimes serem raramente punidos, significa ignorar um dado capaz de explicar, ou
54
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 52. 55
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito
Penal, p. 66. 56
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, pp. 52-53.
44
ao menos ilustrar, um dado de suma importância na análise de qualquer sistema penal: a
seletividade. Sobre esse aspecto específico, valem as considerações enumeradas na seção 2.3
desta exposição.
Ao contrário do que fora exposto quanto aos delitos de perigo abstrato, que
constituem o cerne do chamado “Direito penal do risco”, Gracia Martín reconhece que “...
hoje é majoritária a opinião de que também os tipos do Direito penal econômico se
configuram e se legitimam a partir da proteção de bens jurídicos57
”. Entretanto, apesar dessa
referência expressa à proteção de bens jurídicos enquanto critério de fundamentação do
Direito Penal econômico, o autor se contradiz ao afirmar que
Em minha opinião, é preciso renunciar à pretensão de definir o delito econômico, e
o conteúdo do Direito penal econômico, mediante um único critério de validade
geral. Se o circunscrevermos às transgressões à ordem jurídico-econômica em
sentido estrito, entendendo-o como aquela parte da ordem econômica dirigida e
conduzida diretamente pelo Estado mediante a imposição coativa de normas de
planificação do comportamento dos sujeitos econômicos, então, e como já constatou
Muñoz Conde, o Direito penal econômico se reduziria praticamente aos delitos
contra a Fazenda Pública, aos monetários, aos de contrabando e aos relativos à
determinação e formação de preços58
.
Abrir mão de definir, ainda que de forma genérica, o substrato fático sobre o qual
deve incidir a tutela penal própria do Direito Penal econômico significa deixar de lado uma
melhor identificação do bem jurídico tutelado por esse ramo do Direito Penal. Essa lacuna,
conforme analisado quando da abordagem do novo “Direito penal do risco”, representa
ofensa ao princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, que constitui garantia das mais
elementares no âmbito penal.
Além disso, o próprio Gracia Martín, em que pese sua resistência no sentido de
estabelecer uma definição geral para o delito econômico, acaba por ensaiar tal definição ao
escrever que
Não obstante, todos esses fatos devem estar integrados também no Direito penal
econômico se, como me parece correto, formula-se um conceito amplo que reúna
em seu âmbito todo fato delitivo realizado no contexto e na prática de uma atividade
econômica (fator criminológico)59
.
Quanto ao Direito Penal econômico, o autor ora comentado acrescenta, por derradeiro,
que sua esfera de proteção abarca bens jurídicos novos, distintos dos tradicionais, de caráter
coletivo, universal ou supraindividual. Em sua opinião, também devem integrar esse ramo do
Direito Penal os tradicionais tipos contra o patrimônio e outros que sejam conexos com
57
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 53. 58
Ibidem, pp. 54-55. 59
Ibidem, pp. 55.
45
atividades econômicas, como o homicídio e as lesões nos casos de responsabilidade penal
pelo produto.
Essa possibilidade de extensão da tutela penal, em nosso sentir, revela-se quase que
ilimitada, principalmente considerando a extensão e o volume das atividades econômicas de
nossos dias. Uma conjugação das concepções de Gracia Martín acerca do Direito Penal do
risco e do Direito Penal econômico, levada até as últimas conseqüências e aplicada na prática,
é capaz de conduzir a um importante aprofundamento dos processos de criminalização. Essa
conjunção perversa, aliada à capacidade natural de expansão do Direito Penal, é capaz de
alterar sensivelmente a conformação do Estado democrático de direito tal qual o conhecemos.
Considerações mais elaboradas e críticas a esse respeito constituem objeto de reflexão mais
adiante na presente exposição.
Apesar de aglutinar sob o mesmo título o Direito Penal econômico e o Direito Penal
do meio ambiente, Gracia Martín dedica muito mais atenção ao primeiro, legando ao segundo
tão somente um parágrafo. Nesse parágrafo, o autor se limita a dizer que o Direito Penal do
meio ambiente é a representação por excelência do “direito penal moderno”, epíteto geral sob
o qual qualifica os movimentos atuais de expansão do Direito Penal.
Entretanto, por essa mesma razão, talvez fosse oportuno ter dedicado um trecho mais
amplo de sua obra para tratar do assunto. Não foi possível determinar até que ponto
semelhante omissão guarda relação com o caráter introdutório de seu ensaio ou, de outra
forma, se relaciona com a marcante atualidade do assunto, que ainda não deu azo a debates
mais aprofundados na doutrina.
Gracia Martín prossegue sua digressão escrevendo algumas laudas acerca do “Direito
penal da empresa”. Em uma exposição um tanto quanto resumida, o autor descreve, em linhas
gerais, a criminalidade de empresa como sendo aquela levada a cabo pelo homem de
negócios, no âmbito de sua atividade rotineira, marcada pelo diferencial de se desenvolver
sob a égide de uma organização sujeita à subordinação hierárquica e à repartição de funções,
pensada em contrapartida à criminalidade tradicional, individual e violenta.
Note-se o que o penalista em comento escreve a respeito do autor dos delitos da
espécie ora exposta:
... as condutas só podem ser realizadas de modo típico, ou seja, na qualidade de
autor, por um círculo de sujeitos qualificados por determinadas condições pessoais
especiais como, por exemplo, e conforme o caso, as de comerciante, de exportador,
de empregador, de obrigado tributário, etc. Contra o que defende a opinião
dominante, o fundamento material dos delitos não pode ser vislumbrado na infração
do dever jurídico específico que obriga os autores qualificados, mas sim na posição
especial e na capacidade de domínio (social) destes sobre o âmbito social no qual se
encontram determinados bens jurídicos que só necessitam de proteção penal em
46
face de determinadas ações típicas desses sujeitos com domínio social e não frente
àquelas próprias de quem carece desse domínio60
.
Apesar de essa definição sugerir traços característicos de direito penal de autor para o
Direito penal de empresa, o que o colocaria a um passo de integrar plenamente as fileiras do
Direito Penal do Inimigo, tal integração, considerando a realidade brasileira, não se verifica.
Apesar de o ordenamento jurídico pátrio conter uma quantidade apreciável de normas
esparsas que tratam da criminalidade de empresa, dentre as quais pode-se destacar a Lei nº
9.613, de 03 de março de 1998, que dispõe sobre os crimes de “lavagem” e ocultação de
bens, direitos ou valores, e a Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, na parte específica em
que trata dos crimes falimentares, a aplicação de tais leis revela-se pouco eficaz no dia a dia,
sendo observadas inúmeras decisões favoráveis em favor de indiciados por sua prática61
.
Entretanto, interessa continuar a exposição do que esse autor tem a dizer acerca do
“Direito penal da empresa”. Mais à frente, Gracia Martín desenvolve mais a idéia de conexão
necessária entre o Direito Penal empresarial e a organização desse tipo de criminalidade sob a
forma de um empreendimento lícito:
... hoje a realização da maior parte da atividade econômica – e,
correspondentemente, da atividade delitiva econômica – de fato só é imaginável e
possível a partir da organização de um conjunto de meios e de pessoas na forma de
uma empresa, e, por isso, no exercício de uma atividade tipicamente empresarial
ou em relação com ela62
.
A exposição de Alessandro Baratta acerca da criminalidade de colarinho branco em
Merton e Sutherland é de grande valia para a compreensão do fenômeno criminal
empresarial. Segundo expõe esse criminólogo, Merton propunha que os meios lícitos para a
conquista dos fins culturais estabelecidos em uma dada sociedade não estavam disponíveis
para todos. Em face dessa verdade inarredável, os indivíduos se propunham estratégias para
superar tal condição.
Uma dessas estratégias, segundo Merton, seria o desvio inovador, próprio dos homens
de negócios que praticavam crimes chamados “de colarinho branco”, na expressão
amplamente utilizada por Sutherland. Esse perfil desviante corresponderia à obtenção dos
fins culturais sem a respectiva interiorização dos meios lícitos socialmente estabelecidos,
dando azo ao comportamento desviante típico da classe dominante, escassamente perseguido
60
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 61-62. 61
Ver, a título de exemplo, ementa do habeas corpus concedido a Daniel Valente Dantas e a Verônica Valente
Dantas em julgamento um tanto quanto recente. Habeas Corpus nº 95.009/SP, Relator MIn. Eros Grau, DJE nº
241, divulgado em 18/12/2008, publicado em 19/12/2008. 62
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 62.
47
penalmente. A crítica de Alessandro Baratta ao valor explicativo da tese de Merton é severa
e, por sua lógica irrepreensível, merece destaque nesta exposição:
Em primeiro lugar, não será negligenciado o fato de que, na tentativa de integrar a
criminalidade de colarinho branco no esquema do desvio inovador, Merton foi
constrangido a acentuar a consideração de um elemento subjetivo-individual (a falta
de interiorização das normas institucionais), em relação a de um elemento-estrutural
objetivo (a limitada possibilidade de acesso aos meios legítimos para a obtenção do
fim cultural, o sucesso econômico). Parece-me evidente que este último elemento,
que constitui a variável principal do desvio inovador das classes mais favorecidas,
na teoria de Merton, desde a sua formulação originária, não pode ter a mesma
função explicativa em relação à criminalidade de colarinho branco, especialmente
quando se trata de indivíduos pertencentes aos grupos economicamente mais
avantajados e poderosos. Limitando sua análise, como é característica da sociologia
tradicional, ao fenômeno da distribuição de recursos, Merton não vê o nexo
funcional objetivo, que reconduz a criminalidade de colarinho branco (e também a
grande criminalidade organizada) à estrutura do processo de produção e do processo
de circulação do capital: ou seja, o fato posto em evidência por não poucos
estudiosos sobre a grande criminalidade organizada, que entre circulação legal e
circulação ilegal, entre processos legais e entre processos ilegais de acumulação,
existe, na sociedade capitalista, uma relação funcional objetiva. Assim, por
exemplo, uma parte do sistema produtivo legal se alimenta de lucros de atividades
delituosas em grande estilo. E, por isto, é fruto de uma visão superficial fazer da
criminalidade das camadas privilegiadas um mero problema de socialização e de
interiorização de normas63
.
Baratta, ao chamar a atenção para a relação necessária que existe entre processos
legais e processos ilegais de acumulação do capital na sociedade capitalista, dado ignorado
por Gracia Martín, revela um dos traços característicos da criminalidade empresarial
enquanto espécie do gênero criminalidade de colarinho branco: a imbricação de atividades
ilícitas com atividades lícitas ou o disfarce de atividades ilícitas sob uma fachada de licitude
(p. ex., criação de empresas com o fim específico de elisão tributária, lavagem de dinheiro
efetivada a partir da realização de empreendimentos lícitos64
, etc.). Tais considerações são
importantes para ampliar a percepção tanto acerca da criminalidade empresarial quanto sobre
o crime organizado propriamente dito65
.
Frente à constatação dessa relação necessária entre atividades lícitas e ilícitas, talvez a
proposta de Gracia Martín quanto á expansão do direito penal para criminalizar mais
63
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito
Penal, pp. 66-67. 64
Sobre este aspecto, ver DURRIEU, Roberto. Redefining Money Laundering and Financing of Terrorism.
Disponível em:
<http://www.iae.edu.ar/pi/Documentos%20Investigacin/Research%20Seminars/New%20Defiition%20of%20
Money%20Laundering_RD.pdf>. Acesso em: 02 out. 2011. 65
Como caso emblemático na história do crime organizado, quanto ao fato de atividades ilícitas alimentarem
atividades, em princípio lícitas, ver LA SORTE, Mike. Gaetano Badalamenti and the Pizza Conection. Rick
Porrello‟s AmericanMafia.com, jul. 2004. Disponível em: <
http://americanmafia.com/Feature_Articles_271.html>. Acesso em: 02 out. 2011, sobretudo no que tange ao
esquema denominado “Pizza Conection” (1975-1984), que foi nada menos senão uma operação de US$ 1,65
bi em heroína e cocaína cuja logística era operacionalizada por uma rede de pizzarias de fachada.
48
eficazmente tais condutas se afigure sedutora. Entretanto, em uma perspectiva redutora do
poder punitivo, uma vez considerada a vocação natural deste para a expansão, nem mesmo
esse dado torna defensável a proposta do penalista espanhol cuja obra ora examinamos.
Admitir o contrário significaria abrir uma brecha para a implantação do Estado de
Permanente Exceção, cujos contornos são expostos por Salo de Carvalho em sua análise da
Lei nº 11.343/0666
. Por Estado de Permanente Exceção, pode-se entender a
instrumentalização dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, no sentido de sua
flexibilização, de modo a tornar legítimo o desrespeito desses mesmos direitos e garantias
fora de um contexto constitucionalmente previsto (p. ex., estados de exceção e de sítio).
Conforme coloca o autor em comento:
Importante perceber, pois, que o processo de naturalização da exceção, com a
minimização de direitos e garantias a determinadas (não) pessoas, adquire feição
eminentemente punitiva, atingindo diretamente a estrutura do direito e do processo
penal, os quais passam a ser percebidos como instrumentos e não como freios aos
aparatos da segurança pública. Assim, dado o papel essencialmente repressivo que
adquirem os Estados na atualidade, fato que levou inclusive a sua ressignificação e
adjetivação como Estado Penal, os históricos instrumentos de contenção das
violências públicas (direito e processo penal) são convertidos, com a ruptura do seu
sentido garantidor, em mecanismos de agregadores de beligerância.67
Em outra frente, Sutherland, com sua teoria das associações diferenciais, com base na
qual teceu inúmeras considerações a respeito dos crimes de colarinho branco em artigo
escrito na primeira metade do século XX68
, afirmou não ser possível, com as ferramentas
sociológicas até então disponíveis, estabelecer uma teoria geral da criminalidade. Baratta
expõe muito bem as causas dessa impossibilidade:
Estas generalizações, afirma Sutherland, são errôneas por três razões. Em primeiro
lugar, porque se baseiam sobre uma falsa amostra de criminalidade, a criminalidade
oficial e tradicional, onde a criminalidade de colarinho branco é quase que
inteiramente descuidada (embora Sutherland demonstre, por meio de dados
empíricos, a enorme proporção deste fenômeno na sociedade americana). Em
segundo lugar, as teorias gerais do comportamento criminoso não explicam
corretamente a criminalidade de colarinho branco, cujos autores, salvo raras
exceções, não são pobres, não cresceram em slums, não provém de famílias
desunidas,e não são débeis mentais ou psicopatas. Enfim, aquelas teorias não
explicam nem mesmo a criminalidade dos estratos inferiores.69
.
Um dado muito caro à percepção de Sutherland era a chamada “cifra oculta”, que,
grosso modo, corresponde à diferença entre a criminalidade real e a criminalidade
66
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06). 5ª ed. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2010. 67
Ibidem, p. 79. 68
SUTHERLAND, Edwin H. Is “white collar crime” crime?. American Sociological Review. Vol. 10, No. 2,
1944 Annual Meeting Papers (Apr., 1945), pp. 132-139. 69
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito
Penal, pp. 71-72.
49
efetivamente perseguida no âmbito penal. Essa, por assim dizer, “grandeza criminológica”
assumia ampla magnitude no âmbito dos crimes do colarinho branco e merece alguma
atenção nesse estudo, correspondente às reflexões que inspira nos autores da Criminilogia.
Entre esses autores, Albrecht examina a questão com incomparável propriedade, utilizando o
epíteto “cifra negra” para qualificá-la.
Esse autor, em sua obra de Criminologia70
, estabelece, em princípio, duas definições
de “cifra negra”: i) “... a cifra negra é o conjunto de acontecimentos, em princípio,
capazes de criminalização”71
; ii) “... a criminalidade não registrada, ocultada das instâncias
de controle („cifra negra‟)”72
, explicando, em seguida, o conceito: “Produz-se portanto,
portanto, uma diferença entre criminalidade real e criminalidade registrada que, então, a
correspondente cifra negra deve identificar”73
.
Segundo este autor, as “pesquisas de cifra negra” buscam conferir uma medida à
criminalidade, em tese, punível, mas que de fato não é punida. Essa quantificação constitui
uma medida, em um primeiro momento, do grau de funcionalidade da criminalidade não
punida no âmbito de um sistema penal e, em um segundo momento, do grau de seletividade
do sistema penal ao qual a pesquisa é aplicada. É nas seguintes palavras que Albrecht
justifica a relevância das pesquisas de cifra negra:
A „visibilidade‟ da criminalidade é um processo altamente complexo – tudo menos
casualidade – e, com toda razão, nenhum processo apenas técnico, ou seja,
apolítico, mas um processo estreitamente ligado com as camadas e estruturas
sociais, econômicas e políticas de uma sociedade74
.
Quanto à amplitude dessa “visibilidade”, Albrecht sentencia o seguinte, conciso:
“Esta tese do necessário esclarecimento da cifra negra provém de uma compreensão da
ordem social como ausência de delinqüência”75
. Ora, essa conclusão é fundamental para
explicar um fenômeno recorrente na sociedade atual, sobretudo no Brasil, e que em tudo se
relaciona com a expansão do direito penal: trata-se da reiteração das campanhas de lei e
ordem, tão cara aos movimentos criminalizantes nascidos de tempos em tempos.
Essa avalanche de elementos sedentos de uma pseudo-justiça, abundantes no cenário
político nacional, que reivindica, dia após dia, um recrudescimento das leis penais em prol de
mais penas, ou de penas mais severas para os crimes já existentes, valora positivamente a
70
ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal. Tradução de Juarez
Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Curitiba, ICPC. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010. 71
Ibidem, p. 238. 72
Ibidem, p. 239. 73
Ibidem. 74
Ibidem, p. 240. 75
Ibidem, p. 242.
50
ausência de criminalidade não punida. Esse dado, segundo Albrecht, é disfuncional para o
sistema penal, que se alimenta da lacuna entre infrações cometidas e infrações efetivamente
punidas (“cifra negra”). Veja-se o que diz o autor a respeito:
A ordem não é de estabilizar, contudo, sem delinqüência e sem delinqüência não
descoberta. Nós já tínhamos discutido... que a criminalidade (e uma característica
cifra negra) é normal e funcional... Criminalidade é funcional na medida em que,
no caso de compreensão completa, perder-se-ia o efeito discriminatório da
criminalização. Com isso, também estaria perdida a norma jurídico-penal. Aquilo
que pode acontecer a qualquer um não é mais demonstrável como ilegal e desviante.
Nisso, o desvio tem um efeito estabilizador de conformidade, mas que também se
baseia no caráter de exceção da criminalidade registrada76
.
Essas afirmações constituem um importante contra argumento contra a legitimidade
da expansão do direito penal. Ora, se a existência de uma “cifra negra”, correspondente,
evidentemente, a uma fração impune de criminalidade é funcional para o sistema e, por outro
lado, uma superabundância de normas penais, combinado a um recrudescimento nas práticas
das agências do sistema penal, esperado nesse tipo de situação, tende a reduzir a “cifra
negra”, movimentos como esse são disfuncionais para o sistema, gerando distorções. Como
exemplo, podem ser citadas as edições de normas penais com caráter meramente simbólico77
,
de um lado, e a eficácia inicial de uma norma na redução de determinada conduta punível,
que tende a diminuir conforme o apelo dessa mesma norma se dilui no tempo78
.
Outro aspecto importante da “cifra negra” é desenvolvido por Albrecht quando trata
da ubiqüidade do desvio. É bastante interessante o resultado apurado nessa seara, o qual
corrobora a tese da funcionalidade da “cifra negra” nos contextos social e penal:
... a imensa maioria de adolescentes e jovens adultos praticou, no curso de seu
desenvolvimento, formas de condutas delinqüentes. Esta conduta, por sua vez,
desaparece na imensa maioria dos casos, em alguns poucos, contudo, não. Na
medida em que a sociedade trabalha semelhantes desvios mediante controle social
informal, o Sistema de justiça Criminal permanece poupado da compreensão e da
solução. Este modo de consideração sociológico-jurídico, que parece correr
estritamente contra as premissas jurídico-penais centrais, como intimidação,
igualdade, Justiça, conduz à análise das funções centrais da cifra negra para a
sociedade e para o Sistema de Justiça Criminal79
.
Essa presença unânime do desvio no corpo social é quase um argumento para
justificar a escassa punição dos crimes de colarinho branco, entre eles aqueles cometidos no
ambiente empresarial, objeto do direito penal da empresa, nas palavras de Gracia Martín.
76
ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal, p. 242. 77
Ver, como exemplo, a edição da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei de Crimes Hediondos), editada em
momento de comoção nacional. 78
Ver, como exemplo, a edição da Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008 (Lei Seca), que, apesar do alardeado
sucesso inicial, tem tido seus resultados questionados. Uma evidência desse questionamento pode ser
encontrada em Departamento de Jornalismo. Estatísticas indicam fracasso da Lei Seca. Blog da União, 01 jul.
2009. Disponível em: < http://www.redeuniao.com.br/blogdauniao/?p=1867 >. Acesso em: 02 out. 2011. 79
ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal, p. 245.
51
Entretanto, não é legítimo argumentar-se em tal sentido porque a aceitação do cometimento
de crimes dessa natureza, sem maiores reflexões, conduz á sua naturalização, o que tende a
esconder dados inerentes à seletividade do controle penal, sempre embutidos nesse contexto.
Ainda segundo essa lógica da seletividade do controle penal, é lícito perguntar porque
uma “cifra negra” de magnitude semelhante à dos delitos de colarinho branco não é
verificada em infrações penais tipicamente patrimoniais de natureza diversa, e de menor
monta, como o furto e o roubo, por exemplo. Deixar de empreender tais reflexões conduz
necessariamente à aceitação irrefletida de uma criminalização seletiva que cabe a qualquer
penalista denunciar, seja por convicção ideológica, seja pela fidelidade científica à adequada
e completa descrição dos fenômenos.
Outro dado que chama a atenção é o fato de Gracia Martín categorizar o Direito Penal
empresarial como gênero do qual o Direito penal econômico e do meio ambiente é espécie,
ao escrever que “o Direito penal econômico e do meio ambiente, em realidade, tem que ser
configurado e compreendido em sua maior parte também como Direito penal da empresa”80
.
Classificar o Direito penal econômico e do meio ambiente enquanto espécie do Direito Penal
empresarial é até compreensível porque as condutas praticadas em detrimento do sistema
econômico e contra o meio ambiente necessitam, via de regra, de uma materialização
institucional. Entretanto, o autor se contradiz logo em seguida ao afirmar que
o Direito penal da empresa, ou seja, o conjunto de regulamentos jurídico-penais
relativos aos fatos delitivos cometidos no exercício de uma atividade empresarial,
tem que ser reconhecido também como uma manifestação típica – e ademais, de
grande importância e transcendência – do Direito penal moderno81
.
Um pouco antes nesta exposição, foi constatado que Gracia Martín considera uma
impropriedade definir os delitos econômicos e contra o meio ambiente. Pois bem, não seria
igualmente uma impropriedade definir a criminalidade de empresa, pela qual estão
abarcados? Se é impossível determinar um critério geral de identificação da criminalidade
econômica e ambiental, não seria igualmente possível fazê-lo quanto à criminalidade
empresarial? À luz da exposição do autor, essas perguntas permanecem sem resposta e
constituem uma das muitas falhas da proposta de expansão do Direito Penal, denominada
“direito penal moderno”, por ele perfilhada.
Apesar da pouca fundamentação de que o autor lança mão para embasar seus pontos
de vista, talvez a reflexão final incrustada na parte da obra em que Gracia Martín se manifesta
80
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 63. 81
Ibidem, p. 63-64.
52
sobre a criminalidade empresarial contenha uma ponte para um mundo de reflexões. Quando
escreve que
... os problemas que origina [a criminalidade empresarial] no plano da imputação
constituem sobretudo um duro teste para a validade de uma teoria geral da
responsabilidade penal (sc. do delito) que, como aquela vigente até agora, foi
construída sobre a base de um modelo de criminalidade violenta e individual82
.
Essa é uma questão interessante de se cogitar porque, quando se pensa em direito de
propriedade, p. ex., o Código Penal brasileiro assegura sua tutela com base no tipo penal do
furto, seguido por outros que constituem suas variações. Esse corpo de leis penais, que pensa
autor e vítima enquanto sujeitos singulares, não está preparado para abarcar delitos de mesma
natureza que atinjam, enquanto vítimas, ou tenham por autores uma coletividade de pessoas.
Esse é o caso, p. ex., dos delitos contra a economia popular e/ou o sistema financeiro, que via
de regra tem uma quantidade praticamente indeterminada de vítimas e cujo autor pode ser um
ente que se identifica com uma coletividade de sujeitos: uma empresa.
Daí decorre, conforme bem colocado por Gracia Martín, em primeiro grau, uma
perplexidade no momento da imputação e, em um segundo momento, quando há
identificação de possíveis autores e sua persecução penal, esta se frustra porque o corpo de
leis vigente não foi pensado para abarcar crimes dessa natureza. Ressalte-se que o objetivo
aqui não é defender qualquer movimento de expansão do Direito Penal. Entretanto, é muito
interessante notar que, até mesmo no bojo de uma obra que trata exclusivamente desse
assunto, é possível encontrar trechos capazes de abrir caminhos para reflexões bastante
interessantes.
Se existe um aspecto inegável na obra em comento é a capacidade de seu conteúdo
para fomentar o debate. Avançando na exposição, quando aborda a “criminalidade e o Direito
penal da globalização”, Gracia Martín dispara que “... os Estados claudicaram ante os poderes
econômicos internacionais...” 83
. E, mais adiante, complementa: “... a prática da atividade e
das transações econômicas obedece a pautas e a regras uniformes que, de fato, são impostas
aos Estados...” 84
.
Apesar de não estar expresso no texto, aparentemente se trata de uma oposição frontal
ao princípio da intervenção mínima85
, que constitui uma das notas distintivas da configuração
política do modelo contemporâneo dominante de Estado. Tais contornos, além de manterem
82
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 64. 83
Ibidem, p. 66. 84
Ibidem, p. 64. 85
Constituem exemplos práticos de aplicação deste princípio os arts. 8º, I e 34, caput, ambos da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
53
as liberdades individuais a salvo de atentados, destinam-se a fomentar a atividade econômica
ou, ao menos, não inviabilizá-la, permitindo que o país que os adote ganhe competitividade
na órbita internacional.
De qualquer forma, a crítica aqui presente se restringe à análise dessa aparente
oposição na esfera das liberdades dos cidadãos. Salo de Carvalho, ao tecer uma análise do
permanente Estado de exceção em que vive a sociedade contemporânea, relacionando-o com
o Direito Penal do Inimigo, escreve algumas linhas de extremo valor para esta exposição:
Na tensão entre a crise de segurança individual, vivenciada pela sociedade, que se
vê cada vez mais como vítima em potencial,e a falência da segurança pública,
representada pela incapacidade de os órgãos de Estado administrar minimamente os
riscos, tentações autoritárias brotam com a aparência de instrumentos eficazes ao
restabelecimento da lei e da ordem. No cálculo entre custos e benefícios, o
sacrifício de determinados direitos e garantias fundamentais aparenta ser o preço
razoável a ser pago pela retomada da segurança. Sua assimilação resta ainda mais
fácil se estes direitos e garantias integrarem o patrimônio jurídico de alguém
considerado como inimigo, de outrem, considerado como obstáculo ou ameaça que
deve ser reputado como ninguém, como não ser86
.
Ora, se a pretexto de um, diga-se, “presenteísmo” no trato estatal, contraposto ao
“absenteísmo” do Estado globalizado e neoliberal, chegar-se ao ponto de instituir a tirania,
transformando-se a intervenção, que no Estado democrático de direito deve ser exceção, em
regra, chega-se facilmente ao Estado de polícia, no dizer de Nilo Batista, ou ao Estado de
Permanente Exceção, conforme o magistério de Salo de Carvalho, os quais constituem
nomenclaturas muito próximas em seu significado. Portanto, a crítica levantada por Gracia
Martín, ainda que velada, pode ter seus desdobramentos na legitimação daqueles que
aproveitam as emergências87
, tão caras a Zaffaroni em sua análise crítica do Direito Penal do
Inimigo, para se estabelecer no poder.
O autor prossegue em sua crítica categorizando os crimes cometidos no contexto da
globalização: i) a primeira categoria seria composta por aqueles crimes cometidos, em regra,
no bojo de uma atividade em princípio lícita, mas desempenhadas com abuso de poder
econômico, infração de normas internacionais ou fraude, por exemplo; ii) a segunda categoria
é integrada por atividades já ilícitas de per si, “... como é o caso, por exemplo, do tráfico
internacional de drogas, de moeda falsa, de armas, de órgãos humanos, de pessoas para a
86
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06), pp. 78-79. 87
ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro, Revan, 2007, p. 143, página na
qual o autor define “emergência” como sendo o momento em que cabe definir e enfrentar o inimigo.
54
prostituição, de crianças para a adoção internacional, bem como o de imigrantes e
trabalhadores, ou a lavagem de capitais, etc”88
.
Essa lista de atividades ilícitas, que o autor chama de “economia submergida” ou
“mercados negros”, em seu conjunto, se aproxima de uma visão mais aprofundada de crime
organizado: “... a realização exitosa de toda essa macrocriminalidade internacional é
dificilmente imaginável à margem das burocracias administrativas estatais e, por isso, sem a
cooperação de funcionários e de agentes estatais”89
.
Nesse contexto, surge, ainda que de maneira fugaz, uma noção mais aprofundada do
que se poderia entender por crime organizado. Tal aproximação associa essa modalidade
criminosa, necessariamente, àquela criminalidade que mantém relações com as estruturas
estatais, longe, p. ex., da criminalidade “mambembe”, de organização muito incipiente, que o
discurso midiático de “lei e ordem” insiste em taxar de crime organizado, como é o caso da
atividade desenvolvida pelo pequeno traficante de drogas no Brasil. O estabelecimento de
uma ligação entre o crime organizado e as estruturas estatais, apesar de não ser reflexão das
mais triviais, constitui um raciocínio bastante difundido, que pode ser encontrado em
inúmeros autores e analistas políticos especializados no tema90
.
Ainda sobre esse ponto, Gracia Martín prossegue definindo a criminalidade
organizada como sendo “... uma criminalidade de organizações dedicadas a atividades ab
initio ilícitas e que agem totalmente em mercados ilegais e à margem do Direito”91
,
relacionando-a com a criminalidade econômica da globalização ao dizer que esta constitui um
complexo de realidades delitivas que praticamente se confunde com a criminalidade
organizada tradicional.
O ponto nevrálgico dessa parte da exposição diz respeito à aparente
institucionalização, com caráter de perpetuidade, da criminalidade organizada em âmbito
global. Como bem assinala o autor: A delinqüência econômica em geral, e, dentro dela, sua
macroscópica e mais complexa dimensão ligada à internacionalização e à globalização da
economia, já não se mostra como um fenômeno social de tipo isolado mas, ao contrário,
88
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 68. 89
Ibidem, p. 69. 90
Ver, por exemplo, PRIETO, José Ricardo. O crime organizado... pelo Estado. A Nova Democracia, nº 32.
Disponível em: <http://www.anovademocracia.com.br/no-32/405-o-crime-organizado-pelo-estado>. Acesso
em: 02 out. 2011, reportagem na qual o doutor em Sociologia José Cláudio Souza Alves, entrevistado pela
reportagem do periódico em referência, afirma haver um acordo tácito entre o Estado e a chamada
criminalidade organizada, o qual é rompido pelo primeiro de tempos em tempos. 91
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 70.
55
como um fenômeno que ocorre, como destaca Silva Sánchez, a partir de “elementos de
organização, transnacionalidade e poder econômico, ou, como indica Albrecht, a partir de
uma „organização permanente e estável‟”92
.
Gracia Martín prossegue em sua exposição tratando do “Direito penal da União
Européia”, o qual representa, em síntese, o corpo de leis destinado a conferir proteção aos
bens jurídicos europeus. Assim se expressa o autor nesse particular:
Em uma esfera mais concreta, deve-se considerar que a integração européia provoca
o aparecimento de todo um conjunto de “bens jurídicos europeus” claramente
diferenciados dos reconhecidos nos âmbitos nacionais específicos de cada um dos
Estados membros93
.
Ora, em sendo a coletividade uma interação de interesses de seus respectivos
membros, não há porque supor que tal interação, enquanto resultado final, constitua algo de
natureza distinta dos elementos que a compõe. Ou seja: não há por quê supor que os desafios
no âmbito penal, próprios da União Européia, sobretudo se considerado o avançado processo
de integração regional hoje verificável, sejam muito diferentes daqueles enfrentados no
cotidiano dos Estados que a compõe. Assim sendo, resta a interrogação acerca do porquê
dessa proposta de expansão do Direito Penal. Gracia Martín assim justifica:
Como não poderia deixar de ser, os processo [sic] de integração supranacional
comportam também importantes implicações de criminalidade,e estas motivam
diversas respostas político criminais e jurídico-penais que vão formando – e
finalmente configuram – um Direito penal específico da integração que, sem
dúvida, deve ser valorado como Direito penal moderno94
.
Contudo, que interesses estariam por trás de uma alternativa que, em última análise,
poderia ampliar os lindes de atuação do poder punitivo, conservando-o sem fronteiras
nacionais no âmbito da União Européia? Semelhante proposta, ainda que calcada em uma
noção de bem jurídico, choca-se frontalmente com o princípio da territorialidade absoluta da
lei penal (“Lex comissi delicti”, segundo a regra consagrada de Direito Internacional),
subvertendo o sistema de aplicação do Direito Penal hoje conhecido. Admitir a validade de
semelhante proposta traria, inevitavelmente, implicações sobre as noções relativas à aplicação
da lei penal e sobre a soberania tal qual as conhecemos.
Apesar de sua proposta radicalmente expansiva do Direito Penal no contexto da União
Européia, Gracia Martín demonstra serenidade ao afirmar o caráter fragmentário e subsidiário
da tutela penal, ainda que no âmbito da integração:
92
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 70. 93
Ibidem p. 73. 94
Ibidem, p. 72.
56
A proteção penal dos bens jurídicos europeus, porém, também tem que ser, como
nos ordenamentos nacionais, possuidora de um caráter fragmentário e subsidiário,
ou seja, deve ter lugar só frente às formas de agressão mais graves e quando não
bastem para esse efeito as sanções de caráter administrativo95
.
A posição contida no excerto acima colacionado sem dúvida deve ser levada em
consideração enquanto fator capaz de mitigar uma possível radicalização nesse campo,
devendo integrar toda e qualquer crítica séria que se queira fazer a respeito da obra em
comento. Entretanto, a última parte desse fragmento chama a atenção quando menciona “as
sanções de caráter administrativo”.
É importante para a análise aqui empreendida registrar que existe atualmente um
movimento de “administrativização do direito penal”, inclusive invocado por Jakobs e Meliá
em suas análises acerca do Direito Penal do Inimigo. Segundo esses autores, de alguma
maneira, o inimigo seria “heteroadministrado” pelo Estado, não sendo pena a medida contra
ele desferida, mas medida administrativa, sendo este um entre outros exemplos possíveis de
administrativização do direito penal96
. Uma síntese crítica deste movimento de
administrativização do direito penal também pode ser encontrada em Zaffaroni e Nilo Batista,
em obra redigida na companhia de dois outros penalistas, cujos termos são importantes para
ilustrar a argumentação ora empreendida:
Existe um fenômeno relativamente recente, ou seja, a chamada administrativização
do direito penal, que se caracteriza pela pretensão de um uso indiscriminado do
poder punitivo para reforçar o cumprimento de certas obrigações públicas (em
especial de âmbito fiscal, societário, previdenciário, etc.), o que banaliza o conteúdo
da legislação penal, destrói o conceito limitativo de bem jurídico, aprofunda a
ficção do conhecimento da lei, põe em crise a concepção de dolo, vale-se de
responsabilidade objetiva e, em geral, privilegia o estado em sua relação com o
patrimônio dos habitantes. Nesta modalidade, o poder punitivo é distribuído mais
por acaso do que nas áreas tradicionais dos delitos contra a propriedade, tendo em
vista que a situação de vulnerabilidade ante o mesmo depende do mero fato de
participar de empreendimentos lícitos. Há suspeitas de que recentes teorizações do
direito penal sejam orientadas para explicar tal modalidade em detrimento do direito
penal tradicional97
.
Isto posto, é mais que lícito questionar se a posição defendida por Gracia Martín não
se enquadra nessas teorizações orientadas para legitimar a administrativização do Direito
Penal. Apesar disso, não foi possível, pela análise da obra em comento, determinar se foi
95
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 74. 96
Uma análise interessante sobre a administrativização do Direito Penal pode ser encontrada em MACHADO,
Fábio Guedes de Paula e GIACOMO, Roberta Catarina. Breves reflexões sobre a administrativização do
Direito Penal, delitos por acumulação e antecipação da tutela penal na proteção do bem jurídico ecológico.
Disponível em: < http://www.diritto.it/pdf/28544.pdf>. Acesso em: 03 out. 2011. 97
ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. Vol. 1. Rio de Janeiro, Revan, 2007, p. 50.
57
intenção do autor empreender semelhante legitimação, mas é oportuno registrar essa possível
relação para o bom andamento das reflexões desenvolvidas a seguir.
O autor, ao longo de sua abordagem sobre o que entende por Direito penal europeu
revela-se, de certa forma, frustrado pelo fato de a União Européia não ter ainda podido
construir um Direito Penal próprio, capaz de tutelar os bens jurídicos que interessam à
comunidade de Estados que a compõem: “De outra parte, a União Européia carece de poder
penal, pois os Estados membros ainda não decidiram conceder-lhe nenhuma parte desse
componente de sua soberania”98
.
De princípio, surge uma primeira impropriedade em tal argumentação: no contexto de
uma integração regional, os Estados que a compõem não concedem partes componentes de
sua soberania, mas a compartilham, até porque esse atributo do Estado nação, enquanto
insubmissão no plano externo e monopólio do uso da força no plano interno, não pode ser, de
nenhuma forma, divisível.
No mais, restam as considerações de ordem dogmática acerca do princípio da
territorialidade absoluta da lei penal, já abordado. Admitir um Direito Penal regional, que
pudesse prescindir dos mecanismos tradicionais de cooperação jurídica internacional (e.g.,
extradição), passaria necessariamente por uma reformulação de todos os conceitos (ou de boa
parte deles) concebidos nessa seara.
Não que uma mudança de paradigma, de tempos em tempos, seja algo
necessariamente negativo. Entretanto, conforme já consignado em outros pontos dessa
exposição, os movimentos de expansão do Direito Penal representam, por si só, um
retrocesso, uma vez que asseguram uma necessária expansão do poder punitivo, contrária ao
fim máximo do Direito Penal, que é a redução desse mesmo poder, ressalvadas as posições
em contrário cuja abordagem é consignada ao longo desta exposição.
Apesar de construir diversas categorias, em princípio autônomas, dentro do projeto de
expansão do Direito Penal, observa-se na obra de Gracia Martín uma progressiva redução
mútua dessas categorias, com umas integrando-se as outras à medida que a exposição avança.
Pode-se constatar tal fato, dentre outras passagens, pela leitura do seguinte excerto:
O Direito penal da União Européia está orientado para a proteção de bens jurídicos
europeus, os quais têm um conteúdo essencialmente econômico,e por isso pode-se
dizer que o Direito Penal europeu é fundamentalmente um Direito penal econômico
e da empresa99
.
98
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 75. 99
Ibidem, p. 85.
58
Ora, se o Direito Penal econômico e da empresa é gênero do qual o Direito Penal
europeu é espécie, por quê não consignar essa relação logo de princípio, de forma a organizar
a análise em categorias que facilitem a compreensão do fenômeno que se pretende descrever?
Essas e outras falhas aparentes na exposição de Gracia Martín levam a crer que existe alguma
intencionalidade em expor a matéria da forma pela qual ela é exposta, fazendo com que
pairem ainda mais dúvidas sobre a já controversa proposta de expansão do Direito Penal.
Pode-se argumentar que a construção de um Direito Penal tipicamente europeu,
destinado à proteção de bens jurídicos próprios da Comunidade Européia de Estados
nacionais está relacionada com a concepção de Spencer acerca da existência de povos
superiores aos demais, polarizando, em termos globais, a construção de um Direito Penal no
âmbito da, por assim dizer, “sociedade européia” e do mundo “não europeu”.
Ora, por quê as necessidades de criminalização européias seriam distintas daquelas
que se impõem atualmente nas demais partes do mundo? Ou, para ser mais específico, por
quê tais necessidades se diferenciariam, em qualidade, daquelas próprias das demais
integrações regionais? Ainda que se questione serem tais necessidades distintas em virtude do
grau de integração atingido pela União Européia, é válido contra argumentar dizendo que
essa diferença poderia acarretar uma variação no grau dessas necessidades, jamais em sua
qualidade.
Os principais desafios criminais da atualidade dizem respeito exatamente à
criminalidade definida por Gracia Martín como globalizada (correspondente ao “Direito
penal da globalização”), constituída pelas conexões mundiais de lavagem de dinheiro e
tráfico de pessoas, p. ex., que dependem necessariamente de cooperação jurídica
internacional para atingirem um grau de punição mais eficaz.
Admitir que as necessidades de criminalização e punição desse gênero assumem, no
âmbito da União Européia, caráter diverso do assumido no resto do mundo acarretaria o
desmanche de muito do que foi construído até então em termos de cooperação jurídica
internacional, pois afastaria um dos principais blocos econômicos, senão o principal, dos
esforços internacionais dirigidos ao combate comum dessas atividades ilícitas.
Por derradeiro, finalizando sua exposição acerca das vertentes sob as quais se dá a
expansão do Direito Penal, Gracia Martín aborda a problemática do Direito Penal do Inimigo
em sucinta exposição sobre seus postulados fundamentais. Assim se expressa o autor em
comento:
O Direito Penal do cidadão define e sanciona delitos ou infrações de normas
realizados pelos indivíduos de um modo incidental e que são normalmente uma
simples expressão de um abuso por parte dos mesmos nas relações sociais nas quais
59
participam com seu status de cidadão, ou seja, na sua condição de sujeitos
vinculados ao Direito e pelo Direito. Os inimigos, ao contrário, são indivíduos que
abandonaram o Direito de um modo permanente e, com isso, o status de cidadão.
As atividades e a ocupação profissional de tais indivíduos não têm lugar no âmbito
das relações sociais legitimamente reconhecidas, mas à margem dessas, pois as
mesmas são expressão e expoente da vinculação daqueles a uma organização
estruturada que opera á margem do Direito e que se dedica a atividades
inequivocamente “delitivas”. Esse é o caso, por exemplo, dos indivíduos que
pertencem a organizações terroristas, de narcotráfico, de tráfico de pessoas, etc. e,
em geral, de quem realiza atividades típicas do denominado crime organizado100
.
A partir do exposto acima e na linha do postulado por Jakobs, o inimigo é aquele que
não apresenta garantias cognitivas suficientes de que permanecerá dentro do limite imposto
pelas normas, sobretudo pelo fato, dentre outros possíveis, de pertencer a uma organização
criminosa. A partir dessas considerações, por óbvio, ingressa-se na perigosa seara do direito
penal de autor, oposto a um direito penal do fato, próprio do paradigma garantista.
Ainda que o sistema jurídico brasileiro seja calcado no direito penal do fato, apresenta
notas de direito penal de autor, uma vez que as leis penais consideram a existência ou não de
reincidência para a concessão de determinados benefícios, entre outras normas. A questão
que se coloca, nesse particular, diz respeito à expansão desse modelo do direito penal de
autor, proposto pelo Direito Penal do Inimigo.
Afinal, até que ponto pertencer a uma organização criminosa produz um indivíduo
irrecuperável para o convívio social? Seria o membro de uma organização criminosa um
indivíduo de per si perigoso, organizado e instruído a ponto de subverter as estruturas
estatais? Ou tais indivíduos, em sua maioria, seriam vítimas da sociedade de consumo que,
com suas metas culturais exageradas, tendem a arrastar os pobres para a criminalidade? O
modelo de inimigo proposto por Jakobs não corresponderia, com mais acerto, ao estereótipo
do criminoso econômico, detentor dos meios intelectuais e materiais capazes de comprometer
a ordem estatal?
Essa superabundância de questionamentos serve para demonstrar que as reflexões
sobre a matéria podem, com um mínimo de esforço, ser levadas ao infinito. O campo do
Direito Penal do Inimigo hoje, como em nenhuma outra época poderia ter sido, apresenta um
sem número de variáveis a serem consideradas antes de sua aceitação irrefletida. O
paradigma bélico que identifica um inimigo dentre os cidadão, interno aos Estados, próximo
da figura do subversivo das legislações de “segurança nacional”, coloca uma série de
questões sob o prisma dos direitos e garantias individuais dos cidadãos.
100
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 86.
60
Prossegue o autor qualificando o Direito penal do Inimigo enquanto engrenagem da
máquina de expansão de seu “direito penal moderno”:
Para enfrentar os inimigos recorre-se nas sociedades modernas a normativas com
determinadas características identificadas como típicas de um Direito penal do
inimigo no sentido descrito, e que, como mencionado, também deveriam ser
incluídas no Direito penal moderno. Assim, a circunstância específica de pertencera
uma organização é levada em consideração para estabelecer agravações, às vezes
significativas, das penas correspondentes aos fatos delitivos concretos realizados
pelos indivíduos no exercício de sua atividade habitual ou profissional a serviço da
organização101
.
Conforme pontuado logo acima, a atribuição de uma qualificadora específica
(pertencer a uma organização criminosa) como nota distintiva por si só suficiente para definir
o inimigo é uma alternativa perigosa capaz de violar direitos e garantias individuais. A
possibilidade de conferir tratamento diverso para indivíduos que praticaram o mesmo fato
típico (p. ex., tráfico de entorpecentes) pela circunstância de pertencerem ou não a uma
organização criminosa, a nosso ver, viola direitos e garantias fundamentais, como o princípio
da isonomia. Isso sem prejuízo da aferição, em cada caso, da participação do indivíduo em
eventual delito de quadrilha ou bando.
Deseja-se consignar aqui, de qualquer sorte, que o fato de pertencer a uma
organização criminosa, apesar de implicar maior desvalor da ação, não justifica uma punição
mais severa da conduta típica mediante retirada de direitos e garantias. Ainda que se admita o
contrário, o fato de não ser levada em consideração, na maioria dos casos, o grau de
participação do indivíduo na organização criminosa justifica essa afirmação.
Indo um pouco mais além na crítica formulada, é acertado dizer, com Zaffaroni, que
os esforços de construção de um Direito Penal do Inimigo na atualidade coincidem com um
momento de emergência102
, ou seja, momento em que é necessário definir e combater o
inimigo. A incapacidade do modelo de Estado contemporâneo em lidar com os conflitos que
se avolumam dia após dia cria uma opção pela resposta penal aos conflitos, caracterizada pela
agravação das medidas contra um determinado grupo de indivíduos.
Ainda segundo Zaffaroni, essa reação criminalizadora não é privilégio do mundo
contemporâneo, tendo-se verificado em diversos momentos históricos, como a Inquisição, p.
ex., onde as bruxas personificavam um mal que, na verdade, radicava na opressão imposta à
sociedade pela Igreja e em todo o caos ocasionado pela queda do Império Romano, que
101
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 87. 102
Segundo ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 143, “emergência” traduz o momento em que
cabe definir e enfrentar o inimigo.
61
rompeu com uma lógica centralizadora até então vigente e estabeleceu um controle social
difuso a cargo dos suseranos e do clero.
Tomando por base esse exemplo histórico, parece óbvio que o estabelecimento de um
Direito Penal do Inimigo serve a razões de Estado, dentre as quais se pode destacar a
incapacidade de as autoridades governamentais resolverem, pela via política, conflitos de sua
alçada e a necessidade de reafirmação da ordem estabelecida, constantemente ameaçada pelo
fenômeno criminal.
Causa verdadeira perplexidade a forma pela qual Gracia Martín conclui sua digressão
acerca dos fenômenos de expansão do Direito Penal ao abordar as legislações identificáveis
como Direito Penal do Inimigo:
Tais regulações se caracterizam pelo fato de que seu objetivo já não é a prática de
fatos delitivos concretos e determinados, mas de qualquer conduta informada e
motivada pela qualidade de membro da organização que atua fora do Direito.
Mediante tais regulações se procede a uma criminalização de condutas no âmbito
prévio à prática de qualquer fato delitivo, que teriam, em síntese, o significado de
atos preparatórios, ou de condutas que simplesmente favorecem a existência da
organização e alimentam sua subsistência e permanência. E assim são
criminalizados, por exemplo, os comportamentos de mera colaboração com bandos
ou organizações terroristas (art. 576 CP) e inclusive a apologia das infrações de
terrorismo ou de seus autores (art. 578 CP)103
.
A incriminação de atos preparatórios (“condutas no âmbito prévio à prática de
qualquer fato delitivo”) é, segundo o sistema jurídico-penal brasileiro, contrária ao direito. Se
o limite mínimo da punibilidade se encontra na tentativa (art. 14, II, CP) não é possível a
incriminação de atos preparatórios à luz do nosso sistema. Logo, a adoção do modelo
proposto pelo Direito Penal do Inimigo para a elaboração de leis penais é inviável porque
contrária ao sistema jurídico então vigente.
Isto posto, há ainda que se considerar que esse raciocínio radica no princípio da
lesividade, ou princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, conforme enunciam os
penalistas, de forma que a incriminação de atos preparatórios, á luz de tal princípio, é
igualmente inviável. Admitir o contrário significaria dar azo à expansão do poder punitivo na
direção exata da violação sistemática de direitos e garantias individuais.
Apesar de se ter notícia de que semelhante violação já ocorre mediante a
operacionalização de todo um “sistema penal subterrâneo”, no dizer de Zaffaroni, admitir o
ingresso do poder punitivo para além da fronteira mínima da ofensa a bens jurídicos
representaria a institucionalização do arbítrio como forma legítima de exercício do poder
punitivo. Normas penais que assim dispusessem poderiam até encontrar retenção pelo sistema
103
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 88.
62
de direitos e garantias assegurado constitucionalmente. Entretanto, a barreira primordial da
dogmática penal, que garante a regularidade de tais normas sob o ponto de vista formal, já
teria sido rompida em prejuízo de direitos fundamentais.
Outra crítica que pode ser dirigida com relação às normas cuja elaboração é orientada
pelo Direito Penal do Inimigo é o fato de não se dirigirem a todos igualmente, assim como
toda e qualquer norma penal. Em função da seletividade dos sistemas penais, cuja análise se
encontra no Capítulo 2 deste trabalho, as chances de criminalização variam em função de
determinados fatores, sobretudo em função do pertencimento a uma (dominante) ou outra
(dominada) classe social.
Pode ser observado que, no contexto do Direito Penal do Inimigo, há um duplo
processo de seleção que torna a lógica da seletividade do controle penal ainda mais perversa:
se em um momento as agências do sistema penal definem, entre todos os cidadãos, quem será
criminalizado, em um segundo momento esses mesmos agentes definem, dentre os
criminalizados, aqueles merecedores de tratamento penal típico de inimigo.
Esse processo configura uma dupla seleção muito influenciada pela construção de
estereótipos104
, iniciada por Lombroso e até hoje considerada pela criminologia do labelling
approach. Todos esses dados, desde a seletividade, passando pela construção de estereótipos
até chegar a qualificadoras específicas, como o simples fato de pertencer a uma organização
criminosa, vai delineando uma espécie de filtro cuja substância depurada é o fiel retrato de
um direito penal de autor.
Conclui o autor escrevendo, sobre o Direito Penal do Inimigo, que “Tratar-se-ia, isso
sim, de uma legislação de luta ou guerra contra o inimigo cujo único fim seria sua exclusão
ou inocuização”105
em que “... se renunciaria às garantias materiais e processuais do Direito
penal da normalidade”106
. Ambos os fragmentos trazem uma mensagem preocupante. O
primeiro carreia uma solução que em pouco se distancia da eliminação física do inimigo
(“inocuização”), ou de seu afastamento permanente do meio social (“exclusão”). Ambas as
finalidades distanciam-se em muito das funções da pena como tradicionalmente as
conhecemos.
104
Um exemplo interessante de construção de estereótipos criminais pode ser encontrado em BINGHAM,
Tileodore A. Foreign Criminals in New York. The North American Review. , vol. 188, n. 634. University of
Northern Iowa, 1908, pp. 383-394, em que o autor, um policial, traça um zoneamento da cidade de Nova
Iorque de acordo com a etnia dos criminosos que controlariam cada área dessa cidade. 105
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência, p. 88-89. 106
Ibidem, p. 89.
63
Quanto ao segundo fragmento, quando o autor escreve que “se renunciaria às
garantias materiais e processuais do Direito penal”, uma questão que se coloca é a de quem
renunciaria às ditas garantias. O processado poderia fazê-lo? Certamente que não. Enquanto
direitos fundamentais, as garantias atinentes ao processo penal, intimamente ligadas ao
devido processo legal (art. 5º, inciso LIV da CRFB/1988), são irrenunciáveis, tendo em vista
se tratar de direitos indisponíveis.
Dessa forma, a alternativa que resta é a de que terceiros – a sociedade, diretamente ou
representada pelas instâncias de controle penal – possam fazê-lo, o que se afigura
originalmente impossível. Dessa forma, a conclusão a que se chega é que não se trata de
renúncia de direitos e garantias, mas de supressão ou confisco destes, sem supedâneo legal
algum. A conclusão a que se chega é que se trata de uma proposta, em tudo arbitrária, de
supressão de direitos e garantias.
Esse movimento, caso ocorra, simboliza um retrocesso, posto que consagra um
vilipêndio frontal ao devido processo legal, sob o aspecto específico das garantias penais, que
já são objeto de violações sistemáticas. Assim sendo, o Direito Penal do Inimigo, enquanto
modelo orientador da elaboração de leis penais, apresenta problemas, tanto do ponto de vista
formal quanto material, insuperáveis à luz das ferramentas jurídicas então disponíveis no
campo penal.
Como adendo final à exposição sobre os movimentos de expansão do Direito Penal,
Gracia Martín ainda delimita suas características gerais: introdução de novos delitos,
ampliação dos tipos penais existentes, antecipação da intervenção punitiva para aquém dos
limites de proteção de bens jurídicos e agravação (por vezes desproporcional) de penas.
Desse modo, fica ainda mais flagrante o retrocesso observável sob o prisma dos direitos e
garantias.
O Direito Penal do Inimigo, enquanto parte de um movimento maior de expansão do
Direito Penal, tem sua carga potencializada pelo conjunto dessas diversas interações. Talvez
por esse motivo tenha sido conveniente apresentar os movimentos expansivos em bloco. Pode
ser que, para olhares menos críticos, uma proposta de flexibilização das garantias tituladas
pelos cidadãos pareça mais aceitável se concatenada com um sem número de movimentos
cujo mote seja a difusão de uma incontrolável sanha punitiva.
64
2.2. A expansão do Direito Penal sob a ótica de Silva Sánchez
Silva Sánchez, em sua obra A expansão do Direito Penal107
, inicia por apontar a
existência de diversos movimentos na atualidade que sinalizam para a construção de um
direito penal mínimo. A primeira crítica que de plano desfere contra essa corrente de
pensamento é o fato de esta não ter um conteúdo bem definido, com seus autores divergindo
acerca do que seria um direito penal mínimo: Baratta, por exemplo, empreenderia uma
aproximação de cunho sociológico do fenômeno, ao passo que, em Ferrajoli, a construção de
um direito penal mínimo se confundiria com um Direito Penal tradicional de viés garantista.
Sem embargo de todas as idéias introduzidas por esses autores, Silva Sánchez aponta,
logo em um primeiro momento, uma tendência global de introdução de novos tipos penais ou
de agravamento dos tipos penais já existentes. Essa postura, apesar de confirmada por tudo
quanto expõe Gracia Martín, conforme já abordado, carece de um estudo mais aprofundado.
Apesar de em ambos os autores poder ser verificada essa afirmação, os estudos, para fins de
confirmação do que se afirma, carecem de um estudo quantitativo das legislações penais que
apontam no sentido da expansão do Direito Penal.
Do contrário, nada se poderá dizer sobre uma tendência global generalizada no
sentido da expansão do Direito Penal. Somado a isso, em Gracia Martín pode-se apontar que
há uma proposta de construção de um Direito Penal claramente expansivo, a qual não é
acompanhada da indicação das ferramentas aptas a promover tal expansão sem afetar a
coletividade sob o prisma dos direitos e garantias individuais e coletivos, bem como sob o
prisma das liberdades constitucionalmente asseguradas. Propostas como essas devem ser
avaliadas com cautela, ainda que no plano doutrinário, posto que sua aplicação irrefletida
pode acarretar conseqüências devastadoras sobre o Estado democrático de direito.
Aliado a isso, atrai igualmente a atenção o fato de Silva Sánchez afirmar
categoricamente que existe um consenso amplo e generalizado no sentido da expansão do
Direito Penal. Assim se expressa esse penalista:
A representação social do Direito Penal que comporta a atual tendência expansiva
mostra, pelo contrário, e como se verá, uma rara unanimidade. A divisão social
característica dos debates clássicos sobre o Direito Penal foi substituída por um
consenso geral, ou quase geral, sobre as “virtudes” do direito penal como
instrumento de proteção dos cidadãos. Desde logo, nem as premissas ideológicas
nem os requerimentos do movimento de “lei e ordem” desapareceram: ao contrário,
107
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011.
65
se integraram (comodamente) nesse novo consenso social sobre o papel do Direito
Penal108
.
A formação, por assim dizer, espontânea de consenso em uma seara de tão pesada
intervenção como é o Direito Penal é tema, no mínimo, controvertido. É lícito se indagar até
que ponto esse consenso verdadeiramente se verifica ou, de outra forma, é imposto pelo
legislador no campo dos mais diversos movimentos de expansão do Direito Penal. Afinal,
dizer que o movimento de expansão do Direito penal é fruto de um clamor geral nesse sentido
é radicalmente diferente de dizer que tal fenômeno é um fato da realidade que ocorre
independente da vontade dos jurisdicionados, ou de legítimas pressões populares nesse
sentido. Afirmações como essa são especialmente contestáveis no Brasil, em que
historicamente se verifica um déficit de participação popular no processo democrático.
A criação de consenso, nesse cenário, se constituiria, como de fato se constitui, mais
por um apelo generalizado dos meios de comunicação, movidos por uma ou por outra
motivação conflitiva social. É no contexto desse apelo dos meios de comunicação de massa
que se deflagram as chamadas “campanhas de lei e ordem”, acima citadas por Silva Sánchez,
bem como é nesse mesmo contexto que atuam os empresários morais. Observe-se o que Raúl
Zaffaroni e Nilo Batista escrevem a respeito do tema:
A empresa criminalizante é sempre orientada pelos empresários morais, que
participam das duas etapas de criminalização; sem um empresário moral, as
agências políticas não sancionam uma nova lei penal nem tampouco as agências
secundárias selecionam pessoas que antes não selecionavam. Em razão da
escassíssima capacidade operacional das agências executivas, a impunidade é
sempre a regra e a criminalização secundária, a exceção, motivo por que os
empresários morais sempre dispõem de material para seus empreendimentos. O
conceito de empresário moral foi enunciado sobre observações relativas a outras
sociedades, mas na nossa pode ser tanto um comunicador social, um grupo religioso
á procura de notoriedade, quanto um chefe de polícia à cata de poder ou uma
organização que reivindica os direitos das minorias etc. Em qualquer um dos casos,
a empresa moral acaba desembocando em um fenômeno comunicativo: não
importa o que seja feito, mas sim como é comunicado. A reivindicação contra a
impunidade dos homicidas, dos estupradores, dos ladrões e dos meninos de rua, dos
usuários de drogas etc., não se resolve nunca com a respectiva punição de fato, mas
sim com urgentes medidas punitivas que atenuam as reclamações na comunicação
ou permitem que o tempo lhes retire a centralidade comunicativa109
.
Considerando tudo quanto acima se expõe, não é possível visualizar com clareza e
precisão necessárias a criação de consenso no sentido da expansão do Direito Penal enquanto
um processo natural ocorrido mediante atuação da força das coisas. O consenso generalizado
apontado por Silva Sánchez, se é que ele existe enquanto dado da realidade, é fruto de todo
108
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 32. 109
ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 45.
66
um processo de criação de consenso levado a efeito pelos empresários morais que atuam em
nossa sociedade.
Nesse sentido, a luta contra as drogas se converte em uma bandeira brandida por esses
formadores de opinião, a qual ostenta estampada em sua face a doutrina do Direito Penal do
Inimigo. Em última análise, o suposto consenso verificado por Silva Sánchez é, na verdade,
fruto das mais diversas campanhas de lei e ordem empreendidas pelos empresários morais.
Daí o fruto dessas duas iniciativas – campanhas de lei e ordem e movimento de expansão do
Direito Penal – se encaixar tão bem, como tão claramente aponta o penalista em comento.
Após a aludida introdução, ao longo da qual trata do consenso gerado pela expansão
do Direito Penal, Silva Sánchez inicia sua exposição a partir da análise dos intrincados
fenômenos que embasam a cultura da sociedade por ele designada “sociedade de riscos”110
. A
existência dessa sociedade se comprovaria, de forma bastante sintética, pela constatação de
que em nenhuma outra época se viveu tão bem e, igualmente, se sofreu tanto.
Tal sofrimento se explicaria por um grau exacerbado de sensibilidade ao risco. Essa
sensibilidade à flor da pele, por assim dizer, acarretaria uma sensação generalizada de
insegurança que, progressivamente, conduziria à expansão do direito penal a partir da
formação do consenso já aludido acima. Essa sensação generalizada de insegurança, aos
poucos, seria capaz de iniciar a expansão do Direito Penal a partir, sobretudo, de uma
avalanche de novos tipos de perigo.
A digressão de Silva Sánchez passa ainda pela consideração, diga-se de passagem
muito interessante, que são as normas atualmente existentes que intermedeiam as relações
entre os indivíduos, não existindo uma relação horizontal indivíduo-indivíduo, mas uma
relação triangular indivíduo-norma-indivíduo, sendo a norma elemento indispensável de
conexão entre os sujeitos dessa relação.
Isto posto, cabem algumas considerações a respeito desse ponto. Em nosso modesto
entendimento, a relação entre indivíduos intermediada necessariamente pelas normas conduz
progressivamente a uma despersonificação das relações humanas e a uma resposta cada vez
mais passiva dos cidadãos em face dos problemas sociais, sobretudo no que tange á
possibilidade de autocomposição dos conflitos.
Nesse sentido,a verticalização das relações sociais que se verifica nesse desenho é
capaz de ocasionar uma desintegração dos laços de solidariedade existentes em uma dada
110
A referência pode ser encontrada em SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal:
aspectos da política criminal nas sociedades pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais,
2011, p. 35.
67
sociedade, entendida como uma comunidade de pessoas que, de forma integrada, partilham
laços jurídicos e culturais entre si. Esse desfazimento de um dos aspectos fundamentais da
vida de relação é muito útil às instâncias de poder, sobretudo no tocante à construção da
categoria jurídica de inimigo, posto que o rompimento ou até mesmo o enfraquecimento das
relações sociais horizontais torna mais fácil a construção da categoria de “não pessoa”
(entendida como “não membro” da sociedade, que não merece privilégio a seus direitos e
garantias), fundamental para a construção da categoria de inimigo, sem a qual não nasce o
respectivo modelo de elaboração de normas penais (Direito Penal do Inimigo).
Esse traço característico da obra de Silva Sánchez o coloca na trilha do Direito Penal
do Inimigo de maneira irrefutável, devendo-se analisar com mais cuidado tudo quanto mais
adiante se propõe. É com esse olhar crítico que a obra desse autor, no que tange ao Direito
Penal do Inimigo, deve ser lida: sob o prisma do desfazimento dos laços sociais de
fraternidade e solidariedade que os fundamentos da expansão do direito penal carreiam
consigo.
Ainda segundo o autor em comento, a sociedade contemporânea passa por um
momento de identificação majoritária com a vítima do que com o Estado ou com o criminoso.
Isso significa dizer que a maioria da população, segundo Silva Sánchez, se vê mais como
uma vítima em potencial do que como um possível autor de delitos. Isso seria um elemento a
mais a reforçar a tese de que a expansão do Direito Penal se processa em um ambiente de
consenso ideológico no qual a maioria dos membros da sociedade apoiaria os fenômenos
expansivos.
Essa criação de consenso se reforçaria pela visão da maioria no sentido de se
visualizar mais como potencial vitimizado. Há, por trás disso, na visão de Silva Sánchez, a
idéia de que a pena não só visa a reinserir e reeducar o criminoso (as chamadas ideologias re,
próprias da racionalização promovida pela função de prevenção especial positiva) como
também, ao isolar o criminoso, privando-o de sua liberdade, possibilitar a reintegração da
vítima ao corpo social.
Nesse sentido, a pena apareceria como uma forma de a sociedade apagar o seu erro
junto à vítima, da seguinte forma: como os mecanismos de controle social não foram capazes
de evitar que a vítima sofresse o mal que sofreu, é uma questão de justiça que punam o
criminoso para que possam se reconciliar com o vitimizado, fazendo-lhe justiça. Sobressai,
nesse aspecto particular, uma prevalência da função retributiva da pena sobre as demais
funções que se lhe atribuem.
68
Essa função da pena, vinculada à idéia básica de pagar o mal com o mal, em nosso
sentir, não é capaz de reparar o mal causado à vítima, tampouco reinseri-la, pois, sobretudo
no nosso sistema em que são vedadas as penas perpétuas, um dia a pena terminará de ser
executada e, segundo esse raciocínio, o quê seria da vítima? Ela seria privada da justiça que
lhe fora feita pelo fato de o criminoso não mais estar sofrendo as conseqüências de seus atos?
Ou tudo seria como antes, quando não havia mal algum perpetrado de parte à parte? Ora, não
é racionalmente aceitável que a perpetração do mal causado pela pena seja capaz de
reintegrar á vítima à sociedade, sob qualquer aspecto.
Pagar o mal do crime com o mal da pena, como é da essência da função retributiva,
não é capaz de restituir as partes ao status quo ante: o criminoso sofrerá as conseqüências do
estigma próprio desse rótulo, as quais o acompanharão pelo resto de sua vida, mesmo depois
de cumprida a pena. A vítima não terá seu mal reparado. Ao contrário: o Estado, ao aplicar
uma pena promove o confisco do conflito, ou seja, a vítima é alijada da relação conflitiva na
qual se envolveu, não tendo participação em sua solução.
Essa saída, que apenas suspende o conflito mediante a aplicação de uma sanção penal,
sem o resolver, gera na realidade uma situação de vulnerabilidade, tanto do ponto de vista do
criminoso, selecionado pelo sistema penal e inserido em uma lógica de submissão, quanto da
vítima, que deixa de ser parte ativa do conflito para assumir a situação de jurisdicionado, ou
seja, de administrado pela justiça estatal.
Um ponto interessante da exposição de Silva Sánchez é a sua posição acerca das
diversas formas de “justiça negociada”. Essa categoria jurídica, conforme esse autor,
constituiria uma degenerescência no âmbito do sistema penal porque “O Direito Penal
aparece assim, sobretudo, como mecanismo de gestão eficiente de determinados problemas,
sem conexão alguma com valores”111
. Um pouco antes em sua exposição, o autor em
comento complementa a idéia já apresentada:
Diante do modelo de justiça penal clássico surgem, assim, modelos de justiça
negociada, nos quais a verdade e a justiça ocupam, quando muito, um segundo
plano. A penetração da idéia de justiça negociada é muito profunda e tem
manifestações muito diversas, nem sempre coincidindo com seus partidários.
Assim, compreende desede os pactos de imunidade das promotorias com certos
imputados (por exemplo, os “arrependidos”), até as diversas formas de mediação,
passando pelas já generalizadas “conformidades” entre as partes112
.
Conforme a Nota do Tradutor 5, presente na página 91 da obra em comento, o autor,
ao referir-se a justiça negociada, aí engloba a transação penal e a suspensão condicional do
111
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, pp. 90-91. 112
Ibidem, p. 90.
69
processo, já há algum tempo inseridas no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 9.099/95.
Ora, não é defensável, sobretudo em um país como o Brasil, em que há um contingente
enorme de presos encarcerados por crimes de pouca gravidade, criticar a existência mesma de
dois institutos destinados à despenalização.
É óbvio que, como nada que existe, podem estar essas criações do legislador imunes a
toda e qualquer crítica. Entretanto, questionar a existência dessas medidas de despenalização
enquanto formas degeneradas de justiça vai de encontro a um movimento legislativo que, no
Brasil, começa a questionar a lógica do encarceramento por delitos aos quais são cominados
penas menores e passa a dirigir seu foco às condutas penalmente relevantes que até então
careciam da necessária tutela, como ocorre com o direito das mulheres e das minorias de um
modo geral.
Admitir que as formas de justiça negociada sejam formas degeneradas de justiça e,
por extensão de conceito, formas distorcidas de Direito Penal, pois o conduzem á mera gestão
de interesses privados, representa um retrocesso na medida em que representa um movimento
destinado a retirar a legitimidade de conquistas de cunho garantista há pouco alcançadas.
Esse raciocínio automaticamente conduz ao tópico seguinte desta exposição. Silva
Sánchez propõe que, na contramão do que ocorria outrora, em épocas passadas, o movimento
expansivo do Direito Penal, no sentido da criminalização de condutas, não mais se orienta no
sentido de apenas a criminalidade dos despossuídos, mas se volta sobretudo á criminalidade
daqueles que detém e manejam o poder.
Ora, uma afirmação de tal monta é complicado porque, uma vez incorporado o dado
inafastável da seletividade do controle penal, que informa ser o Direito Penal manejado em
desfavor dos mais vulneráveis, sobretudo do ponto de vista econômico, pelos menos
vulneráveis (e em favor destes) na proporção inversa das condições materiais detidas por uns
e por outros, facilmente se percebe que um movimento de expansão da criminalização só com
dificuldade atingirá a criminalidade dos mais poderosos.
Até porque, conforme será analisado mais adiante neste estudo, aqueles que detém as
ferramentas capazes de mantê-los no poder se inclinam para uma criminalidade capaz de
graus de refinamento não atingidos por aqueles responsáveis pelas chamadas obras grosseiras
ou, popularmente, crimes de sangue (a obra tosca da criminalidade). Isso refuta, logo em um
primeiro momento, o argumento de que a expansão do Direito Penal se dá, ou em alguma
medida se dará, pelo clamor do consenso já analisado, em desfavor da classe dominante. Uma
suposição dessa natureza é, no mínimo, obra da mais pura ingenuidade.
70
Esse Direito Penal destinado a combater a criminalidade perpetrada pelas classes
dominantes seria o Direito Penal da globalização, em escala macro, e, em grande escala mais
no plano das integrações regionais, o Direito Penal da integração e, no caso específico das
nações européias, do Direito Penal da União Européia. Nesse contexto, Silva Sánchez fornece
alguns dados fundamentais para que se possa alinhavar um conceito de criminalidade
globalizada.
Escreve esse autor que esse tipo de criminalidade se traduz sobretudo pela
criminalidade no âmbito das grandes organizações e da grande criminalidade organizada.
Essas duas, por assim dizer, “carreiras criminais” se caracterizariam muito mais por
comprometer uma estrutura de Estado do que por afetar o cotidiano dos cidadãos comuns,
que se preocupariam mais com a média criminalidade organizada de cunho patrimonial.
Essa criminalidade da globalização contaria ainda com uma estrutura hierarquizada
capaz de operar à distância, através das organizações criminosas, fazendo com que a autoria
dos delitos se dispersasse e, dessa forma, pudesse ser menos sentida de modo imediato. Essa
dispersão dos autores de delitos, diluídos em meio a uma estrutura típica de crime
organizado, traria novos desafios à imputação, que precisariam ser resolvidos por critérios de
imputação coletiva, ou por delitos de mera conduta, que traduzissem um perigo, como o
simples fato de pertencer a uma organização criminosa.
Ora, tal tendência traduz um amplo programa de criminalização que não se satisfaria
apenas com a punição das classes mais favorecidas, como certamente abrangeriam as turbas
de maltrapilhos que, incorporado o dado da seletividade, já abordado superficialmente acima,
poderiam facilmente ser transformados em grandes ameaças pela pressão da mídia ou das
campanhas de lei e ordem da ocasião.
De qualquer forma, trata-se de um projeto de criminalização que precisa ser pensado
pela doutrina porque se, ao contrário do que afirma Silva Sánchez, não há um consenso
acerca da expansão do Direito Penal, há ao menos uma corrente bastante coesa de pensadores
que se movimenta no sentido do recrudescimento das normas penais e até mesmo do
retrocesso do sistema de direitos e garantias que respalda o Direito Penal. Essa corrente,
ainda que aparentemente difusa, engloba, com assustadora convergência de idéias e intenso
71
intercâmbio113
, Gracia Martín, Silva Sánchez e Gunther Jakobs enquanto partidários desse
retrocesso e tem por críticos, entre outros, Cancio Meliá, Raúl Zaffaroni e Nilo Batista114
.
Silva Sánchez passa, no momento seguinte de sua exposição, a exemplificar aquilo
que entende por expansão do Direito Penal. Enquanto primeira linha de expansão, o autor
propõe uma mudança de escala do Direito Penal, propondo seu aprofundamento ao adquirir
abrangência supranacional, a começar pelas integrações regionais. Este ponto é em tudo
discutível porque esbarra no princípio de absoluta territorialidade das leis penais.
Admitir uma alteração nesses termos levaria necessariamente a repensar princípios
elementares de Direito penal, como a absoluta territorialidade das leis penais, com reflexos
sobre sistemas igualmente importantes (como é o caso da resolução dos conflitos de leis,
próprios do Direito Internacional Privado). Esse aprofundamento, a semelhança de todo o
movimento de expansão, traduz um incremento do punitivismo que, segundo argumenta Silva
Sánchez, é conseqüência natural da globalização: o maior deslocamento de pessoas e de
capitais, que tende a fugir do controle dos Estados, acarretaria um incremento correlato da
criminalidade. Nesse sentido, mediante a progressiva derrubada das fronteiras nacionais,
estaria aberta a via para a internacionalização do Direito penal enquanto etapa de seu projeto
de expansão.
Outro aspecto digno de nota é o que tange à expansão do Direito Penal proposta em
moldes que se contrapõem frontalmente ao Direito Penal clássico, nascido no século XIX.
Segundo Silva Sánchez, o arcabouço de direitos e garantias que configura e conforma o
Direito Penal clássico do século XIX não é mais adequado á realidade do Direito Penal atual
porque o conteúdo do Direito Penal contemporâneo daquele se distingue.
As penas mais brandas de nosso tempo não mais justificariam as garantias qde que
escolheram se cercar nossos antepassados. Dessa forma, o que se propõe é um Direito Penal
com menos garantias e mais penas, ainda que mais leves que as atuais, com uma especial
tendência de redução ou até mesmo de supressão das penas privativas de liberdade, que
tenderiam a ser progressivamente substituídas pelas penas restritivas de direitos.
Esse ideal de expansão do Direito Penal pode ser criticado sob três aspectos. Se a
relativização de direitos e garantias em matéria penal é levada a cabo a pretexto de propor
penas mais brandas, mas que serão aplicadas com mais freqüência, por que não manter os
113
Ver, por exemplo, a quantidade de referências a Silva Sánchez e Gunther Jakobs em GRACIA MARTÍN,
Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a crítica do discurso
de resistência. 114
Entendemos que os críticos não conformam um corpo de doutrina tão coeso quanto o de seus opositores.
Entretanto, podem ser percebidos diversos pontos de contato, sob o prisma de uma contundente crítica à
expansão do Direito Penal e ao Direito Penal do Inimigo na doutrina produzida pelos autores citados.
72
mesmos direitos e garantias com penas mais graves, aplicadas de forma menos reiterada? A
proposta parece oferecer somente uma troca de intensidade por quantidade e freqüência com
que as penas de um dado sistema penal seriam aplicadas.
E é essa quase equivalência entre o que já existe e o que o movimento expansionista
propõe que chama a atenção. Em um segundo momento, essa transição parece semelhante à
transição, denunciada por Foucault115
, entre os suplícios corporais e a pena privativa de
liberdade: ao se trocar o suplício pelas prisões, reduzindo ou anulando a publicidade do
espetáculo de execução das penas, passou-se a punir mais (encarcerava-se com mais
freqüência do que se submetia os indivíduos aos suplícios públicos) e melhor (a infração
recebia uma pena mais “leve” – a de prisão; em compensação, menos infrações passaram a
ficar impunes). Aparentemente, é de um ganho qualitativo como esse de que trata a expansão
do Direito Penal enquanto proposta de ampliação do punitivismo em nossos tempos.
A terceira e última crítica que pode ser dirigida contra esse ponto da exposição reside
no fato de o Direito Penal possuir uma tendência natural à expansão. Essa tendência é
facilmente explicável quando se constata que as agências responsáveis pelo exercício do
poder punitivo não aceitam perder e, para isso, recorrem aos mais diversos expedientes, até
chegar à construção de um verdadeiro sistema penal subterrâneo, interior e, na maior parte
das vezes, oposto ao oficial. Dessa forma, nada garante que a flexibilização ou a supressão de
direitos e garantias necessariamente virá acompanhada de uma redução na intensidade das
penas aplicáveis.
Não é possível, mediante qualquer consenso, garantir que os atores envolvidos nessa
espécie de pacto se comprometam a cumprir o pactuado. Portanto, é provável que direitos e
garantias sejam flexibilizados sem a correlata redução da magnitude das penas cominadas.
Isso conduziria a uma expansão do Direito Penal em moldes ainda mais agressivos do que os
propostos por Silva Sánchez em sua obra, com inegáveis conseqüências para a conformação
do Estado democrático de direito.
O clamor público gerado pelo consenso, tão caro a Silva Sánchez, não é capaz, por si,
de mudar a lógica do sistema penal, fazendo “do redondo, quadrado”, eliminando o dado de
seletividade penal, construído ao longo da secular história dos delitos e das penas e, por
derradeiro, fazendo com que o legislador e as agências que exercem o poder punitivo unam
forças para fazer valer uma salutar expansão do Direito Penal. Mudanças como essa, se é que
são possíveis, passam necessariamente por uma profunda alteração estrutural que só com
115
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 35ª ed. Petrópolis, Vozes, 2008.
73
muito esforço e mudanças se promoverá. E certamente não é uma proposta expansiva do
Direito Penal, de cunho eminentemente autoritário, a alternativa mais inclinada a promover
essa mudança.
74
3 POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES DECORRENTES DA ADOÇÃO DO DIREITO
PENAL DO INIMIGO ENQUANTO MODELO PARA A ELABORAÇÃO DE
NORMAS PENAIS
Conforme foi possível verificar nos capítulos precedentes, o Direito Penal do Inimigo,
quer no contexto da expansão do Direito penal, quer como teoria jurídica capaz de nortear a
elaboração de normas penais que flexibilizam direitos e garantias, é merecedor de uma crítica
mais aprofundada, sobretudo no que tange aos seus desdobramentos no âmbito do sistema
penal. Este capítulo aborda, sob três eixos temáticos principais – aumento da margem de
discricionariedade no exercício do poder punitivo, implosão do Estado democrático de direito
e extensão da flexibilização de garantias processuais aos “não inimigos” – algumas das
críticas que podem ser feitas à teoria em exame.
Apresentados os eixos temáticos em que se baseia a crítica ora empreendida, resta
proceder aos seus termos iniciais. Quanto ao primeiro eixo temático desta crítica - aumento
da margem de discricionariedade no exercício do poder punitivo – insta ressaltar, por óbvio,
que o poder punitivo, tal qual concebido no âmbito do Estado democrático de direito
contemporâneo, se exerce com determinada margem de discricionariedade. É essa margem
que vale a pena, neste primeiro momento, investigar.
Antes de proceder à análise dessa dita “margem”, é preciso tecer alguns comentários
sobre o conceito de discricionariedade e sobre sua validade na seara penal.
Discricionariedade, segundo se pode depreender da análise dos elementos fornecidos
por José dos Santos Carvalho Filho116
, é o juízo de conveniência e oportunidade feito pela
Administração Pública (por ente ou agente público) quando da tomada de uma decisão.
Apesar de a decisão tomada discricionariamente precisar ter, necessariamente, previsão legal,
a discricionariedade tem lugar quando a lei não prevê exatamente como, ou quando,
determinado ato deva ser praticado, ficando esta decisão a cargo do bom juízo (de
conveniência e oportunidade, ou seja, juízo discricionário) daquele ente ou agente público
que aplica a lei.
Isto posto, e antes mesmo de tecer nossas considerações acerca da aplicabilidade
desse juízo discricionário, ou simplesmente discricionariedade, na seara penal, faz-se
necessário antecipar a tese central que fundamenta a presente crítica: o poder punitivo,
sobretudo na esfera da criminalização secundária, é exercido, em maior ou menor grau, com
116
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22ª Ed. Rio de Janeiro, 2009.
Lumen Juris Editora, pp. 47 e seguintes.
75
discricionariedade pelas agências117
que compõem o sistema penal. Por discricionariedade,
deve-se entender que a clientela penal, entre todos aqueles que cometem crimes, é
selecionada a partir de um juízo discricionário, efetuado primeiramente pelas agências
policiais do sistema penal, que fundamenta a persecução das infrações penais cometidas por
determinados indivíduos, e não por outros.
As resultantes da formulação desse juízo discricionário são a criminalização seletiva,
ou seletividade do controle penal, e a cifra oculta (ou “cifra negra”, segundo Albrecht),
ambas examinadas em passagens dos capítulos precedentes. Antes de proceder às demais
considerações que fundamentam nossa crítica, insta fazer uma pausa para tecer algumas
breves considerações acerca da dinâmica dos processos de criminalização primária e
secundária.
De forma bastante resumida, pode-se definir a criminalização primária como sendo o
programa extenso e fragmentário de criminalização, originalmente estabelecido pelo
legislador penal na forma de leis penais. Ou, por outra forma, o conjunto de infrações penais
contidas na legislação penal de um determinado ordenamento jurídico. Quanto à
criminalização secundária, esta pode ser traduzida como sendo a realização prática e concreta
do programa criminalizante originalmente estabelecido pelo legislador penal. Ou seja, trata-se
da concreção da criminalização primária, na forma de práticas punitivas estatais, que visa a
dar efetividade ao programa originalmente estabelecido em lei. Zaffaroni e Nilo Batista
traçam um panorama bastante completo desses dois movimentos sinérgicos e
complementares:
O processo seletivo de criminalização se desenvolve em duas etapas denominadas,
respectivamente, primária e secundária. Criminalização primária é o ato e o efeito
de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas
pessoas. Trata-se de um ato formal fundamentalmente programático: o deve ser
apenado é um programa que deve ser cumprido por agências diferentes daquelas
que o formulam. Em geral, são as agências políticas (parlamentos, executivos) que
exercem a criminalização primária, ao passo que o programa por elas estabelecido
deve ser realizado pelas agências de criminalização secundária (policiais,
promotores, advogados, juízes, agentes penitenciários). Enquanto a criminalização
primária (elaboração de leis penais) é uma declaração que, em geral, se refere a
condutas e atos, a criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre
pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa
que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado primariamente, a investigam,
em alguns casos privam-na de sua liberdade de ir e vir, submetem-na à agência
judicial, que legitima tais iniciativas e admite um processo (ou seja, o avanço de
uma série de atos em princípio públicos para assegurar se, na realidade, o acusado
praticou aquela ação); no processo, discute-se publicamente se esse acusado
praticou aquela ação e , em caso afirmativo, autoriza-se a imposição de uma pena de
117
O conceito de agência, na acepção aqui empregada, pode ser encontrado em ZAFFARONI, E. Raúl,
BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do
Direito Penal, p. 43.
76
certa magnitude que, no caso de privação de liberdade de ir e vir da pessoa, será
executada por uma agência penitenciária (prisonização)118
.
A criminalização secundária, enquanto “ação punitiva exercida sobre pessoas concretas”, vai
desde a investigação arbitrária, feita mais ou menos ao acaso, pela prática cotidiana do
chamado “policiamento ostensivo”, atividade ao longo da qual indivíduos constantemente são
abordados e, se sua atitude ou prática for considerada suspeita, conduzidos à delegacia, até a
prisão em flagrante, que inicia o inquérito policial, o qual posteriormente poderá dar azo á
propositura de uma ação penal.
Uma completa análise histórica das técnicas punitivas pode ser encontrada em
Foucault119
, o qual analisa os mecanismos pelos quais a ordem pública e os valores do Estado
se impõem a partir de táticas de disciplina e aprisionamento que evoluíram desde os suplícios
públicos, que serviam de exemplo para a maioria da população (função de prevenção geral
positiva), até a pena privativa de liberdade, a qual, com todo um arcabouço de técnicas e
saberes que Foucault designa, em seu conjunto, sob o epíteto de “O Carcerário”, foi capaz de
moldar a sociedade industrial.
É impressionante notar, a partir da análise da obra desse pensador, como o sistema
penal permaneceu, ressalvadas mínimas variações, praticamente inalterado, desde os seus
primórdios, e como a função desempenhada por determinados conceitos foi interiorizada
como verdade pelo senso comum. Um desses conceitos, que muito tem a ver com a
legitimação da prática prisional, integrante da criminalização secundária, é a falência do
sistema prisional. Foucault denuncia, com propriedade, que o sistema prisional, tal qual
surgido na aurora do capitalismo industrial, é um sistema originalmente pensado para a
própria falência. Entretanto, essa falência aparente, apresenta uma função no conjunto do
sistema penal.
Nesse contexto, o sistema prisional falharia em cumprir suas funções declaradas
(funções re – reeducar, ressocializar, reinserir, etc.) relativas à reabilitação do apenado, mas
cumpriria funções ocultas, dentre as quais as mais importantes seriam funções de vigilância e
disciplina. O mais interessante dessa análise é notar que as referidas funções não se
restringiriam à clientela do sistema penal, mas atingiriam indistintamente a população em
geral, que em tese se encontra bem longe dos muros dos presídios. Com isso se quer dizer
que a função de vigilância exercida sobre os presos era capaz de produzir, acerca deles, um
saber penal útil à manutenção do controle sobre os demais membros da sociedade.
118
ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 43. 119
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 35ª ed. Petrópolis, Vozes, 2008.
77
Quanto à função de disciplina, esta teve alcance ainda maior, ao moldar, por exemplo,
todo um esquema de orientação para o trabalho no século XIX. Nessa época, como noticia
Foucault, houve críticas oriundas dos setores formais da economia que se pronunciavam
contra o trabalho dos presos porque estes eliminariam postos de trabalho para além dos muros
das prisões. Esses dados se relacionam intimamente com a tese defendida porque a seleção
desses indivíduos para integrarem a população carcerária sempre guardou íntima relação com
um grau maior ou menor de discricionariedade na aplicação em concreto das leis penais,
ainda que se tratasse de uma discricionariedade informada por estereótipos das mais variadas
ordens (raciais120
, de gênero, de classe social, etc.).
Essa discricionariedade no exercício do poder punitivo, no marco da criminalização
secundária, é verificável até os dias atuais. De outra forma, como explicar a “cifra oculta”, ou
“cifra negra”, que traduz uma parcela de criminalidade não alcançada pela força das agências
que integram o sistema penal? Se a criminalização secundária se fundasse em critérios
estritamente objetivos, não haveria espaço para uma criminalidade não alcançada pela
punição. Ainda que esse modelo de sociedade, por assim dizer, “pan punitiva” seja
completamente disfuncional, essa é a única conclusão possível a que se chega quando da
análise dessa questão.
Por outro lado, pode-se argumentar, com Zaffaroni e Nilo Batista, que a
criminalização seletiva, da qual resulta a cifra oculta da criminalidade, é resultado da limitada
capacidade operacional das agências de controle penal. Observe-se o que esses autores
escrevem a respeito do tema:
As agências de criminalização secundária têm limitada capacidade operacional e
seu crescimento sem controle desemboca em uma utopia negativa. Por conseguinte,
considera-se natural que o sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização
secundária apenas como realização de uma parte ínfima do programa primário... a
muito limitada capacidade operativa das agências de criminalização secundária não
tem outro recurso senão proceder sempre de modo seletivo. Desta maneira, elas
estão incumbidas de decidir quem são as pessoas criminalizadas e, ao mesmo
tempo, as vítimas potenciais protegidas. A seleção não só opera sobre os
criminalizados, mas também sobre os vitimizados. Isto corresponde ao fato de que
as agências de criminalização secundária, tendo em vista sua escassa capacidade
perante a imensidão do programa que discursivamente lhes é recomendado, devem
optar pela inatividade ou pela seleção. Como a inatividade acarretaria seu
desaparecimento, elas seguem a regra de toda burocracia e procedem à seleção. Este
poder corresponde fundamentalmente às agências policiais121
.
120
Para um bom exemplo de discriminação, incidente sobre a construção de um estereótipo criminal, ver
BINGHAM, Tileodore A. Foreign Criminals in New York. 121
ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, pp. 44-45.
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Entretanto, ao contrário do que possa parecer, esta não constitui explicação alternativa
à tese da discricionariedade do controle penal para o fenômeno da seletividade. Ambas as
considerações são complementares, como breve se passará a demonstrar. Conforme muito
bem pontuam os autores na obra citada logo acima, as agências responsáveis pela
criminalização secundária, em razão de sua reduzida capacidade operacional, selecionam as
condutas, ou seus respectivos praticantes, que serão objeto da persecução penal.
Tal seleção nem de longe corresponde a um retrato fiel daquilo que o legislador penal
originalmente programara, constituindo somente uma parte de tal programação. Ora, é
exatamente neste ponto que se verifica a discricionariedade no controle penal: é com base em
um juízo de conveniência e oportunidade que as agências responsáveis pela criminalização
secundária selecionam a clientela do sistema penal entre os praticantes de condutas típicas.
O momento de avaliar o elemento conveniência no exercício do poder de punir é
exercido caso a caso na prática punitiva, apesar de ser definido previamente pela construção
de estereótipos criminais: indivíduos em atitude dita “suspeita”, portadores de determinadas
características físicas, como a ostentação de tatuagens, ou, como no princípio da
criminologia, que ostentassem esta ou aquela configuração do crânio, como no clássico
estudo de Lombroso; estes estereótipos podem ser ainda orientados por considerações de
cunho étnico, conforme já pontuado anteriormente.
O momento de verificação do elemento oportunidade coincide com o da prática da
infração penal: a título de exemplo, uma dada quantidade de entorpecentes, apreendida com
um indivíduo de determinada classe social, pode ser tipificada como porte para mero uso, ao
passo que, para outro indivíduo, sobre o qual recaia algum estereótipo criminal, pode ser
tipificada como tráfico. É esse juízo de valor acerca da própria verificação da conduta típica
(conveniência), assim como da necessidade de perseguir ou não a referida conduta
(oportunidade), que neste estudo denominamos discricionariedade no exercício do poder
punitivo.
Anteriormente foi dito que seriam feitas considerações teóricas acerca da
discricionariedade no exercício do poder punitivo antes de verificar sua aplicabilidade na
seara penal. Pois bem: ainda que se propugne pela não aplicabilidade desse conceito de
Direito Administrativo na área penal, o fato é que tal aplicação se verifica na realidade. Do
contrário, não haveria seletividade possível.
Dada a limitada capacidade operacional das agências responsáveis pela criminalização
secundária, é com base em um juízo discricionário que essas agências selecionam sua
clientela e exercem sua atividade. Não é possível realizar todo o trabalho que a
79
criminalização primária propõe originalmente. Logo, a escolha de que trabalho realizar, e em
que medida, fica a cargo de um juízo discricionário da respectiva agência, que, a partir daí,
procederá à seleção criminalizante.
A seleção de criminalizados leva à análise de uma, por assim dizer, “grandeza” que
busca mensurar o grau de seletividade de um sistema penal. Trata-se da “cifra negra”, acerca
da qual já foram tecidos alguns comentários. Não é o caso de repetir as considerações feitas
até então acerca do tema. Entretanto, vale consolidar algumas conclusões e críticas às quais a
atividade de pesquisa permitiu chegar.
O modelo mais interessante para correto entendimento e interpretação das pesquisas
de cifra negra, em nossa modesta opinião, é o “modelo de funil”, apresentado por Albrecht122
.
Essa interpretação gráfica do fenômeno da seletividade do controle penal dá uma boa
dimensão dessa realidade e incentiva a reflexão crítica a respeito do assunto, além de
evidenciar que a persecução de determinadas condutas traduz uma escolha de quem é
encarregado de sua persecução (escolha, a nosso ver, informada pelo elemento
discricionário).
A seletividade do controle penal, informada pela discricionariedade no exercício do
poder punitivo, é favorecida pela construção da categoria de inimigo, própria do Direito Penal
do Inimigo. O Direito Penal do Inimigo, caso adotado como modelo para a elaboração de leis
penais, terá algo a ver com o aprofundamento da seletividade do controle penal, uma vez que
interfere com uma de suas variáveis chave – a discricionariedade no exercício do poder
punitivo, já examinada.
O aprofundamento exacerbado do Direito Penal do Inimigo, e da seletividade e
discricionariedade do controle penal, que lhe são correlatas, conduz inexoravelmente ao
Estado de Permanente Exceção, do qual é forma jurídica típica. Esse último tópico será
melhor desenvolvido no subitem seguinte quando for analisada a questão do risco de
implosão do Estado democrático de direito, tal qual o conhecemos, pelo Direito Penal do
Inimigo.
Guardadas as considerações até então tecidas a respeito da discricionariedade no
exercício do poder punitivo, cabe determinar como o Direito Penal do Inimigo é capaz de
influenciar um aprofundamento dessa margem de discricionariedade operada pelas agências
de criminalização secundária. Para o sucesso dessa análise, devem ser tomadas por base as
seguintes desenvolvidas a seguir.
122
ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o Direito Penal, p. 251.
80
As agências responsáveis pela criminalização secundária agem com uma dada
margem de discricionariedade no exercício de suas funções. Esse juízo discricionário informa
todo o processo de criminalização secundária, sendo um dos fatores determinantes da
seletividade do controle penal. Em um sistema constitucional de freios e contrapesos, como é
o sistema brasileiro, o contraponto desse poder em concreto é o estabelecimento, em abstrato,
de direitos e garantias fundamentais aptos a informar, regulamentando e limitando, as práticas
cotidianas do poder, inclusive do poder punitivo, o qual, se exercido sem limites, conduz ao
Estado de exceção, ou de polícia.
Ou seja: as categorias discricionariedade penal e direitos e garantias fundamentais
interagem em um processo dialético cuja resultante é a conformação do Estado democrático
de direito tal qual o conhecemos. A expansão de um, em detrimento do outro, rompe esse
equilíbrio dinâmico e gera prejuízos para a higidez do sistema como um todo.
O Direito Penal do Inimigo, a partir da proposta de flexibilização de direitos e
garantias, é elemento capaz de romper o equilíbrio mencionado e acarretar problemas para o
conjunto do sistema penal. Ora, se a discricionariedade no exercício do poder punitivo é
contrabalanceada por todo um arcabouço jurídico de direitos e garantias fundamentais,
qualquer elemento que tenda a enfraquecer, ou flexibilizar, direitos e garantias é favorável à
ampliação da margem de discricionariedade com base na qual atuam as agências de
criminalização secundária.
Afinal, o quê aconteceria com o número de conduções arbitrárias caso o identificado
civilmente pudesse legitimamente sofrer identificação criminal fora das hipóteses previstas
em lei (art. 5º, inciso LVIII da CRFB/1988)? E em quanto aumentaria o número de presos
provisórios caso os juízes não mais tivessem a prerrogativa de relaxar prisões ilegais? Se com
essas garantias o número de arbitrariedades constantemente cometidas pelas agências
policiais já salta aos olhos, imagine-se o cenário resultante da supressão ou mitigação
excepcional de direitos e garantias fundamentais.
É nesse sentido que ora se identifica o Direito Penal do Inimigo como catalisador do
processo de aumento da discricionariedade no exercício do poder punitivo. Enquanto
proposta de flexibilização de direitos e garantias, o Direito Penal do Inimigo é capaz de
romper o equilíbrio dinâmico existente entre esses direitos e garantias e a discricionariedade
das agências punitivas, dando azo ao cometimento das mais diversas arbitrariedades.
Ainda que se argumente que o surgimento de novas leis com traços punitivos típicos
de Direito Penal do Inimigo (p. ex., estabelecimento de figuras delitivas que vedem o início
de cumprimento de pena em regime mais benéfico para reincidentes) possa vir temperado de
81
medidas que visem a assegurar o equilíbrio em comento, como fiscalização por parte das
autoridades, com participação da sociedade, isso não invalida o raciocínio desenvolvido:
qualquer legislação, ainda que aparentemente severa ou radical, que não se baseie na
flexibilização incondicionada de direitos e garantias de uma determinada classe de indivíduos
não é orientada pelo Direito Penal do Inimigo, mas segue os ditames do Direito Penal
tradicional, sendo imune às críticas ora consignadas.
Uma última consideração que cabe fazer a respeito desse assunto é a diferenciação
entre discricionariedade e arbitrariedade. José dos Santos Carvalho Filho procede
expressamente a essa categorização no corpo de sua obra lapidar123
no campo do Direito
Administrativo. Em sua digressão, esse autor consigna que o limite da discricionariedade é a
lei, não havendo discricionariedade contra legem.
Discricionariedade contra legem, segundo o melhor direito, se confundiria com a
arbitrariedade, que é vedada pelo ordenamento por ir de encontro, dentre outras garantias, ao
fundamento de motivação das decisões administrativas, o que constitui o núcleo da teoria dos
motivos determinantes. Dessa forma, poder-se-ia argumentar que tudo quanto se falou até
agora não passa de arbitrariedade, tratada por um nome diverso.
Contra essa eventual crítica, é possível argumentar que a discricionariedade no
exercício do poder punitivo é um dado inafastável e estrutural do sistema penal, não se
confundindo com a arbitrariedade porquanto exercida nos lindes da lei, tanto quando a
respectiva agência penal aplica a lei para criminalizar (subsunção do fato á norma) quanto
quando deixa de fazê-lo (como, por exemplo, pela conveniente apuração de uma excludente
de ilicitude da conduta ou pela não verificação de um flagrante). Dessa forma, há
discricionariedade, não arbitrariedade. Por outro lado, sendo a decisão da agência responsável
pela criminalização secundária contrária à lei, verifica-se de plano a arbitrariedade e se
ingressa na seara do direito penal subterrâneo, próprio do Estado de exceção.
3.1. Implosão do Estado democrático de direito
A tese ora analisada, e que constitui o segundo dos eixos temáticos sob os quais se
processa a crítica contida neste capítulo, é a de que a prevalência do Direito Penal do Inimigo
enquanto modelo para a elaboração de leis penais conduz, necessariamente, à implosão do
Estado democrático de direito tal qual o conhecemos. Por implosão, entenda-se o
123
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, p. 48.
82
esfacelamento completo das instituições democráticas em sua configuração atual ou,
conforme conceitua Nilo Batista, o desbaratamento do Estado democrático de direito a partir
da expansão do Estado de polícia.
Uma alternativa à idéia de esfacelamento do Estado democrático de direito pode ser
encontrada na obra de Salo de Carvalho, quando este autor trata da configuração do Estado de
permanente exceção. Paulatinamente, o autor em comento vai construindo um conceito de
Estado de exceção que se fundamenta na possibilidade de flexibilização dos direitos e
garantias de determinados indivíduos (inimigos), passando à extensão dessa flexibilização
aos membros de organizações criminosas em geral, até a transformação dessa medida,
revestida de um caráter de excepcionalidade, em regra, donde se verifica instalado o Estado
de Permanente Exceção.
Observe-se o que Salo de Carvalho escreve a respeito desse assunto:
O combate ao narcotráfico e ao crime organizado, no marco do direito penal do
inimigo e da fixação do Estado de exceção permanente, dirime as fronteiras entre as
políticas de segurança e o direito penal. O problema, desde a perspectiva do
garantismo, é que o direito e o processo penal devem representar as barreiras de
contenção das violências constantemente emanadas dos instrumentos de polícia
repressiva. Do contrário, se operarem na legitimação e não na deslegitimação da
violência, a tendência é o extravasamento e a perda de controle dos atos de poder124
.
Sobre o “extravasamento e a perda de controle dos atos de poder”, é preciso remeter o
leitor para as considerações feitas no começo deste capítulo. É importante dizer, por ora, que
a discricionariedade no controle penal desempenha, nesse particular, um papel fundamental,
pois é sua ampliação que viabiliza a flexibilização de direitos e garantias processuais
fundamentais.
Quanto à generalização do combate ao crime organizado, no marco do Direito Penal
do Inimigo, enquanto elemento capaz de deflagrar este processo de desestruturação do Estado
democrático de direito, é muito útil voltar os olhos às lições de Zaffaroni a respeito do tema.
Este penalista se expressa brilhantemente ao apontar a impossibilidade da construção de um
conceito limitado de inimigo. Essa impossibilidade se calca, sobretudo, na ausência de
controle sobre quem detém o poder de definição sobre que indivíduos devem ser
considerados inimigos. Assim,
A proposta de Jakobs, embora – insistimos – não parta nem se apóie em Schmitt,
inexoravelmente se enreda em sua própria lógica. Quando afirma que, em casos
excepcionais, o estado de direito deve cumprir sua função de proreção e que está
legitimado para isso em razão da necessidade – ou seja, que a esta não se podem
opor obstáculos derivados de um conceito abstrato do Estado de direito (abstrakten
124
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06), p. 83.
83
des Rechtsstaates) -, Jakobs pressupõe que alguém deve julgar a necessidade e que
este alguém não pode ser outro senão o soberano, em sentido análogo ao de
Schmitt. O Estado de direito concreto de Jakobs, deste modo, torna-se inviável,
porque seu soberano, invocando a necessidade e a emergência, pode suspendê-lo e
designar como inimigo quem considerar oportuno, na extensão que lhe permitir o
espaço de poder de que dispõe125
.
A possibilidade de o soberano definir, a seu bel prazer e segundo o modelo proposto
pelo Direito Penal do Inimigo, a quem deve, com base em um juízo de conveniência e
oportunidade (discricionariedade do controle penal), perseguir, abala fundamentalmente as
estruturas e a conformação do Estado democrático de direito tal qual este hoje se apresenta.
Isso se dá basicamente pelas razões aduzidas nos parágrafos seguintes.
A concentração do poder de definição quanto a quem é o inimigo nas mãos do
soberano rompe com a lógica dos freios e contrapesos, na medida em que não possibilita a
fiscalização dessa decisão pelas demais esferas de poder em que se subdivide o Estado (posto
que no Estado de exceção, ou Estado de polícia, essa separação de poderes se torna muito
pouco nítida ou quase inexistente). Definir discricionariamente quem é o inimigo a perseguir
viola os princípios consagrados da razoabilidade e da proporcionalidade, que constituem
corolários do discurso e da prática democrática que fundamentam o Estado de direito.
A definição acerca de quem é o inimigo se dá à revelia e apesar de alguns indivíduos
em benefício de outros, o que viola o princípio da isonomia. A definição de inimigo é uma
decisão que se baseia em um critério de periculosidade (fato de não apresentar garantias
cognitivas suficientes de que não se manterá nos lindes impostos pela lei), não
necessariamente em sua conduta, consagrando a violação do princípio da exclusiva proteção
de bens jurídicos. Isso ilide o juízo de lesividade que acompanha a verificação da
contrariedade de uma conduta ao direito
Falar-se de um sistema de freios e contrapesos implica necessariamente supor-se
algum grau de separação dos poderes constitutivos do Estado. A Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, ao mencionar a divisão do Estado brasileiro em três poderes –
legislativo, executivo e judiciário – “independentes e harmônicos entre si” (art. 2º) marca não
só a separação de poderes como a existência de um equilíbrio necessário (harmonia) entre
eles. Esse equilíbrio é dado pela possibilidade de fiscalização mútua entre os poderes da
República.
Essa fiscalização mútua é exercida a partir de um sistema de freios e contrapesos,
dado pela possibilidade de ao atos emanados de um dos poderes ter sua legitimidade aferida
125
ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 163.
84
e, em determinados casos, questionada por outro (p. ex., uma lei aprovada nas Casas
Legislativas pode ser objeto de veto presidencial). O adequado exercício desse mecanismo
configura o Estado de direito, no Brasil, tal qual o conhecemos hoje e é indispensável para o
exercício da democracia.
O estabelecimento de uma definição acerca de quem é o inimigo, levada a cabo pelo
soberano, quer diretamente, quer por meio de agências a seu comando, põe em cheque essa
sistemática e compromete fundamentalmente toda essa construção. Ressalte-se que a
concentração de qualquer atividade nas mãos de qualquer um dos poderes republicanos, sem
possibilidade de controle e fiscalização, ainda que indireta, pelos demais poderes põe esse
sistema igualmente em cheque.
Entretanto, é de se afirmar que tal questão se agrava na medida em que a definição
sobre o inimigo envolve direitos e garantias comuns a todos os cidadãos, e se insere no
contexto penal, que é área de intervenção estatal das mais sensíveis sob o ponto de vista
democrático. A impossibilidade de controle de uma eventual definição acerca do inimigo
torna o seu potencial de expansão concretamente infinito, na medida que concede a uma só
instância de poder o monopólio dessa definição.
Ainda que essa escolha política acerca de quem é o inimigo fosse pulverizada por toda
a engrenagem de poder estatal, não seria aceitável à luz de princípios outros que informam o
Estado democrático de direito. Um desses princípios é aquele referente aos axiomas maiores
da proporcionalidade e da razoabilidade. Não pode uma lei, uma escolha política ou uma
política pública ser conforme à Constituição se não passar pelo crivo desses princípios.
O Direito Penal do Inimigo, enquanto modelo que informa a qualificação de
indivíduos enquanto dignos de tratamento distinto do conferido aos demais, de plano não
passa pelo exame mais detido feito à luz dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade.
Afinal, é razoável admitir-se, considerando o princípio da isonomia, que determinados
membros da sociedade recebam tratamento diferenciado daqueles que se encontram em uma
mesma situação (a de alguém que cometeu um delito)? É proporcional a medida que se
desfere contra um indivíduo no sentido de sua despersonalização, ou coisificação, sob o único
fundamento de ser considerado perigoso?
Nem pelo primeiro aspecto da proporcionalidade, qual seja, a adequação da medida
que se propõe para resolver a problemática para a qual é proposta, o Direito penal do Inimigo
é capaz de resistir a essa prova. E não há maneira de se supor sua legitimidade democrática
apesar do vilipêndio a dois postulados básicos do Estado de direito.
85
A violação do princípio da isonomia é outra implicação básica da adoção do Direito
Penal do Inimigo enquanto modelo apto a informar a elaboração de leis penais. Lê-se da
Constituição da República que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes...” (art. 5º).
Logo, nada justifica o tratamento diferenciado a ser dispensado, de forma expressa ou
velada, a um determinado indivíduo ou grupo de cidadãos, isso sob pena de se vilipendiar um
princípio básico e inafastável do Estado democrático de direito que é a igualdade. Do
contrário, caminhar-se-á inexorável e inegavelmente para o Estado de exceção, que não
conhece limites informados por quaisquer dos princípios em comento.
É de se ressaltar, por oportuno, que a aplicação mesma da lei penal, no âmbito do
Estado democrático de direito tal qual o conhecemos, uma vez reconhecido o seu dado
fundamental, que é a seletividade, por si só vulnera o princípio da isonomia. Observe-se o
que a esse respeito escrevem Nilo Batista e Raúl Zaffaroni:
No plano jurídico, é óbvio que esta seleção lesiona o princípio da igualdade,
desconsiderado não apenas perante a lei, mas também na lei. O princípio
constitucional da isonomia (art. 5º CR) é violável não apenas quando a lei distingue
pessoas, mas também quando a autoridade pública promove uma aplicação
distintiva (arbitrária) dela126
.
Essa aplicação distintiva ou arbitrária da lei penal se dá, em grande medida, em razão
da discricionariedade na aplicação das leis penais, examinada no tópico precedente. Esse
critério antidemocrático, que envolve a emissão expressa ou implícita de um juízo de
conveniência e oportunidade acerca da persecução penal, viabiliza a aplicação seletiva da lei
penal e a qualificação distintiva dos indivíduos para fins da criminalização, em tudo
aprofundadas pelo Direito Penal do Inimigo.
Esses dados, uma vez incorporados à prática das agências responsáveis pela apuração
e conseqüente persecução das infrações penais, dão origem ao vilipêndio do princípio
constitucional de igualdade. Essa ofensa ao conteúdo da Carta Magna vai, progressivamente,
minando o Estado democrático de direito, segundo o melhor raciocínio dialético que informa
serem as mais ínfimas mudanças quantitativas capazes de conduzir, dia após dia, a uma
alteração qualitativa de maiores proporções.
126
ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 46.
86
Outro dado, necessariamente incorporado à noção de um Direito Penal do Inimigo, é a
violação da garantia penal da exclusiva proteção de bens jurídicos. O bem jurídico marca o
começo e o fim da intervenção penal na conduta dos cidadãos. É penalmente relevante a
conduta que afete, imediata ou mediatamente, bem jurídico titulado por outrem. Não é
penalmente relevante a conduta que não afete bem jurídico algum, exaurindo-se na esfera
mesma do agente ou produzindo efeitos incapazes de prejudicar qualquer bem jurídico
pertencente a outrem.
Pois bem: admitir a punição de indivíduos tão somente por sua periculosidade (não
fornecimento de garantias cognitivas, por parte do sujeito, de que se manterá dentro das
normas preconizadas pelo direito) é inadmissível sob o prisma da exclusiva proteção de bens
jurídicos porque, na hipótese, não há conduta lesiva a bem jurídico capaz de autorizar a
intervenção penal. Infração penal, se houve, foi devidamente apenada no passado, em
procedimento judicial em que foram (ou, em tese, deveriam ter sido) observadas as devidas
garantias processuais do contraditório e do devido processo legal.
Vai contra direito, sob todos os ângulos possíveis, que um indivíduo possa continuar
sendo objeto de intervenção penal tão só por ostentar um rótulo de “perigoso”. A
periculosidade não autoriza a intervenção penal porque não traduz lesão ou possibilidade de
lesão a bem jurídico, sendo qualquer raciocínio construído nesse sentido eivado da mais pura
inconstitucionalidade sob o aspecto material. A periculosidade não traduz lesão a bem
jurídico porque, se é que ela de fato existe, insere-se na esfera mesma do sujeito e pode ser
traduzida enquanto fruto de um processo de construção e atribuição do rótulo de perigoso,
muito bem analisados por Foucault e Baratta em suas respectivas obras.
Sobre esses dois pensadores, algumas linhas ainda devem ser escritas. Foucault, ao
analisar os mecanismos de controle e disciplina da sociedade capitalista industrial, traça um
panorama das instituições de internamento coletivo, como orfanatos, prisões e hospitais.
Essas instituições tinham de comum o fato de serem regradas por um rígido conjunto de
normas internas, submeter sua clientela aos mais sofisticados mecanismos de disciplina e
vigilância e produzir sobre os internos um corpo de conhecimentos correlato ao poder que
exerciam (isso sob o império do axioma de Foucault que propugna a todo poder corresponder
um dado saber).
Em relação às instituições de internamento coletivo, esse corpo de conhecimentos e
práticas de controle e disciplina dos indivíduos foi definido por Foucault como “O
Carcerário”, aplicando-se sobre todos (inclusive sobre os operadores do sistema) de forma
indistinta. Com isso se quer dizer que o rótulo de “perigoso”, de fundamental importância
87
para o Direito Penal do Inimigo, foi sendo construído a partir desse corpo de conhecimentos
das instituições disciplinares.
Os internos eram classificados segundo critérios variados: “periculosidade”, tipo de
crime praticado e comportamento para as prisões; tipo de enfermidade e sua capacidade de se
propagar para os hospitais; idade e graus de progressão para as escolas e demais instituições
para menores. Ali, como até hoje se verifica, o indivíduo era classificado e a classificação que
se lhe atribuísse influenciava seu destino dentro e fora dos muros da instituição disciplinar.
Em Baratta, encontramos a atribuição do rótulo de “perigoso”, ou de “criminoso”, ou
de quaisquer outros que se possam atribuir aos indivíduos, como bens jurídicos negativos
fornecidos a um determinado número de sujeitos por aqueles que detém o poder de definição.
Esses detentores do poder de definição são membros da classe dominante, que exercem seu
poder em detrimento da classe dominada.
O conceito de bem jurídico negativo, nesse sentido, assemelha-se ao de bem jurídico
positivo (um bem da vida, como educação, boas oportunidades, acesso aos sistemas de saúde,
etc.), à exceção de seu conteúdo ser o de uma característica determinante, em algum grau, da
personalidade do sujeito. Ora, essa atribuição do rótulo de “perigoso”, de “criminoso”, ou de
qualquer outro que se possa atribuir aos indivíduos, em tudo toca ao Direito Penal do
Inimigo.
Enquanto teoria que preconiza o tratamento diferenciado dos indivíduos em razão de
fornecerem, ou não, garantias de um comportamento futuro conforme o direito, o Direito
Penal do Inimigo depende fundamentalmente de um elemento que diferencie os indivíduos
para fins de sua viabilização e legitimação enquanto modelo de elaboração de leis penais. E
nada melhor para essa finalidade que a atribuição, a determinados indivíduos, do rótulo de
perigoso, que a partir daí poderão ser legitimamente perseguidos por aquele a quem cabe
definir e combater o inimigo, o soberano.
Todo o raciocínio desenvolvido em combate ao Direito Penal do Inimigo seria
perfeita e imediatamente válido se não fosse por um detalhe: as medidas de segurança. A
sistemática de aplicação das medidas de segurança tem por base, precisamente, a adoção de
tais medidas enquanto a situação do agente assim determinar. A medida de segurança, que, ao
menos no plano ideológico, não é pena, assombra pela sua possibilidade de perpetuação
indefinida no tempo (art. 97, § 1º do Código penal).
A redação do dispositivo penal em comento é questionável porque viola a garantia
constitucional de vedação às penas perpétuas (art. 5º, inciso XLVII da Constituição da
República). É nesse plano que labora a distinção entre pena e medida de segurança no plano
88
ideológico e no plano teórico-dogmático do direito penal: ao ser definida não como pena, mas
como espécie do gênero “medida sancionadora de caráter penal”, a medida de segurança fica
assim legitimada como possível de se estender indefinidamente
É neste ponto que as medidas de segurança fundamentalmente nos interessam: por
constituírem medidas sancionadoras de caráter penal, cuja aplicação é calcada precisamente
na periculosidade do agente, as medidas de segurança possuem um caráter que as aproxima
do Direito Penal do Inimigo. A identificação do inimputável como indivíduo dotado de
periculosidade intrínseca e, portanto, merecedor de medida de segurança, e não de pena,
representa uma nota distintiva típica de Direito Penal do Inimigo.
Nesse sentido, a adoção expressa do Direito Penal do Inimigo enquanto modelo
orientador para a elaboração de normas penais apresenta um perigo a mais porque nosso
sistema, de alguma forma, a partir da sistemática das medidas de segurança, já o recepciona.
Esse flanco aberto representa terreno dos mais férteis para a recepção dessa doutrina penal e
de toda sorte de abusos que sua aceitação irrefletida pode ensejar.
A implosão do Estado democrático de direito, a partir da adoção do Direito Penal do
Inimigo, não seria possível se não fosse a impossibilidade flagrante no sentido da construção
de um conceito limitado de inimigo. Zaffaroni brilhantemente denuncia essa impossibilidade
em mais de uma passagem de sua obra dedicada ao tema, assumindo que a aceitação da
categoria penal de inimigo implica estendê-la, em algum grau, a todos os indivíduos, posto
que, na persecução do inimigo, a violação de garantias de todos os indivíduos que compõem
a sociedade apresenta-se como uma espécie de “dano colateral”.
Essa propagação desmedida da prática penal, calcada no Direito Penal do Inimigo,
adquire formulação primorosa na seguinte passagem desse penalista argentino:
Tudo isso se coloca como uma limitação aos princípios do estado de direito,
imposta pela necessidade e em sua estrita medida. Sem dúvida, esta tática de
contenção está destinada ao fracasso, porque não reconhece que para os teóricos – e
sobretudo para os práticos – da exceção, esta sempre invoca uma necessidade que
não conhece lei nem limites127
.
Essa necessidade, justificada pelas mais variadas emergências de Estado, não
conhece, e nem poderia se propor a conhecer limites. Dada a mais marcante característica do
poder punitivo, qual seja, a de se expandir indefinidamente a partir dos vácuos de poder, até a
instalação definitiva do Estado de polícia em sua formulação mais pura, que corresponde ao
modelo de Estado totalitário, é até inocente admitir que o poder de punir, fortalecido pelo
127
ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 161.
89
Direito Penal do Inimigo, optasse por recuar quando também tivesse por opção continuar se
expandindo.
O inimigo seria, nesse cenário, progressivamente utilizado como fundamentação, no
nível ideológico, para o acúmulo de mais e mais poder punitivo. Essa tendência à
generalização da categoria de inimigo, que progressivamente abarcaria mais e mais
indivíduos, é também formulada por Zaffaroni com inestimável precisão:
Considerando que não se propõe introduzir e ampliar o uso do conceito de inimigo
no direito penal, mas sim admiti-lo em um compartimento estanque perfeitamente
delimitado, para que não se estenda e contamine todo o direito penal, caberia pensar
que este preço não é tão caro assim, tendo em conta que, na prática, opera numa
medida mais extensa, o que importaria, em muitos casos, até numa redução de seu
âmbito. O princípio do Estado de direito, permanentemente invocado para rechaçar
o tratamento diferenciado, se encontraria, de fato e de direito, rompido em função
do que se faz e se legitima até o presente. Se os criminalizados – e nem sequer os
processados puros – não são tratados como pessoas, não haveria razão para objetar
que isso seja proposto para um grupo de apenados e não para os demais. Se o poder
punitivo se desloca para outras pessoas que não os terroristas, seria possível afirmar
que há muito mais oportunidades de deslocamento quando todos os infratores e
suspeitos são tratados como inimigos do que quando se faz isso com relação a
apenas um determinado grupo128
.
No sentido do que acima foi exposto, a generalização do tratamento penal típico de
inimigo serve ao propósito funcionalista de, por alguma forma, conferir maior celeridade à
persecução penal daqueles indivíduos que, em tese, ameaçam a sociedade por sua
periculosidade intrínseca. Entretanto, é impossível fazê-lo sem que a lógica própria do Direito
Penal do Inimigo contamine todo o sistema de direitos e garantias próprios do Direito Penal
ordinário.
Nesse particular, a adoção do Direito Penal do Inimigo enquanto modelo para a
elaboração de leis penais constitui ameaça ao Estado de direito estabelecido, uma vez que
configura uma via aberta à expansão ilimitada do poder punitivo, capaz de instaurar o
império do Estado de polícia. Essa impossibilidade de construção de um conceito limitado de
inimigo, com a qual finalizamos a presente análise, conduz ao próximo eixo temático da
crítica aqui empreendida: a extensão da flexibilização de direitos e garantias aos “não
inimigos”.
3.2. Extensão da flexibilização de garantias processuais aos “não inimigos”
A impossibilidade de construção de um conceito limitado de inimigo, em última
análise, conduz inexoravelmente à flexibilização, e conseqüente violação, de direitos e
128
ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 165.
90
garantias daqueles que, ao menos originalmente, não foram definidos como tal. Nesse
sentido, a flagrante impossibilidade do sucesso dessa construção demonstra a fragilidade do
Direito Penal do Inimigo para se sustentar perante as instituições tradicionais do Estado
democrático de direito. Isto quer dizer: ou se adota o Direito Penal do Inimigo enquanto
modelo orientador da elaboração de leis penais, em detrimento dos direitos e garantias
assegurados a todos os cidadãos, flexibilizando-os ou suprimindo-os, ou se mantém o Estado
democrático de direito passando ao largo de toda consideração teórica ou prática que envolva
a categoria de inimigo enquanto ponto de partida.
O caráter antidemocrático da flexibilização de direitos e garantias proposta pelo
Direito Penal do Inimigo pode ser percebido em Zaffaroni quando este autor menciona as
dificuldades de ordem prática de se promover a persecução penal do inimigo, nos moldes do
proposto pelo Direito Penal que lhe é correlato, sem comprometer os direitos e garantias dos
cidadãos, não definidos expressamente como inimigos. Assim se expressa Zaffaroni quando
da exposição deste tópico:
Quando os destinatários do tratamento diferenciado (os inimigos) são seres
humanos não claramente identificáveis ab initio (um grupo com características
físicas, étnicas ou culturais bem diferentes), e sim pessoas misturadas ao e
confundidas com o resto da população e que só uma investigação policial ou
judicial pode identificar, perguntar por um tratamento diferenciado para eles
importa interrogar-se acerca da possibilidade de que o Estado de direito possa
limitar as garantias e as liberdades de todos os cidadãos com o objetivo de
identificar e conter os inimigos.
Isso é assim porque, por exemplo, ao se permitir a investigação das comunicações
privadas para individualizar os inimigos, a intimidade de todos os habitantes será
afetada, pois esta investigação incluirá as comunicações de milhares de pessoas que
não são inimigos. Ao se limitarem as garantias processuais, mediante a falta de
comunicações, restrições ao direito de defesa, prisões preventivas prolongadas,
presunções, admissão de provas extraordinárias, testemunhas sem rosto,
magistrados e acusadores anônimos, denúncias anônimas, imputações de co-
processados, de arrependidos, de espiões, etc., todos os cidadãos serão colocados
sob o risco de serem indevidamente processados e condenados como supostos
inimigos129
.
A definição de determinados membros do corpo social como sendo inimigos, da qual
depende a construção dessa categoria teórica de inimigo, passa pela atribuição do rótulo de
perigoso a determinados indivíduos. É na periculosidade, como adrede verificado neste
estudo, que reside o fundamento do tratamento penal diferenciado, que dá origem ao inimigo
no Direito Penal.
A atribuição do rótulo de perigoso passa, conforme muito bem apontado por Baratta,
pela distribuição desse rótulo entre determinada classe de indivíduos. A distribuição apontada
é feita por quem detém o poder de definição na sociedade, em desfavor de quem não o detém.
129
ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, pp. 116-117.
91
Dessa forma, a classe política e economicamente dominante, a seu bel prazer, vai construindo
uma classe de (não) pessoas contra as quais é instrumentalizado um tratamento penal
diferente daquele atribuído às demais.
O problema desse tratamento penal diferenciado é que, à medida que avança em
desfavor das classes dominadas, com o aumento da sensação de insegurança gerada pelos
conflitos existentes em nossa sociedade, não alcança limites nem critérios objetivos de
previsibilidade possíveis. Sobre essa sensação de insegurança generalizada e a ilusão de que o
Direito Penal (do Inimigo) seria capaz de trazer de volta a segurança perdida (aspecto
simbólico do Direito Penal), assim se pronuncia Salo de Carvalho:
Na tensão entre a crise de segurança individual, vivenciada pela sociedade, que se
vê cada vez mais como vítima em potencial,e a falência da segurança pública,
representada pela incapacidade de os órgãos de Estado administrar minimamente os
riscos, tentações autoritárias brotam com a aparência de instrumentos eficazes ao
restabelecimento da lei e da ordem. No cálculo entre custos e benefícios, o
sacrifício de determinados direitos e garantias fundamentais aparenta ser o preço
razoável a ser pago pela retomada da segurança. Sua assimilação resta ainda mais
fácil se estes direitos e garantias integrarem o patrimônio jurídico de alguém
considerado como inimigo, de outrem, considerado como obstáculo ou ameaça que
deve ser reputado como
ninguém, como não ser130
.
Essa progressiva construção deliberada de “não pessoas”, ou seja, de inimigos em
sentido estrito, privados de suas garantias mais elementares, constitui o embrião do Estado de
exceção (ou Estado de polícia). Dada a natureza majoritariamente expansiva do poder
punitivo, qualquer enfraquecimento do Direito Penal de cunho garantista, que tem a missão
de contê-lo, representa um risco para o bom funcionamento das instituições democráticas.
Conforme já fora constatado mais acima neste estudo, é ingênuo conceber que o
conceito de inimigo, uma vez brandido enquanto ente a ser combatido, o quê representa a
grande bandeira de um dos movimentos de expansão do Direito Penal com maior
representatividade nos dias atuais, possa ser elaborado de forma limitada. Ainda que o
estigma de inimigo recaia limitadamente sobre uma parcela restrita da população, a
investigação capaz de averiguar se o poder público está diante de um cidadão comum ou de
um inimigo violará, necessariamente, direitos e garantias individuais titulados por ambos,
fato que fere os princípios mais elementares da isonomia, de um modo geral, e, em particular,
da exclusiva proteção de bens jurídicos.
130
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06), pp. 78-79.
92
Neste sentido, quando se trata da peculiar construção da categoria jurídico-penal de
inimigo, relacionando-a com a administrativização do Direito Penal, fazem sentido as
palavras de Nilo Batista:
Existe um fenômeno relativamente recente, ou seja, a chamada administrativização
do direito penal, que se caracteriza pela pretensão de um uso indiscriminado do
poder punitivo para reforçar o cumprimento de certas obrigações públicas (em
especial de âmbito fiscal, societário, previdenciário, etc.), o que banaliza o conteúdo
da legislação penal, destrói o conceito limitativo de bem jurídico, aprofunda a
ficção do conhecimento da lei, põe em crise a concepção de dolo, vale-se de
responsabilidade objetiva e, em geral, privilegia o estado em sua relação com o
patrimônio dos habitantes. Nesta modalidade, o poder punitivo é distribuído mais
por acaso do que nas áreas tradicionais dos delitos contra a propriedade, tendo em
vista que a situação de vulnerabilidade ante o mesmo depende do mero fato de
participar de empreendimentos lícitos. Há suspeitas de que recentes teorizações do
direito penal sejam orientadas para explicar tal modalidade em detrimento do direito
penal tradicional131
.
Este cenário, em que um movimento no âmbito do Direito Penal legitima uma
situação de privilégio do estado em face de seus habitantes, coincide com o cenário de
construção da categoria de inimigo e de sua operacionalização prática. Nesse sentido, não é
possível constituir uma categoria limitada de inimigo porque as arbitrariedades investigativas,
ou seja, a colocação do Estado em posição de privilégio com relação aos bens jurídicos (dos
quais a integridade física, dignidade e intimidade dos cidadãos constituem excelentes
exemplos) dos seus cidadãos o impede.
É também no contexto dessas considerações de cunho teórico e dogmático sobre o
movimento de administrativização do Direito Penal que a afirmação sobre ser o inimigo
heteroadministrado pelo Estado passa a fazer sentido. A administração comum e ordinária
dos direitos e interesses dos cidadãos corresponderia ao Direito Penal do Cidadão, em cujo
âmbito direitos e garantias são respeitados e o patrimônio (em sentido amplo, como o
conjunto de todos os bens, direitos e relações jurídicas que acompanham uma pessoa) dos
cidadãos é tratado com equidade pelo Estado. A administrativização do Direito penal, ou
heteroadministração de bens, direitos e interesses, corresponderia ao Direito Penal do
Inimigo: construção de “não pessoas”, flexibilização ou até mesmo violação de direitos e
garantias e cometimento de toda sorte de arbitrariedades.
Quanto à situação de extensão de flexibilização dos direitos e garantias aos “não
inimigos”, chama a atenção o dado apontado por Zaffaroni: é sob o império da prisão
temporária que vive a esmagadora maioria dos presos da América Latina. Essa prática
punitiva, originalmente pensada, em nosso ver, para situações de exceção, constitui a regra de
131
ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 50.
93
um bem arquitetado direito penal paralelo (no sentido que lhe atribui o próprio Zaffaroni, de
práticas punitivas adotadas no âmbito de atuação do próprio Estado, mas que se movimentam
à margem do Direito penal oficial). Assim se expressa esse renomado penalista:
A característica mais destacada do poder punitivo latino-americano atual em relação
ao aprisionamento é que a grande maioria – aproximadamente 3/4 – dos presos está
submetida a medidas de contenção, porque são processados não condenados. Do
ponto de vista formal, isso constitui uma inversão do sistema penal, porém,
segundo a realidade descrita e percebida pela criminologia, trata-se de um poder
punitivo que há muitas décadas preferiu operar mediante a prisão preventiva ou por
medida de contenção provisória transformada definitivamente em prática. Falando
mais claramente: quase todo o poder punitivo latino-americano é exercido sob a
forma de medidas, ou seja, tudo se converteu em privação de liberdade sem
sentença firme: apenas por presunção de periculosidade132
.
Essa presunção de periculosidade, que está na base de toda a elaboração teórica do
Direito Penal do Inimigo, tomada na acepção de risco criado ou representado por determinada
pessoa, sem dúvida integra o movimento mais amplo de expansão do Direito Penal que é
objeto deste estudo. Todos os dados anteriormente colacionados acerca do tratamento penal
típico de inimigo, bem como toda a crítica que se lhe pode dirigir, são engrenagens de um
engenho maior que tem por substrato básico o agravamento do risco, representado pelos
conflitos contemporâneos das mais diversas naturezas, que o homem moderno, com toda a
sua tecnologia, ainda não foi capaz de resolver.
Esse controvertido movimento contemporâneo de expansão do Direito Penal, acerca
do qual Silva Sánchez afirma133
inclusive existir consenso, é, ao contrário, capaz de fomentar
os mais acalorados debates e possui profundos desdobramentos, inclusive sob o aspecto legal,
no Brasil. São esses desdobramentos, sob o prisma da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), que
constituirão o objeto de nossas reflexões no Capítulo 4 deste estudo.
132
ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito Penal, p. 70. 133
Trata-se de afirmação expressa que pode ser encontrada em SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do
Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora
Revista dos Tribunais, 2011, p. 32.
94
4 A LEI 11.343/06 ENQUANTO REFLEXO DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL
NO BRASIL
Este capítulo contém uma análise pormenorizada da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas),
tanto sob o aspecto dogmático, quanto o aspecto criminológico dessa legislação. Também
fazem parte dessa análise algumas considerações de política criminal das quais discussões
teóricas como essa não podem prescindir. No mais, enquanto crítica pessoal e proposta de
reflexão, ainda que possam parecer estranhas ao tema, são apresentadas algumas propostas de
descriminalização relativas aos tipos penais inseridos na lei em comento.
O cerne da análise, por óbvio, como se deu em todos os capítulos precedentes, passa
por considerações próprias da temática do Direito Penal do Inimigo enquanto vertente
expansiva do Direito Penal. A problemática aqui apresentada pode ser assim subdividida: i) o
Direito Penal do Inimigo, enquanto teoria jurídica e modelo para a elaboração de leis penais,
é uma das vertentes sob as quais se dá um movimento mais amplo de expansão do Direito
Penal como um todo; ii) a Lei 11.343/06 é uma legislação relativamente recente que contém,
em certo sentido, elementos capazes de defini-la como parte desse movimento expansivo, na
linha do Direito Penal do Inimigo.
Nesse sentido, o traficante de entorpecentes seria o inimigo construído, pelo exercício
dos preconceitos cotidianos e pelo estigma levado a efeito a partir de um amplo e bem
pensado movimento de criminalização. Esse movimento de criminalização se dá, no âmbito
da criminalização primária, a partir da própria Lei 11.343/06 e dos tipos penais nela
definidos.
No contexto específico da criminalização secundária, essa estigmatização se dá pela
prática penal, muito difundida nesse nosso Estado da federação, de pouco prender e muito
eliminar em termos de tráfico de entorpecentes. A guerra urbana que se dá, todos os dias, em
torno das drogas é objeto de um folhetim que permite seu acompanhamento diário por toda e
qualquer pessoa disposta a passar os olhos em um jornal a cada manhã, dispensando maiores
apresentações.
A resposta penal rotineira para o tráfico de entorpecentes no Rio de Janeiro costuma
ser a aniquilação física dos supostos responsáveis por esse tipo de crime, a qual é operada por
um sistema penal subterrâneo que se mostra muito eficiente em equacionar autos de
resistência, avolumando as estatísticas das execuções extrajudiciais ou “sem processo”.
Recentemente, o Brasil atingiu o terceiro lugar no ranking latino-americano de homicídios a
cada 100 mil habitantes, ocupando o primeiro lugar em números absolutos.
95
Esse triste quadro penal, repleto de ilegalidades cometidas com certa dose de
conivência estatal, serve tão somente para demonstrar como a figura do inimigo, na pessoa do
traficante de entorpecentes, foi sendo paulatinamente construída e como essa construção
influenciou a elaboração da atual legislação de drogas no Brasil. Apesar de se ter observado
uma tentativa de minimizar a punição, ainda é possível observar anacronismos.
Exemplo disso é a criminalização do porte para uso próprio, apesar de não ser
cominada pena privativa de liberdade para esse crime. Conforme já mencionado
anteriormente, o consumo de entorpecentes e o tráfico ilícito por ele fomentado, além, por
óbvio, de todo o conjunto de atividades ilícitas que igualmente vai a reboque, deveria ser
tratado preferencialmente como um problema de saúde pública, de forma a se obter
resultados mais eficazes do que aqueles que até hoje vem sendo obtidos.
Entretanto, não é assim que o problema é tratado em termos de política criminal. Nilo
Batista, no artigo Política criminal com derramamento de sangue134
, faz um retrospecto da
legislação de combate às drogas no Brasil. Segundo esse autor, a problemática do combate às
drogas, que partiu de um paradigma sanitário predominante em toda a primeira metade do
século XX, passou, a partir da Ditadura Militar, a ser considerada sob o prisma bélico.Essa
mudança de paradigmas foi capaz de causar um enorme retrocesso porque colocou em
marcha uma política de enfrentamento capaz de ceifar milhares de vidas ao longo de sua
história.
Nesse contexto, o remédio encontrado para a dependência de entorpecentes acabou-se
tornando muito mais amargo que o próprio mal, adquirindo alto custo social e político. Os
quase cinqüenta anos de existência do paradigma bélico do tráfico de drogas ilícitas no Brasil
foram capazes de introduzir uma deterioração nunca antes vista das instituições
administrativas, uma imagem negativa das polícias e dos indivíduos que as integram, bem
como um elevado dispêndio financeiro para aparelhamento da máquina de guerra ao tráfico.
Por outro lado, setores responsáveis pelo fornecimento de armas e pessoal
especializado acumularam lucros astronômicos na conta da mencionada política bélica de
enfrentamento. Setores da mídia também foram favorecidos, quer pela venda ininterrupta de
notícias para uma sociedade ávida pelo espetáculo, quer pela manipulação do noticiário
oficial que, vez por outra, deixa de pintar as coisas como elas são.
No meio desse complexo e intrincado jogo de interesses, existe uma população
amedrontada que observa a violência que a atinge até nas mais singelas atividades diárias. A
134
BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo, v. 20, p. 129-142, out. 1997.
96
construção do inimigo interno, própria da ideologia de segurança nacional das diversas
ditaduras que povoaram a América Latina em período recente, permeia o imaginário coletivo,
exercendo um papel de estigmatização que se dirige em prejuízo dos moradores de
comunidades carentes, supostamente dominadas pelo tráfico.
Contribui para essa política excludente, ainda segundo Nilo Batista, a compreensão do
tráfico de entorpecentes e drogas afins enquanto delito natural, ontológico. Na concepção
desse autor, o tráfico ilícito de entorpecentes, assim como qualquer outro delito, constitui
crime porque assim foi definido pelo legislador. E, uma vez definido como crime, é
combatido a partir da elaboração de uma política de enfrentamento porque as instâncias de
poder assim estabeleceram. Tratar o problema como uma questão de saúde pública é um
possível caminho para reduzir os enormes custos sociais e econômicos desse cenário.
Entretanto, ao que parece, esse conceito utilitarista contraria os interesses de uma poderosa
minoria que insiste em se impor pela força das armas.
Essa política criminal vem sendo responsável pelo surgimento e também pelo
crescimento de novos atores capazes de pôr em cheque a própria configuração das
instituições democráticas tais quais as conhecemos. O vácuo de poder recentemente deixado
pela aparente derrota de grupos armados nas comunidades cariocas fomentou o surgimento e
a exploração de nichos variáveis de poder por outros grupos armados, agora egressos das
próprias fileiras estatais.
A temática introduzida pela inserção dos milicianos no conturbado cenário da política
estatal de enfrentamento das drogas conduz à conclusão de que o paradigma bélico não é um
caminho razoável. O surgimento desses novos atores tem imenso potencial de alavancagem
dos sistemas penais subterrâneos incrustados no combalido Estado democrático de direito.
Essa complexa rede de múltiplos problemas obviamente não apresenta um prognóstico de
solução no curto prazo. Tal solução, se é que pode ser vislumbrada no estágio em que se
encontram as ciências criminais atualmente, não passa pelo paradigma bélico por sobre o qual
se deita a atenção deste estudo.
O objetivo primordial deste capítulo é verificar se, com base nos institutos próprios da
Lei 11.343/06, é possível dizer que tal legislação representa um reflexo do movimento de
expansão do Direito Penal no Brasil, em linha com o que propõe o Direito Penal do Inimigo.
Essa categorização parte do modelo expansionista proposto por Gracia Martín e exposto no
Capítulo 2, o qual define o Direito Penal do Inimigo enquanto uma das seis vertentes sob as
quais se dá a expansão do Direito Penal no mundo contemporâneo.
97
4.1 O quadro geral da política de combate às drogas no Brasil: uma análise da Lei
11.343/06
A análise da legislação em comento demonstra ser uma questão controvertida porque,
ao passo que essa mesma legislação traduziu os clamores de um movimento de
descriminalização, com êxito parcial, ainda conserva institutos compatíveis com a mais dura
política de enfrentamento e que traduzem iniciativas cruas de construção de um inimigo
interno na pessoa do traficante.
A autorização expressa ao fomento do flagrante esperado, mediante autorização legal
para “a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos e
outros produtos utilizados em sua produção... com a finalidade de identificar e
responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição” (art. 53,
inciso II da Lei 11.343/06), traduz em grande medida os postulados desse paradigma
persecutório e coloca esse mesmo paradigma no centro das reflexões sobre o modelo atual de
combate ao narcotráfico.
Ainda nessa linha de combate ao tráfico de entorpecentes, o artigo em comento traz “a
infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos
especializados pertinentes” (art. 53, I da Lei 11.343/06) como uma alternativa em termos de
“persecução criminal” para os delitos tipificados na lei ora analisada (art. 53, caput da Lei
11.343/06).
Quanto à possibilidade de infiltração policial em tarefas de investigação, vale registrar
os comentários de Guilherme de Souza Nucci em relação à iniciativa para infiltração de
agentes e à absoluta impossibilidade de esse procedimento ser requerido pelo juiz:
Nesse sentido, parece-nos óbvia a exclusão do representante do Ministério Público
para requerer a referida infiltração, aliás, assunto tipicamente policial. Pelo
magistrado, de ofício, seria completamente fora de propósito qualquer determinação
para a infiltração de policiais em associações de delinqüentes, pois é inadmissível
que se cultive a imagem do juiz inquisidor, mormente na fase policial.135
A par de todas as possíveis considerações que se possa fazer a respeito, dispositivos
como esse remetem, ainda que de forma sutil, a um passado recente em que a infiltração de
agentes no âmbito dos movimentos armados que se propunham combater a Ditadura Militar
era uma estratégia da guerra à “subversão”. Sem dúvida, essa estratégia em muito contribuiu
para a identificação dos dissidentes do regime em questão, cujo estereótipo de periculosidade
foi fundamental para autorizar a movimentação de todo um aparato de poder em desfavor
135
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 5ª Ed. São Paulo, Editora
Revista dos Tribunais, 2010, p. 406.
98
dessa mesma dissidência. Esta, até certo ponto, similitude de estratégias de combate é um
indício a autorizar a constatação no sentido da construção de um novo inimigo interno: o
traficante de entorpecentes. Recentes notícias do cotidiano da guerra ao tráfico na cidade do
Rio de Janeiro são elementos auxiliares capazes de ampliar a compreensão do fenômeno ora
descrito136
.
No contexto de uma análise inicial e, até certo ponto, superficial da Lei 11.343/06,
pode-se dizer que a legislação em comento traz á baila duas abordagens distintas da
problemática do combate ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Conjugam-se, no
sistema instituído por esta lei, um paradigma policial, militarizado e bélico, de um lado, e um
paradigma médico sanitário, de outro. Essas duas abordagens, atuando em conjunto de forma
harmônica, se é que isto é possível dentro de um modelo pautado na lógica do enfrentamento
e, portanto, do conflito, visam a atuar sobre as duas frentes em que se desdobra o complexo
problema das drogas e de seus consentâneos: o traficante de drogas ilícitas e o usuário de tais
substâncias.
Como exemplo dessa distinção, enquanto a conduta do art. 28 (porte para uso próprio)
da lei em comento é infração de menor potencial ofensivo, estando seu processo e julgamento
regulado na forma da Lei 9.099/95, com possibilidade de composição de danos e transação
penal, as condutas dos tipos penais relacionados ao tráfico possuem um tratamento
extremamente gravoso. Quanto à conduta tipificada no art. 28 da Lei de Drogas, observa-se
que é definida pelo penalista Guilherme de Souza Nucci não como de menor, mas de ínfimo
potencial ofensivo. Observe-se o que escreve este comentador a respeito do assunto:
Não se trata de infração de menor potencial ofensivo, mas de ínfimo potencial
ofensivo. Além da possibilidade de transação (art. 48, § 5º), não se imporá prisão
em flagrante (art. 48, § 2º) e, ao final, poderá ser aplicada simples advertência.
Denominamos de ínfimo potencial ofensivo o crime previsto no art. 28 desta lei,
tendo em vista que, mesmo não sendo possível a transação, ainda que reincidente o
agente, com maus antecedentes ou péssima conduta social, jamais será aplicada
pena privativa de liberdade.137
136
Ver, por exemplo, AGÊNCIA ESTADO. Rio investiga contradição entre testemunhas e polícia sobre a
morte de Marcelinho Niterói. Disponível em: <http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/rio-investiga-
contradicao-entre-testemunhas-e-policia-sobre-a-morte-de-marcelinho-niteroi-20111104.html> Acesso em:
05 nov. 2011, sobretudo no trecho que descreve a suposta estratégia da polícia para capturar Marcelinho
Niterói, a qual, segundo a versão oficial, traduziu verdadeira tática de guerrilha.
137
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p. 343.
99
Outra posição de destaque nesse particular é aquela adotada pela Profª Luciana
Boiteux em sua tese de doutorado. Ainda que redigida com base na legislação pretérita (Lei
6.368/76), seu estudo lança luz sobre aspectos relevantes desse tema:
O mais controvertido dos problemas é a criminalização do porte de drogas, criticada
por vários aspectos. Sob o ponto de vista material-constitucional, é apontada como
violação do princípio da privacidade e da intimidade, por se considerar que “ter em
sua posse drogas qualificadas de ilícitas para seu consumo pessoal, ou consumi-las
em circunstâncias que não tragam um perigo concreto, direto e imediato para outras
pessoas, são condutas privadas, que estão situadas na esfera individual”, protegidas
pelo art. 5º, X da Constituição de 1988.138
Mais adiante em sua exposição, Nucci desenvolve as prováveis causas da brandura na
punição do porte para uso próprio, ressaltando seu viés simbólico no âmbito do Direito Penal:
“Parece que, temendo a reação social à eventual descriminalização da conduta do
consumidor, o legislador preferiu eliminar a pena privativa de liberdade, optando por outras
formas de sanção extremamente brandas”139
.
Apesar de tratar com aparente benevolência a conduta do usuário, é marcante a
diferença de posicionamento observada em Guilherme Nucci com relação aos demais
penalistas abordados neste capítulo. Observe-se o que está escrito em suas notas ao art. 27 da
Lei 1.343/06, quando trata dos critérios gerais para a condenação do usuário de drogas:
7. Critérios gerais para a condenação do usuário de drogas: como primeiro
ponto a destacar, não cabe mais, em hipótese alguma, a sua condenação a pena
privativa de liberdade. Parece-nos, como regra geral, medida salutar, pois o usuário
habitual ou o eventual da droga , por si mesmo, não representa à sociedade um real
perigo, muito embora se possa dizer que ele, ao comprar e fazer uso de
entorpecentes, estimula o tráfico, o que não deixa de ser verdadeiro.140
É interessante notar que na análise deste autor está compreendida uma reprovação
implícita da conduta do usuário. E, além disso, em se tratando de uma obra dogmática,
portanto científica, no campo do Direito Penal, é interessante se observar a reprodução de
uma opinião de senso comum no sentido de o usuário fomentar o tráfico ilícito de
entorpecentes, financiando-o. O que se observa é o fomento desta atividade pelas próprias
autoridades a partir do momento que declararam que algumas drogas são legais e outras não.
Esse estímulo ocorre naturalmente, tanto conforme aponta o conceito, também de
senso comum, que registra os atos proibidos como os melhores de serem praticados, quanto
em relação a uma opção pela proscrição de determinadas substâncias. Como é sabido, a
138
RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do
proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Orientador Prof. Dr. Sergio Salomão Shecaira. São Paulo,
2006, pp. 219-220. 139
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p. 344. 140
Ibidem, p. 337.
100
proscrição de tais substâncias decorre, dentre outros fatores, do menoscabo da cultura de
determinados povos e também de uma determinada ética religiosa de sacralização do corpo
humano, cujas funções não devem ser dilapidadas pelo consumo de estupefacientes.
Sobre este ponto, é importante registrar o que diz o autor ora pesquisado a respeito da
utilização de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso, o qual é expressamente
excepcionado pela Lei 11.343/06 como exceção à proibição do plantio, da cultura e da
colheita de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas drogas (art. 2º):
5. Ressalva quanto ao uso de plantas de uso ritualístico religioso: dispõe o art.
32.4 da Convenção de Viena, ratificado pelo decreto 79.388/77, o seguinte: “O
Estado em cujo território cresçam plantas silvestres que contenham substâncias
psicotrópicas dentre as incluídas na Lista I, e que são tradicionalmente utilizadas
por pequenos grupos, nitidamente caracterizados, em rituais mágicos ou religiosos,
poderão, no momento da assinatura, ratificação ou adesão, formular reservas em
relação a tais plantas, com respeito às disposições do art. 7º, exceto quanto ás
disposições relativas ao comércio internacional”.141
Os países contratantes foram claros ao estabelecer os limites da mencionada
Convenção. Observe-se que, ao mesmo tempo em que houve uma clara preocupação com a
consagração dos direitos das minorias étnico-religiosas (Ex.: i) colhedores de coca da Bolívia,
que precisam mascar a folha para suportar os efeitos da altitude; ii) adeptos do Santo Daime
no Brasil, que utilizam uma infusão supostamente estupefaciente em seus rituais para
entrarem em contato com o Divino), houve igual preocupação em resguardar os fins da
norma, destinada sobretudo a combater o comércio de entorpecentes, quer na órbita interna
dos países, quer no plano internacional.
Em outra frente, o paradigma de enfrentamento, levado a efeito por um modelo
policial e militarizado, que se propõe realizar um programa muitas vezes confundido com a
guerra em sentido estrito, incide principalmente sobre o traficante de drogas e é sob sua égide
que se dá a batalha cotidiana no seio das regiões mais carentes dos grandes centros urbanos,
já explorada a título de introdução deste capítulo.
É essa frente de combate à qual corresponde um modelo de política criminal que
traduz um alto custo em vida e, ao mesmo tempo, ao correlato desgaste econômico e político
das instituições estatais. Essa mesma frente de combate encontra-se muito bem marcada na
Lei 11.343/06 a partir de uma série de dispositivos, com alto grau de detalhamento, que
constituem os termos deste sangrento contrato que vincula criminalizados, sociedade civil e
instituições policiais, os quais dividem o mesmo espaço, dentro das funções que lhes foram
atribuídas normativamente, como se verá.
141
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.333.
101
Esse modelo de combate, cuja construção normativa começa no artigo 27 da Lei
11.343/06, ocupou praticamente dois terços da atenção do legislador (a lei em comento
possui 75 artigos), ao passo que as políticas públicas que voltam sua atenção sobre o usuário
ocuparam apenas os primeiros vinte e seis artigos da referida lei. Essa constatação denota, ao
menos, senão uma predominância do modelo bélico de enfrentamento ao tráfico e aos crimes
que lhes são conexos (tráfico de precursores químicos, de armas e lavagem de dinheiro) em
relação às políticas de tratamento do usuário, ao menos um maior grau de detalhamento dos
dispositivos que cuidam desse modelo de enfrentamento em face daqueles que traçam as
linhas gerais de uma incipiente programação genérica de políticas públicas.
Adiantando a temática, e esse ponto chama a atenção no contexto de uma análise mais
cuidadosa da legislação em apreço, observa-se que os artigos de lei que cuidam dessa política
de enfrentamento ao tráfico ilícito de entorpecentes são bem mais detalhados e construídos,
do ponto de vista da técnica legislativa, do que aqueles que cuidam das políticas públicas de
atenção e tratamento ao usuário, sobretudo no tocante às medidas concretas que visam a
promover esse tratamento, que permanecem no nível da mera enunciação.
Com relação às medidas de combate ao narcotráfico, estas assumem uma concretude
impressionante e certamente receberam um cuidado privilegiado da parte do legislador, que
incluiu até um bem elaborado subsistema para processo e julgamento dos delitos tratados na
Lei de Drogas (arts. 48 a 64 da Lei 11.343/06).
No intuito de marcar essa maior preocupação do legislador com a política de
enfrentamento ao narcotráfico, quando comparada com a atenção dispensada ao tratamento e
recuperação de usuários, podem ser cotejados alguns dispositivos da Lei 11.343/06:
Art. 4o São princípios do Sisnad:
I - o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à
sua autonomia e à sua liberdade;
II - o respeito à diversidade e às especificidades populacionais existentes;
III - a promoção dos valores éticos, culturais e de cidadania do povo brasileiro,
reconhecendo-os como fatores de proteção para o uso indevido de drogas e outros
comportamentos correlacionados;
(...)
Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta
Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e
ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
102
I - a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos
órgãos especializados pertinentes;
II - a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos
ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território
brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de
integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal
cabível.
Parágrafo único. Na hipótese do inciso II deste artigo, a autorização será concedida
desde que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação dos agentes do
delito ou de colaboradores.
Observe-se que, ao enunciar princípios do Sistema Nacional de Políticas Públicas
sobre Drogas (Sisnad), o legislador o fez de forma muito mais genérica e programática do
que ao enumerar taxativamente (art. 53 da lei 11.343/06, anteriormente citado nesta
exposição) os expedientes passíveis de serem utilizados em sede de investigação criminal,
inclusive no intuito de punir mais agentes envolvidos em crimes tipificados na legislação em
comento.
Essas disposições, além de implicarem em uma opção óbvia pelo incremento da
criminalização, em linha com o que propõem os movimentos de expansão do Direito Penal,
revelam de forma bastante clara a supremacia do modelo de enfrentamento sobre o modelo
médico-sanitário, que lhe é subsidiário e se tenta impor, ainda que com dificuldade, sobre
uma minoria de usuários criminalizados que volta e meia tem problemas com a justiça.
Um contraponto importante a esta opção pela criminalização, apontada acima, foi a
inovação trazida pela tentativa de descriminalização, com êxito parcial, do porte para uso
próprio, ao qual anteriormente era cominada pena de detenção, de seis meses a dois anos e
multa, na forma do art. 16 da Lei 6.368/76. A Lei 11.343/06, em seu art. 28, comina penas
não privativas de liberdade para essa mesma conduta.
Diz-se dessas penas, e seu conjunto, “não privativas de liberdade” porque não é
possível entender a pena de “advertência sobre os efeitos das drogas” (art. 28, I da Lei
11.343/06) nem a “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”
como penas restritivas de direitos, em nossa modesta opinião. Nesse contexto, poderia ser
entendida como pena restritiva de direitos a pena cominada no artigo 28, II da Lei 11.343/06,
que prevê a “prestação de serviços á comunidade”.
Em relação à advertência sobre os efeitos das drogas, cominada no art. 28, I da Lei
11.343/06, observem-se os comentários de Guilherme de Souza Nucci acerca de sua natureza
jurídica e de seus efeitos para fins de reincidência:
103
Parece-nos fundamental que a advertência, cuja natureza jurídica é de pena, seja
reduzida a termo e assinada pelo magistrado, pelo réu, seu defensor e pelo
representante do Ministério Público. Aliás, constituindo pena, pode gerar, no futuro,
reincidência (art. 63, CP), não podendo mais, sob pena de consagração da
impunidade, o magistrado aplicar outra advertência, mas partir para medidas mais
eficientes, como a restrição de direitos.142
Ressalte-se que a cominação de penas não privativas de liberdade, conforme anotado
anteriormente, representou um êxito parcial dessa tentativa de descriminalização porque a
conduta ainda é definida como crime, ao qual, diga-se, de forma excepcionalíssima em nosso
sistema, não se comina uma pena privativa de liberdade. Observe-se que a conduta ainda é
definida como crime em sentido lato e que sua prática ainda vem acompanhada de um
desvalor social que não pode ser desprezado.
Entretanto, conforme adiante será explorado, frise-se que o paradigma médico de
tratamento ambulatorial, igualmente previsto na lei em comento, contribui ainda mais para a
estigmatização do usuário perante a sociedade, posto que o coloca na posição de diferente,
sendo um passo embrionário no sentido da construção de uma categoria de não pessoa, que é
prévia à construção da categoria penal de inimigo.
Este ciclo se completa a partir de um arremate ideológico que propugna a confusão
entre usuário e traficante, quer na prática (imposição de prisão em flagrante sobre portadores
de pequenas quantidades de droga, a partir de uma imputação de tráfico, como
freqüentemente se observa), quer mediante ilações ideológicas impostas pelas campanhas de
“lei e ordem”, que buscam construir, a partir do usuário, a imagem do grande financiador do
tráfico de drogas, como se houvesse um grande consumidor coletivo, formado pela soma dos
pequenos consumidores individuais.
Essa construção, guardado o devido respeito àqueles que detém posicionamento
diverso, é uma falácia porque, como se sabe, os maiores mercados consumidores das drogas
produzidas na América Latina são Europa e América do Norte. Portanto, atribuir a posição de
“sócio majoritário” aos usuários, no âmbito interno, é uma construção no mínimo pouco
informada.
Essa estigmatização a partir do tratamento ambulatorial, que, por força do artigo 28, §
7º da Lei 11.343/06, pode ser, em certa medida, imposto pelo juiz143
, é, de alguma forma,
142
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.347. 143
Art. 28, § 7º da Lei 11.343/06: “O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator,
gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado”.
Ora, pode-se dizer que se trata, em certa medida, de uma imposição para que o infrator se trate porque não é
razoável a expedição de uma ordem judicial, capaz de movimentar a máquina do Estado no sentido de uma
determinada finalidade, incapaz de vincular quem pratica uma conduta contrária lei. Há, nessa hipótese, um
104
mais forte do que o impacto criminal que o cometimento do delito tipificado no artigo 28,
caput da lei em comento pode ter sobre a vida do usuário. Em que pese o prisma de análise
em tela, cabe registrar posição diversa de Guilherme Nucci nesse sentido, que qualifica o
parágrafo citado enquanto norma extrapenal:
Cuida-se de medida benéfica a quem usa drogas, para que se submeta a um
tratamento especializado, afastando-se, com isso, eventual reincidência. Não sendo
pena ou efeito da condenação, se o sentenciado não se valer da medida tomada pelo
juiz, nenhuma conseqüência negativa lhe pode ocorrer.144
E é dessa forma porque, de acordo com o que dispõe o artigo 48, § 2º dessa mesma
lei, para a conduta prevista no artigo 28 não se imporá prisão em flagrante, sendo o agente
processado e julgado na forma dos artigos 80 e seguintes da Lei 9.099/95 (art. 48, § 1º da Lei
11.343/06), conforme se pode concluir a partir da interpretação sistemática do artigo 48 da
Lei de Drogas:
Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título
rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições
do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.
§ 1o O agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se
houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será
processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei no 9.099, de 26 de
setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais.
(...)
§ 5o Para os fins do disposto no art. 76 da Lei n
o 9.099, de 1995, que dispõe sobre os
Juizados Especiais Criminais, o Ministério Público poderá propor a aplicação
imediata de pena prevista no art. 28 desta Lei, a ser especificada na proposta.
O artigo 48, § 5º da Lei 11.343/06, reproduzido acima, ao tratar da “aplicação
imediata de pena prevista no art. 28 desta Lei, a ser especificada na proposta”, refere-se a
nada além da transação penal, importante instituto descriminalizador presente no Direito
Processual Penal Brasileiro, cujos contornos são dados pelo artigo 76 da Lei 9.099/95, que
dispõe sobre o procedimento dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais:
Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública
incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá
constrangimento oficial para que o infrator seja submetido ao referido tratamento ambulatorial, apesar de o
Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas se pautar, dentre outros princípios, pelo prestígio aos
direitos humanos (art. 4º, I da Lei 11.343/06). Pode-se entender que, na espécie, há uma certa pressão dos
órgãos oficiais, autorizada pelo dispositivo em comento, para que o agente se submeta a tratamento, ainda
que contra sua livre vontade, que traduz à manifestação do direito fundamental á liberdade, estampado no
art. 5º, caput da Constituição da República. 144
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.353.
105
propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser
especificada na proposta.
Em relação à transação penal prevista no art. 48, § 5º da Lei 11.343/06, Nucci é
bastante sintético ao tratar da transação penal cabível na hipótese, cingindo sua análise à
existência de uma transação penal limitada: “184. Transação limitada: o § 5º deixou caro
que a proposta do Ministério Público deve cingir-se às penas previstas no art. 28 da lei
11.343/06, não podendo optar por outras penalidades não previstas na lei especial”145
.
A diferença essencial entre a transação penal pura e simples, disposta no art. 76 da Lei
9.099/95, e a hipótese de transação penal proposta na forma do artigo 48, § 5º da Lei
11.343/06, diz respeito ao objeto da transação: ao passo que, na Lei 9.099/95, a transação
penal pode-se dar mediante aplicação de penas restritivas de direitos ou multas especificadas
na proposta (art. 76, caput da Lei 9.099/95), no contexto da Lei 11.343/06 a transação penal
pode ocorrer a partir da imposição de pena prevista no artigo 28 da referida lei (artigo 48, § 5º
da Lei 11.343/06), tratando-se de uma transação penal limitada, conforme preceitua Nucci.
Insta ressaltar que, conforme apontado pelo próprio comentador pesquisado, trata-se
de uma transação penal limitada, portanto diferentes das demais transações penais
tradicionalmente obtidas na forma da Lei 9.099/95. Portanto, observe-se que os agentes que
pratiquem delitos tipificados na Lei 11.343/06 recebem tratamento penal diferenciado
daquele que os praticantes de outros delitos recebem quanto à transação penal, caracterizando
uma distinção que remonta ao direito penal de autor.
A admissão da transação penal no âmbito dos delitos tipificados na Lei 11.343/06 é
uma importante via para a redução da criminalização dessas condutas, haja vista serem outros
importantes benefícios interditados àqueles cuja prática desses delitos fora imputada. O artigo
44, caput da lei em comento veda expressamente benefícios como liberdade provisória, com
ou sem fiança, sursis, graça, indulto e anistia aos agentes que tenham praticado delitos
capitulados nos artigos 33, caput e § 1º e 34 a 37 da Lei 11.343/06:
Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei são
inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória,
vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.
Parágrafo único. Nos crimes previstos no caput deste artigo, dar-se-á o livramento
condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua concessão ao
reincidente específico.
145
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.402.
106
Sobre a inafiançabilidade do delito de tráfico ilícito de entorpecentes, cabem ainda
algumas considerações de cunho constitucional. Essa inafiançabilidade é originada por uma
pauta criminalizadora constitucional, mais especificamente pelo art. 5º, XLIII da CRFB/88,
que declara o tráfico ilícito de entorpecentes, entre outros crimes, inafiançável e insuscetível
de graça e anistia. Interessante é notar no comentador intensamente consultado até aqui a
posição a respeito dessa interdição de benefício:
O legislador brasileiro ainda não se deu conta de que o magistrado pode conceder
para qualquer crime – exceto para os hediondos e equiparados – liberdade
provisória sem fiança, desde que não estejam presentes os requisitos para decretação
da prisão preventiva. Logo, é pura bobagem estabelecera vedação para a concessão
de fiança. Ao contrário, pensamos que o ideal devesse ser, sempre, possibilitar a
liberdade provisória, com fiança, até para delitos mais graves, pois algum custo,
pelo menos, traria para o indiciado ou réu.146
A possibilidade jurídica de se acolher a transação penal, tendo em vista esse quadro
geral de interdição de benefícios, é uma alternativa importante no sentido de minimização da
criminalização nessa seara, sobretudo no que tange a réus primários, de modo a evitar a
verdadeira profissionalização de criminosos que tem lugar no sistema prisional brasileiro.
Entretanto, a impossibilidade de conversão das penas cominadas em penas restritivas
de direito, talvez, seja elemento apto a autorizar a impossibilidade, ainda que por via indireta,
de mais esse benefício. Contudo, impossibilitada a conversão em pena restritiva de direitos,
resta a imposição de multa, a qual é prevista expressamente no artigo 76, caput da Lei
9.099/95.
Adotando-se uma interpretação teleológica da norma, talvez não faça sentido admitir-
se que o legislador abriu, no silêncio da lei, ao não vedar expressamente a transação penal
enquanto benefício, uma brecha para que fosse aplicada somente a pena de multa para os
delitos ali tipificados.
Entretanto, nesse particular, vem em nosso socorro a jurisprudência do Egrégio
Superior Tribunal de Justiça, no sentido de determinar se a transação penal pode ser, de fato,
aplicável aos delitos tipificados na Lei 11.343/06. Observe-se o teor da ementa colacionada
logo abaixo:
HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O
TRÁFICO DE DROGAS (ARTS. 33 E 35 DA LEI 11.343/06. PRISÃO
PREVENTIVA EM 18.12.07. ALEGAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL
DECORRENTE DA AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA A CUSTÓDIA
CAUTELAR. DECRETO SUFICIENTEMENTE FUNDAMENTADO.
GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. ENVOLVIMENTO EM ASSOCIAÇÃO
146
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.395.
107
COM 24 INTEGRANTES. ACURADA DIVISÃO DE TAREFAS VISANDO, AO
QUE TUDO INDICA, À DISTRIBUIÇÃO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE
EM BAIRROS NOBRES DA CAPITAL FLUMINENSE. CONCESSÃO DA
ORDEM A CORRÉU. PEDIDO DE EXTENSÃO NEGADO NA ORIGEM POR
AUSÊNCIA DE IDENTIDADE ENTRE SITUAÇÕES FÁTICAS DOS RÉUS.
REVISÃO QUE DEMANDARIA APROFUNDADA ANÁLISE DE PROVAS.
VIA ELEITA INADEQUADA. PARECER DO MPF PELA CONCESSÃO DA
ORDEM. ORDEM DENEGADA.
1. Sendo induvidosa a ocorrência do crime e presentes suficientes indícios de
autoria, não há ilegalidade na decisão que determina a custódia cautelar do paciente,
se presentes os temores receados pelo art. 312 do CPP.
2. In casu, a segregação provisória foi determinada para garantir a ordem púbica,
uma vez há fundados indícios de que o paciente integre numerosa associação
voltada para o tráfico de drogas que, repetidamente e em acurada divisão de
tarefas, promove a distribuição de substância entorpecente principalmente entre os
bairros nobres da capital fluminense.
3. Para conceder a ordem a corréu e negar sua extensão ao paciente, o Tribunal
impetrado apontou o fato de que a persecução penal iniciada em desfavor daquele
continha imputações diferenciadas dos demais e terminara em decorrência de
transação penal. Tais circunstâncias não se repetiam em favor do paciente.
4. A revisão da dessemelhança apontada na origem demandaria aprofundado exame
do conjunto probatório dos autos, o que, como é sabido, afigura-se inviável nesta
Ação Mandamental.
5. Parecer ministerial pela concessão da ordem.
6. Ordem denegada. (Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus 123523/RJ,
Quinta Turma, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em
09/06/2009, publicado no Diário de Justiça eletrônico em 03/08/2009)
A leitura do julgado acima ementado sugere que a transação penal, em algum
momento do processo, foi facultada a algum(ns) dos 24 corréus indiciador por tráfico de
drogas no curso da ação penal. Entretanto, da leitura do inteiro teor do julgado, não foi
possível determinar em que condições se teria dado a transação penal, sendo a possibilidade
jurídica de aplicação da transação penal aos crimes tipificados nos artigos 33, caput e § 1º e
34 a 37 da lei 11.343/06 incerta sob a ótica da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Quanto à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não foram localizados julgados que
dissessem respeito ao tema.
Concluídas essas considerações gerais sobre o crime de porte para uso próprio e sobre
a possibilidade de transação penal para os crimes tipificados na Lei 11.343/06, cabem
algumas considerações acerca do crime tipificado no art. 33 desta mesma lei (tráfico ilícito de
entorpecentes). Observe-se o que escreve Salo de Carvalho a respeito do tema:
Especificamente em relação ao tráfico ilícito de entorpecentes, a Constituição
determina sua equiparação aos delitos hediondos, estabelecendo a impossibilidade
de fiança, graça e anistia, bem como a responsabilização criminal dos mandantes,
executores e aos que, podendo evitar a prática de do crime, se omitirem (art. 5º,
XLIII). Delineia a Constituição, portanto, o máximo grau de resposta punitiva ao
sistema de direito e de processo penal brasileiro com a adjetivação de nova espécie
108
de delito – crime hediondo, regulamentado posteriormente pela Lei 8.072/90 -,
estendendo seus efeitos ao comércio ilegal de drogas, à tortura e ao terrorismo.147
Esse “máximo grau de resposta punitiva” conferido constitucionalmente a uma gama
de delitos, dentre eles o tráfico de entorpecentes, sob o rótulo de crimes hediondos,
corresponde, em certa medida, um desdobramento do movimento de expansão do Direito
Penal no Brasil. Esse desdobramento se move no eixo do Direito Penal do Inimigo, uma vez
que a incriminação realizada a partir do programa introduzido pela Lei 11.343/06 se dá
sobretudo em desfavor dos penalmente vulneráveis, incorporado o dado da seletividade
estruturante de todo e qualquer sistema penal, conforme previamente abordado.
Nesse sentido, o traficante de entorpecentes surge como o inimigo contra o qual se
dirige o rigor da legislação penal de drogas e suas medidas de enfrentamento e médico-
sanitárias, com todo o dano colateral, quantificado pelo custo em termos de vidas humanas,
representados por essa política. Essa lógica, que notadamente serve a interesses de classe, é
articulada a partir do etiquetamento (“labelling”) de determinados indivíduos como
potencialmente perigosos, em um primeiro momento, e como criminosos, em momento
posterior, conforme propõe o paradigma criminológico do labelling approach, dissecado por
Alessandro Baratta.
Esse processo de criminalização seletiva, promovido a partir de um paradigma
incriminador, de um lado, e de um programa criminalizador, por outro, é responsável pela
construção da imagem do traficante de entorpecentes enquanto inimigo, que é tema do
próximo item desta exposição.
A relação dialética entre tráfico ilícito de entorpecentes e porte para uso próprio
dessas mesmas substâncias também constitui objeto de abordagem na obra de Salo de
Carvalho, que aponta a existência de um “movimento criminalizador pendular”, o qual, a
partir de uma zona nebulosa gerada pela inexistência de cláusulas de barreira (um mínimo,
em termos de quantidade, para a tipificação do tráfico, p. ex.), acaba sendo responsável pela
tipificação equivocada dos delitos de porte para uso próprio e de tráfico ilícito de
entorpecentes. Abaixo, seguem transcritas as palavras do autor citado para melhor ilustração
de tais idéias:
Com a nova categorização e hierarquização dos crimes a partir da Constituição de
1988, as principais condutas incriminadas pela Lei de Drogas, assim como o eram
na Lei 6.368/76, são dicotomizadas nos pólos opostos da resposta penal. Se havia,
desde a publicação do texto constitucional, a equiparação do comércio ilegal de
entorpecentes aos crimes hediondos (hard crimes), o porte de drogas para consumo,
147
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06), p. 193.
109
na vigência da Lei 6.368/76, assumia, com o advento da Lei 9.099/95, característica
de crime de médio potencial ofensivo, sendo possibilitada a suspensão condicional
do processo. A partir da Lei 10.259/01, com a chamada da jurisprudência e
posteriormente com as Leis 11.313/06 e 11.343/06 (art. 48, § 1º), ocorre sua
inclusão formal e explícita no rol dos crimes de menor potencial ofensivo (soft
crime), com processamento perante os Juizados Especiais Criminais, sendo
facultada ao autor do fato a transação penal pré processual.
Percebe-se, portanto, que os crimes relativos aos entorpecentes, notadamente o
comércio ilegal e o porte para uso próprio, oscilam entre o máximo e o mínimo da
resposta punitiva. O movimento criminalizador pendular, porém, em casos
relevantes e muito comuns no cotidiano forense, é definido por circunstâncias
nebulosas, de baixa perceptividade e de difícil comprovabilidade, motivo pelo qual
é fundamental estabelecer rígidos critérios de definição.148
Ainda segundo a ótica de Salo de Carvalho, uma solução para as conseqüências
deletérias que essa criminalização pendular pode provocar (como a equiparação, a título de
capitulação e conseqüente condenação, de usuários a traficantes) seria a comprovação, a
título de defesa, de um especial fim de agir no sentido do consumo pessoal. Observem-se
algumas linhas de tudo quanto escrito pelo referido autor a respeito do tema:
Assim, do que se depreende da dogmática penal, a única forma de diferenciação
entre as condutas seria a comprovação do objetivo para consumo pessoal (art. 28).
Em não ficando demonstrado este especial fim de agir, qualquer outra intenção,
independente de destinação comercial, direcionaria a subsunção da conduta ao art.
33, decorrência da generalidade, abstração e universalidade do dolo. Cria-se, em
realidade, espécie de zona gris de alto empuxo criminalizador na qual situações
plurais são cooptadas pela univocidade normativa. Esta situação, inclusive, não
invariavelmente potencializa na jurisprudência tendência à inversão do ônus da
prova, recaindo ao réu o dever de provar durante a cognição a especial finalidade de
agir, eximindo a acusação do dever processual imposto pela Constituição, qual seja,
confirmar, á exaustão, todas as hipóteses narradas na denúncia e efetivamente
apresentar as evidências que permitem concluir não ser a ação direcionada ao uso
próprio ou compartilhado.149
Como corolário do princípio de Direito Processual Penal in dubio pro reo, Salo de
Carvalho propõe a mais lógica solução para os casos em que não restar comprovado o
especial fim de agir no sentido do comércio de entorpecentes:
Frise-se, porém, que cabe ao agente acusador o ônus da prova de que as
circunstâncias empíricas indiciadoras são congruentes com o animus de comércio
em caso de imputação de tráfico de entorpecentes. Em não havendo prova robusta
ou restando esta dúbia, imperativa a desclassificação para o caput do art. 28 da Lei
de Drogas.150
Por derradeiro, insta pontuar algumas das considerações de Guilherme de Souza
Nucci a respeito do delito de tráfico ilícito de entorpecentes, que ora ocupa a presente
148
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06), p. 196. 149
Ibidem, pp. 211-212. 150
Ibidem, p. 218.
110
exposição. Este comentador, a partir da análise do tipo objetivo, frisa que o crime previsto no
art. 33 da Lei 11.343/06 tem lugar independente do intuito de lucro de quem o pratica:
Todas as condutas passam a ter, em conjunto, o complemento ainda que
gratuitamente (sem cobrança de qualquer preço ou valor). Logo, é indiferente haver
ou não lucro, ou mesmo intuito de lucro. Lembremos, ainda, que o tipo é misto
alternativo, ou seja, o agente pode praticar uma ou mais condutas, respondendo por
um só delito (ex.: se importar, tiver em depósito e depois vender determinada droga
= um crime de tráfico ilícto de entorpecentes previsto no art. 33).151
É importante observar que, além do destaque dado a ausência do intuito de lucro
como circunstância inapta a afastar a tipicidade da conduta, o fato de o tipo ser misto
alternativo (multiplicidade de condutas fungíveis entre si) não visa, obviamente, a permitir
que o agente, pela mesma conduta, incorra em mais de um delito, o que consagraria
inaceitável bis in idem. É possível concluir que é buscada a máxima efetividade da lei penal
mediante a enumeração da maior quantidade possível de condutas.
Após mencionar a superabundância de núcleos típicos no delito de tráfico ilícito de
entorpecentes, Nucci prossegue expondo uma hipótese plausível de concurso de crimes:
Eventualmente, pode-se acolher o concurso de crimes, se entre uma determinada
conduta e outra transcorrer período excessivamente extenso. Caso o agente venda
drogas provenientes de um carregamento, recém-importado, em janeiro de um
determinado ano, e torne a fazê-lo no mês de setembro desse mesmo ano, mas
relativamente a entorpecentes originários de outro carregamento, parece-nos haver
dois delitos em concurso, restando a discussão se cabe o concurso material ou o
crime continuado.152
Ultrapassadas essas considerações acerca do paradigma de enfrentamento no qual se
pauta a Lei de Drogas, passa-se às considerações acerca do modelo médico-sanitário que
igualmente inspira tal legislação. Conforme fora escrito há poucas linhas atrás, os primeiros
vinte e seis artigos da legislação em comento se referem mais especificamente às políticas
públicas de atenção e tratamento ao dependente de drogas, trazendo à tona um modelo
sanitário que, de certa forma, já inspirou as legislações sobre drogas de tempos pretéritos153
.
O Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas é regulado nos artigos 3º a 5º
da Lei 11.343/06. Atrai um poço a atenção para essa construção o fato de se ter ocupado tão
pouco o legislador com um assunto da mais alta relevância em se tratando do cuidado e da
atenção a usuários de drogas, uma vez que, segundo o melhor entendimento, esse “sistema”
151
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.357. 152
Ibidem. 153
Ver BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue, especificamente à parte em que o
autor se refere ao tratamento da problemática das drogas em meados do século XX, no contexto de um
modelo que ele mesmo classifica como “sanitário” e de cuja fonte foi extraída a presente classificação.
111
seria a base programática maior para todo um conjunto de políticas públicas que, a nosso ver,
carece de implementação até os dias de hoje.
Conforme já ventilado linhas atrás, esse programa de tratamento e atenção a usuários
de drogas se conteve no plano enunciativo, tendo sido propostas poucas, ou praticamente
nenhuma, medida concreta nesse sentido. Um bom exemplo de medida concreta que visa ao
tratamento de dependentes de drogas, ainda que estejam cumprindo pena ou medida de
segurança, encontra-se inserto no artigo 26 da lei 11.343/06, transcrito a seguir:
Art. 26. O usuário e o dependente de drogas que, em razão da prática de infração
penal, estiverem cumprindo pena privativa de liberdade ou submetidos a medida de
segurança, têm garantidos os serviços de atenção à sua saúde, definidos pelo
respectivo sistema penitenciário.
Observe-se que, em relação aos artigos 3º a 5º, adrede comentados, o dispositivo
acima ganha contornos de concretude que escapam ao caráter meramente enunciativo desta
parte da legislação. Para marcar essa distinção, observe-se a construção de alguns dos
dispositivos que tratam do Sisnad:
Art. 3o O Sisnad tem a finalidade de articular, integrar, organizar e coordenar as
atividades relacionadas com:
I - a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e
dependentes de drogas;
II - a repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas.(...)
(...)
Art. 5o O Sisnad tem os seguintes objetivos:
I - contribuir para a inclusão social do cidadão, visando a torná-lo menos vulnerável
a assumir comportamentos de risco para o uso indevido de drogas, seu tráfico ilícito
e outros comportamentos correlacionados;(...)
Observe-se que, quanto ao artigo 3º, inciso II da Lei 11.343/06, que trata da repressão
à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, a referida lei trará mais adiante, como
já fora comentado, todo um arsenal de medidas, sobretudo no que se refere à tipificação de
condutas criminosas às quais se cominam penas privativas de liberdade de elevada dosimetria
e se interditam benefícios fundamentais, medidas essas destinadas ao enfrentamento da
produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas. Quanto ao restante dos dispositivos
acima elencados, estes permanecem no campo programático, sem medidas assecuratórias
capazes de lhes conferir eficácia.
112
Tampouco o Decreto nº 5.912/06, que regulamenta a Lei 11.343/06, a nosso ver, foi
capaz de retirar esta norma do campo meramente enunciativo no que tange ao tratamento e
atenção a usuários de drogas, apesar de criar para o Sisnad uma estrutura burocrática e uma
composição bem definidas (especificamente no caso do Conselho Nacional Antidrogas –
CONAD, cuja composição é dada pelo artigo 5º do referido decreto).
Essa alternativa atribui á legislação em comento um caráter muito mais simbólico do
que prático no âmbito da realidade sobre à qual pretende atuar, constituindo uma espécie de
resposta aos súditos dada por um soberano que se vê às voltas com um problema que é
incapaz de resolver, ao menos sem que tal solução implique desgaste político e um mínimo
de comprometimento. Certamente, no contexto do estabelecimento de um modelo médico-
sanitário para o equacionamento da problemática das drogas no Brasil, a legislação em
comento não foi capaz de obter êxito, prevalecendo o se segundo, mas não menos importante,
pilar: o da política de enfrentamento que cotidianamente ceifa milhares de vidas.
Essa prevalência, longe de traduzir um acontecimento fortuito, filho do fracasso
natural de um modelo médico-sanitário mal elaborado para lidar com o desafio do consumo
de drogas no país, traduziu-se em premeditada escolha política pelo conflito, o qual,
conforme aqui se defende, depende de um elemento fundamental para continuar existindo:
depende de um inimigo, cuidadosamente construído e pintado como raiz de todos os males,
elemento que, quando extirpado, será capaz de deixar lugar para a concórdia e o bem comum.
Esse inimigo, cuidadosamente construído e meticulosamente utilizado nos momentos
de emergência, conforme definidos brilhantemente por Zaffaroni, é encarnado na figura do
traficante de drogas, aquele que, em bandos, aterroriza a sociedade e promove o caos,
atraindo legiões de filhos e filhas de cidadãos de bem para o consumo de drogas ilícitas. Esse
inimigo, cujo estereótipo corrente corresponde ao morador de comunidade carente que, por
gosto ou falta de uma melhor alternativa, aderiu a criminalidade, é o núcleo duro dessa
máquina de poder que dele se alimenta para justificar a própria existência. Um retrato mais
aprofundado dessa realidade se encontra mais à frente neste capítulo.
Por ora, interessa apontar mais uma faceta desse paradigma de enfrentamento ao qual
praticamente se reduz, a toda evidência, a legislação de (combate às) drogas no Brasil. Em
capítulos precedentes, foi apontado que a administrativização do Direito Penal é um
movimento que, atualmente, encontra-se no olho do furacão das propostas de expansão do
Direito Penal e, segundo Nilo Batista, traduz, entre outras coisas, uma posição de privilégio
do estado com relação ao patrimônio dos seus cidadãos.
113
É sob esse prisma de análise que aqui se tecerá algumas notas a respeito da previsão,
que pode ser encontrada na Lei 11.343/06, no sentido da expropriação de bens imóveis,
especialmente terras, além de direitos e valores utilizados para fins do tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins.
O artigo 60 da Lei 11.343/06 contém uma previsão expressa nesse sentido:
Art. 60. O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante
representação da autoridade de polícia judiciária, ouvido o Ministério Público,
havendo indícios suficientes, poderá decretar, no curso do inquérito ou da ação
penal, a apreensão e outras medidas assecuratórias relacionadas aos bens móveis e
imóveis ou valores consistentes em produtos dos crimes previstos nesta Lei, ou que
constituam proveito auferido com sua prática, procedendo-se na forma dos arts. 125
a 144 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal.
§ 1o Decretadas quaisquer das medidas previstas neste artigo, o juiz facultará ao
acusado que, no prazo de 5 (cinco) dias, apresente ou requeira a produção de provas
acerca da origem lícita do produto, bem ou valor objeto da decisão.
O procedimento para apreensão e tomada de outras medidas assecuratórias relativas
aos bens móveis e imóveis que sejam produto de crime, na forma do dispositivo em comento,
são dissecados por Guilherme Nucci nos seguintes termos:
Nesse caso, a polícia não necessita de mandado judicial, bastando lavrar o auto de
apreensão. Entretanto, há o proveito do crime, que significa a vantagem obtida pelo
delinqüente, mascarada de licitude. O traficante pode adquirir, por exemplo,
imóveis e veículos com o dinheiro arrecadado em virtude da venda de drogas. Não
pode a polícia judiciária simplesmente apreender tais bens, uma vez que é,
constitucionalmente, assegurado o direito de propriedade. Ingressa no cenário o
Judiciário, que pode, como dispõe a lei, seqüestrar os proveitos da infração penal.154
Para além de uma medida com natureza jurídica de pena de perdimento, segundo o
conhecido brocardo de ninguém poder se beneficiar da própria torpeza, essa medida pode ser
entendida como um indício de administrativização do Direito Penal, sob o prisma do
privilégio do soberano com relação ao patrimônio de seus súditos, posto que a medida
judicial apontada acima, em que pese a posterior reversão dos bens assim expropriados em
iniciativas de combate ao crime ou, de outra forma, em favor do poder público, apresenta
nítidos contornos de confisco.
E é assim porque, já estando o acusado envolvido em acusações certamente muito
mais graves do que essas que lhe podem causar uma diminuição patrimonial, óbvio está que
seu direito de defesa em relação a este incidente processual fica limitado, dada sobretudo a
154
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas, p.414.
114
exigüidade do prazo para produção de provas acerca da licitude dos bens apreendidos (artigo
60, § 1º da Lei 11.343/06, logo acima).
Sobre esse movimento geral de administrativização do Direito Penal, no âmbito de um
contexto maior de expansão do Direito Penal, são bastante ilustrativas as palavras de Silva
Sánchez sobre tal tema:
Como se verá, o decisivo aqui volta a ser o critério teleológico: a finalidade que
perseguem, respectivamente, o Direito Penal e o administrativo-sancionador. O
primeiro persegue a proteção de bens concretos e segue critérios de lesividade ou
periculosidade concreta e de imputação individual de um injusto próprio. O segundo
persegue a ordenação, de modo geral, de setores da atividade (isto é, o reforço,
mediante sanções, de um determinado modelo de gestão setorial). Por isso não tem
por que seguir critérios de lesividade ou periculosidade concreta, senão que deve
preferencialmente atender a considerações de afetação geral, estatística; ainda
assim, não tem por que ser tão estrito na imputação, nem sequer na persecução
(regida por critérios de oportunidade e não de legalidade).155
Ora, considerando que financiar ou custear o tráfico de drogas é crime definido na
forma do artigo 36 da Lei 11.343/06, essa medida judicial de confisco de bens destinados ao
tráfico ilícito de entorpecentes, ou que dele sejam fruto, funciona muito mais como uma
medida administrativa de desestímulo à prática dessa conduta do que como uma norma
propriamente penal, com natureza pura e simples de pena de perdimento.
Afinal, imagina-se que assusta a qualquer patrocinador que tenha a pretensão de se
tornar uma espécie de “empresário da droga” a perspectiva de perder todo o capital investido
e mais os lucros que obtiver com esse comércio. Nesse sentido, essa previsão no sentido do
perdimento de bens e valores empregados na prática dos delitos tipificados na Lei 11.343/06
funciona muito mais como ferramenta de gestão desse tipo de ilegalidade, atuando a serviço
do Estado enquanto medida de caráter intimidatório em face daqueles que pretendem fazer do
tráfico ilícito de entorpecentes uma atividade econômica.
Esse ponto de contato, a nosso ver, é capaz de enquadrar a Lei 11.343/06 no âmbito
de um contexto de expansão do Direito Penal, sobretudo sob a ótica de Silva Sánchez, posto
que, conforme demonstrado logo acima, atua tanto sobre um tipo de criminalidade, até certo
ponto, econômica (financiamento de uma atividade ilícita) e, ao mesmo tempo, se volta ao
combate de uma criminalidade globalizada, posto que possui um título específico que trata da
cooperação internacional no combate às drogas, abaixo colacionado:
Art. 65. De conformidade com os princípios da não-intervenção em assuntos
internos, da igualdade jurídica e do respeito à integridade territorial dos Estados e às
leis e aos regulamentos nacionais em vigor, e observado o espírito das Convenções
155
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 150.
115
das Nações Unidas e outros instrumentos jurídicos internacionais relacionados à
questão das drogas, de que o Brasil é parte, o governo brasileiro prestará, quando
solicitado, cooperação a outros países e organismos internacionais e, quando
necessário, deles solicitará a colaboração, nas áreas de:
I - intercâmbio de informações sobre legislações, experiências, projetos e programas
voltados para atividades de prevenção do uso indevido, de atenção e de reinserção
social de usuários e dependentes de drogas;
II - intercâmbio de inteligência policial sobre produção e tráfico de drogas e delitos
conexos, em especial o tráfico de armas, a lavagem de dinheiro e o desvio de
precursores químicos;
III - intercâmbio de informações policiais e judiciais sobre produtores e traficantes
de drogas e seus precursores químicos.
Esse dado, além do que se poderia supor quando da elaboração preliminar desse
estudo, põe a legislação em comento em linha com a mais acirrada corrente de expansão do
Direito Penal, em que pese a aparente tentativa de descriminalização nela contida a partir da
não cominação de pena privativa de liberdade para o porte de drogas para uso próprio.
Frise-se, além disso, que as iniciativas internacionais de combate à criminalidade, sob
uma perspectiva histórica, parecem nunca terem sido elaboradas para atender ás necessidades
dos países da América Latina. Conforme escreve Rosa Del Olmo em sua obra sobre a
Criminologia latino-americana:
Todavia, Candido Mendes de Almeida – que, lembramos, era delegado oficial na
Comissão Penal e Penitenciária – afirmou que as elevadas temperaturas em seu país
tornariam impraticável a reclusão celular. Nas conclusões, não se levou em conta
este importante comentário, que não atinge somente o Brasil, mas três quartos do
planeta. Não se levou em conta porque as “normas universais” são criadas de
acordo com a necessidade dos países hegemônicos e, neste caso, não interessam as
dificuldades que o clima tropical possa gerar, porque não afeta esses países.156
A realidade apontada revela a elaboração de normas internacionais que, muitas vezes,
não se coadunam com as necessidades dos países que as subscrevem. A assinatura de
Convenções que visam ao enfrentamento da problemática das drogas, p. ex., acaba levando
mais em consideração a preocupação dos países centrais com o estabelecimento e acúmulo de
poder nas mãos de narcotraficantes internacionais. A preocupação com questões internas,
próprias da realidade de cada país, acaba sendo deixada em segundo plano, comprometendo o
sucesso das próprias políticas adotadas.
156
DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro, Revan, 2004, pp. 114-115.
116
Ressalte-se, ainda, que a política de combate às drogas no mundo, mediante
cooperação internacional, foi forjada sobretudo pela influência norte-americana, que conferiu
à mencionada política um viés proibicionista, conforme anota Luciana Boiteux:
No plano internacional, a influência norte-americana foi decisiva na elaboração de
uma política proibicionista internacional de drogas, notadamente na Convenção da
ONU de 1961 sobre entorpecentes, que previa a implementação de uma política
única mundial, baseada no modelo norte-americano de incremento do controle
penal da droga, que previa como objetivo a ser alcançado a erradicação do consumo
e do tráfico.157
Esse proibicionismo relativo ao consumo de drogas, segundo a doutrinadora adrede
mencionada, se vincula a aspectos moralistas da sociedade norte-americana, em linha com
estereótipos sócio-culturais previamente construídos, conforme se extrai do fragmento
abaixo:
Por outro lado, de acordo com a literatura especializada consultada, nota-se um
destacado viés sócio-racial na política norte-americana de proibição e controle de
drogas. Nos EUA, a bandeira da reprovação moral ao uso de substâncias
psicotrópicas foi empunhada pelas ligas puritanas, que influenciaram fortemente a
inauguração do controle formal e a proibição de substâncias psicotrópicas,
associada a determinados grupos sociais minoritários e descriminados. Muito
embora o hábito de consumir drogas não fosse restrito a pessoas de baixo status
social, visto que muitas pessoas das classes média e alta também as consumiam,
havia uma propaganda oficial que relacionava o uso de drogas com determinados
tipo de pessoas: negros, mexicanos, chineses, tarados, desempregados e
criminosos.158
É o estereótipo social vinculado à drogas, em nossa concepção, o grande responsável
pelo tratamento penal dispensado ao usuário e, principalmente, ao traficante. Esse estereótipo
é um dos elementos que autoriza dizer que a legislação de drogas trata, em princípio, de uma
concepção própria do direito penal de autor, uma vez que leva em conta características
próprias do agente no momento da criminalização: classe social, antecedentes, fato de possuir
ou não uma ocupação fixa, ou seja, condições que nem sempre dependem da vontade livre de
quem é usuário de drogas ou se vê diante de uma imputação de tráfico.
Sob outro prisma, cabe ainda lembrar, quer se tratando do paradigma de
enfrentamento, quer se tratando do paradigma médico-sanitário, a legitimidade e, em certa
medida, a eficácia das medidas adotadas para lidar com a problemática das drogas no Brasil
depende de um prévio exame de aferição de critérios de razoabilidade e de proporcionalidade,
conforme preleciona Salo de Carvalho em sua análise dogmática da Lei 11.343/06: “A
necessária relação de simetria entre meio e fim, segundo a doutrina, deve orientar os
157
RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do
proibicionismo no sistema penal e na sociedade, p. 53. 158
Ibidem, pp. 62-63.
117
operadores e os intérpretes do direito para constatar se em determinadas circunstâncias (casos
penais específicos ou conjuntos normativos) houve ou não ruptura na razoabilidade”159
.
Esse critério é da mais lídima lógica e se coaduna perfeitamente com um ambiente em
que prevaleçam, como devem sempre prevalecer, os princípios básicos da lógica discursiva
democrática, ao menos enquanto se viva sob a égide do Estado democrático de direito. Em
outra frente, no subitem seguinte, serão apresentadas reflexões acerca de como, e em que
medida, o traficante de drogas é apresentado enquanto um inimigo no contexto do paradigma
de combate às drogas que informou a elaboração da Lei 11.343/06.
4.2 O traficante de entorpecentes como inimigo
Todas as considerações feitas até aqui, em linha com o movimento de expansão do
Direito Penal e, como projeção desse mesmo movimento, com o Direito Penal do Inimigo,
permitem qualificar o traficante de entorpecentes como inimigo a partir da incorporação ao
sistema penal de diversas variáveis já abordadas ao longo desta exposição, dentre as quais se
encontram os próprios dispositivos da Lei 11.343/06.
Esse processo de eleição de uma categoria de indivíduos aos quais se dirige uma
repressão penal mais gravosa em relação àquela destinada aos demais se dá, principalmente,
mediante atuação de duas das variáveis abordadas ao longo deste estudo: i) a incorporação ao
sistema penal de um dado de seletividade dirigido contra indivíduos penalmente vulneráveis e
ii) o tratamento penal extremamente severo calcado na Lei 11.343/06 e na respectiva
interdição de benefícios jurídico-penais em tese aplicáveis ao traficante de entorpecentes.
Como é sabido, a seletividade do controle penal constitui um dado estruturante de
todos os sistemas penais, distribuindo-se dentro desses mesmos sistemas de forma mais ou
menos aparente, em maior ou menor grau. Essa seletividade é viabilizada, de um lado, pela
atribuição do rótulo de criminoso, muito bem explorada pela criminologia do labelling
approach, e, de outro, pela escolha de caráter prático que é efetuada pelas agências
componentes do sistema penal, punindo determinadas infrações e deixando outras impunes.
Tal escolha acaba sendo informada, conforme critérios práticos que orientam toda e
qualquer burocracia, pelo imperativo de se fazer o mais simples. E fazer o mais simples, em
matéria de persecução penal, significa punir quase tão somente a chamada “obra tosca da
159
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06), p. 208.
118
criminalidade”, produto da parca educação e dos igualmente parcos recursos de uma
categoria de oprimidos, aqui designados vulneráveis, para adotar a terminologia utilizada por
Salo de Carvalho em sua obra160
.
Dentre essa ampla categoria de vulneráveis, que no Brasil estatisticamente
corresponde a um grande número de criminalizados por furto e abortamento, encontram-se
também os traficantes de drogas e a crônica cotidiana, amplamente divulgada pela mídia, da
suposta barbárie por eles perpetrada. Essa faceta do discurso oficial encobre, em grande
medida, sobretudo em função do cultivado hábito de não se raciocinar de forma crítica, todo
um enredo direcionado no sentido da criminalização desses indivíduos.
Exemplo dessa tendência de criminalização baseada em estereótipos pode ser extraído
do estudo de Vera Malaguti Batista sobre drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro:
A visão que esses operadores têm das favelas do Rio de Janeiro revela as estruturas
inconscientes de um apartheid social que só vem se consolidando. Uma assistente
social do instituto Padre Severino afirma em seu relatório de estudo de caso em
1988(!): “O local onde reside – área favelada – propicia seu envolvimento com
pessoas perniciosas á sua formação moral”. Outro caso de 1988 em que a assistente
social do IPS fala da favela em sua síntese informativa: “Reside em área favelada,
num ambiente propício à marginalização”. Um oficial de justiça, também em 1988,
justifica a não entrega de uma intimação: “Área de difícil acesso e que por certo
porá em risco tantos quantos ali penetrarem, povoada de malfeitores, todos
atualmente temidos pelos moradores da localidade”.161
Tal presunção de periculosidade direcionada às comunidades carentes acaba lançando
sobre seus moradores a pecha de possivelmente perigosos e também de traficantes em
potencial, o que não é uma verdade. A soma de toda uma série de preconceitos cotidianos
atua como catalisador de uma reação cujo produto é a construção da imagem do traficante de
drogas enquanto inimigo.
Esse enredo apresenta pontos de contato iniciais na Constituição da República,
espraiando-se pelo ordenamento infraconstitucional via Lei de Drogas, principalmente
através de suas gravosas disposições atinentes à interdição de benefícios como sursis, indulto
e liberdade provisória, por exemplo. Tais disposições legais são claramente inspiradas pela
ideologia da defesa social, a qual é abordada por Rosa Del Olmo no seguinte fragmento de
sua obra:
“Era o ponto de chegada de uma longa revolução do pensamento penal e
penitenciário, que corresponde a uma ideologia caracterizada por uma concepção
abstrata e a-histórica da sociedade, onde se destacam fundamentalmente os
160
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06). 161
BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de
Janeiro, Revan, 2003
119
princípios do bem e do mal e da culpabilidade”, então necessária como
centralizadora e unificadora das “normas universais” que se iriam impor.162
Ressalte-se que a ideologia da defesa social não é algo novo, tendo surgido no pós-
guerra e passado a fundamentar os esforços internacionais de difusão do controle social.
Como apontado por Rosa Del Olmo:
Ainda em 1947, no mês de novembro, realiza-se na cidade de San Remo o I
Congresso de Defesa Social, graças aos esforços do Centro para o Estudo da Defesa
Social, fundado em 1945 em Gênova, por Filippo Gramatica. A finalidade principal
desse primeiro congresso – bem como do segundo, que se reuniria em 1949, em
Liège – foi discutir o novo movimento de defesa social, o que – embora não se vá
detalhar no presente trabalho – precisa ser detalhado como doutrina-chave da futura
transnacionalização do controle social.163
Em relação à transnacionalização do controle social, a autora em comento tece ainda
algumas considerações relativas à maneira pela qual esta fora operacionalizada:
Criavam-se, além disso, as bases para a futura transnacionalização do controle
social. Não era suficiente que cada organização difundisse internacionalmente seus
princípios, sobretudo quando exigia ideologicamente um denominador comum.
Decidiu-se, portanto, pela realização de reuniões qüinqüenais entre as quatro
sociedades, não somente para planejar seus respectivos congressos, mas para
coordenar seus esforços e discutir temas de interesse comum.164
Pode-se dizer, com base nos elementos colhidos logo acima, que a ideologia da defesa
social, como elemento de transnacionalização do controle social, é em grande parte
responsável pelo direcionamento de medidas de neutralização (tratamento penal típico de
inimigo) contra o homem delinqüente. Conforme Rosa Del Olmo prossegue expondo:
Nas resoluções do Congresso de San Remo apresenta-se a necessidade de serem
acolhidos internacionalmente os princípios da defesa social, sem que se explique
detidamente que princípios são esses. Marc Ancel, todavia, tenta fazê-lo quando
diz: “1º A defesa social pressupõe que os meios de manejar o delito deveriam ser
concebidos como um sistema de proteção da sociedade contra os fatos delituosos;
2º Essa proteção social é obtida por meio de um conjunto de medidas que
geralmente está fora do âmbito do direito penal e está delineada para „neutralizar‟ o
delinqüente, seja removendo-o ou segregando-o ou aplicando-lhe métodos
educativos reabilitadores”.165
A necessidade de neutralização do delinqüente chama a atenção porque, ao mesmo
tempo que permeia a idéia de defesa social, fundamenta a persecução penal ao inimigo, que
não deve ser tratado como criminoso comum, mas neutralizado em função de sua
162
DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia, pp. 119. 163
Ibidem, p. 118. 164
DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia, p. 134. 165
Ibidem, p. 120.
120
periculosidade. Sobre esse ponto, prossegue a autora em comento acerca dos princípios gerais
da ideologia da defesa social:
Existe uma clara conexão entre as idéias de defesa social e a noção de
periculosidade da União Internacional de Direito Penal; 3º A defesa social conduz à
promoção de uma política criminal que favorece o enfoque individual de
prevenção, e não o coletivo. Esta política de criminal está dirigida à socialização
sistemática do delinqüente; 4º Este processo de ressocialização somente é obtido
por uma crescente humanização do novo direito penal; 5º Esta humanização do
direito penal está baseada, tanto quanto possível, na compreensão científica do
fenômeno delituoso e na personalidade do delinqüente.166
Uma concepção que se baseia na personalidade do delinqüente em muito se aproxima
do conceito de direito penal de autor, fundamento do Direito Penal do Inimigo. A
compreensão científica do fenômeno delituoso e a consideração da personalidade do
delinqüente remontam a uma concepção ontológica de criminalidade, a qual, desde seus
primórdios, busca identificar no delinqüente alguém diferente dos demais.
O estigma imposto ao usuário de drogas, a partir da criminalização de sua conduta
(porte para uso próprio), bem como as severas medidas penais destinadas ao traficante de
entorpecentes pela Lei 11.343/06 demonstram que as disposições desse diploma legal estão
em linha com o que propõe a ideologia da defesa social.
Para uma síntese do que propõe a ideologia da defesa social, em termos gerais, Rosa
Del Olmo sintetiza sua exposição da seguinte forma: “A defesa social se imiscui diretamente
no problema essencial das relações entre o indivíduo e o Estado. Baseia-se em uma filosofia
política que tende ao individualismo social”167
.
Essa adoção de medidas de combate ao tráfico ilícito de entorpecentes, desde um
paradigma de enfrentamento, já explorado na seção precedente, encontra seu ponto de partida
na Constituição da República a partir da equiparação do tráfico ilícito de entorpecentes aos
crimes hediondos. Atente-se para o que escreve Salo de carvalho a respeito do tema:
Especificamente em relação ao tráfico ilícito de entorpecentes, a Constituição
determina sua equiparação aos delitos hediondos, estabelecendo a impossibilidade
de fiança, graça e anistia, bem como a responsabilização criminal dos mandantes,
executores e aos que, podendo evitar a prática de do crime, se omitirem (art. 5º,
XLIII). Delineia a Constituição, portanto, o máximo grau de resposta punitiva ao
sistema de direito e de processo penal brasileiro com a adjetivação de nova espécie
de delito – crime hediondo, regulamentado posteriormente pela Lei 8.072/90 -,
estendendo seus efeitos ao comércio ilegal de drogas, à tortura e ao terrorismo.168
166
DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia, p. 120. 167
Ibidem. 168
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06), p. 193.
121
Esse comando constitucional, de per si, já agrava a situação daqueles que se vejam
envolvidos na prática do tráfico ilícito de entorpecentes. A Lei 8.072/90, ao dispor sobre tais
crimes, vem concretizar no ordenamento infraconstitucional o programa criminalizador
originalmente previsto na Carta Magna. Por derradeiro, a Lei de Drogas, ao vedar a
concessão de determinados benefícios aos implicados em crimes nela tipificados, dirige
contra esses indivíduos uma resposta penal especialmente gravosa em relação a outros delitos
que não gozam do mesmo tratamento penal e, no entanto, destinam-se à proteção do mesmo
bem jurídico, qual seja, a saúde pública169
.
Esse tratamento diferenciado que, a nosso ver, marca nitidamente a eleição de um
inimigo e, de outro lado, a clara restrição de direitos e garantias fundamentais, encontra-se,
sem sombra de dúvida, no marco teórico de um movimento de expansão do Direito Penal. O
trecho abaixo ilustra com precisão tal afirmação:
Maximizou-se o espectro de incidência do direito penal aos atos de discriminação
(art. 5º, XLI); à prática de racismo (art. 5º, XLII), aos crimes hediondos, tortura,
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e ao terrorismo (art. 5º, XLIII), à ação
de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado de direito (art. 5º,
XLIV). Neste local da Constituição coabitam, portanto, normas distintas com
funções igualmente diferenciadas.170
Essa maximização do espectro de incidência do Direito Penal sem dúvida corresponde
a um reflexo do movimento global de expansão do Direito Penal, objeto de investigação
científica para Gracia Martín171
e Silva Sánchez172
, previamente analisadas. Antes de
representar um consenso, conforme propõe Silva Sánchez, ou uma tendência natural das
legislações da União Européia, conforme propugna Gracia Martín, essa resposta mais severa
traduz anseios dos mais diversos momentos de comoção social.
Esse eterno mal a ser veementemente combatido pelas instâncias de poder, dentro de
um paradigma de enfrentamento, encontra sua personificação no traficante de drogas e em
169
Note-se que os crimes contra a saúde pública, dispostos nos arts. 267 e seguintes do Código Penal, não tem
interditados os mesmos benefícios que a Lei de Drogas não faculta aos crimes nela tipificados e que tutelam,
em tese, o mesmo bem jurídico. Observe-se que a dosimetria penal é igualmente mais branda, sobretudo nos
tipos de “Emprego de processo proibido ou de substância não permitida” (art. 274 do Código Penal) ou,
ainda, de “Outras substâncias nocivas à saúde pública” (art. 278 do Código Penal), tipos que, a nosso ver, se
aproximam de determinadas modalidades previstas na Lei de Drogas. 170
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06), p. 193. 171
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para
a crítica do discurso de resistência. 172
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós industriais. 2ª Ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011.
122
todo o estereótipo que se lhe atribui173
. Esse indivíduo, selecionado dentre os vulneráveis, os
desvalidos, aqueles que muitas vezes tem sede de justiça ou, para utilizar a terminologia de
Merton, dentre aqueles que não tiveram acesso aos meios institucionais tradicionais para
aquisição dos bens da vida e encontraram no crime uma solução, é erigido ao ápice das
conjecturas acerca de um criminoso muito perigoso. Essa imagem fortemente marcada pelo
estereótipo criminal exposto, divulgada diariamente nos telejornais, representa um pilar
fundamental para a naturalização do dado de seletividade do sistema penal e para a
construção do inimigo como mal a ser combatido.
Ultrapassado esse primeiro ponto atinente à seletividade dos sistemas penais e à
atribuição do rótulo de criminoso, passar-se-á à programação incriminadora que viabiliza, em
termos práticos, a perseguição do inimigo. Salo de Carvalho aponta a existência de
“microssistemas jurídicos”, fora das legislações codificadas, ou seja, legislação penal
extravagante, como dito pela doutrina pátria, como uma das causas da acentuação da
punitividade no âmbito do sistema penal brasileiro. Observe-se o que anota este autor a
respeito do tema:
Inegável, portanto, a constãncia do horizonte maximizado de incriminação,
circunstância potencializada pela fragmentação e autonomia do direito penal das
drogas dos estatutos penais. Percebe-se, no processo histórico, como conseqüência
direta da descodificação, a conversão das leis especiais em direito penal de
diferenciado valor. Formam-se microssistemas jurídicos nos quais os rígidos
princípios da lei codificada são flexibilizados, quando não absolutamente ignorados,
acentuando rupturas com a base garantista do direito penal, conforme diagnostica
Zaffaroni: „la legislación penal latinoamericana padece de um mal endêmico, que
son lãs „leyes penales especiales‟ cuya proliferación acarrea um enrome
componente de inseguridad juridica‟.”174
Essa questão, aparentemente apenas de técnica legislativa, acaba por redefinir toda
uma estrutura jurídico-penal pensada a atender imperativos de garantia. Uma vez que se retira
grande parte, ou a maior parte, talvez, da legislação penal de dentro do Código Penal e se
deixa a cargo do legislador fazê-lo, de forma esparsa, via legislação penal extravagante, o
conjunto da obra certamente perde em termos de sistematização. E é nesse vácuo discursivo,
aparentemente formal, que o poder punitivo encontra meios de se expandir, sempre em
desfavor dos inimigos, in casu, do traficante de entorpecentes, alvos preferenciais da
persecução penal do Estado.
173
Ver BINGHAM, Tileodore A. Foreign Criminals in New York, pp. 383-394 quanto ao papel fundamental do
estereótipo, que, no caso deste artigo, assume contornos étnicos, para a construção de uma imagem geral da
criminalidade. 174
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06), p. 197.
123
Em relação à “base garantista do direito penal”, apontada por Salo de Carvalho no
fragmento acima, a Profª Junya Barletta tece algumas considerações em sua dissertação:
O modelo penal garantista é uma construção de Luigi Ferrajoli a partir de uma
profunda revisão crítica do chamado modelo penal garantista clássico, de matriz
ilustrada. Percorrendo não apenas as bases epistemológicas do modelo clássico,
mas também seus fundamentos axiológicos externos (critérios de justificação ético-
política) e internos (jurídicos), o autor visa alcançar um modelo penal que permita
fundamentalmente legitimar ou deslegitimar os sistemas jurídico-penais concretos
ou mesmo determinados institutos penais e processuais penais, de acordo com os
parâmetros do Estado Constitucional de Direito.175
Esse modelo penal garantista é o objeto das investidas da expansão do Direito Penal,
em geral, e do Direito Penal do Inimigo, em particular, que buscam o questionamento de
alguns dos seus postulados básicos. Nesse sentido, pode-se entender as “rupturas com a base
garantista do direito penal”, apontadas em Salo de Carvalho, como o questionamento desse
modelo inicial, exposto acima, bem como dos parâmetros constitucionais que o orientam.
Outro elemento importante passível de ser extraído da dissertação citada diz respeito
aos limites para aplicação da lei penal:
A concepção convencionalista encontra-se em dois legados ou ganhos
fundamentais para a teoria clássica do direito penal e para a tradição jurídica
liberal. Primeiramente, a noção de liberdade negativa (como não-interferência):
como a lei penal define com rigidez as condutas proibidas e conseqüentemente
puníveis, toda conduta que não é definível pela lei como infração penal é permitida,
ou seja, encontra-se na esfera de liberdade de atuação do cidadão. O segundo
legado é a idéia de igualdade jurídica em seu sentido formal, ou seja, a igualdade de
todos perante uma lei que vincula, de forma precisa, uma pena determinada a uma
conduta determinada, sem distinção das pessoas que a cometeram, evitando assim
discriminações apriorísticas referentes à personalidade e às condições subjetivas
antropológicas, políticas ou sociais do imputado.176
Observa-se que os limites à atuação da lei penal expostos acima, estabelecidos
segundo a concepção de Ferrajoli, são sistematicamente desconstruídos a partir do Direito
Penal do Inimigo. O estabelecimento do conceito de inimigo necessariamente rompe com o
postulado da igualdade de todos perante a lei, pondo em cheque os pilares da concepção
supra. Como se vê, o Direito Penal do Inimigo mina o garantismo penal em suas bases ao
propor uma revisão de sua fundamentação.
A persecução penal mais gravosa dos inimigos, que é tema central deste subitem,
também possui implicações do ponto de vista da razoabilidade e da proporcionalidade,
conforme muito bem anota Salo de Carvalho:
175
BARLETTA, Junya Rodrigues. Fundamentos críticos para a deslegitimação da prisão provisória. Orientador
Prof. Dr. João Ricardo Wanderley Dornelles. Rio de Janeiro, 2007, p. 31. 176
Ibidem, p. 35.
124
Em decorrência do postulado da proporcionalidade em sentido amplo, o critério
ideal de definição legal e judicial das sanções deve ser aquele fornecido pela
equação dano-pena. No momento em que a teoria do bem jurídico passou a ser o
principal recurso de interpretação dogmática, não se admite que a resposta penal
deixe de guardar estreita relação de simetria com a lesão produzida pela conduta
incriminada. Percebe-se, pois, a intersecção entre dois clássicos princípios do
direito penal: princípio da proporcionalidade e princípio da ofensividade. Assim,
não apenas o critério legislativo de cominação abstrata mas, igualmente, o judicial
de aplicação individualizada, são balizados pela ponderação e ajuste da pena ao
dano. Não por outro motivo o direito penal se antecipou aos demais ramos do
direito brasileiro na discussão sobre o tema da proporcionalidade.177
Nesse sentido, extrai-se do fragmento supra, em síntese, que a pena há de ser
proporcional à lesão provocada ao bem jurídico penalmente tutelado pela conduta criminosa.
Observa-se, entretanto, que o Direito Penal do Inimigo propõe uma resposta exacerbada à
conduta criminosa do agente em razão de um juízo prévio elaborado, frise-se, em função de
estereótipos que não condizem com a realidade.
Em nenhum momento a maior reprovação da guarda qualquer relação com a lesão
provocada ao bem jurídico tutelado pela norma. Esse fato representa uma ofensa ao princípio
da proporcionalidade, contaminando o arcabouço teórico do Direito Penal do Inimigo de um
vício insanável: o desrespeito de um princípio cardeal em uma esfera tão relevante quanto a
esfera penal.
Outra posição que corrobora a existência de estruturas próprias do Direito Penal do
Inimigo na legislação nacional sobre drogas, igualmente colhida da obra de Salo de Carvalho,
pode ser encontrada na doutrina espanhola, trazida e colocada em discussão e análise pelo
autor em comento:
Muñoz Conde, ao avaliar a tendência universal de intervenção omnicompreensiva
em todas as fases do ciclo da droga – “La penalización de todo comportamiento que
suponga uma contribuición, por mínima que sea, a su consumo -, alerta para os
resultados autoritários que tal perspectiva produz, notadamente em relação á sua
incorporação nas decisões judiciais. A recepção da interpretação omnicompreensiva
pelos Tribunais, agregada à estrutura aberta da tipicidade no direito penal das
drogas, induz a introdução de critérios ampliadores das hipóteses de criminalização.
Assim, advoga Muñoz Conde a necessidade de „interpertación restrictiva em base al
princípio de proporcionalidad que atempera la excesiva amplitud de esos conceptos,
excluyéndose, además del autoconsumo, lãs [condutas] adecuadas socialmente o lãs
que no tienen capacidad de expansión.‟”178
Quanto a esse modelo “omnicompreensivo” de interpretação da Lei de Drogas, Salo
de Carvalho prossegue ainda tecendo mais algumas considerações:
Contudo o modelo de intervenção omnicompreensivo (Muñoz Conde) que
prescinde os sistemas proibicionistas, cujo escopo é a punibilidade integral do ciclo
da droga – da mínima contribuição ao consumo -, produz leis penais que ofuscam
177
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06), p. 206. 178
Ibidem, p. 210.
125
os critérios mínimos de razoabilidade. No caso do direito penal das drogas, o efeito
é a criminalização de condutas essencialmente preparatórias.179
O tipo penal inserto no art. 34 da Lei de Drogas traduz com perfeição a incriminação
de meros atos preparatórios, indo ao encontro da lição de Salo de Carvalho a respeito do
tema. São tecidas outras considerações ainda a respeito dessa resposta penal ampla, que visa a
uma, por assim dizer, punitividade total do inimigo eleito.
Observe-se o que escreve o Profº Salo a respeito do art. 34 da Lei 11.343/06:
O art. 34 da Lei de Entorpecentes não apenas expõe sua natureza de ato preparatório
ao vincular os verbos nucleares aos instrumentos e objetos de destinação à produção
de drogas, violando o princípio da lesividade, como cria tipo penal vago e
impreciso, em frontal ofensa à taxatividade (previsibilidade mínima). Greco Filho,
em comentário ao art. 13 da Lei 6.368/76, diagnosticava a indeterminação desta
espécie de tipo penal incriminador de comércio e manutenção de maquinário e
instrumento de preparação de entorpecentes em face de „não existirem aparelhos de
destinação exclusivamente a essa finalidade‟”.180
Essa incriminação de atos evidentemente preparatórios, uma vez que não apresenta
dado que indique lesão, ao menos imediata, a determinado bem jurídico, parece ter sido fruto
de uma preocupação do legislador no sentido de não deixar impunes quaisquer tentativas de
auxílio ou fornecimento de instrumental e matéria prima ao tráfico ilícito de entorpecentes,
como estratégia para promover o isolamento do inimigo e sua sucumbência pela falta de
suprimentos. Esse fato seria mais um indício a apontar para a adoção e o direcionamento de
medidas de combate ao inimigo (traficante de entorpecentes) pela Lei 11.343/06.
Em relação à proliferação de verbos nos núcleos dos diversos tipos penais que
compõem a Lei 11.343/06, cabem considerações de índole constitucional. Essas
considerações dizem respeito aos direitos fundamentais, com viés de crítica à persecução
penal escancarada dirigida aos inimigos do Estado.
Em comentário ao art. 33, § 2º da Lei 11.343/06, que incrimina a indução, instigação,
auxílio e apologia ao uso de drogas, Salo de Carvalho tece as seguintes considerações:
Outro grave problema decorrentes desta estrutura de tipicidade aberta e volátil –
fato que por si só gera dúvidas quanto a sua constitucionalidade – é a criminalização
da livre manifestação do pensamento, tanto por ações de grupos antiproibicionistas
quanto por exposição de idéias no ambiente artístico e cultural.181
A análise em questão foi feita no contexto de crítica à criminalização do movimento
internacional antiproibicionista conhecido no Brasil como “Marcha da Maconha”, bem como
em relação ao indiciamento de músicos como Planet Hemp, MV Bill e MC Colibri por
179
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06), p. 238. 180
Ibidem, p. 238. 181
Ibidem, p. 258.
126
apologia ao crime182
. Levando em consideração que a Carta Magna veda expressamente a
criminalização do crime político ou de opinião, e considerando também que a vedação ao
anonimato é corolário da livre manifestação do pensamento em nosso sistema, tipos penais
como os ora em comento precisam ser revistos à luz de uma interpretação conforme à
constituição.
Sustentar o contrário significa afirmar que pode haver lei, em matéria penal, o que é
mais grave, editada contra a vontade do legislador constitucional, o quê não é possível.
Entretanto, sob o prisma de análise ora eleito, essas estratégias de criminalização podem ser
interpretadas como mais uma maneira de combater eficientemente o tráfico ilícito de
entorpecentes e os inimigos do Estado que militam em suas fileiras, no contexto de uma
práxis penal informada pelo funcionalismo próprio do Direito Penal do Inimigo.
Outro elemento que milita em favor da tese ora abraçada é a possibilidade de
aplicação de pena e de outras medidas de caráter punitivo em relação a um mesmo fato
tipificado na Lei 11.343/06, conforme previsto no art. 27 desse diploma legal. Em relação a
essa possibilidade de cumulação, que configura bis in idem, Salo de Carvalho escreve ainda
algumas ilustrativas linhas:
Todavia a Criminologia Crítica demonstra exaustivamente que a tendência das
agências de punitividade é ultrapassar a barreira da legalidade, incrementando
metarregras para exceder nas formas de punir. Dessa forma, as possibilidades
excepcionais de cumulatividade, visto a aplicação exclusiva constituir direito
subjetivo do acusado, pois menos aflitiva, abrem espaço para que a cominação
conjunta de penas e de medidas se estabilize como regra, criando verdadeiras
dobras punitivas no sistema.183
Essa pluralidade nas formas de punir, mediante a criação das referidas “metarregras”,
nada mais é senão uma estratégia do poder punitivo para desferir sua sanha expansionista
contra os inimigos do Estado. O traficante de entorpecentes, nesse contexto, torna-se alvo de
uma resposta penal anômala, não compartilhada pelos demais infratores de normas penais.
Nesse sentido, é correto afirmar que este inimigo, primeiramente eleito pelo Estado
para ocupar tal posição e ato contínuo perseguido, recebe, de fato, um tratamento penal
diferenciado que o define e qualifica como tal, conforme sustentado até aqui pelos mais
diversos fundamentos expostos.
182
As referências e o histórico desses acontecimentos podem ser encontrados em CARVALHO, Salo de. A
política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06), pp. 262-265. 183
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei
11.343/06), p. 281.
127
CONCLUSÃO
O quadro geral da expansão do Direito Penal, conforme tratado no Capítulo 1,
apresenta toda uma gama de questões controversas e de críticas que se podem formular. Em
linha com o que propõe esse movimento de ampliação dos domínios do poder punitivo, o
Direito Penal do Inimigo se apresenta como ferramenta a serviço do Estado em termos de
persecução penal. Essas e outras considerações foram amplamente exploradas ao longo do
estudo que ora se conclui e em muito auxiliaram no sentido de, ao menos, dar mais um passo
em direção do aprofundamento de um tema capaz de suscitar tantas controvérsias e servir de
base para reflexão acerca de uma série de dilemas penais contemporâneos.
Tendo analisado as posições de Gracia Martín e de Silva Sánchez a respeito da
expansão do Direito Penal, é possível se chegar a algumas linhas conclusivas acerca desse
movimento que em muito pode impactar a constituição do Estado democrático de direito tal
qual o conhecemos hoje. Em primeiro lugar, é necessário comparar o que escreveram esses
dois autores a respeito do tema.
De certa forma e em linha com o que já foi ressaltado, as posições assumidas pelos
penalistas mencionados convergem sob o prisma das idéias centrais e da necessidade
percebida de se ampliar o âmbito das condutas penalmente relevantes. Em ambos os autores,
a construção de um novo Direito Penal, completamente reformulado e de viés expansionista,
passa por uma revisão do paradigma clássico do Direito Penal, a qual visa a alcançar, mais do
que uma adaptação, um produto sensivelmente diferente daquele que existia no ponto de
partida.
Nesse sentido, o Direito Penal clássico, de garantias, se torna matéria prima para a
construção de um Direito Penal de caráter expansionista, destinado a enfrentar os desafios do
mundo globalizado, algoz da criminalidade econômica e da grande criminalidade organizada.
Dessa forma, faz-se a transição do Direito Penal, do papel de redutor do poder punitivo, para
o papel de elemento de combate à criminalidade.
Tal transição, ao pôr em cheque o papel do Direito Penal, introduz novos desafios,
tanto práticos quanto dogmáticos e acadêmicos, em um campo de observação já bastante
controverso. A transição de um Direito Penal redutor e garantista para um Direito Penal de
combate, nos moldes propostos, geraria a necessidade de rever os princípios básicos que
fundamentam esse ramo do direito. Entretanto, entendemos a questão de modo oposto: antes
de se verificar a legitimidade de um movimento de expansão do Direito Penal, é necessário
128
verificar a sua compatibilidade com todo um sistema de garantias previamente constituído e
em funcionamento.
Esse ideal de expansão do Direito Penal, que se afigura até certo ponto heróico, pois
esbarra na quase absoluta imunidade daqueles que delinqüem ao abrigo de uma condição
econômica privilegiada, carece de mecanismos efetivamente capazes de lhe conferirem uma
plena realização no mundo dos fatos. Com isso se quer dizer que, tanto em Silva Sánchez,
ainda que em menor grau, quanto em Gracia Martín encontra-se uma proposta expansiva
carente da indicação de meios capazes de lhe dar efetividade. São apontadas muitas direções,
sem o oferecimento de nenhuma alternativa concreta capaz de tirar daquelas páginas o meio
idôneo para expandir o Direito Penal ou, ao menos, fazê-lo sem romper com o Estado
democrático de direito e inaugurar, de forma imediata, o Estado de exceção.
Conforme já ventilado, outro prisma crítico relevante é o das implicações da expansão
do Direito Penal sobre o Estado democrático de direito. Não é admissível que as instituições
democráticas, assim como a própria Constituição da República, fiquem incólumes às
propostas de expansão abordadas nas linhas precedentes. A adoção de tais propostas,
enquanto programa concreto, transcende o Direito Penal e é capaz de desencadear
desdobramentos em esferas inicialmente não previstas.
Para evitar a multiplicação de exemplos, pense-se nos desdobramentos tributários que
uma proposta de administrativização do Direito Penal poderia ter. Considerando que as
garantias, em matéria tributária, são essencialmente inspiradas nas garantias penais184
,
colocar em curso um movimento de administrativização do Direito Penal que transbordasse
para a seara tributária, com ampliação das atribuições de cunho sancionador do Fisco, poderia
inibir a atividade econômica, acarretando, por exemplo, perda de competitividade no mercado
externo e desestímulo da atividade empresarial, com todos os problemas sócio-econômicos
que o acompanhariam.
Uma problemática igualmente relevante a abordar é a questão da inserção do Direito
Penal do Inimigo no quadro geral da expansão do Direito Penal. Gracia Martín
expressamente identifica o Direito Penal do Inimigo enquanto movimento expansionista
autônomo, dentre outros que também nomina e explica. A abordagem de Silva Sánchez sobre
o tema é diferenciada na medida em que identifica apenas dois movimentos de expansão do
Direito Penal dentro do quadro geral de consenso que analisa: uma das vertentes expansivas é
184
Ver, por exemplo, os princípios da isonomia, da legalidade e da taxatividade em matéria tributária.
129
aquela que se ergue diante da criminalidade econômica e, a outra, da criminalidade
globalizada.
Cada uma dessas categorias comporta muitas modalidades delitivas diferentes, que
normalmente e em ambos os casos se dão em escala global: criminalidade das grandes
organizações, tráfico de pessoas, lavagem de dinheiro, etc. Todas essas condutas, por se
darem no âmbito da associação para o cometimento de crimes ou, por outras palavras, pelo
concurso de pessoas organizado hierarquicamente, desafiam novos critérios de imputação de
cunho coletivo.
Tal imputação coletiva é uma questão que se coloca diante do Direito Penal atual, que
requer a individualização das condutas de cada agente para fins de aferição da culpabilidade.
Essa individualização atende a um critério de justiça e evita igual dosimetria de pena para os
mentores, p. ex., e para agentes cuja participação se afigura reduzida em relação à atuação
dos demais. A introdução de critérios de imputação coletiva configuraria, de fato, expansão
do Direito Penal, sobretudo quanto às penas aplicadas aos crimes cometidos por organização
criminosa. Nesses casos, a tipificação da mera conduta de pertencer a uma organização
criminosa, ao criar uniformidade com relação aos seus membros, exclui da culpabilidade a
posição ocupada na organização185
.
Apesar de Silva Sánchez defender que a expansão do Direito Penal se dirigiria muito
mais em desfavor dos poderosos que cometessem crimes, nossa posição é crítica quanto a
essa afirmação. Sem entrar em considerações relativas ao caráter seletivo do sistema penal, já
abordadas, ao se assumir a tendência expansiva natural do Direito Penal, facilmente se
percebe que a expansão do Direito Penal pode alcançar, em maior grau, não só a
criminalidade dos powerful, mas também acentuar a persecução penal aos powerless.
Esse dado, por si só, é capaz de aumentar o grau de seletividade da persecução penal
que existe em todos os sistemas. A par dessas considerações de cunho teórico, outro ponto
que se pode questionar é a afirmação categórica inicial sobre a eficácia de um resultado que
só se verificará posteriormente, na exata medida do avanço da expansão do direito penal. Por
outras palavras: não há evidências mais concretas a favor da tese de que a expansão do
Direito Penal se dará em desfavor dos poderosos que cometem crimes.
Ao contrário: o dado de seletividade que estrutura os sistemas penais em todo o
mundo permite inferir que qualquer expansão criminalizante se dá, preferencialmente, em
185
Exemplo desse fato no Brasil é o crime de quadrilha ou bando (art. 288, CP), cujo tipo não gradua penas na
exata proporção da maior ou menor participação na organização criminosa, ficando a cargo do juiz, segundo
sua própria apreciação subjetiva, determinar o grau de participação de cada agente e fixar a medida de sua
culpabilidade.
130
desfavor daqueles que, por possuírem uma condição econômico-social vulnerável,
naturalmente possuem menos meios de defesa.
Ao longo da pesquisa, foi possível perceber que a doutrina brasileira carece de maior
desenvolvimento do tema abordado, haja vista ter sido a quase totalidade das obras
pesquisadas de autores estrangeiros. O conceito legitimador do Direito Penal do Inimigo em
relação à persecução penal, apresentada no começo deste trabalho, tem a função de ocultar a
sua própria existência e, assim, infiltrar-se sub-repticiamente no interior de um Direito Penal
de garantias, ao qual deve corresponder o modelo penal pátrio, tudo isso dentro de uma
perspectiva redutora tal qual proposta por Nilo Batista.
A infiltração do Direito Penal do Inimigo, enquanto paradigma para a elaboração de
normas penais no âmbito do Direito Penal brasileiro, deve ser objeto de denúncia pelos
doutrinadores nacionais, que, a nosso ver, tem dedicado pouca atenção a essa temática. Caso
este trabalho possa contribuir, ainda que de forma mínima, para voltar a atenção no sentido
da necessidade de se conhecer melhor e de se refletir criticamente sobre o Direito Penal do
Inimigo, seus objetivos se terão esgotado ao menos em parte.
Em relação ao problema apresentado e à hipótese formulada para respondê-lo, pode-se
concluir com segurança pela confirmação de tal hipótese. O traficante de entorpecentes,
mediante aplicação da Lei 11.343/06, recebe tratamento penal típico de inimigo porque, na
forma de tal lei, lhe são destinadas respostas penais mais gravosas do que aquelas
normalmente destinadas ao restante da clientela penal em geral.
A confirmação, pelo menos no plano teórico, da hipótese levantada permite constatar
alguns desdobramentos que o tratamento penal típico de inimigo destinado aos traficantes de
entorpecentes pode, imediatamente, trazer à reflexão. Em primeiro lugar, no que tange ao
princípio constitucional da isonomia, observa-se que a adoção de uma estratégia de
persecução ao inimigo, uma vez consagrada em lei como o é na Lei de Drogas, rompe com a
necessária igualdade formal que deve existir entre os indivíduos.
Por todo o exposto, e conforme abordado incidentalmente ao longo deste trabalho, o
quadro geral do sistema penal no Brasil, em consonância com a Carta Constitucional de 1988,
não comporta alternativas que visem à ampliação do poder punitivo, como é o caso da
expansão do Direito Penal, do Direito Penal do Inimigo e da administrativização do Direito
Penal. As estatísticas de aprisionamento, o quadro caótico de superlotação das prisões e as
freqüentes denúncias de maus tratos no âmbito carcerário provam que esse sistema penal
carece de uma reforma ampla, de aprimoramento de seu viés garantista.
131
Tal reforma deve conciliar a prevalência de direitos e garantias fundamentais com
uma pauta de descriminalização gradativa de condutas como o porte de drogas para consumo
próprio. Condutas como essa, que não transcendem o âmbito pessoal do agente, poderiam ser
descriminalizadas em definitivo mediante a imposição de uma cláusula de barreira, com base
em critérios quantitativos. Essa medida ajudaria a tipificar o porte para uso próprio com base
em uma determinada quantidade de droga em poder do agente, desde que constatada, na
hipótese, o não exercício da mercancia em relação aos entorpecentes transportados186
.
Certamente, uma alternativa penal que aponte no sentido de punições mais severas,
como atualmente ocorre, para o delito de tráfico ilícito de entorpecentes não é a mais
adequada caso se queira romper com o paradigma de confronto que impera em relação à
questão das drogas no Brasil, o qual apresenta tão alto custo em vidas humanas desperdiçadas
e em recursos públicos equivocadamente investidos.
Um paradigma de tutela sanitária da problemática das drogas é igualmente
inapropriado porque estabelece a segregação do dependente e sua progressiva tutela perante
as instituições estatais de controle hospitalar, traduzindo uma verdadeira capitis diminutio
desacompanhada do devido e necessário processo legal. Além disso, essa abordagem carrega
consigo a pressuposta periculosidade do agente e uma solução no sentido da neutralização
deste.
Uma terceira via, que constituiria alternativa viável tanto ao paradigma de
enfrentamento quanto ao modelo médico sanitário, poderia ser traduzida por um amplo
movimento de descriminalização do consumo próprio de entorpecentes, acompanhado das
devidas iniciativas de conscientização da população acerca de seus efeitos. Entretanto, essa
iniciativa teria de ser feita no sentido de informar a população, não no sentido de demonizar
os entorpecentes, de modo a não interferir no direito de autodeterminação que é projeção
necessária dos direitos inerentes à personalidade humana.
O “combate” ao tráfico ilícito de entorpecentes, que se alimenta principalmente da
extrema pobreza e da quase ausência do Estado nas comunidades carentes, poderia mudar de
estratégia atacando, entre outros fatores, as causas desse problema, dentre as quais as duas já
apontadas. A questão das drogas no Brasil também perpassa questões econômicas e sociais
próprias da realidade nacional. Figuras como o consumo compartilhado de entorpecentes, por
exemplo, poderiam ser equiparadas ao uso próprio para efeitos de descriminalização. Em
sentido mais amplo, o financiamento ao tráfico ilícito de entorpecentes poderia ter
186
A proposta é apresentada em CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo
criminológico e dogmático da Lei 11.343/06), sendo a Espanha um exemplo de país que a adota.
132
conseqüências penais patrimoniais, como penas de perdimento e multas, ou, se tratando de
pessoas jurídicas, inabilitação para licitar com entes públicos por um determinado período de
tempo ou restrições para a concessão de alvarás de funcionamento.
Afigura-se essencial, sobretudo, apontar aqui, por mais que a reação afirme o
contrário, que há alternativa aos principais paradigmas – médico-sanitário e de enfrentamento
– então vigentes no que tange à abordagem da questão das drogas no Brasil. E, certamente,
essa alternativa não passa pelo recrudescimento da legislação penal, inspirado quer pela
expansão do Direito Penal, quer pelo Direito Penal do Inimigo.
Como potencial resposta ao problema proposto na introdução deste trabalho, foi eleita
a seguinte: o traficante de entorpecentes é tratado como inimigo com base na Lei 11.343/06
porque recebe tratamento penal diferenciado em relação ao tratamento penal dispensado aos
criminosos que cometem crimes igualmente ofensivos á saúde pública, que é o bem jurídico
tutelado pela Lei de Drogas. Tal tratamento penal pode ser sentido principalmente nos artigos
27; 28; 33, §2º; 34; 44, parágrafo único e 48, § 5º, todos da Lei 11.343./06, que atribuem uma
resposta penal extremamente gravosa aos praticantes das condutas tipificadas na lei em
comento.
Esses dispositivos legais podem ser materialmente colocados sob a égide do Direito
Penal do Inimigo porque consagram um tratamento penal peculiar conferido a uma
determinada categoria de indivíduos em função tanto do crime que cometeram quanto dos
estereótipos sociais que os acompanham. Todo esse instrumental normativo faculta ao Estado
segregar o usuário e encurralar os traficantes de drogas, principalmente os pequenos
traficantes, cuja organização incipiente sequer autoriza sua inclusão no rol de atividades que
podem ser materialmente definidas como crime organizado.
O estabelecimento desse amplo programa incriminador ocorre a partir do art. 5º,
inciso XLIII da Constituição da República, que define o tráfico ilícito de entorpecentes como
crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia. Por assim dizer, a “genealogia
constitucional” deste delito marca sua persecução mais gravosa desde o nascimento da atual
Carta Magna brasileira.
No descortinar deste quadro crítico, em que vários desafios se apresentam, uma
tomada de posição deve se dar de maneira cautelosa e de forma a preservar a integridade de
todo o sistema de direitos e garantias processuais e penais com as quais contamos. Assumir
uma postura de aceitação irrefletida e imediata do suposto consenso com o qual contaria a
expansão do Direito Penal significaria renunciar ao exercício capaz de evitar pesados
retrocessos em matéria penal. O “penso logo existo” dos filósofos assume, nesse ponto e mais
133
do que em nenhum outro momento, uma concretude capaz de evitar a ruptura do Estado de
direito, com todo o seu aporte de garantias, ou de legitimá-la, dependendo da forma, mais ou
menos refletida, com que seja exercido.
134
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