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1 A TENSÃO ENTRE O SIGILO DAS VOTAÇÕES, A SOBERANIA DOS VEREDICTOS E O PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO NO TRIBUNAL DO JÚRI ESTUDO DE DIREITO COMPARADO Resumo: O presente artigo aborda a dificuldade de se compatibilizar o princípio constitucional in dubio pro reo com a disciplina legal do procedimento de competência do Tribunal do Júri, tendo em vista a possibilidade de decisão por maioria simples e a imensa importância dada pela lei ao sigilo da votação e à soberania dos veredictos. A partir de estudo de direito comparado baseado em decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, busca-se estabelecer a relação com a disciplina do processo de competência do Tribunal do Júri no Brasil. São, em seguida, analisadas as principais características do processo de competência do Tribunal do Júri no direito brasileiro, para construir a hipótese central deste estudo: se o privilégio legal ao sigilo das votações e à soberania dos veredictos permite que o princípio in dubio pro reo tenha verdadeira efetividade no Tribunal do Júri. Essa hipótese é testada através de pesquisa da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais em apelações fundadas no art. 593, inc. III, alínea d, do Código de Processo Penal e, a partir dos resultados obtidos, conclui-se que o referido princípio constitucional não possui a efetividade desejável no Tribunal do Júri brasileiro. Por fim, indicam-se possíveis soluções de lege ferenda para aumento da sua efetividade. Palavras chave: Júri. Direito comparado. Estados Unidos da América e Brasil. In dubio pro reo. Abstract: This article addresses the difficulty on harmonizing the constitutional principle in dubio pro reo (proof beyond a reasonable doubt) with the Jury’s legal discipline, given the possibility of conviction by simple majority and the great importance given to the secrecy of the jurors’ decision processes and sovereignty of the verdict. The Article starts by, through a compared law study based on the U.S. Supreme Court rulings, establishing a relation with the legal discipline of the Jury’s procedure in Brazil. This raises the main question addressed by the Article: whether the legal supremacy of the vote’s secrecy and the sovereignty of the decision allow the principle in dubio pro reo to achieve real effectiveness. This hypothesis is tested by a research of the jurisprudence of Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Minas

Reflexão sobre o in dubio pro reo no júri à luz do direito comparado

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A TENSÃO ENTRE O SIGILO DAS VOTAÇÕES, A SOBERANIA DOS

VEREDICTOS E O PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO NO TRIBUNAL DO JÚRI –

ESTUDO DE DIREITO COMPARADO

Resumo:

O presente artigo aborda a dificuldade de se compatibilizar o princípio

constitucional in dubio pro reo com a disciplina legal do procedimento de competência do

Tribunal do Júri, tendo em vista a possibilidade de decisão por maioria simples e a imensa

importância dada pela lei ao sigilo da votação e à soberania dos veredictos. A partir de estudo

de direito comparado baseado em decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da

América, busca-se estabelecer a relação com a disciplina do processo de competência do

Tribunal do Júri no Brasil. São, em seguida, analisadas as principais características do

processo de competência do Tribunal do Júri no direito brasileiro, para construir a hipótese

central deste estudo: se o privilégio legal ao sigilo das votações e à soberania dos veredictos

permite que o princípio in dubio pro reo tenha verdadeira efetividade no Tribunal do Júri.

Essa hipótese é testada através de pesquisa da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas

Gerais em apelações fundadas no art. 593, inc. III, alínea d, do Código de Processo Penal e, a

partir dos resultados obtidos, conclui-se que o referido princípio constitucional não possui a

efetividade desejável no Tribunal do Júri brasileiro. Por fim, indicam-se possíveis soluções de

lege ferenda para aumento da sua efetividade.

Palavras chave: Júri. Direito comparado. Estados Unidos da América e Brasil. In dubio pro

reo.

Abstract:

This article addresses the difficulty on harmonizing the constitutional principle

in dubio pro reo (proof beyond a reasonable doubt) with the Jury’s legal discipline, given the

possibility of conviction by simple majority and the great importance given to the secrecy of

the jurors’ decision processes and sovereignty of the verdict. The Article starts by, through a

compared law study based on the U.S. Supreme Court rulings, establishing a relation with the

legal discipline of the Jury’s procedure in Brazil. This raises the main question addressed by

the Article: whether the legal supremacy of the vote’s secrecy and the sovereignty of the

decision allow the principle in dubio pro reo to achieve real effectiveness. This hypothesis is

tested by a research of the jurisprudence of Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Minas

2

Gerais State Court of Appeals) regarding appeals based on article 593, n. III, a of Brazilian

Penal Procedure Code. Considering the obtained data the Article reaches the conclusion that

the aforementioned constitutional principle does not have the desired effectiveness in Brazil’s

Jury procedure. Finally, possible solutions are given, in order to seek increased effectiveness

of the principle.

Keywords: Jury. Compared law USA and Brazil. In dubio pro reo.

Sumário: 1. Introdução; 2. A decisão pelo tribunal do júri no

direito brasileiro; 3. Apodaca v. Oregon – a votação do júri e

o devido processo legal; 4. A tensão entre o sigilo da votação

e a presunção de inocência; 5. A apelação e o definitivo

sacrifício do in dubio pro reo; 6. Conclusão

1. INTRODUÇÃO

Em 2009 foi submetida à Suprema Corte do Estados Unidos arguição de

inconstitucionalidade de dispositivo da Constituição do Estado de Oregon que prevê a

possibilidade de haver condenação pelo júri, mesmo não sendo unânime a votação dos

jurados. Permite a Constituição daquele Estado a condenação do réu, desde que dez, dentre os

doze jurados, assim o decidam.

O caso em que a inconstitucionalidade da permissão da condenação não

unânime (desde que os votos pela absolvição não fossem mais do que dois) foi submetida à

Suprema Corte foi o processo nº 08-1117, Scott David Bowen v. Oregon.

Em 8 de dezembro de 2008 foi solicitada autorização para requerer o Writ of

Certiorari, distribuída ao Juiz Anthony M. Kennedy, que deferiu o pedido. O writ foi

impetrado em 4 de maio de 2009. Foram apresentadas manifestações por amici curiae a favor

e contra o pedido do peticionário Bowen e, em 5 de outubro daquele ano, o caso foi recusado.

3

Conforme explica João Gualberto Garcez Ramos1:

“Hoje, é indiscutível que a Suprema Corte exerce ‘poder de supervisão’

(supervisory power), sobre as decisões judiciais de qualquer tribunal do país,

seja ele estadual, seja ele federal.

Esse poder se exercita, na prática, de uma única maneira: através dos

‘mandados de certificação’ (writs of certiorari).

(...)

Por meio dos atuais ‘mandados de certificação’, a Suprema Corte requisita dos

demais tribunais informações a respeito de um determinado caso por eles

julgado, revê os argumentos utilizados na decisão; colhe, se achar necessário,

novos argumentos orais, discute os fundamentos e emite uma decisão sobre a

correta interpretação da Constituição nesses casos”.

A recusa deveu-se ao fato de que a Corte entendeu não ser o caso de rever os

precedentes datados de 22 de maio de 1972 – Apodaca v. Oregon, 406 U.S. 404 e Johnson v.

Louisiana, 406 U.S. 356 – que, na ocasião, afirmara não ser inconstitucional a possibilidade

de condenação não unânime pelo júri. A esse propósito, mais uma vez a lição de RAMOS:2

“Como padrão, esse aceite ocorre quando os juízes entendem (a) que o caso

envolve uma questão federal importante, (b) que há conflito relevante de

interpretação da lei ou da Constituição entre Cortes estaduais ou entre estas e

Cortes federais ou (c) que a decisão envolve ‘questão de direito’ que merece

rediscussão no âmbito da Suprema Corte”.

Não verificada qualquer dessas hipóteses, a Suprema Corte dos Estados Unidos

decidiu manter seus precedentes no sentido de que a possibilidade de condenação não

unânime não ofende a Constituição daquele país. Ainda assim, as discussões travadas nas

decisões de 1972 fornecem um subsídio interessante para refletir acerca da forma legal de

decisão pelo Júri no Brasil.

Assim, neste estudo, abordaremos como é a disciplina legal da decisão do

Tribunal do Júri no Direito brasileiro, no que pertine ao objeto deste estudo. Em seguida,

examinaremos a decisão proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos em Apodaca v.

1 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2006, p. 90. 2 Idem, p. 91.

4

Oregon e Jonhson v. Louisiana. Por fim, relacionaremos essa análise à disciplina do Júri no

Brasil.

2. A DECISÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI NO DIREITO BRASILEIRO

Não é exagero afirmar que, dentre os princípios envolvidos diretamente no

processo e, sobretudo, no julgamento pelo Tribunal do Júri no Brasil, dois deles estão, senão

completamente, em grande medida ausentes.

Um é o da fundamentação das decisões (CF, art. 93, IX). Conquanto esteja o

princípio da fundamentação das decisões inserido no meio de extenso rol de artigo da

Constituição que trata do funcionamento do Poder Judiciário (ao lado de outros incisos que

tratam de subsídios e de aposentadoria), não se nega – e nem se poderia – a natureza fundante

desse princípio dentro da ordem constitucional.

Trata-se de verdadeira condição de legitimidade do ato de força exarado pelo

Poder Judiciário. É dizer, somente será legítimo o ato de força contido no comando sentencial

quando ao jurisdicionado for dado saber com exatidão os motivos de fato e de direito que

levaram o julgador a decidir desta ou daquela maneira. A lição de Aury Lopes Jr:3

“A motivação das decisões judiciais é uma garantia expressa no art. 93, inc. IX,

da Constituição e é fundamental para avaliação do raciocínio desenvolvido na

valoração da prova. Serve para o controle da eficácia do contraditório, e de que

existe prova suficiente para derrubar a presunção de inocência”.

Logicamente, não há que se falar em fundamentação das decisões no

julgamento pelo júri, na medida em que as decisões dos jurados são tomadas com base na

íntima convicção e a condição de validade do veredicto é exatamente o sigilo da votação. Ou

seja, se no processo de competência do juiz togado4 a fundamentação da decisão é condição

de legitimidade e validade do ato, no caso do júri, é a falta de fundamentação que o legitima e

lhe confere validade. Fernando da Costa Tourinho Filho sustenta:5

3 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 243. 4 Não será usada a terminologia empregada pelo Código de Processo Penal “de competência do juiz

singular”pois, nesse caso, estar-se-ia excluindo indevidamente as ações penais originárias. 5 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal v. 4. 32ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 142.

5

“Julgando de acordo com a sua íntima convicção, sem a obrigação de dar

satisfação a quem quer que seja, a não ser à sua própria consciência, julgar

sabendo que sua decisão é soberana, visto porvir do povo, assim o Tribunal do

Júri ampara mais ainda o direito de liberdade. É, como afirmou o Professor

Lauria Tucci em sua obra já citada, ‘a mais democrática instituição jurídica

brasileira”.

A conclusão deste trabalho mostrará que a opinião exposta na tradicional obra

citada é por demais otimista. Sigilo e soberania não são necessariamente suficientes para

assegurar a democracia. Afinal, o júri está a exercer um (grave) poder e o exercício de poder

sem accountabilty pode levar ao arbítrio, salvo se suficientemente amparado o indivíduo

submetido a esse poder por um sólido arcabouço de garantias fundamentais.

Por outro lado, não seria, logicamente, o caso de afirmar pura e simplesmente a

inconstitucionalidade (ou não recepção pela Constituição de 1988) dos dispositivos do Código

de Processo Penal que levam a essa situação porque, na verdade, toda essa ordem de ideias

encontra amparo no próprio texto constitucional.6

A questão, então, é saber se é possível compatibilizar a garantia do

jurisdicionado de saber por que foi condenado com a garantia do jurado de que sua decisão é

sigilosa. Esse é um dos temas que serão abordados.

O outro princípio constitucional que não se apresenta no processo e julgamento

pelo júri é o da presunção de inocência7. E nesse caso, a não incidência desse princípio não

conta com qualquer amparo constitucional. É o regramento legal do procedimento que o

exclui da equação. Veja-se por que:

Pode-se, simplificando, dizer que, no procedimento dos crimes dolosos contra

a vida, há três decisões fundamentais: a que recebe a denúncia; a que pronuncia o acusado; e o

6 Art. 5º, inc. XXXVIII, alínea b. 7 Esse princípio, enunciado com base no art. 5º, inc. LVII, da Constituição da República, recebe denominações

as mais diversas na doutrina (estado de inocência, presunção de não culpabilidade, dentre outros). Entendemos

que o tradicional presunção de inocência permanece sendo o mais adequado porquanto trata-se, efetivamente, de

presunção. A situação inercial de qualquer cidadão que se vê investigado, indiciado ou processado pelo Estado é,

efetivamente, a de inocente. E sobre essa situação incide, sim, uma presunção, o que significa que essa inércia

somente será rompida pela efetiva prova da existência do crime (fato típico, ilícito e culpável) e de sua autoria e,

ainda, se for estritamente observada a garantia do devido processo legal.

6

veredicto do Conselho de Sentença. Supostamente, aquelas duas primeiras estariam,

realmente, fora da incidência de referido princípio, que incidiria nesta última decisão que,

efetivamente, aprecia em sua inteireza o mérito da questão. As duas primeiras, segundo se diz,

são orientadas pelo dito princípio in dubio pro societate. O veredicto do Conselho de

Sentença seria, então, orientado pelo in dubio pro reo. A lição de Eugenio Pacelli de

Oliveira:8

“É costume doutrinário e mesmo jurisprudencial o entendimento segundo o

qual, nessa fase de pronúncia, o juiz deveria (e deve) orientar-se pelo princípio

do in dubio pro societate, o que significa que, diante de dúvida quanto à

existência do fato e da respectiva autoria, a lei estaria a lhe impor a remessa

dos autos ao Tribunal do Júri (pela pronúncia)”.

Sobre essa dicotomia – in dubio pro societatis contra in dubio pro reo –

entendemos relevante uma reflexão breve, mas que merece mais do que uma nota de rodapé.

Essa dicotomia parece-nos de todo imprópria. Afinal, falar em in dubio pro

societate contra in dubio pro reo indica que, no processo penal, o réu está em posição de

antagonismo em relação à sociedade. Para um contratualista, faz até sentido afirmar que o

delinquente, quando comete o delito, põe-se em posição antagônica em relação à sociedade.

Mas, por força do próprio princípio da presunção de inocência, a confusão entre acusado e

delinquente é inconstitucional.

Conquanto seja lugar comum (em especial na primeira hora e meia de debate

no Tribunal do Júri) a afirmação de que o titular da acusação representa o interesse da

sociedade, pensamos não ser verdadeira essa afirmação. Não, ao menos, no marco do Estado

Democrático de Direito que tem em seu núcleo mais elementar a cláusula do devido processo

legal. O próprio OLIVEIRA9 adverte:

“... não vemos como aceitar semelhante princípio (ou regra) em uma ordem

processual garantista”.

8 OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de processo penal. 16ª edição. São Paulo: Atlas, 2012, p. 722/723. 9 Idem.

7

Afinal, se o processo penal se desenvolve e se decide em cada uma de suas

fases com base nessa dicotomia, a decorrência lógica seria que toda absolvição por

insuficiência probatória seria uma decisão contrária ao interesse social. Pensamos, contudo,

que a decisão que dá efetividade a garantia fundamental (no caso, a da presunção de

inocência) está em total e absoluta consonância com o interesse público na máxima

efetividade do sistema de garantias.

Assim, é constitucionalmente mais adequado dizer que, na fase de recebimento

da denúncia e na fase de pronúncia, afirmar que, nelas, a dúvida se resolve a favor do

prosseguimento do processo.

Mas, seja como for, o fato é o seguinte: ao deliberar sobre o recebimento da

denúncia, a dúvida sobre autoria/materialidade leva ao seu recebimento; ultimada a fase de

sumário, havendo dúvida sobe autoria/materialidade, pronuncia-se. E, apesar de,

lamentavelmente, o recebimento de denúncia continuar sendo um mero despacho (isso

quando não é um mero carimbo), a pronúncia requer concreta e idônea fundamentação, nos

termos do art. 413 do CPP.

E na sessão de instrução e julgamento em plenário, quando, supostamente, o in

dubio pro reo deveria se manifestar em todo seu esplendor, o que acontece? Aury Lopes

Junior, ao comentar a apelação que se funda na alínea d do permissivo legal, sintetiza com

maestria10:

“Tudo isso evidencia, uma vez mais, a problemática estrutura do júri brasileiro,

pois não efetiva a garantia constitucional do in dubio pro reo contida na

presunção constitucional de inocência. No Tribunal do Júri, o réu pode ser

condenado a partir de uma prova frágil e ilhada no contexto probatório, e seu

recurso não será admitido, mesmo com uma prova amplamente favorável à sua

tese defensiva, pois a decisão dos jurados não é absolutamente desconectada da

prova dos autos”.

E é verdade. A lógica que preside cada fase decisória do processo, a decisão

por íntima convicção e a sistemática recursal excluem a garantia da presunção de inocência.

10 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. pp. 1244/1245.

8

Essa somente se aplica – mas tampouco se verifica – se estiver dentro da consciência de cada

um dos membros do Conselho de Sentença.

A questão que se propõe, então, é a seguinte: as cláusulas constitucionais do

sigilo das votações e da soberania dos veredictos são óbice intransponível a que o in dubio

pro reo tenha real e efetiva aplicabilidade no Tribunal do Júri?

As decisões proferidas pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América em

Apodaca v. Oregon e a discussão travada em Bowen v. Oregon podem servir de parâmetro

interessante para tentarmos propor soluções para a questão aqui proposta.

3. APODACA v. OREGON – A VOTAÇÃO DO JÚRI E O DEVIDO PROCESSO

LEGAL

A instituição do júri nos Estados Unidos da América deita raízes na Common

Law britânica e no sistema judicial das Treze Colônias. A Sexta Emenda à Constituição dos

Estados Unidos da América dispõe:

In all criminal prosecutions, the accused shall enjoy the right to a speedy and

public trial, by an impartial jury of the state and district wherein the crime

shall have been committed, which district shall have been previously

ascertained by law, and to be informed of the nature and cause of the

accusation; to be confronted with the witnesses against him; to have

compulsory process for obtaining witnesses in his favor, and to have the

assistance of counsel for his defense.

Como se vê, em não mais do que um parágrafo, a garantia do juiz natural, da

ampla defesa, do contraditório são claramente enunciadas. No que se refere ao objeto deste

estudo, é assegurada constitucionalmente a submissão do acusado da prática de qualquer

crime a julgamento pelo júri, do local onde a infração, em tese, foi cometida.

Há dois casos paradigmáticos julgados pela Suprema Corte que trataram de

duas questões extremamente sensíveis ao funcionamento do Júri naquele país: Williams v.

9

Florida (39 U.S. 78, decidido em 22 de junho de 1970)11, em que se debateu sobre o número

de jurados que deve compor o júri e Apodaca v. Oregon (406 U.S. 404, decidido em 22 de

maio de 1972)12, em que se debateu a necessidade de unanimidade no júri e ao qual daremos

mais atenção.

Em Williams, a questão submetida à Suprema Corte foi se a lei do Estado da

Florida, ao prever, em casos em que não era cabível a pena de morte, que o júri seria

composto de seis pessoas ofendia a Sexta Emenda à Constituição.

O juiz White, redator da decisão da Corte, expôs as possíveis teorias e opiniões

acerca da exigência de serem doze os membros do júri, relatando que esse costume

incorporou-se à Common Law no século XIV. E conclui:

The question before us is whether this accidental feature of the jury has been

immutably codified into our Constitution.

Após interessante histórico da matéria, a decisão chega ao ponto central de sua

fundamentação, ao afirmar que a garantia constitucional do julgamento pelo júri não se

relaciona com o número de jurados. Afirma a decisão:

…the essential feature of a jury obviously lies in the interposition between the

accused and his accuser of the common sense judgment of a group of laymen,

and in the community participation and shared responsibility that results from

that group's determination of guilt or innocence. The performance of this role

is not a function of the particular number of the body that makes up the jury.

To be sure, the number should probably be large enough to promote group

deliberation, free from outside attempts at intimidation, and to provide a fair

possibility for obtaining a representative cross-section of the community. But

we find little reason to think that these goals are in any meaningful sense less

likely to be achieved when the jury numbers six than when it numbers 12 --

particularly if the requirement of unanimity is retained.

Como se vê, um dos aspectos centrais que mantém a função principal do júri –

interposição entre acusação (Estado) e acusado – não se vincula propriamente ao número de

jurados, mas à exigência de que a decisão seja unânime. Em outras palavras, a Suprema Corte

11 Disponível em http://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/406/356#writing-USSC_CR_0406_0356_ZS

lido em 13/10/2014. 12http://www.law.cornell.edu/supct/search/display.html?terms=unanimous%20jury&url=/supct/html/historics/US

SC_CR_0406_0404_ZO.html, lido em 26/08/2013

10

declara em Williams que aqueles princípios fundamentais enunciados na Sexta Emenda são

assegurados pela exigência de unanimidade na decisão dos jurados.

Dois anos depois, a questão atinente à unanimidade foi submetida à Suprema

Corte – Apodaca v. Oregon – sendo a opinião da Corte relatada pelo mesmo juiz White. Mais

uma vez, White faz um resgate das origens do costume de se exigir decisão unânime dos

jurados. Relata-se que a proposta original de redação da Sexta Emenda, na Câmara dos

Deputados, continha a exigência de unanimidade. Essa redação, contudo, foi modificada no

Senado. Após mais discussão na Câmara, a Emenda veio a ser aprovada com a redação que

transcrevemos acima, sem qualquer referência a unanimidade.

No caso em questão, Robert Apodaca, Henry Morgan Cooper Jr. e James

Arnold Madden foram acusados (em processos distintos) de agressão armada, furto a

residência e apropriação indébita, respectivamente. Apodaca e Madden foram condenados por

11 votos a 1 e Cooper por 10 votos a 2.

O Art. I, § 11 da Constituição do Estado do Oregon, no que é pertinente ao

caso, estabelece:

… in the circuit court ten members of the jury may render a verdict of guilty or

not guilty, save and except a verdict of guilty of first degree murder, which

shall be found only by a unanimous verdict, and not otherwise.

Na petição à Suprema Corte, o argumento central da defesa era que a

possibilidade de que o júri (salvo no caso de homicídio doloso) possa condenar e absolver por

decisão unânime seria contrária exatamente ao princípio in dubio pro reo ou, na locução

comum norte-americana, proof beyond a reasonable doubt.

A essa alegação, a Corte respondeu:

Petitioners' argument that the Sixth Amendment requires jury unanimity in

order to give effect to the reasonable doubt standard thus founders on the fact

that the Sixth Amendment does not require proof beyond a reasonable doubt at

all. The reasonable doubt argument is rooted, in effect, in due process, and has

been rejected in Johnson v. Louisiana, ante, p. 356.

11

O julgamento mencionado, Johnson v. Louisiana tinha o mesmo objeto de

Apodaca v. Oregon, já que o Estado da Louisiana é o outro cuja Constituição prevê a

possibilidade de condenação ou absolvição por júri não unânime. Ambas decisões são de

1972.

Em linhas gerais, o que restou decido em Johnson e em Apodaca é que a

previsão da possibilidade de um júri não unânime decidir pela condenação não viola a regra

da prova além da dúvida razoável. Entretanto, a decisão da Corte sublinha que, tanto no

Oregon quanto na Louisiana, a lei exige ampla maioria de votos; a divergência manifestada

por duas (Apodaca) ou três (Johnson) pessoas dentre um conjunto de doze não é bastante para

por em dúvida a culpa do acusado. Ainda que essa minoria tenha manifestado dúvida acerca

da culpa, se uma ampla maioria dos jurados não se convenceu com essa divergência, deve-se

privilegiar o juízo de certeza que nove, dez ou onze jurados partilharam.

Neste ponto, é essencial realçar que o sistema de decisão pelo júri nos Estados

Unidos é radicalmente diferente daquele que se adota no Brasil. Nosso Código de Processo

Penal previa e continua a prever depois da reforma de 2008 a absoluta proibição de qualquer

contato entre os jurados. Na verdade, embora coletiva, a decisão do júri no Brasil não é

colegiada, decidindo cada membro do Conselho de Sentença conforme sua intima convicção.

Não há uma decisão; há sete decisões, que se somam.

Nos Estados Unidos, os membros do júri, em total isolamento e sigilo, debatem

a causa sob seu julgamento, sendo não só permitido, mas incentivado que os jurados tentem

persuadir uns aos outros sobre a opinião que formaram a partir do exame da prova e do debate

entre as partes.

Assim, a Suprema Corte concluiu nos dois casos em análise que, se o debate

entre os jurados resultou em certeza para a ampla maioria, a regra da reasonable doubt não

restou violada e, tampouco, a cláusula do devido processo legal (14ª Emenda) da qual ela

decorre diretamente.

12

Não obstante, é conveniente ressaltar que em um e outro caso, a larga maioria é

destacada como elemento que conserva a efetividade dessa regra.

4. A TENSÃO ENTRE O SIGILO DA VOTAÇÃO E A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

A despeito da diferença entre os sistemas de decisão adotados no Brasil e nos

Estados Unidos, no que se refere à interação entre os jurados em busca de um consenso sobre

culpa ou inocência do acusado, há um ponto comum: o sigilo. Em um e outro sistema, não é

dado ao jurisdicionado saber qual o caminho lógico percorrido pelo jurado para alcançar essa

ou aquela conclusão. No sistema norte-americano, não se pode propriamente falar em íntima

convicção plena dos jurados, na medida em que as opiniões de cada um são debatidas. No

sistema brasileiro, em virtude da absoluta incomunicabilidade, a convicção é completamente

íntima.

A despeito disso, sendo os debates dos jurados norte-americanos secretos, os

motivos que levaram à decisão do colegiado são desconhecidos, assim como no sistema

brasileiro.

Como já observado anteriormente, não há como postular o afastamento desse

sigilo, na medida em que é previsto constitucionalmente. Logo, o mecanismo de controle da

eficácia do princípio da presunção de inocência que ordinariamente funciona no processo de

competência do juiz togado (a fundamentação da decisão como condição de validade do ato)

não há de funcionar no júri.

Sendo, porém, o in dubio pro reo princípio de inegável índole fundamental

(cláusula pétrea, na verdade) há de se encontrar outra forma de se garantir sua presença no

tribunal do júri. E, registre-se, aqui não se está a afirmar que os júris decidem ordinariamente

sem consideração pelo in dubio pro reo. O que se afirma é que, pela sistemática legal do

procedimento de competência do Tribunal do Júri, não se tem a menor ideia se, tendo havido

dúvida, em que sentido ela se resolveu: se a favor do réu ou a favor da acusação. É dizer, em

caso de condenação, podemos mesmo ter segurança de que os jurados não tinham qualquer

13

dúvida acerca da culpa do acusado? Dizemos segurança e não certeza porque essa, nunca

teríamos, considerado o sigilo da votação.

A esta altura, já está claro que o ponto central é a previsão legal de que as

decisões do Tribunal do Júri são tomadas por maioria. Quatro dentre sete votos são suficientes

para condenar o acusado.

Se a quase metade dos jurados não está convencida da culpa do acusado, não

há como afirmar que culpa não seja duvidosa. Mesmo considerando como adequadas as

decisões da Suprema Corte norte-americana em Apodaca e Jackson, exige-se ampla maioria

de votos para preservar o in dubio pro reo. A ampla maioria, disse a Suprema Corte, conserva

a confiabilidade do sistema. A condenação por meros quatro votos possui, mesmo, essa

confiabilidade?

O constituinte brasileiro elegeu os crimes dolosos contra a vida para submissão

ao júri sob a consciência de que, pela natureza singular desses delitos, o julgamento deve ser

deixado a cargo do juiz de fato, do membro do povo. Entende-se que o julgamento deve ser

popular e não técnico. E costuma-se dizer que aqueles sete cidadãos que decidem sobre a

liberdade do acusado da prática de crime doloso contra a vida são representantes da sociedade

local. É a comunidade do local em que o crime foi praticado a quem toca a grave função de

decidir pela culpa ou inocência de seu co-cidadão.

Insista-se: se a quase metade dos jurados não está convencida da culpa do

acusado, não há como afirmar que aquela comunidade efetivamente acredita na culpa do réu.

Qual a segurança desse veredicto cuja motivação é e sempre será sigilosa? Sublinhe-se que o

que aqui se defende não é a abolição do sigilo (até porque seria defesa inconstitucional), mas

que se busque um meio minimamente eficaz de se o conciliar com o in dubio pro reo.

E se, na sistemática anterior à Lei 11.689/2008, essa realidade já era presente,

duas modificações por ela trazida tornam ainda mais obscuro o caminho da condenação, mais

distante a possibilidade de ter o mínimo de segurança de que o in dubio pro reo dirigiu o

veredicto.

14

Já dissemos sobre a não fundamentação da decisão dos jurados. A sistemática

anterior, contudo, assegurava, de certa forma, algum conhecimento ao jurisdicionado sobre os

motivos que levaram os jurados a esta ou aquela decisão.

A exigência da redação anterior à do art. 484 do Código de Processo Penal, no

sentido de que fosse formulado um quesito para cada ponto da acusação e da defesa permitia

que as partes soubessem com bastante segurança porque o júri condenou ou absolveu.

A crítica que se fazia a essa sistemática – e que foi acolhida na reforma para

abolir tal sistema em troca do quesito genérico sobre a absolvição – era exatamente a sua

complexidade e, por conseguinte, o relevante número de anulações de julgamentos por defeito

na formulação dos quesitos ou falha na forma de submissão à votação do Conselho de

Sentença.

No entanto, na sistemática anterior, se, por exemplo, o réu que alegou ter agido

em legítima defesa própria restasse condenado, saberia que o foi porque o júri considerou que

o uso dos meios necessários para repelir agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio

não foi feito moderadamente e que esse excesso decorreu de dolo. O Ministério Público

saberia que o réu foi absolvido por inexigibilidade de conduta diversa e não por legítima

defesa.

Em busca de simplificação do procedimento e de se evitar possíveis nulidades,

sacrificou-se o pouco de fundamentação que a lei garantia ao veredicto do júri.

A outra modificação trazida pela Lei 11.689/2008 que também sacrificou a

possibilidade de se, ao menos, tangenciar os motivos da decisão (e, portanto, ter alguma

segurança de que o princípio in dubio pro reo foi observado) foi a previsão de que, na votação

dos quesitos, apurado o quarto voto “sim” ou “não”, encerra-se a apuração. Tal determinação,

por óbvio, visa a reforçar ainda mais o sigilo das votações. Louvando essa inovação, afirma

TOURINHO FILHO:13

13 Op. cit. p. 146.

15

“... ao chegar à quarta cédula com o ‘sim’, ou o com o ‘não’, a sigilação será

perfeita. Ninguém saberá como votaram os outros 3 jurados”.

Mas sacrifica ainda mais o conhecimento da decisão pelas partes. Afinal, se os

quatro primeiros votos no quesito referente à autoria são afirmativos, nunca se saberá se a sua

afirmação é unânime ou por maioria. É possível que, se os quatro primeiros votos foram

“sim”, os outros três que não foram apurados tenham sido “não”.

O projeto de Novo Código de Processo Penal (PL nº 8045/10 da Câmara dos

Deputados) traz interessante iniciativa, aumentando de sete para oito o número de jurados no

Conselho de Sentença (art. 349), permitindo, assim, o empate na decisão que, obviamente,

tem por consequência a absolvição.

Exige-se, dessa forma, uma maioria um pouco mais larga do que de apenas um

voto para que seja o acusado condenado. É inegável o reconhecimento de que um veredicto

decidido por apenas um voto é duvidoso.

Mais adequado seria que, em um conselho formado por oito jurados, fosse

exigido um mínimo de seis votos pela condenação. A condenação por cinco votos

corresponde a menos de dois terços do conselho e esse quorum qualificado atribuiria muito

mais segurança ao veredicto.

O fato é que, na sistemática atual, na tensão entre o sigilo da votação e a

presunção de inocência, a segurança quanto aquela retira quase por completo a segurança

desta.

5. A APELAÇÃO E O DEFINITIVO SACRIFÍCIO DO IN DUBIO PRO REO

Se, no julgamento pelo júri, a proteção ao sigilo da votação retira a garantia de

efetividade do princípio da presunção de inocência, em grau recursal esse princípio é

definitivamente sacrificado com a entrada em cena da soberania dos veredictos.

16

Assim como o sigilo das votações, a soberania dos veredictos tem assento

constitucional, no inc. XXXVIII, do art. 5º. O fato, porém, de o veredicto ter assegurada a

soberania não o torna intangível. Até porque soberanas são todas as decisões emanadas do

Poder Judiciário, sejam proferidas pelos juízes de fato, sejam pelo juiz togado.

E não se olvide que o mesmo inc. XXXVIII, do art. 5º da Constituição assegura

a plenitude da defesa. Que obviamente pressupõe a possibilidade de ter a decisão do júri

submetida a revisão por outro juízo e também faz pressupor a presunção de inocência.

E assim, a sistemática recursal envolve também uma tensão: a soberania dos

veredictos contra a plenitude da defesa e, por conseguinte, o in dubio pro reo. É por isso que o

art. 593 do CPP estabelece que, quanto ao mérito da questão, a apelação somente procede se a

decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos. Ou seja, mesmo que o

Tribunal de segundo grau se convença de que a prova dos autos é duvidosa, mantém-se

intocado o veredicto porque, afinal, ele é soberano. E toda a jurisprudência é nesse sentido,

sendo bastante para ilustrar a Súmula Criminal número 28 do Tribunal de Justiça de Minas

Gerais.14

Pode-se tentar justificar esse rigorismo afirmando que, se o escopo do

julgamento da apelação tivesse a amplitude da apelação que se funda no inc. I, do art. 593,

haveria o risco de o Tribunal de Justiça substituir-se ao Tribunal do Júri, dele usurpando a

competência constitucional para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Além, é

evidente, de vulnerar a soberania do veredicto. OLIVEIRA15 defende:

“Por mais compreensível e louvável que seja a preocupação com o risco de

erro ou desvio no convencimento judicial do júri popular, o fato é que o

aludido dispositivo legal põe em xeque a rigidez da soberania das decisões do

júri”.

Neste ponto, ousamos discordar do autor citado. Não existe, a nosso ver, poder,

soberano que seja imune a controle jurisdicional. Quando nada, porque assim o exige o inciso

14 A cassação do veredito popular por manifestamente contrário à prova dos autos só é possível quando a decisão

for escandalosa, arbitrária e totalmente divorciada do contexto probatório, nunca aquela que opta por uma das

versões existentes. 15 Op. cit. p. 884.

17

XXXV, do art. 5º, da Constituição. Afinal, se o sufrágio, universal e secreto, fonte do próprio

poder do Estado, na forma preâmbulo da Constituição, não é alheio ao controle da Justiça

Eleitoral, ao se cassar um mandato obtido mediante abuso de poder econômico ou político

está-se a pôr em xeque a soberania popular?

Não temos dúvida em afirmar que a dita soberania dos veredictos, mais que

princípio inerente ao Tribunal do Júri, é verdadeiro dogma. Mas esse dogma cria o seguinte

problema, que pôde ser empiricamente identificado.

No site de busca de jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais,

informando as expressões de busca “júri”, “apelação” e “manifestamente”, limitando a

pesquisa aos acórdãos publicados entre 01 de janeiro 2014 e 30 de setembro de 2014, foram

retornados 476 resultados16.

Desses 476 resultados retornados, 9 se referem, na verdade, a apelações contra

impronúncias ou absolvições sumárias ou recursos em sentido estrito e foram, portanto,

excluídos dos cálculos.

Assim, foram localizadas 467 apelações fundadas no art. 593, inc. III, alínea d

do Código de Processo Penal, ou seja, cuja fundamentação é o julgamento manifestamente

contrário à prova dos autos.

Foram analisadas as apelações interpostas pela defesa e pelo Ministério

Público. Dentre as apelações defensivas, foram contabilizadas as providas, as não providas e

as não conhecidas (por força da disposição do § 3º do art. 593 do CPP). Dentre as apelações

interpostas pelo Ministério Público, foram contabilizadas as providas e as não providas, já que

todas foram conhecidas.

Esclareça-se que, para fins de definição e categorização em “provida” e “não

provida”, foi levado em consideração apenas o acolhimento ou não, pelo Tribunal, da

alegação de julgamento manifestamente contrário à prova dos autos. Eventuais provimentos

16 Acesso em 30/09/2014.

18

parciais para redução ou aumento das penas aplicadas foram desprezados, por fugirem ao

objeto deste estudo. Não houve nenhum acórdão, dentre os analisados, que tenha reconhecido

nulidade posterior à pronúncia. Não houve, também, análise da fundamentação dos acórdãos

ou consulta aos autos dos processos. Portanto nenhum juízo ou crítica se faz sobre o acerto ou

não das decisões ou de cada decisão isoladamente.

Assim, aplicando-se os critérios acima explicados, constatou-se: dentre as 467

apelações fundadas na alínea d do inc. III do art. 593, do Código de Processo Penal, 372, ou

79,66% foram interpostas pela defesa e 95, ou 20,34% foram interpostas pelo Ministério

Público.

Dentre as 372 apelações defensivas, 10 (2,69%) não foram conhecidas por

aplicação do § 3º do art. 593 do CPP17. Quanto às 362 que foram conhecidas, 350, ou 96,69%

não foram providas e apenas 12, ou 3,31% foram providas, determinando-se a submissão do

réu a novo julgamento.

Já quanto às apelações interpostas pelo Ministério Público, 55 delas (57,89%)

não foram providas e 40, ou 42,11% foram providas, cassando-se o veredicto e determinando

a realização de novo julgamento.

Para melhor visualização dos dados coletados, vejam-se os gráficos seguintes:

17 Se a apelação se fundar no III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados

é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se

admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação.

19

Figura 1 – Total de apelações com acórdão publicado entre 01/01/2014 e 30/09/2014

Figura 2 – Resultados dos recursos interpostos pela defesa

20

Figura 3 – Resultado dos recursos interpostos pelo Ministério Público

É necessário esclarecer que a crítica não é, de modo algum, destinada ao

Tribunal de Justiça de Minas Gerais ou mesmo ao teor dessas decisões, até por não terem

sido, como já dito, examinadas as provas de cada processo.

Não obstante, é possível afirmar com segurança que a absolvição ou decote de

qualificadora ou, ainda, o reconhecimento de causa de diminuição de pena tem maior chance

de ser cassada em sede de apelação do que a condenação, o reconhecimento de qualificadora

ou a rejeição de causa de diminuição de pena. O fato de haver mais recursos defensivos do

que ministeriais, em si, não causa surpresa. Considerando que, na pronúncia, afirmou-se a real

probabilidade de a acusação ser acolhida em plenário, é de se esperar mais condenações que

absolvições. Se o número de absolvições fosse maior ou mesmo igual ao de condenações,

haveria sério problema na pronúncia. Entretanto, o número de recursos defensivos ser quase o

quádruplo do que o de ministeriais sugere um desequilíbrio. E, sobretudo, o fato de, nos nove

meses apreciados, quase metade dos recursos do Ministério Público terem sido providos e

apenas 3,31 % dos recursos defensivos que foram conhecidos terem recebido provimento

torna a suspeita de desequilíbrio uma quase certeza.

E isso não pode ser creditado apenas a entendimentos de determinados

desembargadores ou câmaras. É a própria sistemática legal do júri, inclusive em sede recursal,

que causa essa disparidade.

21

E a raiz disso está na fórmula legal “julgamento manifestamente contrário à

prova dos autos” e na sua interpretação jurisprudencial (exemplificada pela já mencionada

Súmula 28 do TJMG).

O que se aprecia no recurso é se há o mínimo de prova a sustentar o veredicto,

não se esse observou o princípio in dubio pro reo. E essa constatação é suficiente para

explicar o porquê de, nos nove meses analisados, apenas 3,31% dos recursos defensivos

conhecidos terem sido providos.

Ora, considerando-se que a denúncia foi recebida e que o réu foi pronunciado,

é evidente (salvo caso de vício na própria pronúncia, que se existe, decorre do malfadado in

dubio pro societatis) que o mínimo de prova contra o réu existe.

E é aí que reside a verdadeira perversidade: pronuncia-se o réu ante o menor

indício de autoria; no julgamento pelo júri, não se conhece (e nem se poderia conhecer) o

fundamento da decisão de cada jurado; a condenação pode ser (e sequer teremos certeza,

salvo em caso de a apuração dos votos empatar em três a três) pela diferença de um voto. E o

réu, condenado, não será socorrido pelo in dubio pro reo em sede recursal.

O princípio in dubio pro reo, que não pode ser dissociado da plenitude da

defesa, é suplantado amplamente pelo sigilo das votações e pela soberania dos veredictos.

O balanceamento dessa situação de vulnerabilidade do réu somente pode ser

alcançado por dois meios: exija-se, senão unanimidade, larga maioria de votos, como

destacado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em Apodaca e Johnson; ou se altera o

cabimento da apelação contra a decisão do júri, passando-se a admitir a cassação do veredicto

não só em casos de decisão “escandalosa, arbitrária e totalmente divorciada do contexto

probatório”, para usar os termos da Súmula 28 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, mas

22

sempre que o Tribunal verificar que a decisão foi baseada em prova duvidosa, deverá cassar o

veredicto para submeter o réu a novo julgamento.18

6. CONCLUSÃO

O resultado da pesquisa realizada nos acórdãos publicados pelo Tribunal de

Justiça de Minas Gerais no período especificado impressiona pela imensa disparidade entre o

número de recursos defensivos providos e não providos. Sobretudo, se comparados com os

números referentes aos recursos interpostos pelo Ministério Público.

Parece difícil compreender porque, ao decidir contrariamente ao réu, o júri está

errado em apenas 3,31% das vezes e, ao decidir favoravelmente, o júri está errado em 42,11%

dos veredictos. O percentual de erros a favor da defesa é, realmente, 14 vezes maior?

O que se nos afigura é que o próprio critério legal de controle jurisdicional das

decisões do júri não é constitucionalmente adequado. É compreensível que, com imensa

frequência, a condenação não seja considerada manifestamente contrária à prova dos autos,

isso é, proferida em absoluta dissonância com o conteúdo probatório dos autos. Afinal, se o

réu foi pronunciado (presumindo-se que a pronúncia obedeceu ao art. 413 do CPP), alguma

prova convincente contra o réu há de ter sido produzida durante o sumário.

O que se verifica, então, é que, na verdade e na prática, os requisitos

necessários para pronunciar e para condenar o réu não são substancialmente diferentes.

Afinal, para uma e para outra decisão (aquela, juízo de mera admissibilidade; essa, juízo de

mérito) serem mantidas, basta a existência de prova a respaldar a tese acusatória.

O sigilo das votações e, sobretudo, a permissão legal para que se condene o réu

por maioria simples afasta o in dubio pro reo do julgamento pelo júri. A lógica do art. 593,

inc. III, alínea d do CPP afasta o in dubio pro reo do julgamento da apelação. Se a prova

produzida no sumário é duvidosa, pronuncia-se; se a prova em se baseou a condenação é

18 Não se admitindo, porém, novo recurso sob a mesma fundamentação, completando a conciliação do in dubio

pro reo com a soberania dos veredictos.

23

duvidosa, mantém-se o veredicto, pois havendo prova que sustente uma e outra tese, a decisão

não terá sido manifestamente contrária à prova dos autos.

Em suma, o júri, mesmo em dúvida, está autorizado a condenar e a lei não

oferece qualquer remédio contra isso. A sistemática do procedimento de competência do júri é

inteiramente alheia à garantia constitucional da presunção de inocência. Se se pretende dar a

devida eficácia a essa garantia fundamental, é essencial que seja aumentado o número de

jurados e exigida, no mínimo, maioria qualificada para condenar o réu. Sem que haja essa

necessária alteração legislativa, a jurisprudência deveria passar a interpretar a alínea d do inc.

III do art. 593 do CPP de modo diverso, admitindo a cassação do veredicto em caso de dúvida

manifesta. Afinal, é mesmo contraditório que o órgão julgador negue provimento a recurso

em sentido estrito contra a pronúncia por haver dúvida e, não produzida nenhuma prova nova

em plenário , em apelação, o mesmo órgão (prevento) mantenha a condenação que se proferiu

com base na mesma prova outrora dita duvidosa.

BIBLIOGRAFIA

LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013

OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de processo penal. 16ª edição. São Paulo: Atlas, 2012

RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2006, p. 90.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal v. 4. 32ª edição. São Paulo: Saraiva,

2010