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Educação e PesquisaRevista da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

Education and ResearchJournal of the School of Education, University of São Paulo

Universidade de São Paulo / University of São PauloReitor/Rector: Marco Antonio ZagoVice-Reitor/Vice-Rector: Vahan Agopyan

Faculdade de Educação / School of EducationDiretora/Dean: Belmira Amélia de Barros Oliveira BuenoVice-Diretora/Vice-Dean: Diana Gonçalves Vidal

Editoras / EditorsDenise Trento Rebello de Souza - Universidade de São Paulo, São Paulo, BrasilTeresa Cristina Rego - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

Editores Assistentes / Assistant EditorsCláudia Pereira Vianna - Universidade de São Paulo, São Paulo, BrasilÉmerson de Pietri - Universidade de São Paulo, São Paulo, BrasilLucia Helena Sasseron Roberto - Universidade de São Paulo, São Paulo, BrasilMaria Ângela Borges Salvadori - Universidade de São Paulo, São Paulo, BrasilMaria Isabel de Almeida - Universidade de São Paulo, São Paulo, BrasilMarília Pinto Carvalho - Universidade de São Paulo, São Paulo, BrasilRosângela Gavioli Prieto - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

Secretaria de Edições / Editions OfficeAnna Cecília de Paula Cruz José Aguinaldo da Silva

Conselho Editorial / Editorial BoardAntónio Nóvoa Maria Isabel da CunhaUniversidade de Lisboa, Lisboa, Portugal UniSinos, Rio Grande do Sul, São Leopoldo, RS, BrasilBelmira A. de Barros O. Bueno Maria Machado Malta CamposUniversidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, SP, BrasilCarlos Roberto Jamil Cury Marie-Christine JossoUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil Université de Genève, Genève, Suíça Elsie Rockwell Marília FonsecaInstituto Politécnico Nacional, Zacatenco, Distrito Federal, México Universidade de Brasília, Brasília, DF, BrasilFrederick Erickson Martin CarnoyUniversity of California, Berkeley, California, EUA Stanford University, Stanford, EUAGilles Brougère Nelly StromquistUniversité Paris-Nord, Villeteneuse, Paris, França University of Southern California, Los Angeles, CA, EUAJosep Maria Puig Rovira Olgária MatosUniversidad de Barcelona, Barcelona, Espanha Universidade de São Paulo, São Paulo, SP,BrasilJürgen Schriewer Silvina GvirtzHumboldt Universiät, Berlin, Alemanha Universidad Nacional de Buenos Aires, ArgentinaLucia Emília Nuevo Barreto Bruno Yves de La Taille Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, BrasilLuciano Mendes de Faria Filho Zaia BrandãoUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, RJ, BrasilLuiz Antônio Cunha Zeila de Brito Fabri DemartiniUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, BrasilMagda Becker Soares Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

Revista financiada com recursos de

ISSN 1517-9702

Educação e Pesquisar e v i s t a d a f a c u l d a d e d e e d u c a ç ã o d a u s p

Educação e Pesquisa São Paulo v. 41 n. 2 292 p. abr./jun. 2015

EDUCAÇÃO E PESQUISA publica artigos inéditos na área de educação, em especial resultados de pesquisa de caráter teórico ou empírico, bem como revisões da literatura de pesquisa educacional.

E-mail: [email protected] permuta / Exchange is requested

Copidesque e revisão / Copy desk and proofreading: Ana Paula C. RenestoEditoração eletrônica / Desktop publishing: Anna Cecília de Paula CruzVersão para o inglês / English version: Ana Paula C. Renesto e Luiz Ramires Neto Projeto gráfico e ilustrações / Graphic design and illustrations: Daniel Bueno e Fernando de Almeida

Indexada em / Indexed in:

AERA SIG - Communication of Research (EUA, www.aera-cr.asu.edu) BBE - Bibliografia Brasileira de Educação (Brasil, INEP)CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades (México, UNAM)DOAJ - Directory of Open Access Journals (Suécia)EDUBASE (Brasil, FE/Unicamp)ERA - Educational Research Abstracts (Inglaterra, www.tandf.co.uk/era) IRESIE - Indice de Revistas de Educación Superior y Investigación Educativa (México, UNAM)LATINDEX - Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, en Caribe, Espanã y Portugal (México)PSICODOC - Colegio Oficial de Psicólogos de Madrid (Espanha)SCIELO - Scientific Electronic Library Oline (Brazil)SCIMAGO - SCImago Journal and Country Rank (Elsevier)SCOPUS - Scopus citation database of peer-reviewed literature.SIBI- Portal de Revistas da USP (www.revistas.usp.br)SOCIOLOGICAL ABSTRACTS (EUA, www.csa.com/factsheets/supplements/sociossl.php)

Versões on-line / Online versions:

http://www.educacaoepesquisa.fe.usp.brhttp://dialnet.unirioja.eshttp://www.redalyc.comhttp://www.scimagojr.comhttp://www.scielo.orghttp://www.scopus.com

Tiragem: 600 exemplares

Educação e Pesquisa. São Paulo, FE/USP, 1975.

TrimestralPublicação da Faculdade de Educação da Universidade de São PauloContinuação da Revista da Faculdade de Educação da USPISSN 1517-97021. Educação.

Educação e Pesquisa, v. 41, n. 2, 292 p., abr./jun. 2015.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 2, 292 p., abr./jun. 2015.

Editorial

Miradas sobre educação e escola: sujeitos, espaços, temposMaria Angela Borges Salvadori

Artigos

Identidade nacional na Boêmia do século XV e a formação de uma paideia tcheca Thiago Borges de Aguiar; Davi Costa da Silva

Zeitgeist ou espírito alemão: etno-história de germanidade e instituição da escola em Santa CatarinaAdemir Valdir dos Santos

Memórias de docentes leigas que atuaram no ensino rural da Região Colonial Italiana, Rio Grande do Sul (1930 - 1950)Terciane Ângela Luchese; Luciane Sgarbi Grazziotin

Madres sociales de la aldea: la maestra española durante el nacional-catolicismoSonsoles San Román Gago

Ser alguém na vida: um estudo sobre jovens do meio rural e seus projetos de vidaMaria Zenaide Alves; Juarez Dayrell

Valores priorizados por estudantes universitários de um curso de psicologia de uma universidade públicaNelson Pedro da Silva

Expectativas de jovens do ensino médio público em relação ao estudo e ao trabalho Davisson Charles Cangussu Souza; Daniel Arias Vazquez

La autoridad de los profesores universitarios: un estudio centrado en relatos de estudiantes de letrasMaría Paula Pierella

Da estatística educacional para a estatística: das práticas profissionais a um campo disciplinar acadêmicoMartha Raíssa Iane Santana da Silva; Wagner Rodrigues Valente

A disciplina estatística no curso de pedagogia da USP: uma abordagem históricaViviane Lovatti Ferreira; Laurizete Ferragut Passos

El conocimiento pedagógico del contenido de estadística en profesores de primariaSoledad Estrella; Raimundo Olfos; Arturo Mena-Lorca

El sistema dual de formación profesional alemán: escuela y empresaJesús A. Alemán Falcón

Empreendedorismo como escopo de diretrizes políticas da União Europeia no âmbito do ensino superiorRachel de Castro Almeida; Miguel Chaves

Empresa HD, aluno monitor: a Microsoft e a construção da crença nas tecnologiasMichelle Prazeres

Entrevista

Formador de leitores, formador de professores: a trajetória de Max ButlenEntrevistadoras: Belmira Oliveira Bueno; Neide Luzia de Rezende

Instruções aos colaboradores

Leia também

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Contents

Editorial

Views on education and school: subjects, spaces, timesMaria Angela Borges Salvadori

Articles

National identity in fifteenth century Bohemia and the formation of a Czech PaideiaThiago Borges de Aguiar; Davi Costa da Silva

Zeitgeist or German spirit: ethnohistory of Germanness and the establishment of schools in Santa CatarinaAdemir Valdir dos Santos

Memories of lay teachers who worked in rural education in the region of Italian immigration in Rio Grande do Sul state, BrazilTerciane Ângela Luchese; Luciane Sgarbi Grazziotin

Social mothers in the villages: women schoolteachers during the National Catholicism period in SpainSonsoles San Román Gago

Being someone in life: a study on rural young people and their life projectsMaria Zenaide Alves; Juarez Dayrell

Values prioritized by psychology undergraduates of a public universityNelson Pedro da Silva

Expectations of young people from public secondary education about study and workDavisson Charles Cangussu Souza; Daniel Arias Vazquez

The university professor’s authority: a study focused on language arts students’ accountsMaría Paula Pierella

From educational statistics to statistics: from professional practices to an academic disciplinary fieldMartha Raíssa Iane Santana da Silva; Wagner Rodrigues Valente

The statistics discipline in the pedagogy course at USP: a historical approachViviane Lovatti Ferreira; Laurizete Ferragut Passos

Pedagogical content knowledge of statistics among primary school teachersSoledad Estrella; Raimundo Olfos; Arturo Mena-Lorca

The dual system in the German vocational training: school and enterpriseJesús A. Alemán Falcón

Entrepreneurship as an aim of the European Union policy for higher educationRachel de Castro Almeida; Miguel Chaves

HD company, monitor student: Microsoft and the construction of belief in technologiesMichelle Prazeres

Interview

From the education of readers to the education of teachers: an interview with Max Butlen Interviewers: Belmira Oliveira Bueno; Neide Luzia de Rezende

Instructions to authors

See also

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Editorial

Miradas sobre educação e escola: sujeitos, espaços, tempos

Neste volume, Educação e Pesquisa apresenta ao leitor um conjunto de catorze artigos, seguidos de uma entrevista com o professor Max Butlen, da Universidade de Cergy-Pontoise, França. Sequenciados a partir de quatro blocos, eles trazem pesquisas relativas à história da educação, a um esforço em compreender os olhares juvenis sobre a escola, sobre a sociedade e sobre seu futuro, ao campo da estatística e, finalmente, às contingências contemporâneas do capitalismo e seus desdobramentos sobre a educação.

No primeiro bloco, quatro artigos me fizeram lembrar muitas vezes de uma passagem do livro As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Na obra, o viajante veneziano Marco Polo conta para Kublai Kahn, líder do império mongol para o qual trabalhou, sobre as cidades pelas quais passou, numa descrição que, muito mais do que aspectos físicos, atenta para os modos de vida dos habitantes e sua relação com os espaços. A certa altura do texto, quando o imperador lhe pergunta o motivo de tantas viagens, Polo responde: “Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá” (CALVINO, 1990, p. 28-29)1. De certo modo, é isso que o primeiro conjunto de artigos deste volume de Educação e Pesquisa oferece ao leitor: uma possibilidade de, por meio de aproximações e distanciamentos, reconhecer-se pela alteridade – espacial, temporal, social – em espelhos em negativo. Ao abordarem historicamente temas tais como a universidade, as diferenças entre a docência no campo e na cidade, o exercício profissional sob regimes autoritários ou democráticos, a relação entre escola e identidade e as questões de gênero e de geração, os artigos permitem que o leitor identifique mudanças espaço-temporais e, desse modo, reconheça também a historicidade de sua existência.

No primeiro desses artigos, Thiago Borges de Aguiar e Davi Costa da Silva analisam a relação entre religião, língua nacional e educação, entrelaçadas no estudo da fundação da Universidade de Praga, em 1348 e, depois, anos à frente, de sua nacionalização, mostrando o lugar de destaque daquela instituição na propagação de um sentimento de unidade tcheca. Ao ultrapassar os limites da historiografia clássica, que tradicionalmente localiza a emergência dos nacionalismos a partir da Idade Moderna, com a formação das monarquias nacionais absolutistas, “Identidade nacional na Boêmia do século XV e a formação de uma paideia tcheca” permite pensar a questão da nação para períodos mais remotos e para além da centralidade do Estado em sua articulação. Identifica, ainda, o papel central da língua na construção de um sentimento de pertença a um grupo e, nesse caso específico, além da língua, também da religião, recuperando uma longa tradição de luta pela afirmação da alteridade, que tem em John Huss um de seus mais evidentes

1- As referências bibliográficas presentes neste editorial são aquelas que usei diretamente na escrita do texto. Outros autores aparecem aqui para indicar os diálogos teóricos presentes nos artigos e, nesse caso, não estão referenciados.

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-970220154102001

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expoentes. Língua, religião e educação, para os tchecos da Universidade de Praga, eram os eixos através dos quais uma paideia educativa poderia ser consumada. Na comprovação dessa hipótese, os autores tomam como fontes privilegiadas, para além dos documentos relativos à fundação da universidade e sua nacionalização, literatura acerca dos mitos fundadores tchecos e coletâneas de lendas, compondo um conjunto documental com peças que vão do século XII ao XIX. Nesse percurso, favorecem o reconhecimento de diferentes tradições universitárias e convidam à reflexão sobre nossa própria tradição.

O artigo seguinte – “Zeitgeist ou espírito alemão: etno-história de germanidade e instituição da escola em Santa Catarina” –, abordando período mais recente e espaço mais próximo, investiga o entrelaçamento da língua, da religião e da educação na manutenção de um espírito alemão naquele estado. Seu autor, Ademir Valdir dos Santos, explora um conjunto variado de fontes – relatos de viajantes, jornais, relatórios, textos legislativos, livros didáticos e um caderno escolar – para discutir a consolidação e a permanência, ainda hoje, de uma germanidade em Santa Catarina. Aponta também as transformações desse sentimento ao longo do tempo. Para isso, mostra como o aparecimento da escola, nessas áreas colonizadas por imigrantes alemães, esteve bastante atrelado à presença do ideário luterano e ao lugar da educação em tal ideário. Nesse processo, ressalta como a escolarização em Santa Catarina ocorreu, em grande medida, por meio de iniciativas autônomas dos próprios imigrantes, com a criação de escolas, utilização de material didático próprio, escolha de professores e práticas cotidianas que reforçavam uma identidade germânica na região. Para o autor, nem mesmo os golpes sofridos ao longo das primeiras décadas do período republicano, que culminam com o fechamento dessas escolas e a proibição do uso da língua alemã sob o governo Vargas, foram suficientes para suplantar esse Zeitgeist, ainda hoje bastante forte, ao menos em algumas localidades mais tradicionais. Desse modo, o texto amplia o conhecimento sobre a história da educação no Brasil Império e nos primeiros tempos da República, mostrando ações que, ainda que pontuais, não se enquadravam nem no âmbito das iniciativas do Estado nem na tradicional educação de matriz católica, entre nós já mais conhecida.

Terciane Ângela Luchese e Luciane Sgarbi Grazziotin voltaram-se também para comunidades marcadas pela imigração, mas o fizeram a partir das experiências docentes. Tradições, espaços e tempos, contudo, são diferentes daqueles do artigo anterior. As autoras analisam as memórias de professoras leigas que atuaram em escolas rurais isoladas, em comunidades de imigrantes italianos do Rio Grande do Sul, particularmente na região da Serra Gaúcha, entre 1930 e 1950. Para isso, consideram desde os tempos em que tais docentes foram alunas até o modo como ingressaram no magistério, mostrando uma diversidade acentuada de processos formativos, formas de ingresso no magistério e práticas cotidianas na escola. O artigo, intitulado “Memórias de docentes leigas no ensino rural da Região Colonial Italiana, Rio Grande do Sul (1930-1950)”, permite ainda reconhecer o papel determinante da comunidade na constituição da identidade docente; várias são as professoras entrevistadas que enfatizam, com alguma nostalgia, o lugar destacado que ocupavam nas comunidades

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rurais italianas e as muitas formas pelas quais o reconhecimento da profissão era manifestado, entre elas os presentes diversos e constantes, a participação na vida privada dos alunos e de suas famílias, as colaborações para a escola. Todavia, essas memórias exibem também a penúria enfrentada por alunos e professores, evidentes na escassez de materiais pedagógicos, na precariedade da infraestrutura da escola e no excesso de atividades aos quais os mestres eram submetidos. O recorte temporal estabelecido pelas autoras coloca em tensão o discurso da nacionalização do ensino e de sua expansão e, por outro lado, as muitas práticas escolares constituídas à margem desses intentos.

Também com base em memórias docentes, é escrito o último artigo deste bloco, que busca os entrecruzamentos entre biografias pessoais e acontecimentos sociais mais amplos. O texto “Madres sociales de la aldea: la maestra española durante el nacional-catolicismo” toma como ponto de partida as memórias de professoras da escola primária rural espanhola de duas gerações, formadas respectivamente antes e depois da Guerra Civil. Procura compreender o impacto desse acontecimento tão violento sobre a prática docente e o modo como a ideologia franquista interferiu no processo de construção da identidade docente. Mostra, ainda, os efeitos da longa ditadura franquista sobre o magistério feminino. Sua autora, Sansoles San Román Gago, da Universidad Autónoma de Madrid, toma como fontes textos de natureza autobiográfica, enfatizando recortes de gênero e de geração para compreender o lugar conferido à mulher na Espanha sob Franco. Ao longo do artigo, é possível verificar que o momento de formação docente interfere nas escolhas posteriores, por exemplo, quanto aos métodos de ensino. Todavia, em que pesem as diferenças, o texto expõe o impacto de uma longa ditadura, de forte viés religioso, na configuração de um lugar feminino marcado pela submissão.

O que pensam os alunos sobre a escola e a educação? E sobre a relação entre estas e seu futuro? O que desejam em suas trajetórias escolares e para suas vidas? Que valores compartilham? Essas perguntas orientaram a formação do segundo conjunto de artigos que apresentamos neste número. São textos que se voltam às perspectivas discentes, nem sempre adequadamente perscrutadas, quando comparadas às abordagens centradas na figura docente e em aspectos legislativos ou curriculares. Para além de suas especificidades, esses artigos ajudam na compreensão dos modos pelos quais a categoria juventude é construída historicamente e como se coloca no mundo contemporâneo, permeada por imagens contraditórias que ora apresentam os jovens como porvir esperançoso, ora os entendem como ameaça. São estudos que alertam, na contramão dessas generalizações, para a importância de abordagens não lineares e genéricas; abordagens que considerem, entre outros elementos, dimensões temporais, de gênero e de classe envolvidas nas representações de juventude (LEVI; SCHMITT, 1996).

No primeiro texto, “Ser alguém na vida: um estudo sobre jovens do meio rural e seus projetos de vida”, Juarez Dayrell e Maria Zenaide Alves analisam os sonhos e as expectativas de um conjunto de jovens da cidade de São Geraldo da Piedade, em Minas Gerais,

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atravessados pela experiência de vida em meio rural. O objetivo do artigo é propor uma tipologia dos projetos de vida, pensada a partir dos entrecruzamentos de biografias pessoais e campos de possibilidades. Atentos às falas dos jovens entrevistados, os autores advertem sobre uma certa visão reducionista que liga de modo direto o projeto de vida ao futuro profissional, dimensão que, presente sem dúvida, não exclui outras vontades e esperanças. A partir do conjunto documental levantado, o artigo propõe algumas categorias mais gerais nas quais esses projetos de vida juvenis, segundo os autores, podem ser ordenados: projetos de forma mimética, caracterizados por possuírem uma referência vista como positiva e que se quer seguir, um exemplo de alguém que, na ótica do entrevistado, pode ser tomado como modelo. A segunda categoria, a dos hipomaníacos, é caracterizada pelo excesso de otimismo e pela pouca consideração do campo de possibilidades efetivas enfrentadas pelo grupo. Além dessas duas, há: o que é definido no texto como projeto estratégico, estabelecido na intersecção entre a vontade e a possibilidade; os projetos de recusa, oriundos da negação de experiências próximas bastante conhecidas; e, por fim, o grupo dos fora de projeto, constituído por aqueles jovens que, irremediavelmente presos ao presente e suas urgências, de pouca energia dispõem para pensar no futuro. Na escrita do texto, os autores dialogam com Jean-Claude Boutinet, Nilson José Machado e Gilberto Velho, entre outros.

Nelson Pedro da Silva volta sua atenção aos valores apontados como mais relevantes por um grupo de alunos do primeiro ano de um curso de psicologia em uma universidade pública paulista. Tomando como uma de suas referências principais os trabalho de Yves de La Taille acerca do que denomina “psicologia das virtudes”, procura verificar quais são os valores que orientam a conduta dos alunos envolvidos na pesquisa, considerando esses valores a partir de três categorias mais amplas: valores públicos (valores morais ligados à dimensão do viver), valores privados (referentes à harmonia na vida e relações pessoais) e valores ligados à glória (por exemplo, beleza, força física e sucesso financeiro). O autor destaca outras pesquisas que caminharam na direção de identificar e analisar esses valores, diferenciando seu percurso, em particular, pelo modo de abordagem da questão. Neste caso, os alunos foram convidados a responder a um questionário que não inquiria sobre si e sim sobre o que julgavam mais importante em seus amigos, decisão tomada com base na premissa de que o que vemos no outro está também em nós. As conclusões apontam para a prevalência da vida privada sobre a pública, para um comportamento individualista e, segundo o autor, para uma certa “ética utilitarista”, centrada no eu e na satisfação de suas necessidades, em grande parte resultante das relações entre capitalismo e personalidade, tais como estudadas pelo historiador Richard Sennett (1988). Para além daquilo que dá a conhecer sobre um grupo específico de futuros psicólogos, “Valores priorizados por estudantes universitários de um curso de psicologia de uma universidade pública” nos impele a pensar sobre como as mudanças no mundo do trabalho, do consumo e nas instituições interferem em nossos valores pessoais e sociais. E, num outro caminho, sobre o valor social da cooperação, fruto da insuficiência de nossos recursos individuais, mas também uma habilidade de “entender e mostrar-se receptivo ao outro para agir em conjunto” (SENNETT, 2012, p. 10).

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Relações entre juventude, educação e trabalho também estão presentes em “Expectativas de jovens do ensino médio público em relação ao estudo e ao trabalho”, artigo escrito por Davisson Charles Cangassu e Daniel Arias Vasquez a partir do resultado de pesquisa com jovens estudantes do ensino médio em escolas públicas da região metropolitana de São Paulo. Os autores trabalharam com os dados obtidos em enquetes junto a mais de 1.300 estudantes, buscando conhecer e compreender como esses alunos pensam seu futuro, o lugar do estudo nesse projeto e as dificuldades a serem enfrentadas para a consolidação de seus planos. A discussão teórica está centrada em autores clássicos da filosofia e da sociologia da educação, tais como Althusser, Bourdieu, Passeron, Baudelot e Establet. Inicialmente, o texto levanta a hipótese de que, num futuro próximo, esses alunos optariam pelo trabalho em detrimento da educação, pressionados pelas necessidades econômicas mais prementes. Contudo, tabulando e lendo os dados obtidos, foi possível perceber, segundo os autores, que a maior parte dos alunos pretende dar continuidade aos estudos e deposita grande expectativa no ensino superior enquanto capaz de proporcionar-lhes um ingresso no mercado de trabalho em condições mais favoráveis. Por outro lado, apesar desse desejo e dessa intenção, tais jovens também identificam como dificuldade maior para a continuidade e sucesso nos estudos a necessidade de conciliar escola e trabalho. Desse modo, por um lado, indicam mudanças significativas no que diz respeito à possibilidade de expansão da escolaridade para as classes populares; e, por outro, salientam que esse pertencimento – e a desigualdade social que o constitui – são ainda entraves para a plena realização desses projetos juvenis.

Fechamos este bloco com o artigo de María Paula Pierella, “La autoridade de los professores universitários: un estúdio centrado em relatos de estudiantes de letras”, escrito a partir dos resultados obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas com estudantes da Faculdade de Humanidades e Artes da Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, particularmente alunos de pós-graduação, próximos da titulação, em cursos de letras. O objetivo do texto é buscar compreender o que esses estudantes entendem como autoridade docente e pensar as experiências universitárias em dimensões mais amplas que a formação stricto sensu. Analisando as respostas discentes, a autora observa um ponto comum, que se refere à crítica a uma autoridade alicerçada exclusivamente em posições institucionalmente hierarquizadas. Os alunos tampouco aceitam formas de autoridade baseadas em poder pessoal, que rechaçam veementemente. Por outro lado, sugerem uma grande variedade de motivos pelos quais reconhecem a autoridade de um professor e a tomam como legítima e, nessa gama de possibilidades, o respeito recíproco, a generosidade docente no fazer cotidiano das aulas, o domínio de um campo de conhecimento, a prática de pesquisa desinteressada, o reconhecimento acadêmico e certos traços de personalidade são destacados. O artigo nos convida, assim, a pensar tanto sobre as tradições de autoridade docente que a instituição universitária alimentou ao longo de sua história quanto sobre seus desafios contemporâneos.

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Os três artigos seguintes tratam do tema da estatística e suas relações com o campo da educação. Eles ajudam a entender como a estatística foi se tornando, especialmente a partir dos anos 1930, no Brasil, um instrumento de autoridade, fundado na crença de que os dados estatísticos revelariam de modo neutro e objetivo informações capazes de orientar diferentes políticas públicas (GIL, 2012, p. 524). A própria criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1934, reforça essa visão. Nesse percurso, as estatísticas educacionais foram pioneiras, vistas como capazes de conferir cientificidade e racionalidade às políticas públicas, especialmente a partir do governo Vargas (CALDEIRA-MACHADO; BICCAS; FARIA FILHO, 2013).

Nos dois primeiros textos, aparecem abordagens históricas que dialogam intensamente pela escolha do lugar a partir do qual são escritos – a Universidade de São Paulo –, seus personagens – com destaque para o professor Milton Rodrigues – e, ainda, pela historicização do processo por meio do qual a estatística foi transformada, de subsídio fundamental para a análise da educação nacional e elemento constitutivo da formação docente, em campo disciplinar autônomo. Nesse processo, revelam-se as tramas entre políticas públicas de educação, currículo e as relações de poder entre os sujeitos. Os artigos compartilham ainda de um mesmo referencial teórico, com um forte diálogo com as proposições do inglês Ivor Goodson e suas contribuições para uma história sociocultural dos currículos, evidenciadas no esforço de destrinchar os determinantes sociais que interferem na seleção dos conteúdos a ser ensinados em diferentes momentos históricos. Assim, por diferentes recortes, os dois artigos ajudam a compreender as relações entre conhecimento e poder, seja investigando sujeitos diretamente envolvidos nessas relações, seja pela análise de mudanças curriculares e contextos nos quais tais mudanças foram processadas (JAEHN; FERREIRA, 2012).

Em “Da estatística educacional para a estatística: das práticas profissionais a um campo disciplinar acadêmico”, Martha Raíssa Iane Santana da Silva e Wagner Rodrigues Valente investigam como as práticas estatísticas foram academicamente se transformando em disciplina científica, tomando como mote principal a atuação do professor Milton Rodrigues, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, entre os anos 1930 e 1960. A partir da consulta à documentação institucional, sugerem que esse professor foi responsável por um deslocamento no qual os saberes estatísticos, antes ligados e subsidiários a outros campos – educação, psicologia, sociologia –, ganharam autonomia enquanto campo de pesquisa.

A seguir, em “A disciplina estatística no curso de pedagogia da USP: uma abordagem histórica”, Viviane Lovatti Ferreira e Laurizete Ferragut Passos detêm-se sobre a trajetória da disciplina no curso de Pedagogia da Universidade de São Paulo entre 1939, data de sua criação, e a década de 1990, quando a fixação de um novo currículo a exclui. No estudo dessa trajetória, as autoras lançam mão de um conjunto diversificado de fontes, que envolve legislação educacional, currículos do curso de Pedagogia em diferentes momentos, ementas da disciplina, materiais didáticos e, ainda, as memórias de diferentes gerações de professores graduados na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, que informam sobre o lugar da estatística educacional em sua formação.

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Uma questão mais contemporânea é analisada no último artigo deste bloco: o ensino de estatística e a formação do professor para esse ensino no Chile. Esse é o tema de “El conocimiento pedagógico del contenido de estadística en profesores de primaria”, escrito por Soledad Estrella, Raimundo Olfos e Arturo Mena-Lorca, da Universidade Católica de Valparaíso. Dentre outros aspectos, os autores se debruçam sobre as questões dos conteúdos estatísticos a ser ensinados, dos saberes necessários ao ensino desses conteúdos e da aprendizagem efetiva pelos alunos. Os dados da pesquisa foram obtidos por meio de um questionário respondido por 85 professores chilenos de educação primária e também por questionários destinados a seus alunos. A própria análise se vale da estatística e conclui, em concordância com outros trabalhos, que tanto são baixos os índices dos conhecimentos da estatística e das formas de ensiná-la por parte dos professores quanto são ínfimos os resultados por parte dos alunos, com grandes dificuldades no que se refere à produção e à leitura de dados estatísticos em suas variadas possibilidades de apresentação – tabelas, gráficos etc. Como proposta final, os autores destacam a importância da formação docente no sentido de operar com esse tipo de informação em três dimensões: a compreensão da formulação das variáveis em questão quando de um levantamento estatístico; a leitura dos dados obtidos; e o trabalho, mais difícil, de extrapolar a exposição do numérico e voltar-se para sua análise qualitativa.

Os três artigos finais deste número contemplam o tema das relações entre educação, trabalho no mundo contemporâneo e novas tecnologias. No primeiro, “El sistema dual de formación profesional alemán: escuela y empresa”, Jesús Alemán Falcón, da Universidade de Las Palmas de Gran Canaria, Espanha, analisa o modelo dual de formação profissional adotado em algumas regiões da Alemanha, constituído pela parceria entre escolas públicas e iniciativa privada no sentido de, a partir do nível secundário, favorecer uma formação que atenda às necessidades de mão de obra qualificada por parte das empresas do país. Segundo o autor, essa parceria é responsável pela pujança econômica alemã. Por meio da consulta de textos legislativos e de entrevistas com tutores dessa educação profissional, diretores de escola e empresários, argumenta sobre a importância da preparação prática da mão de obra por parte das empresas, seja no sentido do atendimento às demandas de mercado, seja na possibilidade de oferecer aos alunos um caminho a seguir. Nesse percurso, dá a conhecer, ainda, um pouco do sistema educativo alemão desde a escola primária.

A preocupação com a formação profissional do aluno é também o tema escolhido por Raquel de Castro Almeida e Miguel Chaves em “Empreendedorismo como escopo de diretrizes políticas da União Europeia no âmbito do ensino superior”. Segundo os autores, a tarefa de despertar nos alunos um espírito empreendedor foi tomada como diretriz de política pública em toda a Europa, promovendo alterações curriculares e administrativas nas diferentes instituições universitárias. Problematizando o conceito de empreendedorismo e trabalhando com aportes teóricos do campo da sociologia da educação, os autores analisam a emergência dessas orientações num contexto de transformação do capitalismo contemporâneo, com a intensificação de políticas econômicas marcadamente liberais e a diminuição da participação do Estado na esfera econômica, inclusive com a adoção de legislações trabalhistas

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mais duras e perversas para os trabalhadores. Como fontes, tomam os textos programáticos e relatórios de avaliação produzidos pela Comissão Europeia, órgão que representa os interesses dos países que pertencem à União Europeia, para pensar as relações entre a emergência dessas práticas voltadas a uma formação empreendedora no ensino superior e a dura realidade da crise do emprego e da flexibilização das relações de trabalho, interrogando sobre o sucesso, ou não, dessa iniciativa no sentido da inserção profissional dos egressos.

Michelle Prazeres estuda a relação entre educação e novas tecnologias na contemporaneidade, lançando um olhar crítico aos discursos – tão em voga – sobre a melhoria da qualidade de ensino e da qualificação profissional alicerçados na apologia do uso dos aparatos digitais. O título atribuído ao texto – “Empresa HD, aluno monitor: a Microsoft e a construção da crença nas tecnologias” – é já bastante esclarecedor quanto aos objetivos da pesquisadora, que, a partir de um corpo documental constituído por relatórios corporativos da Microsoft, procura conhecer a ação da empresa no campo da educação. O artigo mostra o lugar central da educação na plataforma expansionista da Microsoft e sua defesa da inclusão das tecnologias no que se refere a equipamentos, produtos e programas de ensino, bem como suas ações nas redes públicas e instituições privadas de ensino. Evitando tanto uma recusa absoluta das novas tecnologias quanto uma visão laudatória de sua adoção, o texto traz um olhar cuidadoso sobre as dimensões econômicas e políticas envolvidas nessa relação.

Os três últimos artigos citados apontam para aquilo que Richard Sennett (2006) chamou de “capitalismo flexível” e suas consequências para os trabalhadores: exige que sejam ágeis, afeitos a rápidas mudanças, que pouco peçam das leis ou delas dependam; que sejam empreendedores de si mesmos, que busquem a qualificação profissional constante, que conheçam e dominem todas as novas tecnologias, na esperança – frágil – de uma empregabilidade em si mesma transitória. E, nessa direção, convocam a pensar também sobre outros modos de enfrentamento das relações entre educação e trabalho, pautados por outros compromissos, mais fraternos, solidários e de cooperação2.

Fechamos este número com a preciosa entrevista do professor francês Max Butlen, doutor em Ciências da Educação pela Sorbonne e pesquisador da Universidade de Cergy-Pontoise. Em seu diálogo com as professoras Belmira Bueno e Neide Rezende, ambas da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, revelam-se a generosidade com que partilha o conhecimento e a seriedade da pesquisa que realiza acerca dos processos contemporâneos de formação de professores e sobre a leitura e sua abertura para o novo e para o outro.

O pesquisador analisa os modelos – instâncias, instituições, práticas – adotados na França para a formação de professores da escola primária e secundária, ao mesmo tempo em que

2- Dentre os artigos deste número de Educação e Pesquisa ora apresentados, quatro são também publicados em inglês, na versão online do periódico. São eles: “Memórias de docentes leigas no ensino rural da Região Colonial Italiana, Rio Grande do Sul (1930-1950)”, “La autoridad de los profesores universitarios. Un estudio centrado en relatos de estudiantes de Letras”, “A disciplina Estatística no curso de pedagogia da USP: uma abordagem histórica”, “El conocimiento pedagógico del contenido de estadística en profesores de primaria”.

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conta sua própria trajetória – desde os tempos de menino, aluno da escola pública francesa – e comenta alguns resultados do uso desses modelos; detém-se, ainda, na questão da leitura e das bibliotecas, em especial as escolares, e nos modos de avaliação das competências leitoras dos estudantes.

Sua familiaridade com o Brasil – ele foi consultor do Ministério da Educação na década de 1990 e mantém até hoje intensos contatos com diferentes universidades brasileiras – favorece abordagens comparadas, seja no que se refere à formação docente para a educação básica, seja na discussão sobre a leitura e as práticas leitoras dos alunos. Butlen rechaça a ideia, muito comum, de que os alunos são, via de regra, ineficientes e desinteressados diante da leitura, e discute mesmo a historicidade dessa prática e seus suportes. Por outro lado, reafirma a importância da escola para os alunos oriundos das classes populares e as possibilidades que ela pode oferecer em termos de ascensão social e formação cultural.

Maria Angela Borges Salvadori

Referências

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GIL, Natália de Lacerda. Campo educacional e campo estatístico: diferentes apropriações dos números do ensino. Educação e Realalidade, Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 511-526, maio/ago. 2012.

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JAEHN, Lisete; FERREIRA, Marcia Serra. Perspectivas para uma história do currículo: as contribuições de Ivor Goodson e Thomas Popkewit. Currículo sem Fronteiras, v. 12, n. 3, p. 256-272, set./dez. 2012.

SENNETT, Richard. Juntos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 2006.

LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude. Introdução. In: LEVI, Giovanni, SCHMITT, Jean-Claude. História dos jovens. v. 1, São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 7-17.

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, BrasilContato: [email protected]

Artigos / Articles

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Identidade nacional na Boêmia do século XV e a formação de uma paideia tchecaI

Thiago Borges de AguiarII

Davi Costa da SilvaIII

Resumo

No presente artigo, buscamos analisar a formação de um ideal de tchequidade tendo como foco o século XV. Para tanto, apoiados na historiografia a respeito do final da Idade Média, refletimos primeiramente acerca da possibilidade do uso dos termos nação e correlatos para referenciar-nos a esse período, mostrando como a associação entre os termos língua e nação é lembrada por pesquisadores. Na sequência, mostramos como essa associação ajuda a compreendermos o caso da nacionalização da Universidade de Praga, a partir do Decreto de Kutná Hora de 1409, acordado entre o rei Václav IV e a nação tcheca da universidade, visando a torná-la preponderante sobre as outras nações. Após a descrição do hussitismo e das guerras religiosas que se espalharam pelas terras históricas tchecas no início do século XV, refletimos a respeito da importância desse momento histórico para a formação de um ideal de nacionalidade tcheca, transmitido na forma de uma herança coletiva e de um conteúdo a ser ensinado às futuras gerações. Assim, tomamos de empréstimo o termo paideia para interpretar o ideal de tchequidade formado no período hussita e indicar seu alcance e futura apropriação por tchecos – desde a União dos Irmãos e Comenius a Tomáš Garrigue Masaryk, primeiro presidente da República Tchecoslováquia.

Palavras-chave

Educação tcheca – Tchequidade – Nação – Hussitismo.I- Esta pesquisa contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), na modalidade bolsa de pós-doutorado, da Fundação de Apoio à Faculdade de Educação (FAFE-FEUSP), na modalidade bolsa de iniciação científica, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). II- Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP, Brasil.Contato: [email protected] Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041822

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National identity in fifteenth century Bohemia and the formation of a Czech Paideia

Thiago Borges de AguiarI

Davi Costa da SilvaII

Abstract

In this article, we analyze the formation of an ideal of Czechness in the fifteenth century. Here, supported by the late Middle Ages historiography, we first reflect about the possibility of using the terms nation and others related to it to refer to that period, showing how the association between the terms language and nation is remembered by researchers. Next, we show how this association helps to understand the nationalization of the University of Prague, which occurred at the Decree of Kutna Hora, 1409, agreed upon by the King Wenceslas IV and the university’s Czech nation aiming to make it dominant over the other nations. After a description of Hussitism and religious wars that spread through the Czech historical lands in the early fifteenth century, we reflect on the importance of this historic moment for the formation of an ideal of Czech nationality, transmitted in the form of a collective heritage and a content to be taught to future generations. Thus, we borrow the term Paideia to interpret the ideal of Czechness formed in the Hussite period and indicate its scope and future appropriation by the Czechs – since the Czech Brethren and Comenius to Tomáš Garrigue Masaryk, the first president of Czechoslovakia Republic.

Keywords

Czech education – Czechness – Nation – Hussitism.

I- Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP, Brasil.Contact: [email protected] Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041822

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Introdução

É possível falarmos em nações e sentimento nacional na Europa do final da Idade Média? Essa é a pergunta com a qual iniciamos este artigo. Mas não nos propomos aqui a resolver essa questão, que já está em pauta há algumas décadas na produção historiográfica europeia. Partimos dela para pensarmos a possibilidade de associarmos um sentimento nacional à construção de um conjunto formativo de agentes, instituições, textos, ideias e ações em um determinado espaço e tempo. É seguindo as consequências dessa pergunta que construímos, neste artigo, um estudo acerca da ideia de nação tcheca no século XV e suas consequências educacionais.

O caso da nação tcheca é relevante para ser estudado. Em primeiro lugar, as terras históricas tchecas1 não fazem parte da história hegemônica, muito centrada nas histórias francesa, inglesa, alemã e italiana. Em segundo lugar, os conflitos religiosos, intensificados a partir do Concílio de Constança (1414-1418), fizeram das terras históricas tchecas um lugar religiosamente isolado, ajudando a fortalecer a formação de uma identidade nacional. Por fim, a cidade de Praga, capital da Boêmia, foi o local onde se instituiu a primeira universidade nacional nos modelos da universidade medieval.

Essa identidade nacional é formativa. Ela constitui um sentimento coletivo que, ao mesmo tempo em que agrega pessoas, normatiza padrões de comportamento, fortalece a língua nacional e exige a constituição de agentes educadores. Não estamos falando aqui de instituições escolares, embora elas estejam presentes. Neste texto, enfatizamos a constituição de um conteúdo a ser ensinado, de um ideal de homem, sem deixar de lado alguns dos sujeitos educadores. É nesse sentido que estamos tomando por empréstimo o termo paideia – profundamente analisado por Jaeger

1- Consistem nas regiões da Boêmia, Morávia, Silésia e Lusácia, esta última se germanizando ainda no século XIV. A primeira, historicamente, destaca-se no período e é o centro de nossas reflexões neste artigo.

(2001) – para pensarmos de modo amplo a formação do povo tcheco.

Desse modo, depois de discutirmos a possibilidade do uso do conceito de nação no final da Idade Média, com ênfase na região das terras históricas tchecas, concentraremos nossa atenção no início do século XV, com a efetiva nacionalização da Universidade de Praga. Então, poderemos discutir uma reunião de elementos que nos ajudem a perceber o fortalecimento do sentimento nacional como constituição de uma paideia tcheca. Essa é nossa proposta para este texto.

Nacionalismo e nação tcheca

A historiografia tende a, tradicionalmen-te, colocar o surgimento dos estados nacionais no período da Modernidade e a recusar a ideia de sentimento nacional no período medieval. No entanto, observamos que um dos problemas centrais para se caracterizar as origens do na-cionalismo e das nações (ou vice-versa, depen-dendo do autor que formula essa questão) en-volve definir os limites físicos e culturais dentro dos quais as pessoas se consideram parte de um mesmo grupo. Uma nação normalmente requer a imaginação de uma comunidade territorial-mente grande que englobe aquelas nas quais um indivíduo circula diariamente.

De acordo com Seltzer (2005, p. 217 e seguintes) e Scales (1999, p. 328 e seguintes), apesar de sua longa tradição, a tese modernista ganhou força a partir das publicações de Ernest Gellner e Benedict Anderson, em 1983, nas quais argumentam que as origens do nacionalismo europeu estariam relacionadas ao advento das sociedades modernas, momento no qual mudanças estruturais nas sociedades europeias seriam responsáveis por multiplicar a frequência das comunicações e contatos interpessoais, criando a possibilidade e a necessidade de ideais nacionalistas.

Durante certo tempo, os estudiosos das épocas pré-modernas agiram com muita cautela ao atribuir o termo nação às comunidades

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políticas anteriores à Modernidade. Em vez disso, acabaram por preferir expressões como “reinos e principados, cidades-estados, e impérios [...], tribos, paróquias, clãs e famílias” (SELTZER, 2005, p. 220, tradução nossa). No entanto, tal formulação foi insuficiente para outro grupo de estudiosos, que, lidando com manifestações de sentimento nacional muito semelhantes às da época moderna, contestaram as teses modernistas. É o caso de Susan Reynolds, que, ao estudar comunidades políticas medievais, argumenta que “a nação em si mesma é o produto da crença de seus membros de que ela existe” (REYNOLDS apud SELTZER, 2005, p. 220, tradução nossa).

Estudando documentos da época, a pesquisadora defende que o fato de pessoas compartilharem uma mesma lei e governo é suficiente para promover a solidariedade e as fazer se afirmar como um mesmo povo. Leiamos sua afirmação (REYNOLDS apud SELTZER, 2005, p. 221, tradução nossa):

[...] um dos mais importantes desenvolvimentos políticos dos séculos após 900 foi que, em muitas áreas, as lealdades da realeza acabavam por coincidir com as solidariedades de suposta linhagem comum e de lei. Reinos e povos acabavam por parecer idênticos – não invariavelmente, mas com suficiente frequência para a coincidência entre os dois parecer a norma para os contemporâneos.

De acordo com essa autora, o termo natio aparece em documentos medievais não apenas relacionado às comunidades de estudantes e professores dentro das universidades. Ele expande-se para além desse sentido, muitas vezes sendo usado como sinônimo de gens e populus e, portanto, encontrando sua melhor tradução no termo povo. É o que ela mostra citando uma definição de natio feita em 900 pelo canonista Regino Prumiensis, que é surpreendentemente parecida com a moderna: “As várias nações/povos [diversae nationes

populorum] diferem-se na linhagem, língua e leis” (REYNOLDS apud SELTZER, 2005, p. 221, tradução nossa).

Entendemos que, nesse debate, a proposta feita anos antes pelo historiador francês Bernard Guenée (1981) continua válida e encontrar-se-á com a visão desta historiadora inglesa. Para esse autor, o primeiro indício da existência do sentimento nacional é a utilização de uma palavra para nomear uma comunidade. Ele afirma que na Antiguidade, por exemplo, o rio Reno separava a Gallia da Germania, porém, desde o início da Idade Média, novos termos surgiram do próprio povo. Os nomes dos povos no fim da Idade Média provam, por existirem, um “sentimento nacional elementar” e sustentam, traduzem e determinam, por sua própria natureza, “alguns mitos fundamentais da nação e do Estado que os possuem”.

Os rios foram substituídos pelas línguas na delimitação de uma nação. Nos séculos XIV e XV, embora não houvesse uma coincidência perfeita entre Estado, nação e língua, esse era o ideal a ser atingido na época, sendo a língua um elemento utilizado para distinguir um Estado do outro, formando estados nacionais. A utilização educativa e reformadora do vernáculo no mundo eslavo é um exemplo de como a língua torna-se um elemento agregador e delimitador. Denis (1985, p. 298) exprime a força que a língua eslava possuía na formação do sentimento nacional, em oposição a uma autoridade imposta pela língua latina:

Bem depressa a língua latina, veículo da cultura e aceite sem contestação pela nossa civilização ocidental, deveria ser rejeitada pelas nações eslavas: ela simbolizava, mercê da sua utilização generalizada, o aniquilamento das restantes civilizações. Para elas, a resistência à autoridade imposta, religiosa e política, a sobrevivência do património cultural já adquirido, passava pela salvaguarda da língua materna. Daí a importância e o êxito das correntes de pensamento, laico ou religioso, que

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compreenderam o facto e procederam para que, em matéria de educação, a língua materna fosse o fundamento de todo o conhecimento. Poder-se-á afirmar que o antigo esloveno continua a ser hoje o cimento entre todos os Eslavos.

A língua, contudo, não foi o único ele-mento agregador de uma nação. Também a reli-gião e a história desses povos reuniram-se para a constituição do sentimento nacional. Com re-lação à primeira, está a religião cristã: sendo tão difundida na Europa, por que não formar uma grande nação cristã? E a resposta a essa questão são os santos, pois “o sentimento de uma na-ção se traduz, se torna preciso e se fortifica pela escolha de um santo protetor” (GUENÉE, 1981, p. 101). Diversos são os exemplos que mostram isso, como São Venceslau, na Boêmia, São Denis, na França, São Jorge, na Inglaterra, Estanislau, na Polônia, entre outros. Desde o século X, esse tipo de associação entre Estado e santo, como verificado na Boêmia, estava presente em todos os Estados no fim da Idade Média.

Com relação à história, afirma Guenée que, desde o século XII, diversos povos buscavam raízes mais antigas para justificar sua superioridade nacional. Apoiavam-se em personagens como Bruto e Artur, em tempos e lugares como Roma e Tróia. No caso tcheco, sabemos da história do Grande Pai Tcheco (Praotec Čech), fundador mítico do povo tcheco, sua filha Libuše, aquela que vislumbrou uma terra rica à soleira da montanha (prah, em tcheco, daí o nome da capital, Praha, de acordo com uma das interpretações tradicionais) e do rei Venceslau, que, de tão bondoso, era capaz de pedir esmolas pelos pobres.2 Esses mitos fundadores tchecos foram organizados por um cronista de nome Cosmas. Seu Chronica Bohemorum data do século XII e serviu de base para coletâneas de lendas tchecas, como o famoso trabalho do historiador Alois Jirásek, Staré pověsti české [Antigas lendas tchecas], de 1894.

2 - Desde o século XI, ele é considerado governante eterno das terras tchecas.

Esse sentimento nacional, variável entre os países, exige uma diferenciação entre o nativo e o estrangeiro. Este último, vindo de outros lugares, deixou de ser alguém de outra senhoria, de outra justiça, de outra cidade para ser aquele que nasceu fora do reino. Acompanhado a isso, surgiu o sentimento de distinção das características de cada país e cada povo:

[...] onde a inveja dos judeus convivia com a perfídia dos persas, a sabedoria dos gregos, a gula dos gauleses, o orgulho dos francos, a cólera dos bretões, a crueldade dos hunos ou a deslealdade dos habitantes de Poitou (GUENÉE, 1981, p. 110).

Está na ordem dessas distinções o complexo antagonismo entre tchecos e alemães. Desde os remotos tempos do Império da Grande Morávia do século IX, comumente apontado por historiadores como a primeira grande unidade política eslava na região das atuais Eslováquia e República Tcheca, encontramos na bibliografia indícios desse antagonismo. Thomson (1945, p. 11), por exemplo, relata que, em 846, Luís, o Germânico, “subjugou a Morávia, mas sofreu uma derrota quando atacou os eslavos da Boêmia”. Sobre o século X, findo o referido império e inaugurado o principado dos Přemyslidas, Čornej et al. (1992, p. 35) comentam a retaliação sofrida pelo então príncipe Václav quando, durante seu reinado (por volta de 907-935), teve de resistir a uma represália militar do saxão Heinrich der Finkler (Heinrich I da Germânia), após tomar para si o principado de Kouřím.

Scales (1999, p. 331) conta-nos acerca da enorme quantidade de colonos alemães que migraram para o reino da Boêmia a pedido dos primeiros Přemyslidas, seja como agricultores ou ingressando nas cortes reais, seja compondo grande parte da classe de comerciantes urbanos ou, ainda, fundando cidades inteiramente alemãs.

Tudo isso sem contar com os quase trezentos anos de dominação austríaca sobre Boêmia e Morávia – da batalha de Bilá Hora em

314314 Thiago Borges de AGUIAR; Davi Costa da SILVA. Identidade nacional na Boêmia do século XV e a formação de...

1620 à fundação do Estado da Tchecoslováquia em 1918 – e o período do Protetorado (1938 - 1945), quando Boêmia e Morávia estavam sob a influência direta do Terceiro Reich. Nas palavras de Thomson (1945, p. 14):

[...] se esse conflito entre eslavos e teutô-nicos é realmente a chave para toda a his-tória tcheca, ou não, pode ser discutível, mas não há dúvidas de que houve muitos períodos da história tcheca em que esse an-tagonismo racial foi a questão primordial.

Isso remete-nos à leitura de Scales (1999), ao mostrar que as expressões tchecos e alemães não só invocavam um conjunto de pré--noções firmemente estabelecidas já no século XIV, mas também estavam fundamentalmente relacionadas com a ideia de nação. A pergunta que o autor se faz é se é possível, na análise dos textos de época, encontrar pistas sobre a au-toconsciência daqueles colonos alemães e seus descendentes: eles se consideravam alemães, tchecos, uma comunidade à parte das duas na-cionalidades, ou então absolutamente não se consideravam uma comunidade? A esse respei-to, diz o autor:

Em resumo, parece bastante razoável supor que esses colonos devem ter seguido um ca-minho de não forjar uma ideia separada de solidariedade, mas sim de emprestar seu apoio à noção mais ampla de comunidade “Boêmia” centralizada na monarquia, da qual seu bem--estar depende em grau significante. (SCALES, 1999, p. 333, tradução nossa).

Como esses Bohemian Germans [alemães da Boêmia] receberam apoio da monarquia para lá chegarem e para lá continuarem, era de se esperar que se sentissem integrados aos tchecos. Mas não é isso que a leitura dos documentos da época mostrou. Lendo a crônica de Peter von Zittau, abade do mosteiro de Zbraslav no século XIV e reconhecido como o autor da Crônica de Zbraslav (conhecida também como

Crônica de Köningsaal, nome alemão da região onde se encontra o mosteiro), Scales identifica a dificuldade do autor em se referir a esse grupo intermediário entre alemães e tchecos.

O próprio Peter era um desses colonos alemães na Boêmia e se considerava um boêmio, leal ao Reino da Boêmia, e opositor às tentativas de ingerência externa praticadas pelos reinos alemães. Em sua crônica, escreveu que “os boêmios eram o seu povo, seu gens” (SCALES, 1999, p. 336, tradução nossa). No entanto, à primeira vista integrado à comunidade do reino, Peter von Zittau acaba por denunciar a ausência da integração completa dos alemães da Boêmia. Comentando a preocupação da rainha tcheca Guta Minsterberská em fazer justiça igualmente a todos seus súditos, o cronista afirma: “os tchecos (Bohemi) [...] mantêm antigas rixas (rixae veleres) contra a população alemã (Theutonici)” (SCALES, 1999, p. 337, tradução nossa).

Nesse ponto, Scales chama a nossa atenção para a ausência de um termo específico em referência aos alemães da Boêmia: eles são simplesmente alemães (Theutonici). Afirma o autor:

[...] a medida material da etnia é a língua: gens e linguagium são usadas aqui intercambiavelmente. A ideia de a preponderância da língua tcheca (“boêmia”) ser o elemento fundamental em ser boêmio não era incomum nos escritos relacionados às terras da Boêmia; para citar apenas um famoso exemplo, o imperador Karel IV – que, como filho de uma mãe Přemyslida, tinha o direito fundamental de ser considerado um Bohemus – recorda em sua Autobiografia como, retornando à Boêmia como um jovem homem, reaprendeu o tcheco de sua infância até o ponto de falar “igual a outro Boêmio”. (SCALES, 1999, p. 337-338, tradução nossa)

Esse é um dos principais motivos que levaram Scales a concluir que os alemães da Boêmia encontravam-se “à margem da comu-

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nidade”: leais súditos dos monarcas tchecos, todavia não estavam completamente mesclados com os tchecos sob a identidade boêmia. Sendo o fator classificatório predominante o idioma, os alemães da Boêmia do século XIV encontra-vam-se numa posição bastante ambígua, sem se considerar como um grupo à parte (vistas as di-ferenças, inclusive linguísticas, de suas origens alemãs), nem alemães plenos (pois eram súditos dos tchecos) e nem tchecos plenos (pois eram de natio-gens-linguagium diferentes).

Essa diferenciação não ocorria apenas entre tchecos e alemães. Kolbuszewski (1939) apontava, já no final da década de 1930, para a desconfiança que os poloneses tinham dos tchecos durante a Idade Média, em função de sua proximidade com os alemães. O que, em um primeiro momento, pode parecer contra-ditório ao que Scales mais recentemente pro-pôs, na verdade, é uma informação que apenas sustenta a posição em que os tchecos estavam, no final desse período, constituindo-se como um grupo delimitado e diferenciado dos não--tchecos. Tanto isso ocorreu que seus vizinhos muito mais próximos linguisticamente (o polo-nês e o tcheco são línguas um tanto próximas) sentiam-se diferentes e desconfiados.

Seltzer (2005) segue no mesmo caminho da coincidência entre os termos natio, gens e linguagium, na análise do posicionamento político-religioso da classe burguesa tcheca entre os séculos XV e XIV. Para tanto, analisa o conteúdo de Staré letopisy české, uma coleção de crônicas escritas por autores anônimos entre 1430 e 1530, que são frequentemente usadas como fonte primária pelos historiadores do hussitismo3 e da Igreja Utraquista4.

O autor sustenta que um dos objetivos dos autores das crônicas contidas em Staré leto-pisy české, em sua maioria burgueses utraquistas de Praga, era ajudar a propagar as reformas por

3- Termo genérico posteriormente atribuído aos movimentos religiosos de caráter reformista nas terras históricas tchecas, especialmente nos séculos XV e XVI.4- Igreja de caráter nacional tcheca que se tornou oficial no século XV. Inicia-se como um dos grupos hussitas do período que ofereciam a comunhão em duas espécies para os leigos.

meio de sua escrita. No entanto, Seltzer (2005) ressalta que os motivos pelos quais as pessoas apoiavam, ou não, os hussitas eram os mais va-riados possíveis, muitas vezes sendo pouquís-simo relacionados com motivações teológicas, complexas demais para a grande maioria dos habitantes do reino. Portanto, para cumprir seu objetivo, os autores de Staré letopisy české pro-curaram unir todos os tchecos sob uma causa nacionalista. Essa solução, consciente ou não para os escritores tchecos, sustentava-se, pois mostrava que “um determinado grupo linguís-tico poderia ter um destino coletivo” (SELZER, 2005, p. 207, tradução nossa), ao conectar a na-cionalidade à força do fervor religioso. E, para os escritores, tal procedimento consistia em fi-gurar os estrangeiros:

[...] como sendo traiçoeiros, pérfidos e bárbaros, de modo a fazer um apelo a todos os tchecos, mesmo àqueles que rejeitavam o utraquismo, impelindo-os a colocar sua origem étnica à frente dos outros laços para o bem-estar geral de toda a nação tcheca.

No entanto, como distinguir os tchecos dos não-tchecos? Num momento em que tchecos e estrangeiros, principalmente alemães, vivam lado a lado nas cidades e cortes da Boêmia e numa época na qual as questões a respeito da identidade nacional eram completamente desconhecidas para a maioria das pessoas, o idioma mostrou-se um dos elementos fundamentais de diferenciação. Seltzer (2005) evidencia que língua e nação estão tão intimamente conectadas que foram inclusive usadas como sinônimos na Boêmia do final da Idade Média. O autor toma como exemplo uma frase escrita pelo autor do texto Staré letopisy české para mostrar a polissemia do termo tcheco jazyk naquele tempo. De acordo com a citação de Seltzer (2005, p. 228-229, tradução nossa), o autor do texto, buscando sensibilizar seus leitores para que continuassem sua obra, faz um apelo a “alguma pessoa, para a

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qual o bem-estar geral da nação tcheca [jazyka českého] é fundamental”. O historiador explica:

Jazyk, em tcheco moderno, significa idioma ou língua, o que também significava em tcheco arcaico. Mas, pelo menos desde o início do século XIV, jazyk também se referia a todas as pessoas que falavam um idioma e tinham um território específico em comum. A expressão moderna para “nação”, národ, algumas vezes significando também “raça” ou “povo”, é semanticamente muito próxima ao natio latino, derivando, como essa última expressão faz, do verbo narodit, “nascer”. [...] Národ e jazyk são algumas vezes usados como sinônimos a partir do século XV [...]. (SELTZER, 2005, p. 228-229, tradução nossa).

Assim sendo, Seltzer (2005) diz que, até a metade do século XVI, quando o termo národ começa a ser usado nos escritos em tcheco, jazyk era o termo dominantemente usado como tradução de natio/gens e língua. O autor completa:

Nesse sentido, existe uma clara conexão em tcheco entre as ideais de “nação” (ou “povo”) e “língua”, conexão que era invocada especificamente para excluir aquelas pessoas, principalmente os alemães, que viviam na Boêmia, mas não falavam tcheco. (SELTZER, 2005, p. 229, tradução nossa)

Ao considerarmos essa coincidência semântica, podemos enxergar como seria possível a imaginação de comunidades nacionais no final da Idade Média. Na Boêmia do século XV, falar tcheco era um elemento essencial para ser tcheco.

Universidade de Praga efetivamente nacionalizada

A coincidência medieval entre os termos jazyk e národ não gera polêmica apenas entre

os estudiosos da atualidade. Ela também está nas entrelinhas de um famoso episódio da história tcheca que, não por acaso, consistiu em uma disputa entre nacionalidades. Trata-se da nacionalização da Universidade de Praga, a partir do Decreto de Kutná Hora.

Durante o governo de Carlos IV [Karel IV em tcheco], no século XIV, Praga tornou-se capital do Sacro Império Romano-Germânico. Um conjunto de intervenções urbanísticas, econômicas, legais e culturais foi conduzido por um imperador internacional, que passou sua infância em Paris e, ao voltar à sua cidade natal, investiu em fazer dela algo que hoje chamaríamos de uma cidade cosmopolita.

Como imperador, ele institui uma Bula de Ouro (1356) na qual coloca o rei da Boêmia em destaque nos eventos do Sacro Império, deixa as terras tchecas legalmente administradas somente por tchecos, bem como estabelece que os habitantes da Boêmia só pode ser julgados pelos seus conterrâneos. Além disso, ele fortalece o arcebispado de Praga, dando-lhe a incumbência de coroar o rei da Boêmia (TANNER et al., 1968, p. 161 e seguintes).

Mas uma de suas atuações, a mais relevante para este artigo, foi a fundação da primeira universidade nacional em 1348, para a qual convidou professores tchecos, alemães e poloneses, entre outros. Praga passou a atrair estudantes de várias regiões do império. A Universidade de Praga foi fundada seguindo o modelo da Universidade de Paris (Confira: LE GOFF, 2003, p. 102 e p. 178; SPINKA, 1968, p. 25 e p. 96-98). Seus alunos e professores eram organizados em quatro grupos, denominados nações: poderiam pertencer à nação bávara, saxônica, polonesa ou boêmia. O objetivo dessa organização era facilitar a tomada de decisões do Conselho, ordenando o corpo acadêmico nesses quatro grupos e oferecendo-lhes um voto cada. Assim sendo, os integrantes de cada nação deveriam articular-se de modo a conseguirem decidir os votos.

Sua carta de fundação registra um discurso real de valorização dos tchecos. Lembremos que as universidades, até então, não

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haviam sido instituídas pelos magistrados, mas surgiram das corporações de ofício, com seus mestres e estudantes. Na carta de fundação, originalmente escrita em latim, o imperador e rei tcheco propõe uma universidade para os tchecos, sem que eles precisem ir a países estrangeiros para buscarem o saber, como vemos neste recorte:

Deus se alegra da abundância natural de cultura em nossa terra, que vemos, em nossos dias, [e que] foi condecorada com um grande número de homens instruídos. E, assim, para que os nossos habitantes fiéis tchecos, incessantemente famintos pelos frutos do conhecimento, não precisem ir a países estrangeiros pedir esmolas, mas possam encontrar no reino uma mesa preparada para as refeições... (KAREL IV, 1348, tradução nossa a partir da versão tcheca).

Mas essa universidade nacional não era tão tcheca assim. A questão mais problemática é o fato de que a divisão em nações acabava empoderando professores e alunos de origens alemãs, de número bem maior que aquele dos de outra origem, nos primeiros anos da universidade. Teoricamente, estariam divididos em duas nações, bávara e saxônica, o que lhes rendia dois votos, contrabalanceados pelos dois votos das nações eslavas. No entanto, os alemães eram também a maioria dentro da nação polonesa e, além disso, estavam também muito presentes na nação boêmia. Assim, eles acabavam tendo, na prática, três votos no Conselho da Universidade, além de poderem influenciar o quarto voto.

Nas primeiras décadas a partir de sua fundação, os alemães compunham a maioria dos integrantes da universidade. No entanto, cinquenta anos depois, a situação tinha se alterado e os tchecos os superaram em quantidade. Porém, a maioria numérica não lhes rendia poder de fato. Essa questão acabou, por fim, engendrando uma disputa entre nacionalidades universitárias, a qual, como

veremos, ampliar-se-á para além do âmbito daquela instituição.

No início do século XV, circulavam pela Europa os escritos do clérigo inglês John Wycliff. Alcançando a boêmia, as ideias desse severo crítico do poder clerical tiveram grande recepção entre os mestres tchecos da universidade, adeptos à filosofia realista, mas sofreram forte oposição dos alemães, ligados à filosofia nominalista, fortalecendo a disputa entre as nações. É o que evidencia uma frase de Jan Hus, professor da Universidade de Praga, escrita nas margens de um manuscrito de Wycliff, que ele copiava: “ha ha, alemães, ha ha, fora fora” (SELTZER, 2005, p. 232, tradução nossa).

Tal situação fez com que os tchecos da universidade buscassem ajuda política. E o momento era bastante oportuno para isso. Naquele tempo, Venceslau IV [Václav IV em tcheco], rei da Boêmia e antigo imperador do Sacro Império Romano, deposto em 1400 por Ruprecht, eleitor do Palatinado, buscava o apoio da Universidade para abandonar o papa de Roma, apoiador de seu rival, durante os eventos do Concílio de Pisa, incumbido de resolver o cisma papal. Em 1409, havia dois papas, um estabelecido em Avignon e outro em Roma, um excomungando ao outro e defendendo ser o único verdadeiro. Se Venceslau participasse na resolução desse cisma, poderia ganhar certo capital político.

Como os alemães da universidade negaram o apoio, Venceslau IV e os tchecos firmaram um acordo: em troca do apoio durante o Concílio, os tchecos receberiam o comando da universidade. Tal acordo foi formalizado no documento que ficou conhecido como Decreto de Kutná Hora (1409), segundo o qual a nação boêmia teria o direito a três votos, enquanto as outras três nações votariam em conjunto sob um único voto.

O que mais nos chama a atenção nesse caso é a forma como foi redigido o texto do Decreto. Conta-nos Seltzer (2005, p. 233) que o texto inicia com a afirmação de que o rei tcheco, apesar de responsável pelo interesse de todos os

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súditos deve, de acordo com o direito natural, cuidar principalmente das necessidades do povo de sua origem. A partir disso, o texto critica a proeminência da nação alemã [nacio Theutonica] dentro da universidade, acusando-os de usurpar o controle dos herdeiros por direito do Reino, “a nação tcheca [nacioque Boemica, eiusdem regni iusta heres]”. Assim:

[...] considerando esse degradante estado das coisas, o rei move-se imediatamente para consertar essa situação, dando à ‘nacio Boemica’ os três votos originalmente possuídos pela ‘nacio Theutonica’. (SELTZER, 2005, p. 233, tradução nossa)

O documento surpreende pela interpretação que dá à situação dentro da Universidade de Praga. Formalmente, as nações do Conselho não se baseavam em critérios como idioma - afinal, a língua franca da universidade era o latim - mas simplesmente nas referências geográficas dos integrantes. No entanto, a questão é posta no texto como sendo uma diferença entre nacionalidades: a justiça só seria alcançada se os tchecos recebessem os três votos usurpados pelos alemães.

Os alemães da universidade reagiram prontamente a essa mudança nas regras. No fim, vendo que seus protestos eram inúteis, decidiram por abandonar em massa a Universidade de Praga. Muitos dos mestres e alunos acabavam fundando a Universidade de Leipzig, enquanto alguns outros se mudaram para outras universidades, sendo uma delas a Universidade de Viena. Os antigos mestres alemães da Universidade de Praga acabariam por se tornar alguns dos mais implacáveis inimigos dos hussitas nos anos seguintes.

Com o Decreto de Kutná Hora, a Universidade de Praga tornou-se efetivamente nacional, aqui, tcheca. Quando direcionamos nosso olhar para dois sujeitos em dois diferentes episódios, confirmamos essa mudança. O primeiro é o professor e clérigo Jan Hus. Conhecido pregador e educador (AGUIAR, 2012),

famoso na história das religiões por suas posições reformistas antes da Reforma Protestante, ele esteve presente em Kutná Hora para debater com o então reitor da universidade, Henning de Baltenhagen, a questão da posição que a instituição defenderia oficialmente diante do Cisma. O reitor, alemão, defendia o papa romano, enquanto Hus, tcheco, defendia a neutralidade.

Essa oposição tornou-se pública e Baltenhagen acusou Hus de heresia, fazendo com que o então arcebispo de Praga, Zbyněk, se posicionasse contrário ao clérigo tcheco. De acordo com Oberg (1971), apesar do apoio real obtido pelo decreto de Kutná Hora, e da consequente posição de reitor da universidade que Hus obteve após o decreto, essa acusação de heresia manteve-se e, podemos dizer, intensificou-se, ao longo dos anos, tornando impossível um resultado diferente no Concílio de Constança. Afirma o autor (OBERG, 1971, p. 46) que “os fatos relacionados com os dias de Kutna Hora revelam influências políticas e morais fortes que iriam pesar seriamente na condenação de Hus”. Este foi condenado à fogueira pelo concílio e morto em 6 de julho de 1415.

O segundo é Jerônimo de Praga [Jeroným Pražský em tcheco], também presente à reunião de Kutna Hora. Esse clérigo, mestre da Universidade de Praga e colega de Jan Hus, diferenciava-se daquele por ser “um reformador de tipo incendiário, ou agitador popular” (BERNARD, 1958, p. 5, tradução nossa) e que se preocupava em espalhar as ideias reformistas para além da Boêmia. Os documentos a seu respeito são mais escassos do que os hoje existentes sobre Hus.

Durante a estadia de Jerônimo em Viena, ele, cujo “entusiasmo invariavelmente prevalecia sobre a discrição” (BERNARD, 1958, p. 5), é relatado pregando as ideias reformistas. No entanto, o momento não era dos mais propícios, visto que a cidade passara anos antes por turbulências sociais: sob a liderança da universidade, que radicalizou uma posição conservadora após alguns de seus membros terem sidos acusados de wycliffismo, as autoridades locais estavam reprimindo qualquer

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tipo de nova agitação. Assim sendo, Jerônimo acaba sendo preso.

Ali, ele foi julgado. Bernard (1958) aponta que as acusações gradualmente deixam de ser por sua adesão às ideias heréticas de Wycliff e pelas agitações em outras cidades e passam a ser a sua participação nas contendas que resultaram no Decreto de Kutná Hora:

Quando, mais tarde, Jerônimo censurou [Johann] Butzbach, dizendo que aquele ato [de lhe apontar o dedo durante uma de suas palestras] não era compatível com o amor cristão, Butzbach respondeu que o próprio Jerônimo exibiu uma acentuada falta de amor cristão ao fazer parte do quodlibet que precedeu o Decreto de Kutná Hora. Essa história deixa bastante claro que os inimigos mais irreconciliáveis de Jerônimo em Viena eram os professores alemães que deixaram Praga em 1409, e é ainda provável que foram eles os responsáveis por sua denúncia ao Official [Grippenperk]. (BERNARD, 1958, p. 7).

Após uma primeira fase do julgamento, a qual se baseava nas acusações feitas pelo promotor e nas defesas de Jerônimo, o julgamento foi adiado para os dias seguintes. Visto que as autoridades temiam uma fuga do clérigo, este foi obrigado a jurar, sob pena de excomunhão, que ficaria na cidade durante todo o julgamento. No entanto, quando este foi retomado, seguiu para o depoimento de quinze testemunhas de acusação, “quase todas as testemunhas sendo alemães ou austríacos que deixaram a Praga em 1409 [...]” (BERNARD, 1958, p. 9). Observando que o julgamento caminhava para uma inerente condenação, durante essa sequência de testemunhos, Jerônimo foge da cidade de Viena. Nas palavras de Bernard (1958, p. 8):

Como quase todas as testemunhas foram adversamente afetadas pelas consequências do Decreto e sendo a corte obviamente

simpática aos pontos de vista dessas testemunhas, só poderia haver um único veredito: Jerônimo seria condenado como herege, como vingança por Kutná Hora.

No final das contas, o clérigo acabaria, cinco anos depois, preso, condenado e queimado na fogueira, do Concílio de Constança, em 1416, assim como o fora seu mestre, Jan Hus, no ano anterior. É claro que não podemos dizer que o Decreto de Kutná Hora seja a causa única e imediata da morte de Hus e Jerônimo, mas fica visível que o calor de uma disputa envolvida por um sentimento nacional alimentou a fogueira que os queimou. E esse calor só aumentou com o passar dos anos.

Formação de um projeto de educação: língua, religião e nação

Com a morte de Hus e Jerônimo, uma grande revolta toma conta de seus partidários, que, em poucos anos, já formaram exércitos em busca de uma terra prometida, cada vez mais afastados da Cúria Romana. Ambos foram queimados em terras alemãs. Isso só fortaleceu aquele grupo de professores tchecos que queriam uma universidade nacional. Progressivamente, ao longo do século XV, as negociações políticas e religiosas, levadas a cabo tanto pelos representantes da universidade quanto pelos clérigos que se diziam seguidores de Hus, passam a assumir de forma cada vez mais forte um teor nacionalista. Essa identidade nacional tcheca assume um teor de autovalorização religiosa em oposição aos alemães. Ser um verdadeiro fiel e um verdadeiro tcheco era a mesma coisa (SELTZER, 2005, p. 268, tradução nossa).

Em 1420, dois grupos hussitas tradicionalmente conhecidos como utraquistas e taboritas chegaram a um acordo para tentar superar suas diferenças. Conhecido como “Quatro artigos de Praga”, esse documento definia os princípios religiosos básicos que compartilhavam os diferentes grupos hussitas. O historiador Howard Kaminsky, citado por

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Atwood (2009, p. 94, tradução nossa) traz-nos os pontos desse acordo:

1. Nós apoiamos a ministração do corpo e do sangue do senhor aos leigos nas duas espécies, pois [...] essa foi a instituição do Cristo e [...] dos primeiros apóstolos e da Igreja Primitiva [...], como o Concílio de Constança nos permitiu.2. Nós apoiamos a adequada e livre pregação da palavra de Deus e de toda a sua verdade.3. Todos os clérigos, do papa para baixo, deveriam desistir de sua pompa, avareza e propriedade inadequada na superfluidade sobre os bens temporais e eles deveriam servir como um modelo vivo para nós.4. Nós apoiamos a purgação e a cessação de todos os pecados mortais públicos de cada um em sua própria pessoa. E apoiamos a limpeza do reino e da nação da Boêmia de toda a falsa e maligna calúnia e, nesse sentido, apoiamos o bem comum de nossa terra.

Esses pontos foram utilizados ao longo dos anos seguintes como fundamentos das negociações das igrejas tchecas com a Igreja de Roma. No Concílio de Basileia (1433), o primeiro destes artigos foi aprovado, embora tenha sido seguido apenas pelos grupos hussitas e nunca pela Igreja, conforme explica Atwood (2009, p. 94, tradução nossa):

Os artigos 2 e 3 mais claramente refletem o movimento de pobreza apostólica que era o ensino central da União dos Irmãos. O mais controverso dos quatro artigos provou ser o quarto, que convocava os fiéis para purgar a Boêmia do pecado e da falsidade. Isso não foi muito tempo antes de Žižka tomar esta tarefa para si.

A União dos Irmãos, ao qual o autor se refere, é o grupo religioso formado com inspiração nas ideias de Petr Chelčický, que,

na geração seguinte à de Jan Hus, opôs-se à divisão tripartite da sociedade medieval e propôs o pacifismo como prática de vida diária. Sua proposta pacifista era diretamente oposta à atuação de Jan Žižka, guerreiro taborita que liderou os exércitos tchecos contra as cruzadas enviadas à Boêmia antes do Concílio de Basileia (AGUIAR, 2015). É nesse grupo que, cerca de um século e meio depois, surgirá o educador Jan Amos Comenius.

Analisando os artigos, percebemos que não apenas as questões da comunhão em duas espécies, da liberdade de pregação e da pobreza do clero estavam presentes nos primórdios dos movimentos hussitas do início do século XV. Havia também uma questão nacionalista, fortemente presente no quarto artigo. A questão religiosa estava indissociada da questão nacional e esta da língua. Só é possível compreendermos o debate religioso, bem como as ações educacionais nele envolvidas, se a esses agregarmos, no caso tcheco, um ideal nacionalista. Portal (1968, p. 13-14) afirma que:

Maior importância teve a agitação da Reforma, da qual a heresia hussita foi, a partir do séc. XV, a primeira manifestação. Movimento de revolta social e nacional, sem dúvida, mas de essência religiosa, e que transbordou para os países vizinhos, sobretudo para a Polónia, o hussitismo marcou duradouramente a mentalidade do povo tcheco.

Atentemos para a proposta do historiador francês de considerar o hussitismo como um movimento social e nacional de essência religiosa, que marcou a mentalidade do povo tcheco. O que aconteceu no século XV, e se estendeu por pelo menos mais um século entre os tchecos, deixou marcas na história desse povo e no seu modo de agir e de pensar que persistem até os dias de hoje, se não como ação consciente no mundo, pelo menos como mito fundador. Esse movimento “social e nacional de essência religiosa” constituiu um

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ideal de tchequidade5, do jeito tcheco de ser e agir no mundo.

Nicolau Sevcenko, em seu prefácio às cartas do então futuro presidente da República Tcheca, Václav Havel, escritas da prisão na década de 1970, mostra o lugar desse movimento na formação da imagem de firmeza e esperança para os tchecos nos momentos difíceis de sua história:

Num dos momentos mais prostrantes de seu longo aprisionamento, quando já sentia faltarem-lhe as forças, Václav Havel recebeu uma imagem de um amigo artista que lhe fez inflamar o coração e recobrar o ânimo. Era um retrato de Comenius chorando por Praga. (SEVCENKO, 1992, p. 11)

A figura que consola o futuro primeiro presidente da República Tcheca no final do século XX é Comenius, o herdeiro dessa tradição hussita e nacionalista, que, no início do século XVII, propôs do exílio uma reforma das coisas humanas (incluindo nessa reforma um método de ensino) e que chora por sua nação tomada pelos alemães. O período aproximadamente entre os séculos XV e XVI foi uma Idade de Ouro, uma época na qual ser tcheco era motivo de orgulho.

Foi um período de passageira autonomia de um povo que, desde cedo, conheceu o domínio estrangeiro (PORTAL, 1968, p. 14). Reside nessa passageira autonomia seu desenvolvimento econômico, religioso e cultural. A coincidência dessa autonomia com o movimento hussita não é por acaso e começa com o que Portal chama de um “despertar glorioso” no “seio de complexos políticos” (PORTAL, 1968, p. 15), com as reformas de Carlos IV na Boêmia. A Universidade de Praga, como vimos, possui importante papel nesse processo. Mas o significado dessa autonomia tcheca só é possível de ser compreendido se confrontado 5- Expressão que utilizamos inicialmente em Aguiar (2012, p. 314), a partir da palavra češství utilizada pelo historiador tcheco Václav Flajšhans, como tradução à sua fala, publicada no jornal Národní Listy em 1915: “Hus é, simplesmente, o símbolo de nossa tchequidade na sua mais bela abrangência.”

com o convívio secular entre tchecos e alemães. Portal (1968, p. 90) confirma-nos que a autonomia tcheca se constrói em oposição à grande presença de alemães naquelas terras.

De certo modo, o período que esse historiador chama de Idade de Ouro da Boêmia, com suas minas de prata (especialmente em Kutná Hora), vinhas, crescimento do comércio, o início da escrita literária em tcheco, além das já citadas ações de Carlos IV, é um período de fortalecimento da tchequidade. Além disso, o Decreto de Kutná Hora assume um lugar central no início desse período.

Voltando a Jan Hus, percebemos que sua pregação presencial na Capela de Belém (1402-1412) e sua escrita de cartas (prioritariamente entre 1412-1415), ícones de seu trabalho educativo, bem como sua atuação na Universidade de Praga são atuações formativas da identidade tcheca nesse contexto descrito por Portal (1968), que afirma:

Sob a administração de João Hus, a Universidade de Praga fica debaixo da vigilância da “nação” (comunidade de estudantes) tcheca, que até então tinha de inclinar-se perante três outras “nações” estrangeiras, a alemã, a saxónia e a polaca (decreto real de Kutná-Hora, 1409). Claro que o latim permanece a língua da universidade, e foi em latim que João Hus redigiu uma parte de suas obras. Mas as mais comoventes, sobretudo essas admiráveis Cartas aos Tchecos fiéis, saídas do fundo da prisão de Constança na véspera de sua execução, são escritas na língua nacional, língua cujo emprego João Hus se esforçara por desenvolver em todos os actos da vida pública. Aliás, é a ele que devemos as primeiras simplificações da ortografia tão características do tcheco. (PORTAL, 1968, p. 96).

Hus possui um papel decisivo no desenvolvimento da língua tcheca e desse nacionalismo que crescia desde o século XIV. É ele quem escreve a primeira cartilha para o

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ensino das primeiras letras, no início do século XV (MANACORDA, 2010, p. 238; AGUIAR, 2012, p. 108-113), para darmos um exemplo além dos já trazidos na citação acima. Sua morte fortaleceu o que o historiador francês chamou de consciência nacional tcheca. Esta, porém, não envolve apenas uma identidade nacional, um patriotismo. Ela envolve um sentimento de universalidade cristã e um conjunto de práticas formativas, como comunhão em duas espécies, o fortalecimento da língua tcheca, a instituição de formas de vida comunitária, como no caso de Chelčický, e a fundação de escolas de instrução popular, como podemos apreender a partir de Portal (1968, p. 100).

Os nomes dos personagens envoltos nas guerras hussitas ou no desenvolvimento dos Utraquistas e dos Taboritas, bem como dos Irmãos Morávios, marcam a história tcheca de tal maneira que eles se tornam personagens quase míticos. De certo modo, eles resgatam o mito fundador do Praotec Čech. Educação, língua, memória compartilhada e sentimento nacional constituíram o que aqui, tomando o termo por analogia, chamamos de paideia tcheca, a formação de uma tchequidade que, conforme afirmamos, está presente ainda hoje naquelas terras da Europa Central.

Reflexões finais

Percorremos este longo caminho, que começou com a discussão da possibilidade de se utilizar o termo nação no século XV, dirigindo nosso olhar para o caso das terras históricas tchecas, o que nos pareceu uma utilização coerente. Seguimos para a análise de um episódio central para o estabelecimento do início do nacionalismo tcheco, que se construiu em oposição à presença dos alemães: a nacionalização da Universidade de Praga em 1409 e suas consequências na história de dois sujeitos. Por fim, estabelecemos as ligações desse nacionalismo com o movimento religioso hussita na formação de uma tchequidade com suas consequências culturais, linguísticas e educacionais.

Por meio desse caminho, apontamos a necessária associação entre educação e nacionalismo na Boêmia do século XV. Os clérigos, os cronistas, a universidade, os textos, a cartilha de Jan Hus e mesmo as escolas tchecas foram os agentes de constituição e transmissão da tchequidade que aqui trouxemos.

Há cerca de um século e meio, Comenius está presente no meio desse caldo cultural, linguístico, religioso e nacionalista. Como essa tchequidade chega até ele é algo para ser desenvolvido em outro artigo. Lembremos apenas que suas primeiras reflexões, além de parte importante de seus escritos posteriores, são escritas em tcheco e para os tchecos. Um evento histórico narrado por Kulesza (1992, p. 50) serve como um indício para vermos a presença desse nacionalismo em Comenius e sua permanência nos séculos posteriores:

Em meados do século XIX, Comenius torna-se representante de uma educação nacional e democrática, sendo reedita-das suas obras em checo, aquelas em la-tim sendo traduzidas para o vernáculo e publicados os manuscritos inéditos, como a Didática checa. No tricentenário de seu nascimento, o ministro austríaco Gautsch proíbe que a data seja considerada feria-do nas escolas checas. Essa proibição foi decorrente de uma ordem do imperador Francisco José a partir do exame de um exemplar da Lux in tenebris e da percepção de seu forte sentido nacionalista. Porém, no dia 28 de março de 1892, uma multi-dão de patriotas, liderada pelo professor Masaryk, promove intensa manifestação ostentando o retrato do mestre. Masaryk, que viria a ser o primeiro presidente da Checoslováquia independente, ao findar a Primeira Guerra Mundial, quando de seu exílio na Holanda, toma para si o testemu-nho de Comenius, inspirando-se nele para conduzir a luta pela independência, como ele mesmo reconhece em seu livro Svetová Revoluce (Revolução Mundial), publicado

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em 1925. Assim, o nome de Masaryk fica definitivamente associado ao de Huss e Comenius na cultura nacional checa.

Mas esta é uma ligação que apontamos para desenvolvimentos futuros. Terminemos nosso artigo com um retorno ao início do século XIV. Um texto conhecido como Crônica de Dalimil é tido como um dos mais antigos escritos em língua tcheca conservados até nossos dias. Essa crônica reconta a história da Boêmia e constantemente descreve os alemães como o oposto negativo dos tchecos. Em um dos episódios mais famosos da crônica, o duque Oldřich, ao justificar por que havia escolhido uma camponesa tcheca como esposa em vez de outra que era nobre, afirma:

Radějí sě chci s českú sedlkú snietinež ciesařovnu německú za ženu jmieti [...] Němkyně bude německú čeled mietia německy bude učiti mé děti.A proto bude jazyka rozděleniea ihned země zkaženie. (SCALES, 1999, p. 2120).

Antes desposar uma tcheca camponesado que uma imperatriz alemã com certeza [...]Uma alemã tem seus criados alemãesE o alemão para meus filhos nas liçõesIsso causará a ruptura da nação [jazyk, que também pode ser língua]E em nossa terra logo a depravação(tradução nossa).

Referências

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Submetido em: 28.02.2014

Aprovado em: 13.08.2014

Thiago Borges de Aguiar é doutor em educação pela Universidade de São Paulo e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba.

Davi Costa da Silva é bolsista de iniciação científica e graduando em ciências sociais pela Universidade de São Paulo.

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Zeitgeist ou espírito alemão: etno-história de germanidade e instituição da escola em Santa Catarina

Ademir Valdir dos SantosI

Resumo

A história da educação enfatiza a contribuição do projeto da Companhia de Jesus na institucionalização da escola no Brasil, destacando influências jesuíticas. Este estudo está embasado na premissa de que tal abordagem escamoteia a complexidade de fatores culturais dos processos de instituição da escola nas diferentes regiões brasileiras, aliando-se à hipótese de que a presença de componentes simbólicas e materiais teutas caracteriza um peculiar processo de elaboração de germanidade em Santa Catarina. O objetivo é discutir o espírito alemão – Zeitgeist – e processos de institucionalização da escola. A metodologia tem por base um corpus documental: relatos de viajantes, imprensa, relatórios da direção de uma companhia de colonização, legislação, livros didáticos e caderno escolar. A perspectiva analítica é construída sob perspectiva etno-histórica, discutida à luz de outras pesquisas nucleadas no debate sobre as relações entre a imigração alemã e a educação. Os resultados indicam que o fator linguístico, amalgamado a elementos étnicos e à produção de identidades individuais e coletivas, embasa a compreensão de processos de instituição da educação escolar formal, considerando tanto os modos históricos de organização das escolas alemãs primordiais como daquelas teuto-brasileiras. Apontam ainda que a introdução, manutenção e difusão de elementos culturais e identitários de base germânica que ocorre desde o século XIX, em contextos ora harmoniosos, ora conflituosos, contribuiu para erigir um estatuto histórico de germanidade em Santa Catarina.

Palavras-chave

Educação – Imigração alemã – Germanidade.

I- Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. Contato: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015042039

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Zeitgeist or German spirit: ethnohistory of Germanness and the establishment of schools in Santa Catarina

Ademir Valdir dos SantosI

Abstract

History of Education has emphasized the contribution of the project of the Company of Jesus to the establishment of schools in Brazil, highlighting the Jesuit influence. This study is grounded on the premise that such an approach obscures the complexity of the cultural factors of the establishment of schools in different Brazilian regions, and on the hypothesis that the presence of German symbolic and material components has been characteristic of the unique development of Germanness in Santa Catarina state, Brazil. The study aims to discuss the German spirit - Zeitgeist - and the establishment of schools. The methodology is based on a documentary corpus: travelers’ accounts, press, reports of the board of a colonization company, legislation, textbooks and a school notebook. Analysis has been conducted from the ethno-historical perspective, discussed in the light of other research on the relations between the German immigration and education. Findings have indicated that the linguistic factor, amalgamated with ethnic elements and the production of individual and collective identities, underlies the understanding of the establishment of formal education, considering primary the historical modes of organization of both German schools and German-Brazilian schools. Findings have also indicated that the introduction, maintenance and dissemination of Germanic cultural and identity elements since the nineteenth century, both in harmonious and in conflicting contexts, has contributed to erect a historic status of Germanness in Santa Catarina.

Keywords

Education – German immigration – Germanness.

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015042039

I- Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. Contact: [email protected]

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Introdução

No campo da história da educação, constitui aspecto deveras examinado que a instituição da escola foi matizada pela Companhia de Jesus. Coube aos jesuítas a gênese e manutenção, de modo crescente até a metade do século XVIII, de atividades educacionais desenvolvidas nos domínios portugueses. Tal movimento conjugou a ação missionária catequética à instrução para as primeiras letras durante as primeiras décadas de povoamento e colonização, prosseguindo com a fundação de colégios. De acordo com o jesuíta Leonel Franca, “a obra educativa dos colégios da Companhia foi um dos fatores mais eficientes da contra reforma católica” (FRANCA, 1952, p. 6). Quanto à organização, segundo esse padre, que traduziu o Ratio Studiorum, ou Plano de Estudos, tal código reuniu prescrições pedagógicas que balizaram as atividades de mais de 578 colégios e 150 seminários.

Já de acordo com Saviani (2007; 1983), no Brasil, as perspectivas teórico-metodológicas que caracterizam a ação dos jesuítas expressaram tanto uma tendência quanto uma corrente de base humanista, inicialmente tradicional, depois moderna. E, conforme concepções da filosofia da educação, há uma periodização segundo a qual a tradição educacional mesclou, de modo equilibrado, uma vertente religiosa a outra leiga, mantendo tal arranjo certa hegemonia histórica até 1930; na fase posterior, avançou a “versão moderna em detrimento da tradicional” (SAVIANI, 1983, p. 20).

O objeto deste estudo está centralizado no Zeitgeist, o “espírito alemão”. Mas qual a relação entre a herança jesuítica e esse componente étnico-cultural germânico? Recorremos à escrita de Franca, porque, nas suas considerações sobre o Ratio, indica que o projeto da Companhia de Jesus foi ajustado e recebeu contribuições do Zeitgeist. Destaca que a pedagogia jesuíta não foi revolucionária ou inovadora, estando a germanidade intimamente vinculada às origens e ao legado jesuítico:

Ao espírito de uma época, ao Zeitgeist dos alemães, não se furta nenhum sistema pedagógico, nem mesmo quando conscientemente se organiza para combatê-lo. O código de ensino dos jesuítas não se pôde subtrair a esta necessidade e traz, indelével, o cunho do século XVI. (FRANCA, 1952, p. 27-28).

Com base em tal premissa, caminhamos pelo escopo de discutir a gênese e permanência do Zeitgeist. Especificamente, problematizamos fenômenos etno-históricos que influenciaram a institucionalização da educação escolar em Santa Catarina, nutrindo-se do espírito alemão. O núcleo está na caracterização de um tipo de instituição educacional vista como estrangeira, implantada em Santa Catarina com o movi-mento humano da imigração alemã, principia-do no século XIX: a deutsche Schule ou escola alemã, mais tarde denominada teuto-brasileira (SCHADEN, 1966). A hipótese postula que a presença de componentes simbólicos e mate-riais, imaginários e representações associados à cultura germânica é expressão do espírito ale-é expressão do espírito ale-espírito ale-mão: o Zeitgeist está na origem e, ao mesmo tempo, deriva de um processo de elaboração da germanidade. Haveria, então, uma Alemanha perdida em Santa Catarina.

A metodologia tem por base um corpus que reúne fontes documentais coletadas no Brasil e na Alemanha: relatos de viajantes, imprensa, relatórios da direção de uma companhia de colonização, legislação, livros didáticos e caderno escolar. A discussão é pautada por referenciais dos escritos e fontes selecionados, notadamente pesquisas realizadas e em andamento que apontam para a centralidade de instituições escolares.

Revigoramos experiências e vivências de tempos e espaços num plano de elaboração da cultura em que fatores étnicos, entre eles a instituição da escola, ocupam um amplo locus de significados. Convidamos a navegar pelos mares da história, sujeitos a desejadas calmarias, mas também a ventos e tempestades nutridos nas

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metamorfoses paridas num combate entre uma espécie de germanismo primitivo transplantado e eólicos açoites de brasilidade: Zweikampf!

Navegando pelos primórdios: da calmaria da chegada ao olho do furacão

Europeus de diversas procedências aportaram nas terras luso-brasileiras com o processo colonizador iniciado no século XVI. Ao longo desse arco cronológico, foram pro-duzidos escritos que tratam da chegada e ins-talação de viajantes individuais e de famílias estrangeiras no Brasil. Entre descrições etno-ções etno-etno-gráficas pitorescas, literárias ou acadêmicas, desvelam-se aventuras e vicissitudes reserva-das pelo Novo Mundo a aventureiros e convi-dados, num ambiente que mesclou o inóspito, bárbaro e inculto ao atrativo, fascinante e qui-çá enriquecedor. Inferno ou paraíso?

O alemão Carl Seidler, que veio a serviço de Dom Pedro I, escreveu Dez anos no Brasil. A primeira edição foi publicada em Leipzig, em 1835, e revela antipatias quanto à cultura local. Segundo a Biblioteca Histórica Brasileira, que editou textos de viajantes como Rugendas, Debret, Davatz, von Koseritz, Burmeister e do Príncipe Adalberto da Prússia,

O seu autor, aventureiro alemão, vindo ao Brasil com o intuito de fazer fortuna rápida, aqui chegando viu seus sonhos desfeitos. De volta à terra natal escreveu um livro cheio de animosidades sobre o país que não o tornara milionário [...]. (SEIDLER, 1941, p. 5).

Vejamos como Seidler (1941, p. 224) descreveu a viagem marítima de Laguna (no sul catarinense) até o desembarque na cidade do Desterro, hoje Florianópolis:

Teríamos assim vencido cêrca de metade da nossa viagem, quando de repente um dos marinheiros subiu ao convés e murmurou ao ouvido do capitão que o navio estava

fazendo água. Cambaleando de mêdo e de cachaça, desce êle logo ao porão. [...] Com mais um pouco descobriu-se o rombo: era um buraco feito pelos ratos, que já fôra remendado mas se reabrira com as violentas batidas no banco de areia à nossa saída da barra. [...] Pouco depois nos achávamos entre a ilha de S. Catarina e o continente, ao abrigo de altas montanhas, onde o vento não podia mais castigar-nos tanto e onde o mar também serenou. Pelas duas da madrugada arriamos âncoras bem em frente à cidade do Destêrro. Mesclando ironia e desejo de desvendar, a

imaginação passeia pelo cenário acompanhada por vento e medo, calmaria e promessa:

Levado por invencível curiosidade, impelido pelas mais vivas esperanças subí com a noite enluarada ao balouçante convés, para contemplar a ilha envôlta em nuvens e a cidade meio oculta na semi-escuridão, cidade da qual durante minha estada no Brasil eu ouvira tanta coisa miraculosa. Os naturais da ilha chamam-na com razão o “jardim do Brasil”; ela merece êsse nome pela sua luxuriante vegetação, seu clima temperado extremamente saudável, e as encantadoras vistas que se tem para longe, de quase todos os pontos. Outrora esse jardim era lugar de destêrro de criminosos portugueses, de onde o nome da capital; realmente por êsse preço era-se tentado a praticar algum crime para também ser desterrado, pois era ceder um instante ao inferno em troca do resto da vida no céu. Muito especialmente me haviam gabado a cordialidade e gentileza dos moradores, a beleza e sociabilidade das senhoras, a barateza dos víveres e o romântico dos passeios; que milagre, pois, que eu hoje desejasse que amanhecesse algumas horas mais cedo para que, quanto antes melhor, se me abrisse êsse fabuloso paraíso do novo mundo. (SEIDLER, 1941, p. 224).

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Outros olhares foram deitados sobre Santa Catarina. O livro Viagem pelo sul do Brasil no ano de 1858, é fruto das incursões pelas regiões meridionais de Avé-Lallemant, médico e explorador botânico que chegou em 1837 e, a princípio, dedicou-se à saúde da população no Rio de Janeiro por 18 anos. Voltou à região natal, mas, em 1858, retornou às águas e terras brasileiras como médico na Novara, uma fragata que iria viajar pelo mundo sob o comando do explorador Humboldt1. Devido a desentendimentos a bordo, desembarcou no Rio e recomeçou a clinicar. Depois, mediante o apoio mecenático de Dom Pedro II, partiu para novas viagens. Neste excerto dramático, fala dos alemães em Santa Catarina, recontando o destino de imigrantes que aportaram tendo como destino a colônia Santa Isabel:

Em dezembro de 1846 chegaram ao Rio de Janeiro, no navio “Erídano”, setenta a oitenta imigrantes alemães. Ninguém os chamara, ninguém sabia o que fazer com eles; estavam sós e abandonados na praia...[...] Lá vi a gente na sua aflição; alguns estavam doentes; fiz por êlles o que pude; tive até de assistir a uma senhora que ali deu à luz em plena rua.[...] a gente teve de ficar quarenta e oito horas na Praça do Palácio, ao relento, sofrendo terrível tempestade de dezembro, e teria ficado sem abrigo, se não a socorressem os moradores [...]. Depois de onze dias de triste estada, foram em sua maioria levados num navio de guerra brasileiro para as províncias do sul e não ouvi mais falar neles. (AVÉ-LALLEMANT, 1953, p. 117-8).

A seguir, conta seu reencontro com alguns imigrantes em território catarinense:

1- O naturalista alemão Humboldt é um dos pais da Geografia. Em 1800, apesar de não completar a viagem que penetrou as fronteiras para além da Amazônia Venezuelana, acabou inspirando estudiosos a posteriormente finalizar e registrar o itinerário e as aventuras da missão original.

Em 3 de julho desci o Rio dos Bugres e cheguei a uma casa bem carpintejada, diante da qual estava um homem. Devia entregar-lhe uma carta do Presidente e entrei na casa.Ali dançavam diante de um realejo alguns rapazes e moças, todos contentes como se fossem a uma romaria. Scheid, o dono da casa, de Donnersberg, na Baviera Renana, sentou-se e falou-me da colônia alemã de Santa Isabel, em cujo centro me achava. Logo que começou a contar-me seu destino no Brasil, ressurgiram-se diante dos olhos os imigrantes do “Erídano” do ano de 1846. Scheid e sua família estavam entre eles; estivera doente naquele barracão de lenha e provàvelmente eu o tratara. (AVÉ-LALLEMANT, 1953, p. 117-118).

O viajante exprime seu otimismo quanto ao destino dos imigrantes e de sua descendência:

Os imigrantes do “Erídano” foram trazidos para Santa Catarina, no princípio do ano de 1847, quando se começava [...] a fundação de uma colônia que recebeu o nome da jovem princesa dona Isabel. Venceram sem grande esforço as primeiras dificuldades encontradas em terra estranha com uma agricultura que não lhes era familiar e desde então vivem como gente feliz e abastada. Aliás Scheid tornou-se muito abastado. Possui 1200 jeiras de terra, 19 burros, muitas vacas de leite e boa casa de residência, ainda não concluída, para onde está mudando seu bom moinho. Em volta dele medram seis filhos vigorosos e sadios. Os mais velhos auxiliam o pai. Vive também com ele a velha mãe, de setenta e nove anos, mulher de vigor realmente incompreensível; trabalha no campo, nas altas encostas e no sábado dança a valsa com as rijas netas tão bem como quando estava, há sessenta anos atrás, em Donnersberg. (AVÉ-LALLEMANT, 1953, p. 117-118).

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O que essas linhas indicam é ratificado por Seyferth (1999, p. 81), ao evidenciar a perpetuação nas áreas coloniais de formas características de atividade agrícola, sistematizadas na pequena propriedade e através do padrão de distribuição de terras, destacando os modos de constituição dos núcleos familiares – resiliências que se consolidaram nos séculos seguintes, deixando traços hoje detectáveis apesar de mudanças econômicas: “Nas áreas rurais alemãs dessa época, em geral uma família compunha-se de três gerações vivendo na mesma propriedade”. Apresenta-se a imigração como uma das vias pelas quais a germanidade reverberou, instalando contrastes culturais e delineando discrepâncias entre os referenciais culturais teuto-europeus e a nacionalidade brasileira, sobre alicerces étnicos.

Focalizamos agora o depoimento sobre a vida no Brasil no século XIX assinado por Ina Von Binzer. Sua escrita é intitulada Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil. Surgiu na década de 1880 e a primeira versão em português data de 1956.

A alemoa Ina era uma preceptora contratada para educar os filhos de abastadas famílias paulistas2. Redigiu suas impressões abordando a realidade social, econômica e cultural daqueles tempos, caracterizando-os como de pouca civilidade e de desconhecimento do saber universal, para ela identificadores da elite brasileira. Esses aspectos foram descritos e avaliados pela professora alemã, que tentou conciliar os princípios da pedagogia que conhecia e a rigidez dos hábitos germânicos à escolarização que devia protagonizar. Ina demonstra sensibilidade ao questionar a eficácia do seu aprendizado para lidar com a infância. Referindo-se a um austero pedagogo, pondera em correspondência à amiga Grete:

2- Utilizamos esta terminologia propositadamente, pois notamos em incursões que a palavra destacada continua sendo empregada em Santa Catarina, sobretudo na oralidade dos descendentes bilíngues, que a aplicam ao invés do adjetivo alemã. Referenciais da etnolinguística ajudam a explicar esse fenômeno derivado de um processo histórico de (re)aprendizado idiomático (APPEL; MUYSKEN, 1997).

Você sabe quem afundei hoje nas profundezas mais profundas da minha mala? O nosso Bormann, ou melhor, suas 40 cartas pedagógicas que não têm aqui a menor utilidade. E confiava tanto nelas! (BINZER, 1982, p. 21).

O teor desses escritos desnuda uma estigmatizante etnicidade. Semeada pelo discurso de Ina Von Binzer está presente a típica interjeição Ach!, à qual recorre para realçar as estupefações causadas pelas contradições entre a cultura germânica e a (luso)-brasileira. No momento em que deixava São Paulo para trabalhar numa fazenda do interior, exprime:

Não há dúvida, Grete, “ela vai mesmo para o campo”. Mas por sorte, não é longe; apenas duas horas de estrada de ferro daqui até a estação que serve essa fazenda.De qualquer forma é um consôlo, porque assim a gente não fica completamente afastada do mundo.As crianças, três meninas, parece que são de boa índole e a mãe, D. Maria Luísa, é conhecida por sua delicadeza e tem grande simpatia por tudo o que é alemão. Ela mesma teve professoras alemãs e seu único filho está sendo educado na Alemanha.Somente já me disseram que vou achar muito primitiva a vida nessa fazenda instalada à moda antiga do país.Sinto algum receio quanto a esse gênero e ao mesmo tempo estou curiosa de conhecer a autêntica vida do campo brasileira sobre a qual centenas de pessoas que visitam o Brasil não conseguem formar uma opinião.Nesse particular nós, as professoras, levamos vantagem em relação aos comerciantes e outros europeus dentre os quais muito poucos se afastam das cidades marítimas, e a maioria depois de 10 ou 20 anos retorna à Europa sem conhecer o resto do país e muito menos a vida real dos brasileiros; ao passo que, convivendo na intimidade deles, temos ocasião de

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observar de perto toda a trama. (BINZER, 1982, p. 94, grifos nossos).

O que abordamos é ratificado por trabalhos que discutem a História da Educação de regiões meridionais do Brasil (SANTOS, 2014; 2012a; 2009; SANTOS; VECHIA, 2013; FIORI, 2003; RICHTER, 1992; SEYFERTH, 1990). Entre os pesquisadores, há um acordo quanto a vinculações entre cultura, etnia e identidade, reafirmando a germanidade como construto, vindo ao encontro da seguinte conceituação:

[...] abordar os aspectos da etnia significa: a. atentar para uma perspectiva das relações entre os sujeitos e grupos sociais considerando sua língua, seus costumes e tradições, sua religião, suas instituições sociais; b. conjugar, de forma simultânea, os múltiplos dados relacionais das práticas sociais a sentimentos de pertencimento a um mesmo povo ou nação em que há ligações definidas pela consanguinidade, pelo convívio em um mesmo lugar geográfico e por um processo histórico constitutivo de relações nos planos econômico, social e político; c. partilhar elementos simbólicos e de base material que expressam significados nos processos relacionais compartilhados no âmbito da cultura; d. analisar o engendramento da produção e reprodução cultural considerando a dinâmica mesma de sua operação, levando em conta as interferências, condicionamentos e participações dos sujeitos e grupos sociais. (SANTOS, 2012a, p. 542).

O citado Avé-Lallemant anunciou ainda a presença de crianças e a necessidade de escola. Por um momento, parecia-lhe estranho que um empreendimento educacional não tivesse brotado da iniciativa dos imigrantes:

Além disso, fervilhavam crianças em toda parte. De onde vinham tantas crianças?

É um lindo grupo de travessos, todos de boa aparência, nas manhãs de domingo, quando as mães lhes lavam o rosto e, com algum esforço, fazem duas trancinhas nos cabelos das meninas. Veio-me no entanto um pensamento melancólico ao contemplar a querida criançada. Decerto a augusta princesa Dona Isabel não sabe que [...] as crianças não tem um mestre-escola, com quem possam aprender a palavra de Deus e a ler, escrever e contar e também nenhum sacerdote na vizinhança, que celebre o serviço divino aos domingos. Mas ninguém se interessou por isso [...]. Creio, aliás, que as crianças não ficarão por muito tempo sem mestre. (AVÉ-LALLEMANT, 1953, p. 119).

Alude a um espaço para os ritos religiosos, que no futuro poderia abrigar o ensino das primeiras letras:

Há uma capela pequena e simples – e já fo-ram construídas duas – faltando apenas um sacerdote permanente. O número de habitan-tes deve elevar-se de 500 a 600; formam 71 famílias, que se dividem em evangélicos e católicos. (AVÉ-LALLEMANT, 1953, p. 119).

Seguimos compartilhando uma perspectiva antropológica segundo a qual um dos núcleos da imigração alemã é a força institucional na difusão étnica:

[...] algumas instituições comunitárias [...] apareceram como divulgadoras dos valores étnicos, preservados pelos imigrantes e transmitidos de uma geração a outra. A língua materna e a cultura nacional seriam preservadas através da escola, da igreja, das associações, mas acima de tudo através da palavra escrita, no sentido de marcar a diferença de um grupo em relação aos outros. Estas instituições formais serviram de veiculadoras e perpetuadoras da etnicidade. (SEYFERTH, 1990, p. 82, grifos nossos).

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Içando as velas: os ventos históricos conduzem à escola

Já elencamos fatores históricos respon-á elencamos fatores históricos respon-elencamos fatores históricos respon-sáveis pelo enraizamento de hábitos alemães: a imigração e criação de colônias; o progresso de atividades produtivas e a inicial institucionaliza-ção da família e da religião. Agora, aprofunda-mos a discussão sobre uma das rotas pelas quais a germanidade frutificou: a educação escolar. Para tanto, é necessário retomar argumentos presentes na introdução em que citamos Franca (1952) para clarificar nosso objetivo. Isso faz emergir concepções educacionais vinculadas ao papel de instituições religiosas, ao mesmo tempo em que nos permite trazer à tona a Reforma pro-testante e seu ideário, destacando o luteranismo. Sublinharemos a circulação de ideias que dali deriva e influencia a configuração etno-histórica da diversidade pedagógica em Santa Catarina, buscando correlação com a germanidade.

Nesta argumentação, é essencial considerar a presença, entre os imigrantes, de grupos de adeptos da fé luterana. O imigrante alemão luterano é entusiasta da escola (FISCHER, 1984). A herança cultural religiosa do reformador explicita que é vital manter escolas para as crianças e jovens. E, no ambiente das colônias catarinenses, estavam vivas as exortações que Martinho Lutero apresentou em dois documentos clássicos: “Uma prédica para que se mandem os filhos à escola”, escrito em 1530 e “Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas cristãs”, de 1524. A voz de Lutero soprava como ventos vigorosos entre os imigrantes protestantes, alertando para o fato de que não enviar os filhos à escola contribui para a destruição do reino de Deus, correspondendo a uma estratégia de Satã:

Entre suas artimanhas uma das mais impor-tantes (se é que não é a mais importante) consiste em aturdir e enganar as pessoas simples de tal maneira que não queiram mandar seus filhos à escola nem encaminhá--los para o estudo. (LUTERO, 1995, p. 331).

Eis mais um dos alicerces do Zeitgeist, até hoje vivaz, resultado das ilações de fé entre imigração, religião e instituições escolares, que solidificou a atividade comunitária. Segundo Beck (1995, p. 301), tudo isso servindo “para justificar o empenho pela boa educação que tem caracterizado as comunidades e os líderes luteranos desde a Reforma. Como Lutero, sentimo-nos responsáveis pelas gerações futuras. É por isso que lutamos na e pela educação”.

Outro elemento a ressaltar é a imprensa em língua alemã. Impulsionada pela cultura teuto-europeia, passou a ser semeada ao vento: cinzas que viriam a nutrir uma fênix germânica. É o caso do Der Urwaldsbote, editado desde 1893 e do Sonntagsblatt für die Evangelischen Gemeinden in Santa Catarina, impresso a partir de 1895. Os jornais representaram um elo entre os sujeitos, ao mesmo tempo em que serviram como base para uma circulação capilar do germanismo.

Apresentamos uma edição do Jornal de Joinville, publicada em 22 de maio de 1926 sob o título “O Municipio de Joinville – 1851-1926”, comemorativa dos 75 anos de fundação da originalmente chamada Colônia Dona Francisca3. Segundo o editor, essa matéria já teria sido publicada num jornal carioca em 1871. Focaliza a prosperidade nas décadas finais do século XIX, decorrente da presença alemã. Esse periódico era um típico artefato cultural germano-português, pois mesclava língua estrangeira e vernáculo. Destacava as instituições para o atendimento infantil, num momento em que noutras regiões havia raridade de oferta escolar, como lembra Werebe (1995, p. 382), ao tratar da transição do Império para o período republicano: “a República veio encontrar o país, no terreno educacional, com uma rede escolar primária bastante precária, com um corpo docente predominantemente leigo e incapaz”. Mas O Jornal de Joinville registra:

3- A imperial Colônia Dona Francisca abrigava o território correspondente à atual Joinville, hoje o maior e um dos mais prósperos municípios de Santa Catarina.

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A população da colônia nos cinco primeiros annos attingio a 1428 almas e elevou-se a 3678 dez annos depois de sua fundação, sendo protestantes lutheranos 2993 e 685 catholicos.[...] Escolas existem 15; 3 publicas sendo 2 para o sexo masculino e 1 para o feminino, e 12 particulares, sendo 11 para ambos os sexos e 1 collegio para o feminino, nas quaes ensinam os idiomas allemao e portuguez.Estas escolas foram frequentadas no anno passado por 790 meninos de ambos os sexos.Relativamente à instrucção é a villa de Joinville um dos pontos do império em que Ella marcha com passos de gigante; todos os meninos (com bem pouca excepção) frequentam as aulas, uns calçados, outros descalços, outros em mangas de camisa, finalmente todos vão à fonte principal da instrucção bebel-a, uns conforme podem, outros conforme querem; e assim mais ou menos instruem-se de modo a serem uteis a si e ao seu paiz.Como a maior parte dos meninos pertencem à famílias allemãs, vão-se habituando com os usos e costumes europeus, não lamentando de futuro o terem de pedir á outros para assignarem “a rogo”, como infelizmente entre nós, os brasileiros ainda succede. (JORNAL DE JOINVILLE, 1926). Outros referenciais analisam a implantação

de escolas, discutindo o povoamento por colonos alemães de maioria luterana nas terras comercializadas pela Companhia Colonizadora Hanseática de Hamburgo:

[...] em 1904 [...] já havia quatro escolas em Humboldt: na “cidade” (Stadtplatz), na estrada Isabel (Isabella-Strasse), na estrada Paulo (Paul-Strasse) e na estrada Bonpland e Humboldt (Bonpland und Humboldt Strasse). Em outro distrito, Itajaí-Hercílio, também já funcionavam cinco escolas: Hammonia, Sellin, Rafael, Neu-Bremen e Neu-Zürich.

Havia uma em São Bento e outra em Piraí. (SANTOS, 2012a, p. 544-545).

Algumas haviam sido fundadas por sociedades escolares particulares que tinham como membros as famílias dos imigrantes, as Schulverein ou Schulgemeinde. Santos (2012a, p. 547) ainda documenta que existia subvenção financeira para a abertura e funcionamento das escolas por parte da Companhia, devidamente registrada entre os gastos e investimentos nos relatórios dos diretores daquele empreendimento das regiões norte e nordeste de Santa Catarina.

Já sobre os professores, consta que a docência era uma das atividades do pastor luterano, embora, em algumas localidades, o professor fosse indicado pelos próprios colonos, numa escolha entre os que já possuíam escolarização. Em outras situações, o docente vinha de fora e era instalado na comunidade, recebendo moradia (às vezes conjugada com o prédio escolar) e passando também a cultivar a terra e a criar animais. Segundo Willems (1980, p. 280-281), o salário do professor era rateado entre os interessados no funcionamento da “escolinha”. De acordo com memórias de velhos descendentes de imigrantes colhidas por Santos (2011), a escola era fundada, construída e mantida com os esforços comunitários.

Verifica-se ainda a possibilidade de atuação de professores vindos da Alemanha, como foi o caso do pastor Aldinger, que atuou em Hammonia. Nascido em 1869, formado em teologia e com doutoramento em filosofia, foi nomeado administrador da Sociedade Central Evangélica para Colonos Alemães e Imigrantes em 1889. Lecionou para colonos na Europa. Mas o que teria impulsionado Aldinger foram seus projetos de se radicar entre a mata no sul brasileiro. Motivado, chegou em 1901, aos 32 anos de idade, com mais 47 imigrantes. Paul Aldinger é reverenciado por ser protagonista da comunidade evangélica e pela intensa atividade educativa e cultural. Além de fundar escolas, criou o Hansabote (Mensageiro de Hansa), jornal escrito em alemão, que circulou até 1913.

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Especulamos sobre como funcionava a escola alemã primária, analisando relatórios do Arquivo Estadual de Hamburgo, que descrevem minuciosamente como atuavam professores da Colônia Hansa entre os anos de 1899 e 1911. Dizem que se ensinavam religião, cálculo, leitura, ditado, escrita, redação, história mundial, português, história natural, canto, trabalho manual e geografia; às vezes, até latim (AUSZUG..., 1905).

O conteúdo dessas fontes permite afirmar que a comunicação era feita predominantemente no idioma alemão (Hochdeutsch) ou em dialetos. Um mestre-escola registrou que misturava conteúdos estrangeiros aos brasileiros: falava às crianças de tipos de Kolibri (beija-flor). Já a história nacional (Heimatkunde) tratava da descoberta do Brasil e da colônia, bem como do Vale do Itajaí. E a geografia estudava a própria Santa Catarina, Paraná e Rio Grande, bem como as Américas e a Europa (JAHRESBERICHT..., 1905).

Quanto aos materiais didáticos, incluíam importados ou publicados por editoras que foram sendo implantadas no Brasil, como a Rotermund, ativa a partir de 1877 e fundada por um imigrante que foi pastor, professor e jornalista. Destacamos a circulação do Allgemeiner Handatlas in sechsundachtzig Karten mit erläuterndem Text, ou seja, Atlas geral em oitenta e seis cartas (mapas) com texto explicativo, datado de 1881, que traz uma cartografia com a precisa localização das colônias alemãs e do Uruguai (Südost-Brasilien mit den Deutschen Kolonien und Uruguay). Exemplificamos com outros livros ou manuais que auxiliaram na consolidação da germanidade: livros de leitura como o Deutsches Lesebuch für Brasilien für das erste und zweite Schuljahr nebst Anhang für den deutsch-portugiesischen Unterricht, de Grimm e Bürger, e o Mein Kleines Lesebuch für das 2. Schuljahr mit Scherenschnitten von Therese Kollatz – herausgegeben von Deustchen Evangelischen Lehrerverein von Rio Grande do Sul; na disciplina de história, o Grundriss der Geschichte Brasiliens, de Stysinski; o Praktische

Rechenschulle in der heften für Deutsche Schulen in Brasilien (4. heft), de Büchler, usado na matemática; e o Landeskunde der Vereinigten Staaten von Brasilien – Für deutsche Schulen in Brasilien, do autor Sellin, para a geografia.

Apontamos ainda uma literatura bilíngue que evidencia interpenetração étnica. Constituem exemplos: Minha língua – Grammatica portuguesa para uso nas escolas allemãs no Brasil – Portugiesisches Sprachbuch für die deutschen Schulen in Brasilien, de Ebling-Rotermund; Portugiesisches Sprachbuch für Kolonieschulen e Arithmetica pratica em quatro partes, ambos de Büchler e A Orthoepia da Lingua Portugueza em exercicios para as Escolas Allemãs no Brasil, cuja primeira edição é de 1879 e foi preparada por Wilhelm Rotermund com a intenção de aperfeiçoar o português ensinado nas escolas de imigrantes.

Optamos também por explorar um caderno de tradução, utilizado numa escola teuto-brasileira. Temos garimpado por esses peculiares contentores de escritas, reunindo e analisando raros remanescentes preservados em arquivos particulares ou em museus. Sob nossa ótica, o caderno escolar autoriza e atribui valor à voz e à escrita dos alunos, permitindo uma aproximação do funcionamento didático--pedagógico das antigas salas de aula e de contextos históricos.

Emblemático é o caderno bilíngue do menino Kilian Tank. Foi identificado como lingua portugueza: tradução. Na capa, consta o ano de 1946. A arquitetura dessa fonte funciona como marca identitária de um tipo de escola. Folhear cadernos possibilita navegar pela história de sujeitos e seus contextos. No seu interior, geralmente se mesclam escritos e desenhos mais ou menos espontâneos distribuídos nas linhas e margens, marcas do aprendizado de uma infância paleolítica do processo histórico de escolarização, elaboradas nas páginas-parede do caderno--caverna pelo autor-estudante, pré-histórico de si mesmo. Por vezes, compondo uma estética própria, rupestre, que batizamos de

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marcas de uso e que partilha o espaço com as indefectíveis atividades e lições que atendiam às prescrições docentes, como cópias, ditados e lições de casa ou deveres. E, como todo aluno-construtor de cadernos sabe, aqui e acolá, deparamo-nos com semáforos que sinalizam em vermelho, geralmente correções e anotações do mestre. Conforme propõe Viñao (2008, p. 23):

Quem recorre aos manuais ou textos nos quais se propõe ou defende o uso do ca-derno escolar surpreende-se com o fato de, além de serem feitas considerações sobre os códigos de apresentação (cabeçalho da tarefa diária, epígrafe ou título de cada ati-vidade, margens, adornos e ornamentações etc), dar-se ênfase, sobretudo, à “limpeza” e à ausência de manchas, folhas arranca-das ou anotações e desenhos intempestivos ou “selvagens”, não controlados. A razão é óbvia: o “efeito estético” tem também um sentido ético, regularizador e disciplinar, e a “limpeza absoluta” supõe a “criação de hábitos”, ou seja, a sujeição a uma ordem de não-transgressão com referên-cias moralizadoras. Os cadernos dividem os lugares e tem-

pos da sala de aula com os livros didáticos. Visitando-os, deparamo-nos com escritas in-fantis que reproduzem o teor de livros didá-ticos disponíveis na época em que foram pre-enchidos. Esse fato nos fez cotejar o teor de livros e cadernos que circulavam nas escolas dos imigrantes alemães e seus descendentes. Exemplo disso é a análise do manual para o ensino de português Kleine Portugiesische Sprachlehre, de autoria de Luise Ey, onde constam várias páginas que perfilam lista-gens de palavras e expressões em português e em alemão, impressas em tipos góticos. O excerto compilado na Tabela 1, extraído desse livrinho utilizado em escolas de Santa Catarina, embasa-se no método apresentado como Methode Gaspey-Otto-Sauer.

Tabela 1 – Lista de tradução constante na Segunda Lição (Zweite Lektion)

pai Vatter Mãe Mutter

homem Mann, Mensch Mulher Frau

touro,boi Stier, Ochs Vaca Kuh

cão Hund Cadela Hündin

carneiro Hammel Ovelha Schaf

cavalo Hengst Égua Stute

Fonte: EY, Luise. Kleine Portugiesische Sprachlehre, 1936, p. 30.

Constatamos que, do mesmo modo, páginas do caderno de Kilian foram separadas em duas colunas, sendo que à esquerda estão registrados os termos e expressões em português e à direita, a tradução. Reafirmamos com Santos (2009) que cadernos e livros didáticos são elementos da cultura material que significam vivamente uma contínua construção da germanidade, de base etnolinguística.

Nessas análises, evidenciamos a centrali-dade dos contatos idiomáticos, de problemas e conceitos relacionados. Concordamos com Appel e Muysken (1996), que sustentam uma compre-ensão da humanidade balizada pela história dos povos e nações intimamente combinada à história das línguas que falam, a qual, simultane-, a qual, simultane-amente, delineia relações de poder e dominação que têm por base aspectos sociais, psicológicos e linguísticos, pondo em evidência o embate en-ência o embate en- o embate en-tre ambientes culturais cujas línguas dominantes e minoritárias se confrontam e conseguem, em maior ou menor proporção, manter suas características primordiais.

Navegação a contravento: sopram ventos e tempestades

Alguns trabalhos assinalam que, nas primeiras décadas do século passado, ocorreu um processo de nacionalização capitaneado pelos governos federal e estadual, que utilizou o aparelho escolar das regiões de imigração europeia (PANDOLFI, 1999; MÜLLER, 1994). Calcou-se na

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prescrição de práticas culturais para a infância e juventude com ascendência estrangeira, imbuídas de valores e atitudes que pretendiam o aprendizado e inculcação não apenas da língua portuguesa, mas de um patriotismo devotado à nação brasileira. O período do Estado Novo (1937-1945), capitaneado por Getúlio Vargas, foi o momento de sua maior exacerbação, embora diversas expressões de nacionalismo viessem sendo gestadas desde a Primeira Guerra Mundial. Alimentadas pela legislação e por órgãos de gestão educacional, campanhas de abrasileiramento foram dirigidas às escolas de imigrantes e tinham o objetivo de orientar a ação pedagógica para uma consequente extinção do germanismo nas comunidades alienígenas.

Assim, ventos e tempestades da nacio-nalização impactaram principalmente nas co-lônias alemãs, tidas como “quistos étnicos” a varrer do mapa. Pleiteou-se que todo o ma-terial utilizado fosse vernacular. Nota-se que, em decorrência, houve uma fase de bilinguis-mo alemão-português, embora se detecte que, nas colônias de imigrantes de Santa Catarina, obrigou-se o uso exclusivo da língua portugue-sa, sendo veementemente proibida a utilização do alemão não apenas no ambiente escolar mas também no conjunto das demais relações so-ciais, mediante ameaças persecutórias. Foram atingidas famílias e comunidades, assim como outras instituições sociais dedicadas a manifes-tações étnicas que usavam da língua ou de ex-pressões culturais germânicas. O culto religioso luterano, o canto, a dança, o teatro, a ginástica, o tiro ao alvo e o bolão também foram proibi-dos, contribuindo nos conflitos. Como demons-tra Santos (2014), tal processo ocasionou mu-danças institucionais: as escolas alemãs foram sendo gradativamente moldadas como escolas teuto-brasileiras, para que se imprimisse sem-pre mais os modelos da desejada brasilidade, substituindo e até mesmo extinguindo a ger-manidade remanescente.

Por exemplo, o Programma de ensino das escolas isoladas das zonas coloniaes, expresso no decreto 1944, datado de 1926, rezava:

[...] considerando que, para as escolas dessas zonas, se torna necessária a organização de um programma que, sem augmento do estagio escolar, attenda aos problemas de desanalphabetização e do ensino da língua portuguesa. (SANTA CATARINA, 1926, p. 3).

Particularmente quanto ao ensino da língua vernácula, recomendava-se enfaticamente até mesmo a didática de atendimento do alunado. Para as crianças do 1o. ano, havia ênfase na escrita, leitura, linguagem oral e nos cantos:

1o. – Leitura diária, no quadro negro, de nomes de objetos conhecidos dos alumnos.2o. – Verificado que os alunos conhecem, com segurança, os nomes apresentados no quadro negro, far-se-á a traducção dos mesmos. Ex.: casa – Haus; chapéu – Hut; copo – Glass; boneca – Puppe, etc.3o. – Decomposição oral dos vocábulos em syllabas, de forma que o ouvido dos alumnos se familiarize com os elementos componentes das palavras estudadas. Ex.: casa (cá-sa); copo (co-po), chapéo – (cha-péo); boneca (bo-né-ca). (SANTA CATARINA, 1926, p. 8).

Em 1938, as escolas alemãs foram proibidas por leis federais: o Decreto n° 868, de 18 de novembro de 1938, criou a Comissão Nacional de Ensino Primário com responsabilização quanto à nacionalização do ensino; o de n° 948, de 13 de dezembro do mesmo ano, estabelecia que fossem concretizadas, por meio do Conselho de Imigração e Colonização, as necessárias medidas para assimilação dos colonos e a pretensa nacionalização dos filhos de estrangeiros (BOMENY, 1999, p. 158).

Para os docentes que não foram afastados durante a perseguição governista e que restaram atuantes nas escolas primárias, demandou-se que fizessem as “Relações dos alunos que não falam o vernáculo”. Tais listagens deviam informar os inspetores e subsidiar as ações de controle quanto ao efetivo alcance da

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nacionalização. O cenário confundia aqueles que ainda se dedicavam ao magistério nas regiões em que a influência cultural germânica agonizava. Veja-se o excerto de um Relatório, datado de 1944, da professora Irene Ayroso, que atuava na Escola Municipal Mista Machado de Assis, em Jaraguá do Sul:

Assumi esta escola em 1 de junho do corrente ano. Estou satisfeita com o magisterio. A Prefeitura fez alguns melhoramentos no predio escolar, dotou a escola com carteiras novas e confortáveis para os alunos, um filtro novo, uma linda Bandeira Brasileira e é solicita em atender qualquer pedido a bem desta escola.Os livros de leitura acho que deviam ser de acordo com o grau de adiantamento da população escolar desta zona devido ao ambiente em que convivem.As crianças fora da escola só ouvem e falam o alemão. Por isso também a eles seria mais agradável si professora fosse de origem estrangeira.Nada mais direi a respeito visto que sou nova no magisterio e estar pouco tempo aqui nesta localidade.Si continuar aqui mais tarde poderei dizer muito sobre o que interessa a bem da nossa querida Patria si Deus quiser. (ESCOLA MUNICIPAL MISTA MACHADO DE ASSIS, 1944).

De acordo com Seyferth (1990, p. 53), em 1930, havia mais de 1200 escolas alemãs, incluindo uma maioria de escolas primárias, mas também algumas de nível secundário, de aperfeiçoamento ou profissionalizantes. Segundo Kreutz (1994, p. 61), o temporal causado pelas campanhas de nacionalização, “desarticulou a estrutura escolar existente entre imigrantes, desmoralizando 1041 escolas comunitárias teuto-brasileiras”.

Sob o violento comando de Getúlio Vargas e sua comparsaria xenófoba, as escolas alemãs ou teuto-brasileiras foram desestruturadas na

sua organização etno-histórica. Foi desprezada uma contribuição para a erradicação do analfabetismo e para a boa formação da infância e juventude que vinha sendo feita há quase um século, em substituição à ausência do Estado. Resultou a extinção de várias unidades ou sua incorporação aos sistemas municipais ou estaduais. E, sofrendo enérgicas lufadas, a cultura germânica bruxuleou como velas ao vento debaixo de uma tempestade tropical.

Concluindo: qual devir? O sopro do Zeitgeist

O teor dos escritos, quer sejam relatos de viajantes, jornais, relatórios, legislação, livros didáticos ou caderno escolar, confirma a composição analítico-interpretativa segundo a qual os contextos da imigração alemã para Santa Catarina e o inerente processo histórico de criação e transformação das instituições escolares possibilitam compreender a construção da germanidade. Sob a ótica etno-histórica, os discursos evocados corroboram perspectivas teórico-metodológicas de que agentes políticos, econômicos, sociais e culturais relacionados às atividades das instituições escolares proporcionaram a inoculação e o cultivo do Zeitgeist. Concordamos com Kreutz (1999, p. 80): o étnico é elemento central da dinâmica histórica, sendo a identidade étnico-cultural “fonte de sentido e de construção do real, mesmo se marginalizada”.

Os resultados e nossas conclusões con-vergem com as posições de Seyferth (1990), segundo as quais as relações entre “alemães” e “brasileiros” resultaram na germanidade – Deutschtum – e no germanismo teuto-brasilei-ro – Deutschbrasilianertum. Ou seja, a história foi instituindo o “germanizável”! Nossas aná-lises evidenciam que tanto processos harmo-niosos como embates constituíram a germa-nidade. A introdução, manutenção e difusão de elementos identitários por meio de práticas curriculares educativas e formativas, tanto naquelas escolas alemãs primordiais como

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naquelas teuto-brasileiras, foi sendo perpetua-da de modo ciclotímico.

O exame do fator linguístico fornece suporte para a compreensão de processos que, suportando oscilações na vitalidade do projeto educativo-formador primordial, levaram adian-te a germanidade construída pelos caminhos históricos de instituição da escola em Santa Catarina. Por isso, concordamos com Appel e Muysken (1996, p. 26), que chamam atenção para o fato de que a língua suporta outras ex-periências étnicas e é associada à identidade cultural, ou seja, “... la lengua es el símbolo par excellence de la etnicidad”.

Sobreviveu e voltou a brotar a germa-nidade. Em meio a adversidades históricas, foi criando profundas raízes no sul do Brasil, seja pelas influências culturais trazidas nos primei-ros tempos de imigração alemã do século XIX, seja pelas resistências ao nacionalismo imposto pelo governo brasileiro em campanhas xeno-fóbicas. Com o passar do tempo, foram forja-dos níveis de integração e harmonia entre as populações em contato, criando-se diversidade étnica, aninhando-se, eliminando-se ou meta-morfoseando-se tradições, hábitos e costumes culturais contrastantes.

Os processos de constituição cultural de porções meridionais do Brasil revelam a mistura de momentos de satisfação de sonhos e conquistas àqueles de dificuldades, conflitos e ambiguidades. Quanto à história das instituições escolares e seu papel, de modo geral, pode-se indicar que se perpetuaram

tanto elementos positivos como traumáticos quanto ao percurso da produção cultural da germanidade, tanto pelos imigrantes alemães e sua descendência como por meio das relações com o ambiente brasileiro.

A memória da escolarização pode ser usada para reforçar e reafirmar afeição, consanguinidade e pertencimento a uma herança cultural comum, fazendo com que ainda pairem nos ares representações que perpetuam a ideia de que Santa Catarina constitui uma espécie de Europa brasileira. Há indicadores contemporâneos que mostram a preservação social da germanidade. No sistema escolar atual, boa parte das escolas oferece a língua alemã em seus currículos. Cidades catarinenses como Blumenau, Pomerode, Joinville, Brusque e Jaraguá do Sul investem na imagem de que são semelhantes a regiões europeias de onde partiram os pioneiros: realizam festas típicas, incentivam a arquitetura que reproduz edificações europeias, associando aos elementos primordiais outros que podem ser vistos como folclorização, pois, nessa composição de uma herança histórica, a divulgação turística apresenta diversas localidades como um “Vale Europeu”.

A ação das escolas de imigrantes sig- ação das escolas de imigrantes sig-das escolas de imigrantes sig-nificou uma das vias de profunda penetração e manteve aceso o Zeitgeist. Torna-se possível, portanto, perguntar, como fez Santos (2012b), se há uma Alemanha perdida em Santa Catarina. Concluímos e respondemos, ratificando a insti-tuição histórica e a permanência desse espírito alemão. Eis o elo perdido.

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Recebido em: 15.07.2014

Aprovado em: 07.10.2014

Ademir Valdir dos Santos é pedagogo, mestre e doutor em educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), docente e pesquisador do Departamento de Estudos Especializados em Educação, do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, dedicado à etno-história. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação e Instituições Escolares de Santa Catarina (GEPHIESC).

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Memórias de docentes leigas que atuaram no ensino rural da Região Colonial Italiana, Rio Grande do Sul (1930 - 1950)I

Terciane Ângela LucheseII

Luciane Sgarbi GrazziotinIII

Resumo

O presente texto tem por objetivo compreender o cotidiano escolar rural, entre as décadas de 1930 e 1950, por meio das memórias de professores que atuaram na Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul (RCI), Brasil. Compreendemos a RCI como aquela formada pelas antigas colônias Conde d’Eu, Dona Isabel e Caxias, atualmente municípios de Caxias do Sul, Garibaldi, Carlos Barbosa e Bento Gonçalves. Trata-se da região que foi ocupada, a partir de 1875, por imigrantes, predominantemente italianos. No recorte temporal, 1930 a 1950, destacamos a expansão da rede escolar pública e as práticas de nacionalização empreendidas pelo governo varguista. Utilizamos como referencial teórico as contribuições da história cultural e como metodologia a análise documental histórica e a história oral. Os documentos produzidos a partir das narrativas docentes pertencem a dois acervos: banco de memórias do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami (AHMJSA) e Instituto Memória Histórica e Cultural, mantido pela Universidade de Caxias do Sul. Acrescemos aos acervos orais diversos documentos das intendências e órgãos administrativos da educação. Narramos histórias de vida dos docentes, mulheres em sua maioria, que se tornaram professoras por terem os conhecimentos mínimos exigidos para a função e pela absoluta falta de profissionais com titulação. Suas experiências vividas em escolas isoladas, rurais, permitem-nos (re)construir cotidianos, aspectos da vida comunitária e, especialmente, escolar. Essas professoras leigas contaram como organizavam suas aulas, o que ensinavam, o modo como procediam em turmas heterogêneas, a relação delas com alunos e familiares, que são, portanto, aspectos da cultura escolar dessas aulas isoladas rurais, que marcam a história da educação brasileira.

Palavras-chave

Memórias – Docentes leigas – Ensino rural – Práticas escolares.

I- Versão ampliada do texto apresentado no XVII Congreso Internacional de Historia Oral: los retos de la historia oral en el siglo XXI: diversidades, desigualdades y la construcción de identidades’, em Buenos Aires.II- Universidade de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. Pesquisadora do CNPq.Contato: [email protected] Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul, Brasil. Contato: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041795

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Memories of lay teachers who worked in rural education in the region of Italian immigration in Rio Grande do Sul state, BrazilI

Terciane Ângela LucheseII

Luciane Sgarbi GrazziotinIII

Abstract

This text aims at understanding everyday life in a rural school between 1930 and 1950 through the memories of teachers who worked in Região Colonial Italiana (RCI - region of Italian immigration) in Rio Grande do Sul, Brazil. We understand that RCI is the region of the old colonies Conde d’Eu, Dona Isabel, and Caxias, which today are Caxias do Sul, Garibaldi, Carlos Barbosa, and Bento Gonçalves municipalities. This region was occupied, from 1875 on, by immigrants, predominantly Italian ones. In the period under study, 1930 to 1950, we emphasize the expansion of the public school system and the nationalization actions carried out by Vargas government. As for theoretical framework, we draw on contributions from Cultural History. For methodology, we use Historic Documental Analysis and Oral History. The documents produced from teachers’ narratives belong to two collections: the memory bank of Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami (AHMJSA - João Spadari Adami Municipal Historical Archive) and Instituto Memória Histórica e Cultural (Historical and Cultural Memory Institute), which is kept by Universidade de Caxias do Sul. To the oral collections, we have added many documents from municipalities and administrative organs of education. We narrate teachers’ stories of life, who are mostly women who became teachers because they had the minimum knowledge required for the job and due to an absolute lack of qualified teachers. Their experiences in isolated rural schools allow us to (re)construct everyday life, aspects of communitarian life, and specially school life. These lay teachers have told us about how they organized their classes, what they taught, how they proceeded in heterogeneous classes. They also talked about their relationship with students and their families, which are, therefore, aspects of the school culture of these rural isolated classes, which mark the history of education.

Keywords

Memories - Lay teachers - Rural education - School practices.

I- Extended version of the text presented at XVII Congreso Internacional de Historia Oral: los retos de la historia oral en el siglo XXI: diversidades, desigualdades y la construcción de identidades, in Buenos Aires.II- Universidade de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. Pesquisadora do CNPq.Contact: [email protected] Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul, Brasil. Contact: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041795

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Pondo-lhes os rendimentos mais de acordo [...] para que possam viver com o necessário decoro, faremos com que esses modestos servidores da

Pátria, desempenhem a sua patriótica missão, com dedicação e carinho, como se faz mister.

Intendente Thomaz B. de Queiroz

A epígrafe de abertura deste texto remete à representação1 que as autoridades locais, no caso o intendente, partilhavam a respeito da docência no interior do Rio Grande do Sul, ao final da década de 1920. Ele reconhecia o baixo valor da remuneração e exaltava a visão romântica da missão do ensinar como apostolado da pátria. Para além das enunciações políticas a respeito das escolas, com o intuito de narrar o cotidiano delas, o presente texto analisa memórias de professores rurais da Região Colonial Italiana (RCI) do Rio Grande do Sul e documentos de época.

Compreendemos a RCI como aquela formada pelas antigas colônias ocupadas, a partir de 1875, por imigrantes, predominantemente italianos: Colônia Conde d’Eu, Dona Isabel e Caxias. Atualmente, essas colônias da Serra Gaúcha correspondem aos municípios de Garibaldi, Carlos Barbosa, Farroupilha, Bento Gonçalves, Monte Belo do Sul, Santa Tereza, Caxias do Sul, Flores da Cunha, São Marcos, dentre outros.

Como recorte temporal, situamos o período de 1930 a 1950, importante do ponto de vista da expansão da rede escolar pública e das práticas de nacionalização empreendidas pelo governo de Getúlio Vargas, que localmente produziram efeitos diversos, especialmente a partir de 1942. Utilizamos como referencial teórico as contribuições da história cultural e, metodologicamente, a análise documental histórica2 e a história oral3.

1- O conceito de representação é entendido como “esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras, pela linguagem, graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado” (CHARTIER, 1988, p. 17). Assim, as representações são os sentidos e significados partilhados e atribuídos por um grupo ao real.2- Entendemos a análise documental histórica a partir do que é discutido por Le Goff (1996), Pesavento (2004) e Luchese (2014).3 - Acerca da história oral, veja-se especialmente Ferreira; Amado (1996), Grazziotin; Almeida (2012).

Procedemos à análise de doze entrevistas de professoras que atuaram no recorte espaço--temporal que delimitamos atentando para for-mação, início da docência, práticas e fazeres es-colares. Os documentos produzidos a partir de entrevistas compõem dois acervos: o banco de memórias do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami (AHMJSA) e o Instituto Memória Histórica e Cultural, mantido pela Universidade de Caxias do Sul. Entrecruzamos as narrativas com outros documentos, tais como: livros de atas, normas e circulares, cadernos e fotografias, estabelecendo, assim, conexões entre o lembra-do/vivido e o guardado/documentado.

As histórias de vida dos docentes, mulheres em sua maioria, mostram como se tornaram professoras por terem os conhecimentos mínimos exigidos para a função e pela absoluta falta de profissionais com titulação. Narram as experiências vividas em escolas isoladas rurais que nos permitem (re)construir o cotidiano da educação escolarizada e aspectos da vida comunitária. Essas professoras leigas contam a respeito de como organizavam suas aulas, o que ensinavam, o modo como procediam para ensinar turmas heterogêneas, sua relação com alunos e familiares, o que possibilita a visibilidade da cultura escolar dessas aulas isoladas rurais.

Desse modo, como pensam Grazziotin e Almeida (2012, p. 30):

[...] as narrativas fazem parte de uma memória coletiva cujos vínculos são constituídos pela idade e pelo pertencimento a uma determinada comunidade, e o fio que une as lembranças são as memórias sobre a educação em um espaço geográfico e social.

As memórias das professoras leigas na RCI na temporalidade por nós estudada determinam uma visibilidade diferenciada da História da Educação na RCI, pois trazem o filtro do vivido, e não do legal, constituindo o que Certeau chama de táticas, entendidas

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como práticas cotidianas que não têm “[...] a possibilidade de dar a si mesmas um projeto global nem de totalizar [...] um espaço distinto, visível e objetável” (CERTEAU, 1994, p. 100).

Os professores, e mesmo as instâncias administrativas municipais, usam de astúcia, reapropriam e subvertem as estratégias4 impostas sob forma de regulamentos, leis e decretos nos níveis nacional e estadual. Assim, dessa história advinda de um acervo de memórias, sendo, portanto, composta por lembranças e esquecimentos, emerge um espaço recriado que nos permite compreender cotidianos escolares rurais e histórias de vida de docentes.

O início da carreira em escolas rurais

Sabemos que, dentre os imigrantes, lecionava aquele que, no conjunto de famílias da comunidade, destacava-se por maiores conhecimentos. Importa frisar que muitos, quando crianças, foram alunos, mas, na adolescência, acabaram assumindo o cargo de professores. Situação alternativa ao trabalho agrícola e, sobretudo, uma possibilidade aceita e reconhecida de profissão para as mulheres. Corsetti (1998, p. 368) corrobora em nossa reflexão ao afirmar que:

[...] nas zonas coloniais o surgimento dos professores das aulas públicas vinculou-se segundo tudo parece indicar, ao processo ocorrido nessas regiões [...] relacionado com a insuficiência das terras para o sustento das famílias que tendiam a crescer com o tempo. A divisão de terras por herança e os altos preços dos lotes provocou por um lado, o deslocamento de descendentes de imigrantes italianos para o oeste do Paraná e de Santa Catarina, de forma espontânea, em busca de preços mais vantajosos e de

4- Entendida na perspectiva de Michel de Certeau como “[...] um lugar capaz de servir de base a um próprio e, portanto, capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta” (CERTEAU, 1994, p. 46).

terras de maior qualidade, em áreas abertas à colonização. Por outro lado, uma parcela dessa população passou a se dedicar a outras atividades que não as vinculadas com o trato da terra, como foi o caso dos professores dessas regiões.

Desses professores, muitos foram marcados pela vivência da migração, pela diferença na pronúncia do português, pelos gostos e costumes, como os culinários, religiosos, do vestuário, da aparência física, do jeito de ser, de conviver e de portar-se, que culturalmente assemelhavam-se aos seus alunos e que, em tempos de nacionalização varguista, não foram benquistos.

A nomeação de professores, nas primeiras décadas do século XX, não obedeceu, na RCI, a critérios previamente estabelecidos. Os efetivados por concurso foram minoria, especialmente nas áreas rurais. Muitas das designações foram feitas por indicação das próprias famílias, da disposição de alguns candidatos a assumirem o cargo ou mesmo por amizades políticas. Foram levados em conta, os conhecimentos escolares adquiridos, a preparação, a disponibilidade, a proximidade com o local das aulas, entre outros. Mas, a decisão da nomeação perpassava a escolha do intendente ou, então, dos subintendentes, dos inspetores escolares ou, a partir de 1906, também do presidente do Conselho Escolar.

Os que se apresentavam eram submetidos ao ditado de um pequeno texto, à realização de cálculos e questionamentos orais a respeito de alguns fatos da história e da geografia do Brasil. Os conhecimentos exigidos das jovens candidatas eram tão somente aqueles que se considerava ser necessário transmitir aos alunos das escolas isoladas rurais. Nenhuma delas possuía formação específica ao iniciar o trabalho como docente. Nos pedidos de abertura de escolas, para o preenchimento de muitos dos cargos, contava-se inicialmente com indicações das famílias que, conhecendo pessoas habilitadas ou que assim acreditavam

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ser, indicavam algum nome. Vale lembrar que as tentativas das comunidades de arbitrarem sobre quem seria o professor que atuaria na escola foram constantes. Além disso, aqueles que se destacavam nos estudos primários e desejavam ser professores eram, de modo geral, aceitos, desde que conhecessem o mínimo de matemática e falassem o português. Ressalte-se ainda a pouca idade com que muitos ingressavam no magistério.

A professora Guilhermina Lora Poloni Costa5 iniciou suas atividades como docente em março de 1932, após ter prestado concurso. Ela relata que o concurso fora escrito e oral. “Prestei esse concurso em dezembro e, no dia 1º de março, eu já fui nomeada. No tempo do Cel. Muratore, prefeito [...]” (Guilhermina Lora Poloni Costa, 1991). A professora lembrou que, já naquela época, eram mais mulheres que prestavam concurso para assumirem o cargo docente e, segundo ela, havia mais vagas, sendo que bastava concluir o primário para poder concorrer ao cargo. Eram poucas as professoras que tinham cursado o normal no início dos anos 1930. Portanto, a maioria das professoras eram leigas.

Nomeada, Guilhermina assumiu uma aula isolada na comunidade Guarani. Passados três anos, casou-se e passou a lecionar na comunidade de Desvio Rizzo. Ali relembrou:

[...] o meu pai, ele comprou umas tábuas, fez os bancos, fez os quadros-negros e, até, para abrir a matrícula, ele cedeu a própria sala; tinha a casa grande, tinha uma sala grande, com essas mesas grandonas[...]. (Guilhermina Lora Poloni Costa, 1991).

Guilhermina recorda que permaneceu alguns meses lecionando na sala da casa dos pais, e posteriormente alugou uma casa pertencente a José e Vitória Dani. Tempos depois, o prédio da escola ficou pronto.

5- Guilhermina Lora Poloni Costa, nascida aos 18 de junho de 1911, em Desvio Rizzo, município de Caxias do Sul, RS, filha de Pedro e Paulina Lora Poloni.

Quando questionada sobre a escolha por ser professora Guilhermina afirma que desde criança tinha desejo de estudar, de ser professora. Adorava ler e todo papel que encontrava, enquanto menina, juntava e lia. “Gostava muito de ler”, reiterou. Relatou ainda:

[...] meu pai não me deixava estudar. [...] ele dizia que as professoras morriam solteironas e pobres. Na época, as professoras, eram raras, as professoras casadas; quase todas eram solteiras. (Guilhermina Lora Poloni Costa, 1991).

Afirma que sua primeira professora, Vitória Grossi, desempenhou papel determinante para que ela assumisse a docência. Ela acreditava que Guilhermina tinha aptidão para ser professora. Em dado momento, a professora Vitória foi visitar os pais de Guilhermina e, naquela ocasião, acabou convencendo seu pai, principalmente, que a autorizou a começar a trabalhar. Como já analisaram Lopes (1991) e Almeida (1998), a dimensão de gênero é importante para pensarmos as trajetórias de profissionalização da docência. Apesar de não pretendermos aprofundar a questão, é importante lembrar que o:

[...] magistério de crianças configurou-se bastante adequado ao papel da mulher como regeneradora da sociedade e salvadora da pátria e tornou-se aceitável, em termos sociais, familiares e pessoais, que ela trabalhasse como professora. (ALMEIDA, 1998, p. 33).

A professora Olga Ramos Brentano nasceu aos 19 de junho de 1917, em Porto Alegre. Seus pais eram Maria Márcia de Oliveira e Silvério Ramos de Oliveira. Na época da entrevista, residia há cinquenta e dois anos em Farroupilha. Atuou como professora nos municípios de Caxias do Sul e Farroupilha. Quando questionada acerca dos motivos para tornar-se professora, afirmou:

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Eu escolhi e continuo escolhendo; eu acho que já nasci professora. Eu tive muita influência do meu pai, que era professor. E o gosto, eu gosto, até hoje assim de, de ensinar. Eu me sinto bem. Eu acho que é um trabalho de valor, eu me sinto valorizada quando eu exerço a minha função de professora. [...] Eu comecei moça, muito moça e trabalhei sempre assim com muita vontade, com muito entusiasmo [...]. (Olga Ramos Brentano, 1991).

No caso da professora Olga, a escolha da profissão esteve relacionada com questões familiares, já que o pai, Silvério Ramos de Oliveira, também era professor. Para Olga, ele era “um entusiasmado pela educação”. Relembrou que o pai era uma pessoa muito culta, que a influenciou profundamente e que a aconselhava a ser tranquila, a não exaltar a voz com os alunos e, sim, estar próxima deles. A professora Olga começou atuar em 1939, aos 22 anos de idade.

As memórias dos primeiros anos de docência das professoras Lídia, Liduvina, Catarina, Verônica, Dorotéia, Marina, Nair e do professor Ângelo dão a ver esse universo da educação rural e da formação, ou da falta dela, desses que exerceram docência com apenas alguns anos de escolarização.

A escolarização de Lídia Lamper de Freitas Travi6 iniciou-se com sete anos, na cidade de Montenegro. Fez colégio elementar7 em Montenegro e, segundo seu relato, havia muitos professores e muitos vinham de São Leopoldo e Porto Alegre. Com relação ao início da carreira do magistério, ela relata que:

[...] a prefeitura resolveu também fazer os concursos. Então eu aprovei, estava, já tinha tirado a 6ª série, e aprovei, fiz o concurso e passei muito bem. Aí me nomearam em Arroio Canoas [...] fiz até a 6ª série, mas

6 - Nasceu em 1903, em Montenegro, RS.7- No Rio Grande do Sul, os colégios elementares eram os que correspondiam, no restante do Brasil, aos grupos escolares.

eu continuei sempre estudando nas férias. (Lídia Lamper de Freitas Travi, 1987).

Lídia comenta que prosseguiu fazendo cursos de formação após o ingresso na carreira. Referentes a esses, lê um trecho de seu atestado, com o seguinte texto “Atestamos que a senhorita Lídia Lamper de Freitas completou o curso de aperfeiçoamento do Colégio 7 de Setembro, datado de 10 de dezembro de 1921.

A entrevistada Liduvina Sirtoli Tisott iniciou seus estudos com 11 anos, entrando na escola por volta de 1923. Segundo rememorou:

A escola era a uma igreja velha de São João Evangelista [...] da 4ª légua, próximo de Galópolis [...] acho que 8 quilômetros, agora cortavam um pouco a estrada né [...] já era municipal e o professor era de Porto Alegre o nome do professor era João de Laranjeira. Disseram que tinha muitos professores lá em Porto Alegre e não tinha serviço. Mas ele ficou pouco tempo. [...] Eles não gostavam daqueles que vinham de fora. Ninguém gostava dele. Eu gostava daquele professor [...] era bastante, já tudo grande [refere-se aos alunos] porque não tinha aula antes, então ficaram um tempo sem aula [...]. (Liduvina Sirtoli Tisott, 1987).

Sua carreira no magistério iniciou-se aos 15 anos, após ter frequentado a escola por cinco anos. Foi indicada pelo intendente da época, o italiano Celeste Gobatto. Relembra que fez um exame para iniciar; no entanto, só podia lecionar “provisório, pois não tinha a idade mínima que era 18 anos”. Sua formação foi com a Seleta “eu aprendi muita coisa porque eu queria saber. Sabe, a gente começava no 1º livro, 2º, 3º, 4º e ia até o manuscrito da Seleta” (Liduvina Sirtoli Tisott, 1987). O manuscrito da Seleta8 foi utilizado por quem estava no 5º ano de estudos.

8- A Seleta foi um livro, organizado pelo professor Alfredo Clemente Pinto, que marcou inúmeras gerações gaúchas. O nome do livro substituiu o do adiantamento, tamanha a importância a ele atribuída. Cabe ressaltar que a Seleta reunia textos que abordavam conhecimentos de literatura

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A professora Catarina Rosa Piva Foppa9 iniciou seus estudos em Garibaldi, aprendendo o catecismo por volta de 1917, com aproximadamente sete anos, com uma professora que ensinava no colégio das irmãs. Seus pais também a ensinavam em casa, sendo o pai o responsável, já que a mãe “falava um português misturado com dialeto italiano, muito atrapalhado” (Catarina Rosa Piva Foppa, 1988).

Não é possível precisar qual seu grau de instrução ao ingressar na carreira do magistério, mas, pelos indícios, é possível perceber que estudou aproximadamente sete anos, fez concurso e continuou com cursos de formação oferecidos pela prefeitura de Garibaldi. A respeito do processo de seleção para início da carreira docente, Catarina narrou: “Eu vim pra cá, aí o prefeito... Então eu me submeti a um exame, mandaram fazer uma redação, depois fizeram umas perguntas, também de gramática e aí então mandou fazer umas continhas e só” (Catarina Rosa Piva Foppa, 1988). Segundo ela, existia na época uma espécie de formação para os professores, que era realizada uma vez por ano pela orientadora de ensino:

A orientadora, era Naides Bordini, ela morava em Porto Alegre. Ela fazia reuniões pra todas as professoras juntas. Isso era uma vez ou duas por ano, então explicavam tudo como é que a gente tinha que fazer no colégio, tratar os alunos, como tinha que ser feito tudo. Ela explicava tudo direitinho, porque tinha professoras que batiam muitos nos alunos, e eles não queriam... naquele tempo mesmo. [...] o inspetor... o Salvador Bordini e a Naides a orientadora, não achava esse método certo, sempre queria que a gente tratasse os alunos com palavras [...]. (Catarina Rosa Piva Foppa, 1988).

portuguesa, brasileira e de cultura geral. A primeira edição é datada de 1884. Ver mais em Almeida (2007).9 - Nasceu em 1910, em Garibaldi, RS, filha de Palmira Corbelini e Vicente Piva.

É possível perceber nesse caso, assim como em outros, uma relativa preocupação com questões pedagógicas por parte dos gestores públicos e a circularidade das ideias pedagógicas modernas. Na medida em que a organização da educação municipal foi ganhando contornos administrativos, torna-se perceptível a regulação dos fazeres escolares e da própria formação dos professores, baseada nos pressupostos pedagógicos da modernidade.

Em seus relatos, Verônica Candiago Bortolon10 lembra que iniciou seus estudos com sete anos e a carreira como professora começou em 1930, dando aulas particulares em um galpão de propriedade do tio, Cirilo Ruzzarin:

[...] aos 14 anos eu precisava me comprar uma roupa, ajudar minha mãe a vestir meus irmãos. Então meu tio Cirilo Ruzzarin e o seu Benício Pontalti que sempre foram nossos amigos disseram: Seria bom se a Verônica viesse lá na nossa casa lecionar pros nossos filhos. Nós pagaremos alguma coisa para ele ajudar a mãe. Cirilo Ruzzarin disse: ela pode ir lá em casa que eu tenho uma sala grande em cima cantina. Nós fizemos bancos e ela pode começar a vida dela lá. Aí eu fui pra lá, morava na casa do meu tio e ele me pagava 20 mil réis por mês pra lecionar pros filhos dele, aí eles acharam os Bozzi, os Pezzi, outras pessoas [...]. (Verônica Candiago Bortolon, 1985).

Dorotéia Rizzon Corte11 relata que começou a estudar com cinco anos e meio, em 1925, na escola localizada na comunidade Tuiuti, com a professora Marcolina Zacaron, que ensinava em italiano porque, segundo ela, “ninguém entendia nada”. Explica que falavam italiano em casa e na escola também “porque nós não entendia. Depois então, que nós fomos nos adaptando aos pouquinhos, o professor explicava e a gente ia [...]” (Dorotéia Rizzon Corte, 1986).

10 - Nascida em 1915, em Caxias do Sul, RS.11- Nasceu aos 27/09/1919, em São Marcos, RS, filha de Maria Étvolf Brisolin e Pedro Rizzon.

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A professora Dorotéia acreditava na importância de falar português. Conta que chegavam à casa “faceiros” com as palavras novas que aprendiam. “A minha mãe gostava; agora, meu pai, tanto fazia. Ele dizia: Si, si va lá, tanto fa parlar in italian come em brasilian” (Dorotéia Rizzon Corte, 1986). Ela estudou com a Seleta, 1º, 2º e 3º livro, ficando na escola por cinco anos. Iniciou sua carreira lecionando particular em 1932, auxiliando outra professora, Marcolina Barcaron, em uma escola municipal e os pais pagavam a ela 200 réis. Na época, estava com 13 anos. Tempos depois, fez concurso e foi nomeada pelo prefeito Miguel Muratori, mas não pôde assumir, pois tinha somente 15 anos e a idade mínima era 18 anos.

Com relação aos seus primeiros anos de escolarização, Marina Bridi Moretto12 conta que começou a frequentar a Escola São Virgílio com aproximadamente sete anos, por volta de 1933. Pelos seus relatos, há indícios de que era municipal. Afirma que “os professores acho que eram pagos pelo município, mas a escola em si era da comunidade” (Marina Bridi Moretto, 1986). Estudou até o 5º ano nessa escola, lembrando que as turmas eram numerosas com 40, 45 até 50 alunos. A sua primeira professora foi Isolina Rossi Lopes.

Marina Moretto diz, em seu depoimento, que não havia professores titulados na época:

[...] eu somente estudava no colégio como qualquer criança. Eu não me preparei, fiz até o 5º ano, o meu nome foi indicado por uma senhora chamada Joana Gasperin. Era uma moradora da Linha Barro Experimental, amiga da família Dante Marcucci. (1986).

A entrevistada Marina não prestou concurso; simplesmente começou a trabalhar, depois fez curso de férias. Ia duas vezes por semana à cidade de uma professora particular chamada Iole Rossi. Segundo ela, uma

12- Nasceu em 1926, filha de Fortunata de Gregori e Daniel Bridi, no interior de Caxias do Sul, RS.

das coisas importantes que ensinava era o catecismo, para que os alunos pudessem fazer primeira comunhão.

O início da escolarização de Nair Menegotto Grandi13 se deu aos seis anos. Ela cursou até a 5º série em um grupo escolar e, na sequência, fez exame de admissão e iniciou o curso complementar em Vacaria, tendo frequentado somente o primeiro ano, devido ao falecimento do pai. Não concluiu o curso e estudou até os 16 anos: “[...] minha mãe, sozinha, disse: ‘Minha filha, fica em casa’, mas, com mais dois anos, eu estaria formada. De qualquer forma, prestou concurso para iniciar a carreira do magistério: “Quando fiz aquele concurso que tirei o primeiro lugar, aí me deram para mim escolher e fui lecionar na Linha Gumercindo, a escola era São Paulo”. Mais tarde, fez cursos de aperfeiçoamento. (Nair Nenegotto Grandi, 1988).

O entrevistado Ângelo Araldi14 nasceu em Flores da Cunha, em 1926. Foi para a escola em 1932, aos seis anos, tendo cursado o ginásio em Porto Alegre. Quando voltou para Flores da Cunha, foi convidado para trabalhar em Lages ,em uma casa de comércio, mas não se adaptou. Tempos depois, foi chamado pelo pai, pois havia surgido uma vaga para lecionar em uma escola denominada Osvaldo Cruz:

Não tinha mais professores, era na Linha Oitenta. [...] Então meu pai me mandou uma carta [...] era uma escola municipal. [...] Comecei lecionar no municipal em outubro de 1948, nem existia concurso na época para a escola municipal. (Ângelo Araldi, 1989).

Ao longo da década de 1930, na RCI e acompanhando as políticas nacionais e gaúchas de educação, a formação dos professores, com elevado número de leigos atuando,

13- Nasceu aos 20/04/1927, filha de Anita Mengotto e João Becker Pedreira, natural de Bento Gonçalves, RS.14- Era filho de Dosolina Corso Araldi e José Araldi Filho, natural de Flores da Cunha, RS.

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gera debates e preocupação por parte dos gestores públicos. As trajetórias dos docentes permitem-nos pensar que a maioria vivenciou a passagem da condição de estudantes para a de professores, o que Nóvoa (1991) explicou como um processo de profissionalização docente que se dá em serviço e por meio da evocação das representações construídas, enquanto alunos, do papel do professor.

Não é uma profissionalização obtida numa escolarização prévia e formal para o posterior exercício da docência. De tal modo que muitos desses professores reproduzem, na prática docente, a forma como aprenderam em seus anos de vida escolar. Demandados por essa condição, encontramos registros de que anualmente, nos diversos municípios em estudo, eram oferecidos aos professores, no período de férias de verão, com caráter de frequência obrigatória, cursos e encontros de caráter formativo-pedagógico.

Práticas e fazeres escolares em escolas rurais

Com relação às práticas escolares, o depoimento de Rosa Meneguetti Bovo15 traça o cenário de um país necessitado de alguém que cumpra o papel de professor. Ela nasceu na Itália e chegou ao Brasil 1908, fixando-se em São Paulo, onde permaneceu por um ano. Depois se mudou para Caxias, no Rio Grande do Sul. Em seu relato, detalha sua prática e forma de ensinar, como era o material escolar, descreve a escola, as crianças, o universo de uma cultura escolar. Um aspecto que chama atenção está relacionado ao material didático utilizado ainda em meados da década de 1930.

Ela e o marido foram contratados pelo intendente para darem aula na escola de San Giacomo, onde permaneceu por um ano:

15- Nasceu em 09/07/1900, filha de Elizabeta Cornetto e Giovanni Meneghetti, natural de Vescovana, Padova, Itália. O original dessa entrevista está em italiano, foi transcrita em italiano e traduzida pelas autoras da pesquisa.

Depois de San Giacomo, me demitiram. Pra mim, não tinha mais aula. Tinha uma senhora Queiroz, que conheci quando ensinava em San Giacomo, mais velha, a ela encaminhavam os que chegavam. (Rosa Meneguetti Bovo, 1988).

O seu marido continuou lecionando na comunidade de São Ciro, em uma escola particular que pertencia à comunidade. Chamava-se escola Italiana. No seu relato, a professora faz referência ao conteúdo escolar:

Primeiro de tudo eu começava a alfabetizar, [...] depois vinham aqueles livros que chegavam, belos e ilustrados. Começava com a base alfabética e alfabetizava [...] O meu lema era “sou italiana” mas censuraram essa frase aqui. (Rosa Meneguetti Bovo, 1988).

Segundo Luchese (2007), até meados da década de 1930, era possível encontrar escolas étnico-comunitárias na RCI e material didático vindo da Itália16. No entanto, a partir de 1938, todas essas escolas foram fechadas pelas leis de nacionalização.

As turmas eram numerosas e, como era característica geral das aulas isoladas rurais, todos os níveis de adiantamento ficavam na mesma sala: “[...] eu trabalhava até a quinta série – primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto. Eu tinha 72 alunos matriculados que frequentavam a escola no Desvio Rizzo. Sozinha!” (Guilhermina Lora Poloni Costa, 1991). A professora Guilhermina recordou que nem mesmo quando teve o primeiro filho ficou afastada das atividades docentes:

[...] nunca tirei licença. Ganhei um filho, eu tinha direito a três meses; a minha licença foi de oito dias, uma semana! [...] Eu achava

16- Os indícios desse depoimento remetem às chamadas escolas étnico--comunitárias, presentes no Brasil nas regiões de colonização alemã e italiana, cujo material didático utilizado era proveniente da Itália, custeado pelo governo italiano, para difundir os ideais patrióticos característicos do fascismo de Mussolini.

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que as crianças ficando três meses sem aulas iam ficar muito prejudicadas, por que logo em seguida teriam as férias [...] e como a escola era do lado da minha casa, eu continuei lecio-nando. (Guilhermina Lora Poloni Costa, 1991).

Na entrevista com a professora Olga, fo-ram apontadas as diferenças entre escolas ur-banas e rurais. Ela afirma que, comparando a atuação do professor das escolas isoladas e a daqueles que atuavam nas áreas urbanas, o tra-balho era um pouco diferente, pois o professor das escolas rurais fazia tudo, inclusive os traba-lhos administrativos e de limpeza da escola. Não havia outros profissionais para auxiliá-lo. Já nas escolas urbanas, nos anos de 1920, 1930, já ha-via certa estrutura, especialmente nos colégios elementares e grupos escolares.

A professora Guilhermina recordou que cada professora era responsável pela limpeza da sala, da escola. Os professores recorriam ao auxílio das alunas, como conta: “[...] sempre tinha uma aluna que gostava, ela se mostrava muito dedicada para a professora; então ela fazia questão de ajudar” (Guilhermina Lora Poloni Costa, 1991). Às vezes, era mais do que uma aluna, já que “[...] uma lustrava a classe, outra ajudava a limpar o chão, depois passava cera” (Guilhermina Lora Poloni Costa, 1991).

No que se refere ao uso do uniforme, analisando as fotografias de época, percebemos que não eram tão comuns até o final da década de 1930, quando novas legislações passaram a orientar seu uso. A professora Guilhermina lem-brou que o uniforme dos alunos era um guarda--pó branco e que, para as crianças de famílias com poucas condições econômicas, ela mesma providenciava a vestimenta, comprando sacos de farinha nas padarias, alvejando-os e depois os costurando para os alunos. A professora Olga também narrou que as escolas estaduais tinham um avental branco como uniforme e que o uso era obrigatório.

A prefeitura fornecia alguns materiais escolares, como giz, alguns livros e, para as crianças mais pobres, os cadernos. A maioria

usava com suporte para a escrita a lousa (ardósia com borda de madeira) e, mais tarde, os cadernos. Mas a criatividade, mediante a escassez, produziu improvisos. A entrevistada Dorotéia Rizzon Corte lembrou que seus cadernos eram feitos de papel de embrulho:

De embrulho, aquele papel de embrulho. E costurava, a gente costurava com a mão, com agulha, fazia um caderninho. Passava ferro e cortava ele não muito grande. Numa folha, por exemplo, que a gente comprava um quilo (1kg) de açúcar, naquele tempo não vinha embalado. Então, dobrava em quatro, passava ferro e depois cortava. E, por exemplo, tu pegava uns quatro, cinco já ficava um blocozinho e fazia as linhas com o lápis. (Dorotéia Rizzon Corte, 1986).

Ao apontar a metodologia de ensino utilizada, a professora Olga afirmou que as aulas, em geral, “eram aulas expositivas. Mas havia, havia também a aplicação de métodos como, como o sistema de projetos, centros de interesse que os professores desenvolviam” (Olga Tonolli Sevilla, 1988). No que se refere ao calendário e às comemorações escolares, a professora Guilhermina afirmou:

[...] o calendário era organizado pela Prefeitura. [...] No feriado tinha que fa-zer a comemoração da data histórica, fazer a preleção, a professora fazia a preleção, aproveitava falar sobre aquele ponto e os alunos recitavam poesias. A gente ia pre-parando, então era aquela hora uma hora cívica. Cantava-se o Hino à Bandeira, haste-ava a bandeira, cantava-se o Hino Nacional. De tarde, às seis horas, era o arreamento da bandeira com o Hino Nacional. (Guilhermina Lora Poloni Costa, 1991).

A respeito das ênfases cívicas das práticas escolares, a entrevista com a professora Olga também contribui. Para ela, no ensino de História, a maior ênfase era a História do Brasil:

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Era considerado assim com muito respeito, muito interesse, uma preocupação em fazer o aluno conhecer a nossa história. Certos fatos assim eram enfatizados. [...] Havia uma preocupação em criar no aluno um sentimento de patriotismo. (Olga Tonolli Sevilla, 1988).

Conforme o relato da professora Olga, as comemorações da Semana da Pátria, por exemplo, eram “um acontecimento”. As memórias docentes são corroboradas pelas diversas circulares que eram enviadas aos professores municipais, orientando-os e determinando práticas cívicas. Na Circular nº 1, de 07 de maio de 1941, por exemplo, o artigo primeiro informava aos professores que todos os dias os alunos deveriam entoar o Hino Nacional antes do início das atividades. Ao final do dia, estabelecia que seriam cantadas as duas primeiras estrofes do Hino à Bandeira. Cabia aos professores ser “o melhor exemplo de sentir o que está ensinando”. (CIRCULAR nº 1, 07/05/1941). Aos sábados, a mesma circular informava que “a escola em conjunto, no local mais apropriado, praticará maior ato de culto cívico, cantando em massa o Hino Nacional e o Hino à Bandeira” (CIRCULAR nº 1, 07/05/1941). Enfatizava-se que a professora deveria ter atenção à música e especialmente às pronúncias das palavras “evitando deturpações ou vícios que podem deprimir o magistério municipal” (CIRCULAR nº 1, 07/05/1941).

Em um momento histórico de plena valorização e construção de um ideal de nacionalidade brasileira, o culto cívico17, seja entoando hinos, comemorando datas cívicas, lendo textos, poesias ou fixando nas paredes das salas de aula dísticos representativos dessa brasilidade, ganhava contornos singulares e

17- Para os dias em que ocorriam os cultos cívicos, a normatização dava conta que o ritual consistiria: “1º) formatura da escola às 9 horas para as que funcionam de manhã e 14 horas para as que funcionam à tarde; 2º) canto do Hino Nacional; 3º) preleção da professora, alusiva à data; 4º) declamações por parte dos alunos que se relacionam com os acontecimentos em celebração; 5º) encerramento com o Hino à Bandeira” (CIRCULAR nº 1, 07/05/1941).

especiais entre descendentes de imigrantes, falantes ainda de dialetos que, com frequência, aprendiam na escola o português18. As rotinas da escola eram marcadas pelas festividades e comemorações de datas cívicas que pretendiam inculcar significações e marcas no processo identitário infantil. Como situa Bittencourt (1992, p. 52), “prevaleceu uma espécie de culto sacralizado que foi sendo incorporado por professores e pelos próprios alunos.”

A professora Guilhermina também explicou que, na segunda-feira, por exemplo, trabalhava com matemática e com português, que, naquele tempo, eram, respectivamente, aritmética e gramática. Todos os dias, tinha que dar essa aula e muitos outros assuntos:

Depois, então, vinha um ponto de história, civilidade, a gente ensinava muito como a criança deve se portar sentada, na igreja, perante as pessoas, como ela deve tomar a sopa, então a gente fazia aquele jeitinho com a colher, como deve ser [...]. Essas coisas assim de higiene, escovar os dentes todas as manhãs, após as refeições, nunca ir pra mesa sem lavar as mãos [...]. Toda essa parte de civilidade se ensinava muito às crianças, por que elas precisavam disso, não é? Por que eram crianças assim da colônia, que não tinham certas regras assim de higiene. [...] Às vezes se dava um desenho. Geografia se explicava sobre Caxias do Sul, que é a cidade onde eles moram; depois o Estado. (Guilhermina Lora Poloni Costa, 1991)

Afirmou que, no município, trabalhavam 208 dias letivos e que não havia férias durante o período do inverno:

[...] a professora tinha que estar sempre antes do horário na classe. [...] meia hora antes do início das aulas a professora tem que estar na escola. As aulas iniciavam, com os alunos, às

18- Conforme apontam estudos como os de Faggion; Luchese (2011), Frosi; Mioranza (1983) e Frosi; Faggion; Dal Corno (2010).

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oito horas e terminavam às doze em ponto. (Guilhermina Lora Poloni Costa, 1991).

O recreio, no meio da manhã, era de vinte minutos. Com relação aos outros saberes, esclarece que:

A hora cívica era a primeira hora, era religião e caligrafia, para a criança aprender a escrever direitinho, o tamanho certo da letra. Tinha os cadernos com as linhas apropriadas: a linha menor para as vogais e a maior, então, era para expandir as consoantes. Caligrafia, todos os sábados se fazia. E depois, tinha desenho, nós dávamos desenho e trabalhos manuais de serrinhas, que as crianças... As meninas faziam cada trabalho lindo! [...] Trabalhos manuais, muitos trabalhos manuais se faziam na minha escola. Até para a Argentina foram trabalhos manuais feitos na minha escola. (Guilhermina Lora Poloni Costa, 1991)

A professora Guilhermina contou a respeito dos trabalhos manuais que eram

ensinados para as crianças, sendo que, para as meninas especialmente, ensinavam-se o tricô, o bordado, o crochê e até receitas. Para os meninos, os trabalhos com madeira. Relatou que, na semana comemorativa ao dia da criança, aproveitava para promover excursões e realizava a festa escolar com doces, brincadeiras e atividades diferentes.

Na Educação Física, a professora Guilhermina destacou a atividade de “marchar, porque eles tinham que aprender, na Semana da Pátria, a gente tinha que desfilar. Se ensinava exercícios de tronco, braços, pernas e elevação, coisas assim. Exercícios mais” (Guilhermina Costa, 1991). Exemplificando as lembranças das aulas de Educação Física ministradas por Guilhermina, veja-se a figura a seguir, reproduzida de um dos diários de classe da referida professora:

As propostas apresentadas em 1946, no planejamento diário da professora Guilhermina, apontam para os exercícios ginásticos. Conforme estudos de Roso (2012) e Fonseca (2010), as práticas de ensino de Educação Física foram voltadas para a

Figura 1 – Caderno diário de classe da professora Guilhermina Poloni Costa, 1946.

Fonte: Acervo pessoal da família de Liliane Viero Costa.

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ginástica, especialmente a calistênica e, mais tarde, na década de 1950, começa a se difundir a prática esportiva.

Com relação aos materiais escolares utilizados, a maioria dos professores rememorou a importância do uso de livros didáticos que, pela precariedade de formação de diversos professores, tornavam-se o elemento orientador para a prática educativa. A professora Guilhermina recordou que:

Eram os manuais, assim, que traziam os programas de ensino do primário, sobre, desde o primeiro ano até a quarta [...]. Esses livros eu usava, só que eu usava, eu usava para preparar o meu plano de aula [...] tinha uma revista que eu era assinante, Tico-Tico, parece que era Tico-Tico. Trazia coisas muito bonitas sobre o ensino, sobre estudo, sobre História e, eu era assinante [...]. (Guilhermina Costa, 1991). O livro ou os livros, especialmente os

manuais e compêndios escolares, marcaram forte presença e seu uso no cotidiano escolar é constantemente lembrado pelos docentes (e também discentes). Recurso utilizado para cópia, para leitura individual – silenciosa ou em voz alta e para ditado –, sendo lido, relido, memorizado e, por vezes, em parte declamado... Como ressalta Boto (2012, p. 356),

[...] o livro era o primeiro; era às vezes o único. O livro escolar era por isso sagrado ao trazer a possibilidade de abertura dos outros livros, que poderiam ser, como este, manuseados, copiados, usados, lidos e compreendidos. A professora Dorotéia Corte (1986)

narrou que preparava antecipadamente as aulas, que “nunca ia de cabeça vazia para a escola”, valorizando, assim, o plano de aula preparado previamente a partir dos manuais que existiam na época. Em outros relatos, é mencionada a importância do planejamento e o

quanto os inspetores exigiam que os professores registrassem previamente o que pretendiam trabalhar com os diferentes adiantamentos.

No que se refere às práticas escolares, a entrevistada Olga pontuou ainda o valor das excursões promovidas por algumas escolas:

[...] excursões dentro das práticas escolares como uma novidade e que tinham sempre um objetivo de conhecimento. Eram levadas muito a sério pelos professores, que cobravam dos alunos uma resposta ao que tinham aprendido e consideradas com muita seriedade. Eu aprendi muita coisa através das excursões [...]. (Olga Sevilla, 1988).

Aliado ao conhecimento das disciplinas que precisava ministrar, o professor, como modelo de virtude, missionário, sacerdote do saber e exemplo de conduta, era muito cobrado e/ou valorizado pelas suas posturas. Como afirma Almeida (1998, p. 37),

[...] como o cuidado com crianças não fugia à maternagem, o magistério representava a continuação de sua missão, nos moldes propostos pelos positivistas e higienistas no século XIX e de acordo com o imaginário social acerca do papel feminino.

A professora Guilhermina Costa (1991) recordou-se com carinho dos pais, afirmando: “Eu gostava da zona rural, os colonos eram muito bons, sabe? Traziam muitas frutas, traziam muita coisa, me convidavam para almoçar na casa deles [...]”. As boas relações eram mantidas com os pais, que admiravam o trabalho da professora e reconheciam simbolicamente seu valor. Outra professora, Dorotéia Corte (1986), afirma que na comunidade onde morava, a professora era tudo: “Ah! Eles adoravam uma professora, era tudo para eles. Eles apoiavam, davam tudo o que podiam para a professora. A professora lá era uma rainha”. Em seu relato, Dorotéia ressaltou ainda os presentes que a professora, quando admirada pelos pais, recebia:

354354 Terciane Ângela LUCHESE; Luciane Sgarbi GRAZZIOTIN. Memórias de docentes leigas que atuaram no ensino...

Se te digo que eles matavam um porco, era a melhor costela, as linguiças, levavam toicinho, tudo eles levavam para a professora. Bom! Cada sábado ela levava mesmo quando eu comecei. Levava para casa galinha, ovos, queijo, leite, bom, ela não comprava nada. Feijão, alho, cebola, batata, tudo, tudo a gente levava. (Dorotéia Corte, 1986)

Outros entrevistados também relataram que as famílias eram receptivas, que a professora era constantemente presenteada, convidada para partilhar de momentos especiais na comunidade como festas, almoços. Receber a professora na casa da família, assim como o padre, era uma alegria e também uma distinção.

Considerações finais

As memórias das docentes são reveladoras do papel da comunidade na constituição e instituição da profissão docente. Professoras leigas, algumas com poucos anos de escolarização, que, pela ligação com o espaço comunitário, pela necessidade e oportunidade surgida, fizeram-se professoras. No decorrer da carreira, encontraram assento nos cursos de aperfeiçoamento, nos colégios de formação docente ou pelo autodidatismo, construindo oportunidades complementares de profissionalização. Trata-se de experiências docentes ligadas ao espaço comunitário, com sentido social valorizado por eles a ponto do professor ser catequista, conselheiro, líder comunitário. Como nos lembra Fernandes (1998), de certa forma, muitas dessas professoras eram missionárias, ou assim se esperava que fossem, capazes de sacrificar ou abandonar ambições pessoais e mesmo profissionais para pensarem em um destino transcendente. Desempenhavam:

[...] uma das funções tradicionais do professor, aquela que o configurava como agente espiritual, enquanto docente, e como orientador social, enquanto

personalidade modelar no interior da comunidade. (FERNANDES, 1998, p. 3).

Conforme as entrevistas, o bom professor, para as comunidades da RCI, era aquele que, independentemente de sua formação, conseguisse ser exemplo de vida; que cumprisse os deveres, respeitando o tempo da aula, mantendo a disciplina, ensinando de forma conveniente as noções essenciais da leitura, da escrita e das operações fundamentais; que fosse capaz de organizar os alunos, com ordem, respeito e asseio, participando dos momentos de socialização, festividades e demais acontecimentos da comunidade; de bom caráter, que não tivesse vícios e preservasse os bons costumes. De outra parte, os professores que não tivessem a postura considerada ideal pelas famílias raramente se mantinham entre elas. Luchese (2007, p. 392) afirma que:

A grande maioria dos primeiros professores da Região Colonial Italiana não possuía formação pedagógica. Muitos dos que atuaram [...] possuíam apenas estudos primários. No entanto, eram, em sua maioria, os mais instruídos da comunidade, e essa condição, somada a de serem “mestres”, gerava prestígio, respeito e liderança comunitária. Muitos foram os professores que assumiram, dentro do meio social em que viviam, papel central nas questões religiosas, reivindicatórias e de organização, tornando-se representantes daquele grupo, quando não lideranças locais. Essas eram as representações produzidas acerca do ser professor.

Pensamos que as lembranças desses professores assumem, ao mesmo tempo, significados particulares quando manifestam sentimentos e experiências singulares, mas também coletivas, quando se entrelaçam em pontos de contato, que se articulam e se estruturam produzindo um passado que é recomposto, trazendo dimensões difíceis de

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perceber por meio de documentos escritos. A utilização da memória como fonte é uma tentativa talvez de conseguir “reencontrar a originalidade, irredutível a toda definição a priori, de cada sistema de pensamento, em sua complexidade e seus deslocamentos” (CHARTIER, 2002, p. 27). Desse modo, pelas narrativas, cruzadas com documentos diversos, temos condições de perceber aspectos do cotidiano escolar daquelas escolas rurais, permeadas por práticas específicas, adaptadas ao contexto cultural em que se situavam.

Para Grazziotin e Kreutz (2010, p. 16), as memórias, relacionadas à pesquisa, “além da história de uma região, referem-se ao sistema de pensamento, à mentalidade de uma época, a formas de comportamento, valores e prioridades”. Elas possibilitam, em determinados momentos, perceber o grau de importância que algumas questões assumiram na vida de uma comunidade, em detrimento de outras. Dão-nos acesso, por meio de uma postura teórico-metodológica rigorosa, a “apreender na vida escolar a confluência entre a tendência à conservação e o anseio de mudança”, como afirma Boto (2012, p. 364).

Ao perfilar as narrativas docentes, percebemos que elas também trouxeram diferentes elementos que fizeram parte da escolarização individual e coletiva, permitindo pinçar fatos compartilhados, como: a importância da escola para aquelas comunidades; a circulação das representações acerca do bom professor; a docência como oportunidade surgida pela ausência de professores com formação; os processos de escolha e indicação para a carreira docente; as práticas educativas, os saberes ensinados e os materiais utilizados.

Percorrendo as memórias docentes, percebemos as condições de trabalho e as experiências sociais de docentes leigas que atuaram nas escolas rurais da RCI, que constituiem em documentos enriquecidos em que,

[...] o historiador vai tentar a leitura dos códigos de um outro tempo que podem se

mostrar por vezes incompreensíveis [...] dados os filtros que o passado interpõe. (PESAVENTO, 2004, p. 42).

Fazeres docentes e culturas escolares rurais que emergem das memórias, entre o lembrado e o esquecido, o vivido e o sonhado, o individual e o coletivo, o preservado e o olvidado.

Entrevistas analisadas no artigo

Angelo Araldi foi entrevistado em 27/10/1989, pela professora Liane Beatriz Moretto. Entrevista transcrita por Tranquila Brambina Moresco Brando, acervo do Instituto Memória Histórica e Cultural, da Universidade de Caxias do Sul.

Catarina Rosa Piva Foppa foi entrevistada aos 07/11/1988, pela professora Liane Beatriz Moretto. Entrevista transcrita por Tranquila Brambina Moresco Brando, acervo do Instituto Memória Histórica e Cultural, da Universidade de Caxias do Sul.

Dorotéia Rizzon Corte foi entrevistada pela professora Liane Beatriz Moretto, aos 01/07/1986. Entrevista transcrita por Tranquila Brambina Moresco Brando, acervo do Instituto Memória Histórica e Cultural, da Universidade de Caxias do Sul.

Guilhermina Lora Poloni Costa foi en-trevistada por Susana Storchi Grigoletto, em 21/10/1991. A entrevista encontra-se transcri-ta no Banco de Memória do Arquivo Histórico João Spadari Adami, Caxias do Sul, RS, Brasil.

Lidia Lamper de Freitas Travi foi entrevistada pela professora Liane Beatriz Moretto, aos 27/08/1987. Entrevista transcrita por Tranquila Brambina Moresco Brando, acervo do Instituto Memória Histórica e Cultural, da Universidade de Caxias do Sul.

Liduvina Sirtoli Tisott foi entrevistada aos 27/08/1987, pela professora Liane Beatriz Moretto. Entrevista transcrita por Tranquila Brambina Moresco Brando, acervo do Instituto Memória Histórica e Cultural, da Universidade de Caxias do Sul.

356356 Terciane Ângela LUCHESE; Luciane Sgarbi GRAZZIOTIN. Memórias de docentes leigas que atuaram no ensino...

Marina Bridi Moretto foi entrevistada em 18/03/1986, pela professora Liane Beatriz Moretto. Entrevista transcrita por Tranquila Brambina Moresco Brando, acervo do Instituto Memória Histórica e Cultural, da Universidade de Caxias do Sul.

Nair Menegotto Pedreira Grandi foi entrevistada aos 01/03/1988, pela professora Corina Michelon Dotti. Entrevista transcrita por Tranquila Brambina Moresco Brando, acervo do Instituto Memória Histórica e Cultural, da Universidade de Caxias do Sul.

Olga Ramos Brentano foi entrevistada por Gilmar Marcílio e Janete Zucolotto em 24/10/1991. A entrevista encontra-se transcrita no Banco de Memória do Arquivo Histórico João Spadari Adami, Caxias do Sul, RS, Brasil.

Olga Tonolli Sevilla foi entrevistada aos 29/04/1988, pela professora Liane Beatriz Moretto. Entrevista transcrita por Tranquila Brambina Moresco Brando, acervo do Instituto Memória Histórica e Cultural, da Universidade de Caxias do Sul.

Rosa Meneghetti Bovo foi entrevistada aos 12/03/1988, pela professora Liane Beatriz Moretto. Entrevista transcrita por Tranquila Brambina Moresco Brando, acervo do Instituto Memória Histórica e Cultural, da Universidade de Caxias do Sul.

Verônica Candiago Bortilon foi entre-vistada em 03/10/1985, pela professora Liane Beatriz Moretto. Entrevista transcrita por Tranquila Brambina Moresco Brando, acervo do Instituto Memória Histórica e Cultural, da Universidade de Caxias do Sul.

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Submetido em: 17.02.2014

Aprovado em: 25.06.2014

Terciane Ângela Luchese é licenciada e mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). É professora na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul. Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Luciane Sgarbi dos Santos Grazziotin é mestre em Ciências pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), doutora em Educação, ênfase em História da Educação Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) com sanduíche na Universidade Clássica de Lisboa, sob a orientação do professor Rogério Fernandes. Professora da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Ciências Humanas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS.

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Madres sociales de la aldea: la maestra española durante el nacional-catolicismo

Sonsoles San Román GagoI

Resumen

Mi objetivo es señalar cómo asumen la evolución de modelos culturales dos espacios histórico-generacionales de maestras formadas antes y después de la Guerra Civil que ejercen durante el nacional-catolicismo en escuelas públicas de aldeas rurales. Quiero situar el artículo en un marco que permita comprender formación de identidades desde la perspectiva del cambio social y la asimilación a los modelos culturales. Entiendo que para esas maestras los inicios en su profesión son claves para comprender en qué medida cambios sociales y modelos educativos moldean identidades por sesgo generacional. Me propongo captar identidades de género para indagar su función regeneracionista como madres sociales de la aldea. He seleccionado para ello dos diarios de maestras representativas en dos periodos históricos. La metodología cualitativa ha sido utilizada para comprender la construcción social de las identidades de la maestra a través del análisis del texto escrito y poder así contextualizar el significado del cambio social con el análisis de su propio discurso, el texto escrito. Mis hipótesis son: 1) el momento en que empiezan a ejercer es importante para comprender cómo asumen la evolución de los modelos culturales; 2) la forma en que han asimilado las fases históricas del nacional-catolicismo en aldeas rurales moldea sus estructuras psicológicas; 3) la adaptación a la cultura de las aldeas va produciendo identidades sociales y de género. He llegado a las siguientes conclusiones: 1) la maestra es una pieza clave para comprender la evolución de los modelos culturales; 2) conocer lo que quieren recordar o silenciar permite captar el modo en que han asumido o rechazado los modelos ideológicos del nacional-catolicismo; 3) el sentido que dan a lo vivido va señalando significantes que permiten comprender el modo en que han socializado a las siguientes generaciones.

Palabras clave

Maestras — Cambio social — Género — Identidades — Memorias — Nacional-catolicismo

I-Universidad Autónoma de Madrid, Madrid, España.Contacto: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041806

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Social mothers in the villages: women schoolteachers during the National Catholicism period in Spain

Sonsoles San Román GagoI

Abstract

My objective is to point out how two generations of schoolteachers, those educated before and after the Civil War, understood the development of two cultural models which they implemented in public schools in rural villages in Spain during National Catholicism. Using their own words, I aim to recreate their lives and their relationship with the cultural structure. I understand that their generation and the beginning of their professional lives are key to understanding to what extent social changes and educational models shaped their identities. I intend to capture their gender identities to investigate the key aspects of their regenerative function as social mothers in small villages. There are few memoirs written by women teachers. I have selected two diaries of different generations. My hypotheses are: 1) when they begin to teach, it is important to understand how they address the evolution of cultural models; 2) the way they have understood the historic phases of National Catholicism in rural villages shapes their psychological profiles; 3) the adaptation to the culture of villages affects social and gender identities. Qualitative methodology has been used to understand the social construction of the identities of schoolteachers by means of the analysis of written texts and to contextualize the meaning of social change in their own discourse. I have reached the following conclusions: 1) teachers are key to understanding the evolution of cultural models; 2) knowing what they want to remember or silence allows capturing how they have accepted or rejected the ideological models of National Catholicism; 3) the meaning they give to the experience indicates how they socialized subsequent generations.

Keywords

Schoolteachers — Social change — Gender — Identities — Memoirs — National Catholicism.

I-Universidad Autónoma de Madrid, Madrid, España.Contact: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041806

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Planteamiento del problema

Las motivaciones de las personas que ponen en movimiento los procesos de transformación no deben ser buscadas sólo en los recuerdos de acontecimientos lejanos, ajenos al presente para quien no lo ha vivido. Para entender fenómenos sociales, la biografía personal debe acompañar a la cronología general. Me planteo por ello adentrarme en los entresijos del cambio social y educativo a través de memorias autobiográficas en dos generaciones de maestras.

Alfonso Ortí y Santos Juliá Díaz (2013), muestran importantes desacuerdos a la hora de considerar los arañazos de la Guerra Civil en el tejido social de España, y en concreto en el sesgo generacional. Para el primero, la república y la guerra siguen siendo el fondo auténtico de la vida española (PINA, 2010). Para el segundo, la transición hacia la democracia fue posible por el germen de sosiego de una generación, la del 56, en la que las distancias entre vencedores y vencidos desaparecieron para empujar a España hacia la transición, abriendo paso a una nueva visión de la Guerra Civil sin heridas de base histórica (JULIÁ DÍAZ, 2013).

Las autobiografías que voy a analizar están marcadas por la guerra. Maestras de dos generaciones, perciben el cambio social y educativo en las aldeas rurales de la España del nacional-catolicismo desde dos prismas ideológicos muy diferentes. En el caso de Dolores Medio (1993), formada en los idearios de la Segunda República, la relación entre su vida y los cambios sociales es constante. La referencia a la república y la guerra es el eje central de sus memorias. No es así en Julia Ortés (1998), formada en el ideario del nacional-catolicismo de los años 40. Sus escritos se caracterizan por una visión centrada en el esfuerzo personal, con omisión a la guerra y la república.

Centrándonos en las maestras, rastreamos la literatura y encontramos pocas biografías. La escasez de memorias parece indicar que han llegado a autopercibirse como

personajes de escasa importancia, irrelevantes para relatar experiencias que no piensan que puedan interesar a nadie. Lo cierto es que, por el contrario, resultan clave para comprender los cambios sociales y educativos.

Aunque no era una práctica común investigar memorias de maestras, curiosamente el tema está de moda. La Fundación Pablo Iglesias ofreció unas jornadas organizadas en la Biblioteca Nacional: Maestras de la República. Una historia para el recuerdo, algunas de ellas posteriormente publicadas (VV.AA, 2012). Nunca antes se había organizado algo así en España para homenajear a un personaje que pasaba inadvertido. A lo que se añade que en 2014, el reportaje de Pilar Pérez Solano, Las maestras de la república, acaba de ganar un Goya1. ¿Qué está pasando en España para prestar esta atención a un personaje al que nunca se le había rendido homenaje?

Existen investigaciones que han tratado de profundizar en las biografías de las maestras para entender el cambio social y los procesos de transformación (ALDECOA, 1990). Carmen Agulló (2008) ha investigado sobre las maestras en Valencia, mujeres en la sombra ayudando en tareas propias de su género en la etapa más dura que ha vivido nuestro país, la Guerra Civil. Encargadas de saneamiento y asistencia médica, ayudando a niños abandonados, en asistencia infantil a través de instituciones internacionales, como la Cruz Roja y Solidaridad Antifascista Internacional, organizaciones oficiales para niños refugiados, como la Sección de Higiene Infantil del Ministerio de Sanidad e Instrucción Pública, el Consejo Nacional para la infancia evacuada, trabajando en talleres para confeccionar ropa, asistiendo a los combatientes en el frente, apoyando moralmente su esfuerzo para que no abandonaran la lucha, un trabajo voluntario de auxilio, presencia en los organismos que abastecían las ciudades, etc. La Agrupación de

1 - Los Premios Goya son los galardones otorgados de forma anual por la Academia de las Artes y las Ciencias. En 2013, Pilar Pérez Solano obtuvo el Goya al mejor documental.

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Mujeres Antifascistas, con una fuerte presencia de amas de casa, fue designada por el Gobierno para velar por los huérfanos y soldados. Julia Vigre, representante de mujeres antifascistas por el Partido Socialista en Madrid, trabajó en las mismas condiciones como maestra republicana y activista política en Madrid (SAN ROMÁN, 2015). Recientemente ha sido publicada una biografía de Justa Freire (DEL POZO ANDRÉS, 2013). Otras investigaciones han rastreado acerca de diarios y memorias (FLECHA GARCÍA, 2005). El interés por este tipo de trabajos no es ajeno a autoras como Pilar Ballarín, Esther Cortada y Carmen Benso (VIÑAO FRAGO, 2009).

Existe otro tipo de literatura autobiográfica en la explicación de los procesos sociales. Una información detallada sobre la presencia de la mujer en los años de la República y la Guerra Civil puede encontrarse en el libro de Julia Varela (2011).

En el caso de México, Oresta López y Luz Elena Galván (2008) han publicado acerca de memorias de maestras. En España, Antonio Viñao Frago (2000, 2002, 2007) ha trabajado el tema y publicado varios artículos, uno de ellos con Víctor María Borroy (2006).

Hay publicaciones basadas en testimonios orales para conocer cómo viven e interpretan su profesión maestras de distintas generaciones: II República, nacional-catolicismo, transición democrática, posmodernidad y comienzos del siglo XXI (SAN ROMÁN, 2001, 2009). Hasta hay escritores que, sin ser maestras, han escrito en primera persona identificando el ensayo como autobiografía (BAQUEDANO, 1998).

Tema objeto de estudio

En esta ocasión me planteo comprender la posición que toman dos generaciones de maestras que han sido formadas en dos momentos de reformas educativas decisivas -antes y después de la Guerra Civil-, frente a los cambios educativos, políticos y sociales. Se trata de entender si el régimen franquista consiguió despertar un sentido del deber y una vocación

acorde con el marco de la economía del régimen autárquico en estas madres sociales de la aldea. Resulta curioso en este sentido la contracción que presentan y que se encuentra determinada por el cruce ideológico entre su condición femenina, por la que son controladas por las autoridades locales, y la imagen profesional que proyectan en las aldeas que las alzan como el modelo de mujer a seguir, por la gozan o no de respeto en esas aldeas. De hecho, la vocación femenina que asumen las dos generaciones es clave para comprender la falta de aspiraciones en las maestras que ejercen en el nacional-catolicismo. La dictadura franquista consiguió exterminar las aspiraciones personales y profesionales de las maestras que ejercieron durante el primer (1939-1953) y el segundo franquismo (1953-1962).

La economía autárquica ideada por Franco ha afectado las estructuras psicológicas de estos dos modelos generacionales, reforzando identidades de género acordes con el ideario religioso del régimen. No obstante, el modelo ideológico que se esconde detrás del uso de las metodologías, memorísticas o lúdicas, es decisivo para comprender las diferencias generacionales. El referente para comprender el uso de diferentes metodologías nos lleva hacia las reformas educativas que han tenido lugar en España desde la II República, momento en que se aprueba por vez primera la coeducación, el laicismo y el uso de métodos lúdicos para potenciar la mirada crítica y avanzar hacia la modernidad.

He buscado diarios de maestras que sean prototipos de dos generaciones que ejercen durante el nacional-catolicismo y han sido formadas antes y después de la Guerra Civil. He elegido dos para relacionar identidades culturales y de género con sesgo generacional. Me interesa poner en relación el periodo en que comienzan a ejercer con la formación de sus identidades. Me planteo por ello realizar una aproximación a las autobiografías noveladas legadas por las maestras en función de sus rasgos generacionales para captar el modo en que rechazan o silencian la imposición de los

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modelos culturales de la etapa posterior a la Guerra Civil en aldeas rurales. La forma en que afrontan cambios y retos, así como el modo en que rechazan o silencian la imposición de los modelos culturales de la etapa posterior a la Guerra Civil en aldeas rurales, nos llevan a comprender el modo en que viven e interpretan su profesión y cómo asumen los cambios sociales y culturales.

Metodología

Parto de un pilar de análisis imprescindible en la perspectiva de la sociología: el sesgo generacional. El año de nacimiento marca las representaciones de lo vivido, los rasgos culturales asumidos, las expectativas y los retos en la vida de quienes comparten generaciones.

Sigo a Ortega (1951), Mannheim (1952), Tierno Galván (1961) y Alfonso Ortí (1987) al destacar la importancia del espacio histórico--generacional. El nuevo paradigma histórico--generacional depende del destino histórico del grupo. Las unidades generacionales son paradigmas de corrientes sociales que van creando visiones temporales de la historia. Por ello, las personas que viven experiencias comunes, están marcadas por ellas, y esto les predispone a una forma de pensar y proyectar el futuro. Una generación se sustituye por otra cuando los miembros de esa generación tienen ideas y conceptos que se ubican con la posibilidad de acción en un contexto social, político y educativo. Las nuevas generaciones ocupan un lugar y buscan una realización a través de tendencias dominantes en el tiempo. El momento en que comienzan a ejercer es importante para comprender la forma en que asumen la evolución de los modelos culturales y su lucha por la educación pública, el laicismo y la coeducación.

Una persona […] convive durante treinta años productivos con los que nacieron veinte años después que él, y diez con los nacidos cuarenta años después. En ese espacio histórico coexisten tres

generaciones que se definen por aquellos que conviven diez y treinta años con los otros grupos. […]. En un periodo de cien años, […] conviven tres grupos generacionales en un espacio de cuarenta años. A éste tiempo llamo espacio histórico generacional. Está definido […] por la inexcusable referencia a actitudes e ideas. (TIERNO GALVÁN, 1961, p. 17-18).

Se trata de recuperar recuerdos, captar identidades culturales y modelos ideológicos. Las representaciones sociales que se obtienen por el análisis del texto escrito en sus diarios, permite captar la forma en que asimilan lo vivido y poner el cambio social en relación con sus experiencias profesionales.

Sus recuerdos de madurez ponen en relación la estructura social con el yo, ofreciendo una riqueza de contenidos de utilidad para los estudiosos de la educación y personas interesadas en el tema.

He seleccionado dos memorias escritas por maestras de dos espacios histórico- -generacionales. Dolores Medio (1993) se forma en plena Restauración por el Plan de 1914 y es cursillista del Plan de 19312. En plena Guerra Civil empieza su andadura profesional. Julia Ortés (1998), se forma por el Plan de 1940, accede en 1940 a la escuela pública para cubrir el vacío que se produce tras la depuración del magisterio en 1939.

Definición de conceptos

Entiendo por ideología la conciencia práctica que lleva a diferentes colectivos o grupos sociales a hacer presentes los intereses y conflictos que expresan y difunden en sus discursos (ALONSO, 1984).

Cuando las ideologías se realizan en los discursos y la palabra escrita aparece en posición de frase con un significado, es posible

2 - Por R.D. de 30 de agosto de 1914 se regula este Plan, que unificaba los títulos de maestra y maestro elemental y superior en un único título de maestro de Primera Enseñanza, véase el artículo de Antonio Molero Pintado (1997).

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relacionar las representaciones ideológicas de las maestras con los condicionantes concretos de una situación (ORTÍ, 1986). Por ello, en el análisis ideológico del discurso hay que tener en cuenta el proceso de producción social de significados, valoraciones y sentidos, interpretado después en correspondencia con los conflictos reales de la situación histórica que lo engendra.

Desde esta perspectiva, la identidad de las maestras aparece como autoconciencia personal, profesional o colectiva, y emerge de los intercambios significativos que la persona realiza con su medio (MEAD, 1913). Los efectos de sus acciones individuales o colectivas en el mundo actúan como un espejo que devuelve al agente su rastro, su imagen como entidad efectiva. Los mejores espejos de nuestro ser en el mundo son nuestros semejantes representando los planos emotivos, motivacionales e instrumentales de nuestra vida. Más aún los otros orientacionales (KUHN, 1964): personas especiales que mantienen una relación biográfica con el protagonista, devolviéndole sus acciones interpretadas, proporcionándole categorías del yo, e incluso claves motivacionales para un proyecto de vida. Los hechos sociales serían relevantes, e incluso existirían subjetivamente, en la medida en que juegan un papel en la definición de una identidad personal o colectiva. Por eso los procesos de identidad, junto con las ideologías, tienen un papel estructurador de la realidad que los convierte en los ejes en torno a los cuales se organiza el estudio de las memorias que vamos a analizar.

Desde el punto de vista sociológico manejaré el término cultura como disponibilidad de valores, significaciones y prácticas adquiribles para comprender los primeros conceptos básicos de la historia y como la forma de crear y recrear conceptos. Sigo así la definición del concepto de cultura que maneja Norbert Elias (1979) para comprender el problema de la conexión entre las estructuras psicológicas individuales y las estructuras sociales.

De la misma manera utilizo los conceptos de cultura y vocación tal como los define Max Weber (1985). Cultura como dotación de significado y conjunto de creencias tan reales como las fuerzas materiales; vocación con un sentido de deber religioso que va a producir beneficios económicos en las aldeas rurales.

Entiendo por identidad el conjunto de intercambios significativos que realiza el sujeto con su medio. Con respecto al nivel simbólico de las identidades, éstas se encuentran relacionadas con elementos del pasado y predisponen expectativas de futuro.

Las identidades permiten comprender las claves motivacionales para un proyecto de vida, y en qué medida los hechos sociales serían o no relevantes. Estos procesos de identidad, junto con las ideologías, van dando forma a la realidad.

En este sentido, las memorias biográficas de estas maestras se convierten en los ejes en torno a los cuales se organiza el análisis del contenido en este artículo. A través del texto escrito analizaré el discurso de las maestras atendiendo a diversas variables de identificación. En la medida en que el sujeto es capaz de imaginar, se trata de captar tanto realidades vividas como deseos frustrados.

La metodología cualitativa me servirá para categorizar los recuerdos de lo vivido en dos espacios histórico-generacionales de maestras, detectar identidades sociales y modelos ideológicos que irán mostrando tanto la evolución de los modelos culturales como su relación con cambios históricos.

Entiendo ideal como modelo ideológico que se impone en un grupo de sujetos hasta determinar su percepción de la realidad por los elementos que selecciona en el proceso gnoseológico.

Criterios generacionales para clasificar las memorias

Propongo los siguientes criterios generacionales:

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• La generación de maestras sumidas en el ideario del nacional-catolicismo, como es el caso de Julia Ortés (1998), que se forma y comienza a ejercer durante el primer franquismo de los años 40. En sus vivencias recupera el pasado con escasas relaciones entre sus vivencias personales y los cambios sociales que atraviesa España. Se trata de una maestra de tiza imbuida en el ideario franquista, que utiliza metodologías memorísticas e ideologías acordes con las demandas de tal ideario. Omite todo lo relativo a sanciones del profesorado y represalias. Sus quejas se dirigen hacia envidias de hombres, que considera inadecuados por su naturaleza autoritaria para ejercer el magisterio. Su apoyo es hacia las maestras, algunas veces niñas con nueve años elegidas por ella misma como ayudantes por su intachable conducta moral. Por ello, Julia Ortés entiende que sus experiencias pueden ser de utilidad para otros y se coloca en el lado de los vencedores. Utilizaré el término vivencia como las experiencias que afectan esencialmente a la vida. Tiene por ello un significado más amplio que experiencia y próximo al significado del término en alemán como mundo de vida (lebenswelt). • La generación de maestras formadas entre la Restauración y la II República, Dolores Medio (1993) comienza a ejercer en el periodo de la guerra y sufre la saña con que fueron tratados los profesionales de la educación que no eran adeptos al régimen de Franco. La autora, sujeto activo de la construcción social de la cultura escolar, narra experiencias que encajan con momentos clave de cambio cultural en España: represalias, persecuciones y sanciones. Recuerdos marcados por la Guerra Civil que reflejan secuencias psicológicas. Dolores Medio dedica el libro a sus “[…] compañeros de Magisterio. Soldados anónimos de la mejor guerra” (1993, p.53), y se sitúa en el bando de los vencidos y castigados. Se trata de una escritora reconocida, con una importante producción literaria.

Por lo que al estilo de escritura se refiere, se aprecian:

• Una memoria descriptiva, vivencias de una maestra, con referencia a determinados aspectos de la vida pública, personal o familiar, como es el caso de la autobiografía personal de Julia Ortés (1998). La autora, muy imbuida por los principios del nacional-catolicismo, se identifica desde sus comienzos profesionales con los modelos culturales de las aldeas (quizá los catorce años con los que se inicia en la profesión explican esta adaptación y aseguran su adhesión a los principios ideológicos del franquismo). Desde el comienzo del libro, muestra un sentido del deber muy vinculado al sentimiento religioso del ideario franquista. Entiendo por ideario el modelo ideológico que presenta el sujeto en dependencia con el momento histórico en que se forma y sus propias características biográficas.

Memorias escritas en primera o tercera persona. Estilo que en ocasiones mezcla ficción y realidad para devolver en el recuerdo de lo vivido la selección de imágenes recuperadas del pasado. Tal es el caso del Diario de una maestra escrito por Dolores Medio (1993), que se identifica con los idearios de la república. En su ficción de novela con base autobiográfica, he encontrado reacciones anímicas: impacto y rechazo al llegar a las aldeas, con cuyos habitantes no se identifica, se quiere marchar, todo lo que ve choca con sus modelos culturales, se siente vigilada y asediada. Hay un momento de metamorfosis en que esta joven maestra comienza a sentirse absolutamente necesaria, a acomodarse a la aldea, a renunciar a todo y a vivir la educación como un reto, un deber moral, una vocación, una labor social a la que va a entregar el tiempo de su vida privada. Es entonces cuando se despierta ese fuerte sentido del deber vinculado al sentimiento religioso.

Análisis de casos concretos

¿Cuáles son los modelos ideológicos en que se forma cada una de ellas y cómo viven sus inicios como profesionales?

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Dolores Medio (Oviedo, 1911-1996)

Las memorias de Dolores Medio, escritora y maestra, van mezclando biografía y ficción con un estilo interpretativo. En junio de 1930, con 18 años, obtiene el título de maestra de Primera Enseñanza por el Plan de 1914 (los estudios duraban cuatro años, con diez asignaturas por curso y sin necesidad de tener el bachillerato para acceder). Después amplía su formación como cursillista del Plan del 36. Comienza su andadura profesional en 1934, momento en que ingresa por oposición al cuerpo de magisterio. En el 36 le toca firmar la adhesión al Movimiento Nacional y en octubre de ese mismo año se incorpora a una pequeña escuela asturiana: Pereda, con 56 muchachos de todas las aldeas. En febrero del 37, momento en que se destruye Guernica y comienzan los éxitos bélicos del franquismo, se tiene que incorporar a su escuela de Nava. En 1939, denunciada por el párroco, expedientada y depurada del magisterio por hacer alarde de ultra-modernismo, no practicar la religión católica y usar métodos lúdicos, es expulsada de la escuela pública.

Vivió momentos duros que produjeran importantes tensiones entre sus emociones, tendencias intelectuales, convicciones y expectativas profesionales. Su trabajo como maestra de aldea rural está marcado por el compromiso político y social. En sus memorias va señalando los efectos devastadores de “aniquilación física, mental y social de todo aquel considerado enemigo, incluso, no afecto” (VIÑAO FRAGO, 2007, p. 179). Se trazan las secuelas psicológicas que produce en ella la depuración del magisterio, las vivencias de la Guerra Civil y sus devastadores efectos en la cultura y la educación.

La autora relata cómo vive su profesión en un contexto social y educativo que enmudeció a buena parte de los intelectuales, sectores críticos y demás afectados por las secuelas de la Guerra Civil: todos y todas, conscientes o no de ello, crecieron bajo las

tinieblas del elemento irracional más eficaz para modular ideologías y conductas: el miedo (ELIAS, 1979).

Se aprecian en sus memorias fuertes dosis de frustración cultural y personal, algo compartido por toda una generación de profesionales de la educación que vive su profesión asediada, controlada y vigilada por curas, alcaldes y guardia civil, todos ellos agentes encargados de velar para proteger al Régimen.

Pertenece a una generación enmudecida, ágrafos muchos por los efectos del peso de ese miedo que cayó como plomo en sus mentes, limitando sus inquietudes intelectuales, lo que perjudicaría hasta la transición el proceso de modernización del país. En su caso, la escritura se convierte en una válvula de escape, una necesidad de vencer el miedo: a través de ella se expresará ese yo social enmudecido. Es, en este sentido, una más de las y los maestros depurados del magisterio que tuvieron que rodar kilómetros duros y quedaron a merced de los caprichos culturales del ideario del nacional-catolicismo.

Julia Ortés (Badajoz, 1922-2000)

Descriptivo, repleto de recuerdos de la escuela y los pueblos, en este libro3 no hay alusión al cambio histórico. Se trata de las vivencias de una maestra que nace en un pueblo de la provincia de Badajoz el 8 de febrero de 1922. Su padre es secretario del ayuntamiento y ella la última de 10 hermanos. En su infancia vive un ambiente católico, fervorosamente religioso, que marcará las identidades en su andadura profesional. La muerte de siete hermanos y de su propio padre, dos días después de comenzar la guerra, produce en ella secuelas físicas (resulta curioso que la autora no describa en ningún momento secuelas psicológicas) y termina perdiendo un ojo.

3- Se trata de una memoria autobiográfica escrita por Julia Ortés (1998) al finalizar su andadura profesional con el título de Vivencias de una maestra. La fuerza de la represión del régimen se muestra con claridad en una maestra que no asume como sujeto histórico.

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Nos situamos en los años del hambre, la década de los 40. Una España desnutrida de comida y cultura. En este panorama Julia asume ya desde los inicios el ideario y es adepta al régimen. No hay un antes y un después de la guerra, como en el caso de Dolores Medio. Alejada de ese nivel de profesionalidad, Julia comienza a ejercer terminada la guerra por el Plan del 40, que convertía a los bachilleres en maestras y maestros aprobando unas cuantas asignaturas, a las cuales en el caso de las maestras se sumaban Labores y Economía Doméstica; después de aprobar estas asignaturas se adjuntaban los Certificados de Buena Conducta de curas, alcaldes y guardia civil. ¿Por qué estos escasos requisitos? Simplemente las Escuelas de Magisterio permanecieron cerradas durante tres años. Los cuatro planes de estudio que se suceden en tan solo once años (1940, 1942, 1945 y 1950) muestran tanto las prisas por encontrar un mecanismo capaz de erradicar de una vez por todas los ideales sociales y reformistas de los republicanos, como el intento desmedido por reproducir a través de la escuela un modelo patriótico, religioso y nacional que sirva de bastón al nuevo gobierno franquista.

Ella es una más de esas maestras adeptas al régimen, junto con alféreces provisionales y personal de la iglesia sin preparación que se incorporan para cubrir espacios que han quedado desiertos. Al terminar la guerra se va a un pueblo pequeño entre montañas, donde la hacen presidenta de Acción Católica. Su misión consiste en mantener el fervor de un grupo de jóvenes; y entre sus tareas se encuentran: tocar las campañas de la iglesia, la limpieza de la iglesia, cuidar la imagen de la Virgen Santísima, etc.

La forma en que esta maestra asimila la evolución de los modelos culturales es bien distinta a la de Dolores Medio, que fue formada en el ideario republicano. Un fuerte sentimiento religioso lleva a Julia Ortés a identificarse con las autoridades locales y con el uso de los métodos memorísticos. Las expresiones que utiliza para narrar sus experiencias están repletas de una fervorosa religiosidad, que se hace más fuerte

cuando se refiere a su persona como maestra: “hasta el cielo lloraba mi despedida” (ORTÉS, 1998, p. 36). Se autopercibe como mujer tocada por la vara divina para llevar a cabo la misión de regenerar a los campesinos.

Identidades metodológicas

Dolores Medio no elige la profesión por vocación, sino por su interés en las metodologías. Metodología participativa y coeducación son los lemas del ideario republicano con los que se identifica. Comprometida con las ideas renovadoras de la enseñanza, aparecen en sus recuerdos constantes referencias a innovaciones metodológicas que entran en conflicto con las identidades de los campesinos.

Las normas utilizadas por la maestra anterior habían producido valores en el alumnado acordes con los métodos memorísticos tradicionales; todo ello en un escenario desolador (con un armario que guarda celosamente banderas de España bordadas por la propia maestra, las Labores, que hasta 1968 no desaparecen del currículo de las escuelas femeninas de magisterio, y que eran motivo de orgullo y signo de distinción de clase social; mapas, etc.), y que no está pensado para producir los valores que ella quiere inculcar: tolerancia, respeto e igualdad. Los viejos y los nuevos métodos, reflejo de modelos políticos e ideológicos, entran en conflicto. Su entusiasmo renovador chocará con las paredes de una escuela que muestra la sórdida historia de España.

La única modificación que se hizo en la escuela cuando ella llegó, cincuenta años antes, consistió en retirar el crucifijo y las láminas de Historia Sagrada que adornaban las paredes, cuando el gobierno de la Segunda República decretó la enseñanza laica. “La vieja Obaya lo recogió todo amorosamente y después escupió sobre la bandera republicana” (MEDIO, 1993, p. 97).

Las innovaciones metodológicas de la república que ella quiere utilizar provocan rechazo:

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No se va a jugar a la escuela, sino a aprender, que no somos ricos, que hay que empezar enseguida a ganarse la vida […]. Antes se enseñaba bien al que quería aprender...! Qué regletazos daba la vieja […]. Pero como aprender, uno aprendía. (MEDIO, 1993, p. 149).

Los modelos metodológicos de Julia Ortés presentan importantes diferencias con respecto a la maestra formada en los ideales de la II República. Julia, que opta por la metodología lancasteriana, no sólo utiliza métodos memorísticos; también proyecta una imagen del hombre como persona incapacitada por su condición masculina para ser puesto a cargo de la escuela, optando por elegir entre sus alumnas (siguiendo criterios de moralidad, pues en caso de que no supieran leer o escribir, ya les enseñaría ella).

Los usos del tiempo público y privado se anudan. En un momento en el que no existía coeducación, la maestra relata dos turnos con orden de prioridad para los niños. Por la mañana era el turno de los niños y un hombre la acompañaba; por la tarde, el turno de las niñas, y una ayudante mujer la acompañaba; por la noche, el de adultos; e iban los dos.

Identidad vocacional versus metamorfosis cultural en la madre social de la aldea

En Dolores Medio se despierta el sentimiento de protección hacia los más necesitados: niños excluidos, cargados de apodos por no tener padre o haber sido abandonados por uno de ellos. Retos que despiertan en ella un fuerte sentimiento de protección, compromiso y vocación tardía. Priorizando los sentimientos por encima de los conocimientos, se convierte poco a poco en madre social de la aldea, persona imprescindible como mujer y profesional.

Vive un reto que genera una nueva forma de entender la educación en el mundo de los afectos. Frente a la realidad de la

aldea, los conocimientos quedan postergados a un segundo plano; se produce en ella una importante metamorfosis y el abandono de otras expectativas en su vida profesional.

Ahora, al asimilar su papel en la aldea rural como madre del pueblo, se siente agente imprescindible para discentes y padres. Se va implicando como fuerza activa en el proceso de regeneración de los campesinos. Su referencia de identidad colectiva comienza a girar; ella, la maestra, percibe que es necesaria como madre del pueblo. La adaptación a los modelos culturales del nacional-catolicismo ha hecho mella en una maestra que sufre una metamorfosis, una vocación tardía sí, pero con una fuerte identidad vocacional.

Ahora, al hacerse otra vez cargo de la escuela […] le exige una total entrega a su profesión […] ¡Todo el pueblo escuela! Siempre responsable… A los ojos de los campesinos Irene había bajado de su pedestal de autoridad local para colocarse a su misma altura. (MEDIO, 1993, p. 264-270).

En el otro extremo, Julia Ortés, defensora a ultranza de la feminización y contraria a la coeducación, presenta una vocación temprana ligada a un sentido del deber, entrega y sacrificio religioso acorde al momento en que se forma, la etapa más dura, los años 40. El momento en que la religión se convierte en la referencia de la cultura de las y los españoles.

Describe un mundo de pobreza y solidaridad en las aldeas. Imágenes de orfanatos que recogen a niños y niñas, escenas de pobreza y desamparo de una infancia de la que, en algunos casos, no saben quiénes son los padres. Muchos de ellos muertos, otros en el exilio exterior y algunos escondidos en el exilio interior para evitar la muerte. Sumida en la ideología del régimen, y muy involucrada en el proceso de regeneración de unos campesinos — a quienes no tiene el menor propósito de desvincular del régimen —, es un orgullo para ella que dos de sus alumnas terminen siendo monjas.

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Los retos conseguidos van acentuando en ella un sentimiento de vocación, entrega y sacrificio. Los efectos de esta vocación la llenan de orgullo. Ella, que ya tiene 18 años, conseguirá lo que otras no han conseguido. Una niña apartada de los juegos y tachada por las demás como demonio y aborto del infierno —detrás de la que se escondía una historia tétrica, pues su abuela la llevo para ver cómo fusilaban a su padre, y su madre desapareció —, será santificada por ella, la maestra, y hasta llegará a obtener el premio de Hija de María, otorgado por el colegio a las alumnas con buenas notas y conducta ejemplar — resulta un tema curioso la cantidad de medallas con imágenes religiosas que tuvieron que llevar colgadas las alumnas premiadas. (ORTÉS, 1998). Los efectos de esta asimilada vocación son claros: limitación de ambiciones profesionales en unas maestras que priorizan su vocación por encima de cualquier pretensión económica y llegan a aceptar trabajar al cien por cien de sus posibilidades sin pedir más salario, entre otras cosas al entender que no se trata de un trabajo que se elija para ganar dinero. Tengo que decir que resulta curioso el tema del uso del dinero en las distintas generaciones de maestras que he investigado: cuanto más vocacionales y religiosas, menos dicen interesarse por los ingresos y más por las recompensas y retos profesionales cumplidos.

En el imaginario de Julia, los maestros aparecen como personas envidiosas, sin formación, astutos, siempre vigilantes, controlando, cuestionando su trabajo. Destinada a un pueblo de la zona montañosa de Badajoz, relata situaciones que recuerdan la España de mediados del siglo XIX, cuando los hombres se hacían cargo de la educación, compaginando este trabajo con otros como secretario del ayuntamiento, tendero, etc., hasta que se promulga en España la primera Ley de Educación, la ley Moyano en 1857, y la profesión se hace incompatible con cualquier otro cargo público.

Las primeras clases que tomé bajo mi responsabilidad las llevaban, a su manera

los listeros y almacenistas de los que algunos tenían setenta años. Daban clase cuando querían y cuando podían, sin tener la más somera idea pedagógica […]. Yo fui para organizar e inspeccionar aquellas escuelas, no para impartir personalmente la clase, pero me sentía impotente ante aquel panorama […]. Pensé que si en lugar de aquellos hombres, con sus respectivas obligaciones, pusiéramos chicas que sólo se ocuparan de la escuela, sería la mejor manera de hacer con ellas lo que convenía […]. Las chicas podían ser escogidas entre las alumnas a quienes se les viese más aptitudes y estuviesen adelantadas… Yo, podía, además, dedicar algunas horas a dar clases especiales a las auxiliares. Enseguida empecé a seleccionar chicas que iban ocupando el puesto de los hombres en las clases y que rápidamente empezaron a dar resultados óptimos como yo había presumido […], formaban una verdadera piña de amigas. Se identificaban de tal manera conmigo. Fui creando nuevas escuelas y con ellas estrenando locales y material. (ORTÉS, 1998, p. 37-39).

Identidad de género: las maestras regeneradoras de modelos culturales para los campesinos

Dolores Medio, formada en los ideales de la II República, asume su papel de madre de la aldea, identidad que la llevará a optar por realizar tareas que exceden los límites de su condición profesional y muy útiles, al abaratar costes en las aldeas. Las autoridades delegan en ella funciones que nada tienen que ver con lo que se exige a una profesional de la educación.

Los trabajos extra que le encomiendan las autoridades locales son asumidos por ella como obligaciones propias de su condición femenina. Condición femenina e imagen profesional están en contradicción en las representaciones de los aldeanos y autoridades locales: por ser mujer tendrá que limpiar, pintar la escuela y organizar una biblioteca en el aula. Y todo pagado de su

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bolsillo, ante la negativa del alcalde a emplear ni un solo duro para tal fin — y a facilitar la lista de las y los niños que hay en el pueblo y deben ser escolarizados.

Julia Ortés describe multitud de tareas extraescolares que serán asumidas por ella sin ninguna resistencia y con el orgullo (término que aparece en sus vivencias muy a menudo) que le produce que las autoridades deleguen funciones que implican poder y responsabilidad. Las noches las dedicaba a primeras comuniones y a ensayar versos para el recibimiento de la Virgen (se refiere a la Virgen de Fátima, que parece iba visitando los pueblos; una llegada muy esperada por la maestra y las autoridades); también pone inyecciones, ayuda al sacerdote, etc. Un sin fin de recuerdos donde la vida privada de la maestra termina por desaparecer en ese entorno de obligaciones asumidas como deberes propios de su condición femenina e imagen profesional.

Cuando me conoció el médico […], comenzó a encomendarme tareas propias de un practicante […]. Ponía inyecciones a los niños, a los hombres y a las mujeres (ORTÉS, 1998, p. 42).

Identidades culturales en la España del nacional-catolicismo

Dolores Medio describe sus primeras experiencias con el recuerdo de una mirada profesional tan atónita como la de sus alumnos, a la espera de que las horas interminables de la clase acaben y pueda escapar de esas paredes sucias, llenas de mapas lúgubres; paredes en las que se respira un modelo cultural que la incomoda. Se queda bloqueada, es objeto de crítica por parte de las autoridades.

Las críticas de los campesinos son constantes, la acusan de comunista, de atreverse a quitar de las paredes los carteles de Historia, de convertir la escuela en un teatro. El pueblo estaba acostumbrado a la otra maestra y ella, que no tiene voto, se ha negado a ayudarlos en las elecciones.

Será una más de las depuradas por ser adepta a los ideales republicanos. Cuando vuelve a la escuela en los años 40, sufre el rechazo de unos campesinos que la ven como una comunista contraria al Régimen. Ya antes de la guerra

[…] los dos bandos la han excluido en la ‘lista negra’, y acumulan cargos: los chicos juegan en la escuela en vez de estudiar. Los más pequeños la tratan de tú y se duermen en sus brazos… Los chicos y la maestra se bañan en el río, o en cualquier playa próxima con menos ropa de la conveniente […] hacen títeres en la escuela […] lo grave es que ellos mismos, los que critican, acuden a su teatro, pagan su entrada y se divierten en las comedias. (MEDIO, 1993, p. 165). Relata un panorama de miseria, pobreza

y muerte. Las generaciones de reemplazo de vencedores y vencidos sentadas en los bancos de la escuela, y ella, la maestra, frente a los dos bandos con una responsabilidad de socialización dura y difícil.

La escuela denuncia el paso de la guerra. Su aspecto no puede ser más desolador: los cristales rotos, sucias las paredes, el techo ahumado, goteras, el suelo cubierto de excrementos de animales […] Prisión, cuartel, cocina, cuadra… eso ha sido la escuela […] No es fácil la labor […] en los bancos de la escuela han de sentarse juntos los hijos de los caídos en los dos frentes […], los hijos de los fusilados en los dos bandos. (MEDIO, 1993, p. 216).

Resulta curioso que en las vivencias de Julia Ortés no se lean alusiones a las secuelas de la guerra, a los castigos a las y los maestros, etc. La autora se limita a narrar lo vivido: destinos, sueldos y experiencias. Evidentemente esta falta de sensibilidad al cambio que atraviesa España está fuertemente unida a sus representaciones sociales como maestra partidaria de un régimen por el cual parece que el tiempo no pasa, no deja huella, no ha asimilado los cambios sociales.

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Resultados prácticos

Entiendo que este artículo aporta resultados de utilidad. El momento en que una generación se forma y comienza a ejercer la profesión determina la metodología que emplea siguiendo modelos ideológicos vinculados al antes y el después de la Guerra Civil — cuestión de máxima actualidad en los momentos de reformas educativas que se están produciendo en España con la implantación de la LOMCE4 y la vuelta a las metodologías memorísticas —. También la forma en que asumen los cambios sociales que han tenido lugar en España con el proceso de asentamiento de la democracia parlamentaria.

A pesar de las diferencia por la edad, el género es determinante, produciendo un encuentro entre las dos generaciones, que asumen, por caminos distintos, la función de moldear los rasgos culturales de los campesinos en las aldeas rurales. Esta función asignada a las maestras por la dictadura franquista las lleva a identificarse como madres sociales de la aldea. Las dos llegan a entender la maternidad como una función social, que no biológica. Por ello, su condición femenina, en concordancia con las exigencias del régimen, prioriza sobre las demandas profesionales y laborales profesional. Se trata de elementos impuestos por el régimen franquista, asumidos por ellas que las dejan sin aspiraciones. Esta construcción de género determina la vocación ante la pobreza y la miseria de la España de la postguerra.

Por ello, los dos sesgos generacionales defienden cualidades femeninas para ejercer como maestra. El control ha dado sus frutos y las maestras han hecho suyo los mandatos que llegan de fuera, asumiendo que las demandas de sumisión, paciencia, entrega, sacrificio y vocación son imprescindibles para hacer bien su trabajo como profesionales de la educación. En el caso de Julia Ortés se acentúa esta identidad

4 - La aprobación de la LOMCE, Ley Orgánica para la Mejora de la Calidad Educativa (Ley Orgánica 8/2013, de 9 de diciembre), para la mejora de la calidad educativa está produciendo importantes huellas. Un nuevo currículo ha dejado fuera de los temarios las asignaturas artísticas y las humanidades. Se trata de un importante retroceso que vuelve a incidir en las metodologías memorísticas como medio de aprendizaje.

con una imagen del hombre como no apto, incapaz de naturaleza para ponerse al frente de la escuela. Por ello, la maternidad es una clave para comprender en qué medida asumen funciones que exceden a su deber profesional.

Aunque no he tratado en este artículo memorias de maestros, sí quisiera decir que no he apreciado en ellos representaciones sociales que me lleven a utilizar la expresión padre del pueblo. Esa representación está asociada con la figura del cura, relacionada pues con la iglesia y no con la educación (CELA, 1999). En este sentido, resulta curioso en qué medida la imagen de estas maestras se asocia a la exaltación de las cualidades maternales como madres suplentes y concienciadas (STEEDMAN, 1986).

Entre sus identidades se aprecia la imagen del hombre con presencia en el ámbito público y sujeto con demandas salariales, mientras la forma en que ellas viven su profesión evoca espacios ausentes de competitividad laboral y cargados de exigencias vocacionales. Detrás de estas obligaciones que caen sobre ellas, aparece el sentido y la exaltación de una vocación que prima sobre cualquier tipo de aspiración económica. La competitividad laboral y un salario digno de un cabeza de familia estaban reservados al hombre, pues en el caso de la maestra el salario era un sueldo de relleno.

De la lectura de las memorias se desprende que han asimilado su papel, consciente o inconsciente, como reproductoras del régimen. Así como un rasgo muy vinculado a la mujer, que muestran una enorme generosidad al dedicar su tiempo libre en tareas extraescolares sin pedir salario a cambio. En tanto que mujeres las exigencias de moralidad son fuertes y se percibe la imagen inmaculada de la maestra, como virgen del pueblo, de pureza, modelo, imagen, espejo, conducta intachable y transmisora de los roles de género. Poco espacio social quedaba para unas profesionales que debían actuar de forma correcta sin un desvío de la norma que pusiera sobre aviso a las autoridades locales. De lo contrario, su puesto de trabajo peligraba.

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No obstante, la forma en que afrontan los retos y viven el cambio social sí refleja la diferencia generacional. Los métodos lúdicos y las innovaciones pedagógicas se corresponden con los modelos ideológicos de la II República, las metodologías memorísticas presentan fuertes identidades con los modelos ideológicos del nacional-catolicismo. De la misma manera, los modelos culturales con los que se forman los dos espacios generacionales presentan formas distintas de afrontar los modos de vida en las aldeas y asumir nuevos retos. Por ello, las identidades culturales van variando en los relatos de estas dos maestras en estrecha relación con los modelos ideológicos aprendidos en los inicios de su profesión.

Desde mi punto de vista, la maestra es una pieza clave para comprender la evolución de los modelos culturales. Por ello, este artículo anima a continuar investigando en un colectivo que ha sufrido un olvido imperdonable por parte de las y los investigadores sociales. En el caso de las memorias analizadas, entiendo que lo que quieren recordar o silenciar permite captar el modo en que han asumido o rechazado los modelos ideológicos del nacional-catolicismo. El sentido que dan a lo vivido va creando significantes que nos permiten comprender el modo en que han socializado a las siguientes generaciones, es decir la mía entre otras.

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Recebido en: 18.02.2014

Aprobado en:13.08.2014

Sonsoles San Román Gago es catedrática de la Escuela Universitaria del Departamento de Sociología de la Facultad de Ciencias Económicas y Empresariales de la Universidad Autónoma de Madrid, España.

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Ser alguém na vida: um estudo sobre jovens do meio rural e seus projetos de vidaI

Maria Zenaide AlvesII

Juarez DayrellIII

Resumo

Este artigo discute as categorias juventude e projetos de vida, abordando-as a partir de uma pesquisa qualitativa realizada com jovens moradores da zona rural. O objetivo é problematizar a categoria projetos de vida, tomando como referência empírica um grupo de sujeitos de um município mineiro e refletindo sobre a importância dessa categoria para as discussões contemporâneas acerca da juventude. O estudo foi realizado com estudantes do ensino médio, moradores de uma região brasileira marcada pela cultura da migração e cujos projetos de vida mostraram-se sob pontos de vista distintos. A noção de projetos de vida é utiliza neste trabalho em uma perspectiva ampla, não se limitando às escolhas profissionais. Isso porque falar em projetos de vida não pode se limitar a falar em profissão. Afinal, a vida não se resume a trabalho. Para definir e caracterizar os projetos de vida do grupo pesquisado, lançou-se mão de algumas categorias analíticas discutidas a partir de: um arcabouço teórico acerca das noções de juventude, projetos de vida e campo de possibilidades; e das evidências empíricas captadas por meio do estudo etnográfico realizado. A pesquisa concluiu que, embora sejam distintos os modos como os jovens organizam suas condutas futuras, o desejo de “ser alguém na vida” é uma orientação comum à maioria dos sujeitos investigados.

Palavras-chave

Juventude — Projetos de vida — Ser alguém na vida.

I- Pesquisa desenvolvida com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).II- Universidade Federal de Goiás, Catalão, GO, Brasil.Contato: [email protected] Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.Contato: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022015021851

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Being someone in life: a study on rural young people and their life projects

Maria Zenaide AlvesI

Juarez DayrellII

Abstract

This article discusses the categories youth and life projects. Its main goal is to question the category life projects, based on a qualitative study with a group of young people from a rural municipality of Minas Gerais state and reflecting about the importance of this category to the contemporary discussion on youth. The study was conducted with high school students, residents of a Brazilian region marked by the culture of migration and whose life projects evidenced from different points of view. The concept of life projects is used in this article in a broad perspective, not limited to professional choices, because life projects cannot be limited to career; after all, life is not work only. To define and characterize the life projects of the subjects, some analytical categories have been discussed and analyzed using a theoretical framework about the notions of youth, life projects, and field of possibilities using and empirical evidence of the ethnographic study performed. The research concluded that, although young people had different ways of organizing their life projects, most of them shared the desire to be someone in life.

Keywords

Youth — Life projects — Being someone in life.

I- Universidade Federal de Goiás, Catalão, GO, Brasil.Contact: [email protected] Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.Contact: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022015021851

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Enunciando questões

“O que você quer ser quando crescer?” Quem nunca fez essa pergunta ou foi indagado a esse respeito na infância ou na adolescência? Provavelmente quem a faz está se referindo à vida adulta na sua dimensão profissional, ou seja, quer saber que profissão a pessoa pretende exercer quando entrar no mercado de trabalho. A dimensão profissional é importante e tem um lugar privilegiado na discussão sobre o tema tratado aqui – projetos de vida –, mas não é suficiente para abordar o assunto. Isso porque falar em projetos de vida não pode se limitar a falar em profissão. Afinal, a vida não se resume a trabalho. Falar em projetos de vida é mais amplo, porque, além da vida profissional, também é preciso problematizar outras dimensões da condição humana, como as escolhas afetivas, os projetos coletivos e as orientações subjetivas da vida individual.

Partindo dessa problemática, o objetivo deste artigo é discutir a categoria projetos de vida, tomando como referência empírica um grupo de jovens moradores da zona rural, e refletindo sobre a importância dessa categoria para as discussões contemporâneas acerca da juventude. A análise aqui proposta é fruto de uma pesquisa (ALVES, 2013) que investigou os modos como um grupo de jovens moradores da zona rural, estudantes do ensino médio, pensa e organiza suas condutas futuras, aqui chamadas de projetos de vida. A investigação foi desenvolvida entre 2009 e 2013 e os dados empíricos aqui analisados foram coletados durante pesquisa de campo realizada entre setembro de 2010 e junho de 2011. Tratou-se de uma pesquisa etnográfica e a observação participante foi o instrumento privilegiado de coleta de dados. Também se utilizaram questionários, aplicados a todos os jovens estudantes de ensino médio da escola na etapa inicial da pesquisa de campo, e entrevistas individuais e coletivas, conduzidas nos meses finais da pesquisa com um grupo de jovens informantes centrais desta investigação.

O estudo foi realizado em um município mineiro localizado em uma região marcada pelas migrações internacionais, de acordo com Margolis (1994), Fusco (2000), Soares (2002), Siqueira (2006), dentre outros, a qual guarda, assim, fortes características do que Massey et al. (1993) denominam “cultura da migração”. Esse município – São Geraldo da Piedade (SGP) – é entendido neste trabalho como rural, nos termos de José Eli da Veiga (2003). A investigação foi desenvolvida com jovens estudantes da única escola de ensino médio da cidade. No ano letivo de 2010, estavam matriculados 306 estudantes nesse nível de ensino, dos quais 195 responderam ao questionário inicial da pesquisa. Apesar da presença de adultos matriculados – uma necessidade, já que o município não oferecia a modalidade EJA –, os estudantes em idade regular (15 a 17 anos) eram maioria no grupo, perfazendo um total de 66,7% das matrículas, acima da média nacional, que era de 50,9%, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2010). Esses estudantes eram majoritariamente moradores da zona rural do município (79% dos matriculados). Quanto à constituição familiar, 93,8% eram solteiros e apenas 2,6% tinham filhos. Sobre identidade étnico-racial, de acordo com as categorias adotadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 63,6% se autodeclaram pardos, 16,4% pretos, 11,3% brancos, 6,2% amarelos e 2,1% indígenas.

Definindo a categoria projetos de vida

As bases teóricas utilizadas neste estudo para discutir a categoria projetos de vida estão assentes sobretudo em Boutinet (2002), Velho (2003; 2004) e Machado (2004). De acordo com Boutinet (2002), o conceito de projeto tem raízes na arquitetura, mas ganha lugar de destaque nas produções filosóficas na primeira metade do século XX, embasado na ideia de intencionalidade e justificado na capacidade de

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devir dos seres humanos. Nesse mesmo sentido, Machado (2004) assume que nós, seres humanos, alimentamo-nos dos projetos que realizamos. É isso que nos permite fugir aos determinismos e improvisos, organizando e planejando nossas ações futuras. Esse processo não é linear tampouco singular. Ou seja, realizamos projetos diversos simultaneamente e o fazemos em movimentos de ida e volta, de avaliação e reavaliação das nossas ações, orientando-nos por metas que foram atingidas (ou não) e por perguntas que foram respondidas (ou não).

Para Machado (2004), projeto está diretamente relacionado a valores. Assim, um sujeito, em uma determinada sociedade e tempo histórico, desenvolve projetos fundamentados nos valores que orientam seus modos de ver o mundo. Por exemplo, um projeto de lei (que, depois de analisado e aprovado, torna-se legislação) que embasa a educação nacional de um país carrega os valores que orientam essa sociedade e os ideais de sujeito que esta pretende formar.

Da mesma forma, os projetos de vida são carregados de valores, tanto individuais quanto dos grupos sociais nos quais vivemos. Esse autor aponta outra característica essencial para o entendimento dessa categoria, que é o caráter indelegável e intransferível da ação projetada, alertando que “não se pode projetar pelos outros” (MACHADO, 2004, p. 7). O entendimento dessa dimensão é fundamental, sobretudo no que tange aos projetos individuais ou de grupos, no sentido de que, por exemplo, os pais não podem (ou pelo menos não deveriam) projetar pelos filhos, como também os professores não podem (ou não deveriam) projetar por seus alunos.

Boutinet define projeto como uma antecipação justificada em experiências prévias, argumentando que:

Um grande número das realizações que concretizam a experiência humana são anteriormente interiorizadas, refletidas, antecipadas e orientadas pelo mecanismo do projeto. Este evitará que o indivíduo

se deleite na compulsão da repetição, esforçando-se para criar o inédito, um inédito que mantenha um secreto parentesco com a experiência já realizada do indivíduo, com sua história pessoal. É esse parentesco, essa conivência não confessa – porque dificilmente observável – que dará significação ao projeto. (2002, p. 270).

Nesse sentido, entende-se que os projetos de vida baseiam-se na biografia, na história de vida dos sujeitos, embora não se queira com isso tomá-los como um círculo vicioso ao qual os sujeitos estariam condicionados por suas biografias. Trata-se de uma dinâmica que está intimamente ligada à construção da identidade, que, segundo Dayrell (1999), é um processo de aprendizagem que implica o amadurecimento da capacidade de integrar o passado, o presente e o futuro, bem como as condições objetivas e subjetivas, e que articula a unidade e a continuidade de uma biografia individual. Para Velho (2003), é um processo “dinâmico e permanentemente reelaborado, reorganizando a memória do ator, dando novos sentidos e significados, provocando com isso repercussões nas suas identidades” (p. 104).

A construção da identidade e o descobrimento do eu é fruto de um percurso que não está dado, como nos alerta Dayrell (1999), e que também não acontece, de acordo com Spranger (1970), pacificamente. Ao contrário, manifesta-se de forma antagônica, em um movimento que é tanto da fuga de si próprio como da busca de respostas à pergunta “quem sou eu?”. É também um movimento do despertar, por parte dos jovens, de outros interesses, diferentes daqueles da infância, em virtude das transformações psíquicas pelas quais estão passando. É aí que emerge um impulso por independência e o desejo por emanciapação em relação ao mundo adulto, o qual leva o sujeito à necessidade de fazer planos ou de ter projetos. Nesse sentido, o que ser ou fazer no futuro é uma questão que, a partir de um determinado momento, para uns mais

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cedo, para outros mais tarde, passa a compor o universo de preocupações dos jovens.

O campo de possibilidades e as dimensões subjetivas

Os projetos de vida são elaborados tendo como referência a biografia, como já mencionado, e o campo de possibilidades. Essa categoria tem sido por nós utilizada, com base no entendimento do sociólogo Gilberto Velho (2003), para dizer das alternativas que podem ser sonhadas e desejadas, individual ou coletivamente, no contexto sociocultural no qual os sujeitos estão inseridos. Para Velho, a realização do projeto se consubstancia através da identidade e do conhecimento da realidade na qual o sujeito vive e, ainda, dos meios de que dispõe para garantir sua sobrevivência, no que o autor define como “o espaço para formulação e implementação de projetos” (p. 40).

Para os jovens desta investigação, por exemplo, no contexto no qual estavam crescendo, a migração (seja para estudar, seja para trabalhar ou simplesmente por um desejo de deixar a vida no campo) era o que mais estava posto no campo de possibilidades após o término do ensino médio. Todavia, dado que o campo de possibilidades não é determinista e dialoga com as condições subjetivas do sujeito, nem sempre tal projeto era possível de se concretizar. Primeiro, porque migrar não depende exclusivamente do desejo ou mesmo de viver em um contexto de cultura da migração. Não migra quem quer; migra quem pode, quem reúne as condições (em geral econômicas, mas não só) necessárias para tal. Mesmo para os projetos de migração irregular, em que a condição financeira é um dos aspectos decisivos, o indivíduo precisa reunir disposição pessoal para se submeter a todas as adversidades da empreitada.

Em termos profissionais, ser policial era o sonho mais presente, seguido do desejo de ser médico. Embora neste estudo não se tenha dedicado atenção para detalhar o porquê

das escolhas, algumas hipóteses podem ser aventadas sobre o motivo desse desejo de ser policial. Sendo esta uma das figuras públicas mais influentes e respeitadas no local – que, ao lado do padre e do prefeito, constituem os três poderes de SGP –, esse pode ser um caminho para esses jovens conquistarem o reconhecimento que tanto almejam. Outra hipótese é que eles, além de serem influenciados pelo poder que significaria essa profissão, podem avaliar que esta lhes seja um ofício de mais fácil acesso (já que não exige nível superior) e com rentabilidade que eles consideram justa. A profissão de policial ocupa uma posição oposta à de professor nos projetos dos jovens. Esta é considerada por eles sem prestígio, sem reconhecimento e sem retorno financeiro e é, portanto, rechaçada.

Uma alternativa que os jovens (sobretudo as meninas) veem como muito forte no seu campo de possibilidades tem relação com os projetos afetivos e financeiros. A maioria falava do não desejo de ver reproduzidas em suas vidas situações que têm dentro de casa, como o casamento e a dependência financeira do marido, o que levava algumas a negar em seus projetos de vida, mesmo em um futuro distante, o casamento, a vida de dona de casa, de mãe de família. Para algumas dessas jovens, isso seria uma condenação a uma vida sem graça, sem perspectivas de futuro, sem autonomia. Para outras, casamento e filhos aparecem nos projetos, mas somente depois que conseguirem se realizar profissionalmente.

Outra questão social que afeta aquela pequena comunidade – que, portanto, está no campo de possibilidades – e que os jovens analisam quando falam dos seus projetos de vida é a dependência de drogas, lícitas e ilícitas. O consumo de bebida alcóolica por meninos e meninas, para alguns desde a adolescência, é bastante comum na Cidade pesquisada. Isso os faz perceber o perigo da dependência de e do envolvimento com drogas, sobretudo, as ilícitas, como o crack, já bastante utilizado, e a cocaína, presente em alguns casos, porém mais rara por ser mais cara.

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A partir desses exemplos, fica claro que a categoria campo de possibilidades é imprescindível para argumentar que “o projeto não é um fenômeno puramente interno, subjetivo, formula-se dentro de um campo de possibilidades” (VELHO, 2004, p. 27) marcado pelas condições estruturais e conjunturais em que vivemos, mas “há sempre uma combinação única de fatores psicológicos, sociais e históricos” (p. 28) atuando e influenciando as biografias, as subjetividades e os projetos. Nessa perspectiva, para Teixeira (1998, p. 15), “os atores sociais são criaturas e criadores da sociedade e da história e, sendo também seus intérpretes, vivem a permanente tensão entre escolhas e contingências, instituído e instituinte, factibilidade e possibilidade”.

Sendo assim, quando falamos da juventude e seus projetos de vida, ponderar os elementos das condições estruturais e conjunturais que compõem o campo de possibilidades e as condições subjetivas que estão postas na dimensão individual é fundamental para não cairmos na tentação de assumir, por um lado, o discurso neoliberal que responsabiliza única e exclusivamente o sujeito pelo seu destino, levantando bandeiras do tipo “basta querer que você vai conseguir”. Ou, em outro extremo, para não adotarmos uma posição pessimista e determinista do tipo “tem jeito não, quem nasceu para ser mula nunca chegará a cangalha”. Em outras palavras, se, por um lado, há quem atribua toda a responsabilidade dos projetos ao indivíduo, por outro, há quem o veja como um incapaz, um fracassado, que nunca vai ser alguém na vida. Ambas as posições desconsideram que as condições socioeconômicas em uma sociedade capitalista podem ser um comprometedor na elaboração dos projetos e que nem sempre basta querer. Tais condições podem, sim, produzir efeitos perversos, ceifar sonhos individuais e comprometer o próprio desenvolvimento social, por não oferecer igualdade de condições e oportunidades e por não proporcionar a todos o mesmo ponto de partida.1

1- Não entraremos aqui no debate acerca da tensão entre agência e estrutura. Assumimos, como defende Schutz (apud Peters, 2011), que não é possível desconsiderar a importância da ação individual e dos elementos

Um dos efeitos perversos de se fazer uma discussão sobre projetos sem problematizar essas duas dimensões de forma mais crítica pode ser percebido, no contexto atual, por exemplo, nos debates sobre as políticas de ações afirmativas. Em diversas ocasiões, presenciamos jovens discutindo o tema e se posicionando radicalmente contra as políticas de cotas nas universidades, utilizando como justificativa o discurso de que eles (por serem negros ou de escolas públicas) não são inferiores a ninguém e que, por isso, preferiam entrar na universidade “por seus próprios méritos”. Isso evidencia a pouca reflexividade desses jovens acerca das condições estruturais em que viviam. Esse é o caso de Maria Antonia, uma jovem de 17 anos que acompanhamos na escola durante o terceiro ano do ensino médio e que acabara de entrar no curso de engenharia elétrica de uma universidade privada em Governador Valadares. Ela estava com muitas dificuldades para acompanhar o curso e assumia sozinha a responsabilidade por tal situação, justificando o fato de que estava pensando em desistir da faculdade:

[...] eu perdi o meu 1º, 2º e 3º ano... Praticamente eu não estudava, eu não prestava atenção e depois eu não fiz cursinho e cheguei aqui ainda... Tipo, tô chegando e encarando um tanto de coisa difícil. [...] Se eu passar tranquila este período, vou continuar estudando; se não, se eu ficar em alguma matéria, eu pretendo parar, fazer um curso técnico e depois voltar para a faculdade. (Maria Antonia). O depoimento da Maria Antonia é

semelhante ao de tantos outros que ouvimos em campo, de jovens que acreditavam que, se fossem mais esforçados, se estudassem mais, conseguiriam nota boa no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), conseguiriam entrar em subjetivos na elaboração dos projetos de vida. A história de cada de um de nós se faz com base no campo de possibilidades, mas também a partir dos desejos e intenções perseguidos pelos agentes, bem como das habilidades cognitivas que nos permitem agir sobre o nosso destino e não apenas ser produto das estruturas.

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uma boa universidade, muitas vezes sem ao menos questionar as próprias condições em que estudavam. Sem desconsiderar a necessidade e a importância do empenho e dedicação individual em qualquer projeto, queremos chamar atenção para o fato de que, quando um jovem de camada popular diz coisas do tipo “não passei no vestibular porque não estudei”, ou “a culpa é minha, eu que sou burro mesmo”, está assumindo sozinho uma responsabilidade que, afinal, é de toda a sociedade. E está também reproduzindo um discurso dominante que, além de criminalizar, responsabiliza a juventude por seus fracassos e desvios. No caso da Maria Antonia, ela enfrentou praticamente sozinha diversos desafios ao longo do ensino médio: a ausência dos pais que emigraram para os Estados Unidos quando ela tinha onze anos de idade; o preconceito da cidade pequena contra filhos de pais separados; o fato de viver na roça e ter de levantar de madrugada para sair para a escola e, por isso, perder muitas aulas no período das chuvas; o envolvimento com drogas lícitas ainda na puberdade. Mesmo assim, ela toma para si toda a responsabilidade pelo fato de não ter conseguido cursar o ensino médio como deveria, cuja consequência sente no ensino superior. Não se quer com isso dizer que o sujeito não tem sua parcela de responsabilidade sobre os destinos da sua vida. Quer-se, sim, defender a importância de o jovem conhecer a realidade em que está inserido para ser capaz de assumir um posicionamento crítico e autocrítico em relação ao campo de possibilidades e a si mesmo, como propõe Dayrell:

Quanto mais o jovem conhece a realidade em que se insere, compreende o funcionamento da estrutura social com seus mecanismos de inclusão e exclusão e tem consciência dos limites e das possibilidades abertas pelo sistema na área em que queira atuar, maiores serão as suas possibilidades de elaborar e de implementar o seu projeto. As duas variáveis demandam espaços e tempos

de experimentação e uma ação educativa que a possa orientar. (19_?, p. 03).

Nesse sentido, se, por um lado, uma leitura crítica do campo de possibilidades é necessária, também uma autorreflexão acerca da dimensão individual e subjetiva é fundamental. Assim, a discussão sobre identidade é central, pois, como afirma Dayrell (19_?, p. 2), “quanto mais o jovem se conhece, experimenta as suas potencialidades individuais, descobre o seu gosto, aquilo que sente prazer em fazer, maior será a sua capacidade de elaborar o seu projeto”. Dessa forma, é importante não se perder de vista que, ao se falar da juventude, está se falando de uma etapa da vida em que os sujeitos estão vivenciando, de modo mais intenso, os processos de construção da identidade, de elaboração dos projetos de vida, de experimentação, de exercício da autonomia. Ademais, se há, por um lado, a necessidade de considerar o campo de possibilidades, também é importante levar em conta as características individuais, os desejos, as aptidões. Conhecer as estruturas externas e conhecer-se internamente é um exercício dialógico essencial na elaboração dos projetos de vida dos jovens. E, nesse exercício, as instituições socializadores têm um papel crucial. Caso contrário, os jovens podem se ver isolados, sós ou mesmo abandonados na elaboração dos seus projetos. No caso da Maria Antonia, acima citado, era exatamente assim que ela se sentia.

Por fim, nesse debate acerca da centralidade do sujeito e da tensão entre as possibilidades estruturais e individuais, importa salientar um aspecto fundamental, um mobilizador importante dos projetos, que é o desejo. Como já foi dito anteriormente, o projeto precisa ser assumido pelo sujeito. É por essa razão que, muitas vezes, vemos casos de jovens que nasceram em meios economicamente favorecidos ou em famílias que têm tradição em uma determinada área do sistema produtivo e que não seguem os caminhos trilhados pela família. Porque aquele não era o seu projeto.

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Portanto, desejo e determinação são os elementos que, aliados à biografia, à identidade e ao campo de possibilidades, servirão de alicerce para a concretização dos projetos de vida.

Cada um com seu projeto ou por uma tipologia dos projetos de vida

Diante da diversidade do grupo de

informantes (diversidade de gênero, faixa etária, classe social e territorial), a pesquisa evidenciou que os projetos de vida dos jovens também são distintos. Nem todos organizam suas condutas da mesma forma, com os mesmos referenciais, a partir dos mesmos valores, das mesmas temporalidades, com o suporte das mesmas instituições e objetivando as mesmas metas. Isso porque, como afirma Velho (2004), os projetos não são estanques; ao contrário, são dinâmicos, podem mudar, transformar-se, assim como as próprias biografias humanas. A forma como os jovens explicitaram seus projetos, seja nos discursos cotidianos, seja nas entrevistas formais, levou-nos a categorizá-los de modo a identificar e explicitar as diversas possibilidades de compreensão de tais projetos. Importa ressaltar, no entanto, que tais categorias não são isoladas, impermeáveis, ou seja, pode ser que um mesmo projeto se encaixe em mais de uma categoria. Trataremos a seguir de apresentar e discutir a classificação dos tipos de projetos de vida, classificação essa feita a partir do grupo estudado.

Uma primeira categoria identificada refere-se a um grupo de jovens que elaboram seus projetos de forma mimética, ou seja, que tendem a imitar algo ou alguém que têm como referência positiva. Imitação não está sendo usada aqui no sentido de uma repetição mecânica, como poderia ser identificada no comportamento das formigas, por exemplo, mas no sentido que lhe dá o sociólogo francês Gabriel de Tarde, de uma imitação-refletida, ou uma imitação espontânea, como aquela das experiências sociais que adquirimos imitativamente, como a

linguagem. Um exemplo de tal categoria é imitar um parente que se admira, um ídolo ou mesmo um conhecido que faz sucesso na comunidade, alguém que conquistou determinado status, que tem o respeito da sociedade, seja por meio da posição social ou da ocupação profissional. Nesses casos, os jovens, embora sem muita reflexão, sem levar em conta muitas vezes seu campo de possibilidades, desejam construir uma história de sucesso tendo como referência quem é sucesso para eles. Esse tipo de projeto é, em geral, influenciado por modismos, por tendências do mercado ou por notícias veiculadas pela mídia ou pelo boca a boca na pequena comunidade. Nesse modelo, os jovens se miram em alguém, olham e pensam: é lá que eu quero chegar. Muito comum entre os jovens que lançam mão desse tipo de projeto é planejar ser jogadores de futebol, como é o caso de Júnior, que justifica seu desejo referindo-se à fama, sucesso e glamour que envolve essa profissão:

Porque, tipo assim, o brasileiro é identificado com o futebol no mundo inteiro. Igual meus primos que tão lá na Inglaterra, todo mundo pergunta sobre o Ronaldinho Gaúcho, Robinho, Roberto Carlos... São, tipo assim, admirados, sabe? Nos quatro cantos do mundo e... é isso, a gente tem essa inspiração. É a fama... Igual hoje tem aí hoje o Neymar [...]. (Júnior, 18 anos).

A projeção e o status que se pode conquistar – e eles acreditam que é possível porque têm referências – é a grande mola propulsora de quem se projeta por meio da imitação, ou da negação, como veremos nos projetos de recusa. Ou seja, se alguém pode ser um modelo a ser imitado (no caso desse jovem, os grandes jogadores de futebol), também pode ser um modelo a ser recusado, como veremos adiante. Para o Júnior, o desejo de se tornar um jogador de futebol famoso, se era algo que estava no seu campo de possibilidades, esbarrava na questão do tempo, já que acabara de completar 18 anos e, para ser um jogador de

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futebol, é necessário começar a se preparar para a carreira ainda na infância. Esbarrava também em questões pessoais, subjetivas, já que não basta querer, não basta ter oportunidades para fazer os testes na idade certa – como ele relatou que chegou a fazer no Cruzeiro2. É preciso ter as características físicas, pessoais para se tornar um atleta e as habilidades para ser um jogador de futebol.

Em outro grupo, temos jovens com modelos de projetos que chamamos de hipomaníacos. Caracterizam-se pelo excesso de otimismo, euforia, mania de grandeza, projeções excessivas no futuro, desconhecimento do campo de possibilidades, quase uma fuga da realidade. Aqueles que se expressam no modo de projeto aqui definido como hipomaníaco, por vezes, parecem misturar realidade e fantasia, brincam com tudo que o futuro pode oferecer, já que, para estes, no futuro, tudo é possível. Eles se permitem fantasiar sem se preocupar com o campo de possibilidades, com possíveis limitações individuais ou com estratégias de realização dos seus projetos, como evidencia a fala dessa jovem:

Eu quero me dar o mundo, entendeu? Eu quero... Eu poderia ser política, policial, artista, tanto de pintar como de, de... Como é que fala? Artes cênicas ou... Entendeu? É isso tudo. Eu poderia pilotar um avião. Cê entende? Eu tenho vontade pra muita coisa, sabe? E, assim, eu acredito que eu vou conseguir fazer muita coisa do que eu quero, muita coisa. (Thalia, 18 anos).

Embora não cheguem a ser utópicos, já que não se trata de manifestar desejos completamente fora do campo de possibilidades, ou que dependam de mobilizar uma sociedade inteira para conseguir realizar, são projetos vagos, indefinidos, sem embasamento empírico que possa sustentá-los. São desejos imprecisos, caracterizados por promessas

2 - Trata-se de time de futebol mineiro de grande proeminência.

desconexas, discursos vazios, caminhos sem rotas previamente estabelecidas. Esses sujeitos parecem saber que precisam pensar sobre seu futuro, que precisam começar a tomar as rédeas das suas próprias vidas, mas ainda não conseguem definir nem o alvo nem a seta. São projetos comuns em quem faz planos para quando um dia ganhar na loteria, em quem tem sonhos ambiciosos ou almeja conseguir um status na sociedade por meio da conquista de bem materiais. Tais jovens querem tudo e manifestam tal desejo sem pensar muito nas estratégias para alcançá-los.

Eu quero! Eu tenho vontade! Eu posso! Eu pretendo! São todas frases comuns para expressar esse tipo de projetos. Nesse grupo, também se alocam jovens (em geral moças) cujo desejo de crescer, de melhorar de vida expressa-se pela busca do casamento dos sonhos, com um homem rico, para ter tudo que sempre sonharam, alguém que possa realizar todos os seus desejos de consumo. Nesses casos, a hipomania se apresenta no presente, com vistas a conquistar o futuro almejado. Algumas jovens endividam-se para comprar roupas caras, sapatos, acessórios, perfumes de marca para conquistar um namorado rico. O casamento, embora apareça mais como um projeto de recusa, para algumas jovens desta pesquisa, ainda é um meio de vida, na maioria das vezes, estimulado pelas mães, que inculcam nessas meninas a importância de conquistar um bom marido. Aqui, bom marido, muitas vezes, significa marido rico. Nesses casos, as jovens tendem a não refletir sobre as possibilidades reais de implementação do seu desejo, expressando uma falta de reflexão sobre a questão dos projetos.

Uma terceira categoria são os projetos estratégicos. Aqueles elaborados com base nesse modelo apresentam claramente alvo e seta, ou seja, os jovens sabem o que querem, evidenciam conhecimento suficiente do campo de possibilidades, de modo a avaliar e definir os fins e os meios possíveis para alcançá-los. Em alguns casos, mencionam um plano B e alternativas

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possíveis para lidar com os desafios da sociedade labiríntica em que estão crescendo. O tempo que caracteriza os sujeitos que organizam suas condutas futuras de modo estratégico é tanto o presente como o futuro, visto que, nas suas falas, fica evidente que eles não só se preocupam com o futuro, como se organizam no presente para alcançar os objetivos futuros. Tais jovens também evidenciam posicionamento em relação às questões enfrentadas no presente para organizar seus projetos e, embora para alguns deles as questões objetivas e subjetivas ainda se mostrem difusas nas análises sobre tais dificuldades, elas não são totalmente desconhecidas. Esse é o caso do jovem Antônio, que tinha 18 anos à época da pesquisa e sabia que queria estudar gastronomia, mas pensava em antes passar uma temporada nos Estados Unidos, junto à mãe:

Tipo, se eu for pra lá, eu vou rançar o couro, eu vou morrer de trabalhar, eu vou ganhar dinheiro, mas vou ter que trabalhar igual um condenado. Tipo, eu fico pensando isso também. Eu acho que eu não tenho precisão, tipo, minha família tem uma condição boa. Então, eu acho que não seria a hora de eu ir pra lá, ainda mais largar a escola, mas o negócio é esse. Porque, se eu for, eu vou ir no consulado e, tipo, tá quase garantido que eu vou legal. E meu dilema é esse, tipo, perder uma grande oportunidade, uma grande chance, porque eu acho que, se eu for no consulado e... apresentar minha proposta, falar o que eu pretendo fazer lá, eu acho que pode dar certo. (Antônio, 18 anos).

O caso desse jovem é típico dos projetos estratégicos, em que os sujeitos se organizam baseados em informações, em análises da conjuntura, das condições pessoais e subjetivas, dos riscos, das possibilidades. Ele sabe que a migração irregular pode colocar sua própria vida em risco. Por isso, até cogita a possibilidade de sair do país, mas não se arriscaria emigrando

em condições de ilegalidade. Ele também já tem claro que profissão quer seguir e sua escolha foi baseada nas suas habilidades e no que lhe dá prazer, a gastronomia:

E pretendo fazer faculdade ainda, de gastronomia. Eu gosto de cozinhar e eu acho que, tipo, eu acho que aqui ninguém nunca tentou isso e eu acho. [...] Eu gosto demais de gastronomia. Eu acho que... É muito chique aquele chapeuzim... [risos] Eu sei que comanda a cozinha. Eles... elabora os pratos e... Mas o negócio é começar de baixo. Primeiro, eu não vou começar como um chef de cozinha. Eu vou começar na cozinha, tipo, sendo um cozinheiro ou qualquer coisa, e depois que eu vou subindo, né... Pra depois montar meu próprio restaurante, qualquer coisa [...]. (Antônio, 18 anos). O passo a passo das ações, o planeja-

mento organizado, a capacidade de crítica e autocrítica do campo de possibilidades é a mar-ca dos sujeitos que organizam seus projetos de forma estratégica. Alvo e seta estão muito bem definidos e a articulação entre passado, presen-te e futuro é evidente. Importa ressaltar, no en-tanto, que, no grupo pesquisado, os jovens clas-sificados nesse tipo de projeto foram minoria.

Já os projetos de recusa são aqueles marcados pela lógica da negação veemente de algo que os jovens já conhecem, muitas vezes de experiências bem próximas ou até no seio familiar, as quais abjuram sob qualquer hipótese. Aqui a vivência pessoal é um elemento importante e experiências negativas que os afetam de alguma maneira são o que mais conta. Os tempos presente e futuro são contemplados, à medida que eles falam de projetos futuros sem perder de vista que tudo começa hoje, no tempo presente, e guarda uma relação intrínseca com o passado. O campo de possibilidades é bastante familiar e, por vezes, pode assustar por ser visto como determinista. Assim, os projetos se expressam pelo medo de

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fracassar em algo, porque há um membro da família que tentou e fracassou, ou pelo medo de se envolver com drogas, porque há casos na família e sabem que isso pode acontecer com eles. Há ainda a recusa da maternidade/paternidade, por terem exemplos de colegas ou mesmo de familiares que foram pais/mães cedo ou de forma não planejada, o que eles veem como a última opção para suas vidas. Outro projeto recusado, nesse caso pelas meninas, é o de casar e se tornar dona de casa. Algumas são enfáticas em afirmar que querem qualquer coisa da vida, menos casar e ficar em casa cuidando de marido, filhos e casa, como fazem muitas mulheres em SGP: “Não quero os exemplos dele [o pai] pra mim, não. Encheu o mundo de filho e deixou aí pras mães cuidar” (Ana Flávia, 17 anos).

Em termos pessoais, outra recusa intensa que apareceu nas falas e no cotidiano desses jovens foi o desejo de não se envolver com drogas. Essa é uma mazela que ronda aquela pequena comunidade e assusta não só as famílias como os próprios jovens, que têm visto colegas se perderem em vícios como o crack e a cocaína, que eles achavam que só existiam em cidade grande. Assim, o envolvimento com drogas é algo muito presente nas falas do que recusam veementemente para suas vidas.

Em termos profissionais, os projetos de recusa são muito comuns em relação a algumas ocupações, como o trabalho na roça ou o trabalho doméstico, ou a algumas profissões, como a de professor:

Na área de educação, para mim, eu acho que não vai, que não ganha muito bem não, porque eu vejo as minhas tias, mesmo fazendo a área de educação para ser professor, chega uma época que não vai ter mais serviço para a área de professor. Aí eu penso em outra coisa pra mim. [...] Daqui uns dias, ninguém vai querer ser professor mais não, por causa do salário. (Daniel, 19 anos). Embora ser professor seja algo bastante

presente no campo de possibilidades desses

jovens, eles avaliam a condição docente de modo bastante negativo, não vendo futuro na profissão nem vislumbrando vantagens no presente. Falam das dificuldades de lidar com crianças e jovens dentro da escola, apontam questões em suas próprias turmas, questões essas que, segundo eles, se fossem professores, não admitiriam. E recusam-se a ser professores pelas condições de trabalho no presente, trazendo exemplos que têm na família e a falta de perspectivas futuras.

Embora sem pensar apenas no futuro, mas analisando as condições presentes, o trabalho na roça (capinar, roçar, tombar lenha, cuidar de gado...) é recusado, sobretudo pelas condições desfavoráveis, por ser um trabalho pesado, por não ser valorizado social e financeiramente e por se ter que acordar muito cedo e trabalhar no sol durante todo o dia:

Entrevistado 13: Tombar lenha e seguir o caminho dos meus irmãos na Padrão. É que eles trabalham em uma firma, a Padrão. Aí eles acordam quatro horas, três, três e meia e sai daqui quatro e meia, pra trabalhar. O único que tá escapando aqui é eu.

Entrevistado 4: Acho que trabalhar roçando. Igual o meu irmão mesmo, tem uma família grande, não estudou e está trabalhando roçando. Não quero essa vida pra mim não. Algo que ficou marcado nessa categoria

foi a recusa, quase sempre tendo em vista um membro da família, um amigo ou um parente próximo como referência, e a crença na escola e na educação como meio para sair, fugir desse futuro indesejado. Não é à toa que os próprios

3- Os informantes da pesquisa foram classificados em quatro grupos, de acordo com o nível de participação: informantes gerais, informantes secundários, informantes primários e consultores. Desses, apenas os consultores foram apresentados com perfil completo na tese que origina este artigo. Os jovens identificados apenas como entrevistado integram o grupo dos informantes primários, formado por todos os estudantes que responderam ao questionário na escola e concordaram em participar da pesquisa. Eis o motivo pelo qual dois dos informantes são aqui apresentados como Entrevistado 1 e Entrevistado 4 e não com pseudônimos.

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pais e mães por vezes usavam, além das surras, a ameaça do trabalho pesado como estratégia para estimular os filhos a frequentarem a escola: “Se não quiser ir pra escola, cabo da enxada”, ou ainda “ou a escola ou o cabo da vassoura”. Esses eram os meios que algumas mães encontravam para colocar os filhos na linha quando eram chamadas para ouvir reclamações na escola.

Finalmente, foi possível identificar sujeitos que não se encaixavam em nenhuma das categorias anteriores, por não vislumbrarem qualquer ação além do tempo presente. A esse grupo denominamos, inspirados em Boutinet, fora de projetos. Os sujeitos que identificamos como fora de projetos são aqueles que, dadas as condições de existência ou situações que estavam vivenciando, viam-se obrigados a concentrar todas as energias, sonhos e recursos no tempo presente, impossibilitando qualquer ação projetada. Assim como eles, Boutinet (2002) nos mostra que alguns grupos – como nas sociedades tradicionais ou mesmo os excluídos e marginalizados das sociedades capitalistas industriais –, dada a precariedade do modo de existência que os impede de antecipar, de vislumbrar um futuro, podem ser identificados como sem projeto ou fora de projeto. Assim, nesse contexto, foi possível identificar jovens em situação semelhante, que ainda não eram, naquele momento de suas vidas, capazes de se posicionar, de antecipar qualquer sonho, desejo ou meta para o futuro:

Eu não me vejo no futuro. Todo dia eu durmo achando que eu vou morrer [...]. Não me vejo no futuro não. Eu sou doida. Na mesma hora, quero fazer uma coisa, quero fazer outra. Na mesma hora, quero tentar aquilo, quero sumir no mundo, tenho futuro não. Vou ser um Zé Ninguém. (Ana Flávia, 17 anos).

Esse depoimento revela um sentimento de quem se sente sozinha, sem rumo, sem perspectiva. A ideia do Zé Ninguém diz do vazio que essa jovem sente. Ela se vê como sem

importância, insignificante. Os sujeitos desse tipo de (não) projeto evitam lançar qualquer olhar sobre o futuro e, quando o fazem, demonstram desilusão e falta de expectativas para qualquer ação além do tempo presente. Isso pode ocorrer por diversas razões: as parcas possibilidades materiais em que vivem; a descrença que afeta a autoestima e a capacidade de antecipar qualquer conduta; ou ainda a falta de apoio por parte dos adultos para os sonhos e intenções que esses sujeitos possam tentar compartilhar. Esse último me parece ser o caso da jovem desse depoimento, que, em diversas ocasiões, reclamava que o pai não ligava para ela e a mãe não acreditava em nada que ela dizia que queria fazer.

É importante chamar atenção para essa categoria, já que esse sentimento pode ser típico de um momento ou uma fase da vida, mas pode prolongar-se e acabar por comprometer o desenvolvimento do sujeito. No caso dos jovens desta investigação, é possível que se trate de uma situação conjuntural, visto que, conforme demonstra o perfil, nenhum desses jovens que participaram como informantes podem ser identificados como pertencentes a algum grupo que possa ser rotulado como vulnerável à exclusão social. Malgrados os casos daqueles que passaram, ou passavam no momento da pesquisa, por situações de distanciamento geográfico dos pais ou de algum membro da família, ou mesmo que começaram a consumir bebida alcoólica ainda cedo, não é possível afirmar que se trata de um grupo em situação de risco social objetivo.

Para concluir, o que eles desejam é “ser alguém na vida”

O que ser quando crescer? Há que ser?4 Se há que ser é porque não se é! Ou seria porque não se é o que gostariam que fôssemos? Ou porque não somos o que nós mesmos gostaríamos de

4 - No poema “Verbo Ser”, Carlos Drummond de Andrade traz um questionamento ao qual poucos escapam desde tenra idade: “que vai ser quando crescer?”.

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ser? No caso dos jovens aqui investigados, a expectativa que evidenciam sobre o ser, o devir na vida futura diz respeito tanto a perspectivas deles próprios quanto de outros (a família, a sociedade, o mundo). Como? Eles dizem (uns de forma mais objetiva, outros nem tanto) que o que desejam é ser alguém na vida. Como assim? Eles não são? Assim como no poema de Drummond, eles não têm um corpo, um jeito, um nome que os fazem alguém? Não têm uma vida? Ou precisariam crescer para ser alguém? Crescer e aparecer! Ser! Porque “Ser alguém na vida é você ser reconhecido na sociedade. Você desenvolver um serviço onde você pode ser conhecido. Ser conhecido, eu considero assim, é você ajudar realmente quem precisa, porque quem ajuda as pessoas é reconhecido na sociedade” (Netim, 19 anos).

A demanda por reconhecimento aparece em diversas ocasiões na fala desses jovens. O que eles pedem, afinal, quando reclamam que querem ser reconhecidos na sociedade? Para eles, ser alguém na vida significa ser reconhecido, ter o respeito da sociedade, ser enxergado e conhecido. Ser ouvido e respeitado. Ser valorizado. Enfim, sair da condição de invisibilidade, deixar de ser um “João Ninguém”, como nos falou certa vez um jovem morador da comunidade do Vinhático5. Para isso, eles têm claro que a inserção no sistema produtivo, por meio de uma atividade laboral que lhes garanta as condições necessárias de assumir-se como um membro autônomo da sociedade, é muito importante, mas é só o começo. Ou seja, se “a busca do projeto de vida parte de uma compreensão da constituição do sujeito mediante uma atividade laboral que lhe garanta a inserção social”, como argumenta Dias (2009, p. 94), isso não é suficiente. Ser alguém na vida é muito mais do que conquistar um lugar no mercado de trabalho: é ter um lugar que lhe permita ser reconhecido como um membro da sociedade,

5 - Vinhático é a mais pobre e mais populosa das comunidades rurais do município de SGP, de onde provêm 20% dos alunos matriculados no ensino médio.

como um cidadão. Para os jovens sujeitos desta pesquisa, é evidente que falar em projetos de vida não significava apenas falar em profissão/ocupação. E não poderia ser diferente. Afinal, projetar a vida não é apenas projetar a carreira. Para justificar essa afirmação, pensemos, por exemplo, em quando falamos em qualidade de vida. Nós estamos falando, na realidade, de uma série de fatores que contribuem para que tenhamos o que chamamos de uma vida com qualidade, como saúde, alimentação, trabalho, moradia, vida sexual, relacionamentos... Enfim, são diversas as dimensões da vida e o trabalho é apenas uma delas.6 Vejamos o depoimento de uma jovem que explicita bem essa ideia:

A gente quer estudar, a gente quer ser inteligente pra saber conversar com todo mundo, isso e tal. Mas a gente quer o quê? A gente não quer morar de aluguel, a gente quer ter uma casa. A gente não quer ver a nossa família morando na mesma casa com piso de cera. Cê tem que ralar o joelho pra poder passar aquela cera, ocê não quer. Ocê não quer uma casa pequena, que cê mal passa pela porta. Cê não quer sua família assim. (Thalia, 17 anos).

Esse e outros depoimentos deixam claro que esses jovens evidenciam diversas preocupações com relação ao futuro, questões que não dizem respeito apenas a que profissão seguir. Eles se questionam sobre questões do tipo: onde eu vou morar? Será que quero casar? Se quero, qual será a melhor idade para isso? Vou ter filhos? Nunca vou me envolver com drogas! Quero casar, mas não quero ser dona de casa! Será que vou conseguir ir para a universidade? Quero viajar, conhecer o mundo...

Enfim, eles elaboram seus projetos pensando em dimensões diversas e a vida profissional, para muitos deles, perpassa muitas

6- Partindo desse entendimento, consideramos que os estudos que tratam de projetos de vida sob a perspectiva profissional estão abordando apenas um aspecto dos projetos, já que tratam de apenas uma dimensão da vida humana.

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dessas dimensões. Talvez por isso muitas análises priorizem abordar os projetos de vida sob essa perspectiva. Nesse sentido, questões como casar, constituir família, discutir sobre o mundo das drogas, saber se posicionar sobre assuntos diversos como orientação sexual, religião, política, economia, continuar ou não os estudos depois do ensino médio, construir uma carreira acadêmica são todas potenciais matérias-primas para debates sobre projetos de vida e estiveram sempre presentes em nossas conversas. Os sujeitos demandam da escola falar sobre questões que os desafiam na vida, saber conversar.

Certa vez, uma jovem nos contou que a escola deveria ensiná-los “a entrar e sair”. Na hora, não entendemos muito bem, mas seguimos conversando e ela explicou que, para vencer na vida, a pessoa precisa saber “se virar” em diferentes contextos. Isso para ela é saber entrar e sair, ou seja, saber como se comportar. Ela frisava que, como os pais eram da roça e desconheciam muita coisa importante que ela sabia que iria precisar pela vida fora dali, era isso que ela esperava da escola, além de aprender a ler e escrever. Essa crítica ao afastamento do currículo das suas realidades também foi apontada por jovens do Pará, em estudo de Leão, Dayrell e Reis (2011, p. 1082), que evidencia a “crítica dos jovens alunos a um currículo distante da sua realidade, pleiteando uma articulação maior entre os conteúdos e sua vida cotidiana”.

Portanto, o projeto de ser alguém na vida envolve diversos aspectos e demanda o conhecimento da realidade complexa na qual os jovens estão inseridos. Esses jovens demandam ser respeitados e admirados. Demandam não ser tratados como “jecas” quando precisarem “ganhar o mundo”. Demandam ser independentes dos pais, dos cônjuges, enfim, almejam autonomia no mundo adulto. É por tudo isso que, para ser alguém na vida, não basta aprender uma profissão:

Ser alguém na vida é, tipo assim, é tá dependendo da gente mesmo, sem ficar,

tipo assim, igual, a gente, eu dependo dos outros. Do jeito que eu tô aqui, eu dependo dos outros. Porque, se eu quero alguma coisa, tipo assim, igual eu, tipo assim, juntei, tipo casada, se eu preciso de alguma coisa, eu corro pra pessoa que tá do meu lado. (Thainá, 17 anos).

Analisando discursos pautados na ideia de ser alguém na vida para mães de uma comunidade na periferia carioca, Haanwinckel (2006) mostra que a projeção que aquelas mães fazem para o futuro dos filhos, traduzida na máxima “ser alguém na vida”, significa que desejam para a prole um futuro longe do que consideram o caminho errado, que pode envergonhá-las perante a comunidade. Elas desejam ver os filhos longe do mundo das drogas, do crime, longe de ser mães solteiras, enfim, desejam que os filhos “andem na linha” e que “não caiam na vida” (p. 105). Para essas mães, os caminhos que levarão seus filhos a conquistar essa “terra prometida” pautam-se nos pilares da educação e da inserção profissional. Os estudos também assumem centralidade no projeto de jovens mães de Belém do Pará analisadas por Pantoja (2003), para quem a maternidade precoce constitui um estímulo a mais na busca do projeto de ser alguém na vida.

Almejando identificar como historica-mente as relações sociais de reconhecimento são desenvolvidas teoricamente, Mayer (2008) chama atenção para outros valores envolvidos nesse debate, como honra, respeito, reputação, estima social, moralidade e dignidade: “A noção de dignidade faz referência à esfera pública e às sociabilidades secundárias que a caracterizam” (2008, p. 40). Esse autor fala do reconhecimento ocorrido em âmbitos distintos da vida do sujei-to, calcado nas relações primárias, no âmbito da família, desenvolvido na criança por meio da autoconfiança. Em outro âmbito, o reconhe-cimento é demandado a partir do exercício dos direitos sociais, que proporciona o reconheci-mento público de todos os membros de uma so-ciedade que gozam de iguais direitos.

389Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02,p. 375-390, abr./jun. 2015.

Por fim, uma terceira dimensão trata do reconhecimento a partir das relações de solidariedade comunitárias, com vistas à conquista de objetivos comuns no grupo a que pertence e à agregação de valores. Ou seja, quando o jovem fala que não quer saber de envolvimento com drogas, está dizendo que não quer ser reconhecido na comunidade onde vive por esse motivo (como também pode acontecer o contrário, se o traficante for alguém valorizado/reconhecido/respeitado na comunidade, esse destino pode fazer parte dos projetos dos jovens).

Dessa forma, é possível concordar com Dias (2009), para quem a vida em sociedade determina, de alguma maneira, quem somos, a forma como pensamos e orientamos nossos projetos de vida, de acordo com o papel que

desejamos desempenhar nessa sociedade. Sendo assim, nossos projetos refletem nossos valores e os valores do grupo em que vivemos, como argumenta Machado (2004). Eles podem ser expressos de diferentes formas: para uns, mais explicitamente, para outros, de maneira mais vaga; para uns, a partir de uma referência próxima, para outros, como uma fuga de todo e qualquer modelo que tenham nas suas relações sociais. Foi isso que os jovens de SGP evidenciaram ao falar dos seus projetos de vida. E suas falas reforçam a necessidade de a escola, principalmente a de ensino médio, estar atenta a essa dimensão fundamental do humano, e em especial dos jovens, e funcionar como um suporte, contribuindo assim para a formação humana das novas gerações e para a construção dos projetos de vida dos jovens que ali estão.

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Recebido em: 22.03.2014

Aprovado em: 25.11.2014

Maria Zenaide Alves é doutora em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com estágio sanduíche na Columbia University. É professora na Universidade Federal de Goiás, campus de Catalão (UFG) e coordenadora do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Educação e Desenvolvimento do Campo (Nepcampo).

Juarez Tarcisio Dayrell é doutor em educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Atualmente, é professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). É fundador e integrante do Observatório da Juventude da UFMG (www.observatoriodajuventude.ufmg.br).

391Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 391-407, abr./jun. 2015.

Valores priorizados por estudantes universitários de um curso de psicologia de uma universidade pública

Nelson Pedro da SilvaI

Resumo

A maioria das pesquisas acerca da psicologia da moralidade compartilha a definição de que a moral refere-se a regras e valores cujo propósito é regular as relações interpessoais. No presente estudo, consideramos essa premissa válida porém, também levamos em consideração aspectos relacionados ao Eu. Assim, analisamos os valores priorizados por universitários com a intenção de verificar se esses jovens se pautam por valores públicos, privados e/ou ligados à glória. Os informantes foram 170 estudantes do primeiro ano do curso de psicologia de uma universidade pública localizada na região oeste paulista, de ambos os sexos, com idade média de 20 anos. Para a coleta de dados, aplicamos um questionário contendo perguntas relacionadas aos fatores factuais (idade, sexo e religião) e aos valores prezados pelos universitários. Os resultados – analisados segundo a psicologia das virtudes – mostraram que aproximadamente 70,0% das respostas válidas emitidas pelos estudantes apontaram a amizade (32,0%) e a inteligência (35,0%) como os valores mais priorizados. Os valores públicos praticamente não foram mencionados. No tocante às formas de glória, apesar de o percentual não ter sido expressivo para dinheiro e fama, quando os informantes justificaram a opção pela amizade e pela inteligência, conceberam tais valores como meios para a obtenção de dinheiro e fama. Concluímos que esses sujeitos dão pouca importância aos valores relacionados aos deveres (públicos) e a alguma forma de harmonia individual.

Palavras-chave

Psicologia moral — Valores — Universitários — Ética — Virtudes.

I- Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, São Paulo, Brasil.

Contato: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041615

392 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 391-407, abr./jun. 2015.

Values prioritized by psychology undergraduates of a public university

Nelson Pedro da SilvaI

Abstract

Most research on the psychology of morality defines moral as the rules and values whose purpose is to regulate interpersonal relations. In this study, although I have considered such premise valid, I have also taken into account aspects related to the self. Thus, aiming at verifying whether university students are guided by values which are public, private and/or linked to glory, I have analyzed the values prioritized by them. Informants were 170 first-year psychology undergraduates in a public university located in western São Paulo state, male and female, with an average age of 20 years. To collect the data, I applied a questionnaire concerning factual factors (age, sex and religion) and the values cherished by the undergraduates. The results – analyzed according to the psychology of virtues – have shown that approximately 70% of the valid answers given by students pointed friendship (32%) and intelligence (35%) as the most prioritized values. Public values were hardly mentioned. Concerning the forms of glory, although the percentage for money and fame was not significant, when the informants justified the choice of friendship and intelligence, they conceived such values as a means to obtain money and fame. I have concluded that these individuals give little importance to the values related to duties (which are public) and to some form of individual harmony.

Keywords

Psychology of morality — Values — University students — Ethics — Virtues.

I- Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, São Paulo, Brasil.Contact: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041615

393Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 391-407, abr./jun. 2015.

Introdução e justificativas

Quais são os valores priorizados pe-los estudantes universitários de psicologia? Começamos a tecer tal indagação a partir de ob-servações assistemáticas, feitas por nós, a res-peito da atual conduta política dos estudantes universitários de um curso de psicologia, matri-culados em uma universidade pública localizada na região oeste paulista. Notamos que eles, em sua maioria, abstinham-se da participação polí-tica, especialmente da partidária, pois, para eles, além de ser uma prática enfadonha, era sinôni-mo de corrupção generalizada e algo que não contribuía para a melhoria do status financeiro e social de si mesmos e das pessoas mais próximas.

Outro aspecto referiu-se ao fato de esses sujeitos só se inquietarem com os próprios interesses. A proposta era refletir acerca da própria vida psíquica, com o objetivo de desvelar os verdadeiros sentimentos, não levando em conta o fato de que eles são produzidos socialmente, além de transformarem a convivência com amigos íntimos e familiares em um fim em si mesmo. Senett (1988), a esse propósito, acredita que essa situação está relacionada à valorização da esfera privada em detrimento da pública, o que leva as pessoas, hoje, a não se preocuparem com a descoberta do respeito a princípios supraindividuais.

Carvalho (1989, p. 9) assim resumiu o pensamento acerca do mundo contemporâneo, atravessado pela mentalidade da sobrevivência: “um mundo sem amor, desoxigenante, terminal, incapaz de garantir a socialidade [sic] mínima”.

Segundo Costa (1988, 1989) e Lasch (1979, 1986), essa mentalidade é produto de uma cultura de violência que, ao apontar a todo o momento a impotência e a impossibilidade de mudança do sombrio quadro social instituído, ativa mecanismos narcisistas de proteção do Eu.

Esse individualismo – segundo observações assistemáticas – manifesta-se na maioria dos universitários com os quais tivemos contato, por meio das seguintes ações: 1) preferem não assistir às aulas a ter de discordar explicitamente da metodologia empregada pelos docentes e das

intervenções feitas por colegas, pois consideram qualquer forma de discussão uma perda de tempo; 2) quando defendem seus pontos de vista, amiúde não chegam sequer a escutar os argumentos apresentados pelos professores e demais colegas; 3) até mesmo quando erram em situações de avaliação, não conseguem ver a incorreção ou interpretam o apontamento do erro como um indicador de perseguição; 4) costumam ver os grandes referenciais teóricos – por exemplo, o marxista, o freudiano e o piagetiano – como sinônimos de sistemas que visam à normatização; e 5) advogam que os únicos fatores merecedores de atenção são a sensibilidade e a própria vida.

Rouanet (1987, p. 124-125) atribui esse movimento a certa leitura de Foucault e aos nouveaux philosophes, pois esses veem:

[...] na razão uma simples protuberância na superfície do poder, encarregada de observar, esquadrinhar, normalizar, e [...] nos inventores de sistemas meros agentes do gulag – os maîtres-penseurs.

Outra explicação para isso, ainda segundo Rouanet (1987), seria uma apologia ao não saber decorrente de uma política sistemática de desvalorização dos conhecimentos humanísticos no Brasil, em nome de uma formação técnica que, atualmente, voltou a ser caminho para a elevação do nível educativo e o consequente desenvolvimento da nação.

Resultado: o conhecimento deixou de ser um valor em si mesmo para os estudantes, a ponto de eles valorizarem unicamente a obtenção de diplomas, ficando o saber renegado a uma posição secundária. A esse respeito, La Taille (2006), ao refletir acerca das relações entre conhecimento e valor, assim se pronunciou:

Tampouco o conhecimento parece ser considerado hoje como riqueza cuja posse, por si só, seria valorizada. Quantos alunos não perguntam: “para que me serve isso?”. Ora, boa parte do conhecimento, notadamente científico, responde a uma

394394 Nelson Pedro da SILVA. Valores priorizados por estudantes universitários de um curso de psicologia...

curiosidade pura, não a uma demanda pragmática e urgente (pensemos na Astronomia). Numa sociedade de busca desesperada de prazer imediato e estonteante, a alegria paciente de conhecer fica em segundo plano, ou simplesmente não existe. (LA TAILLE, 2006, p. 8).

Aliado a tudo isso, observa-se entre os universitários um tipo de interação amorosa que banaliza o vínculo afetivo. Por exemplo, ao invés de estabelecerem relações estáveis – como o namoro –, preferem um tipo de relacionamento efêmero, banal e descompromissado, o ficar (MENEZES; BORSSATO, 2010; PEDRO-SILVA; TONON, 2009; SILVA, 2006).

Sublinhamos que esse tipo de interação não está presente apenas no relacionamento amoroso, permeando também as relações de amizade, de trabalho e a de convivência em geral. A natureza desse tipo de relacionamento pauta-se pela superficialidade e pela brevidade, a ponto de Bauman (2004) defini-la como líquida.

Do ponto de vista filosófico, tal indagação acerca dos valores priorizados pelos universitários se justificou pelo fato de autores contemporâneos, como La Taille (1998), apontarem que as pessoas agem moralmente influenciadas por valores, porém não apenas a justiça, como defende Kohlberg (1992).

Em essência, é essa a opinião: de Gilligan (1982) ao afirmar que os homens são guiados pela ética da justiça e as mulheres pela ética do cuidado; de Flanagan (1991) e de Campbell e Christopher (1996), por considerarem contestável, estreita e demasiadamente limitada a redução da moral à ética da justiça e a um conjunto de deveres e regras legisladoras das relações interpessoais; de Tugendhat (1996), que discorda da fundamentação da moral numa razão pura, livre do mundo empírico e das inclinações; e, finalmente, de Taylor (1989), ao argumentar que a filosofia moral moderna tem a tendência de concentrar-se mais no que é certo fazer do que no [que] é bom ser, “antes na definição do conteúdo da obrigação do que na natureza do bem viver”.

Além de justificativas de ordem filosófica, estudos psicológicos a respeito dos valores são relevantes pelo fato de o homem sempre fazer uma leitura valorativa de si. Logo, a imagem que temos a nosso respeito se constitui num valor a ser mantido, pois é vista como uma imagem positiva de si (PERRON, 1991).

Segundo La Taille (1998, 2000, 2002a, 2002b), tal valor pode ser público, privado ou formas de glória. Os públicos são os valores morais e dizem respeito à dimensão do dever agir. Eles objetivam a harmonia social, como é o caso da justiça, e estão alicerçados no preceito kantiano de agir “apenas segundo uma máxima tal que possa ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1960, p. 59).

Quanto aos privados, também conceituados de éticos, fundamentam-se no eudemonismo (ARISTÓTELES, 1996) e buscam igualmente a harmonia ou alguma forma de felicidade (dever ser). Contudo, diferentemente dos morais, o referido esforço é feito em nome da harmonia pessoal. Esse é, a nosso ver, o caso da amizade. Apesar de digna de apreço, tal valor é dispensável para se garantir a harmonia social, muito embora cultivá-la seja uma atitude que possibilita certo grau de felicidade. Informamos, porém, que valores desse tipo só podem ser concebidos como éticos se estiverem submetidos aos públicos (morais), pois, se os colocarmos como determinantes de nossas ações, eles deixam de garantir a harmonia social e, em decorrência, também a pessoal.

Quanto às formas de glória (beleza, força física, status financeiro e social), também as compreendemos como valores, pois são estimadas pelas pessoas e fortes influenciadoras de suas condutas. Todavia, não julgamos tais formas como valores públicos e tampouco privados, já que não garantem a harmonia social e muito menos alguma forma de felicidade. Essas estão mais próximas da busca pelo prazer individual (hedonismo), independentemente das consequências que podem ser geradas.

Ainda mais: a presença de um ou de outro tipo de valor é decisiva nas atitudes

395Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 391-407, abr./jun. 2015.

morais. Caso os valores públicos sejam centrais, a pessoa poderá, por exemplo, sentir vergonha, desonra ou indignidade se for medrosa ou cometer ato desonesto; por outro lado, se forem centrais os valores ligados à glória, é provável que esses sentimentos apareçam quando não se tem a riqueza ou o padrão de beleza almejado.

Movimento semelhante pode ser pensado, ainda, no interior do próprio campo moral: o sujeito pode priorizar alguns valores em detrimento de outros. Assim, é possível uma pessoa associar sua “personalidade [identidade] a alguns traços morais (como coragem e lealdade) e não a outros; ou mais a uns do que a outros” (LA TAILLE, 1998, p. 10). Além disso, a mesma pessoa poderá agregar à sua personalidade mais valores públicos, ou seja, relacionados ao como se deve agir, ou privados, isto é, ligados ao como se deve ser.

Outra constatação que nos levou a propor esta pesquisa refere-se à existência de poucos estudos científicos a respeito dos valores priorizados pelos estudantes universitários. Conforme levantamento bibliográfico feito em 2012 na base de dados eletrônicos Dedalus, da USP, e na biblioteca SciELO, encontramos 282 pesquisas por meio dos unitermos psicologia moral; 17 em psicologia da moralidade humana; e, apesar de mais de 700 menções à palavra virtude, apenas 33 pesquisas referiam-se mais diretamente à psicologia das virtudes.

Os estudos e ensaios encontrados objetivaram analisar, principalmente, os seguintes aspectos: a) as relações entre psicologia moral e educação (NUCCI, 2000; DALBERIO, 2007; CARBONE; MENIN, 2004); b) o desenvolvimento moral (LA TAILLE, 2007; BRANCO, 2006); c) o desenvolvimento moral de mulheres (MONTENEGRO, 2003; TESTONI; TONELLI, 2006); d) a homossexualidade e a moral (LACERDA; PEREIRA; CAMINO, 2002); e) o autorrespeito na escola (SOUZA; PLACCO, 2008); f) o campo da bioética (MARCOLINO; COHEN, 2008); g) a moral e os mass media (SILVA; FONSECA; LOURENÇO, 2002); h) as relações entre cognição, afetividade e

moralidade (ARAÚJO, 2000; LA TAILLE, 2002a, 2005); i) a família e a moral (BARBOZA et al., 2009; LONGO, 2007); e j) o sentimento de vergonha e sua relação com a psicologia moral (LA TAILLE, 2002a, 2002b).

Especificamente em relação às virtudes, além dos estudos a respeito da generosidade entre crianças (LA TAILLE, 1998; 2006; TOGNETTA, 2006; DIAS, 2002; LIMA, 2000), encontramos, entre outras, pesquisas que abordaram os seguintes valores: a honestidade (FRELLER, 2001); a tolerância (CARNEIRO, 2006); a solidariedade entre crianças e entre adolescentes (TOGNETTA; ASSIS, 2006; D’AUREA-TARDELI, 2006); a coragem (DIAS, 2002); a polidez (LA TAILLE, 2001); e a fidelidade à palavra empenhada (SILVA, 2002).

Deparamo-nos, ainda, com pesquisas e ensaios cuja intenção foi investigar as virtudes de personagens de contos de fadas (SOUZA, 2007) e a relação entre julgamento moral e certas condutas, como a do uso abusivo de álcool (MARTINS, 2006), a indisciplina (LA TAILLE, 1996) e a autoridade (LA TAILLE, 1999). Igualmente, encontramos estudos acerca do ambiente proporcionado pelas escolas e o tipo de raciocínio moral segundo a ética da justiça e o par heteronomia-autonomia (ARAÚJO, 1993; MENIN, 1985; OLIVEIRA et al., 2005) e, remotamente, a respeito do nível de desenvolvimento moral de adolescentes, conforme o referencial kolhbergiano (BIAGGIO, 1994; BZUNECK, 1975; 1979; FREITAG, 1984).

Quanto às pesquisas relacionadas à adolescência e à moral, encontramos a de Guará (2000) a respeito dos padrões morais de adolescentes autores de infração. A pes-quisadora verificou que tais jovens vivem entre duas éticas: a do trabalho e a da crimi-nalidade. Além disso, ela constatou que eles valorizam a família, os pactos de lealdade e a cumplicidade nas ações ligadas à transgres-são ou à diversão. Defrontamo-nos também com a investigação de Noguchi (2006) acerca da análise do universo moral de adolescen-tes internos na Febem - SP (atual Fundação

396396 Nelson Pedro da SILVA. Valores priorizados por estudantes universitários de um curso de psicologia...

Casa). A referida pesquisa evidenciou que essa instituição legitima um tipo de educa-ção heterônoma, ou seja, que não propicia o desenvolvimento moral, além de contribuir para a naturalização de relações autoritárias e violentas. Lemos, ainda, o trabalho de Branco (2006), que versou a respeito das representa-ções de violência em jovens residentes na pe-riferia de São Paulo. A referida autora chegou à conclusão de que as várias ações violentas às quais os jovens são expostos interferem nas suas representações tanto do ponto de vista ético quanto do autoconceito.

Quanto aos valores de estudantes universitários, os estudos mais próximos com que nos deparamos foram os de Bataglia (1996), Menin et al. (2008), Harkot-de-La-Taille e La Taille (2006) e Moreira (2009).

Na pesquisa desenvolvida por Bataglia (1996), os resultados mais pertinentes à nossa problemática – valores dos universitários – evi-denciaram que os referidos estudantes tendiam a colocar a dimensão privada acima da pública. Explicamos: no caso dos estudantes e profis-sionais de psicologia, o sigilo colocou-se como um imperativo mesmo que a ação dos pacien-tes fosse produtora de desarmonia social. Nesse sentido, para tais sujeitos, os valores como se deve ser, pelo menos no campo da atuação pro-fissional, estão em posição mais alta dos como se deve agir.

Menin et al. (2008), em estudo feito com universitários a respeito do sistema de cotas na universidade (raciais e sociais), constatou a existência de conflito entre mérito e justiça compensatória, devendo, para a maioria deles, prevalecer o merecimento como forma de ingresso nas universidades públicas. Como argumento, a maior parte desses estudantes apontou valores públicos (justiça e igualdade) e privados (esforço próprio).

Na pesquisa produzida por Harkot-de-La-Taille e La Taille (2006, p. 188) acerca dos valores dos jovens de São Paulo, especificamente quanto ao nosso tema, os referidos autores concluíram que o jovem:

[...] elege a moral como essencial para a sociedade, com particular destaque para a justiça, a honestidade e a humildade [...]. Quanto aos desejos, eles recaem sobre ser tratado de forma justa e viver uma vida que vale a pena ser vivida. Ter filhos e reconhecimento social são vistos como importantes, mas menos do que ter emprego e amigos.

Moreira (2009), ao estudar as representações de adolescentes de nível socioeconômico D, de ambos os sexos, que estavam inseridos em um projeto social, concluiu que eles davam importância a valores como o estudo, a relação familiar, a amizade, a honestidade, a justiça e a preocupação quanto ao futuro da sociedade, ou seja, enfatizavam valores públicos e privados. Percebe-se que, para esses jovens, as opções individuais estavam inspiradas em um projeto no qual o outro tinha o seu lugar.

Essa autora verificou, ainda, que eles sofriam quando deparavam com situações nas quais tais valores não eram priorizados, como a brutal e injusta diferença socioeconômica no Brasil. Por causa disso, estavam interessados em contribuir com a construção e/ou a defesa de valores garantidores da harmonia social, e uma das formas para lutar contra essa situação, na opinião deles, era estudar e participar ativamente da solução dos problemas da sociedade.

Em resumo, os estudos realizados na área da moralidade sugerem os seguintes aspec-tos: a) a maioria versou sobre a mensuração do nível de desenvolvimento moral segundo o par heteronomia/autonomia formulado por Piaget (1957) e os níveis do referido desenvolvimen-to, tendo como parâmetro a ética da justiça e a análise de Kohlberg (1992); b) alguns buscaram relacionar a psicologia moral com determina-dos comportamentos (uso abusivo de álcool e indisciplina, por exemplo); c) no campo da psi-cologia das virtudes, basicamente foi investi-gada a generosidade em crianças; d) os poucos estudos feitos com adolescentes evidenciaram que, na época em que foram realizados, esses

397Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 391-407, abr./jun. 2015.

jovens priorizavam valores públicos e privados; e) não encontramos estudos específicos acerca dos valores apreciados pelos universitários, e os poucos desenvolvidos com essa população estimaram valores relacionados à dimensão do dever agir (pública) e do dever ser (privada).

Objetivos

Dados esses aspectos, analisamos os valores priorizados pelos estudantes universitários matriculados em um curso de psicologia.

Buscamos com essa análise responder às seguintes indagações: 1) quais são os valores e as respectivas justificativas apresentadas pelos universitários de tal curso para que os seus colegas priorizem determinados valores? 2) qual é a natureza dos valores que os universitários de psicologia apreciam, isto é, eles são mais afeitos à esfera privada, à pública ou à da glória?

Com a sua concretização, acreditamos ter: a) subsidiado a discussão acerca dos princípios diretores da moralidade de adolescentes;b) contribuído para o debate acerca dos valores atualmente considerados pelos jovens brasileiros;c) gerado informes sobre aspectos da moral de universitários; d) contribuído para o preenchimento da lacuna existente na literatura a respeito da psicologia da moralidade.

Método

Qualquer pesquisador, ao produzir co-nhecimento, visa a ampliar o poder de esclare-cimento de certo referencial teórico-metodoló-gico. Nesse sentido, o presente estudo objetivou ampliar o poder explicativo da psicologia da moralidade humana sistematizada por La Taille (2000, 2002a, 2007), a saber: quais são os va-lores priorizados (públicos, privados e ligados à glória) pelos estudantes universitários de um curso de psicologia.

Luna assinala, porém, que é importante que um estudo feito em uma instituição vá:

[...] além da constatação das informações por ele coletadas, que suas conclusões possam superar os limites das condições estudadas; em outras palavras, é preciso que ele possa conferir generalidade aos seus resultados. (1999, p. 74).

Em outros termos, colocam-se dois problemas: a representatividade da amostra e a garantia metodológica da generalidade do presente estudo, já que ele foi feito em uma única instituição e, por isso, trata-se de um estudo de caso (LUNA, 1999; MINAYO, 2010).

Para Punch (1998), Coutinho e Chaves (2002), essa questão não se coloca para esse tipo de abordagem. Entretanto, há outros, como Yin (2005), que afirmam ser possível a sua generalização em alguns estudos desse tipo.

Não vamos nos deter nesse debate, pois julgamo-nos não aptos para isso. Para os nossos propósitos aqui, consideramos que, a despeito de o estudo ter sido feito apenas com sujeitos de uma instituição, estes guardam semelhanças em relação aos demais de universidades públicas do estado de São Paulo (ACI, 2003; COMVEST, 2009) e dos institutos federais de ensino superior (IFES, s.d.).

Assim como os sujeitos questionados, os que frequentam institutos federais de educação superior da área de humanidades apresentam as seguintes características: a) a maioria é do sexo feminino e, na época do ingresso, estava na faixa etária compreendida entre 17 e 20 anos; b) a quase totalidade era de solteiros que não tinham filhos; c) mais de 70% declararam-se brancos/caucasianos; d) eram provenientes de famílias que moravam no seu respectivo estado; e) um pouco mais da metade cursou o ensino médio em escolas públicas; f) a quase totalidade não exercia atividade remunerada; eram de nível socioeconômico, conforme classificação da Associação Brasileira dos Institutos de Pesquisa de Mercado – Abipeme (2008), das classes A1, A2 e B1, e a maioria dos pais tinha cursado o ensino médio (mães) e o superior completo (pais).

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Nesse sentido, pensamos que os resultados obtidos podem ser generalizados, pelo menos, para os demais estudantes regularmente matriculados em cursos de psicologia de universidades públicas e, quiçá, para os que frequentam outros cursos da área de humanidades.

Os sujeitos da pesquisa foram 170 estudantes universitários, de ambos os sexos, com idade entre 17 e 20 anos, os quais estavam matriculados no primeiro ano do curso de psicologia do campus de uma universidade pública localizada na região oeste paulista.

Escolhemos tais sujeitos por compreender que eles serão os futuros responsáveis pelo comando de instâncias da sociedade civil e política, sobremaneira das ligadas às políticas de saúde mental (MOCHCOVITCH, 1990). Além disso, julgamos importante o oferecimento de tais informações aos centros de ensino superior para o caso de eles, porventura, montarem programas de educação moral, pois, como explicaremos mais adiante, os valores priorizados por esses sujeitos não visam à esfera pública.

Importa salientar que empregamos como ferramenta de coleta de informações um questionário contendo indagações relativas a atributos factuais dos entrevistados (idade, sexo e nível socioeconômico) e aos valores prezados por eles, por meio do exame daquilo que creem ser o mais apreciado pela maioria dos estudantes de seu nível de ensino.

Adotamos esse procedimento em razão das respostas dadas em estudo-piloto desenvolvido em 2011. Percebemos que elas eram visivelmente estereotipadas, ou seja, estavam muito mais calcadas no considerado politicamente correto que fundamentadas no efetivamente pensado. Por exemplo, ao indagarmos sobre o que eles mais valorizavam em si mesmos, respondiam o esperado em relação ao establishment. Já quando se referiam aos demais estudantes, atribuíam mais valores ligados à glória.

Tais resultados levaram-nos a decidir colocá-los na posição de analistas. Pressupomos

que, ao ocupar esse lugar, eles emitiriam opiniões a respeito de seus pares e, ao mesmo tempo, falariam de si mesmos. Baseamo-nos no fato de que, quando emitimos parecer a respeito de determinado aspecto da realidade, a leitura é sempre feita, conforme Piaget (1959), a partir das nossas estruturas de assimilação. Afinal, quando compreendemos a realidade, falamos a partir do ponto de vista dela (acomodação) e do nosso (assimilação). Nesse sentido, quando apontamos determinada característica do outro, só assinalamos o que somos capazes de enxergar, exatamente porque é nossa também (e, provavelmente, por julgá-la insuportável, não temos consciência dela). Logo, semelhante à definição de projeção feita por Freud (apud LAPLANCHE; PONTALIS, 1988), o sujeito tende a apontar em outras pessoas aspectos seus amiúde julgados insuportáveis. Considerando tal reflexão e os objetivos do estudo, inquirimos a respeito do que eles consideravam ser mais valorizado pela maioria dos estudantes de seu nível de ensino, em vez de perguntar-lhes acerca de aspectos priorizados em si mesmos.

Além disso, pedimos aos sujeitos que justificassem a resposta dada. Fizemos isso em virtude de a resposta mostrar-se insuficiente para se compreender o seu sentido, além de considerarmos – assim como Piaget (1959; s.d.) e Carraher (1994) – que as justificativas são mais importantes, pois evidenciam o sentido das respostas.

Procedemos da seguinte forma para a coleta das informações: a) primeiramente, entramos em contato com a direção da instituição a fim de obtermos permissão para a coleta das informações; b) em seguida, também pedimos a autorização dos docentes para aplicarmos o instrumento no horário de sua aula; c) esclarecemos os objetivos do estudo e entregamos aos alunos dispostos a colaborar o termo de consentimento livre e esclarecido e, depois, o questionário; d) na sequência, informamos que os procuraríamos em outro horário a fim de obtermos esclarecimentos no caso de não termos entendido alguma das respostas dadas às indagações abertas;

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e) além disso, ficamos à disposição dos sujeitos para dirimir qualquer dúvida; f) por fim, agradecemos aos sujeitos e, novamente, salientamos que a identificação ficaria sob sigilo.

Quanto à análise das informações, inicialmente, fizemos uma leitura minuciosa das justificativas dadas. Em seguida, criamos categorias que foram submetidas à apreciação de juízes (três especialistas da área que se prontificaram a colaborar com o estudo).

Os resultados dessa tabulação foram, então, analisados segundo a teoria dos valores sistematizada por La Taille (2000, 2002a, 2007).

Análise dos resultados

Dos 170 universitários indagados acerca do principal aspecto que seus pares valorizavam mais, aproximadamente 70,0% das respostas válidas apontou a amizade (32,0%) e a inteligência (35,0%). Praticamente não foram apontadas respostas referentes a valores relacionados à esfera pública, como justiça, honestidade e generosidade (menos de 3,0% do total). Quanto às formas de glória, o percentual igualmente não foi significativo: apenas 10,0% apontaram a beleza, 7,0% indicaram a fama e 2,0%, a riqueza.

Tabela 1 – Respostas apresentadas pelos participantes acerca dos valores priorizados por seus pares

Respostas Resultados (n=164)Beleza 9,8% (n= 16)Fama 6,7% (n= 11)

Riqueza 1,8% (n=3)

Justiça 0,6% (n= 1)

Honestidade 0% (n= 0)

Generosidade 1,8% (n= 3)

Amizade 32,3% (n= 53)

Inteligência 34,8% (n= 57)

Sinceridade 6,1% (n= 10)

Dedicação aos estudos 0% (n= 0)Outras respostas 6,1% (n= 10)

Fonte: Dados da pesquisa

Esses resultados levaram-nos a concluir que os valores públicos (ligados ao dever agir) são os menos valorizados pelos universitários

(pelo menos, por aqueles matriculados no referido curso de psicologia).

Contudo, os resultados foram diferentes em relação aos valores ligados à glória. Embora o percentual não tenha sido expressivo para beleza, fama e riqueza, quando os jovens justificaram a opção pela amizade e pela inteligência, evidenciaram que tais valores – a nosso ver, dignos de elogio e ligados à dimensão privada (dever ser) – são concebidos como meios para a obtenção de status social e financeiro.

Tais resultados são contrários aos obtidos por Harkot-de-La-Taille e La Taille (2006) e Moreira (2009). Os estudos desses autores mostraram estudantes preocupados, sobremaneira, com a esfera pública (a honestidade e a justiça) e a esfera privada (ter filhos e amigos). Também se opuseram aos do estudo de Menin et al. (2008), pois, embora este não tivesse a intenção de verificar os valores priorizados pelos universitários, a maioria dos sujeitos contrários ao sistema de cotas na universidade justificou seu posicionamento fundamentando-se em valores como a justiça, a igualdade e o mérito.

Como explicar? Inicialmente, conjeturamos que isso decorreu do fato de os sujeitos inquiridos por eles pertencerem a níveis socioeconômicos diferentes dos pesquisados por nós. Contudo, desconsideramos tal hipótese após verificarmos que os adolescentes pesquisados por Harkot-de-La-Taille e La Taille (2006) pertenciam ao nível A1, A2 ou B1 (semelhantemente aos sujeitos entrevistados por nós) e os de Moreira (2009), ao D (ABIPEME, 2008).

Aventamos a possibilidade de que essa mudança estivesse relacionada à idade. A faixa etária dos sujeitos entrevistados por nós estava entre 17 e 20 anos, enquanto os demais autores investigaram sujeitos entre 16 e 18 anos. Consequentemente, pelo fato de uma parte dos nossos sujeitos serem mais velhos cronologicamente e, possivelmente, terem construído mais experiências, apresentariam uma visão menos “romântica” da sociedade. Apesar de plausível, acabamos por também

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descartar essa hipótese, amparados em uma pesquisa-piloto realizada por nós ao construirmos o método. Nesta, pedimos aos sujeitos que apontassem os valores preferidos por eles. O resultado foi praticamente o mesmo do encontrado nos estudos citados. Nesse sentido, julgamos pouco provável a idade ter influenciado nas respostas a ponto de nossos sujeitos terem emitido opiniões diferentes das verificadas na literatura.

Chegamos, então, a considerar que tais diferenças estavam relacionadas ao clima cultural geral, isto é, “a influência ideológica pela qual os media modelam a opinião pública” (ROUANET, 1987, p. 175). Todavia, desconsideramos de imediato essa hipótese, pois, apesar de os estudos terem sido desenvolvidos em épocas diferentes (o nosso, em 2012; o de Harkot-de-La-Taille e La Taille, em 2006; o de Menin, em 2008; e o de Moreira, em 2009), o referido clima de apologia ao narcisismo, ao consumismo e ao higienismo, em detrimento dos valores afeitos à harmonia social, praticamente manteve-se inalterado.

Diante do exposto, consideramos que tais resultados foram diferentes por causa da maneira como as indagações foram feitas. Explicamos: os sujeitos pesquisados por tais autores foram questionados sobre os valores prezados, enquanto nós os indagamos acerca do que consideravam prioridade para seus pares. Essa mudança metodológica, a nosso ver, fez toda a diferença, pois, ao colocarmos os respondentes na posição de informantes, pudemos obter dados a respeito do que acreditavam serem os valores priorizados por seus pares e, indiretamente, por eles próprios. Isso evidenciou que formas de glória continuam a ser os elementos mais influenciadores, ao menos, de seus juízos.

Ainda com a finalidade de corroborarmos nossa hipótese, relacionamos a seguir as justificativas apresentadas pelos sujeitos para considerarem que a amizade, um valor privado, atende a interesses de glória.

Tabela 2 – Justificativas apresentadas pelos participantes para que os estudantes universitários de psicologia considerem a amizade um dos valores priorizados por seus pares

Justificativas Resultados (n=60)

Auxilia na adaptação a uma nova realidade distante dos familiares 41,7% (n= 25)

Possibilita obter ajuda (sobretudo de natureza escolar) 21,7% (n= 13)

Facilita a convivência no meio estudantil 16,7% (n=10)

É o principal tipo de relação que se estabelece na universidade 5,0% (n=3)

É na época da faculdade que se formam as amizades sólidas 5,0% (n= 3)

Propicia status no meio acadêmico 3,3% (n= 2)

Possibilita obter ajuda profissional futura 3,3% (n=2)

Outras justificativas 3,3% (n= 2)

Fonte: Dados da pesquisa

Como se pode observar na tabela 2, das 60 justificativas válidas apresentadas pelos 53 participantes que apontaram a amizade como o valor mais considerado por seus pares, em torno de 40,0% indicou como motivo o fato de ela propiciar a adaptação a uma nova realidade distante dos familiares e, em decorrência, por meio dela, ter algum tipo de acolhimento e de combate à solidão.

Esses resultados sugerem que a amizade tem uma função pragmática para tais sujeitos, isto é, possibilita atingir objetivos práticos.

Essa visão, a nosso ver instrumental, indica que os amigos não são vistos como fins em si mesmos, mas como meio (objeto) para se obter algo: no caso em questão, a substituição dos pais e os benefícios pressupostos de uma relação filial.

Tal concepção levou-nos a refletir acerca do significado da amizade. Parece-nos que, em todas as relações igualitárias, inclusive nessa, as condições essenciais são o respeito mútuo e o medo – todo moral – de decair perante o olhar do sujeito respeitado, tese levantada por Piaget (1957) e objeto de estudo sistemático de La Taille (2002a; 2002b), o qual este último autor denominou de sentimento de vergonha.

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Assim, em relações fundamentadas no respeito mútuo, como a de amizade, segundo Piaget (1957), os envolvidos buscariam agir levando em consideração o outro, ou seja, de maneira recíproca. E isso não somente porque esse respeito demanda tal ação, mas principalmente pelo receio – todo moral – de decair perante o olhar da pessoa respeitada.

Acontece que a amizade concebida de maneira pragmática prescinde desse medo, pois não há interação. Ao contrário, vive-se ao lado de outras pessoas. Isso mostra que pouca ou nenhuma importância é dada ao olhar alheio até mesmo do suposto amigo.

Como no presente estudo o objetivo não é refletirmos longamente sobre a amizade, mas analisarmos os motivos pelos quais os estudantes a apresentaram como um dos valores priorizados por seus pares, basta-nos afirmar que, para os universitários entrevistados, a amizade é estabelecida por interesse.

Mesmo assim, poderíamos tecer a seguinte indagação: ao agirem assim, esses jovens não estariam sendo movidos por alguma ética, como a utilitarista? Não cremos. Diríamos que se trata de um arremedo malfeito de tal conjunto de princípios.

Explicamos: para essa ética: “as ações são boas quando tendem a promover a felicidade; más quando tendem a promover o oposto da felicidade”. Por conseguinte, as ações, boas ou más, são assim consideradas desde a visão de “suas consequências, sendo o objetivo de uma boa ação, [...] promover em maior grau o bem geral” (JAPIASSU; MARCONDES, 1989, p. 240, grifos nossos). Concluímos, então, que os sujeitos questionados não foram movidos por essa doutrina, pois faltou a reflexão a respeito do bem geral. Basicamente, eles estavam preocupados consigo mesmos.

Por isso, levantamos a hipótese de que esses jovens não concebem a amizade como uma virtude, mas como uma forma de glória, uma espécie de narcisismo, em que o outro é visto apenas como objeto para a satisfação ou preenchimento das próprias faltas.

Vejamos, agora, as justificativas apresentadas para a inteligência.

Como se pode ver na tabela 3, mais de 40,0% das justificativas dadas pelos sujeitos apontaram a inteligência como o aspecto mais valorizado por seus pares. Os argumentos principais foram: ela possibilita a aquisição de status social no meio acadêmico e fora dele (cerca de 50,0% das justificativas) e ela viabilizou o ingresso em uma universidade pública (20,0%).

Tabela 3 – Justificativas apresentadas pelos participantes para que os estudantes universitários de psicologia considerem a inteligência um dos valores priorizados por seus pares.

Justificativas Resultados (n= 68)

Possibilita a aquisição de status social na sociedade 17,6% (n=12)

Propicia obter status social no meio acadêmico 25,0% (n=17)

Viabiliza o ingresso em uma universidade, principalmente a pública 17,6% (n=12)

Permite o desenvolvimento intra e interpessoal 13,2% (n=9)

Possibilita a aquisição de determinados conhecimentos julgados superiores pela

sociedade10,3% (n=7)

Consideram-se superiores aos que não conseguiram ingressar na universidade,

sobretudo na pública4,4% (n=3)

Propicia o diálogo e o debate no meio acadêmico 4,4% (n=3)

É um atributo estimulado e valorizado na universidade 2,9% (n=2)

Outras justificativas 4,4% (n=3)

Fonte: Dados da pesquisa

A primeira indagação a ser tecida antes da análise desses resultados é: afinal, o que significa a inteligência? Não será o homem ignorante do saber sistematizado uma pessoa inteligente? O fato de pensarmos não é indicador de que somos inteligentes?

Ser inteligente, para Piaget (1983), significa fazer uso de instrumentos com a finalidade de resolver um dado problema. Para o autor, a inteligência é definida como a “solução de um problema novo para o indivíduo, é a coordenação dos meios para atingir certo

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fim, que não é acessível de maneira imediata” (PIAGET, 1983, p. 216).

Nesse sentido, o indivíduo ignorante do saber acadêmico também é inteligente, pois faz uso de seus conhecimentos para transpor os obstáculos que impedem sua adaptação à realidade. Disso se conclui que ser inteligente não significa, necessariamente, ter ingressado em estabelecimentos de ensino superior. A pessoa ignorante do saber acadêmico pode ter malogrado no seu intento por não ter os conhecimentos exigidos para ser aprovada em um exame vestibular ou até mesmo por falta de condições financeiras para fazê-lo ou de vontade. Gramsci (1968) foi exemplar ao dizer que todos os seres humanos são filósofos; logo, inteligentes (afinal, todos pensam).

Tais observações levam-nos à terceira interrogação: o pensar não é indicador de inteligência? Acreditamos que sim. Por esse motivo, fomos levados a indagar alguns dos participantes acerca de seu entendimento do que é ser inteligente. Em um primeiro momento, eles se sentiram embaraçados para nos responder. Entretanto, com base nas respostas dadas, concluímos que, para esses jovens, inteligência é sinônimo de ter os conhecimentos valorizados acadêmica e socialmente e/ou que são requisitos para o ingresso em uma universidade.

Por esse motivo, tomamos – no presente estudo – a expressão ser inteligente como sinônimo de aquisição de determinados saberes sistematizados e amiúde valorizados acadêmica e socialmente.

La Taille (1999; 2005), ao dissertar acerca da relação entre conhecimento e va-lor, afirma que o primeiro pode ser visto de quatro maneiras: a) meio para a aquisição de riqueza cultural desinteressada (portanto, um fim em si mesmo); b) fator que contribui para o progresso da humanidade; c) igualmente, aspecto que pode possibilitar a obtenção de status social; d) por fim, instrumento que fa-vorece a construção da autonomia e, conse-quentemente, protege-nos da alienação a que somos constantemente submetidos.

Notamos, pelas justificativas oferecidas (tabela 3), que o saber é visto como forma de os sujeitos conseguirem status acadêmico e social. Afinal, para tais estudantes, conforme a avaliação de seus pares, ele possibilitou o ingresso em uma universidade pública e/ou a aquisição de prestígio no meio acadêmico e fora dele.

Já o conhecimento sistematizado não foi apontado como meio para auxiliar no progresso da sociedade. Semelhantemente ao que foi apontado no estudo de Bataglia (1996), os estudantes parecem não se importar com tal aspecto.

Poderíamos dizer que o conhecimento é visto como fator de desalienação e busca desinteressada pelo saber, pois 25,0% das justificativas remetem ao desenvolvimento pessoal. Contudo, julgamos prematuro fazer tal afirmação, pois o conteúdo das justificativas não nos permite emitir esse tipo de parecer. Tendemos a considerar que – assim como a maioria dos motivos – o interesse pelo conhecimento, nesses casos, visa ao prestígio pessoal.

Conclusões e considerações finais

A respeito dos universitários investiga-dos, concluímos:1. Para esses estudantes, seus pares pouco priorizam valores públicos, isto é, afeitos ao dever agir (moral);2. Igualmente, têm pouco apreço pelos valores privados, ou seja, atinentes à harmonia individual ou pela efetivação de alguma forma de felicidade (dever ser);3. Apesar de apontar valores considerados em si dignos de elogio, como a inteligência e a amizade, concebem tais excelências como meio para obtenção de status social e riqueza;4. Apresentam-se como defensores de um arremedo da ética utilitarista, pois se guiam apenas pela busca da satisfação do próprio bem.

Entendemos que tal estudo deve ser feito com outros estudantes de psicologia tanto de faculdades públicas quanto privadas. Defendemos tal sugestão pelo fato de a maioria dos entrevistados apresentarem determinada

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peculiaridade: eles provêm de cidades localizadas a mais de duzentos quilômetros daquela onde está localizada sua universidade. Diante disso, indagamos: será que os matriculados em uma faculdade na mesma cidade, onde residem, apontariam a amizade como valor priorizado por seus pares? Não seria a prioridade dada à amizade muito mais um fator conjuntural?

Julgamos necessárias, igualmente, a realização de investigações com universitários de outros cursos e a análise da distribuição das respostas e das justificativas em função de fatores factuais (sexo, idade, nível socioeconômico, tipo de estabelecimento de ensino frequentado, religião, etnia, entre outras variáveis).

Outro aspecto refere-se à influência do curso tanto na manutenção quanto na mudança

dos valores e das justificativas apresentadas. Dessa forma, consideramos necessária a realização de estudos que busquem comparar alunos matriculados nos primeiros e últimos anos do curso de psicologia. Questionamos: o referido curso universitário influencia nos valores e nas justificativas apresentadas pelos estudantes acerca de seus pares?

Informamos, por fim, que estamos dando prosseguimento ao presente estudo, analisando questões referentes: a) ao que tais sujeitos fariam se tivessem recursos financeiros para mudar a realidade; b) aos valores que eles gostariam de ver em seus filhos; c) ao que mudariam neles próprios; d) àquilo de que têm mais medo; e e) a aspectos que julgam necessários para serem felizes.

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Recebido em: 22.09.2013

Aprovado em: 15.04.2014

Nelson Pedro da Silva é mestre em psicologia da educação, doutor em psicologia do desenvolvimento humano, docente do curso de psicologia na Universidade Estadual Paulista (UNESP – Assis) e membro da Sociedade Brasileira Jean Piaget.

409Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 409-426, abr./jun. 2015.

Expectativas de jovens do ensino médio público em relação ao estudo e ao trabalho

Davisson Charles Cangussu SouzaI

Daniel Arias VazquezI

Resumo

O artigo analisa as expectativas de jovens do ensino médio de escolas públicas em relação à continuidade dos estudos e à inserção no mercado de trabalho. O principal procedimento da pesquisa foi a aplicação de um questionário a 1363 estudantes da região metropolitana de São Paulo. Em diálogo com as teorias críticas de Althusser (1999), Bourdieu e Passeron (1975), e Baudelot e Establet (1975), partimos da hipótese de que esses jovens possuiriam alta expectativa de ingresso no mercado de trabalho e baixa expectativa de continuidade dos estudos. Por um lado, os dados revelaram que os jovens pesquisados pretendem seguir estudando, e inclusive ingressar no ensino superior. Porém, por outro lado, foram constatadas desigualdades significativas de expectativas e avaliação de chances segundo as seguintes variáveis: autodefinição de raça; escolaridade e tipo de ocupação dos pais/responsáveis; autodefinição na estrutura de classes; experiência atual e anterior de trabalho. Tais desigualdades revelam a existência de um teto de vidro que reduz as chances de ingresso no ensino universitário (principalmente nas universidades públicas), segundo o grupo social considerado. Este artigo demonstra que conciliar estudo com trabalho é visto como a maior dificuldade e, ao mesmo tempo, como a principal estratégia para obter o nível superior, considerando os efeitos das políticas recentes de ampliação da oferta das vagas públicas e privadas.

Palavras-chave

Educação e trabalho – Jovens – Ensino médio – Escola pública – Ensino superior.

I- Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, Brasil. Contatos: [email protected]; [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041789

410 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 409-426, abr./jun. 2015.

Expectations of young people from public secondary education about study and work

Davisson Charles Cangussu SouzaI

Daniel Arias VazquezI

Abstract

This article analyzes the expectations about study and work of secondary students from public schools. The main research tool was a questionnaire answered by 1363 students in the metropolitan area of São Paulo city. In dialogue with the critical theories of Althusser, Bourdieu and Passeron, and Baudelot and Establet, we started from the assumption that these young respondents have high expectations of entering the labor market and low expectations of continuing studies. However, the data revealed that the young people surveyed intend to continue studying, mainly by accessing higher education. Furthermore, we found significant inequalities of expectations and evaluation of chances related with: self-definition of race; the type of education and occupation of parents/guardians; self-definition in the class structure; current and previous experience in the labor market. Such inequalities reveal the existence of a glass ceiling that reduces the chances of entering higher education (mostly in public universities), according to the social group considered. This article shows that combining study with work is seen, at the same time, as the main difficulty and the main strategy to obtain a higher degree, considering the effects of recent policies to expand the supply of places in public and private universities.

Keywords

Education and work – Young people – Secondary students – Public school – Higher education.

I- Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, Brasil. Contacts: [email protected]; [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041789

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Introdução

Diversas análises que se dedicam a explicar a trajetória educacional dos jovens costumam enfatizar questões como a taxa de escolaridade e o acesso ao ensino superior desse público, demonstrando como esses índices são devedores de aspectos como o atraso escolar, a renda familiar e a autodefinição de cor/raça (ANDRADE; DACHS, 2007; LIMA, 2012)1. Outro conjunto de pesquisas recentes vem buscando explicar a trajetória educacional e laboral dos jovens egressos do ensino médio, enfatizando o destino daqueles que, por diversos fatores, não logram dar continuidade aos estudos2.

Nosso intuito neste artigo é analisar o momento anterior, ou seja, quando os jovens ainda estão construindo suas expectativas de abandono/continuidade dos estudos e de ingresso no mercado de trabalho. Para tanto, analisamos essa questão em uma etapa crucial, aquela que antecede a habilitação para a entrada na universidade. Em outras palavras, não buscamos problematizar o perfil do público que já ingressou na universidade nem daqueles que já abandonaram os estudos. Ao contrário, pretendemos compreender as expectativas profissionais e educacionais dos jovens na iminência de conclusão do ensino básico a partir das seguintes questões: como planejam sua trajetória, como avaliam suas chances e como antecipam estratégias para superar as dificuldades que esperam encontrar. Os teóricos clássicos da educação sustentam que a trajetória escolar e profissional dos jovens varia conforme a inserção de classe de sua família de origem, o que afeta suas expectativas com relação a uma educação prolongada. Pesquisas atuais vêm demonstrando que os diferentes níveis de renda familiar acarretam oportunidades desiguais de trabalho e

1- Os dados estatísticos dessas pesquisas se baseiam na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNAD/IBGE), que definem como jovens a população de 15 a 24 anos.2- Alguns autores chamam a atenção para o grupo dos que nem estudam nem trabalham (os nem-nem), destacando seu perfil predominantemente feminino e a maternidade como principal motivo da interrupção da trajetória escolar e laboral. Ver Cardoso (2013).

renda entre os jovens (ANDRADE; DACHS, 2007; LIMONGI; SAMPAIO; TORRE, 2000; POCHMANN, 2004). Em diálogo com essas teorias e pesquisas, partimos da seguinte hipótese inicial: os jovens de escolas públicas (por conta de sua origem predominante nas camadas populares) possuem baixa expectativa de continuidade dos estudos (em geral, e de ingresso no ensino superior em particular, especialmente na universidade pública) e alta expectativa de ingresso no mercado de trabalho (por conta da necessidade de contribuir com a renda familiar).

Essas expectativas variariam ainda segundo os seguintes fatores: gênero e autodefinição de cor/raça dos entrevistados; escolaridade e tipo de ocupação dos pais/responsáveis; autodefinição na estrutura de classes; experiência atual e anterior de trabalho. Assim, a expectativa de continuidade de estudos seria menor entre: homens e negros; aqueles cujos pais/responsáveis têm inserção laboral como assalariados manuais e possuem menor escolaridade; que se definem como “pobres”; que trabalham ou já trabalharam. Para testar essas hipóteses, aplicamos um questionário a 1.363 estudantes do ensino médio de escolas públicas da região metropolitana de São Paulo. Este artigo tem o intuito de apresentar os principais dados obtidos nessa enquete.

O texto está dividido em quatro partes. Na primeira, apresentaremos um breve resumo do marco teórico que nos serviu de base para a construção das principais hipóteses. Na segunda, faremos uma síntese dos procedimentos de pesquisa e uma descrição dos dados obtidos com a aplicação do questionário. Na terceira, analisaremos os resultados para buscar compreender as expectativas e as estratégias dos jovens pesquisados para a continuidade/abandono dos estudos e inserção no mercado de trabalho. Na última parte, problematizaremos nossa hipótese inicial a fim de compreender as dificuldades latentes que funcionam como um teto de vidro3 na trajetória do público pesquisado.

3- Metaforicamente, imaginando que a trajetória social fosse uma escada, um teto de vidro no meio não impossibilitaria a visualização dos degraus

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Marco teórico e hipóteses

Este artigo não se insere na linha de pesquisas de sociologia da juventude, que busca analisar as especificidades dos jovens como grupo social para explicar questões como a cultura e a identidade juvenil (DAYRELL, 2007). Também não dialoga com a psicologia da adolescência, que aborda as particularidades afetivas e cognitivas dessa faixa etária, embora reconheçamos a importância de algumas questões levantadas pelos estudos clássicos nessa área4. Nosso objetivo é problematizar a relação entre educação, trabalho e classes sociais, tomando o público juvenil como objeto, mas sem a pretensão de discutir o universo identitário ou psicossocial dos jovens.

Sobre o conceito de classe, entende-se que as análises sobre a formação recente de uma “nova classe média” no Brasil, difundidas por Neri (2010), não podem ser norteadas apenas pelo critério da renda, desconsiderando identidades, escolhas políticas e de estratégias de sobrevivência, as quais certamente norteiam, entre outras coisas, a formação das expectativas sobre estudo e trabalho, objeto de análise deste estudo.

Nesse sentido, estabeleceu-se como ponto de partida o diálogo com as teorias crítico-reprodutivistas, assim denominadas pelo filósofo da educação Dermeval Saviani, porque compreendem a educação como um fenômeno condicionado pelas práticas sociais, e que tem por função principal a reprodução da estrutura de classes5. São três as teorias classificadas por Saviani nesse grupo: a teoria da violência simbólica de Bourdieu e Passeron, a teoria da

mais altos, mas dificultaria a passagem para atingi-los. No sentido que procuramos dar a nosso texto, o teto de vidro seria o conjunto de barreiras com as quais não se conta como decisivas ao longo do percurso.4- Piaget e Inhelder (1976), por exemplo, observaram que a adolescência é marcada pela revivência do “egocentrismo infantil” e pela “megalomania”, pois se trata de um período de prevalência da assimilação sobre a acomo-dação, o que acarreta uma dificuldade de reconhecimento das condições objetivas de realização dos desejos individuais.5- O autor diferencia as teorias crítico-reprodutivistas das teorias não-críticas (Ensino Tradicional, Escola Nova e Escola Tecnicista), que concebem a educação como um instrumento de equalização social.

escola como aparelho ideológico de Estado de Althusser e a teoria da escola dual de Baudelot e Establet (SAVIANI, 2009). Apresentaremos a seguir uma breve síntese dessas teorias, a fim de expor alguns questionamentos para o nosso objeto de estudo.

Althusser (1999) critica o mito da escola única e neutra para defini-la como um aparelho ideológico de Estado necessário para a reprodução das relações de produção. Para o autor, além da inculcação da ideologia burguesa dominante, a escola cumpre um papel fundamental na estrutura de relações de classe, por meio da formação da força de trabalho, distribuindo desigualmente os agentes segundo a função desempenhada na estrutura social (produção, repressão, ideologia e exploração).

Baudelot e Establet (1975) partem da análise althusseriana para afirmar que, além da difusão da ideologia dominante, a escola cumpre o papel ideológico de recalcamento da ideologia proletária. Os autores argumentam que o sistema de ensino nas sociedades capitalistas funciona de maneira dual por meio de duas redes, que correspondem à divisão fundamental da sociedade capitalista entre as duas classes principais (burguesia e proletariado). Denominam a primeira de rede PP (primária-profissional), voltada para a classe dominada, e a segunda de SS (secundária-superior), voltada predominantemente para a classe dominante.

No Brasil, Saes (2005) procura demonstrar que a defesa da escola pública, universal e gratuita e a difusão do mito da escola única expressam os interesses da classe média (definida como o conjunto dos trabalhadores assalariados não-manuais)6. Segundo o autor, o apego à estratificação social (hierarquia salarial), justificada pela ideologia da meritocracia, é o que diferencia a classe média tanto da classe operária como da burguesia e da pequena burguesia, cuja ideologia típica é o apego à propriedade privada.

6 - Vale ressaltar que o conceito de classe média não é empregado por Décio Saes em seu sentido mais habitual, ou seja, como estrato socioeconômico baseado em faixas de renda.

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A ideologia da meritocracia teria a função de encobrir os interesses específicos da classe média (a distinção em relação ao trabalhador manual). Por isso, concretiza-se na defesa do mito da escola única e para todos, baseada na noção de igualdade de oportunidades aplicada ao terreno educacional. Saes (2005) ressalta que a estratégia típica da classe operária é a inserção no mercado de trabalho, enquanto a da classe média é a escolaridade prolongada. De tal forma que, se a ideologia tipicamente burguesa é a ideologia da propriedade privada (já que o patrimônio e a herança são os principais mecanismos reprodutores de sua classe), a ideologia da meritocracia é a ideologia típica de classe média, pois serve ao propósito de encobrir a valorização do trabalho intelectual em detrimento do trabalho manual, a partir da noção de distribuição desigual de dons e méritos individuais. Dessa forma, seria possível concluir que: se a trajetória escolar não se conforma como uma estratégia típica da classe operária, suas expectativas em relação ao prolongamento dos estudos seriam baixas.

Bourdieu e Passeron (1975) questionam a noção de que o desempenho escolar esteja relacionado a dons, talentos, aptidões e méritos pessoais. A principal conclusão dos autores neste trabalho é de que, ao invés de ser um instrumento de mobilidade, a escola é um poderoso meio de conservação social. Assim, a principal função ideológica do sistema de ensino é justamente o ocultamento de sua função objetiva: a reprodução das relações da estrutura de classe (por meio da distribuição desigual de capital econômico, social e cultural), fazendo com que as hierarquias sociais apareçam como hierarquias escolares.

Porém, apesar da aparente igualdade de oportunidade e de acesso, a desigualdade edu-cacional está condicionada pela desigualdade presente na estrutura social. De acordo com Bourdieu e Passeron (2005, p. 161),

[...] a maioria daqueles que, em diferentes fases do curso escolar, são excluídos dos

estudos se eliminam antes mesmo de serem examinados e (...) a proporção daqueles cuja eliminação é mascarada pela seleção abertamente operada difere segundo as classes sociais.

Para problematizar a noção de expectati-vas que utilizamos neste artigo, vale mencionar o conceito de esperança subjetiva, definido pelos autores como o “produto da interiorização das condições objetivas que se operam segundo um processo comandado por todo o sistema de re-lações objetivas nas quais ela se efetua”, e que estaria na base da explicação da “mortalidade escolar das classes populares” (p. 166).

Nesse sentido, as expectativas não podem ser consideradas como sinônimo dos desejos pessoais, mas como o resultado da tensão entre estes e o reconhecimento social das condições objetivas, dependentes em última instância da posição na estrutura social (hierarquia socio-econômica e escolar). Porém, os sujeitos nem sempre são completamente conscientes das difi-culdades encontradas, por exemplo, para aceder ao ensino superior, seja pelos limites estruturais (número de vagas existentes), seja por percalços apresentados em sua trajetória (reprovação no exame vestibular, impossibilidade de arcar com os gastos na universidade, ou abandono dos es-tudos pela necessidade de trabalhar).

Sendo assim, as expectativas dizem res-peito ao planejamento de uma trajetória (as pre-tensões, a avaliação de chances, as estratégias), planejamento esse que não se confunde com a própria trajetória. É, ao contrário, um indicador da predisposição para uma trajetória futura. Tal como afirmam Bourdieu e Passeron (2005), a baixa expectativa (ou a “esperança subjetiva”) seria um condicionante da “mortalidade escolar”. Em outras palavras, o desalento provoca a au-au-toeliminação (ou a eliminação sem exame), ou ainda, a “resignação à exclusão”, que se traduz no reconhecimento de que “isto não é para nós”.

Bourdieu e Passeron também nos instigam a pensar outra questão que será útil para a análise aqui proposta. Esses autores

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fazem referência à raridade dos títulos como um mecanismo de distinção social, já que a escolaridade prolongada é uma estratégia poderosa de distinção social e de obtenção de vantagens econômicas. Observando mais detidamente o caso brasileiro, podemos indagar: a recente expansão do acesso ao ensino superior encurtou a distância entre os jovens do ensino médio das escolas públicas e a universidade?7

Deve-se considerar que, além da mobilidade social recente, foram criadas políticas públicas voltadas à ampliação do acesso ao ensino superior, especialmente da classe trabalhadora, por meio do Programa de Financiamento Estudantil (FIES), da concessão de bolsa integral ou parcial pelo Programa Universidade para Todos (Prouni), ou, ainda, pela expansão recente das vagas nas universidades federais, com a instalação de campi no interior dos estados ou na periferia das regiões metropolitanas via Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Ainda assim, todos esses programas – os quais serão descritos adiante – ainda condicionam o acesso à universidade ao desempenho escolar.

Com base nas discussões feitas até aqui, partimos das seguintes hipóteses: a) os jovens da classe operária se resignariam à exclusão por meio da autoeliminação (a “eliminação sem exame”); desse modo, sua “esperança subjetiva” se traduziria em “incorporação das condições objetivas” específicas de sua classe (BOURDIEU; PASSERON, 1975); b) a escola, então, seria um mecanismo de reprodução das relações de produção, por reproduzir os diferentes agentes por meio de trajetórias escolares desiguais (ALTHUSSER, 1999); c) essas trajetórias expressam o funcionamento de um sistema de ensino dual (SS e PP), voltadas respectivamente para a burguesia e para o proletariado (BAUDELOT; ESTABLET, 1975);

7- Ressalta-se que essa expansão não significou a eliminação das hierarquias, que persistem entre os cursos e instituições (carreiras voltadas para a produção de tecnologia de interesse para a indústria x licenciaturas; universidades públicas de excelência x faculdades privadas etc.).

d) o interesse típico dos jovens de famílias oriundas da classe operária é a entrada no mercado de trabalho, enquanto a escolaridade prolongada é o interesse típico da classe média, que se utiliza da ideologia da meritocracia para se distinguir dos trabalhadores manuais e valorizar economicamente o trabalho intelectual, reproduzindo seus privilégios de classe (SAES, 2005).

Em síntese, os jovens de escolas públicas possuiriam baixa expectativa de continuidade dos estudos em geral (e de ingresso no ensino superior em particular, especialmente na universidade pública) e alta expectativa com relação ao ingresso no mercado de trabalho. Nesse sentido, o trabalho se imporia como uma necessidade (para contribuir com a renda familiar) e a interrupção da trajetória educacional seria uma fatalidade (por conta da impossibilidade de conciliar trabalho e estudo, da dificuldade de ingressar na universidade pública ou de pagar uma mensalidade em uma faculdade privada). Sendo assim, estariam nos planos da maioria desses jovens não o ensino superior, mas sim o ensino técnico ou até mesmo o abandono dos estudos.

Procedimentos de pesquisa e descrição dos dados

Para testar essas hipóteses no contexto brasileiro recente, aplicamos uma enquete a jovens do ensino médio de escolas públicas sobre suas expectativas em relação ao estudo e ao trabalho. A pesquisa foi realizada como parte das atividades da disciplina Estágio Supervisionado Em Ciências Sociais I, ministrada pelos autores deste artigo no segundo semestre de 20128. Obtivemos 1558 casos. Desse total,

8 - A pesquisa foi aplicada pelos alunos da disciplina durante a visita às escolas. Vale destacar que esses estudantes realizaram estágio supervisionado de 50 horas nas respectivas escolas e que essa atividade de pesquisa era parte da ementa da disciplina e da proposta do referido estágio. Além disso, houve a incorporação como atividade da matéria de sociologia nas escolas pesquisadas, com participação e autorização prévia do professor responsável e do dirigente da escola (coordenador pedagógico e/ou diretor). Além de receberem as orientações fornecidas para a realização da pesquisa no estágio, os estudantes já haviam cursado

415Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 409-426, abr./jun. 2015.

excluímos 195 estudantes de escolas privadas e de Educação de Jovens e Adultos (EJA), pois se tratava de um número insuficiente para uma análise comparativa entre as esferas pública e privada e por faixa etária9. A análise preliminar desses casos permitiu constatar que os mesmos distorciam os dados gerais, visto que os estudantes do ensino privado avaliavam suas chances de ingresso no ensino superior como mais altas que o geral, e o público do EJA tinha bem menos pretensão de acesso à universidade do que o conjunto dos entrevistados10. Trabalhamos, então, com os 1.363 estudantes do ensino médio público regular.

O questionário era composto por 22 questões divididas em quatro partes: 1) Perfil do entrevistado (sexo, autodefinição de cor/raça); 2) Perfil familiar (tipo de ocupação, profissão e grau de escolaridade dos pais/responsáveis); 3) Expectativas educacionais (pretensão de continuidade dos estudos e de ingresso no ensino superior, bem como a avaliação das chances, das dificuldades e das atuais políticas governamentais de acesso à universidade); 4) Expectativas no mercado de trabalho (experiências e pretensões profissionais).

Os dados foram obtidos em 35 escolas públicas de ensino médio da região metropolitana de São Paulo (RMSP). Desse total, 63,4% dos casos estavam localizados na capital, 23,9% em Guarulhos (município sede da universidade) e os 12,7% restantes em outros municípios. A média de idade do público foi de 16,3 anos, com variação de 14 a 21 anos.

a unidade curricular de Métodos e Técnicas de Pesquisa Quantitativa e, portanto, estavam devidamente capacitados para a aplicação do questionário, elaborado pelos autores deste estudo, e também para a tabulação dos dados. O banco de dados foi consolidado pelos autores e submetido a testes de consistência. Por fim, deve-se ressaltar que os resultados preliminares foram apresentados aos estudantes e também aos professores das escolas pesquisadas. Agradecemos o empenho dos estudantes durante a aplicação do questionário e as contribuições recebidas durante a apresentação preliminar dos dados. 9- Após a publicação deste artigo, o questionário e o banco de dados serão disponibilizados ao Consórcio de Informações Sociais (CIS) - http://www.nadd.prp.usp.br/cis/index.aspx.1�- - Desse modo, apesar de levarmos em conta a pertinência de uma análise comparativa entre esses públicos, essa questão ficará pendente para futuros trabalhos.

O número médio de pessoas que habitam a residência dos entrevistados foi de 4,3. Os principais responsáveis pelo sustento familiar são os pais (70,6% o pai e 72,1% a mãe), restando ainda 14,2% para outro responsável (na maioria, algum familiar, principalmente os avós), 7,5% para os próprios sujeitos, 1,48% para o(a) esposo(a).

A incidência de jovens com filhos foi de 1,54%, com variação de 1 a 2 filhos. Do total da amostra, 53,4% eram do sexo feminino e 46,6% do sexo masculino. Com relação à raça/cor da pele, 43,3% se declararam brancos, 39,2% pardos, 11,8% pretos, 3,6% amarelos e 2,1% indígenas11. Verificamos ainda um alto percentual de estudantes com experiência atual ou anterior de trabalho: 42,6% trabalham ou já trabalharam, sendo 50,6% dos homens e 35,7% das mulheres12.

Com relação à classe social, a intenção inicial da pesquisa era captar a autopercepção dos jovens na estrutura social, e não fazer uma análise objetiva de sua inserção de classe. Dessa forma, optou-se por uma terminologia bastante conhecida: rico, pobre e classe média. Embora essa tipologia não seja consensual entre os pesquisadores, trata-se de uma classificação que tem a vantagem de se aproximar a um repertório conceitual mais conhecido dos jovens, o que não acontece com termos como burguesia, pequena burguesia e proletariado. Por outro lado, não adotamos a classificação A, B, C, D e E do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para não ficarmos presos a critérios previamente estabelecidos de renda para a definição de classe, mesmo porque, segundo nossa hipótese, a maioria dos jovens não saberia informar a renda familiar dos pais/responsáveis.

A grande porcentagem de jovens que se consideram pertencentes à classe média (75,1%) nos conduz à hipótese de que a difusão da noção

11- - Essa variável foi construída com base nos critérios de classificação de cor/raça do IBGE.12- - Essa seria uma primeira evidência da centralidade do trabalho na vida do público pesquisado: o alto percentual de jovens trabalhadores. Esse fator possui ainda uma forte clivagem de gênero, tendo em vista a maior incidência de jovens do sexo masculino com experiência de trabalho.

416416 Davisson C. C. SOUZA; Daniel A. VAZQUEZ. Expectativas de jovens do ensino médio público em relação ao estudo e...

de nova classe média (e sua suposta expansão nos últimos anos), associada ao aumento do salário médio real e à elevação da capacidade média de consumo de bens duráveis (computador, celular, automóvel etc.), tem levado parte das camadas populares a se sentirem pertencentes a esse grupo. Segundo Neri (2010), “cerca de 29 milhões de pessoas ingressaram nas fileiras da chamada nova classe média (Classe C) entre 2003 e 2009” (p. 12), sendo que uma das características citadas pelo autor dessa “nova classe” é o “anseio de subir na vida”, por meio de um “plano bem definido de ascensão social” (p. 26). Nesse sentido, espera-se que as expectativas reflitam certo otimismo e revelem uma estratégia para o alcance dos objetivos traçados, a qual passará pelo estudo e/ou trabalho.

De qualquer forma, embora o número dos que se consideram ricos seja muito pequeno (apenas 0,6%), o percentual dos que se consideram pobres não é desprezível, chegando a quase um quarto da amostra (24,3%). Por último, vale mencionar que a autodefinição como pobres varia consideravelmente segundo a autodeclaração de raça. Assim, se, do total

de pretos, 33,5% se consideram pobres, esse percentual cai para 18,6% entre os que se definem como brancos. Ou seja, apesar da possível distorção gerada pela tipologia escolhida, a variável será significativa para a análise a que nos propomos.

Com relação ao vínculo empregatício dos pais, o gráfico 1 mostra que, em ambos os casos, embora a maioria seja composta por empregados assalariados (67,1% dos pais e 60% das mães), há maior incidência de mães na informalidade: enquanto, entre os pais, 58,8% possuem carteira assinada e 8,3% não possuem, entre as mães, 48% possuem carteira assinada e 12% não possuem13. Também entre as mães se observa maior número de desempregadas (3,3% contra 1,9% dos pais) e um grande percentual de donas de casa (19,9%), situação quase inexistente entre os pais (0,3%). É maior o percentual de pais autônomos e empregadores (respectivamente 17,1% e 4,3% contra 10,7% e 2,0% entre as mães).

13-- Esses números são semelhantes aos apontadas pelos últimos relatórios da PNAD/IBGE.

Gráfico 1: Tipo de ocupação do pai e da mãe (em %)

Fonte: Dados da pesquisa.

Mãe Pai

Não sabe

Desempregado/a

Empregador/a

Autônomo/a

Dono/a de casa

Empregado/a com carteira assinada

Empregado/a sem carteira assinada

0 10 20 30 40 50 60 70

417Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 409-426, abr./jun. 2015.

Vale destacar, por último, que, em ambos os casos, prevalecem profissões relacionadas ao trabalho manual (na indústria, no comércio e nos serviços), sendo bastante frequente entre os homens o trabalho na construção civil, no setor de transportes e em serviços pessoais (pedreiro, motorista, porteiro, segurança etc.), e comuns entre as mulheres os serviços educacionais, domésticos e pessoais (professora, auxiliar de limpeza, costureira, cozinheira, empregada doméstica, diarista etc.). Em ambos os casos, foi muito baixa a

incidência de profissionais não-manuais de nível superior (médicos, engenheiros, advogados etc.).

Com relação aos estudos, observou-se que a escolaridade das mães é maior que a dos pais. Embora a porcentagem seja semelhante nos primeiros níveis, há uma maior proporção de mães com ensino médio completo (32,2% contra 28,2% dos pais). Em ambos os casos, a porcentagem com ensino superior completo (com ou sem pós-graduação) é de pouco mais de 10%, conforme mostra o gráfico 2.

Gráfico 2: Grau de escolaridade do pai e da mãe (em %)

Fonte: Dados da pesquisa.

Vejamos a seguir como os jovens avaliam os estudos. Para 78,6% dos entrevistados, o estudo é a principal forma de obter melhores possibilidades de emprego e salário; para 20%, essa é uma via parcial, e somente para 1,4% não se configura como uma forma de ascensão social. Ademais, 98% informaram que a família apoia a continuidade de seus estudos, 1,3% que apoia parcialmente e 0,7% disseram que não apoia. Com relação à expectativa de continuidade dos estudos, 94,3% dos jovens entrevistados declararam que pretendem seguir estudando.

Em suma, a grande maioria dos jovens vê o estudo como principal via de ascensão social, informa que sua família apoia a continuidade de seus estudos e declaram pretender seguir estudando. Essa visão não se diferencia entre os que se consideram e os que não se consideram pobres, o que a princípio demonstra que o reconhecimento social da escolaridade e a estratégia do estudo como via de ascensão não são exclusivos da classe média, tal como as teorias crítico-reproduvistas nos fizeram supor. Porém, a estratégia do estudo não exclui

Mãe Pai

Não sabe

Pós-graduação

Ensino superior completo

0 10 15 20 25 30 35

Ensino superior incompleto

Ensino médio completo

Ensino médio incompleto

5ª a 8ª série

1ª a 4ª série

Não estudou

5

418418 Davisson C. C. SOUZA; Daniel A. VAZQUEZ. Expectativas de jovens do ensino médio público em relação ao estudo e...

a demanda por entrada no mercado de trabalho, já que 93,4% pretendem começar a trabalhar ou seguir trabalhando após o ensino médio14.

Vale ressaltar mais detidamente o perfil das pretensões de continuidade de estudos dos jovens pesquisados. Entre os que pretendem seguir estudando, 83,9% tencionam fazer faculdade, 25,3% almejam fazer um curso técnico e 14,4% pretendem fazer outro tipo de curso15. Com relação ao tipo de universidade (se pública ou privada), há uma preponderância da dupla estratégia: pública, mas não descarta a privada (55,1%); e privada, mas não descarta a pública (26,5%). O foco na universidade pública é baixo (apenas 12,8%), e o foco exclusivo nas faculdades privadas é ainda menor (5,5%).

O percentual alto de jovens que pretendem seguir estudando e ingressar na universidade pode ocultar outros dois fenômenos: o reconhecimento de barreiras e a avaliação das chances. Escolhemos três fatores

14- - Esse dado nos leva a uma segunda evidência da centralidade do trabalho na vida desses jovens: a quase totalidade pretende começar a trabalhar ou seguir trabalhando.15-- Trata-se de questão de múltipla escolha, o que explica que a soma das respostas seja superior a 100%.

para avaliar o julgamento que os jovens fazem das dificuldades que lhes são impostas para a continuidade de seus estudos após o ensino médio: a condição financeira, o desempenho escolar e a necessidade de trabalhar. O gráfico 3 mostra que esses fatores impõem diferentes graus de dificuldades para a continuidade dos estudos, na opinião dos jovens pesquisados.

Embora 31,8% vejam a condição financeira e 33,9% vejam o desempenho escolar como fatores que impõem alguma dificuldade para a continuidade dos estudos16, esse percentual sobe para 59,3% no que diz respeito à necessidade de trabalhar. A menor incidência dos fatores condição financeira e desempenho escolar supõe que os jovens consideram que essas barreiras sejam mais facilmente superáveis do que a necessidade de trabalhar. No caso do fator condição financeira, é possível supor que a inserção no mercado de trabalho seja vista como um fator de possível superação dessa

dificuldade. Se confirmado, esse dado seria mais uma evidência da centralidade do trabalho

16-- Ou seja, aqueles que responderam sim ou parcialmente.

Gráfico 3: Dificuldades para continuidade dos estudos

Necessidade de trabalhar

Sim NãoParcialmente

Condição financeira Desempenho escolar0%

10%

100%

90%

80%

70%

60%

50%

40%

30%

20%

Fonte: Dados da pesquisa.

419Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 409-426, abr./jun. 2015.

na vida desses jovens. Testaremos essa hipótese mais adiante.

Vale chamar a atenção, no entanto, para como os entrevistados avaliam suas chances de ingresso no ensino superior. A grande porcentagem de avaliação de chances médias (76,5% na universidade pública e 63,6% nas universidades privadas) indica que os jovens não são tão otimistas, mas também não veem como impossível o acesso à universidade, pois a avaliação de chances não chega a provocar o desalento e o total abandono do ensino superior de seu horizonte. Assim, da mesma forma que chama a atenção a pequena proporção de jovens que avaliam suas chances como altas (9,1% na pública e 18,1% na privada), também é notório o percentual de jovens que consideram que suas chances de ingresso na universidade não sejam baixas (14,4% na pública e 18,3% na privada)17.

Esse fator pode ter relação com as políticas recentes de acesso ao ensino superior. Segundo Catani, Hey e Gilioli (2006), o Prouni foi criado pelo governo como o carro-chefe na democratização do ensino superior, por meio de uma “engenharia administrativa que equilibra impacto popular, atendimento às demandas do setor privado e regulagem das contas do Estado” (p. 127), com base na concessão de bolsas de estudos integrais ou parciais nas instituições de ensino superior (IES) que aderissem ao programa, as quais seriam beneficiadas com isenção de tributos. Os bolsistas são selecionados por critério socioeconômico associado à nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), cuja dimensão cresceu bastante após a criação do Prouni.

Em seguida, o governo federal também cria o Reuni, com o objetivo de dobrar as vagas ofertadas na rede federal de ensino superior, com a criação de novas universidades e campi de expansão fora das capitais dos estados. Apesar da forma de ingresso manter-se baseada no desempenho escolar, a seleção passou a ser

17 - Essa distorção pode ser resultante do fato de parte dos entrevistados ter avaliado suas chances de ingresso não só como as possibilidades de acesso mas também de permanência na universidade.

feita via Sistema de Seleção Unificado (SISU), o que popularizou ainda mais o ENEM. Além disso, foram estabelecidas as cotas raciais e, mais recentemente, a Lei nº 12.711/2012 passou a reservar 50% das matrículas por curso e turno para alunos egressos da escola pública e em proporção à população negra e indígena.

O gráfico 4 mostra a percepção dos jovens entrevistados sobre os efeitos desses programas como facilitadores do acesso deles ao ensino superior. Na avaliação de 62,2%, o ENEM aumentou suas chances de ingresso na universidade18, percentual que se reduz para 47,7% no caso do Prouni e 36,9% no caso do SISU.

Gráfico 4: Avaliação do efeito das políticas públicas sobre a chance de ingresso na universidade (em %).

No entanto, o que também chama a atenção é a alta porcentagem de jovens que desconhecem essas políticas: 23,2% desconhecem o ENEM; 35,5% desconhecem o Prouni; e 45,7% desconhecem o SISU. O maior grau de conhecimento do ENEM deve-se à utilização da nota desse exame tanto para o Prouni como para o SISU. Por fim, 42,1% dos jovens consideram que as cotas para negros e para escolas públicas aumentaram suas chances.

Apesar da aparência de menor impacto das políticas de cotas, as diferentes avaliações segundo a autodefinição de classe e a autodeclaração de raça contribuem para

18-- Vale mencionar que não há diferença estatística significativa entre autodeclarados pobres e não-pobres na avaliação do ENEM como política que teria aumentado as chances de ingresso ao ensino superior.

70

60

50

40

30

20

10

0

Não

Sim

Não sei

Indiferente

ENEM PROUNI SISU COTAS

Fonte: Dados da pesquisa.

420420 Davisson C. C. SOUZA; Daniel A. VAZQUEZ. Expectativas de jovens do ensino médio público em relação ao estudo e...

complexificar a compreensão deste fenômeno, conforme as tabelas 1 e 2.

Tabela 1: Avaliação das cotas entre os jovens autodeclarados como pobres (em %)

Considera-se pobreTotal

Não Sim

Considera que cotas aumentaram chances

Não 76,1 23,9 100

Sim 75,5 24,5 100

Total 75,9 24,1 100

Qui-quad. = 0,570ª df (1) sig. 0,811

Tabela 2: Avaliação das cotas entre os jovens segundo autodeclaração de cor/raça (em %)

Brancos e Amarelos

Pretos, Pardos e Indígenas Total

Considera que cotas aumentaram

chances

Não 51,1 48,9 100

Sim 41,1 58,9 100

Total 46,9 53,1 100

Qui-quad. = 12,908ª df (1) sig. 0,0

Observamos que, embora, entre aqueles que se consideram pobres, não haja diferença

na avaliação de suas chances, o corte racial é significativo. Entre brancos e amarelos, 41,1% considera que essa política aumentou suas chances, percentual que sobe para 58,9% entre pretos, pardos e indígenas. Por fim, o gráfico 5 mostra com maior nitidez a diferença entre estes últimos, já que a porcentagem de pretos que consideram que suas chances aumentaram é de 60,4%, enquanto entre os brancos é de 36,4%.

Nossa argumentação até aqui demonstra que os jovens têm em seu horizonte a continuidade dos estudos (pretendem ingressar na universidade), reconhecem dificuldades para a continuidade dos estudos (principalmente a necessidade de trabalhar), mas não se resignam à exclusão: avaliam que as políticas de acesso ao ensino superior aumentaram suas chances (especialmente o ENEM e as cotas, para os jovens autodeclarados negros) e procuram montar uma estratégia para driblar as dificuldades que esperam encontrar.

Qual seria essa estratégia? Primeiramente, pretende-se verificar se os jovens consideram que podem se manter (e, se sim, de que maneira) tanto na universidade pública como na universidade privada, conforme mostra o gráfico 6.

Gráfico 5 – Avaliação de aumento das chances a partir das cotas, segundo a autodefinição de cor

Fonte: Dados da pesquisa.

100%

90%

80%

70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%

branca amarela preta parda indígena

sim não indiferente

421Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 409-426, abr./jun. 2015.

Como se pode observar, são poucos os que afirmam não poder se manter na universidade pública (4,1%), percentual quatro vezes superior quanto à universidade privada (16,1%), o que indica que o pagamento de uma mensalidade é um fator de exclusão mais expressivo que outros gastos com educação quando o ensino é gratuito. Embora o corte racial não explique a avaliação de chances de pagar uma mensalidade na universidade privada, considerar-se pobre implica uma menor expectativa em relação a essa questão19.

Dentre as estratégias para se manter na universidade, poucos mencionam as políticas de auxílio, seja a assistência estudantil nas universidades públicas (11,3%), seja o financiamento estudantil nas universidades privadas (14,3%). A ajuda familiar é um fator considerável na estratégia de manutenção 19- - Entre os que se definem como pobres, 22,3% afirmaram não ter condições de pagar mensalidade, contra 16% do total e 14% dos que não se consideram pobres (Chi-Square Tests = 12,775, df (1), sig. 0,000). Não houve diferença estatisticamente significativa entre brancos e não-brancos (Chi-Square Tests = 0,4110, df (1), sig. 0,522).

financeira dos jovens (42,6% no caso da universidade pública e 40,8% no caso da universidade privada). No entanto, o fator mais presente é o trabalho, já que 77,5% pretendem trabalhar para se manter na universidade pública e 63,1% tencionam trabalhar para se manter na universidade privada.

Essa estratégia pode ser confirmada pela alta porcentagem de jovens que pretendem conciliar trabalho e estudo após o ensino médio (88,3%). Por outro lado, a porcentagem dos nem-nem é de apenas 0,4%20. O foco somente no trabalho corresponde a apenas 5,1% dos entrevistados, e o foco somente no estudo (trajetória típica da classe média universitária brasileira) corresponde a apenas 6,1% dos mesmos21, conforme tabela 3.

2� - As pesquisas que trabalham com essa noção analisam principal-As pesquisas que trabalham com essa noção analisam principal-mente o público que já abandonou a escola.21-- Em futuros trabalhos, pretendemos comparar essas expectativas entre estudantes do ensino público e privado.

Gráfico 6 – Condições de permanência e estratégias para seguir estudando (em %)

Fonte: Dados da pesquisa.

Universidade Pública Universidade Privada

Pretende trabalhar Ajuda familiar Assistência estudantil (se pública) ou financiamento (se privada) Sem condições de se manter

90

80

70

60

50

40

30

20

10

0

422422 Davisson C. C. SOUZA; Daniel A. VAZQUEZ. Expectativas de jovens do ensino médio público em relação ao estudo e...

Tabela 3: Intenções de trabalhar e seguir estudando (em %)

Pretende começar a trabalhar ou seguir trabalhando? Total

Não Sim

Pretende seguir estudando?

Sim 6,1 88,3 94,4

Não 0,4 5,1 5,6

Total 6,6 93,4 100

Qui-quad. = 0,255ª df (1) sig. 0,613

Esse dado nos leva a concluir acerca de um dilema dos jovens: embora a necessidade de trabalhar seja a principal dificuldade apontada para a continuidade de seus estudos, por sua vez, o ingresso no mercado de trabalho é visto como o principal fator que lhes possibilitaria o ingresso e a manutenção na universidade. Nesse sentido, se a principal estratégia é, ao mesmo tempo, o principal entrave para a continuidade dos estudos.

Dessa forma, se a principal estratégia é, ao mesmo tempo, o principal entrave para a continuidade dos estudos, há motivos que justifiquem as expectativas otimistas reveladas por esta pesquisa? Para esses jovens, o céu é o limite ou o teto é de vidro? Em outras palavras: a desigualdade de condições e de oportunidades seria um empecilho menor que o esforço individual para superar as dificuldades e atingir os objetivos propostos? Ou, ainda, existe uma dificuldade desses jovens em reconhecer os limites que encontrarão em sua trajetória futura? Seriam as expectativas positivas iguais no conjunto da população estudada?

Para tentar avaliar os percalços implíci-tos, observamos mais detidamente os seguintes dados: a) a dificuldade imposta pelo trabalho para a continuidade dos estudos; b) a expecta-tiva de seguir estudando; c) a pretensão de fazer faculdade; d) o foco na universidade pública/privada; e) a avaliação de chances de ingresso na universidade; f) a pretensão de trabalhar ou seguir trabalhando; g) a estratégia de conciliar o trabalho como meio de se manter na univer-sidade. Em seguida, cruzamos esses dados com as seguintes variáveis: 1) experiência atual e/

ou anterior de trabalho; 2) escolaridade e tipo de ocupação dos pais/responsáveis; 3) gênero; 4) autodefinição de raça; 5) autodeclaração de classe. Vejamos a seguir os principais resultados.

O fato de trabalharem ou já terem traba-lhado não tem implicação direta sobre a expec-tativa de continuidade dos estudos. No entanto, esse fator tem uma influência sobre o ingresso na universidade. Conforme os dados da tabela 4, entre aqueles que não trabalham ou jamais trabalharam, 58,4% pretendem fazer faculdade; porém, entre aqueles que trabalham ou já tra-balharam, esse percentual diminui para 41,6%.

Tabela 4: Experiência de trabalho x expectativa de ingresso no ensino superior (em %)

Você trabalha ou já trabalhou? Total

Não Sim

Pretende fazer faculdade?Não 46,4 53,6 100

Sim 58,4 41,6 100

Total 56,5 43,5 100

Qui-quad. = 10,23ª df (1) sig. 0,001

Entre aqueles que têm foco na pública, 33,8% trabalham ou já trabalharam, enquanto 66,2% não possuem experiência atual ou anterior de trabalho. Ademais, entre os que têm foco na universidade pública, 84,8% pretendem trabalhar, mas, entre aqueles que não têm foco na universidade pública, esse percentual sobe para 94,1%22. Ou seja, a estratégia de conciliar trabalho e estudos torna-se menos forte quando o foco é a universidade pública, seja pelo nível de exigência maior para o ingresso e para a conclusão dos cursos públicos, seja pela dispensa do pagamento de mensalidade.

Ademais, enquanto 10,8% dos brancos e amarelos consideram que suas chances de ingresso na universidade pública sejam baixas, esse percentual sobe para 17,5% entre pretos, pardos e indígenas, conforme tabela 5.

22 - Qui-quadrado = 15,78, df (1) , sig. 0,000

423Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 409-426, abr./jun. 2015.

Tabela 5: Cor da pele e avaliação de chance de ingresso na universidade pública

Brancos e Amarelos

Pretos, Pardos e Indígenas

Total

Chance de ingresso na universidade

pública

Baixa 10,8 17,5 14,3

Média 80,8 72,8 76,5

Alta 8,4 9,7 9,1

Total 100 100 100

Qui-quad. = 13,87ª df (2) sig. 0,0

Da mesma forma, entre os que não se definem como pobres, 11,7% consideram baixas suas chances de ingresso na universidade pública, mas, entre os que assim se definem, esse percentual sobe para 22,9%, de acordo com a tabela 6. A despeito das políticas de cotas nas universidades públicas, as expectativas dos potenciais beneficiários dessa ação afirmativa em relação ao acesso ao ensino superior público são menores.

Tabela 6: Pobreza e avaliação de chance de ingresso na universidade pública

Considera-se pobreTotal

Não Sim

Como você avalia suas chance de ingresso na universidade pública?

Baixa 11,7 22,9 14,4

Média 79,1 68,2 76,4

Alta 9,2% 8,9 9,1

Total 100 100 100

Qui-quad. = 25,57ª df (2) sig. 0,0

Além da renda, houve diferenças significativas quando observada outra variável socioeconômica importante nas análises educacionais: se 94,8% do total pretendem seguir estudando, esse percentual cai para 92,3% entre aqueles cujas mães possuem escolaridade baixa. A pretensão de seguir estudando também é menor entre os jovens cujas mães possuem uma inserção precária no mercado de trabalho23 (93,5% contra 96,1%).

23- - Agregamos os fatores com maior significância estatística: desempregada, assalariada informal e dona-de-casa.

Os dados apresentados permitem con-cluir que, embora, em um primeiro momento, o céu seja o limite para os jovens quando cons-troem expectativas, há um teto de vidro que os posiciona desigualmente, impondo limites que reduzem as chances de êxito em sua trajetória. Assim, ainda que conciliar estudo com trabalho seja visto ao mesmo tempo como a maior difi-culdade e a principal estratégia, as expectativas e a avaliação de chances se reduzem justamen-te entre aqueles jovens trabalhadores oriundos de famílias de classe operária com baixa esco-laridade, negros e que se autodefinem como pobres. Em outras palavras, suas expectativas com os estudos são mais baixas, a avaliação de chances, mais pessimista, e as dificuldades es-peradas, maiores.

Considerações finais

Contrariando a hipótese inicial, as maiores dificuldades apontadas pela pesquisa não foram o desalento provocado pela avaliação negativa das chances de ingresso pelos jovens (já que a maioria considera que sua chance seja média), o mau desempenho escolar ou a condição financeira (já que pode superar esse fator limitante por meio do trabalho). Vale ressaltar que as expectativas individuais – positivas ou negativas – que os sujeitos constroem de sua trajetória social são devedoras não apenas das condições objetivas de seu estrato social, mas também das representações ideológicas que são feitas sobre essas chances, difundidas principalmente pela mídia e pelas propagandas oficiais.

Nesse sentido, as expectativas dos sujeitos são devedoras do número de vagas na universidade, que teve um significativo crescimento por meio das políticas governamentais recentes, mas também da ideologia meritocrática baseada na noção de igualdade de oportunidades que as acompanha. Em relação ao primeiro aspecto, o crescimento do número de vagas no ensino superior se deve principalmente à expansão do ensino privado durante os governos de Fernando Henrique

424424 Davisson C. C. SOUZA; Daniel A. VAZQUEZ. Expectativas de jovens do ensino médio público em relação ao estudo e...

Cardoso (1995-2002). Durante os governos de Lula/Dilma (desde 2003), embora tenha havido expansão do número absoluto de vagas nas universidades federais, houve também forte estímulo ao setor privado por conta do Prouni e do FIES (LIMA, 2012; SOUZA MARTINS, 2012; TRÓPIA, 2009). Quanto ao segundo, as políticas recentes de acesso ao ensino superior vêm acompanhadas de uma intensa campanha publicitária que vem reforçando a ideologia da meritocracia: “a oportunidade é de todos, o mérito é seu”, diz um das últimas propagandas sobre a expansão de vagas veiculada pelo Ministério da Educação (MEC) na mídia televisiva. Nesse sentido, é possível afirmar que esses jovens estejam imersos em um contexto de otimismo: o Brasil estaria se desenvolvendo, parte dos setores populares teria se inserido na chamada nova classe média e camadas historicamente excluídas do ensino superior passaram a entrar na universidade.

Sintetizemos nossas principais análises. Em primeiro lugar, cabe ressaltar a centralida-de do trabalho na vida dos jovens pesquisados: a) parte significativa deles trabalha ou já traba-lhou; b) a grande maioria pretende começar a trabalhar ou seguir trabalhando; c) o trabalho é visto como principal dificuldade para a conti-nuidade dos estudos; d) o trabalho é a principal estratégia para sua manutenção na universidade.

Em segundo lugar, vale mencionar a existência de um dilema tautológico, pois a estratégia encontrada para romper a barreira do acesso ao ensino superior é, ao mesmo tempo, o principal fator que dificulta a continuidade dos estudos. Se ingressar na universidade não parece difícil, a dificuldade de conciliar estudo e trabalho se revela um teto de vidro.

Apesar do significativo desconhecimento de algumas políticas de acesso ao ensino superior do governo federal, os jovens de modo geral avaliam que o ENEM aumentou suas chances de ingresso na universidade e que as cotas (principalmente entre os negros) também cumpriram esse papel. A ampliação do acesso à universidade pelas classes populares

por meio de políticas públicas – Prouni e FIES, nas instituições privadas, e Reuni e cotas, nas públicas – permitiu uma diminuição da distância social do ensino superior e da raridade do título universitário24 como mecanismo de distinção social. Apesar dos programas governamentais, a meta do Plano Nacional de Educação (PNE – Lei nº 10.172/2001) de aumentar a proporção de jovens de 18 a 24 anos matriculados em curso superior para 30% até 2010 esteve longe de ser atingida. Segundo o IBGE, esse percentual era de 13% em 2009.

Embora os jovens não considerem suas chances de ingresso no ensino superior como altas (principalmente na universidade pública), tampouco as consideram baixas. Essa expectativa convive com uma avaliação de que suas chances são médias, o que atesta o reconhecimento de certas dificuldades que devem ser superadas para atingir esse objetivo. Sendo assim, a resignação à exclusão, ou seja, a autoeliminação ou “eliminação sem exame”, a que fazem referência Bourdieu e Passeron (1975), não é predominante nesse grupo. Ao contrário, o resultado indica que os jovens participarão da seleção e tentarão driblar as dificuldades que esperam encontrar.

Retornando à questão posta, se o limite é o céu ou se o teto é de vidro, foi possível formular algumas hipóteses: a expectativa em relação à continuidade dos estudos é alta, o que faz pensar inicialmente que o desejo desses jovens está acima da avaliação de suas chances concretas, o que reproduz a ideologia do mérito e do dom, mas principalmente do esforço individual que possibilitaria superar as condições do ponto de partida; nesse sentido, o céu seria o limite. Porém, há um reconhecimento dos percalços derivados da posição na estrutura de classes e, além disso, a expectativa e as chances diminuem segundo diversas variáveis; nesse sentido, o teto é de vidro.

Embora a maioria dos jovens pesquisados se considere de classe média, a

24- - Pelo menos em algumas carreiras, como as licenciaturas.

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perspectiva de se dedicar somente aos estudos – trajetória típica da classe média universitária brasileira – tampouco está no horizonte desses jovens. Ademais, apesar de haver certo clima de otimismo, a avaliação das chances não é baixa nem alta, e o teto de vidro se aproxima desses jovens como indicativo de que a trajetória escolar segue sendo um dos mecanismos mais poderosos de reprodução das desigualdades socioeconômicas e das

relações de classe. Uma pesquisa comparativa entre jovens de escolas públicas e privadas avançaria nessa questão.

Em suma, apesar do céu prometido pelo mito do discurso meritocrático, há um teto de vidro imperceptível em um primeiro momento, mas reconhecido pela dificuldade de conciliar estudo e trabalho, bem como pelas expectativas menores em função de fatores socioeconômicos e étnico-raciais.

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Recebido em: 15.02.2014

Aprovado em: 02.09.2014

Davisson Charles Cangussu Souza é professor do curso de graduação e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp - campus Guarulhos) e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Classes e Conflitos Sociais (Gepecso/Unifesp).

Daniel Arias Vazquez é professor do curso de graduação e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp - campus Guarulhos) e coordenador do Grupo de Estudos Sociais, Urbanos e Ambientais (GESUA/ Unifesp).

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La autoridad de los profesores universitarios: un estudio centrado en relatos de estudiantes de letras

María Paula PierellaI

Resumen

En este artículo se presentan algunas conclusiones de un trabajo de investigación centrado en explorar la autoridad de los profesores desde la perspectiva de estudiantes próximos a culminar sus estudios en una universidad pública argentina. Trabajo que se inscribe en la línea de investigación sobre experiencia universitaria dirigida por la Dra. Sandra Carli en el área de educación y sociedad del Instituto Gino Germani (Facultad de Ciencias Sociales – Universidad de Buenos Aires). Específicamente, el texto se centra en estudiantes de la carrera de letras, perteneciente a la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario. La técnica de recolección de datos priorizada fue la entrevista semi-estructurada con aportes de los relatos de vida. Como conclusión general se afirma que en los relatos de los estudiantes se expresa tanto una deslegitimación de los vínculos asentados en diferencias jerárquicas, como el reconocimiento de múltiples atributos de autoridad en algunas figuras profesorales. En el proceso de autorización de los profesores predominan características vinculadas al saber disciplinar, al reconocimiento académico dentro del campo y al carisma. Asimismo, se destaca el peso que en esta carrera tiene la autoridad del pasado, la autoridad del autor y del objeto libro. Por último, se pone de manifiesto la legitimidad otorgada a la figura del licenciado en letras, con el consecuente desprestigio que recae sobre la figura del profesor de escuela secundaria, siendo esta última la salida laboral más frecuente entre los egresados de la carrera.

Palabras clave

Autoridad – Profesores universitarios – Estudiantes.

I- Universidad Nacional de Rosario, Rosario, Argentina.Contacto: [email protected]; [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041589

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The university professor’s authority: a study focused on language arts students’ accounts María Paula PierellaI

Abstract

This article presents some conclusions of an investigation of professors’ authority, from the perspective of students about to complete their studies at an Argentinean public university. This work is written along the line of investigation about university experience, directed by Dr. Sandra Carli in the Education and Society Area of Instituto Gino Germani – Facultad de Ciencias Sociales – Universidad de Buenos Aires. The text focuses on language arts students from the Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario (Faculty of Humanities and Arts of the National University of Rosario). The prioritised data collection technique was semi-structured interviews with contributions of life stories. As a general conclusion, student accounts show a delegitimization of traditional student–teacher relationships based on hierarchical authority and the recognition of multiple characteristics of authority in some professors, such as knowledge of the discipline, academic recognition within the field and professorial charisma. Additionally, the authority of the past, the author and the book as an object are emphasised. Finally, the legitimacy granted to the Bachelor of Arts figure is revealed, along with the consequent discredit that falls upon high school teaching, which is the most frequent career prospect among language arts graduates.

Keywords

Authority – University professors – Students.

I- Universidad Nacional de Rosario, Rosario, Argentina.Contact: [email protected]; [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041589

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Introducción

El objetivo de este trabajo es presentar algunas conclusiones de una investigación — que dio como resultado una tesis doctoral— centrada en explorar las visiones de los estudiantes universitarios sobre la autoridad de los profesores. La tesis — realizada en el marco de becas doctorales del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) — se inscribe en proyectos de investigación colectivos centrados en abordar el pasado y el presente de la universidad pública desde un registro socio-cultural. Entendiendo a dicha institución como una combinación compleja de estructuras, tradiciones, identidades, experiencias y acontecimientos que demandan descripción y narración desde el punto de vista de la investigación (CARLI, 2008), surge la inquietud de explorar la cuestión de la autoridad como uno de los aspectos centrales de la experiencia estudiantil en la universidad contemporánea. 1

Creemos que la heterogeneidad propia de las facultades que componen a las universidades — que implica características institucionales, encuadres de la tarea y áreas de conocimiento diferenciadas, inciden en las consideraciones de los estudiantes sobre la autoridad de los profesores; lo cual nos lleva a adoptar una perspectiva analítica determinada. Es por ello que en este artículo focalizaremos la indagación en uno de los casos estudiados: los estudiantes próximos a finalizar sus estudios de grado de la carrera de letras, perteneciente a la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario.

Entendiendo que la autoridad no existe si no es reconocida, es decir, por fuera de un proceso de legitimación de ciertos rasgos, atributos, principios, prácticas, y que estos tienen sentido

1 - Proyectos CONICET 5889 Narrativas de estudiantes universitarios y sus familias sobre la experiencia educativa en el tiempo presente. Transformaciones del sentido de la educación (2005-2009) y UBACYT SO03 La experiencia universitaria. Estudios sobre la universidad pública (2008-2011). Ambos proyectos fueron dirigidos por la Dra. Sandra Carli en el Instituto de Investigaciones Gino Germani, Facultad de Ciencias Sociales UBA.

en el marco de interpretaciones realizadas por sujetos localizados en instituciones específicas, nos proponemos indagar las formas que asumen estos procesos en dicha carrera.

El problema de esta investigación se configuró en una zona de diálogo entre diferentes disciplinas de las ciencias sociales. De este modo, la pedagogía, el psicoanálisis, la filosofía política, la filosofía de la educación y la sociología ofrecieron aportes conceptuales a partir de los cuales construimos nuestro objeto.

Optando por una metodología de tipo cualitativa, el trabajo recupera algunos insumos del paradigma de la narrativa en las ciencias sociales, en tanto interesa analizar las visiones que los propios estudiantes atribuyen a las figuras de autoridad en relatos orales.

La construcción del objeto se organizó en torno al siguiente corpus:• Revisión de bibliografía proveniente de las disciplinas mencionadas.• Entrevistas semi-estructuradas a estudiantes universitarios próximos a finalizar sus carreras de grado en la Universidad Nacional de Rosario.• Entrevistas semi-estructuradas a los directores de las carreras estudiadas, a fin de tener en cuenta aspectos relevantes de la dinámica institucional y del encuadre general en que transcurre el proceso de formación universitaria. • Entrevistas semi-estructuradas a profesores con amplia trayectoria en las carreras, con el fin de poder obtener mayores precisiones sobre aspectos propios de la cultura institucional y aclarar algunas cuestiones sobre las peculiaridades disciplinarias.• Documentos de política educativa y política institucional: Ley de educación superior, estatuto de la Universidad Nacional de Rosario, actas de Consejo Directivo, etc.• Documentos sobre la historia de la Universidad Nacional de Rosario.

Cabe destacar, frente a este corpus, la centralidad de las entrevistas a los estudiantes. En este caso utilizamos la técnica de la entrevista semi-estructurada con aportes de los relatos de vida (BERTAUX, 2005).

430430 María Paula PIERELLA. La autoridad de los profesores universitarios: un estudio centrado en relatos de...

El tipo de indagación realizada es retrospectiva y no longitudinal. Partimos de un presente determinado (los años 2009 y 2010) y desde allí orientamos las entrevistas hacia una recuperación de experiencias pasadas.

El trabajo de campo se llevó a cabo en dos instancias. En un primer momento, se centró en entrevistas a estudiantes de cada una de las facultades que componen la Universidad Nacional de Rosario. Esta primera indagación, compuesta de un corpus de quince entrevistas no sólo aportó datos para realizar los primeros ajustes teóricos, confrontando así el marco conceptual indagado con las categorías de los entrevistados, sino que fue crucial en el proceso de selección de las carreras a estudiar. En un segundo momento, considerando criterios de saturación teórica (GLASER; STRAUSS, 1967), se realizaron 45 entrevistas a estudiantes de las carreras de física, letras y contador: veintidós mujeres y veintitrés varones cuyas edades oscilan entre los 23 y 26 años. Se consideraron diferentes perfiles de estudiantes: jóvenes provenientes de localidades pequeñas y de la ciudad de Rosario; aquellos que cursaron sus estudios secundarios en escuelas públicas y privadas; militantes de agrupaciones políticas estudiantiles y quienes transitaron sus estudios universitarios sin participar en ellas. De este modo se pretendía acceder a relatos que expresaran diferentes experiencias de socialización y formación.

El recorrido propuesto en este texto es el siguiente: en primer lugar explicitaremos brevemente la perspectiva teórica adoptada, dando cuenta de la articulación entre los conceptos de autoridad y reconocimiento. Luego, en los siguientes apartados, nos centraremos en el análisis de la autoridad docente desde la perspectiva de los estudiantes de la carrera de letras.

Pensar la autoridad desde la perspectiva del reconocimiento

La noción de autoridad no resulta simple de definir. Muchas veces se la asimila con el

poder, otras tantas a la idea de dominación y en ocasiones a la violencia. Se la utiliza para hablar de relaciones centradas en el respeto y la admiración hacia otros, como de aquellas situaciones en las que imperan rasgos arbitrarios. Se la asocia al temor y a la habilitación, a la autorización y al autoritarismo.

Para desentrañar esa complejidad y aportar algunas características distintivas de este fenómeno, desde diferentes líneas teóricas se ha hecho hincapié en las operaciones de credibilidad y reconocimiento inherentes al acto de autorizar (KOJÈVE, 2004; CERTEAU, 2006a; RICOEUR, 2008).

Al plantear que no existe autoridad que no sea reconocida por otros se produce una doble operación: por un lado se atempera la idea de dominación o de ejercicio arbitrario del poder con las cuales suele asociársela. Por otro, la articulación entre autoridad y reconocimiento y la idea de relación en ella implicada, se aleja de la pretensión de encontrar definiciones esencialistas. Es así que desde esta perspectiva, lejos de considerar a la autoridad como una sustancia localizada en un sujeto particular, una posesión de hecho, se la articula con procesos de validación o autorización que son exteriores a ella misma. En otras palabras, la autoridad no implica principios en sí mismos, sino atributos, cualidades, rasgos reconocidos. Se necesita por ende del reconocimiento, la creencia, la confianza para que alguien se constituya — para otro u otros — en autoridad.

Ahora bien, esos principios reconocidos no dependen sólo de los intereses de los sujetos. Por el contrario, asumen cierta regularidad en función de los sistemas de creencia que se van configurando en los diferentes espacios sociales e institucionales.

En relación con lo anterior, durante mucho tiempo en el campo de la educación fue posible identificar una serie de rasgos asociados a las figuras de autoridad. Entre ellos ocuparon un lugar fundamental la permanencia en el tiempo y el saber más; o en otras palabras, la experiencia y el conocimiento. Rasgos que van a

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presentar claros signos de transformación en las sociedades contemporáneas en general y en las instituciones de educación superior en particular.

Cabe señalar, sin pretensiones de exhaustividad, algunos fenómenos que están en la base de dicha transformación. En primer lugar, las posiciones antiautoritarias y antiinstitucionales, surgidas a mediados del siglo XX, a partir de las cuales se aboga por la disolución de las jerarquías, van a dar lugar a un ciclo en el que la autoridad tiene que validarse y justificarse constantemente y en el que experiencia y autoridad quedan dislocadas.

Las transformaciones sociales y culturales propias de las últimas décadas del siglo XX indican, por su parte, procesos de individualización que ponen en tensión la noción misma de autoridad centrada en la transmisión cultural, apareciendo el sujeto cada vez más como una especie de soberano autorrealizado que parecería no disponer de experiencias transmitidas contra las cuales revelarse. Es así que la búsqueda de referentes y el reclamo de autoridades que se hagan cargo de las responsabilidades asumidas, están al orden del día. Desde la perspectiva de Sennett (1982), en la base de la autoridad está la búsqueda de una fuerza que sea sólida, garantizada, estable. Principalmente entre los jóvenes se observan no sólo expresiones de desacreditación de las autoridades; sino una demanda de regulación que se encuentra estrechamente vinculada tanto a la percepción de cierta indiferencia por parte de los referentes del mundo adulto y a fenómenos de autonomía temprana, como a la prolongación de la heteronomía en edades avanzadas. En este sentido, el problema actual en relación con la autoridad parecería no radicar en la autoridad — patriarcal — y la lucha para emanciparse de ella, sino en las nuevas formas de dependencia provocadas por su declinación (ZIZEK, 2007).

Desde un registro sociológico y focalizando su mirada en las instituciones educativas contemporáneas, Dubet (2006) también va a referir a los procesos de

resignificación de la autoridad visibles en dichos espacios. Este autor plantea el pasaje de formas de autoridad sostenidas por instancias exteriores autorizadas (valores universales, normas, posiciones consagradas, etc.) a otras en las cuales la personalidad de los sujetos — y específicamente de los docentes — ocupa un lugar privilegiado. En estos términos, la autoridad profesoral parece provenir más del sujeto en su carácter de ejecutor de una performance determinada, que como actor inmerso en una trama institucional y sostenido por ella. Lo cual implica formas de autoridad más inciertas y sujetas a la negociación de las partes involucradas. En ese contexto, la participación de los sujetos cobra cada vez mayor relevancia en la construcción de sus trayectorias. Estamos ante identidades sociales menos unitarias, en menor medida definidas en relación con instancias totalizadoras y con el aprendizaje de roles propuestos; por ende, más disponibles a las experiencias singulares.

La autoridad de los profesores desde la perspectiva de estudiantes de letras

Subir y bajar del pedestal

Los estudiantes de nuestro trabajo interpretan a la autoridad como una relación entre posiciones desiguales, que puede sostenerse como tal en la medida en que esté basada en el reconocimiento recíproco entre las partes. La idea de reciprocidad implica la pretensión de recibir algo a cambio de la delegación de autoridad: respeto, atención, reconocimiento. Respeto al profesor si éste me respeta, lo reconozco simbólicamente y en consecuencia le otorgo autoridad si el reconocimiento es recíproco, expresarían estos jóvenes.

Se evidencia, asimismo, una impugnación de las relaciones jerárquicas, un reconocimiento de aquellos profesores que los tratan en términos de paridad y que se colocan en el lugar de ser uno más en el plano vincular. Algo de este

432432 María Paula PIERELLA. La autoridad de los profesores universitarios: un estudio centrado en relatos de...

orden se pone en juego en la expresión bajar del pedestal, utilizada por varios estudiantes a la hora de cuestionar a aquellos profesores que se colocan en un lugar de superioridad.

Las siguientes palabras de un estudiante son sugerentes y remiten a una asociación entre la asimetría y la imposición:

No me gusta esto de que el profesor esté parado y los estudiantes sentados; eso es artificial, es una imposición, frente a chicos de 18…Dalí innovó mirando al Cristo desde arriba. Si fuera profesor daría clases en un bar, o en mi casa. (Varón, 23 años. Entrevista realizada el 12 de abril de 2009 en un bar cercano a la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario).

La idea de desinstitucionalización cobra fuerza en la imagen evocada por este joven, que remite a una impugnación de las formas pedagógicas modernas, centradas en la diferencia de posiciones entre los que enseñan y los que aprenden. Pero por otro lado, también se producen críticas a la autoridad cuando son los profesores los que se corren de ese lugar del saber, posicionándose por debajo del estudiante. Así, se reconoce la necesidad de asimetría desde el punto de vista del conocimiento. El siguiente ejemplo es significativo:

Hay casos que a mí me daba miedo presentar los trabajos prácticos porque sabía que después lo iba a ver publicado con el nombre de la profesora (…) Yo tuve que rendir esa materia que sé que los profesores hacen eso y no mandé mi trabajo, porque había que mandarlo por correo electrónico.2 Lo hicimos con una amiga y decidimos no mandárselo entero, con las conclusiones, porque era algo sobre lo que no se había investigado. Es un trabajo de investigación te diría, estuvimos seis meses para una

2- La expresión rendir una materia refiere a la práctica de presentarse a la instancia de examen final en calidad de alumno regular o libre.

materia que la gente por lo general la rinde en un mes y no la estudia o la estudia así nomás. Entonces quisimos sacar algo divino de una materia que era horrible, que estaba muy mal dada, muy fea, que te trataban mal. E hicimos un trabajo casi de investigación sobre un tema que no se había dado y que como no lo mandamos el día del examen ¡tomaban apuntes! “¿Cómo, cómo dijiste?, preguntaban, y tomaban apuntes. (Mujer, 24 años. Entrevista realizada el 6 de noviembre de 2009 en la Facultad de Humanidades y Artes).

Cuando las posiciones se invierten dejando al descubierto que no se está en condiciones de ser autorizado en el plano del saber disciplinar, el desencanto es lo que adviene.

De modo contrario, cuando ciertas actitudes o acciones de la autoridad asociadas a mandar, disciplinar, resaltar las diferencias de jerarquía, provienen de profesores autorizados, la violencia implicada en el seno de la autoridad queda en evidencia, pero el halo que recubre a estas figuras las exime de ser impugnadas. La autoridad otorgada a dichas figuras puede estar ligada al reconocimiento académico dentro del campo, al saber sobre la disciplina, a la rigurosidad en la transmisión de los conceptos, o al carisma. En relación con lo anterior, es posible identificar actitudes ambivalentes por parte de los estudiantes. Como se pone de manifiesto a continuación:

A ese profesor lo tuve un año o dos antes de que falleciera. Ya estaba de alguna manera más de capa caída3, pero seguía manteniendo ciertos condimentos folklóricos que tenía él. Bastante interesantes, bastante estresantes también porque era un tanto violento en las clases pero… era interesante y a la vez era un hombre absolutamente sabio, lo que tenía para decir lo compartía. Si bien esa violencia verbal para con los alumnos y

3- La expresión de capa caída se utiliza para transmitir la idea de que alguien se encuentra decaído física o anímicamente.

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para con la gente de su cátedra en presencia de los alumnos había que aguantárselas… De repente, en el desarrollo de la clase por ejemplo, decía mirando a alguien, ¿qué de lo que dije está mal? Y al margen de que lo que preguntaba no era complejo, el tono imperativo y violento hacía que la gente titubeara. Y bueno, una vez que titubeaba lo mandaba, sobre todo si era una mujer, a estudiar corte y confección y ese tipo de cosas. Así que uno trataba… yo, por lo menos, trataba de callarme, de no hablar con nadie, de sentarme en lugares donde no me vea. (Mujer, 23 años. Entrevista realizada el 2 de noviembre de 2009 en la Facultad de Humanidades y Artes).

El aura de la que parecen estar provistos profesores de este tipo, esa autoridad que genera cierta sensación de privilegio al sentir los estudiantes que están siendo formados por una especie de genialidad, atemperaría la sensación de violencia. En otras palabras, la autoridad del profesor otorga dignidad e interés a una experiencia que, de otro modo sería caracterizada como autoritaria.

En suma, hay profesores a los que, lejos de bajar del pedestal, se los coloca allí. Por diversas razones: por lo que son, por lo que se dice que son, por su saber, por su forma de dar clases, por sus títulos, su institución de procedencia. Sin embargo, también se expresa con recurrencia la fragilidad de esa autoridad. Como señalaba una estudiante:

Hay algunos profesores que los pongo tan arriba y después me ha pasado que digo, al final no son tan así…hay otros que siempre, eternamente van a estar allá arriba, pero porque son piolas incluso ideológicamente […]. (Mujer, 24 años. Entrevista realizada el 6 de noviembre de 2009 en la Facultad de Humanidades y Artes).

Los vínculos entre maestros y discípulos están atravesados por idealizaciones,

decepciones, lealtades, traiciones, desilusiones. En tanto la autoridad no es una sustancia, sino una relación o un vínculo emocional, estudiarla implica siempre observar combates y variaciones, rechazos y atracciones, obediencias y desobediencias, dependencias e independencias (ANTELO, 2008).

Se puede colocar a alguien en el pedestal eternamente o bajarlo de él en un segundo. Si compartimos, con Sennett (1982), la idea de que en la base de la autoridad está la búsqueda de una fuerza que sea sólida, garantizada, estable, la mínima evidencia de que ese otro no cumple con estos requisitos puede ser motivo de su disolución como autoridad.

La autoridad del pasado

No sólo los profesores suelen ocupar pedestales. Como en toda tribu académica (BECHER, 2001) ciertos escritores, objetos, tradiciones literarias asumen un lugar de autoridad dentro de la disciplina. Sabemos que no se puede producir conocimiento si no es a partir de una base, de un legado transmitido, más allá de que se plantee una ruptura respecto de ello. Y entonces es la institución la que introduce padres fundadores o líderes intelectuales que encarnan en sí mismos la paradoja de toda autoridad.

Kojève (2004) encuentra en la autoridad de la tradición una variante del caso puro de la autoridad de los padres, identificando allí la noción de paternidad colectiva, de causa. Esa tradición, en este caso literaria, opera para muchos estudiantes como modelo perfecto de la escritura. Ciertos autores canónicos actúan entonces como jueces interdictores:

En el momento en que te sentás a escribir sentís que te mira Borges, te mira Rimbaud, te mira Baudelaire, y te mira José Martí y entonces claro…no escribís más. Es como que te sentís tan juzgado, es una cuestión totalmente subjetiva porque nadie te juzga así con el dedo…Pero es como que te

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aparecen todos los fantasmitas a tu alrededor y tu profesor, de frente, hablando de lo maravilloso que era tal. Y es probable que el estudiante no escriba más, primero porque no se le enseña cómo y segundo porque queda totalmente apabullado por todo lo que ya hay producido.4 Y que eso que ya se ha producido en un momento dado de la historia seguro que va a ser mejor que lo tuyo. Es como que el poeta está en el mundo y acá está el estudiante de letras que lo estudia a ese poeta que va por el mundo […]. (Mujer, 25 años. Entrevista realizada el 3 de mayo de 2010 en la Facultad de Humanidades y Artes).

Para muchos estudiantes de letras el ingreso a la facultad representa el fin de su identidad de aficionados a la escritura. Desde su perspectiva, las autoridades y profesores de la carrera parten del supuesto de estar ante sujetos ya provistos de ciertos talentos o dones. Suposición que los eximiría de la transmisión de un saber hacer o, en términos de Dubet (2006) de la fabricación de esta aptitud. De este modo, la facultad recibiría sujetos (lectores y escritores) y no estudiantes:

No tenemos ni un taller cuatrimestral de producción. Vos tenés que saber escribir porque sos estudiante de letras. Todos presentamos trabajos, vamos a congresos y nadie te explica nunca cuál es la modalidad de cómo presentar. Hay ciertas cuestiones protocolares, ¿quién te las explica?, alguien que pasó por la misma experiencia, pero dentro de la universidad está pasado por alto. Por ejemplo, vos podés coordinar un taller literario, por ser estudiante de letras tenés el don divino de poder tener un taller literario en el cual se produzca poesía, pero no tuviste nunca en la carrera un taller de producción. (Mujer, 22 años. Entrevista realizada el 21 de mayo de 2010 en la Facultad de Humanidades y Artes).

4- La palabra apabullado remite en este caso al hecho de sentirse intimidado, abrumado, confundido.

Concomitantemente, la identidad de escritores les daría a algunos estudiantes un valor agregado, una distinción, una autoridad que les permite interactuar con los profesores de otro modo, con un grado mayor de confianza. Como decía una joven:

¿Sabés quiénes son los que más se animan a hablar? Un sector de alumnos que son hombres y que todavía están en la carrera y son brillantes pero que generalmente son poetas, escritores […].

Esa identidad previa -que en el caso anterior se articula también con una cuestión de género- parecería interpretarse como una habilidad independiente de la enseñanza universitaria.

Más allá de su profesionalización en el mundo moderno, la escritura literaria sigue estando ligada a un arte que muchos asocian con algo del orden de la inspiración, la creatividad, la expresión personal. Según Steiner, si bien las técnicas de composición y presentación poética se enseñan a lo largo y ancho del mundo antiguo,

[...] los componentes imaginativos, las disciplinas que expresan sentimientos y que adquieren forma en el texto literario son raramente formalizados o lo son sólo en forma tardía en la historia literaria. (2004, p. 63).

El autor sugiere que “hizo falta la fe americana en el derecho de todos a estar dotados, en el aprendizaje de la inspiración, para convertir los actos educativos individuales en institucionales” (p. 64)5.

Quizás, como señala el filósofo citado, enseñar a escribir creativamente sea una contradicción. Pero el aprendizaje de la escritura no se asienta sólo en capacidades previas. Mucho tiene que ver el carácter habilitante de las autoridades.

5- Steiner (2004) destaca como hito la iniciación en la década de 1930 de un taller de escritores, a cargo de Paul Engle en la Universidad de Iowa.

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Tanto un lector como un escritor independiente se forman siendo primero dependientes (CARLINO, 2005), y en este sentido no están de más los modelos a seguir. Decía un estudiante:

Yo escribo con un libro de Borges al lado, escribo con ese respeto. Yo tengo a todos los grandes escritores del mundo, me están mirando desde arriba. Yo escribo y ellos están arriba. Eso me pone en mi lugar. (Varón, 23 años. Entrevista realizada el 12 de abril de 2009 en un bar cercano a la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario).

En la película Los cuatrocientos golpes (Truffaut, 1959), Antoine, el personaje principal, enciende una vela y habla con Balzac, pidiéndole inspiración en su actividad literaria. Recurre así a un grande, un maestro, una autoridad demandándole su influencia, pero no se siente inhibido por él. Esto guarda relación con que la tarea de escribir, como cualquier práctica, está atravesada por la historia de lo que ya se hizo en esa materia. Y el que se propone embarcarse en ella tiene que lidiar con esa tensión entre conservación y renovación que es inherente al acto productivo. Ahora bien, la construcción de algo nuevo requiere tanto de memorias como de olvidos. Si no es sin la presencia de otros que la propia producción puede tener lugar, tampoco es esto posible bajo el influjo total de esos otros.

Creemos que el problema en relación con la tradición que se les presenta a estos estudiantes no radica sólo en la fuerza con que ésta se imprime sobre ellos, y que encuentra su mejor expresión en la imagen que encontramos en una de las citas precedentes, la del fantasma que sobrevuela impidiéndole al sujeto volar. Tiene también que ver con su contrario; es decir, la debilitación del pasado en la idea de formación; la dificultad para trabajar sobre la figura del modelo imperfecto pasible de ser apropiado creativamente (ALLIAUD, 2009).

Siempre hay padres, el problema es cómo uno se relaciona con ellos y cuáles son las formas de dependencia o liberación que se legitiman. La clave está, nuevamente, en el tipo de interpretación realizada sobre la fuerza de estas autoridades.

Los profesores como productores de textos

En ciertos relatos, la identificación de algunos profesores como productores de textos y el reconocimiento declarado en función de dicha actividad, permite introducir la cuestión de la autoría como criterio de autoridad. Heredera de las complejidades del acto creativo, la figura del autor nos acerca a una arista productiva de la autoridad.

Entre los estudiantes, la posición autoral de los profesores se enlaza con el reconocimiento de la experiencia, con el bagaje de lecturas y la capacidad de actualizar en las clases una trayectoria académica. Pero es también una cuestión a considerar el apuntalamiento de otros agentes externos a la escena del aula. En efecto, los reconocimientos en ámbitos académicos nacionales e internacionales impactan sobre las valoraciones estudiantiles. Se pondría en juego aquí la autoridad ligada tanto a lo realizado previamente como a su reactivación en el presente, la exterioridad como garantía de la sabiduría de ese sujeto y la posibilidad de éste de acreditarse, de autorizarse en cada encuentro. Como afirmaba un estudiante:

El reconocimiento de los profesores también se puede ver en los textos que producen, en la producción académica de años que tienen y un cierto bagaje de lecturas que ponen en funcionamiento también en las aulas…No es algo solamente de producción científica que la tienen, que es mucha y que también tiene que ver con reconocimientos que se le hacen cuando hay menciones a ellos de universidades, tanto nacionales como internacionales. (Varón, 24 años. Entrevista realizada el 15

436436 María Paula PIERELLA. La autoridad de los profesores universitarios: un estudio centrado en relatos de...

de septiembre de 2009 en la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario). Observar que los profesores publican

libros es motivo de admiración, pero el hecho de que estos sugieran la compra de sus libros suele generar rechazo, en la medida en que es interpretado como un acto de egocentrismo.

En este sentido, los estudiantes hablan de un gran individualismo dentro de la carrera, que tiene su traducción en los modos legitimados de obtención de prestigio dentro del campo. “En letras hay muchas estrellas, se da como una exacerbación del ego” (Varón, 26 años. Entrevista realizada el 2 de diciembre de 2009 en un bar cercano a la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario), decía un entrevistado.

Siguiendo a Becher (2001) vemos que en la mayoría de las ciencias humanas la imagen de más peso es la del académico solitario. Gradualmente, los estudiantes van aprendiendo que la legitimación en el campo depende en gran medida de la capacidad de distinguirse de los demás. Si a esto le sumamos que en esta área de conocimiento existen una gran variedad de estilos, temáticas, orientaciones teóricas; no debe sorprender que la producción conjunta sea la excepción y no la regla, y que los desacuerdos sean tan comunes como la adopción de una posición compartida (BECHER, 2001).

Por otro lado, la autoridad del autor también se hace visible en el modo de trabajar en relación con los textos, especialmente manifestado en el uso que se hace de las citas. Estas operan, especialmente en una situación de examen, como garantía de la propia palabra. Así lo expresaba uno de los entrevistados:

Me acuerdo que era un examen que habíamos preparado un trabajo y la profesora nos dijo: No, esto está mal. Y nosotras teníamos el material de la cátedra que lo trabajaba de esa manera y seguía insistiendo con que no era así… Yo a los

exámenes voy prácticamente con una valija con todos los libros que los tengo marcados y entonces le digo: Momento, lea esto, esto y esto… Ah bueno, me dijo. Era la posición de la cátedra, era su propia posición… Así que a partir de ahí llevamos todo el material, si no ¿cómo le demostrás? (Mujer, 24 años. Entrevista realizada el 6 de noviembre de 2009 en la Facultad de Humanidades y Artes).

Aquí el libro representa a la autoridad de un tercero, la mediación de otro que resguarda, que protege, que fortalece y sostiene la posición del estudiante como enunciador. La jerarquía de la palabra escrita previene el conflicto y afianza la capacidad de demostración del sujeto evaluado.

Los estudiantes establecen diferencias entre aquellos profesores que sostienen que a la lectura de los libros hay que entrar con las críticas ya realizadas por otros y se ubican de alguna manera en el lugar de guardianes de la tradición y aquellos para los cuales esas críticas representan un soporte, pero incentivan a leer las obras despojándose de algunos pre-juicios: “Hay una profesora que te da las teorías y después dice, ahora elige tu propia aventura” (Varón, 25 años. Entrevista realizada el 19 de febrero de 2010 en un bar cercano a la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario), comentaba un entrevistado.

Respecto de esta cuestión, la búsqueda del equilibrio entre dos formas de dar un seminario en la que se embarcara Certeau (2006b) permite introducir un matiz entre dos formas antagónicas de acercarse a los libros: la autoridad declarada y la comunión festiva. La primera supone que el lugar está constituido por un discurso profesoral o por el prestigio de un maestro, es decir por la fuerza de un texto o por la autoridad de una voz. La segunda se asienta en el mero intercambio de los sentimientos y las convicciones, en la búsqueda de una transparencia de la expresión común. Ambas maneras suprimen, según el autor, las diferencias. “La primera aplastándolas bajo la

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ley de un padre, la segunda borrándolas de manera ficticia en el lirismo indefinido de una comunión casi maternal” (CERTEAU, 2006b, p. 44).

El libro como objeto sagrado: entre el don y el retaceo

Los estudiantes de humanidades en general, y específicamente los de letras, se reconocen como lectores previamente a su ingreso a la carrera. Todos pueden identificar alguna obra literaria que ha impactado sobre ellos y los ha llevado a ser lo que son.

Con el transcurso del tiempo, a través del vínculo con nuevas autoridades y el modo de operar de las nuevas regulaciones institucionales, el libro como objeto adquiere el aura propia de los objetos sagrados. El lenguaje utilizado para hablar de los libros está cargado de emociones y afectos:

Una vez tenía que rendir una materia y leí por Internet que había un libro que era espectacular para leer Madame Bovary, era de Vargas Llosa…Te juro que con la emoción que yo fui a comprar ese libro…y ¿sabés lo que pensaba? Yo pensaba ¿quién irá a leer este libro después con esta emoción? Los que hereden estos libros míos, ¿irán a sentir esta emoción que yo siento cuando voy a buscarlo, a ver si lo encuentro, si no lo encuentro?... Esto nos suele pasar a todos […]. (Mujer, 24 años. Entrevista realizada el 6 de noviembre de 2009 en la Facultad de Humanidades y Artes).

El carácter sacro del libro se acrecienta cuando se está frente a una fuente original, un ejemplar inédito. Y en este sentido es que los estudiantes más críticos hacen referencia al individualismo y elitismo de la carrera, vinculado con el peso que en el reconocimiento dentro del campo ejerce la posesión de piezas únicas. Parte de la autoridad de ciertas personas radicaría entonces en los mecanismos desplegados para convertirse en poseedores de objetos que otorgan distinción en el campo, y

esto no es ajeno a los procesos de identificación que tienen lugar en la institución.

A pesar de que muchos estudiantes encuentran fascinantes las posibilidades de acceso a prácticamente la totalidad de las obras literarias a partir de Internet, el libro en tanto objeto material opera como símbolo de distinción, como forma de acceso al reconocimiento entre los pares. Decía una entrevistada:

Vos siempre en la mochila tenés que tener un libro, y apoyás un libro y tenés cuatro compañeros así…. (se apoya con fuerza sobre la mesa y mira hacia abajo) Y empiezan las preguntas: ¿qué tenés?¿ la editorial tal?, yo tengo éste, en papel biblia (risas). Y nos encanta. La biblioteca de cada uno es como un tesoro. La biblioteca es un reflejo de la formación, totalmente individualista. Y después se habla, por ejemplo, de profesores que murieron, la biblioteca de tal se la regaló a tal ¡ah! Y en realidad, ¿por qué no se la regaló a la biblioteca argentina o a la de letras, que es paupérrima? (Mujer, 25 años. Entrevista realizada el 3 de mayo de 2010 en la Facultad de Humanidades y Artes).

Muy lúcidamente esta joven estaba planteando uno de los problemas más profundos de algunas universidades públicas argentinas, que radica en la precariedad de sus bibliotecas. La exposición pública del patrimonio es un hecho de autoridad política e institucional y su resguardo en bibliotecas personales –privadas –atenta contra la transmisión del legado cultural.

En estrecha relación con las políticas de archivo y de circulación del material, son reconocidos aquellos profesores generosos, los que literalmente no se quedan con el libro bajo el brazo, en contraposición de aquellos que, por ejemplo, luego de hacer alarde de poseer una de las pocas ediciones de un ejemplar, se negarían a ofrecerlo.

Tenemos el caso de docentes que son generalmente eminencias o supuestas

438438 María Paula PIERELLA. La autoridad de los profesores universitarios: un estudio centrado en relatos de...

eminencias, pero cuando vos les pedís un libro, no, no te puedo dejar el libro porque es caro y se arruina. Ahí es literal el libro bajo el brazo, pero hay casos que te decía en que no, no tienen problema. Tiene que ver con no reconocer a quien te habla. Eso es para mí terrible, porque no te ayuda en nada, no crecés nada, te quedás ahí, estamos destinados a reproducir. (Mujer, 25 años. Entrevista realizada el 2 de noviembre de 2009 en la Facultad de Humanidades y Artes).

Por otro lado, la dinámica que tiene lugar en torno a la sugerencia de libros inexistentes, y esta percepción del tipo de resguardo o donación del objeto por parte de los profesores, genera una variedad de procedimientos de apropiación de esa norma y de identificación con esas figuras. Ser invitado a la casa de algún profesor o profesora a buscar algún material es un signo de privilegio. Se expresa el deseo de querer poseer todos los libros, desear armarse una biblioteca personal como la de tal; pero también tiene lugar una mirada crítica sobre un supuesto enciclopedismo presente en la formación. Es que la experiencia en torno a los libros y a la lectura no tiene en todos los casos la misma intensidad.

Encontramos diferentes modos de relacionarse con la lectura. Para algunos esta es una práctica que no puede pensarse de forma aislada de la vida misma:

La ventaja que puedo tener sobre algún estudiante normal de la facultad es que mi vida es la literatura. Me levanto, pienso y vivo desde una visión literaria de la vida y de las cosas. No tomo la literatura como un estudio de ocho, seis, cuatro años; estoy las veinticuatro horas, o todas las que estoy despierto, pensando en eso. (Varón, 23 años. Entrevista realizada el 12 de abril de 2009 en un bar cercano a la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario).

Mientras que para otros es algo más en su vida, y en este sentido, interpretan como maltrato el uso que los profesores hacen de su autoridad como tales exigiéndoles que lean, que oficien de estudiantes de letras:

Tenés que leer todo… ¿No has leído esto?… Hay algunos que te maltratan… Yo creo que eso lo tiene que controlar la facultad. Y yo pienso que eso muchas veces produce algunos parásitos, donde uno no está pensando en un modelo de carrera, en un modelo político de profesional. No estás pensando en eso, estás pensando en que tenés que leer y leer y leer y ser más lector, ¿para qué? No, no nos importa, no nos preguntamos para qué. No, vos tenés que saber mucho, por eso el perfil enciclopedista en muchos aspectos. (Mujer, 25 años. Entrevista realizada el 3 de mayo de 2010 en la Facultad de Humanidades y Artes).

La experiencia de leer desinteresadamente, sin objetivos prefijados entraría en contradicción tanto con los requisitos de la acreditación, como con los interrogantes acerca del ¿para qué? de la lectura. En general, los estudiantes militantes son quienes más formulan dicha pregunta, cuestionando los modos academicistas de relación con el conocimiento.

Ahora bien, volviendo a la cuestión del libro, vemos que no todos tienen el mismo valor, no cualquier libro es un objeto autorizado. hay libros buenos y libros malos, libros que deben leerse y otros que no; autores prestigiosos y autores innombrables. Así, muchos estudiantes ocultan sus lecturas previas sobre el supuesto de que un estudiante de letras no puede tener en su haber determinadas obras. “Nunca se te ocurra decir siendo estudiante de letras, leí Harry Potter, por ejemplo”, (Mujer, 24 años. Entrevista realizada el 20 de octubre de 2009 en un bar cercano a la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario) decía una entrevistada.

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La experiencia de la lectura, dice Larrosa (2003) está casi siempre sometida a una especie de tutela pedagógica, justificada con criterios morales, y estéticos o estilísticos, podríamos agregar.

Parece entonces que hay que tener a los libros bajo vigilancia y a los lectores sometidos a una rigurosa tutela (…) La experiencia de la literatura no puede ser una experiencia salvaje, libre. Hay que expurgar y ordenar la biblioteca. (LARROSA, 2003, p. 206).

La construcción de una identidad se va produciendo también sobre la base de las narraciones legítimas, que participan –por mediación de la institución universitaria de pertenencia- en la construcción de una historia de vida. Y en ese relato de una vida habrá también relaciones afectivas autorizadas y otras que no:

Yo si salgo con un chico me gusta que lea literatura, aparte si sos estudiante de letras ¡no vas a tener un novio que no lea! Yo salía con un chico que jugaba al rugby y no sabía nada de literatura, no sabía quién era Mallarmé, ¿cómo puede ser que no lo sepas, nunca en tu vida escuchaste nombrar a Mallarmé? No. Estamos en problemas… Aparte a mí me pasó con otro chico que salí hace poco tiempo de querer demostrarte todo el tiempo que están a tu altura porque vos estudiás letras… ¿para qué? ¿para ser un intelectual?, entonces te quieren demostrar que leen, que están a tu altura. (Mujer, 25 años. Entrevista realizada el 3 de mayo de 2010 en la Facultad de Humanidades y Artes).

La figura del intelectual o del académico cobra autoridad por sobre la del profesor. Y, sin embargo, la docencia es la principal salida laboral que se les presenta a estos jóvenes próximos a egresar. Sobre este punto nos detendremos en el siguiente y último apartado.

Una figura desprestigiada: el profesor de media

En términos generales, los estudiantes de humanidades ingresan a la facultad sin pensarse como docentes, motivados por intereses respecto de la lectura y/o la escritura. Sus trayectorias académicas y el reconocimiento del nivel de la propia formación – que encuentran elevado- marcarían un claro contraste entre el prestigio intelectual, que Bourdieu encuentra “cuasi monopolizado por los profesores de las facultades de letras y ciencias humanas” (2008, p. 76) y el desprestigio asociado a la docencia en escuelas medias. Decía una joven:

Te duele lo que estudiaste, es como terminar siendo profesor de Lengua (…) Todo lo que leíste para el alma, para la intelectualidad, para terminar siendo profesor de lengua…Es como peyorativo… Como que no hay una valoración del profesor secundario. Cuando decís que estudiás letras y te dicen: ah, profesor de lengua, ¿viste como en terapia que te tiran algo así que te duele…que es la verdad, que tiene razón pero te duele? Es como que te las masticás esas palabras: terminar siendo […]6 (Mujer, 23 años. Entrevista realizada el 2 de octubre de 2009 en un bar cercano al domicilio de la entrevistada). Prestar atención no sólo al contenido

sino a la enunciación permite observar los recursos utilizados para hacer de una vivencia personal, una experiencia compartida. A su vez, el uso repetitivo de la expresión terminar siendo es sintomático de una realidad que no había estado en los planes iniciales. Una última opción que es al mismo tiempo la más factible y la más despreciada, carente de valor. Esto es algo que también se transmite por parte de algunos profesores. Una joven reproducía los dichos de un profesor emblemático: “Usted no

6 - La idea de masticar las palabras remite aquí, metafóricamente, al sentimiento de malestar que provoca escuchar algo que se considera cierto; algo que es doloroso, que cuesta asumir, pero que no deja de ser real.

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se preocupe que con esa cara va a terminar siendo profesora del secundario” (Mujer, 26 años. Entrevista realizada el 2 de junio de 2009 en el domicilio de la entrevistada).

La aspiración a ingresar al sistema científico y la constatación de que son pocos los que lo logran — a pesar de que las plazas para becarios e investigadores de las Ciencias Humanas aumentaron en estos últimos años — generaría sobre el final de la carrera una dinámica que muchos reconocen como competitiva e individualista. Asimismo, se van estableciendo relaciones más estrechas con los profesores que los orientarán en la presentación de proyectos de investigación.

Sin embargo, en algunos casos en la etapa de la residencia docente se produce un descubrimiento del oficio, fundamentalmente a partir de algunas experiencias satisfactorias en las prácticas en escuelas medias o en instituciones terciarias. Pero esto no suele ser lo más frecuente. En general esta instancia es cuestionada por no haber tenido un seguimiento y orientación de los profesores de residencia — “la residencia se vive en soledad, te hacés solo”— por sentir “que no se los ha preparado para ser docentes” (Mujer, 23 años. Entrevista realizada el 2 de octubre de 2009 en un bar cercano al domicilio de la entrevistada) y, en algunos casos, por haberse visto enfrentados a situaciones de desautorización por parte de los adolescentes ante quienes practicaron dicho rol.

La situación que se produce entonces es similar a aquello registrado en estudios sobre biografías escolares de docentes de primaria ver entre otros (ALLIAUD, 2001). El sentimiento de no estar preparados para dar clases llevaría a la recuperación de sus propias biografías escolares: Hay una absoluta desconexión con la escuela secundaria, con los contenidos de la escuela secundaria.

Uno va a las prácticas y se da cuenta que es otro el enfoque y está repasando cosas de su propia primaria y secundaria para estar enseñando. (Varón, 24 años. Entrevista

realizada el 15 de septiembre de 2009 en la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario).

Si bien en materia de contenidos lo que prima es esta sensación de desconexión, en términos de modalidad de transmisión sienten que cuentan con referentes de los cuales apropiarse, a modo de modelos diferentes que confluyen en el armado de un perfil más personal. El siguiente fragmento es sugerente en ese sentido:

Bueno, la docencia más o menos se imita, parece que uno copia ese modelo, de alguna manera uno se las rebusca y aprende bastante rápido pero no hubiera estado de más cierta preparación de ese lado. Yo creo que hay docentes que son muy lúcidos y ordenados, claros a la hora de explicar, y ahí te das cuenta de cómo el orden influye para que el otro pueda entender las cosas. Otros que si bien son un tanto proclives a desviarse del tema, despiertan mucho el interés del estudiante por seguir leyendo…Y hay gente que es muy histriónica y la llegada pasa por otro lado. De alguna manera, yo creo que uno va tomando, también de la gente de la secundaria y de la primaria, ciertos gestos, y uno va haciendo una forma de personaje docente que realmente va cambiando según el curso, según la estancia. También, por lo menos en mi caso, el tema de ser reemplazante es de alguna manera determinante. Porque uno tiene los tiempos acotados y justamente la autoridad hay que ganársela a lo mejor en media hora y a los ochenta minutos te suena el timbre, pero bueno, también es interesante. (Mujer, 26 años. Entrevista realizada el 2 de noviembre de 2009 en un bar cercano a la Facultad de Humanidades y Artes).

Un modelo docente que se arma y se

desarma en cada situación; en función del tipo de audiencia a la que hay que seducir.

441Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 427-442, abr./jun. 2015.

Este concepto según el cual a la autoridad hay que ganársela en cada situación atraviesa los relatos de la gran mayoría de los estudiantes. Y cuando, como en este caso, lo experimentan sobre sí mismos, la idea cobra mayor relevancia.

De cualquier manera, muchos reconocen que cuando los adolescentes perciben que ellos como noveles docentes experimentan pasión por lo que transmiten, eso produce efectos. Y en la fugacidad del encuentro puede tener lugar algo del orden de una experiencia.

A modo de cierre

A lo largo de este trabajo fuimos analizando

diferentes modos de interpretar la autoridad de los profesores por parte de estudiantes de letras próximos a finalizar su carrera.

En este recorrido señalamos la deslegitimación de los vínculos asentados en diferencias jerárquicas, al mismo tiempo que identificamos diferentes atributos profesorales con fuerza de autoridad: el saber disciplinar y la forma de transmisión de los conceptos, el carisma, el reconocimiento en el campo académico, etc. También se pusieron de manifiesto rasgos de la personalidad de los docentes. Se hizo alusión, en este sentido, a la idea de generosidad, como característica de aquellos profesores que brindan su conocimiento y sus objetos preciados (libros) sin reparos, haciendo de la idea del don el eje de sus prácticas. Los estudiantes valoran especialmente la posición de aquellos docentes que, actualizando en sus clases una trayectoria académica que evidencia reconocimiento externo, experiencia, producción, consideran a la transmisión como el acto de pasar un legado cultural permitiendo a quien lo recibe hacer otra cosa con aquello que recibió.

Los relatos nos transportaron hacia escenas que tienen en sí mismas el valor de mostrar las luces y sombras de un modelo de formación humanística, centrado en la autoridad del pasado, en el carácter sagrado del libro y en figuras intelectuales que hacen del contacto con las tradiciones un bien preciado. El objeto libro es interpretado como un bien en sí mismo, generador de experiencias de lectura, al mismo tiempo que la excusa principal para interrogar el sentido de la formación.

Por otra parte, la figura del intelectual cobra importancia en tanto imagen que refleja aquello en lo que la mayoría de los estudiantes pretende convertirse. La noción de intelectual remite en este caso más al modelo humanista de una personalidad abocada desinteresadamente al saber, a la lectura, a la escritura -no exento de limitaciones y cuestionamientos-, que a la idea de crítica de lo establecido con que suele definirse a esta figura. Por otra parte, su uso se dirige más a construir una identidad académica o profesional opuesta a la figura del profesor, que a definir lo que el intelectual es o debería ser.

El trabajo presenta una multiplicidad de visiones, a veces contrapuestas, pero en las que es posible señalar un punto de convergencia: la creencia de los propios estudiantes en que el encuentro con profesores que encarnaron aquellos principios, rasgos o atributos a su juicio legítimos, fue central en el devenir de sus trayectorias. Dicha búsqueda de seguridad en la fuerza de otros amerita continuar interrogando a la autoridad como aspecto crucial de la experiencia estudiantil, indagando en diferentes espacios institucionales las particularidades que asume su crítica, los vacíos que deja su ausencia y el tipo de presencia que se reclama.

442442 María Paula PIERELLA. La autoridad de los profesores universitarios: un estudio centrado en relatos de...

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Recibido en: 27.08.2013

Aprobado en: 13.11.2013

María Paula Pierella es doctora en ciencias sociales (Universidad de Buenos Aires), magister en educación (Universidad Nacional de Entre Ríos), profesora en ciencias de la educación (Universidad Nacional de Rosario) y docente en la carrera de ciencias de la educación en la Facultad de Humanidades y Artes Universidad Nacional de Rosario, Argentina. Becaria posdoctoral del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) en el Instituto Rosario de Investigaciones en Ciencias de la Educación (IRICE).

443Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 443-459, abr./jun. 2015.

Da estatística educacional para a estatística: das práticas profissionais a um campo disciplinar acadêmicoI

Martha Raíssa Iane Santana da SilvaII

Wagner Rodrigues ValenteII

Resumo

Este artigo analisa o movimento de transformação das práticas estatísticas colocadas a serviço da educação rumo à institucionalização da estatística como disciplina científica, no período entre 1930 e 1960. Para tanto, consideram-se sobretudo os documentos contidos no arquivo da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. A análise leva em conta os estudos de Ivor Goodson relativos aos padrões e processos de consolidação de uma rubrica acadêmica. O resultado do estudo aponta para as ações do professor Milton Rodrigues com vistas à promoção e ao deslocamento dos saberes estatísticos como método para o trabalho nas áreas da educação, da psicologia e da sociologia, em direção à estatística como campo de pesquisa, com seus próprios métodos, objetos de investigação e referências teóricas. As ações do referido professor em favor da instituição de um espaço para a formação do estatístico constituíram-se em um deslocamento significativo e concederam status de cientificidade às diversas produções nas quais a estatística era demandada. Salienta-se que, à época, a estatística, apesar de ser um conhecimento amplamente utilizado, padecia da ausência de um importante aspecto na configuração de uma disciplina acadêmica: a existência dos cursos de formação especializados, que compõem uma comunidade disciplinar.

Palavras-chave

Estatística educacional – Estatística – Pedagogia científica – Disciplina

I- Este texto é um dos resultados parciais do projeto A matemática na formação do professor do ensino primário em tempos de escolanovismo, 1930-1960, realizado pelo GHEMAT – Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática (www.unifesp.br/centros/ghemat), com apoio do CNPq. Ressalte-se que utilizou dados da dissertação de mestrado de Silva (2013), uma das dissertações elaboradas no âmbito do projeto, que se debruçou sobre a presença dos saberes matemáticos na formação do pedagogo, em análise histórica realizada com documentação da FFCL-USP e FNFi-RJ. Com a documentação inventariada, posteriormente, foi possível analisar o movimento de constituição acadêmico-disciplinar da estatística, tema deste estudo.II- Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, Brasil. Contatos: [email protected];[email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041876

444 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 443-459, abr./jun. 2015.

From educational statistics to statistics: from professional practices to an academic disciplinary field

Martha Raíssa Iane Santana da SilvaII

Wagner Rodrigues ValenteII

Abstract

This article analyzes the movement of transformation of statistical practices put at the service of education towards the institutionalization of statistics as a scientific discipline, from 1930 to 1960. To do so, the analysis included mainly documents from the archives of Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. The analysis takes into account the studies by Ivor Goodson regarding the patterns and processes that consolidate an academic heading. The findings of the study point to the actions of professor Milton Rodrigues aimed at turning statistical knowledge as a method of work in education, psychology and sociology into statistics as a research field, with its own methods, objects of investigation and theoretical framework. The actions of the aforementioned professor to establish space for the training of statisticians resulted in a significant displacement and provided several productions involving statistics with a scientific status. At the time, despite being widely utilized, statistics lacked an important aspect for the configuration of an academic discipline: specialized training courses, which make up a disciplinary community.

Keywords

Educational statistics – Statistics – Scientific pedagogy – Discipline.

I- This article is one of the partial results of the Project Mathematics in the formation of the elementary school teacher at the time of New School [in Brazil], 1930-1960, conducted by the GHEMAT – Research Group on History of Mathematical Education (www.unifesp.br/centros/ghemat), with the support of the National Research Council (CNPq). It must be highlighted that data from Silva´s M.A. thesis (2013) was utilized, as it was one of the theses produced in the scope of the aforementioned project, which addressed the presence of mathematical knowledge in the education of pedagogues, in a historical analysis which used documents from FFCL-USP and FNFi-RJ. Upon documentation inventory, it was possible to analyze the movement that instituted statistics as an academic discipline, which is the subject-matter of this study..II- Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, Brasil. Contacts: [email protected];[email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041876

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Introdução

Este texto analisa o movimento de constituição da estatística como campo disciplinar acadêmico, considerando como locus de análise a antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH). O recorte temporal escolhido, 1930-1960, foi período no qual se verifica uma popularização da prática da estatística em diversos campos do conhecimento. Neste artigo, considera-se especificamente o campo da educação frente ao desenvolvimento de ações, vislumbrando a constituição da estatística como um campo acadêmico, disciplinar. Os mecanismos acionados para a legitimação e constituição de um campo acadêmico são analisados no texto a partir das práticas desenvolvidas com a rubrica de estatística educacional, atributo pelo qual ganha grande visibilidade, mas da qual precisa se desprender para a constituição de um campo autônomo, sem amarras na especificidade dos temas em que se tem aplicação.

Em um primeiro momento do estudo, analisam-se os discursos e políticas de um tempo de valorização das práticas estatísticas como mecanismo de base para elaboração de ações amplas em nível nacional, rumo à constituição de um orgânico sistema de ensino. Esse tempo refere-se à tentativa de ultrapassagem do que era considerada uma etapa pré-científica das humanidades, em direção ao tratamento sistematizado e profissional dos assuntos educacionais.

Posteriormente, abordam-se, mesmo que de forma breve, as transformações ocorridas na ambiência escolar, de modo a tornar possível a instalação das práticas estatísticas. Por fim, analisam-se as ações constituintes pelo movimento de organização da disciplina acadêmica estatística, evidenciando-se a realização de práticas estatísticas que antecederam a criação do campo científico-acadêmico.

Ao longo do texto, portanto, buscar-se-á responder a pergunta que orientou este estudo:

como as práticas estatísticas deram lugar à estatística como disciplina científica?

Tempos de controle: discursos e políticas de valorização das práticas estatísticas

A organização de um sistema nacional de ensino, uma demanda apresentada desde a Primeira República, mobiliza intelectuais do país no sentido de indicar caminhos para a efetivação dessa organização. A elaboração de estatísticas escolares é um dos mecanismos postos como necessários a esse intento. Por meio dessas avaliações, seria possível identificar a situação real da oferta de ensino público e privado, reconhecidos como elementos necessários para a elevação da cultura do povo brasileiro e, por conseguinte, o desenvolvimento do país (MONARCHA, 2009).

A pesquisadora Natália Gil (2007) investigou as representações construídas acerca da escola primária do Brasil, a partir da análise de documentos publicados por instituições associadas à produção de estatísticas, como a Diretoria Geral de Estatística (DGE), o Ministério da Educação e Saúde, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O objetivo da pesquisadora foi estudar a legitimação das estatísticas educacionais como fontes de informação objetiva e racional, à época, que possibilitaram também a tomada de decisões políticas acerca das questões educacionais. Gil (2007) considerou as iniciativas do poder público para a criação de instituições que fornecessem informações numéricas, confiáveis, precisando como se obtinham esses números e quais as fontes educacionais utilizadas.

A pesquisa investigou, ainda, os procedimentos para a análise das interpretações acerca dos números do ensino, identificando a existência de “lutas simbólicas” travadas em torno da sua interpretação legítima. Gil (2007) também considerou o desenvolvimento de ações confluindo para o controle e organização

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de um sistema escolar em que a estatística estava muito bem posta, visto tratar-se de um conhecimento carregado de racionalidade científica, objetivo e neutro.

Ilustre-se o contexto na leitura de uma carta do chefe do governo provisório, Getúlio Vargas, aos governadores, na qual é ressaltada a importância de se realizar uma “estatística rigorosa” para tomar conhecimento das possibilidades, deficiências e potencialidades do sistema escolar, como meio de alcançar o desenvolvimento do país:

[...] estabeleci como um dos meus principais objetivos administrativos conseguir, graças aos excepcionais poderes do governo revolucionário, a eficaz colaboração que se faz mister e por meio dela a integral execução das estatísticas educacionais brasileiras. Para esse fim, promoveu o meu governo o Convênio Estatístico de 21 de Dezembro de 1931 [...]. Assim, é porque considero o êxito do convênio um dos pontos capitais do programa revolucionário, pois que só ele permitirá desenvolvimento do programa sistemático e intensivo da educação popular [...]. (VARGAS, 1932, p. 140).

A centralidade que possuíam os

problemas de escolarização no país estava relacionada à ideia de desenvolvimento socioeconômico da nação que, a esse tempo, se fundamentava na racionalidade científica e na organização de uma escola elementar, símbolos de uma nação moderna (GIL, 2007).

Com Vargas, as práticas estatísticas foram pensadas e executadas como conhecimento indispensável à educação, mapeando todos os aspectos do sistema escolar brasileiro, fossem eles de infraestrutura ou até mesmo pedagógicos (VALENTE, 2007).

No período de 1930 a 1940, houve intensa produção de estatísticas escolares, o que possibilitou, em 1939, o início da publicação da série O Ensino no Brasil, pelo Serviço de Estatística de Educação e Saúde

(SEES), com os resultados alcançados a partir do Convênio Estatístico de 1931. Essa série tinha por objetivo apresentar os resultados da educação no país de forma padronizada, regular e frequente. Buscava-se dar visibilidade aos avanços alcançados e, ao mesmo tempo, demonstrar as diferenças de desempenho nos estados (GIL, 2012).

Lourenço Filho, ainda na década de 1930, publicou o livro Tendências da educação brasileira, no qual se reservou um capítulo para justificar a necessidade de uma estatística educacional, de modo a se obter uma educação organizada e objetiva no seu funcionamento, com metas claras e passíveis de serem avaliadas (LOURENÇO FILHO, 1940). Na mesma publicação, o autor mencionou o Convênio Interestadual de Estatísticas Escolares, de 1932, o mesmo anunciado pelo presidente Vargas (citado anteriormente). Quanto à importância do convênio, afirmou:

Até esse ano, a comprovação do valor da estatística, no que diga respeito ao planejamento e organização da educação, pode ser feita pela negativa. Não será exagero dizer-se que a despreocupação dos problemas de ensino primário, até essa época, como obra nacional, se deve, em grande parte, à falta de levantamentos estatísticos periódicos, que tivessem atestado o andamento excessivamente vagaroso do crescimento dos sistemas escolares estaduais. (LOURENÇO FILHO, 1940, p. 147).

Nessa época, Lourenço Filho defendeu a estatística como sendo um método e não uma ciência1. Ao defender de forma veemente a pertinência do método estatístico para a educação, o autor afirmou haver dois usos, como se pode ler, na sequência:

1- Posteriormente, neste texto, mostrar-se-á a postura do professor Milton Rodrigues, catedrático de estatística educacional na FFCL – USP, defendendo-a como uma ciência.

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Para o vocábulo estatística duas aplicações correntes existem: uma, a de significar a simples apresentação de registros numéricos de coisas ou de pessoas, naquilo que interessem à vida do Estado; outra, no sentido de processo lógico ou método, com que esses mesmos resultados possam ser analisados e interpretados e, já agora, não só no domínio dos fatos que interessem ao Estado, mas no de todo e qualquer conhecimento humano. (LOURENÇO FILHO, 1940, p. 126).

No sentido da utilização das práticas estatísticas como forma objetiva de associação e interpretação dos dados coletados, Lourenço Filho apresentou exemplos de como esse método, no século XIX, foi sendo incorporado à física, à biologia e à psicologia. Para o autor, o primeiro registro do uso da estatística na educação foi com o psicólogo Edward Lee Thorndike, em 1903, na Columbia University, de Nova York (LOURENÇO FILHO, 1940, p. 132).

O uso da estatística foi proposto como forma de possibilitar à educação um discurso de autoridade científica. A saída do amadorismo, dos tempos considerados pré-científicos das humanidades, tem relação com o uso de metodologias das ciências naturais e das ciências exatas. Assim sendo, a preocupação de Lourenço Filho – ícone do novo tempo pedagógico – era garantir a organização de um sistema de ensino e dar objetividade aos processos educativos, por meio da compreensão da educação enquanto um processo racionalizado pela experimentação e milimetricamente planejado e executado com bases nos resultados estatísticos.

Aos discursos oficiais, ligados a políticas de governo em prol das práticas estatísticas, aliaram-se, por esse mesmo tempo, outros argumentos de caráter mais técnico e científico: os discursos médico-pedagógicos.

O uso da estatística nos espaços educativos foi justificado a partir da veiculação desses discursos, que despontaram em fins do século XIX, os quais tomaram por tema o estudo da infância, essa fase

da vida que, à época, estava legalmente destinada ao confinamento nos espaços escolares. Os estudos médico-pedagógicos, por sua vez, legitimavam e davam caráter de cientificidade à pedagogia que se apoiava na biologia (biometria), na psicologia (psicometria), fisiologia, antropometria, medicina, sociologia e na estatística (MONARCHA, 2009).

Esses conhecimentos encontraram a sua justa utilização a partir da ampliação da escolarização pois, com ela, o público que passou a frequentar a escola era o mais diverso possível. Não somente isso, a ampliação desse público tornava urgente a necessidade de métodos educacionais que auxiliassem a educação de grandes massas, em um mesmo ritmo de tempos e com economia de recursos (SOUZA, 2009).

A organização da escola em classes foi uma resposta para a ampliação da oferta da escolarização, propondo a homogeneidade de turmas escolares, que eram previamente selecionadas a partir da aplicação dos testes de inteligência, os quais pretendiam avaliar potencialidades e limitações dos alunos, em relação à aprendizagem. Essa homogeneização objetivava a reunião, em uma classe, de crianças com o mesmo nível intelectual, mesmo ritmo, mesma prontidão para leitura e escrita, a fim de ser possível a um único professor ministrar um mesmo ensino a todos (SOUZA, 2009).

Desse modo, a necessidade de organização do sistema de ensino, levando em conta a cientificidade com o trato das questões educacionais, constituiu argumento em favor das práticas estatísticas, práticas de uma estatística educacional.

As práticas estatísticas na educação: a estatística educacional

As práticas estatísticas como ingrediente para subsidiar os organismos oficiais na gerência da educação implicam mudanças no cotidiano das escolas. Há a necessidade de preparar dados estatísticos para que essas práticas possam ser realizadas. A leitura da realidade escolar precisa de instrumentos para ganhar objetividade

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numérico-matemática. Essa preparação dos dados tem nos relatórios das delegacias regionais de ensino2 a sua melhor objetivação. Os relatórios

[...] trazem centenas de informações quantitativas do funcionamento das escolas inspecionadas. São dados como número de matrículas, de alunos efetivamente cursando a escola, dos realmente alfabetizados. Esses dados são distribuídos por tipos e localização das escolas, gênero, idade etc. (CELESTE FILHO, 2012, p. 104).

Se os relatórios representam a produção de um mapa da situação das escolas de uma dada região, no interior de cada uma das escolas, alguns instrumentos foram padronizados com o fim de organizar e conceder informações a serem incluídas nesses relatórios, de modo a viabilizar as operações estatísticas.

Um exemplo desses instrumentos são os livros oficiais de registro – livros de matrícula – utilizados a serviço da organização de um sistema escolar, caracterizando no período a tentativa de uma uniformização da coleta de dados educacionais para “dimensionar o ‘quadro’ do ensino nacional, suas carências, e, por fim, os requisitos necessários a uma mudança significativa de seu patamar de qualidade” (SANTOS, 2007, p. 34). Essa afirmação fundamenta-se no fato de que parte das informações contidas nos livros de matrícula compunham, também, as informações estatísticas da educação no país (SANTOS, 2007, p. 25).

Desse modo, as escolas foram tomadas pelo discurso em defesa da necessidade de medida e objetividade do seu trabalho. Os relatórios dos inspetores da Instrução Pública de São Paulo dedicavam numerosas páginas

2- “Pouco mais de três meses após a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em março de 1931, é criada a Secretaria de Estado da Educação e Saúde Pública de São Paulo. Nesse ano e no seguinte, são organizadas as Delegacias Regionais de Ensino do Estado de São Paulo. As 21 Delegacias Regionais têm como uma das suas incumbências iniciais inventariar todo o sistema escolar paulista de então. Para tanto, de 1933 a 1944, elaboraram ao menos 68 relatórios detalhando a consolidação, durante o período varguista, do aparato de ensino no estado de São Paulo” (CELESTE FILHO, 2012, p. 73).

para o que denominavam ser uma estatística comparada. Essas estatísticas apresentavam sínteses do movimento escolar com dados sobre matrículas, aprovações, reprovações, frequência e alfabetização (SÃO PAULO, 1938).

As práticas estatísticas desenvolvidas a partir da reorganização do aparato burocrático--documental de cada escola deram conteúdo à rubrica estatística educacional. Firmada como uma metodologia, como bem queria Lourenço Filho, acabou por parametrizar uma leitura do cotidiano das escolas, em termos de um modo de análise do funcionamento do sistema de ensino.

As práticas estatísticas mobilizadas pelo Estado para a gerência da educação, alcunhadas de estatística educacional, representam ações que dão cientificidade às políticas educacionais conduzidas a partir, sobretudo, da década de 1930. Assim,

Seja tomando de empréstimo categorias já consagradas nos discursos educacionais, seja cunhando e colocando em circulação um novo léxico, os textos estatísticos acabam por se configurar como uma importante retórica na produção não apenas dos diagnósticos acerca das mazelas ou dos avanços do sistema de ensino mas também como uma estratégia fundamental de sua organização e funcionamento como instituição social. (CALDEIRA-MACHADO; BICCAS; FARIA FILHO, 2013, p. 655).

As práticas estatísticas na educação, para além de se assentarem em um saber técnico colocado a serviço da nova ordem burocrático-cientificizante do Estado, possibilitaram uma nova leitura da educação, um novo modo de pensar o processo de escolarização da população. Foi justamente esse novo modo que construiu novas representações para os sujeitos escolares:

[…] a estatística empresta aos discursos educacionais uma retórica de cientificidade. É esta retórica, construída não apenas pela mobilização dos números, mas também, e

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sobretudo, pelas formas de dar visibilidade aos mesmos (tabelas, gráficos, imagens...), que autoriza e justifica a ação dos gestores sobre a realidade que, no mesmo ato, dá a ver. Nesta perspectiva, os “alunos” e os “professores”, ou seja, as características que identificam estes sujeitos escolares específicos sobre quem se fala, ou seja, sobre quem se age, resultam desse investimento. O que significa dizer, também, que eles são classificados de forma a autorizar a própria ação dos gestores e intelectuais sobre os mesmos. (CALDEIRA-MACHADO; BICCAS; FARIA FILHO, 2013, p. 655).

Quanto à produção de estatísticas escolares nos anos de 1930 e 1940, Gil (2012) identificou a existência de dois discursos representativos de campos distintos no jogo estatística e educação, a respeito do qual afirma:

Alguns se empenham, primordialmente, – enquanto expõem, comentam, analisam, explicam, manuseiam os dados quantitativos do ensino brasileiro – em legitimar a própria estatística, afirmando sua importância, ressaltando sua necessidade e mencionando a autoridade daqueles que a produziam e a examinavam. Outros se preocupam em ressaltar a utilidade das estatísticas na condução da política educacional do país e, efetivamente, as utilizam na construção da argumentação em defesa das medidas administrativas consideradas as mais acertadas. (GIL, 2012, p. 512).

Tal diferenciação se dá em um período de luta pela configuração do caráter científico do campo educacional, que passa a se assentar em bases objetivas vindas da experimentação e coleta de dados para a produção estatística – ao modo da psicologia experimental, que ascende ao status de ciência – e, de forma semelhante, da demanda de institucionalização da estatística como campo científico, para além das suas aplicações e práticas específicas.

Das práticas estatísticas nas escolas para a estatística na universidade

A defesa da necessidade do acesso à educação para toda a população brasileira impulsionou a organização de um sistema escolar que possibilitasse uniformidade da oferta de ensino para toda a nação. Logo emergiram necessidades de infraestrutura, de financiamento das escolas, de manutenção física, de aquisição de material pedagógico, de remuneração de professores etc. Em meio a esses elementos considerados fundamentais, também está presente a demanda por formação de professores, conforme os ideários pedagógicos mais modernos da época (SOUZA, 2009).

Quanto às orientações para a formação de professores, Carvalho (2000) destaca a existência de dois estilos de formação que tentaram nortear a prática pedagógica nas cinco primeiras décadas do período republicano, legitimando-se como inauguradores de um saber pedagógico novo, moderno, experimental e científico, os quais disputavam a configuração do campo dos saberes pedagógicos necessários à prática pedagógica. Demonstra, entretanto, a passagem de um modelo que concebe a pedagogia como arte de ensinar, possível com base na imitação de modelos, para uma pedagogia, a partir do século XX, fundada em saberes autorizados, de base científica (CARVALHO, 2000).

Nesse mesmo cenário, a educação em larga escala era defendida como resposta a uma demanda de intensas transformações. Urgia organizar um sistema nacional de edu-cação, laico, segundo novos princípios, refu-tando a pedagogia clássica, de base filosófica, para dar lugar aos conhecimentos médico-pe-dagógicos, sociológicos e estatísticos no trato das questões educacionais:

Dito melhor ainda, com essas aquisições valiosas no ativo da ciência consolidava--se um domínio disciplinar positivo e ins-trumental centrado no estudo da infância,

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para o qual convergiam disciplinas repenti-namente dotadas de sentido educativo: me-dicina, antropometria, fisiologia, biologia, psicologia (normal e anormal), sociologia e estatística. (MONARCHA, 2009, p. 34).

O período que antecede o início do século XX foi marcado por inúmeras produções dos “médicos educadores” a respeito da criança, sua constituição, sua educação, a partir dos enfoques “médico, biopsicológico, sociológico e estatístico” (MONARCHA, 2009, p. 34).

Tais propostas deveriam nortear a prática de professores e de profissionais que atuavam no âmbito escolar (inspetores, administradores escolares, formadores de professores etc.). Assim, discutia-se a importância de se promover formação em nível superior, a qual teve seu início nos Institutos de Educação (IE). Esclareça-se que, no caso de São Paulo, o IE foi incorporado à Universidade de São Paulo (USP), quando esta foi organizada, no ano de 1934. A USP compunha-se por várias faculdades e institutos, dentre eles os Institutos de Educação (IEs) e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Os IEs tinham por objetivo a produção e disseminação de conhecimento no âmbito das ciências da educação (BONTEMPI JUNIOR, 2007).

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) reunia uma série de cursos superiores, sendo uma das diversas faculdades que compunham a USP. Consta nos Anuários da FFCL - USP que o decreto 6.583, de 25 de janeiro de 1934, incorporou os cursos superiores do Instituto de Educação à FFCL, com o intuito de fornecer a formação pedagógica em nível superior dos bacharéis concluintes dos seus cursos, por meio das disciplinas: biologia educacional; psicologia educacional; sociologia educacional; história e filosofia da educação; educação comparada e metodologia do ensino secundário. Esse formato permaneceu ao longo dos anos de 1936, 1937 até o primeiro semestre de 1938, quando o decreto estadual 9268-A, de 25 de junho, extinguiu o IE e criou a secção de Educação na FFCL – USP. (USP, 1953a).

Em meio a uma série de mudanças para a formação de professores e o estabelecimento de um discurso científico para a educação, criou--se, em 1939, o curso de pedagogia. Esse curso foi criado por meio do Decreto-Lei nº 1.190, que estabelecia a organização da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi), tornando-a padrão para as demais faculdades de filosofia, dentre elas a FFCL – USP, destinando o curso de pedagogia a essas faculdades. A FNFi integrava o conjunto de instituições da Universidade do Brasil (UB), situ-ada na cidade do Rio de Janeiro, quando Distrito Federal (UNIVERSIDADE DO BRASIL, 1951), as-sim como a FFCL integrava a USP.

O Decreto-Lei nº 1.190 também estabeleceu o currículo das faculdades de filosofia, as quais comportavam diversos cursos, como o de pedagogia, ciências sociais, dentre outros. Apenas para esses dois cursos foi estabelecido o estudo de estatística, por meio das disciplinas estatística educacional e estatística geral e aplicada, respectivamente (BRASIL, 1939).

Em 1939, período de instituição de um currículo padrão para as faculdades de filosofia, a estatística estava, há algum tempo, sendo utilizada e defendida no meio educacional. Assim, praticava-se a estatística. Na sociedade, em geral, o seu uso data de antigas civilizações, não cunhada com este termo, estatística, tampouco com as especificações e possibilidades que ela apresentava nas primeiras décadas do século XX. O conhecimento estatístico esteve nas suas origens atrelado às atividades do Estado entretanto, o século XX marca uma outra perspectiva da estatística definida como “ciência da contagem dos constituintes da sociedade” e “ciência do cálculo em vista da análise das contagens” (MARTIN, 2001), passando a constituir significativamente a produção das ciências sociais.

No Brasil, a estatística teve um importante personagem, o médico e sanitarista Bulhões Carvalho, a quem foi atribuído o título de fundador da Estatística Geral Brasileira, pela Assembleia Geral do Conselho Nacional de Estatística, em 1938. Essa importância justifica-se pela atuação

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principalmente no Diretório Geral de Estatística (DGE), órgão recriado em 1890, que tinha como uma das atribuições a realização do censo populacional a cada dez anos (determinação constante na Constituição de 1891) e, por sua vez, a produção de estatística de alcance nacional (SENRA, 2009).

Vários foram os diretores do DGE. Entretanto, foi somente com a direção de Bulhões de Carvalho, a partir de 1907, que esse Diretório operou avanços. Segundo Senra (2009), as dificuldades para um desempenho satisfatório do DGE deviam-se à ausência de sustentação teórica, por parte dos seus diretores e técnicos envolvidos para a execução das estatísticas. Até 1920, os censos realizados sofreram sérias críticas e não conseguiam atender às demandas solicitadas. Com a direção de Bulhões, a estatística não foi apenas executada, mas foi objeto de reflexão e discussão (SENRA, 2009).

Trabalhando à frente do DGE, Bulhões deparava-se com os problemas relativos à formação dos técnicos do diretório e à inexistência de uma carreira de estatístico, o que causava instabilidade no quadro de trabalhadores. Ciente da necessidade de formação específica para o trabalho e não havendo locus para tal, Bulhões trabalhou para a realização da tradução e edição do Manual de estatística, de Filippo Virgilii, e organizou concursos para admissão de novos técnicos, dentre eles, Mário Augusto Teixeira de Freitas, que fundou, posteriormente, o IBGE.

Bulhões tornou-se referência na área, sobretudo pelo sucesso do censo de 1920: “Nunca antes o país planejara tão minuciosamente um recenseamento” (SENRA, 2009, p. 392). O censo de 1930 não foi realizado, por conta do movimento revolucionário. O DGE foi extinto em 1931, criando-se, em 1934, o IBGE, instalado em 1936 (SENRA, 2009).

Do exposto é sabido que a prática da estatística não provinha de aplicação de uma rubrica universitária, não representava uma transposição aplicada de um campo científico. A estatística ainda não estava sistematizada como uma disciplina acadêmica: campo de

conhecimento que promove formação, legitima discursos, com métodos e questões próprias.

Em 1926, organizam-se os primeiros cursos de estatística aplicada à saúde pública; em 1932, cria-se a cadeira de estatística aplicada à educação no Instituto de Educação do Distrito Federal (Rio de Janeiro), regida pelo professor José Paranhos Fontenelle e, em 1933, a mesma cadeira é criada no IE-USP, regida pelo professor Milton C. Rodrigues (LOURENÇO, 1940). Em 1939, como já apontado, a disciplina de estatística passou a compor obrigatoriamente os currículos do curso de pedagogia e de ciências sociais (BRASIL, 1939). Tais marcos instalam o ensino de técnicas estatísticas a serem utilizadas em diferentes campos, sobretudo os da saúde, da educação, da sociologia e da psicologia.

Importa destacar que a primeira escola superior de estatística do Brasil e da América Latina foi criada apenas em 1953, no Rio de Janeiro, vinculada ao IBGE. Contudo, a profissão de estatístico só foi instituída no país em 1965, pela lei nº 4.739, e regulamentada em 1968, pelo decreto nº 62.497 (ESCOLA NACIONAL DE CIÊNCIAS ESTATÍSTICAS - ENCE).

Entretanto, antes da criação dessa escola superior, o professor de estatística II (antiga estatística educacional), da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, e chefe do Departamento de Estatística dessa instituição, Milton da Silva Rodrigues, presidiu uma comissão para a criação de um instituto de estatística, em 1949 (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1949).

É válido salientar que a proposta de criação desse Instituto reunia interesses de professores de estatística não só da Faculdade de Filosofia, como também da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas e da Faculdade de Higiene e Saúde Pública, da USP e, mais tarde, de muitas outras instituições. A proposta visava a possibilitar o desenvolvimento de pesquisas em estatística, a partir das suas abordagens pura ou aplicada, formando estatísticos em diversos níveis e especialidades, concedendo certificados de

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habilitação ou universitário (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1949).

Para o provimento das cadeiras do Instituto de Estatística não se exigiu a formação de estatístico, visto que não havia uma formação no país que superasse o formato de habilitação. O provimento das cadeiras para o novo instituto seria primeiramente suprido pelos professores que já lecionavam essa disciplina nos diversos cursos da USP. Posteriormente, os critérios seriam de aprovação em concurso de provas e títulos e critério de experiência docente em alguma das cadeiras de estatística, podendo concorrer todo que possuísse título universitário (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1949).

Foi descartada a possibilidade do provimento de professores formados em estatística vindos do exterior, como era uma prática da instituição, que sempre recorria a professores de fora para conceder autoridade e garantir a qualidade dos estudos ofertados nas disciplinas. A primeira opção para a ocupação dessas cadeiras considerou professores que já lecionavam estatística em diversos cursos da própria universidade, ou seja, estava se levando em conta uma prática que antecedia a formação desses professores, e que, portanto, não previa a seleção de outros profissionais.

Nos trâmites para a criação do Instituto de Estatística, foram feitas algumas alterações no projeto e, em dois de fevereiro de 1950, foi entregue um novo anteprojeto de estatuto com maior detalhamento de algumas informações, dentre elas a formação ofertada pela instituição, que poderia ser normal, de aperfeiçoamento, especialização, livre ou de extensão universitária (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1949).

A Assessoria Técnica Legislativa do Estado de São Paulo emitiu um ofício em 1951, ao reitor da USP, mencionando o recebimento da proposta de criação do Instituto de Estatística daquela Universidade, e pedindo que o mesmo se manifestasse a respeito da criação dessa instituição frente ao recente reestabelecimento do Departamento de Estatística, pela lei 877 de 4/12/1950, como se esse contemplasse as

demandas daquele. O departamento mencionado era uma espécie de locus de produção das estatísticas do estado de São Paulo, filiado à União (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1949).

O reitor, por sua vez, pediu que o professor Milton Rodrigues, presidente da Comissão, respondesse às interpelações da assessoria técnico-legislativa. O professor assim o fez, estabelecendo a diferença entre o Departamento e o Instituto de Estatística. Esclareceu que o primeiro produz uma estatística ligada à administração pública, com um trabalho constante de levantamento de informações, enquanto o segundo objetiva a formação do estatístico, tratando-se de um órgão de pesquisa, docência e consulta. Diante disso, considerou a importância do trabalho dessas duas instituições conjuntamente (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1949). Essa distinção, de fato, revelava a nítida diferença estabelecida para as práticas estatísticas feitas até então, e as intenções de criar uma disciplina acadêmico-científica.

A proposta de criação do instituto ficou suspensa em função de questões de financiamento necessário, de estrutura, de descentralização das faculdades da USP. O problema da descentralização demandava a locomoção dos professores que comporiam as cadeiras no instituto, pois ainda não havia uma cidade universitária, da USP, de forma que as faculdades estavam situadas em diferentes locais e os professores lecionariam nas suas faculdades e no Instituto de Estatística simultaneamente (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1949).

Passados dez anos desde a primeira proposta, em 1959, o projeto de criação do Instituto de Estatística voltou a ser discutido em um parecer assinado pelo relator Luiz Antônio da Gama e Silva. No documento, sugere-se um reexame da primeira proposta, em função das transformações ocorridas ao longo de uma década, com a seguinte afirmação:

E sobre essa matéria, ninguém melhor po-derá opinar, do que a Colenda Congregação

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da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da qual o proponente – Prof. Milton da Silva Rodrigues é ilustre catedrático. (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1949).

O professor Milton Rodrigues presidiu a primeira comissão para a criação do Instituto, o que não deve ter sido por acaso. Esse docente, formado em engenharia civil, tornou-se docente da USP quando da incorporação do antigo IE, em 1934, à FFCL – USP. Professor daquele Instituto, ministrava a disciplina de estatística e educação comparada. No processo de incorporação, o IE transformou-se na seção de educação, e, em 1939, no curso de pedagogia da FFCL – USP. Essa transformação exigiu o desmembramento da disciplina lecionada pelo professor Milton, o qual optou por lecionar apenas estatística educacional (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1953b).

Apesar de sua formação em engenharia civil, o professor Milton Rodrigues estava originalmente vinculado à seção3 de pedagogia, no âmbito da FFCL – USP. Entretanto, ao longo da sua atuação como docente da disciplina estatística para o curso de pedagogia na FFCL – USP, demonstrou a sua filiação pelo que poderíamos considerar como campo estatístico – ainda que esse não estivesse, à época, estabelecido como campo – e não pela pedagogia ou campo da educação.

Por variados motivos, não cabíveis na presente discussão, o curso de pedagogia não era visto com bons olhos na FFCL – USP, sendo que os estudos desenvolvidos em suas cadeiras não possuíam o status dos demais da instituição (BONTEMPI JUNIOR, 2007). Nesse cenário, Milton Rodrigues defendeu a alteração da denominação da sua disciplina, estatística educacional, para estatística II; ao mesmo tempo em que sugeriu a alteração da denominação da disciplina de estatística do

3- O decreto lei 1.190/1939 organizou as faculdades de filosofia com secções, que comportavam diversos cursos no seu interior: Secção de Filosofia, Secção de Ciências, Secção de Letras, Secção de Pedagogia – contendo apenas o curso de pedagogia – Secção Especial de Didática (BRASIL, 1939).

curso de ciências sociais: de estatística geral e aplicada (disciplina que não possuía um professor catedrático, apenas contratado) para estatística I. (SILVA; VALENTE, 2013).

Passemos, neste momento, a algumas considerações a respeito de uma importante publicação desse professor que nos concede significados para as suas ações em relação às disciplinas estatísticas.

O professor Milton Rodrigues defendeu, em seu livro Elementos de estatística geral (1956), a unidade da ciência estatística (ele defendia a estatística como ciência e não como método) contra a ideia de existirem diferentes estatísticas. Segundo Rodrigues, cabia pensar na existência de apenas uma estatística com possibilidades de aplicação nas diversas áreas de conhecimento. Tal afirmação é digna de atenção, visto que esse professor era responsável por uma disciplina que levava o nome de estatística educacional, apesar de defender a unidade da estatística. E, como já demonstrado, o professor solicitou, da disciplina que lecionava, a retirada da alcunha educacio-nal. A referida publicação foi considerada pelo professor de estatística da Faculdade Nacional de Filosofia4 como um dos compêndios de grande circulação (KINGSTON, 1942).

Importa-nos destacar o artigo do diretor do Departamento Estadual de Estatística de Pernambuco, publicado em 1945, na Revista Brasileira de Estatística, periódico considerado como um dos marcos pelo movimento de estruturação do campo estatístico (GIL, 2012), no qual afirma que:

[...] Até o ano de 1860, ao que sabemos, o único livro com ensinamento de estatística, no Brasil, ainda que em simples definições, foi o de Sebastião Ferreira Soares, Elementos de Estatística. (PIMENTEL, 1945, p. 6).

Em seguida, afirma haver um intervalo de vinte anos sem produção, no contexto

4 - A Faculdade Nacional de Filosofia, Rio de Janeiro, então DF, foi estabelecida como padrão federal para as demais faculdades de filosofia do país, pelo mesmo decreto que cria o curso de pedagogia, n. 1.190/1939.

454454 Martha Raíssa I. S. da SILVA; Wagner Rodrigues VALENTE. Da estatística educacional para a estatística: das...

brasileiro, e aponta a publicação de Parreiras Horta (1926) e o trabalho de Bulhões Carvalho (1933), Estatística - método e aplicação, interrompendo esse intervalo. Entretanto, classifica essas publicações como atrasadas em relação à produção internacional da estatística.

Apresentando um contexto histórico para a estatística no Brasil, no qual o autor cita diversas produções, e períodos importantes, assegura então que:

[...] Até o século XX, os nossos estatistas foram, apenas, os organizadores de recenseamento e planejadores dos serviços oficiais de estatística. Isto significa que somente um dos ramos anteriormente citado – o prático ou dos cômputos – penetrou no Brasil. (PIMENTEL, 1945, p. 8).

Pimentel então faz as seguintes observações quanto à publicação Lições de estatística matemática, do professor Jorge Kafuri, de 1934: “escrita de maneira elegante e com o mais rigoroso método de exposição [...]” (PIMENTEL, 1945, p. 9) o livro desse professor foi posto como a primeira obra brasileira de estatística didática. Em seguida, menciona a obra do professor Milton da Silva Rodrigues, de 1934, Elementos gerais de estatística. Quanto a ela, afirma:

Completa para o seu feitio, essa obra, escrita no complicado estilo “pour comprendre”, preencheu, mesmo assim, uma grande lacuna em nosso meio cultural, oferecendo aos iniciantes em estatística, sem livros fáceis, sem escola, sem orientação, meios de travarem conhecimentos mais precisos com o método estatístico, seu espírito, suas regras, suas fórmulas mais úteis. (PIMENTEL, 1945, p. 9).

Cita também o livro do professor Fontenelle, Método estatístico na biologia e educação, “obra que prestou tão bons serviços quanto a anteriormente referida” (a obra do

professor Milton) (PIMENTEL, 1945, p. 9). Conclui afirmando que:

Pode-se dizer que Bulhões Carvalho fechou o ciclo da estatística didática, no Brasil, iniciado de certa maneira por Sebastião Ferreira Soares, e que os três autores acima citados lançaram o marco de um novo ciclo, que foi o da estatística atualizada, vencendo, a bem dizer, o ponto-morto da linha de ascensão da nossa cultura nesse setor de conhecimentos. E tanto isto é verdade que os seus continuadores não tardaram e novos livros e novos trabalhos, depois de 1934, foram aparecendo. (PIMENTEL, 1945, p. 9).

Reconhecemos na figura do professor Milton Rodrigues uma luta pelo estabelecimento da estatística como um campo legitimado, com metodologia própria e, mais enfaticamente, como uma ciência. Diante do exposto, vale retomar as suas afirmações, quando defendeu a alteração da nomenclatura das disciplinas estatística geral e aplicada e estatística educacional, para estatística I e II, ofertada aos cursos de ciências sociais e pedagogia, respectivamente. Segundo ele, a conveniência de tais alterações justificava-se na futura organização de cursos de estatística. Essa “futura organização de cursos de estatística” foi apresentada dois anos depois, na forma do projeto de criação do Instituto de Estatística, anteriormente citado (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1941-1948, fl. 192).

A estatística... tornando-se uma disciplina acadêmica

Os aspectos apresentados levam em conta, primeiramente, um período frutífero para o uso do conhecimento estatístico legitimando os discursos e as práticas na educação. Proclamou-se uma racionalização dos processos educativos, por meio do uso dos testes e das medidas em educação, como resposta a uma forma escolar configurada a partir da tentativa

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bem-sucedida5 de ampliação da escolarização, fundada na homogeneização dos corpos, dos tempos, das aprendizagens, do que aprender no micro de uma sala de aula.

O curso de pedagogia, nesse contexto, é tomado como lOcus, ícone e monumento dos anseios pela legitimação de um discurso científico em educação, a partir da elaboração de um currículo marcado pela inclusão de disciplinas ligadas à produção dos testes, das medidas, tais como a biologia, a psicologia, a sociologia e a estatística.

Nessa perspectiva, ao analisar a disciplina estatística educacional no curso de pedagogia da FFCL – USP, em particular6, encontramos indícios de um movimento de emergência da estatística como disciplina acadêmica. Essas análises fundamentam-se em estudos do historiador inglês das disciplinas escolares, Ivor Goodson, o qual se dedicou a investigar padrões que fornecessem explicações a respeito do percurso e características de um conhecimento até a sua consagração como disciplina acadêmica.

Alguns dos padrões ressaltados por Goodson, que caracterizaram uma disciplina acadêmica, foram relacionados com as ações do professor Milton Rodrigues, no âmbito da FFCL – USP. Começamos por aludir à ênfase de Goodson ao papel fundamental do professor na elevação do status de uma matéria, de um conhecimento:

A implicação do tratamento preferencial das matérias acadêmicas para o auto interesse material dos professores são

5- Bem-sucedida, pois foi uma solução encontrada para solucionar o problema de ensinar a todos os mesmos conteúdos, ao mesmo tempo, sem discutir o efeito e o que de fato representa o todos da escola, que exclui aqueles que não se encaixam na lógica classificatória dos testes.6- Identificamos essa especificidade apenas no curso de pedagogia da FFCL – USP. Realizamos uma investigação nas únicas faculdades de filosofia públicas, em 1939, e não pudemos observar esse movimento pela estatística na Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) - Rio de Janeiro, visto que, dentre outros elementos destacados em Silva (2013), na FNFi não havia um departamento de estatística. Pelo contrário, observamos um movimento no qual o professor da disciplina estatística educacional, Faria Góes, sugere a supressão desses estudos, pois, segundo ele, já estavam contemplados nas disciplinas biologia educacional (disciplina lecionada por ele também) e psicologia educacional (SILVA, 2013).

claras: melhores proporções professor/ aluno; salários mais altos; mais dinheiro de impostos; postos mais graduados; melhores perspectivas de carreira [...] o conflito com respeito ao status do conhecimento examinável é, acima de tudo, uma batalha em torno dos recursos materiais e das perspectivas de carreira de cada professor da matéria ou da comunidade da matéria. (GOODSON, 1990, p. 251).

Diante das conclusões de Goodson a respeito do papel determinante do professor na projeção da sua disciplina, é válido desta-car aspectos que denotam o envolvimento do professor da disciplina em questão, professor Milton Rodrigues. Ele foi: membro do Instituto Internacional de Estatística; convidado pela co-missão do 27º Congresso Mundial de Estatística para participar do evento, representando a FFCL – USP; também foi convidado pelo go-verno francês para estar dois meses nesse país, a fim de estabelecer relações mais estreitas entre Brasil e França no campo da estatísti-ca (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1952, p. 278); consultor técnico em estatística meto-dológica do Conselho Nacional de Estatística desde 1937; membro da comissão de Ensino de Estatística do Instituto Inter Americano de Estatística, desde 1947 (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1953b, p. 547).

Ademais, a criação de departamentos no cenário universitário é também um padrão identificado por Goodson (1990) como processo de busca da legitimação de uma disciplina. A exemplo, citamos a referência que o autor faz quanto à evolução do conhecimento geográfico, afirmando que:

O problema central, portanto, continuava sendo o estabelecimento de departamentos nas universidades onde “geógrafos podiam ser formados” e as mudanças graduais na busca da relevância e utilidade para o aluno podiam ser controladas e dirigidas. (GODSON, 1990, p. 240).

456456 Martha Raíssa I. S. da SILVA; Wagner Rodrigues VALENTE. Da estatística educacional para a estatística: das...

Os departamentos são analisados também como meios de controle e como sendo as vias que possibilitam a organização de propostas formativas da disciplina em ascensão, no interior das instituições universitárias.

É válido ressaltar que, no período sobre o qual obtivemos fontes (1939 – 1961), a partir de 1950, o professor Milton Rodrigues é sempre mencionado como diretor do Departamento de Estatística7; antes disso, não localizamos nenhuma discriminação sobre quem seria o diretor desse departamento. É oportuno enfatizar que a cadeira do professor Milton Rodrigues tinha por nome estatística II, ou seja, havia uma ordem de status entre as cadeiras de estatística da instituição (estatística I e estatística II, ou primeira e segunda cadeira de estatística), determinadas por aspectos que não sabemos ao certo, mas que conjecturamos estarem ligados à sua especificidade, quando denominada de estatística educacional, enquanto que a cadeira estatística I, anteriormente denominada estatística geral e aplicada, talvez pretendesse contemplar estudos menos específicos, ainda que ofertada a um único curso, ciências sociais.

Vale ressaltar, entretanto, a íntima vinculação que Martin (2001) sinaliza entre a estatística e as ciências sociais, quando aquele conhecimento dava crédito às produções no campo das ciências humanas e sociais durante os séculos XIX e XX, afirmando que a “estatística estava associada a construção da sociologia” (MARTIN, 2001, p. 31). A educação, porém, entra nessa marcha, inicialmente pela psicologia e biologia, que eram configuradas pelas avaliações estatísticas.

O Departamento de Estatística, sob a direção da cadeira estatística II, na pessoa do professor Milton Rodrigues, desenvolveu cursos de especialização em estatística desde 1946, cursos de férias para o Departamento de Educação Estadual, diversas atividades de cooperação com instituições externas à faculdade. A biblioteca do departamento, alvo

7- Departamento pertencente não ao curso de pedagogia, mas à FFCL – USP.

de doações de títulos pelo professor Milton Rodrigues, era de responsabilidade da cadeira II, mas pertencia às duas cadeiras (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1953b).

É importante considerar a presença intelectual de Milton Rodrigues com publicações de artigos no mais importante periódico de estatística do Brasil, a Revista Brasileira de Estatística, desde a sua primeira edição, em 1940, criada em tempos de estruturação do campo estatístico, de propriedade do IBGE (GIL, 2012).

Considerações finais

Como as práticas estatísticas deram lugar à estatística? Essa foi a questão que norteou este estudo. Para respondê-la, percorreu-se um tempo de uso das práticas estatísticas como uma das formas de tratar as questões educacionais de modo científico – termo bem ao gosto de uma época de assentamento do que ficou conhecido como pedagogia científica: uma pedagogia que se afirmou no aparato médico-bio-psicológico de avaliação estatística.

A afirmação desse tempo pedagógico levou a uma reorganização das escolas, sobretudo na preparação delas para coleta de dados para as operações estatísticas. Essa preparação envolveu um nível macro de produção de relatórios pelos administradores da educação, referenciados por instrumentos que provinham do nível micro da sala de aula de cada professor. Essa foi uma época da realização das práticas estatísticas que deram conteúdo, como se viu, a rubricas como a de estatística educacional. Tratava-se, de fato, de um conhecimento prático-utilitário, referenciado pelo meio a ser aplicado, pelo método de coletar e analisar dados, como queria Lourenço Filho.

Por outro lado, viu-se um deslocamento não apenas da natureza prática como também da desvinculação de uma rubrica específica, a educacional, para a estruturação de uma disciplina de caráter científico, com suas próprias regras, métodos e possibilidades de generalização. Esse deslocamento evidenciou

457Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 443-459, abr./jun. 2015.

sinais dos padrões de evolução de uma disciplina, reforçando a possibilidade do percurso de um campo originário do nível prático para a sistematização em uma disciplina acadêmico-científica.

Sob a condução do professor Milton Rodrigues, por entre as lides e meandros uni-versitários, assistiu-se a condução das práticas estatísticas como conhecimento técnico para a estatística, campo de produção de conheci-mento, desgarrado de todo e qualquer adjun-to. Cabia pensar, assim, a existência de apenas uma estatística.

As ações do professor Milton Rodrigues, pela instituição de um espaço para a formação do estatístico, constituíram um deslocamento significativo, como parte de um cenário no qual a estatística, apesar de um conhecimento amplamente utilizado, que concedia status de cientificidade às diversas produções nas quais era demandada, padecia da ausência de um

importante aspecto na configuração de uma disciplina acadêmica: a existência dos cursos de formação especializados, que compõem uma comunidade disciplinar.

Personagem ativo na ambiência da estatística brasileira, atuou dentro da área como chefe de departamento, consultor técnico em organização de circunscrição nacional e vinculado a instituições internacionais, dentre outras. O professor Milton Rodrigues encabeçou a batalha pela organização de um Instituto de Estatística no espaço de uma importante instituição, a saber, a Universidade de São Paulo, ao mesmo tempo em que articulou e coordenou os trabalhos com professores de áreas e departamentos distintos da Universidade, separados não apenas pelos campos de conhecimento que representavam, como também pelo espaço físico que se impôs como um dos fatores impeditivos da consecução da proposta.

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Recebido em: 05.04.2014.

Aprovado em: 25.06.2014.

Martha Raíssa Iane Santana da Silva é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP – campus Guarulhos).

Wagner Rodrigues Valente é professor adjunto livre-docente do Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da da Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP – campus Guarulhos).

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A disciplina estatística no curso de pedagogia da USP: uma abordagem históricaI

Viviane Lovatti FerreiraII

Laurizete Ferragut PassosII

Resumo

Este artigo apresenta uma abordagem histórica acerca da disciplina estatística no curso de pedagogia da Universidade de São Paulo – USP (1939-1999). O objetivo foi investigar as origens da disciplina, os conteúdos e métodos propostos e seu papel na formação do pedagogo. A análise documental e a história oral foram utilizadas como recursos metodológicos. Fundamentando-se na história do currículo, a pesquisa dialogou especialmente com as ideias centrais de Ivor Goodson, ao compreender o currículo como construção social e investigar como e por que certo conhecimento é ensinado (ou não) em determinado contexto histórico. Constatou-se que a estatística foi considerada muito importante para a área educacional na primeira metade do século XX, por contribuir com a produção de diagnósticos para o planejamento de políticas públicas, com os trabalhos de inspeção escolar e com a classificação de alunos. Com origem nos cursos de administradores escolares do Instituto de Educação da Universidade de São Paulo nos anos 1930, a estatística ganhou espaço no curso de pedagogia, criado em 1939, mantendo-se presente no currículo, ainda que tenha passado por várias reformulações curriculares. A partir dos anos 1980, começou a sofrer limitações no campo educacional, seja pelo enfoque das pesquisas educacionais, que perderam gradualmente o cunho quantitativo, seja pela redefinição do curso de pedagogia, que passou a defender a docência como a base da formação do pedagogo.

Palavras-chave

Curso de pedagogia — Ensino de estatística — História da educação — História do currículo.

I- Apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).II- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São paulo, SP, Brasil. Bolsista FAPESP. Contatos: [email protected]; [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041819

462 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 461-476, abr./jun. 2015.

The statistics discipline in the pedagogy course at USP: a historical approachI

Viviane Lovatti FerreiraII

Laurizete Ferragut PassosII

Abstract

This article presents a historical approach to the statistics discipline in the pedagogy course at Universidade de São Paulo - USP (1939-1999). The aim was to investigate the origins of the discipline, its content, methods and role in the training of pedagogues. Document analysis and oral history were used as methodological resources. Based on the history of the curriculum, the research dialogued especially with the central ideas of Ivor Goodson, understanding the curriculum as a social construct and investigating how and why certain knowledge is (or is not) taught in a particular historical context. It was found that the statistics discipline was considered very important for the education field in the first half of the twentieth century, since it contributed to the production of diagnoses for the planning of public policy, to the work of school inspection and the classification of students. Originating in undergraduate school management courses of Instituto de Educação, Universidade de São Paulo in the 1930s, the statistics discipline gained ground in the pedagogy course, created in 1939, remained in the curriculum, although it underwent several curricular changes. Since the 1980s, it began to suffer limitations in the educational field, due to the focus of educational research, which gradually lost its quantitative nature, or due to the redefining of the pedagogy course, which started advocating for teaching as the basis for the training of pedagogues.

Keywords

Pedagogy course — Teaching of statistics — History of education — History of the curriculum.

I- Research support by São Paulo Research Foundation (FAPESP).II- Pontifícia Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brazil. Sponsored by FAPESP. Contacts: [email protected]; [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041819

463Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 461-476, abr./jun. 2015.

Com mais de 70 anos de existência, o curso de pedagogia passou por algumas refor-mulações curriculares e o perfil profissional do pedagogo foi sendo redefinido ao longo do tempo. Este artigo faz parte de uma pesquisa de estágio pós-doutoral que teve como objeti-vo analisar o percurso histórico que a educação matemática assumiu nos currículos dos cursos de pedagogia de instituições de ensino superior do estado de São Paulo (Universidade de São Paulo – USP, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e Universidade Estadual de Campinas – Unicamp) e identificar as disci-plinas de formação matemática que marcaram presença na trajetória do referido curso (1939-1999), bem como o papel que elas desempe-nharam na formação do pedagogo. O foco de atenção do presente artigo volta-se para a dis-ciplina de estatística no curso de pedagogia da Universidade de São Paulo (1939-1999), sendo que se investigaram as origens da disciplina, os conteúdos e métodos propostos e o papel desempenhado na formação do pedagogo.

A pesquisa fundamenta-se nos estudos no âmbito da história do currículo, área que tem se voltado para temáticas que envolvem a história do pensamento curricular, a história das reformas e propostas curriculares, a história dos currículos de cursos e a história das disciplinas (MACEDO, 2001). A base teórica esteve amparada nas ideias de Goodson (1990, 1997, 2001), em razão de o autor procurar compreender como e por que certo conhecimento é ensinado em determinado contexto histórico, bem como o status da disciplina no currículo, além de investigar por que algumas áreas do conhecimento são transformadas em disciplinas.

Goodson (1997) defende três ideias importantes: as disciplinas não são entidades monolíticas, sendo mutáveis por grupos e tradições que influenciam as mudanças; para consolidar-se no currículo, a disciplina parte de uma tradição pedagógica utilitária para uma acadêmica; e a manutenção de uma disciplina no currículo envolve conflitos e lutas por parte de diferentes grupos que estão em busca de

status, recursos e território. Enquanto alguns estudos tratam o currículo de forma atemporal, esse autor compreende-o como um artefato social e cultural, que deve ser entendido de forma ampla, pois tem sua própria história. Ele concebe a gênese de uma disciplina relacionada à sua necessidade social imediata, isto é, suas origens e seu funcionamento devem ser lidos de acordo com o contexto social da época.

A análise documental e a história oral foram utilizadas como recursos metodológicos. Importante salientar que Goodson (1997) confere importância às investigações acerca do currículo escrito nos estudos de história do currículo. Macedo (2001) destaca o documento como fonte crucial para a pesquisa histórica. No caso da análise documental, a legislação educacional, as grades curriculares, os programas de ensino e os anuários e relatórios de ensino foram utilizados como documentos, todos coletados em bibliotecas e arquivos setoriais, fato que permitiu haver uma percepção acerca do currículo escrito.

A história oral contou com os depoimentos de três ex-alunas do curso de pedagogia da USP, cada qual de um determinado período: Bernardete Angelina Gatti cursou pedagogia na FFCL-USP (1959-1962), lecionou estatística no curso de pedagogia entre 1966 e 1985, e atualmente é professora aposentada do Departamento de Estatística do Instituto de Matemática e Estatística da USP; Helena Coharik Chamlian cursou pedagogia na FFCL-USP (1965-1969), atuou no processo de reformulação curricular do curso de pedagogia nos anos 1980 e é professora aposentada da Faculdade de Educação da USP; Natália de Lacerda Gil cursou pedagogia na Faculdade de Educação da USP (1995-1998), pesquisou a história das estatísticas oficiais na área educacional em seu mestrado e doutorado, e atualmente é docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O propósito deste estudo foi apresentar os relatos de pessoas que vivenciaram suas experiências como alunas em três diferentes

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momentos do curso e, desse modo, trabalhar com a história oral significou trazer os “atores sociais que vivenciaram certos contextos e situações.” (GARNICA, 2004, p. 155).

A importância do conhecimento estatístico para a área educacional

Na primeira metade do século XX, algumas áreas do conhecimento foram necessárias para a construção do profissional da área de educação. A estatística representava a possibilidade da medida e do controle, necessários aos propósitos reguladores do Estado, cujo objetivo estava voltado para a produção de diagnósticos sociais e educacionais, visando ao planejamento de políticas públicas. No campo da psicologia educacional, o conhecimento estatístico serviu como ferramenta para a classificação de alunos, com as variações e desvios dos indivíduos (NUNES, 2000). A infalibilidade da estatística não admitia fracasso, sendo sua função “observar, perguntar, apurar, descrever, contabilizar, agrupar, classificar. Em outras palavras: controlar e hierarquizar” (NUNES, 2000, p. 352).

Buscando compreender a realidade em múltiplas direções e mapear a cidade e tudo o que nela se apresentava, a estatística era concebida como um instrumento poderoso e eficaz. Amplamente utilizada pelos governantes, trazia visibilidade à educação escolar e aos problemas, com a obtenção de dados quantitativos (BICCAS; FARIA FILHO, 2000).

Na década de 1920, o movimento escolanovista apresentava grande preocupação com a organização dos dados numéricos (GIL, 2008, p. 494). Com a criação do Ministério da Educação e Saúde, em 1930, cresceu a preocupação com a produção das estatísticas educacionais, fato que se concretizou no ano seguinte, com a criação da Diretoria Geral de Informações, Estatística e Divulgação, órgão que teria a função de produzir diagnósticos. No mesmo contexto, a criação do Instituto Nacional de Estatística, mais tarde conhecido

como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), deu destaque a essa área do conhecimento.

A grande extensão territorial do país apresentava-se como uma dificuldade para a produção das estatísticas educacionais. Assim, tornava-se cada vez mais necessária a coleta dos dados acerca da situação das escolas, tarefa dos municípios, que enviavam seus dados ao órgão central para a obtenção dos números necessários. Defensor da Escola Nova, Lourenço Filho (1947) destacava a importância da estatística para a área educacional, pois, segundo o autor, ela apresentava os elementos essenciais para a reconstrução e o redirecionamento do Estado quanto ao recenseamento e à inspeção escolares.

O movimento da Escola Nova propiciou a introdução de novos princípios educacionais, sendo marcante o trabalho desenvolvido por Helena Antipoff, na Escola de Aperfeiçoamento de Minas Gerais. Ela veio de Genebra, a convite do governo mineiro, para renovar a formação dos professores, partindo do pressuposto de que eles deveriam conhecer a criança em todos os seus aspectos psicológicos, por meio da aplicação de testes (LOPES, 1989). A introdução do ensino da estatística na área educacional vinculou-se à visão cientificista decorrente do seu emprego em psicometria e sociometria, ao tratamento tecnocrático para lidar com as questões educacionais, quanto ao planejamento e ensino, e, principalmente, com a naturalização das ciências da educação e áreas correlatas, tais como psicologia e sociologia, por influência do modelo cientificista do século XIX (LOPES, 1989).

As transformações econômicas e culturais que ocorreram nas primeiras décadas do século XX teriam concebido a escola como a instituição responsável pelo desenvolvimento do país. A demanda pela escolarização acelerou o processo de formação de professores para atuação nas escolares elementares, implicando, consequentemente, a formação de professores para exercerem sua função nas Escolas Normais, onde se preparava o docente da escola elementar (BRZEZINSKI, 2010).

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A formação de professores apresentou-se como prioridade nas reformas empreendidas nos diversos estados brasileiros (MIGUEL; VIDAL; ARAÚJO, 2011). As experiências consolidadas em outros países, como Estados Unidos, França, Bélgica e Suíça, serviram de referência para a formação de um modelo de formação de professores no Brasil. Tais experiências, assimiladas e adaptadas ao gênero brasileiro, deram origem à Escola de Aperfeiçoamento de Minas Gerais (1929), ao Instituto de Educação do Rio de Janeiro (1932) e ao Instituto de Educação de São Paulo (1933), que contribuíram para o florescimento e a consolidação de novas propostas educacionais.

Origens da disciplina

No campo educacional, a história da disciplina estatística tem sua origem no Instituto de Educação de São Paulo, instituição que surgiu na Escola Normal de São Paulo, transformada em Instituto Pedagógico em 1931, e posteriormente em Instituto de Educação, em 1933 (MONARCHA, 1999). Em 1934, com a criação da USP, o Instituto de Educação de São Paulo foi incorporado como unidade. O objetivo do Instituto de Educação da Universidade de São Paulo (IEUSP) era oferecer formação para professores primários (dois anos), formação pedagógica para professores secundários (um ano) e formação para administradores escolares (dois anos), além de cursos extraordinários (EVANGELISTA, 2002).

A disciplina estatística foi proposta no curso de administradores escolares, em 1933, sob a responsabilidade do professor Milton da Silva Rodrigues, juntamente com outras disciplinas, como higiene escolar e psicologia educacional (oferecidas no 1o ano), sociologia educacional, filosofia da educação e educação comparada (oferecidas no 2o ano). A disciplina administração e legislação escolar era oferecida nos dois anos do curso. De 1936 a 1938, o IEUSP diplomou 75 administradores escolares (EVANGELISTA, 2002). Antes da criação desses cursos, os

diretores das escolas primárias eram recrutados entre os professores com maior experiência docente ou por indicação de políticos locais, sem necessidade de outra formação além do Curso Normal. Tais cursos passaram a oferecer uma formação especializada, tornando-se uma oportunidade para dar continuidade aos estudos dos professores primários (CASTRO, 2007).

Milton da Silva Rodrigues apresentou o programa de estatística (1936) a partir de uma lista de conteúdos que compreendia a definição e o campo da estatística, coleta e análise de dados, medidas de tendência central (média, mediana e moda), medidas de variabilidade, noções de probabilidade, medidas de precisão, estudo das marchas ou movimentos e correlações. Apenas um ponto do programa apresentava relação com as questões educacionais: “Aplicações à educação: a) questões de psicometria; b) questões de organização e administração do ensino; c) questões de higiene” (USP, 1936). A bibliografia indicava sete livros, sendo a maioria em língua estrangeira.

Com o advento do Estado Novo (1937-1945), o IEUSP foi extinto em 1938, transformando-se em Seção de Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, e seu corpo docente foi absorvido pela instituição, desfazendo-se o projeto de educação de Fernando de Azevedo e dos demais renovadores envolvidos (BONTEMPI JÚNIOR, 2011).

A criação do curso de pedagogia da USP e a consolidação da estatística no currículo

O curso de pedagogia vinha sendo pla-nejado no meio educacional a partir das expe-riências renovadoras da Universidade de São Paulo, da Universidade do Distrito Federal e da Universidade de Minas Gerais, além da intervenção da Igreja Católica, que visava à criação de uma faculdade de educação nos moldes católicos. Esse curso foi criado ofi-cialmente no Brasil em 1939, estruturando-se “na esteira dos atos centralizadores baixados

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em plena vigência da ditadura de Vargas” (BRZEZINSKI, 2010, p. 40).

Com origem na organização da Faculdade Nacional de Filosofia (Decreto-Lei n. 1.190/39), o curso de pedagogia impôs-se como padrão federal para todas as instituições de ensino superior do país. Ao eleger a pesquisa como eixo norteador, a Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) visava ao aperfeiçoamento da ciência, e a formação de professores se apresentava como finalidade secundária, com o propósito prioritário de suprir a carência de professores para a atuação no ensino secundário (BRZEZINSKI, 2010).

Criado a partir de um currículo composto de onze disciplinas, o curso de pedagogia foi concebido como um bacharelado, semelhante aos demais da referida instituição, e sua função primordial era formar técnicos para atuação nos cargos administrativos. Com três anos de duração, seu currículo oferecia complementos de matemática (1o ano), história da filosofia (1o ano), sociologia (1o ano), fundamentos biológicos da educação (1o ano), fundamentos sociológicos da educação (2o ano), estatística educacional (2o ano), educação comparada (3o ano) e filosofia da educação (3o ano). Outras disciplinas ocupavam um espaço maior na carga horária do curso, sendo oferecidas em mais de um ano letivo, como as disciplinas de história da educação (2o e 3o anos) e administração escolar (2o e 3o anos). A psicologia educacional marcou presença em todos os anos do curso.

Outra função de destaque do curso de pedagogia era a formação de professores para as Escolas Normais. O curso de didática tinha duração de um ano e era composto por seis disciplinas (didática geral, didática especial, psicologia educacional, administração escolar, fundamentos biológicos da educação e fundamentos sociológicos da educação). Tal estrutura de ensino ficou conhecida como esquema 3+1, surgindo, então, o conceito de licenciado: o bacharel que cursava o grupo de disciplinas do curso de didática, obtendo a licença ao magistério secundário e diplomando-

-se pelas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras (CASTRO, 1973).

Com suas atividades iniciadas em 1940, o curso de pedagogia da Universidade de São Paulo foi o primeiro a ser oferecido na esfera pública no estado de São Paulo como um curso de bacharelado, de acordo com a legislação federal. Contou inicialmente com o trabalho de alguns professores catedráticos do extinto IEUSP. Ficou vinculado à Seção de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL-USP) e iniciou--se com cinco alunos (Maura Negrão, José Severo de Camargo Pereira, Maria José Barros Fornari, Anita Buchalla e Milton Lourenço de Oliveira). Sua regulamentação ocorreu após o início das atividades (KATSIOS, 1999). Quando criado, o curso teria correspondido à segunda fase, pois a primeira ocorrera no desenvolvimento das atividades do IEUSP, com a oferta de formação universitária para professores primários e secundários e técnicos de ensino (KATSIOS, 1999).

Na primeira década de funcionamento (1940 a 1951), o curso possuía um público predominantemente feminino (157 mulheres e 37 homens), dos quais 99 alunos eram egressos das Escolas Normais, enquanto 71 apresentavam apenas diploma de curso secundário (KATSIOS, 1999).

De acordo com a legislação federal, o curso de pedagogia oferecia duas disciplinas relacionadas à formação matemática: complementos de matemática (1o ano) e estatística educacional (2o ano). A disciplina complementos de matemática resumia-se à revisão de conteúdos do curso secundário, a fim de fornecer uma base matemática para os alunos ingressantes do curso de pedagogia e facilitar a realização dos futuros cálculos da estatística. Embora a legislação federal previsse a oferta da estatística educacional apenas para o 2o ano, o curso de pedagogia da USP oferecia essa disciplina nos 2o e 3o anos. Como herança do IEUSP, Milton da Silva Rodrigues foi o primeiro professor de estatística educacional no curso de pedagogia da FFCL-USP. No programa de 1943, de acordo com o Anuário, havia um único ponto

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que apresentava relação dos conteúdos comuns da estatística com as questões educacionais: “Técnicas especializadas de investigação educacional e Registro do movimento escolar, sua organização no Brasil” (USP, 1943, p. 291). Se comparado com o programa de 1936 do IEUSP, identifica-se que o programa de 1943 era mais extenso, com 36 pontos, destinados aos dois anos da disciplina, compreendia conteúdos como estatística descritiva, probabilidade, amostragem, correlação e regressão linear e não apresenta bibliografia, fato que permitiria comparar ao de 1933.

Nos anos 1940, a cadeira de estatística educacional da FFCL-USP também contou com professores assistentes e auxiliares. Mais tarde, alguns deles tornaram-se professores do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP), tais como José Severo de Camargo Pereira e Lindo Fava, licenciados, respectivamente, em pedagogia e em ciências sociais pela FFCL-USP. Algumas normalistas também apareciam como professoras auxiliares, como Josephina de Souza Talmadge, Judith Hallier e Maria da Conceição Almeida Dias Batista, vinculadas aos trabalhos desenvolvidos na disciplina psicologia educacional.

Nessa fase inicial, a formação dos profes-sores de estatística era variada, contando com professores licenciados nos cursos da FFCL-USP que apresentavam a estatística em seus currícu-los, geralmente, pedagogia e ciências sociais. O curso de ciências sociais oferecia estatística geral no 2o ano e estatística aplicada no 3o ano, além de complementos de matemática no 1o ano. Nesse contexto, o curso de bacharelado em matemática não oferecia estatística em sua grade curricular.

Nos dois primeiros anos de atividade docente, o professor Lindo Fava ministrou aulas de exercícios práticos para o curso de pedagogia:

Naquele tempo, a duração do curso básico de Estatística era de dois anos e as noções relativas à Inferência Estatística só eram ministradas após um ano de Estatística Descritiva. (FAVA, 1972, p. 5).

Em posse do doutorado (1948), Lindo Fava tornou-se responsável pelo ensino de uma parte especial de estatística do curso de pedagogia. Os principais tópicos abordados eram: “1. Aplicação da distribuição normal a problemas educacionais; 2. Dificuldade relativa dos itens de um teste; 3. Construção de escalas de escolaridade” (FAVA, 1972, p. 5). Aparentemente, não havia a preocupação em relacionar os conhecimentos estatísticos com a prática pedagógica.

Bernardete Gatti retrata, em depoimento, sua experiência como ex-aluna do curso de pedagogia da FFCL-USP (1959-1962) e também sua atuação como docente do Departamento de Estatística do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP) entre 1966 e 1985. Em relação ao curso de pedagogia, Gatti (2012) destaca como característica a forte densidade teórica e o uso de bibliografias nas línguas inglesa e francesa (GATTI, 2012). Isso também é confirmado pela literatura, que aponta que a fase inicial do curso de pedagogia foi marcada pelo caráter tradicional, com multiplicidade teórica centrada nos estudos clássicos de educação e em uma bibliografia predominantemente estrangeira; além disso, defendia o hábito de estudos em grupos, o predomínio de aulas expositivas, os trabalhos de interpretação de texto e as provas escritas e orais (CRUZ, 2011).

Como aluna da disciplina estatística educacional dos professores José Severo de Camargo Pereira e Milton da Silva Rodrigues, Gatti (2012) destaca que a estatística era uma disciplina muito árdua no curso de pedagogia:

A turma sofria, né [risos]. [...] O pessoal sofria tanto em Complementos de Matemática quanto em Estatística. A Estatística era mais sofrida ainda porque era mais pesada. Eram dadas todas as demonstrações... vamos dizer... toda a parte probabilística, com todas as demonstrações. Mas, sobretudo, porque as provas eram muito difíceis! As provas envolviam algumas questões que você respondia por conceitos,

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mas, para a maioria das questões, você tinha que dominar os fundamentos da Estatística e procurar não se perder. Tinha muita pegadinha, pra falar bem a verdade! (GATTI, 2012, p. 3).

A grande quantidade de exercícios, bem como a adoção do livro-texto do professor Milton da Silva Rodrigues eram as marcas da disciplina:

Na aula do professor Severo, a gente anotava a aula inteira porque era um verdadeiro compêndio. Ele não adotava livro nenhum. Era ele, e a gente organizava toda a temática. Eu tinha cadernos e cadernos com todo o conteúdo. [...] A gente tinha que se virar, e os professores não tinham muita preocupação. Eles passavam a disciplina e depois davam prova. Então, você tinha que estudar! Você tinha que se desenvolver, de uma maneira ou de outra! (GATTI, 2012, p. 4). A disciplina gerava um alto índice de

reprovação, a ponto de os alunos a cursarem durante vários anos, até mesmo no último ano da graduação. Em seu depoimento, Gatti (2012) lembrou que os alunos que tiravam notas baixas eram submetidos a uma avaliação (exame oral) e tinham de enfrentar uma situação cercada de certo sadismo dos professores, conforme relata a professora: “Era aprender ou aprender!” (GATTI, 2012, p. 5).

A abordagem metodológica dos professores leva a considerar que havia interesse de conferir prestígio a essa disciplina, reforçando a necessidade de estudá-la com afinco, principalmente pela considerável carga horária do currículo. Nos anos iniciais de atividade da FFCL-USP, havia uma luta por espaço entre os profissionais das diferentes áreas que buscavam se estabelecer como professores acadêmicos, levando-se em conta o desprestígio das disciplinas pedagógicas em relação às científicas (BONTEMPI JÚNIOR, 2011). Reafirma-se, nesse caso, a perspectiva de Goodson (1997) de que, no

interior das instituições, as disciplinas não podem ser consideradas homogêneas, pois passam por conflitos, lutas e negociações para se legitimarem no campo acadêmico (GOODSON, 1997).

As reformas curriculares no curso de pedagogia

Após sua configuração inicial, o curso de pedagogia passou por duas reformas curriculares nos anos 1960: o Parecer CFE n. 251/62 e o Parecer CFE n. 252/69. A década de 1960 foi marcada pela efervescência nos campos político, econômico e social, evidenciando fortes demandas em torno da educação nacional. Em decorrência da aprovação da primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB n. 4.024/61), foi criado o Conselho Federal de Educação (CFE), que, dentre outras atribuições, estabelece o currículo mínimo e a duração dos cursos de graduação.

A primeira reformulação curricular integrou o bacharelado à licenciatura no curso de pedagogia, com a proposta de quatro anos letivos e o núcleo de disciplinas obrigatórias (psicologia da educação, sociologia geral e da educação, história da educação, filosofia da educação, administração escolar e didática) e outro diversificado (biologia, história da filosofia, estatística, métodos e técnicas de pesquisa pedagógica, cultura brasileira, educação comparada, higiene escolar, currículos e programas, técnicas audiovisuais de educação, teoria e prática da escola primária, teoria e prática da escola média e introdução à orientação educacional). O Parecer n. 251/62 abordava a fragilidade do curso e trazia para a discussão sua continuidade ou extinção por falta de conteúdo próprio. Percebe-se, por parte dos legisladores, uma iniciativa para formar o professor primário em nível superior, reforçando o deslocamento da formação do especialista para a pós-graduação: “O curso de Pedagogia terá então de ser redefinido; e tudo leva a crer que nele se apoiarão os primeiros ensaios de formação superior do professor primário” (BRASIL, 1963, p. 61).

Na primeira reformulação, a disciplina complementos de matemática deixou de ser

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oferecida e estatística educacional perdeu a condição de disciplina obrigatória, passando a compor o núcleo das diversificadas e a denominar-se apenas estatística. Direcionado ao 2o ano do curso, o programa de 1967 sugeria apenas conteúdos de um curso de estatística geral: finalidades da estatística, conceitos de estatística geral e estatística aplicada, coleta de dados, grandezas discretas e contínuas, função, medidas de posição, medidas de dispersão, distribuições bimensionais, média e variâncias marginais, dependência estatística, evento aleatório, definição de esperança matemática para o caso discreto, população e amostra, delineamento de uma pesquisa, flutuação das amostras, erro casual e viés, amostra acidental, distribuições amostrais, exatidão, precisão e viés, provas de hipótese, distribuição da média aritmética da amostra (USP, 1967).

Ao cursar pedagogia entre 1965 e 1969, a professora Helena Chamlian relembra sua boa experiência com a disciplina estatística aplicada ao campo educacional:

O José Carlos [Dias], acho que era esse o nome dele... faleceu cedo. Ele transformou aquela Estatística em uma festa, ensinando muito bem. Transformou a Estatística em uma coisa levíssima. Era aplicada para a Educação, e todo mundo aprendia tudo. Muito simples, muito elementar, mas maravilhosa. Todo mundo adorava [...] Eu me lembro dos quadros comparativos. Eu percebi que tinha sentido dentro da área da investigação. (CHAMLIAN, 2012, p. 4).

A presença marcante da estatística no curso conferia respaldo à disciplina no que compete à formação do bacharel em pedagogia:

[...] a Estatística e os Métodos e Técnicas de Pesquisa Pedagógica, ambos capazes de enriquecer poderosamente os pressupostos instrumentais da formação profissional, máxime no bacharelado. (BRASIL, 1963, p. 64).

A segunda reforma curricular (Parecer CFE n. 252/69) buscou adequar o curso de pedagogia à reforma universitária de 1968 (Lei n. 5.540/68), que teve como função imprimir ao ensino superior “os princípios de racionalidade, eficiência e produtividade” (SILVA, 2003, p. 25), integrando o campo educacional ao projeto desenvolvimentista do governo militar. A reforma universitária de 1968 extinguiu as faculdades de filosofia, ciências e letras, e os cursos de pedagogia passaram a ser oferecidos pelas faculdades de educação.

O Parecer CFE n. 252/69 fragmentou o currículo, propondo um núcleo comum de disciplinas obrigatórias e outro diversificado para atender às demandas das cinco habilitações: ensino das disciplinas e atividades práticas dos cursos normais, orientação educacional, administração escolar, supervisão escolar e inspeção escolar. Essa reforma ficou marcada pela formação do especialista em educação, caracterizando, assim, a tendência tecnicista.

O curso de pedagogia da USP incorporou as cinco habilitações. A habilitação ao magis-tério da Escola Normal tornou-se obrigatória na formação do pedagogo. No núcleo comum, foram oferecidas as disciplinas introdução à probabilidade (MAE 121) e introdução à esta-tística (MAE 122) – ambas as propostas pelo IME-USP – e estatística aplicada à educação (EDF 291), disponibilizada pelo Departamento de Fundamentos da Faculdade de Educação da USP (USP, 1973), dando ênfase ao conhecimen-to estatístico nos anos 1970.

A disciplina estatística aplicada à educação (EDM 291) foi apresentada com o objetivo de oferecer ao aluno:

[...] a compreensão e a técnica necessárias para realizar com segurança e precisão, servindo-se de conjuntos de dados relacionados com a educação, as três fases do trabalho estatístico: a) coleta de dados; b) apresentação de dados; c) análise dos dados. (USP, 1972).

470470 Viviane L. FERREIRA; Laurizete F. PASSOS. A disciplina estatística no curso de pedagogia da USP...

O programa dessa disciplina previa medidas de variabilidade, medida de dependência estatística, curva normal, noções de amostragem, amostra e estatísticas, erros de amostragem, tipos de amostragem, e sua metodologia de ensino indicava o método expositivo, incluindo a realização de um grande número de exercícios para fixação da aprendizagem (USP, 1973). Sua bibliografia indicava ainda o livro de Rodrigues (1934), bem como a utilização de apostilas do IME-USP. O livro de Milton da Silva Rodrigues, primeiro professor de estatística do curso de pedagogia, fazia-se presente no programa dos anos 1970, tornando-se referência no ensino da disciplina.

Ao ser convidada para lecionar como professora auxiliar do Departamento de Estatística do IME-USP, Gatti (2012) relembra seus primeiros anos de atividade docente no ensino superior como uma reprodução do modelo utilizado por seus professores durante a graduação, tanto na abordagem metodológica quanto na utilização do material didático:

Eu percebia que a primeira turma teve muita dificuldade porque trabalhei “imitando” meu professor, não tão profundamente quanto ele, mas me apoiando nele. Mas eu via que tinha alunos que tropeçavam nas lógicas, nas demonstrações e na fração, por exemplo. E eu não achava justo não dar nota ao aluno porque ele tropeçava nas contas ou tinha dificuldades com demonstrações algébricas [...]. Mas para o pessoal da Pedagogia, você tinha que adaptar. [...] Então, eu mudei! No primeiro mês, eu dava Aritmética para eles. Uma base aritmética. Durante um mês, eu discutia um pouco o sentido da Estatística e dizia: “Olha, nós vamos ter que fazer cálculo, então nós vamos fazer uma introdução à Aritmética”. E eles adoravam porque não lembravam mais aquelas operações (soma, subtração, fração,

decimais, aquelas regras). [...] Mas eu acho que eu fui mudando a minha forma de dar Estatística. Eu fui lecionar tanto para Ciências Sociais quanto para a Psicologia. O conteúdo era o mesmo, mas o que mudava eram os exemplos. A Estatística não muda, mas a lógica pra quem você está falando é diferente. (GATTI, 2012, p. 10).

O depoimento reforça a perspectiva de que boa parte do conhecimento que os professores têm a respeito do ensino e de seu papel docente tem origem na sua própria história de vida e, principalmente, em sua história de vida escolar, pois, antes de se tornarem professores, foram alunos, sendo que essa aprendizagem se reflete na prática profissional. Muitos professores passam pelos cursos de formação inicial e não conseguem modificar suas crenças acerca do ensino. Dessa forma, os saberes profissionais são adquiridos pela própria experiência profissional:

Os saberes profissionais também são temporais no sentido de que os primeiros anos de prática profissional são decisivos na aquisição do sentimento de competência e no estabelecimento das rotinas de trabalho, ou seja, na estruturação da prática profissional. (TARDIF, 2000, p. 14).

Gatti (2012) também lecionou psicome-tria e sociometria, disciplinas optativas ofe-recidas aos cursos de pedagogia, psicologia e ciências sociais. Em coautoria com Nagib Lima Feres, licenciado em ciências sociais e profes-sor do IME-USP, a professora Bernardete Gatti publicou Estatística básica para ciências hu-manas (1975), obra amplamente difundida e indicada para a disciplina de estatística dos cursos da área de ciências humanas.

Quanto ao papel da estatística na formação do pedagogo, Gatti (2012) destaca que sua função estaria relacionada à pedagogia experimental e aos levantamentos da demografia educacional e dos indicadores educacionais:

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E a demografia educacional? E os indicadores educacionais? Você precisa de Estatística para entender isso! Eu trabalhava isso na [Estatística] Descritiva. Então, a [Estatística] Descritiva dá base para você trabalhar um pouco de demografia. E a [Estatística] Descritiva dá base para você pensar em Inferência. [...] Acho que eu fui evoluindo nessa direção, de trabalhar mais conceitualmente com exemplos e menos com as demonstrações e os cálculos. (GATTI, 2012, p. 12).

Outro ponto abordado pela depoente refere-se à avaliação dos alunos, que era feita por meio de provas, além de trabalhos individuais e em grupo. A professora buscava utilizar as provas em aulas, fazendo suas correções e explicando a resolução dos problemas utilizados na avaliação.

Vinculada à habilitação orientação educacional, a disciplina medidas educacionais também ganhou destaque por apoiar-se no conhecimento estatístico (GATTI, 2012). A consulta ao programa da disciplina corrobora o depoimento de Gatti (2012), cujo objetivo era “ministrar as ideias necessárias à compreensão do conceito e das características essenciais de um bom teste, mostrando os processos estatísticos implícitos na sua construção e correção” (USP, 1973, p. 48). O programa incluía a história dos métodos quantitativos em educação, conceito de teste, fidedignidade ou precisão, interpretação dos resultados dos testes (incluindo percentis, médias e medianas, amplitude semi-interquartil, desvio padrão, correlações, quocientes e normas) e princípios gerais da construção de um teste (planejamento, preparo, aplicação e avaliação).

Redefinição do curso de pedagogia: a docência como base da formação

A fragmentação do trabalho pedagógico, preconizada pelo Parecer CFE n. 252/69,

desencadeou críticas ao curso de pedagogia no final dos anos 1970. O curso, com tendência reducionista e tecnicista de escola, continuava “formando dirigentes e transportando para as ciências da educação o modelo da indústria ou empresa de produção” (Unicamp, 1980, p. 19). Iniciou-se, então, a defesa de uma base comum nacional para a formação do pedagogo. A partir dessas discussões, os cursos de pedagogia de todo o país iniciaram a reformulação curricular.

Com o apoio da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope) e do Conselho Federal de Educação (CFE), os cursos foram incorporando novas habilitações aos currículos, voltando-se, essencialmente, ao campo da docência (CHAMLIAN, 1996; XAVIER, 2009), com privilégio àquelas relacionadas ao trabalho ao longo dos anos iniciais do ensino fundamental, da educação infantil, da educação de jovens e adultos, e da educação especial (CRUZ, 2011).

Os cursos de pedagogia estavam formando professores para os anos iniciais do ensino fundamental, sem estarem necessariamente instrumentados. A incorporação da habilitação magistério para o ensino de 2o grau (Parecer CFE n. 252/69) incentivou o trabalho para a docência, embora tal habilitação estivesse voltada à preparação do professor da Escola Normal. Houve um esforço de ampliar as disciplinas de instrumentação:

[...] diversificando-as de modo a cobrir os vários componentes curriculares dos anos iniciais da escolaridade (metodologia do ensino da matemática, dos estudos sociais, da alfabetização, das artes). (TANURI, 2000, p. 84).

De acordo com Chamlian (2012), a ativa participação de professores da Faculdade de Educação da USP nas discussões em níveis regional e nacional colaborou para a reformulação curricular do curso de pedagogia em 1987. A proposta da reforma era formar o

472472 Viviane L. FERREIRA; Laurizete F. PASSOS. A disciplina estatística no curso de pedagogia da USP...

educador em sentido amplo. Até então, o que houve foi apenas o acréscimo de disciplinas ou modificações dos programas (CHAMLIAN, 1996). O currículo ficou caracterizado por uma duração mínima de quatro anos letivos, habilitando o pedagogo ao magistério de 1o e 2o graus. O currículo ficou dividido em três fases: a primeira compreendia a formação básica (1o, 2o e 3o semestres) e voltava-se para os estudos dos fundamentos da educação; a segunda (4o, 5o e 6o semestres) dividia-se em duas áreas optativas (área I ou área II); a terceira compreendia a habilitação magistério, obrigatória a todos os alunos (CHAMLIAN, 1996).

Como aluna do curso de pedagogia da USP entre 1995 e 1998, o depoimento de Natália de Lacerda Gil esclarece a organização do currículo que escolheu:

Na época, quando chegávamos ao quarto semestre, tínhamos que escolher uma área de concentração, o que significa que havia, naquele ponto, uma “bifurcação” do currículo. Quem escolhia a “área 1”, que foi o meu caso, cursava disciplinas supostamente mais voltadas para a atuação em sala de aula, quem escolhia a “área 2”, tinha um curso mais direcionado para a atuação em administração escolar. (GIL, 2013, p. 1 e 2).

O currículo de 1987 voltava-se para a compreensão dos debates da área educacio-nal, dando mais ênfase às disciplinas da área de fundamentos da educação e à produção da pesquisa educacional do que, necessaria-mente, à preparação para as questões de sala de aula:

Penso que nos permitia compreender os aspectos epistemológicos dos aportes para a reflexão pedagógica e as discussões político--acadêmicas sobre docência, formação de professores, políticas educacionais, mas não nos instrumentalizava para a atuação profissional. (GIL, 2013, p. 1).

Em relação à ênfase nas disciplinas de fundamentos da educação, Chamlian (2012) res-salta que houve negociação com o departamento para a diminuição da carga horária de algumas disciplinas para a introdução de outras. Sendo um currículo composto por disciplinas ofereci-das pelos três departamentos da Faculdade de Educação (administração, fundamentos e meto-dologia do ensino), era necessária a negociação entre os departamentos. De acordo com o de-poimento, fica evidente o ambiente de disputa e negociação para a permanência e/ou oferta de novas disciplinas, confirmando a perspectiva de Goodson (1997), já discutida:

Aí, houve uma negociação mesmo. Foi uma negociação política. A História e a Filosofia da Educação, que tinham um peso muito grande, perderam espaço. [...] As Histórias e as Filosofias da Educação foram bastante diminuídas. Praticamente, a gente estudava a História da Educação inteira, e Filosofia da Educação inteira. Isso foi uma disputa grande. Nós negociamos com o professor José Mário [Pires Azanha], que era chefe do Departamento de Fundamentos. E nessa negociação, ele também fez umas propostas, e nós negociamos e condensamos o currículo. (CHAMLIAN, 2012, p. 7).

Mesmo com a negociação, a estatística continuou presente no currículo reformado em 1987, por meio do oferecimento de duas disci-plinas: introdução à probabilidade e estatística (MAE-113) e estatística aplicada à educação (EDF-291). A primeira, oferecida pelo Departamento de Estatística do IME-USP, sugeria uma formação introdutória, relacionada aos conceitos básicos da estatística, e a segunda propunha uma forma-ção complementar e aplicada às questões educa-cionais. Quanto à primeira disciplina, Gil (2013) relata sua experiência como ex-aluna:

Havia uma disciplina de Estatística que era dada por professor do Instituto de

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Matemática e Estatística e nós a cursamos em salas de aula do prédio da Poli (Engenharia). Junto com os alunos de Pedagogia, frequentavam alunos dos cursos de Geografia, Fono, ou algo semelhante. Era dada por professores que claramente detestavam ter que dar aula para alunos que eles consideravam incapazes, lentos, ou qualquer coisa assim. Por sua vez, é verdade que os alunos não estavam minimamente interessados na disciplina e não tinham facilidade de acompanhar as aulas. Era comum o abandono e/ou a reprovação nessa disciplina. (GIL, 2013, p. 3).

Embora estivesse relacionada ao Departamento de Fundamentos da Faculdade de Educação, a segunda disciplina também foi oferecida pelos professores do IME-USP, que, de acordo com Gil (2013), trabalhavam com a mesma abordagem metodológica daqueles da disciplina ministrada anteriormente, procurando relacionar os conteúdos da estatística à área educacional, o que deixava de ter sentido para os alunos, pois “[...] ficava evidente que eles não conheciam sobre educação e nem mesmo sobre o uso da estatística nas pesquisas educacionais” (GIL, 2013, p. 4).

O depoimento de Gil (2013) está na mesma direção do depoimento de Gatti (2012), quando aponta que o fim da estatística nos currículos de alguns cursos de graduação estaria relacionado ao fato de não haver professores habilitados a fazer a devida aplicação, isto é, a relacionar o conhecimento estatístico ao conhecimento específico do curso:

E não tinha como ir pra frente porque as pessoas que foram dar [a disciplina] ficavam jogando dado. Elas davam aquela Estatística genérica. E aí, claro, tanto professores como alunos não viam interesse naquilo. “Ah, vamos fazer a Probabilidade! Jogar dado...” Aquilo não tinha sentido. Eles não davam nenhuma aplicação direta [...]. Ele vai lá com a autoridade dele e ele dá

a Estatística que ele acha que tem que dar. Então, é muito duro isso! É uma pena isso! [...] E houve aí um movimento que eu digo que é mútuo: de um lado, a Estatística acabou ficando extremamente teorizada, e de outro lado os aplicados não viam nenhuma utilidade naquilo. Isso aconteceu na Pedagogia, aconteceu na Medicina [...] Então aconteceu isso: cada departamento ir tirando a sua Estatística, entende? Só que uns tiraram e remontaram com a sua especialidade, e outros (como Pedagogia e Ciências Sociais) simplesmente tiraram. (GATTI, 2012, p. 15).

A disciplina estatística permaneceu no currículo do curso de pedagogia da USP até a segunda metade dos anos 1990, época em houve uma nova reforma curricular.

Considerações finais

A profissão docente começou a ganhar visibilidade a partir das primeiras décadas do século XX, quando houve demanda pela escolarização, o que acelerou o processo de formação de professores. O curso de pedagogia surgiu no país em um contexto de renovação pedagógica, em que se almejava a formação de técnicos educacionais para atuação nos cargos administrativos e a de professores para as Escolas Normais. As práticas profissionais focavam no recenseamento, na administração, na inspeção escolar, na classificação e na seleção de alunos.

Na área educacional, a disciplina estatística teve sua consolidação durante o movimento de renovação pedagógica, coincidindo com o período em que se almejava que a sociedade moderna, urbana e industrial tivesse acesso a essa ciência. O conhecimento estatístico era concebido como um saber fundamental para a vida moderna, sendo envolvido por duas funções básicas: produzir diagnósticos para o planejamento das políticas públicas e classificar os alunos na aplicação de testes psicológicos. Além disso, ganhou papel

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de destaque no currículo, tendo em vista que o curso de pedagogia voltava-se para a formação acadêmica e bacharelesca, e a estatística apresentou-se como um instrumento infalível para a compreensão da realidade educacional, ficando atrelada à produção da pesquisa educacional. A estatística consagrou-se como conhecimento importante, porém limitado a poucos alunos, devido à dificuldade imposta pela abordagem metodológica dos docentes.

Mesmo tendo se consolidado no campo educacional em um contexto de renovação pedagógica nos anos 1930, visando a mapear a realidade educacional, a estatística ganhou destaque nos anos 1970, auge do tecnicismo no Brasil. A estatística aplicada à educação era precedida por duas outras disciplinas que tinham como objetivo fornecer uma introdução ao conhecimento, conferindo status a essa área.

Como disciplina do ensino superior, a estatística foi oferecida, inicialmente, nos cursos de pedagogia e ciências sociais, e alguns professores licenciados nesses cursos tornaram-se docentes dessa matéria. Mais tarde, com a criação do curso de graduação em estatística e, posteriormente, com o desenvolvimento de sua pós-graduação, essa disciplina voltou-se para

as teorias probabilísticas e para o campo das teorizações, ficando prejudicada a estatística aplicada (GATTI, 2012).

A partir dos anos 1980, a estatística começou a sofrer limitações no campo educacional. Para Lopes (1989), essas limitações estariam relacionadas à perda gradual do cunho quantitativo nas pesquisas educacionais. Para Gil (2013), a partir dos anos 1990, a pesquisa em educação começou a vivenciar um refluxo dos métodos quantitativos, ficando em evidência a abordagem qualitativa, tais como a das pesquisas históricas, etnográficas. Além disso, o fosso entre a necessidade do pesquisador e a proposta curricular da disciplina tornava difícil a compreensão da utilidade desse conhecimento.

As novas demandas de formação do pedagogo se voltaram para o campo da docência, com a oferta do processo didático específico, disciplinas relacionadas ao domínio conceitual e teórico-metodológico dos conhecimentos que seriam ensinados nos anos iniciais da escola básica, bem como o surgimento de outras matérias que ampliaram os conceitos da educação, levando, consequentemente, à secundarização da estatística como ciência pura.

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Recebido em: 23.02.2014

Aprovado em: 25.06.2014

Viviane Lovatti Ferreira é licenciada em pedagogia e mestre em educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. É doutora em educação pela Universidade de São Paulo. Desenvolve estágio pós-doutoral junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação Matemática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Laurizete Ferragut Passos é graduada em pedagogia, mestre em educação pela Universidade Estadual de Campinas e doutora em educação pela Universidade de São Paulo. Desenvolveu estágio pós-doutoral pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora aposentada da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro e atualmente professora assistente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Supervisora de estágio pós-doutoral.

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El conocimiento pedagógico del contenido de estadística en profesores de primariaI

Soledad EstrellaII Raimundo OlfosII

Arturo Mena-LorcaII

Resumen

En este estudio desarrollamos un cuestionario sobre el saber del profesor de primaria en su conocimiento disciplinario de estadística y en su conocimiento para llevar a cabo la enseñanza de la estadística, centrado en el conocimiento del profesor en relación al saber estadístico del alumno y la enseñanza del contenido estadístico. Se incluyeron tres elementos de la educación estadística: comprensión gráfica, diferenciación de niveles cognitivos y comprensión generada al cambiar de sistemas de representación. La construcción de los ítems del cuestionario integró dichos elementos con los conocimientos sobre los errores y dificultades comunes de los alumnos en el aprendizaje de la Estadística y de la Probabilidad. El cuestionario considera un total de catorce ítems y fue aplicado a 85 profesores de educación primaria y a sus respectivos alumnos (de grados 4 y 7), pertenecientes a escuelas chilenas. El cuestionario posee validez de contenido otorgada por ocho expertos. Se presenta el cuestionario completo, y a partir de dos ítems se muestran los resultados de los profesores y de sus alumnos. Se propone al formador de profesores promover actividades de generación de ítems, para que los futuros profesores reflexionen sobre la enseñanza del contenido estadístico y construyan un conocimiento respecto al saber estadístico del alumno.

Palabras clave

Enseñanza de la estadística — Didáctica de la estadística — Conocimiento pedagógico del contenido — Educación estadística — Instrumento — Cuestionario.

I- La investigación presentada agradece el financiamiento de PIA – CONICYT, Proyecto CIE-05 2010 del Centro de Investigación Avanzada en Educación. Agradecemos la lectura meticulosa de los ítems propuestos y los valiosos aportes de la Dra. Ana Serrado-Bayes, Dra. María Alejandra Sorto y Dra. Ismenia Guzmán Retamal.II- Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, Valparaíso, Chile.Contactos: [email protected];[email protected];[email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041858

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Pedagogical content knowledge of statistics among primary school teachersI

Soledad EstrellaII Raimundo OlfosII

Arturo Mena-LorcaII

Abstract

In this study, we developed a questionnaire on the knowledge of Statistics among primary school teachers and their knowledge of how to teach statistics. This questionnaire focused on teacher awareness of student statistical knowledge and the teaching of statistical content. Three items related to statistical education were included: graph comprehension, differentiation between cognitive levels, and the understanding that arises from changing representational systems. When constructing questionnaire items, these features were included along with information on typical mistakes and difficulties experienced by students learning statistics and probability. The questionnaire comprised a total of 14 items and was administered to 85 primary school teachers and their respective students (n = 994) in Chilean schools. The content validity of the questionnaire was confirmed by 8 experts. The entire questionnaire is not included, and teacher and student performance are given for 2 of its items. Teacher trainers are advised to promote item-generation activities for future teachers to reflect on the teaching of statistical content and to build their awareness of student statistical knowledge.

Keywords

Statistics teaching — Didactics of mathematics — Pedagogical content Knowledge — Statistical education — Instrument — Questionnaire.

I- This research acknowledges financial support from PIA-CONICYT Project CIE-05 2010 of the Center for Advanced Research in Education, Chile. We appreciate careful reading of the proposed items and valuable contributions by Dr. Ana Serrado-Bayes, Dr. María Alejandra Sorto and Dr. Ismenia Guzmán Retamal.II- Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, Valparaíso, Chile.Contacts: [email protected];[email protected];[email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041858

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Introducción

On peut espérer que la Didactique, […], contribuera à améliorer la diffusion de la statistique.

Brousseau (2009).

En la mayoría de los países la inserción de la estadística en el nivel escolar se declara en el sector de matemática, y desde el currículo demanda diversas habilidades y conocimientos a los profesores de primaria quienes son los responsables de implementar el programa de estudio en sus aulas.

En Chile existe un debate social sobre la calidad de la educación. Los egresados de pedagogía han obtenido bajos resultados en matemática, lo que ha suscitado modificaciones en las mallas profesionales y reflexión en los centros de enseñanza. Sin embargo, las diversas propuestas de solución que emergen y se llevan a cabo tanto para la formación inicial como para la continua de profesores, ofrecen pocos resultados positivos, prueba de ello son los magros puntajes en las pruebas nacionales e internacionales que muestran un estancamiento o un muy escaso progreso.

A nivel escolar la matemática y la estadística operan en mundos distintos, con lenguajes y concepciones diferentes: una trata principalmente con lo determinístico y deductivo; y la otra trata con lo estocástico y lo inductivo, donde la variación y el contexto real son esenciales en la enseñanza de la estadística (DEL PINO; ESTRELLA, 2012; ESTRELLA; OLFOS, 2012; GROTH, 2007; STHOL, 2005). Por tanto, es necesario que los formadores de profesores y los estudiantes a profesor, en programas de formación inicial y continua de profesores, consideren que cada contenido matemático y estadístico posee complejidades diferentes que demandan una forma distinta de enseñanza (BEN-ZVI; GARFIELD, 2004; FRANKLIN; GARFIELD, 2006).

Desde un par de décadas atrás emerge la investigación sobre el profesor en su conocimiento disciplinario y en su

conocimiento profesional para llevar a cabo la enseñanza. El constructo del conocimiento pedagógico del contenido busca respuestas que ayuden en la especificación del conocimiento profesional necesario en la enseñanza para incrementar el aprendizaje en los alumnos (SHULMAN, 1986, 1987). Durante las últimas tres décadas, la investigación en matemática educativa ha consolidado cuerpos teóricos en constante desarrollo - por ejemplo la educación matemática, la didáctica de la matemática y la socioepistemología - que proveen soluciones y aproximaciones a las muchas problemáticas de la educación. La investigación en educación.

Estadística es incipiente y a nivel hispanoamericano se reconocen el grupo de trabajo en didáctica de la estadística, probabilidad y combinatoria de la Sociedad española de investigación en educación matemática; el grupo de investigación sobre educación estadística de la Universidad de Granada; y grupos latinoamericanos de didáctica de la matemática y/o matemática educativa con líneas investigativas en educación estadística de algunos centros universitarios de Argentina, Brasil, Colombia, México y Chile.

Los profesores de primaria requieren manejar un conocimiento profundo de la estadística de nivel escolar, para que adquieran la capacidad para criticar, producir y analizar estadísticas; y para que en su rol de enseñante posean una comprensión profunda de los errores sistemáticos de los alumnos, del uso apropiado de las herramientas y representaciones, y manejen un amplio repertorio de tareas, preguntas y contextos particulares que ayuden a los aprendices a conectar sus ideas estadísticas.

Con el fin de construir un instrumento que midiera dicho conocimiento, se realizó un estudio de antecedentes sobre el avance histórico en la construcción de los objetos estadísticos, las dificultades comunes con las representaciones, el conocimiento

480480 Soledad ESTRELLA; Raimundo OLFOS; Arturo MENA-LORCA. El conocimiento pedagógico del contenido de estadística...

pedagógico del contenido y los enfoques actuales de la educación estadística; temas que serán precisados más adelante.

El instrumento fue validado externa-mente a través de un panel de ocho jueces especialistas, cuatro extranjeros y cuatro chilenos, quienes en forma individual diri-mieron en qué aspecto de las dimensiones del conocimiento pedagógico del contenido de estadística ubicaban los ítems propuestos (ESTRELLA, 2010).

La validez de contenido respecto a su conocimiento pedagógico exigió una alta valoración del panel para incluir un ítem en el instrumento final (ver Tabla II). Este proceso de validez entregó un instrumento final de catorce ítems que de manera proporcional al currículo chileno posee ítems de estadística, inferencia y probabilidad; y de manera equitativa contiene ítems que miden dos dimensiones del conocimiento pedagógico del contenido del profesor: la enseñanza del contenido estadístico y su conocimiento respecto al saber del alumno.

Marco teórico

La construcción del instrumento consideró el constructo del conocimiento pedagógico del contenido de Shulman (BALL; HILL; BASS, 2005; BALL; THAMES; PHELPS, 2008; HILL et al, 2007; HILL; BALL; SCHILLING, 2008; SHULMAN, 1986, 1987) y tres elementos importantes en la enseñanza de la estadística: la taxonomía sobre la comprensión gráfica de Curcio (CURCIO, 1989; FRIEL; CURCIO; BRIGHT, 2001; SHAUGHNESSY; GARFIELD; GREER, 1996; SHAUGHNESSY, 2007), la diferenciación de los niveles cognitivos de Garfield (2002), y el concepto de transnumeración de Wild y Pfannkuch (1999).

Conocimiento pedagógico del contenido

Shulman (1986, 1987) afirma que la docencia se inicia cuando el profesor

reflexiona sobre qué se debe aprender y cómo será aprehendido por sus estudiantes, y en esos procesos reflexivos las creencias, teorías implícitas y otras formas de pensamiento interactúan con las variables del contexto para configurar las acciones que se concretan en el aula. Desde la década de los ochenta este autor resaltó los procesos de enseñanza, la investigación en educación ha distinguido tres dimensiones básicas del conocimiento del profesor: el conocimiento del contenido (CC), el conocimiento pedagógico del contenido1 (CPC), y el conocimiento pedagógico. Este estudio se ocupa principalmente de dos de las contribuciones de Shulman y sus colaboradores: el replantear el estudio del conocimiento del profesor de manera a atender al rol del contenido en la enseñanza, y presentar la comprensión del contenido como un tipo especial de conocimiento técnico fundamental para la profesión de la enseñanza. En el contexto de la matemática escolar, el conocimiento de contenido de la materia corresponde a lo que Ma (2010) conceptualiza como una comprensión profunda de las matemáticas elementales.

Los diferentes trabajos publicados sobre el CPC evidencian cuantitativamente que la investigación en educación estadística es escasa. Pinto Sosa (2010), encuentra que los temas más investigados fueron las fracciones y las funciones, y que el mayor número de investigaciones versan sobre el conocimiento del contenido a enseñar (cerca del 88%), mientras que menos de la mitad estudia el conocimiento pedagógico específico del contenido o del conocimiento del proceso de aprendizaje del estudiante. Uno de los estudios sobre la enseñanza de la estadística corresponde al de Burgess (2007),

1 - Algunos autores de habla hispana, denominan el CPC como conocimiento didáctico del contenido, a nuestro parecer el cambio de pedagógico por didáctico iguala ambos conceptos, estableciendo inapropiadamente que lo didáctico es sinónimo de pedagógico. En este artículo y en adelante, las siglas CPC corresponden al conocimiento pedagógico del contenido entendido como conocimiento didáctico de la disciplina específica.

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en el cual plantea un marco para indagar en el conocimiento del profesor basándose en aspectos de su conocimiento matemático y sobre los fundamentos del pensamiento estadístico. Una de las conclusiones de Burgess es que el conocimiento del contenido y estudiantes y conocimiento del contenido y enseñanza quedan agrupados según el CPC de Shulman (1987); y que dada la diferencia entre los aprendizajes matemáticos y estadísticos, algunos de los componentes de Ball y colaboradores (2008) pueden no ser adecuados para la enseñanza y aprendizaje de la estadística.

Hill y colaboradores (2007, 2008) establecen tres categorías del CPC: el conocimiento de la relación de los alumnos con el contenido (CRAC), el conocimiento de la enseñanza del contenido, y el conocimiento del currículo. El CRAC hace referencia a la familiaridad del profesor con el pensamiento matemático de los alumnos, como también a los errores comunes de ellos. Con respecto a cómo aprenden los alumnos, distinguen entre errores comunes de los alumnos y explicaciones a los errores; comprensión del conocimiento de los alumnos y cuándo una producción del alumno muestra más comprensión; secuencia de desarrollo del alumno (tipos de problemas por edad, qué aprende primero, de qué es capaz); y estrategias de cálculo comunes en los alumnos.

Las dimensiones adoptadas en este estudio sobre el CPC, incluyen la enseñanza y conocimiento del profesor en relación al saber del alumno. La enseñanza entendida como adaptación del saber al nivel escolar y que comprende el conocimiento del currículo, la organización de las tareas matemáticas estadísticas escolares, las concepciones del profesor sobre la estadística, las concepciones del profesor del aprendizaje; y el CRAC, como conocimiento del profesor en relación al saber del alumno y que comprende sus conocimientos adquiridos

(conceptualizaciones de los alumnos), las dificultades más frecuentes de los alumnos, sus posibles errores y sus estrategias usuales.

Elementos de la enseñanza de la estadística

La taxonomía sobre la comprensión gráfica

La comprensión gráfica en cuanto a niveles de lectura es investigada en educación estadística (AOYAMA, 2007; BAILLÉ; VALLÉRIE, 1993; BERTIN, 1967; CURCIO, 1989; FRIEL; CURCIO; BRIGHT, 2001, SHAUGHNESSY, 2007). Curcio (1989) define tres tipos de comprensión de gráficos; el cuarto tipo es la ampliación de los niveles anteriores realizada por Shaughnessy, Garfield y Greer en 1996. El nivel de comprensión leer datos requiere una acción local y específica como la lectura literal del gráfico, se atiende únicamente a los hechos explícitamente representados, por lo tanto no se realiza interpretación de la información contenida en el mismo; leer entre los datos implica comparar e interpretar valores de los datos, integrar los datos en el gráfico, buscar relaciones entre las cantidades y aplicar procedimientos matemáticos simples a los datos, entendiendo tanto la estructura básica del gráfico como las relaciones contenidas en él; leer más allá de los datos involucra la extrapolación de datos, predecir e inferir a partir de los datos sobre informaciones que solo están implícitamente presentes en el gráfico, requiere conocer el contexto en que los datos se presentan; y finalmente, leer detrás de los datos es la ampliación de las tres clasificaciones anteriores, y se refiere a mirar críticamente el uso del gráfico y conectar la información gráfica con el contexto para realizar un análisis profundo y un razonamiento causal basado en el conocimiento de la materia y la experiencia; incluye examinar la calidad de los datos y la metodología de recolección, la sugerencia de una posible explicación, y la elaboración de modelos alternativos y representaciones gráficas.

482482 Soledad ESTRELLA; Raimundo OLFOS; Arturo MENA-LORCA. El conocimiento pedagógico del contenido de estadística...

Diferenciación de los niveles cognitivos

La jerarquización según niveles cognitivos fue inicialmente desarrollada por Garfield (2002), y se originó en el aprendizaje de la estadística a nivel de educación superior. Desde su origen anglosajón se denominan statistical literacy, statistical reasoning, y statistical thinking; la alfabetización estadística incluye las habilidades básicas que se usan para comprender la información estadística, como organizar datos, construir y presentar tablas, y trabajar con diferentes representaciones de datos, e incluye la comprensión de conceptos, vocabulario y símbolos, y una comprensión de la probabilidad como una medida de incertidumbre (BEN-ZVI; GARFIELD, 2004; GARFIELD; BEN-ZVI, 2007).

Estos últimos autores establecen que el razonamiento estadístico se puede definir como lo que hacen las personas al razonar con ideas estadísticas y dar sentido a la información estadística, ello significa comprender y explicar los procesos estadísticos y ser capaz de interpretar cabalmente los resultados estadísticos. Esta interpretación implica tomar decisiones basadas en conjuntos de datos, representaciones de los datos, o medidas de resumen estadístico de los datos, es así que el razonamiento estadístico puede conectar un concepto a otro (como la centralidad y la dispersión), o combinar ideas acerca de la estadística y la probabilidad.

El pensamiento estadístico representa un nivel cognitivo superior, implica una comprensión de por qué y cómo se realizan las investigaciones estadísticas, ello incluye reconocer y comprender el proceso de investigación completo (desde la pregunta planteada, la recopilación de datos, la elección de los análisis, los supuestos de las pruebas, entre otros); la comprensión de cómo los modelos se utilizan para simular fenómenos aleatorios, de cómo los datos se originan para

estimar las probabilidades, reconociendo cómo, cuándo, y por qué las herramientas de inferencia existentes pueden utilizarse, e involucra la capacidad de comprender y utilizar el contexto de un problema para planificar y evaluar las investigaciones y obtener conclusiones (CHANCE, 2002).

La transnumeración: cambio de representación en estadística

La transnumeración consiste en obtener una nueva información al cambiar de un sistema de representación a otro para generar comprensión, idea relacionada a los registros semióticos de Duval (1999). Los creadores del concepto de transnumeración, (WILD; PFANNKUCH, 1999), lo describen como un proceso dinámico en que se pone en juego la habilidad para ordenar datos adecuadamente, crear tablas o gráficos de los datos, y encontrar medidas para representar el conjunto de datos. La transnumeración indica la comprensión que surge en este proceso dinámico de cambio de representaciones en diversos registros.

Desde la perspectiva de modelización existen tres tipos de transnumeración: a partir de la medida que captura las cualidades o características del mundo real, al pasar de los datos a una representación tabular o gráfica que permita extraer sentido de los mismos, y al comunicar este significado que surge de los datos de una forma que sea comprensible a otros.

Para obtener una representación adecuada y efectiva de los datos, los estudiantes necesitan progresar a través de los procesos en que los datos se transforman y que encarnan la transnumeración: decidir qué mensaje transmitir a partir de los datos, determinar qué tipo de representación usar, elegir un método de cálculo para transformar los datos, y finalmente utilizar estos datos transformados en la representación elegida (CHICK, 2003).

483Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 477-493, abr./jun. 2015.

Metodología de desarrollo del instrumento

Antecedentes de la construcción

Como se señalaba, el instrumento fue construido según el estado del arte de los nuevos enfoques de educación estadística, del conocimiento pedagógico del contenido y del currículo, con validez de contenido para medir el CPC y el CC que posee un profesor de educación primaria para la enseñanza de la estadística dado el currículo en Chile (CHILE, 2009).

Para cada ítem se consideró: el contenido incluído en el currículo de primaria chileno, la clasificación taxonómica de comprensión gráfica según Curcio (1989) — leer datos, leer entre datos y leer más allá de los datos —, la clasificación según Garfield (2002) — alfabetización, razonamiento y pensamiento estadístico —, la clasificación según conocimiento del contenido estadístico en la enseñanza (CPC), conocimiento del profesor en relación al saber del alumno (CRAC), y considerándose también las diversas traducciones entre representaciones -de texto escrito a gráfica, de tabla a gráfica, de gráfica a texto escrito, de texto a texto, de texto escrito a tabla, y de tabla a texto escrito.

Específicamente se buscó disponer de ítems referidos al conocimiento del contenido que demanda el nuevo currículo al profesor y los nuevos enfoques en educación estadística; y también, disponer de ítems referidos al conocimiento pedagógico del contenido que demanda este nuevo currículo, esto es: ítems referidos al conocimiento de los profesores acerca de la enseñanza del contenido, e ítems referidos al conocimiento de los profesores acerca de la relación de los alumnos, con el contenido en estadística, inferencia y probabilidad.

Cada ítem se vincula, en primer lugar, a una de las áreas del contenido disciplinar; en segundo término, cada ítem muestra una situación que lo contextualiza y dota de significado; y, en tercer lugar, cada ítem supone activar determinadas habilidades y capacidades de enseñanza de los profesores.

Desde otra perspectiva, la estrategia escogida para construir un banco de ítems de estadística tuvo en cuenta los planos cognitivos, epistémicos y didácticos, y buscó equilibrar:

a) el contenido estadístico del currículo al que se refieren los problemas o tareas propuestas (plano cognitivo)b) las competencias de enseñanza que debe activar el profesor para conectar su conocimiento de los alumnos en relación con la estadística (plano cognitivo y epistémico)c) las competencias de enseñanza que activan el uso de representaciones matemáticas--estadísticas efectivas (plano cognitivo y didáctico)d) las competencias de enseñanza que debe activar el profesor para realizar una adaptación de la estadística al nivel escolar (plano didáctico).

Inicialmente se construyeron ítems de conocimiento del contenido estadístico, posteriormente se crearon y refinaron ítems que midiesen el conocimiento pedagógico del contenido estadístico. Este banco de ítems relativos a estadística, inferencia y probabilidad bajo el marco curricular de primaria en Chile, fue puesto reiteradamente a prueba y recibió variados ajustes.

El instrumento integra problemas y/o situaciones contextualizadas, y es un cuestionario de tipo mixto con un 10% de preguntas abiertas y un 90% de alternativas.

484484 Soledad ESTRELLA; Raimundo OLFOS; Arturo MENA-LORCA. El conocimiento pedagógico del contenido de estadística...

En la construcción de los ítems se consideró situar el problema a la realidad local, cognitiva y psicológica de los alumnos de los niveles en que el profesor debe enseñar, además de la concordancia con el área de estadística del currículo chileno (CHILE, 2009). Se seleccionaron ítems de investigaciones y de pruebas internacionales que explícitamente habían sido construidos para activar procesos del pensamiento y razonamiento estadístico, (ver Tabla I) tales

como hacer suposiciones sobre los datos del problema, reflexionar, generalizar y formalizar al resolver el problema. En la construcción de los distractores de las alternativas se buscó que éstos representaran las dificultades y errores recurrentes de los sujetos señalados por la literatura; las observaciones de algunos jueces y las pruebas piloto con alumnos y profesores en formación inicial y continua, contribuyeron considerablemente a precisar esta tarea.

Tabla I- Características del instrumento inicial según contenido, taxonomía de comprensión gráfica, nivel cognitivo del aprendizaje, categoría del CPC y tipo de transnumeración.

CurrículoProceso para

comprensión gráfica Nivel cognitivo de

aprendizajeCategoríadel CPC

Transnumeración

Ítemy

ContextoAutor

cont

enid

o

leer

dat

os

leer

ent

re d

atos

leer

más

allá

de

los

dato

s

alfa

betiz

ació

n

razo

nam

ient

o

pens

amie

nto

CPC

- En

seña

nza

CPC

- A

lum

nos

Trad

ucci

ón

Repr

esen

taci

ones

1 Dulces Estrella 2010 Gr a Te

2 Tom Watson y Kelly 2003 Gr a Te

3 Libros Estrella 2010 -- -- Gr a Te

4 Perro-Gato Estrella 2010 -- -- - - Te a Ta

5 Ruleta gira Torok y Watson, 2000 -- -- - Te a Gr

6 Ruleta Torok y Watson 2000 -- -- -- - Gr a Te

7 Olimpiadas Garret y García Cruz 2005 -- -- -- - Gr a Te

8 Sondeo PISA 2003 -- -- -- -- -- - Te

9 Publicidad TIMSS 2007 -- -- -- -- -- Te

10 Alumno.hablan

Garfield 2003 -- -- -- -- - Ta a Te

11 Alumnos pesan Liu 1998 -- -- -- -- - Ta a Te

12 Curso A, B TIMSS 2007 -- -- -- Gr a Te

13 Monedas Fischbein y Schnarch 1997 -- -- -- -- - Te

14 NacidosFischbein y Schnarch

1997-- -- -- -- -- Te

15 LoteríaFischbein y Schnarch

1997-- -- -- -- -- Te

16 DadosFischbein y Schnarch

1997-- -- -- -- -- Te

17 Terremoto PISA 2003 -- -- -- -- -- Te

18 Árboles Gráf. horinz TIMSS 2007 -- -- -- Ta a Gr19 Árboles

Gráfico verticLLECE 2009 -- -- -- -- -- -- Ta a Gr

20 MascotasSorto 2004, Sorto et al.

2009-- -- -- Ta a Te

Fuente: Estrella (2010).Nota: Nomenclatura para representaciones, Ta indica tabla, Te indica Texto, Gr indica gráfico

485Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 477-493, abr./jun. 2015.

Resultados de la validación de contenido

La validez de contenido generalmente involucra el juicio de expertos que valora la adecuación de los ítems de la prueba al área de conocimientos o desempeños que se propone medir. En el caso de este instrumento, el criterio determinado y previamente establecido es el conocimiento del contenido y conocimiento pedagógico del contenido de profesores que enseñan Estadística en primaria con el ajuste curricular.

Para la validez de contenido este estudio utilizó el coeficiente de validez de

contenido V de Aiken (1985), que establece que para un grupo de ocho jueces por lo menos siete estén de acuerdo para que el ítem sea válido, con una escala dicotómica (aprueba o desaprueba el ítem en un aspecto del constructo) alcanzando coeficiente V iguales o superiores a 0,88, a un nivel de significación estadística de p < 0,05.

La tabla II muestra los códigos de los ítems y número de subítem, y los coeficientes V de Aiken asociados según el CPC, CRAC y Enseñanza, y el área de Estadística que cubre, para un criterio alto (V igual o superior a 0,88) y criterio moderado (V igual o superior a 0,7 y menor a 0,88) (AIKEN, 1985).

Tabla II- Coeficientes V de Aiken (1985) para cada ítem con criterio alto y p<0,05, y coeficientes V totales, (se incluye la información de los ítems con criterio moderado de los jueces).

CRAC Enseñanza V total Total ítems

Esta

díst

ica

I1-1P(1) I1-2P(0,75)

I2-2P(1) I3-2P(0,7)I3-3P(0,7)

I4-2P(0,9)

I1-3P(1)I2-1P(1)I10-1P(0,88)I11-1P(1)

I12-1P(0,78)

0,97 alta

moderada 0,73

7

4

Prob

abilid

ad

I5-2P(1)

I5-5P(0,73)

I6-2P(0,89)I7-2P(0,89)I8-2P(0,88)

I5-3P(1)

I5-4P(0,73)I5-6P(0,82)

I13-2P(1)

0,94 alta

moderada 0,76

6

3

Infe

renc

ia

I9-3P(0,88)I9-4P(1)

I9-6P(0,7)

I14-1P(0,9)I15-1P(0,8)I16-2P(1)

0,916 alta

moderada 0,7

5

1

V total 0,94 alta

0,72moderado

0,95 alta

0,758moderado 0,95 18

8

Total 9 4 9 4 18 8

Fuente: dados de la pesquisa.

486486 Soledad ESTRELLA; Raimundo OLFOS; Arturo MENA-LORCA. El conocimiento pedagógico del contenido de estadística...

Para el CRAC, conocimiento del profesor en relación al saber del alumno, se obtuvo que de los nueve subítems que conforman esta dimensión, con criterio alto, cuatro de ellos alcanzan una V de 1,00, y cinco subítems alcanzaron una V mayor que 0,88, hallándose una V total de 0,94.

Para enseñanza se obtuvo que de los nueve subítems que conforman esta dimensión, con criterio alto, seis de ellos alcanzan una V de 1,00, mientras que tres subítems alcanzaron una V mayor que 0,88, hallándose una V total de 0,95.

Por lo anterior, la validez de contenido del instrumento evaluativo construido con un criterio alto, presenta dieciocho subítems que de manera equilibrada consideran integradas las temáticas de la estadística del currículo como del constructo teórico de Shulman (1986, 1987). Específicamente el instrumento consta en sus subítems con siete de estadística, seis de probabilidad, y cinco de inferencia; respecto al constructo del CPC cuenta con nueve de CRAC y nueve de Enseñanza (ver Tabla II).

Resultado

Análisis de dos ítems del instrumento: ítem mascotas e ítem estudiantes

A continuación se presentan dos ítems del cuestionario, se detallan los temas que cubre y las dimensiones anteriormente señaladas. Además, se especifica la respuesta esperada del ítem y las respuestas entregadas por los sujetos del estudio.

Ítem mascotas y tablas

Este ítem (ESTRELLA, 2010; OLFOS; ESTRELLA, 2011) integra tópicos de estadística descriptiva e involucra los dos primeros niveles de comprensión gráfica; incluye características de la alfabetización y razonamiento estadístico según los niveles

cognitivos; y el proceso transnumerativo que va del texto al conteo y luego a la representación tabular.

Item 1. Juan preguntó a sus compañeros si tenían algún perro o gato de mascota. Él marcó con un las mascotas de cada uno, y recolectó la información siguiente:

Perros y gatos de mis compañeros

Héctor perro gato Karla perro gato Rocío perro gato

Matías perro gato María perro gato Diego perro gato

Anita perro gato Keiko perro gato Consuelo perro gato

Tatiana perro gato Fran perro gato Isabel perro gato

Juan perro gato Yanet perro gato Seba perro gato

Para completar la tabla, Juan recibió la ayuda de unos amigos.

¿Cuál de estas ayudas es correcta?

Indique la alternativa que señale los valores del interior de esta tabla,

a) Tiene perro No tiene perro

Tiene gato 2 6

No tiene gato 5 2

b) Tiene perro No tiene perro

Tiene gato 2 5

No tiene gato 6 2

c) Tiene perro No tiene perro

Tiene gato 8 7

No tiene gato 6 2

d) Otra

Fuente: Estrella (2010).

Este ítem fue diseñado sobre un contexto usual de mascotas (perros-gatos), con el fin de evaluar el paso desde el conteo y texto a la representación tabular. Pretende detectar la comprensión a nivel lógico del uso de tablas de doble entrada, así como la confusión entre listas yuxtapuestas en tablas de doble entrada.

Tipo de representación: tabla de doble entrada

Contenido curricular: “(nivel 2) Representación de datos cuantitativos o cualitativos, en tablas de doble entrada y

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pictogramas, recolectados sobre objetos, personas y animales del entorno escolar y familiar […]” (CHILE, 2009, p. 11).

Movilidad de registros: de lista a tabla de doble entrada, de contexto a modelo y viceversa.

Requerimiento del Ítem 1. (Conocimiento del contenido de estadística descriptiva). Interpretar recolección de datos cualitativos. Identificar y extraer de datos cuantitativos desde datos cualitativos (conteo). Leer e interpretar los encabezados de la tabla de doble entrada. Clasificar los datos y completar la tabla con datos cuantitativos.

Respuesta esperada al ítem 1. La respuesta (b) es la correcta. El distractor (a) obedece a no considerar que el dato obtenido del conteo responde a dos variables –tener o no un tipo de mascota-, específicamente cuenta ocho no perros pero no subcategoriza en si/no gato, así 2+6=8. El distractor (c) es para aquellos que leen/completan por columnas una tabla

de doble entrada, y en Tiene perro completan ambas casillas con el valor 8 del conteo, y/o suman los No tiene perro independiente de si/no Tiene gato, así 5+2=7.

Resultados del ítem mascotas y tablas.

En la aplicación de este instrumento a 85 profesores y cerca de mil alumnos del nivel 4 y nivel 7 - alumnos de dichos profesores - sólo el 51% de los profesores contesta correctamente a la pregunta ¿Cuál de estas ayudas es correcta? Este ítem no requería construir ni interpretar la tabla, ni buscar asociaciones, sino que en el proceso de compleción de la tabla era requerido el conteo según cada categoría de la variable. Respecto a los alumnos que contestaron dicho ítem, sólo el 18% de los alumnos del nivel 4 (54 de n=994) y el 15% de los alumnos del nivel 7 (540 de n=994), respondieron correctamente.

Figura 1- Ítem estudiantes y gráfico.

Cómo llegan los estudiantes a la escuela en el día de hoy

Bus

Auto

Caminando

Tren

Bicicleta

Número de estudiantes

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

i) “Tom vendrá a la escuela en tren porque no hay nada al lado de tren así que debe ser él.”ii) ¿Cómo llevaría la comprensión del estudiante a un nivel mayor?

Fuente: Watson y Kelly (2003).

En el contexto de cómo llegan los estudiantes a la escuela, este ítem corresponde a un gráfico con pictogramas que relaciona tópicos de inferencia. Subyace un gráfico de barras múltiples horizontal y distingue la variable cualitativa género.

Adoptado desde Watson y Kelly (2003), levemente modificado en el lenguaje y en la gráfica.

Representación: Gráfico de barras múltiples horizontal con uso de pictogramas. Contenido curricular:

488488 Soledad ESTRELLA; Raimundo OLFOS; Arturo MENA-LORCA. El conocimiento pedagógico del contenido de estadística...

(Nivel 2) Resolución de problemas en los cuales es necesario extraer información desde […] pictogramas, que contienen datos cuantitativos extraídos desde el entorno escolar… para responder a preguntas planteadas. (Nivel 5) Estudio del comportamiento o tendencia de variables, mediante la lectura de gráficos[…] Descripción de eventos en situaciones lúdicas y cotidianas y argumentación acerca de la posibilidad de ocurrencia de estos. (Nivel 6) [… ] estimación de la probabilidad de ocurrencia de un evento como la razón entre el número de veces en que ocurrió dicho evento y el número de repeticiones del experimento [… ] (Nivel 7) Predicción respecto a la probabilidad de ocurrencia de un evento en un experimento aleatorio simple y contrastación de ellas mediante el cálculo de la frecuencia relativa asociada a dicho evento e interpretación de dicha frecuencia a partir de sus formatos decimal, como fracción y porcentual. (CHILE, 2009, p. 11).

Movilidad de registros: de gráfico a texto, de modelo a contexto y viceversa.

Las preguntas i y ii de este ítem, conciernen al conocimiento pedagógico del contenido, CPC; la primera corresponde a la dimensión enseñanza, categoría currículo; y la segunda, corresponde a la dimensión conocimiento del profesor respecto al conocimiento del alumno al saber (CRAC), categoría dificultades.

Respuestas esperadas a i y ii de este ítem.

Se consideran correctas aquellas respuestas que vinculan integrativamente elementos del contenido curricular del eje de datos y azar relacionando con escenarios de incerteza desde nivel 5 hasta nivel 8, o relaciona con inferencia en los niveles del 6 al 8. Medianamente correctas, si utiliza

términos como frecuencia, fracciones, razones, pero no los articula. Y se consideran erróneas aquellas respuestas que indican los conceptos de pictograma, lectura de gráficos, no sabe o no contesta.

Se consideran correctas propuestas de preguntas del tipo, ¿y podría venir caminando?, ¿o en bus?, ¿cómo llega la mayoría?, ¿y la minoría?, o por ejemplo comentar que el gráfico muestra todos los transportes de cómo llegar a la escuela y no necesariamente todos se usan, o si le invita a contar los alumnos que vienen en cada transporte. Se consideran erróneas respuestas con ideas sin sentido, o no sabe o no contesta, o entrega la solución correcta sin responder a la dificultad del estudiante.

Resultados del ítem estudiantes y gráfico.

El 29% de los profesores respondieron apropiadamente a la pregunta ii. La pregunta coloca al profesor en una escena en que un estudiante le entrega una interpretación errónea de la información que lee desde el gráfico, Tom vendrá a la escuela en trenporque no hay nada al lado de tren así que debe ser él; y es la escena la que coloca al profesor en una situación de devolución2 frente a la dificultad del alumno: ¿Cómo llevaría la comprensión del estudiante a un nivel mayor? Los resultados de la pregunta ii muestran que al menos el 70% de los profesores tiene dificultades para responder a una situación vinculada a las dificultades de estudiantes frente a la lectura interpretativa de un gráfico de barras horizontales con uso de pictogramas. Algunas de las respuestas inadecuadas y ambiguas dadas por los profesores fueron: considerar la experiencia personal, le enseñaría a interpretar la gráfica y analizarla, le preguntaría si hay una estación de trenes cerca

2- En el sentido de Brousseau (1998) es el profesor quien a través de preguntas o informaciones en relación con el conocimiento previsto, lleva el proceso de enseñanza de modo de favorecer los aprendizajes. En el proceso de devolución se pone en juego dos tipos de interacciones responsabilizantes en el alumno, las del alumno con el problema y las del alumno con el profesor respecto al problema.

489Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 477-493, abr./jun. 2015.

de la escuela. Estas respuestas manifiestan la necesidad de presentar este tipo de situaciones a los profesores para que ellos adquieran la capacidad de analizar interpretativamente los gráficos, valoren la información que entregan los datos, y la utilidad de la estadística en situaciones de incerteza.

Discusión y proyecciones

Este estudio especifica la construcción de un instrumento sobre el conocimiento pedagógico del contenido de estadística en profesores de primaria, y muestra los resultados de dos ítems del mismo, uno se relaciona con la estadística descriptiva y otro con inferencia, uno ocupa una representación gráfica y el otro, la tabular.

Los bajos desempeños de profesores y sus alumnos confirman lo s eñalado en estudios anteriores sobre las dificultades de adultos y de niños respecto a la estadística. Algunas investigaciones han abordado las dificultades en la lectura, interpretación, construcción y compleción de tablas simples (DUVAL, 2003; ESTRELLA, 2014; GABUCIO et al., 2010). Los magros resultados de los profesores chilenos en ejercicio, se explican por su falta de estudios y prácticas de enseñanza en este tipo de contenidos, además de no poseer la experiencia ni acceso a información que les permita entender las dificultades de comprensión de formatos usuales en estadística. Así, estos resultados son preocupantes debido a que los profesores son determinantes en el logro de los alumnos.

También son esperables los bajos resultados en los alumnos pues recientemente se ha colocado la enseñanza y aprendizaje de la estadística como un eje transversal en toda la etapa escolar. Construir, leer e interpretar gráficos y tablas es parte de la alfabetización estadística que se consigue en la escolarización, y estos contenidos están declarados en el currículo pero no han ingresado aún en las aulas.

Es preciso que los profesores y futuros profesores adquieran habilidades para criticar, construir y analizar las representaciones estadísticas que propone el currículo y con este conocimiento puedan promover situaciones de enseñanza que promuevan el aprendizaje de la estadística.

Si se considera el ajuste curricular (CHILE, 2009), la introducción de la estadística y la probabilidad en el currículo llega a lo menos con una década de retraso respecto a otros países. En el análisis realizado a dicho programa de estudio, detectamos la ausencia del concepto de variabilidad, así como el tratamiento tangencial de otros conceptos, por ejemplo, el concepto de variable y el de aleatoriedad. Asimismo, no se encontró intención explícita de vincular la estadística y la probabilidad, vínculo que podría ayudar en la comprensión y conexión con la estadística inferencial.

Como proyecciones de este estudio, creemos que además de la utilización del instrumento en su rol evaluativo, la lectura y análisis del instrumento en cursos de formación docente inicial o continua permitiría desarrollar conciencia de la complejidad de la tarea de enseñar estadística que tiene el profesor de matemática.

Proponemos que los formadores de profesores provean resultados de la investigación en educación estadística y actividades de generación de ítems relativos a estadística y probabilidad como una instancia de aprendizaje proactivo, pues desarrollar la pregunta enfoca a los futuros docentes en el conocimiento estadístico, confrontando su comprensión de los fenómenos estocásticos y sus creencias sobre la enseñanza de la estadística; y a la vez, la construcción de las alternativas de respuesta pone a prueba su comprensión de los errores sistemáticos de los alumnos, del uso de las representaciones y creación de contextos, entre otros.

Por otra parte, la construcción de ítems sobre el CPC, relacionados con el currículo, los

490490 Soledad ESTRELLA; Raimundo OLFOS; Arturo MENA-LORCA. El conocimiento pedagógico del contenido de estadística...

niveles cognitivos, la comprensión gráfica y la transnumeración, conceptos de la educación estadística precisados en este estudio, posibilitarían ampliar la mirada del docente más allá del contenido, y en un espacio de discusión entre pares, permitiría confrontar y reflexionar sobre sus nociones relativas a la enseñanza y al conocimiento de la relación del alumno con el saber estadístico.

Las ideas expuestas sobre la creación de ítemes y el aprendizaje de docentes deben ser probadas en futuras investigaciones. Pues si bien crear ítems como actividad de formación docente imbrica el juego de planos del conocimiento disciplinar, del conocimiento pedagógico estadístico y las perspectivas actuales de la educación estadística, debe constatarse su potencial en desarrollar — en los profesores o futuros profesores una

mirada didáctica sobre el propio actuar en la tarea de enseñar un saber.

La estadística y la probabilidad son ciencias recientes si se les compara con la aritmética o la geometría, su estreno en el currículo también las hace nuevas en el contexto escolar, como también son nacientes los conocimientos sobre la didáctica de la estadística (BATANERO, 2001, 2005; ORIOL, 2007; BROUSSEAU, 2014; BROUSSEAU; WARFIELD, 2002; BROUSSEAU, 2009; SHAUGHNESSY, 2007). Estas características y el escenario actual de la escuela exigen más investigación para comprender los diversos aspectos epistémicos, cognitivos, didácticos, sociales y emocionales que surgen en la enseñanza de la estadística, pues los procesos de enseñanza aprendizaje de la estadística de nivel escolar difieren de los propios de la matemática escolar.

Referencias

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BAILLÉ, Jacques; VALLÉRIE, Bernard. Quelques obstacles cognitifs dans la lecture des représentations graphiques élémentaires. Les Sciences de L’éducation - pour L’ère Nouvelle, v. 1, n. 3, p. 73-104, 1993.

BALL, Deborah; THAMES, Mark; PHELPS, Geoffrey. Content knowledge for teaching: what makes it special? Journal of Teacher Education, Washington, v. 59, n. 5, p. 389-407, 2008.

BALL, Deborah; HILL, Heather; BASS, Hyman. Knowing mathematics for teaching: who knows math well enough to teach third grade and how can we decide? American Educator, Michigan, v. 29, p. 14-22, 2005.

BATANERO, Carmen. Didáctica de la estadística. Granada: Grupo de Investigación en Educación Estadística, 2001. Disponible en: <www.ugr.es/~batanero/ARTICULOS/didacticaestadistica.pdf>. Acceso en: ago. 2014.

BATANERO, Carmen. Significados de la probabilidad en la educación secundaria. Relime - Revista Latinoamericana de Investigación en Matemática Educativa, México, v. 8, n. 3, p. 247-263, nov. 2005.

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Recebido en: 25.03.2014

Aprobado en: 26.06.2014

Soledad Estrella es profesora asociada del Instituto de Matemática de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, Chile.

Raimundo Olfos es profesor titular del Instituto de Matemática de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso e investigador del Centro de Investigación Avanzada en Educación, CIAE, PUCV.

Arturo Mena-Lorca es profesor titular del Instituto de Matemática de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, director del programa de doctorado de Didáctica de la Matemática, e investigador del Centro de Investigación Avanzada en Educación, CIAE, PUCV.

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Empreendedorismo como escopo de diretrizes políticas da União Europeia no âmbito do ensino superiorI

Rachel de Castro AlmeidaII Miguel ChavesIII

Resumo

Como resultado de orientações políticas propaladas pela União Europeia (UE), desde o início deste século, o ensino superior europeu, tem abarcado um novo desafio: potencializar o designado “espírito empreendedor”. Os apelos ao empreendedorismo juvenil qualificado se estendem por todo o continente, adquirindo particular relevo nos países do sul, onde a crise europeia ecoa de forma mais aguda. A tendência das mais diversas instituições de ensino para adaptar seus procedimentos às diretrizes da UE consubstanciou-se na inclusão de novas disciplinas nos currículos, na criação de associações de estudantes ligadas ao empreendedorismo e no estabelecimento de estruturas administrativas e acadêmicas que fomentam a concepção de spin-off e a transferência de conhecimento. A despeito desses esforços disseminados, ainda não há uma tradição de avaliar e monitorar os resultados dessas iniciativas, não sendo assim possível conhecer e antecipar devidamente os seus resultados e impactos econômicos, nomeadamente no nível do emprego. Este artigo aponta três eixos analíticos centrais na observação desse novo vetor de transformação do ensino superior. Pretendemos desnaturalizar o conceito de empreendedorismo, evitando a armadilha da sua reificação; em seguida, realizaremos uma breve resenha acerca do desenvolvimento da noção de empreendedorismo no campo acadêmico; por fim, tencionamos documentar a relevância que as orientações empreendedoras têm assumido no desenho das políticas da UE, destacando a expressão que alcançaram no sistema educativo, com especial relevo para os seus patamares formativos mais elevados.

Palavras-chave

Ensino superior – Empreendedorismo – Políticas públicas – Juventude – Inserção profissional.

I- Este artigo foi realizado no âmbito do projeto “Percursos de inserção dos licenciados: relações objectivas e subjectivas com o trabalho” (PTDC/CS-SOC/104744/2008), financiado por fundos nacionais portugueses, através da Fundação para a Ciência e Tecnologia, sediado no Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa (CESNOVA) e do projeto “Ensino superior e inserção profissional: uma incursão pelas trajetórias e disposições de jovens empreendedores”, realizado no quadro de uma bolsa de pós-doutorado da Capes (processo 4035-11/9). II- Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. Contato: [email protected] Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.Contato: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041779

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Entrepreneurship as an aim of the European Union policy for higher educationI

Rachel de Castro AlmeidaII Miguel ChavesIII

Abstract

As a result of the political guidance divulged by the European Union (EU), since the beginning of this century, higher education in Europe has included a new challenge: empowering the so-called “entrepreneur spirit”. Encouragement of qualified youth entrepreneurship is widespread throughout the continent and has acquired special prominence in the Southern countries, where the European crisis has reverberated in more dramatic ways. The tendency among several educational institutions to adapt their procedures to the EU guidelines materialized in the inclusion of new disciplines in the curricula, in the creation of student associations linked to entrepreneurship and in the establishment of administrative and academic structures which foster the spin-off concept and knowledge transfer. Despite these efforts, there is still no tradition in assessing and monitoring the results of such initiatives, and, therefore, it is not possible to adequately know and anticipate their economic outcome and impact, namely on employment. This article indicates three major analytical lines in the observation of this new vector that is changing higher education. We intend to de-naturalize the concept of entrepreneurship by avoiding the trap of its reification; next, we shall conduct a brief review about how the notion of entrepreneurship developed in the academic field; finally, we aim to document the relevance that the entrepreneurial orientation has gained in the design of EU policies, highlighting how remarkable they have become in the educational system, especially for the highest educational degrees.

Keywords

Higher education – Entrepreneurship – Public policy – Youth – Transition to work.

I- This paper was developed under the project “Graduates´ transition to work trajectories - objective and subjective relations with work” (PTDC / CS- SOC / 104744/2008), funded by Portuguese national resources through the Foundation for Science and Technology, based in Centre for Sociological Studies of the New University of Lisbon (CESNOVA ) and the project “Higher education and professional insertion: an incursion by the trajectories and provisions of young entrepreneurs”, held as part of a postdoctoral grant from CAPES ( process 4035-11 / 9).II-Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. Contact: [email protected] Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.Contact: [email protected]

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Há algumas décadas, mas com especial ênfase a partir do final dos anos 1990, a União Europeia (UE) tornou-se uma instância crescentemente supranacional em matéria educativa, funcionando como fonte de elaboração de políticas no campo da educação e da formação, com implicações diretas nos sistemas de ensino dos Estados-membros. Assim, o campo do ensino superior europeu, após sofrer uma série de transformações —como a expansão do número de estudantes e de instituições, uma formalização, com base em rankings, da hierarquia das escolas e um crescente processo de internacionalização (Programa Erasmus, Programa Leonardo da Vinci) —, vem sendo compelido a abraçar “novos desafios” que se encontram plasmados no uso e difusão de noções como “sociedade de aprendizagem”, “sociedade do conhecimento”, “sociedade da informação” e “aprendizagem ao longo da vida” (ANTUNES, 2005, p. 130). Essas noções estão se transformando em guias tanto para a interpretação da realidade quanto para a orientação das políticas institucionais ou ainda para a reconfiguração de conteúdos curriculares e pedagógicos.

O termo empreendedorismo consti-tui mais uma dessas novas noções que vêm ganhando corpo nas estratégias da União Europeia e alicerçando ações e projetos de-senvolvidos no âmbito dos Estados-membros, com o propósito de fomentar o “espírito em-preendedor”. As orientações da UE preconi-zam que a formação empreendedora não fique adstrita ao ensino superior, mas que percorra todos os níveis de escolaridade, desde o ensino básico até a universidade, e que estabeleça for-tes conexões com as políticas promotoras da aprendizagem ao longo da vida (COM, 2006). A esse propósito, vale acrescentar que a pro-moção do empreendedorismo tem se tornado uma espécie de nova função assumida pelo en-sino superior, que se soma a todas as demais missões por este incorporadas, desde que, na primeira metade do século �I�, pelo pensa-éculo �I�, pelo pensa- �I�, pelo pensa-mento dos irmãos Von Humbodlt, teve início

um processo de profunda reforma da universi-dade europeia1.

No nosso ponto de vista, é preciso ultrapassar a barreira que dificulta a aproximação entre a sociologia e as temáticas associadas ao empreendedorismo, como se esse termo por si só expressasse um campo antinômico à sociologia.

Na atual conjuntura da esfera do tra-balho, em que as incertezas estão muito mais presentes, em que se acentuam os constrangi-mentos para o ingresso no mercado de trabalho, os percursos de inserção profissional se diferen-ciam em função das estratégias de orientação no campo profissional, tanto em termos objeti-vos – dos recursos e das oportunidades – quan-to em razão dos valores do trabalho almejados subjetivamente. Assim, conhecer os percursos dos jovens graduados que se tornaram empre-endedores, a fim de compreender as suas mo-tivações e aspirações profissionais, abre pistas para que as ações institucionais, desenvolvidas no âmbito das instituições de ensino superior, relacionadas à formação de jovens empreende-dores sejam mais focalizadas e, consequente-mente, tenham mais chance de êxito.

Os apelos ao empreendedorismo juvenil qualificado se estendem por toda a Europa, mas ganham particular relevo nos países do sul do continente, onde a crise europeia ecoa de forma mais aguda. Em Portugal, por exemplo, o empreendedorismo é apresentado por múltiplos agentes, dentre os quais se inclui o governo, como um desígnio absolutamente nuclear na recuperação da economia e na superação da crise. Esse contexto instiga a imaginação sociológica dos autores deste artigo, que desenvolvem atualmente um projeto de pesquisa acerca desse processo e que optam por compartilhar desde já três eixos analíticos considerados de capital importância para o desenvolvimento de pesquisas sociológicas acerca do tema do empreendedorismo. Esses eixos iluminam a necessidade de ampliar as

1- Para aprofundamento dessas questões, sugerimos ver: Santos e Almeida Filho (2008).

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pesquisas acadêmicas que visam a acompanhar e monitorar os avanços e os limites das propostas preconizadas pela UE2.

Primeiro, pretendemos desnaturalizar o conceito de empreendedorismo, evitando a armadilha da sua reificação, tornando saliente o modo como a ênfase nele colocada se encontra vinculada à difusão de princípios políticos e ideológicos (com implicações cognitivas) associados às transformações do capitalismo contemporâneo. Tais mudanças preconizam o afastamento do Estado da iniciativa econômica, ao mesmo tempo em que minimizam, quer no plano legal — isto é, na legislação laboral — quer no plano simbólico, as expectativas de segurança contratual por parte dos trabalhadores. Ou seja, essas alterações rompem estruturas que foram apanágio do modelo fordista (AMIN, 1994; KUMAR, 1997; LASH; URRY, 1987). Em seguida, realizaremos uma breve resenha do surgimento e desenvolvimento da noção de empreendedorismo no campo acadêmico, salientando o peso crescente que o tema vem adquirindo no contexto científico. Em um terceiro momento, almejamos documentar a relevância que as orientações empreendedoras têm assumido no desenho das políticas da UE, destacando a expressão que alcançaram no sistema de ensino superior europeu, assumindo um protagonismo sem precedentes.

Embora essas iniciativas não estejam presentes de forma acentuada e estrutura-da em termos de orientação política na reali-dade brasileira contemporânea, a formação empreendedora, se ainda não é, tende a ser um desafio transversal a atingir indiscrimina-damente diversos países nos mais distintos ce-nários econômicos. Esses três eixos analíticos ultrapassam o contexto europeu e iluminam a observação desta dinâmica.

2- Os autores se dedicam ao projeto de pesquisa “Ensino superior e inserção profissional: uma incursão pelas trajetórias e disposições de jovens empreendedores”, que tem como principal escopo analisar em que medida esse novo discurso e as políticas que o acompanham deram de fato azo à formação de disposições e orientações empreendedoras junto aos diplomados do ensino superior.

Empreendedorismo: polissemia terminológica e orientações ideológicas

Como já alertara Bourdieu (1998), as es-feras da religião e da política são os domínios que tiram maior partido da polissemia inerente à ubiquidade social da língua. Nas sociedades complexas contemporâneas, as palavras não possuem um sentido neutro; antes são inves-tidas de sentidos sociais pelos atores que as mobilizam. Em alguns casos, assumem signifi-cados diferenciados para os emissores e recep-tores que ocupam posições diferentes no espa-ço social e que, por essa razão, desenvolvem e transportam intenções e interesses distintos ou mesmo antagônicos.

O termo empreendedorismo se revela um bom exemplo dessa polissemia. É preciso reconhecer que tal noção — em particular, o seu sentido, urgência e necessidade — está sendo naturalizada e incorporada a muitos discursos como autoevidente. Se, em uma acepção minimal, com o termo empreendedorismo se pretende designar apenas a propensão para a criação de empresas, em outra, cada vez mais frequente, o termo surge associado ao engrandecimento das qualidades de determinados tipos de ações e de indivíduos, virtudes que procuraremos identificar em seguida, mas que os distinguem face aos demais e que lhes conferem o reconhecimento de estarem alinhados com as lógicas e exigências do seu próprio tempo. A naturalização e a reificação do termo encontram-se, hoje em dia, associadas a formas de violência simbólica que urge deslindar, independentemente da relevância que possam ter para as finalidades que se pretende atingir e da posição que o próprio pesquisador possa assumir em relação à necessidade ou justeza dos fins preconizados.

O que está em causa, no fundo, é a difusão, juntamente com a noção de empreendedorismo, de um conjunto de axiomas que ultrapassam os limites da própria criação de empresas para passarem a assumir o estatuto de virtudes públicas. Merecem assim, hoje em dia, o epíteto

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de empreendedores os indivíduos que “não se conformam, que têm iniciativa própria e não ficam esperando nem pelo Estado de bem-estar, nem por ações coletivas” (ROESE, 2011). As qualidades do empreendedor são exaltadas como virtudes, manipuladas de modo essencialmente maniqueísta, correspondendo “à capacidade de trabalho em oposição à preguiça; à iniciativa em oposição à passividade; à criatividade em oposição à mediocridade; à diferenciação em oposição ao padrão” (ROESE, 2011, p. 2). O sujeito empreendedor seria, portanto:

(...) o herói emblemático que ousa desbravar caminhos novos, que incorpora o risco em suas ações, que quebra regras e que reconhece oportunidades onde ninguém mais as consegue perceber. (COSTA, 2010, p. 13).

Assim, torna-se evidente o modo como o fomento do espírito empreendedor estabelece estreitas associações com o espírito que subjaz ao capitalismo contemporâneo, nos termos em que L. Boltanski e È. Chiappello (2002) o enun-ciam e aprofundam no novo clássico Le nouvel esprit du capitalisme. O sujeito empreendedor é aquele que é capaz de criar o próprio emprego, mas também de se manter empregável, de gerir seus próprios recursos, de controlar o seu tempo de trabalho, sendo para tal indispensável co-nectar-se a redes e envolver-se em um “mundo de projetos”. Trata-se, no fundo, do trabalhador ideal para o atual capitalismo, que preconiza a necessidade de flexibilidade de mão de obra, de trabalhadores em part time, de trabalho ter-ceirizado ou independente (ANTUNES, 2007). Os sujeitos que vivenciam esse “mundo de projetos” são concebidos como entidades que deverão se mostrar sempre aptas a conectar-se com outros, a estabelecer relações e a desen-volver projetos em equipe. São engrandecidos aqueles que demonstram estar na posse de tais competências, as quais lhes permitem integrar--se nesse novo “regime de ação”, isto é, que demonstram capacidade de comunicação e de

persuasão, que conseguem inspirar confiança, que se ajustam aos outros, que se adaptam às si-tuações, que se encontram em mudança perma-nente. O conjunto dessas capacidades pressupõe a renúncia à estabilidade, ao enraizamento às pessoas, às coisas, às organizações, a determi-nadas categorias e identidades profissionais pré-definidas (SENNETT, 1999; DUBAR, 2006), ou seja, a tudo o que envolva comprometi-mentos de longo prazo e que impeça a dis-ponibilidade para se ensaiar novos projetos e novas conexões. Ora, se refletirmos bem, esses dois elementos — projetos e conexões — estão estreitamente inter-relacionados, pois se, por um lado, os projetos promovem uma desejável expansão das conexões e das próprias redes, estas últimas são, por seu turno, imprescindí-veis ao desenvolvimento e à necessária mul-tiplicação dos projetos. Esses princípios são válidos quer para o empreendedor, criador de empresas, quer para o trabalhador assalariado, enquanto portador do espírito empreendedor. Embora não absoluta, a homologia entre es-sas duas figuras surge explicitada em várias obras orientadas para a formação do “homem de negócios”, como, por exemplo, num texto em que R. Heller reflete sobre T. Peters: “Torne qualquer pessoa numa pessoa de negócios. Desenvolva em todos os empregados ‘a men-talidade de um concessionário independente’” (2000, p. 22). Ou ainda em várias frases inclu-sas em revistas de administração, que foram sujeitas a um extenso trabalho de análise de conteúdo por T. Lapa (2006, p. 13):

Somos um produto que precisa, para ser rentável, de ser bem vendido. Somos uma empresa unipessoal. Criada, pensada e gerida por nós próprios.

Os padrões simbólico-cognitivos (LAPA, 2006) que acabamos de assinalar constituem, no fundo, uma verdadeira cultura do mundo do trabalho contemporâneo, que se alastra e percorre vastas áreas do cosmos social, tangendo inclusive os indivíduos que não experimentam

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situações de flexibilidade, nomeadamente os assalariados que detêm vínculos contratuais mais seguros e estáveis.

À semelhança de outros padrões culturais, a cultura do mundo do trabalho contemporâneo não adquire sempre o mesmo grau de sistematização e de codificação. Assume a sua forma mais sofisticada e coerente nos manuais de gestão, mas está também presente, em formatos menos elaborados, no pensamento e nos discursos do senso comum, ganhando difusão a partir de múltiplos suportes midiáticos. No entanto, seja qual for o seu suporte, ela opera, sobretudo, por meio de princípios e critérios com base nos quais se estipula o modo “como se deve ser”, “como se deve estar”, “como se deve agir” no universo laboral e no sistema econômico hodierno. Ao se encontrarem imersos nesse caldo cultural, os indivíduos que, no momento presente, procuram fazer parte da estrutura produtiva sentirão, pelo menos em parte, que apenas desenvolvendo uma postura empreendedora será possível manterem-se inseridos e valorizarem-se no plano simbólico, tanto por parte dos outros quanto de si mesmos.

Numa época em transição, um dos maio-res desafios do pensamento crítico é justamente perceber as mudanças sociais, políticas e econô-micas profundas, uma vez que os conceitos ou categorias utilizados para descrever e analisar a complexa realidade, muitas vezes, não conse-guem dar conta das dimensões envolvidas nesses processos (SOUZA, 2010). Com efeito, essas cate-gorias são apresentadas de forma reificada, como se descrevessem a realidade, quando, na verda-de, constituem-na. Já Berger e Luckmann (1966) apontavam que o ato de descrever a realidade “tal como ela é” (ou seja, explicar o “modo como as coisas funcionam”) constitui um dos compo-nentes do processo de legitimação. Descrever e estabelecer normas são, nessa acepção de legitimação (enquanto objetivação de “segunda ordem”), dois exercícios que se imiscuem.

Procuramos chamar a atenção para o fato de que, mesmo que a análise da temática em-preendedora não vise a condenar a utilização

do termo ou as dinâmicas que subjazem a ele, não pode deixar de ter presente o propósito de desmontar o discurso dominante ao invés de o “comprar ingenuamente” (SOUZA, 2010). Trata-se, no fundo, de seguir as recomendações de Bourdieu (1998, p. 19) ao afirmar que “a ciência social deve autonomizar-se da língua, da sua lógica específica, das suas regras próprias de funcionamento”, no sentido de produzir o seu próprio objeto de análise, objeto do qual fazem parte os operadores linguísticos constitutivos da realidade e as operações e interesses que es-tão na base da sua criação e difusão.

Ensaiaremos, a seguir, um conciso excurso sobre os vários conteúdos que o conceito de empreendedorismo tem assumido no campo científico.

A noção de empreendedorismo no campo acadêmico

Um breve périplo pelas acepções de empreendedorismo presentes em contexto científico revela que, como qualquer outro con- revela que, como qualquer outro con-ceito, tanto a gênese quanto a evolução encon-tram-se permeadas por especificidades históri-cas de índole social, econômica e política, além de estarem marcadas pelas várias perspectivas disciplinares que subjazem a elas. As noções de empreendedorismo promovidas por economis-tas, psicólogos, sociólogos e administradores, como seria previsível, tendem a ser distintas. Os desenvolvimentos das últimas décadas são densos, diversifi cados e, novamente, polissê- diversificados e, novamente, polissê-micos. De forma sucinta, mostraremos o modo como esse tema é alvo de definições ora con-vergentes ora divergentes.

Joseph Schumpeter (1961), que influen-ciou em muito o pensamento científico em tor-no do tema, atribuiu ao empreendedor o papel de manter a estrutura capitalista por meio da destruição criativa, propalando, em consequ-ência, a sua importância enquanto força vital para a economia (AUDRETSCH, 2003; LÓPEZ-RUIZ, 2004; ASSUNÇÃO, 2008). A destruição criativa seria o resultado do próprio processo

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de desenvolvimento econômico (e seus ciclos), e decorreria especialmente da inovação promo-vida pela:

(a) introdução de um novo bem ou de um bem já existente com nova característica; (b) introdução de um novo método de produção; (c) abertura de um novo mercado; (d) descoberta de novas fontes de suprimento; e (e) desenvolvimento de novas formas de organização. (COSTA, 2010, p. 26).

Outro aspecto influente da obra de Schumpeter (1961) é o fato de este definir o empreendedor a partir de atitudes, de modos de agir, de um comportamento ditado por uma disposição interior. Os empreendedores são, assim, aqueles indivíduos que têm iniciativa, uma boa dose de intuição, força de vontade e liberdade mental, aversão à rotina, certa autoridade e capacidade de previsão do futuro. Em suas palavras:

(...) não são só aqueles homens de negócios “independentes”, de uma economia mercan-til, que são geralmente assim designados, como também todos os que, realmente, pre-enchem aquela função que definimos; ainda que, como está sendo a regra geral, sejam empregados “dependentes” de uma com-panhia, como gerentes (...). (SCHUMPETER, 1961, p. 101-102).

A incursão que Schumpeter (1961) levou a cabo em Teoria do desenvolvimento econômico, procurando desbravar a estrutura motivacional do empreendedor, tornou-se objeto de interesse por parte dos psicólogos engajados na corrente behaviorista, dentre os quais se destaca o protagonismo de David McClelland (1961). No âmbito dessa corrente, criaram-se testes com o objetivo de se mensurar o potencial empreendedor de cada indivíduo, uma vez que os sujeitos passaram a ser considerados os agentes responsáveis pelo essencial da tomada de decisões e de iniciativas empreendedoras.

McClelland aponta, por exemplo, que a “necessidade de realização” (achivement-need) é a principal força motriz da ação empreendedora, acrescentando que essa necessidade é internalizada na fase de socialização primária, em função dos valores transmitidos pela família. O argumento de que essa necessidade é originada na socialização primária foi rebatido por estudos posteriores, designadamente por Inkeles e Smith (CABRAL, 1996), que demonstraram que os coeficientes de correlação entre a orientação da realização pessoal e a socialização primária e secundária são praticamente idênticos. O trabalho de McClelland foi, no entanto, essencial para o avançar da pesquisa. O interesse em confirmar ou refutar a hipótese desse autor esteve na base do surgimento de outras pesquisas que assumiram a preocupação de identificar as características comportamentais que definem os empresários, distinguindo-os dos não-empresários. As principais respostas assinalaram a presença de dimensões como o “desejo do risco” e a “orientação a partir de determinados valores” (GARTNER, 1989).

É certo que a abordagem comporta-abordagem comporta-mental assumiu também outras direções, defendendo-se, em alguns casos, que as ca-racterísticas de personalidade dos empreen-dedores eram acessórias, quando comparadas com a importância das ações por eles efeti-vamente desempenhadas. As pesquisas sobre os empresários deviam, portanto, concentrar--se naquilo que os empresários fazem e não tanto naquilo que eles são. Estabelecendo-se uma analogia com os jogadores de futebol, dir-se-ia que, embora fosse possível descre-ver as diversas caraterísticas de cada um des-ses atletas, o que interessava não era tanto enumerar e descrever os seus traços pessoais intrínsecos, mas sim analisar aquilo que eles conseguem, de fato, fazer: driblar, correr em alta velocidade, agarrar no gol e realizar um passe perfeito etc. (GARTNER, 1989).

Foi ainda por via da perspectiva behaviorista que ganharam asas alguns dos

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mais importantes estudos dedicados a averiguar o potencial empreendedor dos indivíduos. Nesse âmbito, deve destacar-se o projeto Global Entrepreneurship Monitor (GEM), considerado o maior estudo em andamento sobre as dinâmicas empreendedoras no mundo. Desenvolvido desde 1999, com base em uma parceria entre a London Business School (Reino Unido) e o Babson College (EUA), essa pesquisa vem realizando análises comparadas entre diversos países, no âmbito da referida temática. O empreendedorismo é abordado como:

(...) qualquer tentativa de criação de um novo negócio ou nova iniciativa, tal como emprego próprio, uma nova organização empresarial ou a expansão de um negócio existente, por parte de um indivíduo, de uma equipa de indivíduos, ou de negócios estabelecidos. (GEM, 2010, p. 4).

O foco central dessa equipe de pesquisadores passa por mensurar o nível de atividades empreendedoras em diferentes países, procurando analisar as condições estruturais que promovem ou dificultam o lançamento dessas iniciativas. O modelo de análise envolve cinco variáveis: as condições estruturais de cada país; a atitude empreendedora (a predisposição dos indivíduos ao risco e à percepção de novas oportunidades); a atividade empreendedora (empreendimentos iniciados); a aspiração empreendedora (qualidade das oportunidades de negócio em termos de inovação, internacionalização); e o crescimento econômico nacional.

Por fim, e dada a natureza do estudo que pretendemos desenvolver, importa destacar ainda um conjunto de pesquisas centradas na população jovem universitária, que associa as motivações empreendedoras às competências psicológicas, às aptidões sociais e às habilidades de gestão (SANTOS; CAETANO; CURRAL, 2010; TEI�EIRA, 2008). Esses pesquisadores enfatizam a importância de se compreender o potencial empreendedor existente entre os

estudantes universitários dos mais variados cursos, e têm também em comum o fato de procurarem identificar as intenções e não apenas as ações concretas de empreendedorismo. Apoiados na vertente behaviorista, em busca de uma “psicologia do empreendedorismo”, tais trabalhos já apontam a preocupação com as ações dispersas e isoladas desenvolvidas pelas instituições de ensino superior portuguesas visando às políticas preconizadas pela UE (CAETANO; SANTOS; COSTA, 2012).

Empreendedorismo enquanto diretriz política

As principais justificativas mobilizadas pela União Europeia para a difusão da formação empreendedora assentavam na preocupação com a preservação do Estado do bem-estar social, vigente em grande parte dos países europeus e considerado um modelo social exitoso. Sustentava-se que esse modelo estava a sofrer importantes riscos e reveses diante da conjuntura política e econômica mundial. De fato, a União Europeia ainda não conseguiu diminuir o desnível do PIB per capita em relação aos Estados Unidos e as perspectivas de futuro assinalam que tenderá a reduzir o percentual de participação na produção mundial, especialmente com a recuperação das economias asiáticas emergentes (COM, 2004a; COM, 2006). A recente crise não veio senão fragilizar ainda mais a posição europeia no cenário mundial. Assim, o progresso e desenvolvimento sustentável do continente, com vista à preservação da sua posição no sistema econômico mundial, depende, segundo a própria UE, da inovação e da competitividade. Sem esses dois atributos, proclama-se, não será possível relançar a economia.

As dinâmicas de contração demográfica documentadas e projetadas acirram ainda mais o apelo ao desenvolvimento do espírito empreendedor. Por um lado, estima-se que um terço dos empresários da UE, especialmente os responsáveis por empresas familiares,

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aposentar-se-ão nos próximos anos, afetando 2,4 milhões de empregos por ano. Por outro, o grupo etário mais ativo na criação de empresas — os jovens entre 25 e 34 anos —sofrerá uma redução drástica nas próximas décadas, em função do declínio da natalidade (COM, 2004a). Esse contexto interno e externo promove um ambiente em que a dinamização do proclamado espírito empreendedor ganha foros de meta supranacional, compartilhada pelos diversos países, sendo as instituições de ensino consideradas um canal privilegiado para a sua difusão.

Neste terceiro bloco, pretendemos diag-nosticar o modo como o termo empreendedo-rismo é empregado pela UE nas suas diretrizes políticas, utilizando para o efeito dois tipos de documentos: a) os textos programáticos da Comissão Europeia; e b) os relatórios de avalia-ção gerados por essa mesma entidade suposta-mente independente, mandatada para a defesa dos interesses da UE no seu conjunto. É sobre-tudo a partir desses dois documentos que se forjam e irradiam as orientações pró-empreen-dedoras para o interior das instituições de ensi-no superior, orientações essas que, voltamos a sublinhar, têm contaminado todo o sistema de ensino, nos seus diversos patamares.

No essencial, ventila-se que a educação empreendedora, até o momento bastante cir-cunscrita aos cursos de administração e eco-nomia, deverá expandir-se para além desses domínios científicos, passando a integrar a matriz curricular de todos os cursos univer-sitários. Todas as áreas deverão procurar di-fundir, idealmente, junto a seus alunos, uma formação vocacionada para a criação e gestão de empresas. Em simultâneo, sustenta-se que as instituições de ensino devem: estabelecer incubadoras de empresas e, sempre que pos-sível, parques científicos; promover concur-sos destinados a premiar planos de negócios; disseminar a utilização de estudos de caso e outros métodos de ensino interativos; incen-tivar a transferência da inovação e do conhe-cimento gerado no ensino superior (spin-offs

e start-ups), com destaque para as novas tec-nologias. Além disso, recomenda-se que os próprios cursos de administração procurem, de forma mais enfática, desenvolver uma peda-gogia diretamente orientada para a criação de empresas, quer dizer, um ensino tanto focali-zado na gestão da fase de crescimento das pe-quenas e médias empresas quanto centrado no fomento e promoção da inovação permanente (COM, 2006).

De um ponto de vista pedagógico, o desenvolvimento do espírito empreendedor deve estar apoiado na aquisição de competências de quatro tipos: pessoais, sociais, relativas à gestão e empresariais. As competências pessoais consubstanciam-se em autoconfiança, motivação, desenvolvimento de pensamento crítico e autonomia; as sociais, em capacidade de cooperar, de criar redes, de trabalhar de forma reticular e de assumir novos papéis; as competências associadas à gestão, na resolução de problemas, no planejamento, na tomada de decisões, na comunicação e na predisposição para a assunção de responsabilidades. No que concerne às competências empresariais, os estudantes deverão desenvolver iniciativa, criatividade, atitudes proativas e a disposição para enfrentar o risco e implementar novas ideias (COM, 2004b).

Basta um olhar atento para que se torne perceptível que as competências fundamentais para a criação e o desenvolvimento de empresas são em tudo similares às consideradas necessárias para se aumentar a satisfação pessoal, potencializar a inclusão social e a cidadania ativa e expandir a aprendizagem ao longo da vida.

O que se preconiza, portanto, é uma con-cepção maximalista de competências pró-em-ção maximalista de competências pró-em-de competências pró-em-preendedoras, tal como assinalam Lopéz Ruiz (2004) e Colbari (2007) quando referem que as competências atreladas ao empreendedorismo se alastram para além da figura do empreen-dedor enquanto empresário, passando a se ma-terializar, no âmbito corporativo, nas relações de trabalho contemporâneas, vinculando os

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trabalhadores assalariados a um complexo de deveres dos quais se presume depender a sua manutenção no mercado de trabalho. Em larga medida, essas ideias estão presentes na própria noção de espírito empreendedor emanada da Comissão Europeia. Para essa entidade, nucle-ar na orgânica da UE, o espírito empreendedor deve ser definido como:

[...] a capacidade dos indivíduos de converter ideias em actos. Compreende a criatividade, a inovação e a assunção de riscos e, bem assim, a capacidade de planear e gerir projectos com vista a alcançar objetivos. Esta competência é útil a todos na vida de todos os dias, em casa e na sociedade, aos trabalhadores porque os torna conscientes do contexto do seu trabalho e aptos a aproveitar oportunidades, aos empresários porque serve de base para o estabelecimento de uma actividade social ou comercial. (COM, 2006, p. 4).

Mapeados os princípios essenciais do empreendedorismo, observemos agora breve-mente a forma como esses se consubstanciam no interior das próprias instituições de ensino. Em relação a esse ponto, constata-se que as uni-versidades europeias têm trilhado um caminho comum: a criação de gabinetes de promoção das atividades empreendedoras; o desenvolvi-mento de atividades de formação com durações diversas acerca da matéria; o estabelecimento de estruturas administrativas e acadêmicas que fomentam a criação de empresas spin-off e a transferência de conhecimento e o estímulo à criação de clubes de empreendedorismo, erigi-dos pelos próprios estudantes (ABRANJA, 2009; COSTA, 2011; MOREIRA, 2009; NAIA, 2009; UNIVERSIDADE DE LISBOA, 2011).

Por sua vez, o grau de empenho das escolas do ensino superior na assimilação das orientações pró-empreendedoras tem sido alvo de avaliação por parte das entidades supranacionais da UE, apreciação que se encontra vertida em dois importantes relatórios

emanados da Comissão Europeia: Survey of Entrepreneurship Education in Higher Education in Europe e Contribuir para a Criação de uma Cultura Empresarial: um guia de boas práticas para a promoção de atitudes e competências empresariais através da educação.

Destacamos, em primeiro lugar, o relatório Survey of Entrepreneurship Education in Higher Education in Europe. Esse documento, desenvolvido pela Comissão Europeia (2008), teve por missão: eleger as melhores práticas desenvolvidas pelas instituições de ensino; promover a criação de um ranking de instituições, no qual ganharam expressão os quesitos associados ao ensino do empreendedorismo; e, finalmente, identificar as principais dificuldades enfrentadas pelas instituições de ensino para colocarem em prática as formações orientadas para as atividades empreendedoras. Ao propor a criação de um ranking das instituições de ensino superior no domínio do empreendedorismo, os pesquisadores envolvidos elaboraram um índice de desempenho composto por três indicadores: alunos empreendedores por aprendizagem; alunos empreendedores por experiência prática; e transferência de conhecimento. Do grupo de 25 países que, à época, constituíam a UE, França, Alemanha e Reino Unido ocuparam o primeiro lugar no domínio do desempenho, ao passo que, na área das condições infraestruturais, foram de novo a França e o Reino Unido a liderar o ranking, mas, agora, acompanhados da Hungria. Portugal, país onde, como se tornará nítido no bloco seguinte, incide o estudo que motiva o presente artigo, surge em 12º lugar no item desempenho, ascendendo a sexto lugar no domínio das infraestruturas.

O relatório Contribuir para a Criação de uma Cultura Empresarial: um guia de boas práticas para a promoção de atitudes e competências empresariais através da educação destaca-se por inventariar as principais boas práticas desenvolvidas pelas instituições de ensino superior europeias,

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segundo as observações do Procedimento Best3. Esse documento destacou as estratégias desenvolvidas pela Gründerplattform der Wiener Universitäten (Áustria), pela Escola Empresarial Norueguesa (Noruega), pelo Dundalk Institute of Technology (Irlanda), pelo Programa Temporary Entrepreneurial Position (TOP) da University of Twente (Países Baixos), e pelo Programa Science Enterprise Challenge (Reino Unido).

É frutífero, para que se entenda o tipo de orientações privilegiadas pela EU, sumarizar cada uma das “boas práticas”.

Na Áustria, todos os estudantes da fase final dos cursos de graduação nas mais distintas áreas de formação participaram de um concurso cujo objetivo era desenvolver um plano de negócios, trabalhando em equipes multidisciplinares. O exemplo norueguês (dirigido apenas aos estudantes de ciências e de engenharias) iniciava-se com um curso preparatório sobre gestão, a que se sucedia um prova de seleção. Os estudantes eleitos realizavam então um trimestre de estágio em empresas sediadas no estrangeiro (São Francisco, Boston, Singapura, �angai). Após a formação, desenhavam um projeto a aplicar no ambiente empresarial norueguês. Na Irlanda, os alunos do Dundalk Institute of Technology que frequentavam qualquer curso de graduação ou pós-graduação podiam incluir em sua grade módulos de formação empreendedora que abarcavam conhecimentos teóricos e aplicações práticas. Nos Países Baixos, por meio do programa Temporary Entrepreneurial Position (TOP), os estudantes de nível superior que assim o desejassem podiam realizar um curso específico sobre empreendedorismo, desenvolver um plano de negócios, iniciar atividades empresariais em uma incubadora sediada na universidade,

3 - O procedimento Best é um método aberto de coordenação em matéria de melhoria do enquadramento empresarial. É a resposta da Comissão Europeia ao apelo do Conselho Europeu de Lisboa de 23 e 24 de março de 2000, no sentido de disseminar as principais práticas e de criar sinergias entre os diferentes processos orientados para a promoção da cultura empreendedora. Para mais informações, ver: <http://europa.eu/legislation_summaries/enterprise/business_environment/n26113_pt.htm>.

participar de equipes de investigação na área do produto ou do negócio gerados e, finalmente, tornar-se elegíveis para a obtenção de uma diversidade de apoios talhados à medida do seu projeto. A experiência exitosa identificada no Reino Unido resultava, por seu turno, de uma rede de centros de excelência das universidades britânicas, especializados no ensino e na prática de atividades comerciais e empresariais no campo da ciência e da tecnologia (COMISSÃO EUROPEIA, 2004).

Passados menos de dez anos do início de sua difusão, iniciativas desse tipo, com destaque para as promovidas nos exemplos austríaco, norueguês e irlandês, vulgarizaram-se, sendo aplicadas por múltiplas escolas europeias do ensino superior.

Finalmente, o relatório Survey of Entrepreneurship Education in Higher Education in Europe identificava as principais dificuldades com que as instituições do ensino superior se confrontavam no ensino do empreendedorismo, a saber: a) o restrito número de educadores com formação na área; b) o reduzido tempo do corpo docente para se dedicar ao ensino dessas matérias; c) a indisponibilidade de recursos; d) a falta de infraestrutura; e) as dificuldades de alteração e de adaptação curricular; e f) o fato do empreendedorismo ser entendido como uma atividade que perverte a missão de produção e difusão de conhecimento que subjaz à universidade (instrumentalizando-a em termos mercantis), fato esse que desencadeia reações de antagonismo no interior de diversos departamentos. Como se afirma nesse documento,

(...) not all departments were convinced that it was a good idea to engage in entrepreneurship education as they were afraid that the institution would be too commercial and that it would loose academic values. (NIRAS Consultants, FORA, ECON Pöyry, 2008, p. 202).

A esses aspectos, consideramos funda-mental acrescentar, não nos reportando, porém,

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aos relatórios supracitados, que a ênfase no em-preendedorismo é conotada por muitos agentes do espaço universitário europeu como um ins-trumento ideológico que integra a “agenda neo-liberal”, suscitando, também por essa via, resis-tências, neste caso, de âmbito político.

Efeitos de um projeto político: futuros passos de um estudo em aberto

Não é por acaso que o termo empreende-dorismo emerge com tanta força no discurso po-lítico em um momento de crise. Diante do atual acirramento dos entraves na esfera do trabalho, associados à crise do emprego e flexibilização do trabalho, essa abordagem de cariz político e ideológico é apresentada como alternativa para o crescimento sustentável europeu e, consequen-temente, para o processo de inserção profissional dos egressos do ensino superior.

Os próprios dados do Global Entrepreneurship Monitor (GEM, 2010) revelam que uma das motivações para iniciar uma ati-vidade empreendedora é o fator necessidade. O empreendedorismo por necessidade é identifica-do nas situações em que as condições de vida dos indivíduos estão longe daquelas considera-das pelos próprios como ideais, em que há falta de oportunidades de emprego formal e neces-sidade de aumentar os rendimentos mensais. Como a raiz da necessidade está muito atrelada às dinâmicas de absorção e retração do merca-do de trabalho, em momentos de crise, o próprio mercado inicialmente impele os novos negócios.

Nesse cenário, parece haver uma corrida contra o tempo, em que a aprendizagem ao longo da vida emerge associada à formação baseada no desenvolvimento de competências profissionais e à formação empreendedora, orientada tanto para a criação de autoemprego quanto para o desenvolvimento de iniciativas

inovadoras. As instituições de ensino superior são confrontadas com um novo desafio para o qual não estavam preparadas, especialmente no quesito recursos humanos. Além disso, enfrentam outros limites, como o acesso aos recursos para financiar os novos negócios ou produtos, as dificuldades geradas pelas alterações curriculares, com a inclusão das disciplinas na área, e as próprias diferenças internas que, algumas vezes, colocam em causa as diretrizes da UE, uma vez que associam essa concepção de disseminação de práticas educativas voltadas ao desenvolvimento do espírito empreendedor aos princípios neoliberais.

Os estudos de caso confirmam que as ações institucionais convergem em um sentido único: a implantação de gabinetes de promoção ao empreendedorismo, a inclusão de novas disciplinas optativas nos currículos dos cursos das mais diversas áreas, a ampliação da oferta de cursos de verão e de curta duração e a disseminação dos concursos de planos de negócios. Entretanto, nota-se que há em comum o fato de a abrangência ainda ser bastante restrita e de não haver um processo instituído de avaliação ou monitoramento dos resultados.

Sintetizando, podemos afirmar que se encontra hoje em dia erigido, no sistema do ensino superior europeu — em estreita sintonia com as transformações em curso no capitalismo global e procurando, em simultâneo, responder às questões que se colocam à Europa nesse mesmo contexto —, um dispositivo de fomento do empreendedorismo, sustentado, por um lado, numa apreciável logística e, por outro, na transmissão de competências e de injunções ideológicas. Torna-se fundamental apurar quais tipos de impacto todo esse complexo tem no conjunto da população que explicitamente pretende atingir: os estudantes e, em particular, os graduados do ensino superior.

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Recebido em: 29.01.2014

Aprovado em: 18.03.2014

Rachel de Castro Almeida é professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Foi bolsista de pós-doutorado Capes (processo 4035-11/9), projeto “Ensino superior e inserção profissional: uma incursão pelas trajetórias e disposições de jovens empreendedores” e pesquisadora do projeto “Percursos de inserção dos licenciados: relações objectivas e subjectivas com o trabalho”.

Miguel Chaves é professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, pesquisador do Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa (CESNOVA), e coordenador do projeto “Percursos de inserção dos licenciados: relações objectivas e subjectivas com o trabalho”, (PTDC/CS-SOC/104744/2008), financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

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El sistema dual de formación profesional alemán: escuela y empresa

Jesús A. Alemán FalcónI

Resumen

El presente artículo es resultado de un estudio sobre el sistema dual de formación profesional alemán; dicho estudio ha sido desarrollado en base al uso de diferentes técnicas de investigación cualitativas. En él se analiza tanto la estructura de la Berufsschule, escuela encargada de formar profesionalmente a los aprendices, como la instrucción impartida por la empresa. Esta combinación de instituciones es lo que caracteriza a este sistema de formación como dual. Por tanto, el aprendiz, a la vez que se forma en la empresa, ha de acudir a las clases que se imparten en la Berufsschule. Este modelo sirve de paradigma a otros países que están intentando su desarrollo y aplicación, dadas las ventajas sociales y económicas que ofrece. En este artículo se muestran cuáles son los objetivos de la escuela de formación profesional así como cuáles son los elementos organizativos más importantes. A continuación, se analiza el papel de las empresas en este tipo de enseñanza conjuntamente con la tarea que desempeñan los tutores en ella. Finalmente, se concluye con la exposición de aquellos beneficios sociales y económicos que están relacionados con el uso de este sistema. Se trata de un modelo que podría ser exportado a otros países, porque responde adecuadamente a las exigencias del entorno económico y posibilita así la incorporación del alumnado al mercado de trabajo.

Palabras clave

Sistema dual — Aprendiz — Formación profesional — Empresa.

I- Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, Gran Canaria, España.Contacto: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014121532

510 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 2. p. 495-511, abr./jun. 2015.

The dual system in the German vocational training: school and enterprise

Jesús A. Alemán FalcónI

Abstract

This article is the result of a study about the German dual system of vocational training; this study has used different qualitative research techniques. It examines both the structure of the Berufsschule, which is the school where apprentices study, and the instruction given by companies. This combination of institutions makes the system of education dual. Therefore, apprentices must attend classes taught in the Berufsschule while they are also training in a company. This model serves as a paradigm for other countries which intend to develop and implement it, due to its social and economic advantages. First, I present the objectives of the vocational school and its most important organizational elements. Then, I analyze the role of companies in this type of teaching and the task performed by tutors. Finally, I present the social and economic benefits of this system. This model could be exported to other countries, because it adequately meets the demands of the economic environment and, thus, enables the incorporation of students into the labor market. Keywords

Dual system — Apprentice — Vocational training — Enterprise.

http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014121532

I- Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, Gran Canaria, España.Contact: [email protected]

511Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 2. p. 495-511, abr./jun. 2015.

Introducción

El presente artículo es fruto del estudio del sistema dual de formación profesional alemán. Esta dualidad se debe a los dos elementos que sustentan el sistema: la Berufsschule o escuela de formación profesional a tiempo parcial y la empresa. Alemania es hoy una potencia económica gracias a este modelo de formación, ya que asegura que el mundo empresarial disponga de mano de obra bien cualificada, con la que puede responder de forma adecuada a las exigencias del entorno económico-productivo y contribuir a que en la sociedad se alcancen mayores niveles de bienestar social, objetivo histórico del sistema dual (GREINERT, 1998).

Esta investigación se ha desarrollado en base al uso de diferentes técnicas de investigación cualitativas. Como fuentes primarias hemos consultado documentos oficiales, especialmente aquellos de carácter legislativo elaborados por la Conferencia de Ministros de Educación Alemanes o Kultusministerkonferenz (KMK) para la regulación de las enseñanzas profesionales que se imparten en la Berufsschule o escuela de FP (Formación Profesional) así como aquellos otros que determinan de forma general la estructura y el funcionamiento de las otras vías de formación profesional alternativas al sistema dual. Asimismo se ha examinado la documentación oficial elaborada por los estados federados o Länder para la adaptación de las directrices generales establecidas para todo el territorio por la KMK. Para poder realizar un análisis completo fue necesario consultar además aquellos documentos legislativos que regulan la formación impartida en las empresas y que son publicados por el Ministerio Federal de Educación e Investigación, especialmente todo lo referente a los reglamentos de formación. Igualmente hemos empleado estudios publicados por organismos oficiales como el Instituto Federal de Formación Profesional o la Agencia Federal de Empleo así como informes realizados por las diferentes cámaras empresariales, especialmente por las

cámaras de industria y comercio y por las cámaras del artesanado.

La elaboración de entrevistas a personas que participan, dirigen o toman decisiones en el ámbito de la formación profesional alemana fue otra de las técnicas fundamentales usadas en esta investigación. Fueron entrevistados desde tutores de empresas a directores de Berufsschulen, pasando por los asesores de las cámaras empresariales y por los responsables de los departamentos de formación en grandes empresas. Asimismo, las visitas de estudio realizadas se centraron en ver de cerca el funcionamiento de los distintos tipos de escuelas, en conocer in situ la formación impartida en grandes empresas así como aquella otra transmitida en los centros de formación pertenecientes a grandes compañías del ámbito automovilístico, electrónico y de las telecomunicaciones.

Rasgos generales del sistema educativo alemán

El sistema educativo alemán viene determinado por la estructura federal del estado. Según la Constitución del país (ALEMANIA, 2012), los Länder son los encargados de llevar a la práctica las competencias del estado. Así, éstos poseen la capacidad para legislar en el ámbito de la educación en todas aquellas cuestiones que afectan a la escuela, a las universidades, a la enseñanza de adultos y al perfeccionamiento educativo. Las competencias del Gobierno Federal están reguladas por la Constitución, afectando a los principios generales del sistema universitario, al fomento de la formación en las empresas y a la promoción de la investigación científica.

A continuación describiremos de forma breve las primeras etapas en la vida escolar para luego pasar a centrarnos en la formación profesional del sistema dual.

La educación primaria comienza a los 6 años de vida del alumno, ingresando éste en una escuela básica (Grundschule) que en la mayoría de los estados federados incluye los cursos de

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primero a cuarto, con la excepción de Berlín y Brandenburgo (KMK, 2013). En esta etapa se sientan las bases para el trabajo responsable, así como para el pensamiento y el aprendizaje autónomo. También se proporcionan las experiencias necesarias para la socialización con los demás miembros de la comunidad educativa. Al principio de la primaria el esfuerzo se centra en el aprendizaje de la lectura, escritura y el cálculo; lógicamente también se imparten otras asignaturas importantes como son experiencias, arte, música, deporte y, en muchos Länder, religión. El estudio de las lenguas extranjeras se comienza en los cursos de tercero y cuarto. Algunos estados federados han tomado la decisión de trabajar por proyectos, constituyendo el aprendizaje de los conocimientos básicos, el desarrollo de capacidades y la adquisición de competencias los pilares de la enseñanza. Al terminar la primaria no se realiza ninguna prueba final ni se entrega una certificación. Para el acceso a la secundaria de nivel I existe una fase de orientación (Orientierungsstufe) que comprende los niveles académicos de quinto y sexto, cuya finalidad es guiar al alumno en el itinerario escolar que va a seguir. En la secundaria de nivel I existen diferentes modalidades de escuelas. Por lo general, la decisión de acceder a un tipo u otro de escuela está predeterminada por el dictamen que realiza la escuela de primaria de donde procede el alumno junto a un consejo orientador que se da a los padres. Sin embargo, en última instancia la decisión corresponde a los padres, aunque depende también de otros factores como son los criterios de rendimiento exigidos en la escuela de destino o la capacidad que ésta tiene en cuanto al número de alumnos que puede admitir.

El primer nivel de secundaria acoge a alumnos con edades comprendidas entre 10 y 16 años. Existen diferentes tipos de escuelas que ofrecen diversas titulaciones. En la mayoría de los Länder están establecidas las siguientes: Hauptschule, Realschule, Gymnasium y Gesamtschule (KMK, 2013). La Hauptschule o escuela principal ofrece una educación general

básica; es de carácter obligatorio y abarca los niveles de quinto a noveno. En teoría este tipo de escuela debe preparar al alumno para una formación profesional, por lo que la educación que recibe suele ser práctica. En las clases de matemáticas y de lenguas extranjeras suele dividirse a los alumnos en grupos en función del rendimiento que muestren en ellas. Se suele justificar el empleo de estas medidas alegando que con ello se satisface mejor las posibilidades de aprendizaje del alumnado, permitiendo así que puedan obtener una titulación y facilitar el paso a otros tipos de estudios posteriores.

La Realschule acoge a los alumnos comprendidos entre los niveles de la quinta a la décima clase, ofreciendo una educación general algo más amplia que la Hauptschule y permitiendo el acceso a estudios profesionales y a otros estudios de secundaria de nivel II. A partir del curso séptimo u octavo se ofertan asignaturas optativas que intentan responder a los intereses vocacionales de los alumnos o reforzar también sus conocimientos en asignaturas básicas.

El Gymnasium es otra modalidad escolar que ofrece estudios de secundaria de nivel I y nivel II, abarcando por lo general desde el quinto curso hasta la clase doce, pero llegando en algunos Länder a la clase trece. Oferta una educación general con profundidad y proporciona el acceso a la universidad.

Por último, la Gesamtschule o escuela comprensiva existe en casi todos los Länder, pero en algunos de ellos en número reducido. Se trata de un tipo de escuelas que ofrece diferentes tipos de titulaciones; puede ser semejante a la ofrecida por la escuela principal (Hauptschule) o una Mittlerer Schulabschluss que es la titulación ofertada por la Realschule, aunque también puede permitir el acceso al nivel superior del Gymnasium.

Una vez analizadas las primeras etapas educativas, nos centraremos a continuación en el ámbito de la formación profesional.

En Alemania se busca garantizar una formación básica para todos los ciudadanos,

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de manera que estos puedan insertarse en el mundo laboral. Para ello existen diferentes vías de formación profesional. La oferta abarca desde escuelas a tiempo completo de enseñanza general hasta escuelas a tiempo completo de enseñanza profesional, pasando por la formación que se imparte dentro del sistema dual.

Vías de formación profesional alternativas al sistema dual

En primer lugar realizaremos una descripción de las instituciones educativas que ofertan enseñanzas de carácter profesional que están enmarcadas en la secundaria de nivel II y que son vías alternativas al sistema dual en la mayoría de los Länder.

La Berufsfachschule o escuela de FP a tiempo completo se caracteriza por un amplio abanico de especialidades de diferente duración y con diversos niveles de cualificación. Según la KMK (1997), este tipo de centros tiene dos finalidades; una primera es aquella que se encarga de introducir al alumno en una o más profesiones reconocidas oficialmente en el sistema dual, instruyéndolo en el nivel básico. Sin embargo, la segunda finalidad es la más importante porque la Berufsfachschule puede otorgar un título profesional fuera del sistema dual, en aquellos estudios relacionados con las profesiones de asistente de dietista, ergoterapeuta, comadrona, enfermera, logopeda y asistente técnico-médico de laboratorio y radiología. Esta institución permite ampliar la formación general que dispone el alumnado antes de entrar en ella, ofreciendo así a éste la oportunidad de avanzar a otros estudios de niveles superiores. La duración es de como mínimo un año a tiempo completo, pero por lo general, en la mayoría de las enseñanzas se prolonga durante más tiempo, siendo un requisito indispensable la realización de un prácticum en la empresa.

La Fachoberschule es otro tipo de escuela de formación profesional que en diferentes especialidades posibilita, en dos años, el acceso

a la Fachhochschule o universidad de ciencias aplicadas. El primer año combina la enseñanza práctica en empresas con la formación especializada en la escuela. Quien tenga ya una titulación de formación profesional o quién esté en activo, pero acredite además poseer experiencia profesional, puede acceder al último año de la Fachoberschule (KMK, 2004) dentro de la especialidad correspondiente, impartiéndose estas enseñanzas a tiempo completo o a tiempo parcial. Este tipo de escuelas existe en especialidades como economía y administración, salud y estudios sociales o economía agraria, por ejemplo.

La Fachschule es otra vía más, pero en este caso se trata de una institución de perfeccionamiento profesional, a la que acceden aquellos que poseen una titulación de formación profesional y desempeñan una actividad profesional relacionada con una determinada especialidad. Las enseñanzas en este tipo de escuelas pueden ser a tiempo completo o a tiempo parcial y conducen a un mayor nivel de cualificación profesional, posibilitando así la obtención de una titulación postsecundaria de formación profesional reconocida a nivel estatal, pero regulada por cada Land. Se trata, por tanto, de enseñanzas de carácter especializado. Normalmente la duración a tiempo completo suele ser de dos años, pero a tiempo parcial puede llegar a ser de cuatro, tal como ocurre en el Land de Sachsen (SACHSEN, 2011, p. 26) También pueden recoger medidas de formación complementarias y de actualización profesional, encargándose, por ejemplo, de formar en tareas directivas. Asimismo, tal como se recoge en un acuerdo plenario de la Conferencia de Ministros de Educación (KMK, 2002) se puede alcanzar en esta institución la titulación de acceso a la Fachhochschule o universidad de ciencias aplicadas. Por otro lado, hay que resaltar la gran importancia que tiene la Fachschule en la preparación de los aspirantes a la prueba de Meister o tutor de empresa. Algunas especialidades que están vinculadas a este tipo de escuelas son técnica

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agraria, química, frío comercial, informática, automoción, mecatrónica, y técnica de automatismos, entre otras muchas.

La Berufsoberschule es un tipo de institución que existe sólo en algunos Länder como Baviera, Berlín, Niedersachsen, Schleswig-Holstein y Baden-Württemberg. Ofrece la posibilidad a los egresados del sistema dual de poder adquirir la titulación de acceso a la universidad (KMK, 2000). En ella se imparten dos años de enseñanza a tiempo completo, logrando el alumnado a su término la titulación de acceso a la universidad según la especialidad de la que se trate. Así, la Berufsoberschule en la especialidad de agricultura permite ingresar en bioquímica, biología, tecnología de los alimentos, etc.

El sistema dual de formación profesional alemán

A continuación abordaremos la dualidad del sistema; ésta se debe a los dos elementos que lo sustentan: la Berufsschule o escuela de formación profesional a tiempo parcial y la empresa. El aprendiz, a la vez que se forma en la empresa, ha de acudir a las clases que se imparten en la Berufsschule. Este modelo permite que el mundo empresarial disponga de mano de obra bien cualificada, siendo éste uno de los principales factores que han propiciado que Alemania se convierta hoy en una potencia económica mundial. De ahí que haya servido de referente a otros países como, por ejemplo, China (WAGNER, 2003), que está desarrollando numerosos proyectos de cooperación con las autoridades alemanas, especialmente con el Instituto Federal de Formación Profesional (BIBB) y con empresas multinacionales alemanas como, por ejemplo, Siemens. Dicha compañía (SIEMENS, 2012) destaca por ser una de las más grandes en cuanto al número de puestos e inversión que realiza en el ámbito de la instrucción de aprendices. En el caso de Europa hay países como España que llevan poco tiempo implementando el sistema dual en

su territorio. Así, el gobierno español publicó un real decreto en el año 2012 que pretende establecer las bases que regulan el marco del sistema para el conjunto de la nación. En este decreto se busca una participación más activa de la empresa en el propio proceso formativo del alumnado con la finalidad de favorecer una mayor inserción de éstos en el mundo laboral durante el período de formación (ESPAÑA, 2012). España, al ser un país con un alto nivel de descentralización territorial, ha establecido que sean las comunidades autónomas las que, partiendo del real decreto, desarrollen el sistema dual en sus propias regiones; esto ha originado que existan diferencias entre ellas en cuanto a requisitos y características organizativas. Un ejemplo lo podemos ver si comparamos la normativa del principado de Asturias (PRINCIPADO DE ASTURIAS, 2013) con la elaborada por la Comunidad Valenciana (VALENCIA, 2013).

Volviendo al modelo alemán, que es el que nos ocupa en este artículo, la formación que se imparte en la escuela de FP a tiempo parcial o Berufsschule cae bajo la responsabilidad de los estados federados. Así, los Länder formulan sus planes de enseñanza en función del diseño marco establecido por la Conferencia de Ministros de Educación para todo el país. Además estos establecen en sus correspondientes leyes educativas diversas cuestiones relacionadas con este tipo de escuelas, esto es, con la Berufsschule; cuestiones que tienen que ver con la obligatoriedad escolar profesional, con la duración de las clases, con la dotación económica así como con los contenidos que se han de impartir, tal como viene recogido en los artículos 30 y 70 de la Ley Fundamental, la Constitución Alemana (ALEMANIA, 2012). Por el contrario, la competencia legislativa de la formación impartida en las empresas recae sobre el Gobierno Federal. Por tanto, un aspecto esencial del sistema dual es la relación que existe entre la empresa y la escuela de FP a tiempo parcial, tal como se recoge en la ley de formación profesional (BMBF, 2005b).

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En el mundo empresarial se aplican los Reglamentos de formación en los que se recogen los objetivos y los contenidos de las enseñanzas profesionales que están reconocidas oficialmente, contemplándose en ellos las exigencias mínimas que han de tenerse en cuenta durante la formación en las empresas. Son decretos cuya validez abarca toda la República Federal (KMK, 2007). Tanto los reglamentos de formación como el diseño marco de los planes de enseñanza son trabajados de forma paralela entre el Gobierno Federal y los interlocutores sociales, por una parte, y la Conferencia de Ministros de Educación (KMK, 2005), por otra, haciendo concertar entre ellos cada uno de sus puntos. Lo que se pretende es posibilitar la existencia de un marco unitario a nivel federal.

La Berufsschule o escuela de formación profesional a tiempo parcial

La Berufsschule o escuela de FP a tiempo parcial es el primer componente del sistema dual. Ésta tiene como objetivo ofrecer una formación básica y especializada, ampliando y desarrollando aquella ya adquirida por los alumnos. Concretamente se encarga de proporcionar al alumnado una capacitación profesional, en la que se unan competencias profesionales con capacidades básicas de índole personal y social.

La Berufsschule se divide por lo general en un nivel básico y en un nivel especializado. El nivel básico está constituido por el primer año de la Berufsschule (SACHSEN-ANHALT, 2004). Se denomina año básico de formación profesional. Puede desarrollarse en profesiones que pertenecen a una misma familia profesional de forma escolarizada a tiempo completo o de forma cooperativa. Esta formación también puede impartirse en las Berufsfachschulen que son las escuelas de formación profesional a tiempo completo y que no están insertas en el sistema dual; sin embargo, en la mayoría de los Länder recae en las Berufsschulen.

A la Berufsschule están obligados a asistir, por lo general, todos los jóvenes que no estén en una escuela a tiempo completo hasta que hayan terminado de cumplir los 18 años de edad, es decir, hasta el momento en el que vayan a cumplir los 19 años, o hasta que hayan titulado en su formación profesional. Esta obligación escolar está recogida en todas las leyes escolares existentes en los Bundesländer tal como ocurre, por ejemplo, en el Land de Thüringen, (THÜRINGEN, 2003).

Los grupos clases de una Berufsschule se caracterizan por instruir a un conjunto de alumnos de un determinado nivel en una profesión concreta. Cuando se da el caso de que hay pocos alumnos en una determinada profesión se organizan grupos heterogéneos de alumnos o se imparte dicha especialidad en pocos lugares del Land correspondiente, (BAVIERA, 2000).

Como la mayor parte de las profesiones tienen una duración de tres años, cada uno de ellos son numerados o reciben una denominación por niveles: bajo, medio y alto. El tiempo que un alumno del sistema dual pasa en la Berufsschule se corresponde con la duración del contrato de aprendizaje. Generalmente el aprendiz acude un día y medio a esta escuela de FP y tres días y medio a la empresa. Sin embargo, en algunos Länder la organización de las clases por bloques semanales está muy extendida, teniendo muchos de ellos una duración de doce semanas o dividiéndose en dos bloques de seis o siete semanas (BADEN-WÜRTTEMBERG, 2004). Sobre este punto es necesario señalar que en una entrevista realizada a un director de una Berufsschule de la ciudad-estado de Bremen se le preguntó sobre la estructura de los planes de estudio y de la docencia en su centro; éste contestó que trabajaban con bloques semanales de manera que los alumnos recibían durante tres semanas clases en la Berufsschule, acudían seis semanas a la empresa y volvían a formarse durante tres semanas más en el centro escolar. Como podemos apreciar, en ocasiones las características organizativas difieren de unos

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Länder a otros e incluso entre centros educativos de un mismo estado federado.

El número de horas totales que se ha de impartir en la Berufsschule es de cómo mínimo doce horas a la semana. Estas horas están en función de los planes de enseñanza así como de las tablas horarias establecidas por los Länder (BADEN-WÜRTTEMBERG, 1998). Por lo general, el número de horas dedicadas a la especialización profesional es de 8 horas a la semana; dicha especialización está de acuerdo con los marcos de enseñanza establecidos por la Conferencia de Ministros de Educación que son cotejados y comparados con los reglamentos de formación correspondientes que se imparten en las empresas.

Cuando se creó la Berufsschule, el objetivo no era formar en una determinada profesión, ya que siempre se dio importancia a la finalidad de educar por medio de la profesión. Por ello, lo que se aprende en la empresa ha de ser fundamentado, explicado, ampliado y profundizado en el centro educativo, consiguiendo llevarlo a un nivel más alto de entendimiento. Así, las acciones de interrelacionar los conocimientos, de sistematizarlos, de hacer sinopsis y de extraer lo fundamental constituyen estrategias didácticas que se sitúan en la primera línea de trabajo de la Berufsschule. El objetivo es la formación del trabajador especializado, pero sobre todo la necesidad de educar a ese individuo. Por tanto, todo alumno debe recibir una extensa y amplia formación que le sirva en su desarrollo personal y que sobrepase las demandas de cualificación del sistema de empleo.

A continuación presentamos de forma sintética las cuatro tareas tradicionales que la Berufsschule ha desarrollado a lo largo de su historia; la escuela de FP consiste fundamentalmente en ser un espacio de:

a. Transmisión de las enseñanzas de educación general. La precursora de la Berufsschule fue históricamente la escuela de perfeccionamiento o Fortbildungschule (GREINERT, 2006), que valoraba e impartía

contenidos de educación general. Por ello, se han mantenido esos contenidos en el canon de las asignaturas que se imparten en las enseñanzas de educación general, tales como lengua alemana, ciencias sociales, religión/ética o educación física. Estas enseñanzas desarrollan una doble función: servir de refuerzo y de compensación de desequilibrios. Así, la enseñanza de la lengua alemana tiene entre uno de sus cometidos facilitar las exigencias lingüísticas que requiere el desarrollo de una profesión, pero también un conocimiento básico de la literatura mientras que el profesor de ética da importancia al tema del sentido de la vida o el especialista en educación física profundiza en los hábitos saludables y en el cuidado del cuerpo.

b. Formación personal y social. En concordancia con los objetivos actuales en cuanto al desarrollo de las competencias profesionales, la Berufsschule se encarga además de preparar en competencias personales y sociales. Se tienen en cuenta aspectos como la precisión, la seguridad, la confianza, el esfuerzo por un trabajo de calidad, el esmero, la responsabilidad y la conciencia del deber. Sin embargo, las que sobresalen por encima de todas éstas son la autonomía y la confianza en sí mismos (BIBB, 2005). En cuanto a las competencias sociales habría que resaltar aquella otra relacionada con la capacidad de interactuar con otras personas, ya que lo que se busca con ello es mostrar un comportamiento orientado al grupo, que esté basado en la capacidad de cooperación, tolerancia, lealtad y espíritu de equipo.

c. Complemento a la formación profesional impartida en la empresa. La tercera función de la Berufsschule es servir de complemento a la formación impartida en la empresa, especialmente en el ámbito cognitivo como también en el psicomotor. En primer lugar se trata de proporcionar todas las cualificaciones de carácter cognitivo que se exigen para el ejercicio de una profesión. Todo ello en función del perfil profesional, enseñándose aquello que sea útil para ser aplicado.

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d. Formación en competencias como objetivo fundamental. Tanto por parte de la empresa como de la Berufsschule se conciben las competencias profesionales como un conjunto dividido en tres partes: competencias especializadas y de método, competencias personales y competencias sociales. En cuanto a los planes de enseñanza de la Berufsschule, es necesario señalar que estos están divididos en campos de aprendizaje interrelacionados y no en las típicas asignaturas aisladas entre sí.

Al finalizar la formación en la Berufsschule se expide un certificado final si el alumno ha logrado alcanzar los objetivos, teniendo que tener para ello un rendimiento suficiente en todas las asignaturas. Si en alguna materia ha obtenido un rendimiento insuficiente, se podrá compensar dicha calificación con los resultados obtenidos en el resto de las materias, pero siempre según las disposiciones establecidas en cada uno de los Länder (HESSEN, 2002).

Tal como establece el acuerdo sobre conclusión de los estudios en la Berufsschule, todos estos certificados son reconocidos por los diferentes Länder (ILLERHAUS, 2003).

La gestión de la Berufsschule es una tarea compleja. Así, en una de las entrevistas realizadas a otro director de una Berufschule en la ciudad-estado de Bremen en la que se le preguntaba sobre las dificultades para gestionar el centro educativo, éste nos puso de ejemplo cómo en la profesión de carnicero había descendido drásticamente durante los últimos años el número de empresas en el sector, lo que repercutía indudablemente en la cantidad de aprendices que se podían formar. Esta situación afectó tanto al presupuesto anual del centro que reciben del Land, ya que éste depende del número de alumnos que tengan, como a las horas de docencia. Un menor número de horas de clase hizo que varios profesores, tanto de dicha especialidad como de asignaturas generales, perdieran su plaza en esa Berufsschule mientras que otros tuvieron que compartir su tarea docente con labores en otro centro educativo.

De ahí que podamos afirmar que la gestión de una Berufsschule se ve influida por los cambios que puedan producirse en el mercado laboral y por el número de empresas que opten por formar aprendices.

La participación de la empresa en la formación profesional

Los comienzos de la formación profesional alemana están ligados a la necesidad de asegurar la disponibilidad de mano de obra cualificada, ya que el objetivo final era reforzar la capacidad de competitividad de las empresas. Hoy en día este objetivo tiene mayor importancia debido a las exigencias internacionales. Tal como señalan Cramer y Kiepe (2002), que fue director del Departamento Central de Política Educativa de la empresa AEG Aktiengesellschaft, esta responsabilidad de las empresas tiene además connotaciones político-sociales, ya que se basa en la integración sobre todo de los jóvenes en la sociedad, contribuyendo así a su implicación como ciudadanos con la democracia.

Las empresas son libres al decidir si desean ofrecer puestos de aprendizaje, cuántos aprendices desean contratar y en qué profesiones reconocidas oficialmente los capacitarán. Así, Siemens, (SIEMENS, 2012) tal como señalábamos anteriormente, es una de las empresas que mayor número de plazas como aprendices oferta. En la actualidad hay diez mil aprendices en formación, para lo cual invierten anualmente ciento sesenta y siete millones de euros.

A lo largo de la historia el gremio (GREINERT, 1998), en su calidad de entidad representante de la comunidad de artesanos de una ciudad, se encargaba de reglamentar la admisión y dispensación de los aprendices. En esta tradición se basa la responsabilidad que tienen las cámaras empresariales, esto es, la cámara de comercio e industria o la cámara del artesanado (IHK, 2003), en cuanto al control de la formación y a los exámenes finales. También se basa en el principio de subsidiariedad, según el cual el estado sólo debe intervenir regulando

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aquellos sectores, en los que la sociedad no ha establecido sus propios reglamentos.

De todas formas existen otros motivos pragmáticos que han llevado a las empresas a formar a los aprendices (CRAMER; KIEPE, 2002). El primero de ellos se basa en el hecho de que las cualificaciones prácticas únicamente pueden adquirirse a través de un aprendizaje en circunstancias de trabajo reales además de que el trabajo práctico en la empresa es el único lugar donde se pueden desarrollar los comportamientos y los rasgos de la personalidad que son necesarios para el ejercicio adecuado de una determinada actividad profesional.

Sin embargo, el motivo principal reside en el hecho de que, con otros modelos de formación, si se contrata a un nuevo trabajador, es necesario instruirlo inicialmente. Con el sistema dual se eliminan estos costes o se mantienen en niveles mínimos. Las empresas están convencidas de que podrán sacar provecho de esa inversión en capital humano a través de una mayor calidad de sus productos y de una mayor capacidad competitiva en los mercados. En muchas industrias se ha comprobado que la eliminación de fallos y de deficiencias de calidad resulta tanto más cara cuanto más tarde se detectan y eliminan en el proceso de fabricación. En consecuencia, la forma más barata de asegurar la calidad de la producción consiste en capacitar al personal de tal manera que cometa la menor cantidad posible de errores. Está claro que quien no invierte en cualificación, no actúa de modo eficiente en términos de ahorro de costes, ya que tendrá que eliminar aquellos fallos que cometió el personal menos cualificado, lo cual resultará muy costoso.

También hay que señalar que existe un provecho indirecto para la compañía por la fuerte identificación del aprendiz con ésta así como la posibilidad que tiene la empresa de conocer el comportamiento del aprendiz, pudiendo de esta manera evaluar mejor su posterior aplicación como empleado y reducir así el riesgo de realizar un reclutamiento equivocado del personal. Sólo,

en muy raras ocasiones, las firmas determinan de modo sistemático la necesidad que tienen de capacitar aprendices. Más bien se impone la continuación de una tradición, en la medida en que las empresas sustituyen a los aprendices que terminan por otros que empiezan su formación. Únicamente se determina de modo bastante específico la especialidad y el tipo de profesiones, hecho que viene marcado por el tipo de producción o de servicios que ofrece la compañía en cuestión. De todas formas, se suele capacitar a más aprendices de los que realmente se necesitan. Esto es así porque la empresa tiene que contar con la posibilidad de que algunos aprendices no concluyan la formación que empezaron, que la concluyan con calificaciones poco satisfactorias o que al término de su formación deseen abandonar la firma. En consecuencia, hacen sus cálculos teniendo en cuenta un excedente estratégico de aprendices, ya que desean tener la posibilidad de elegir a los mejores aprendices de acuerdo a su nivel de rendimiento (IHK, 2003).

Tanto las organizaciones empresariales como los sindicatos están de acuerdo en que la formación profesional debe cubrir todo el territorio nacional, ser accesible a la gran mayoría de los jóvenes y tener un elevado nivel cualitativo. El estado se mantiene en un segundo plano en lo que se refiere a la regulación de la formación profesional, aunque sí interviene a través de lo legislado. Un aspecto que a veces se olvida es el hecho de que el sistema dual alivia los gastos del presupuesto nacional, porque las compañías cubren ellas mismas los costos internos que genera dicha formación.

En cuanto al derecho de las empresas a formar aprendices, este derecho está regulado por el artículo 27 de la Ley de Formación Profesional (BMBF, 2005b), teniendo la compañía que cumplir varias condiciones. La primera establece que ésta tiene que ser una empresa comercial, industrial o artesanal, una institución de la administración pública o desarrollar una profesión liberal. En segundo lugar debe disponer de las instalaciones y

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equipos necesarios, es decir, tiene que contar con los equipos, las máquinas, las herramientas e instalaciones adecuadas y, además, disponer de los dispositivos de seguridad correspondientes. No obstante, una empresa que no sea capaz de transmitir la totalidad de las destrezas y los conocimientos que se necesitan en una profesión concreta puede, a pesar de ello, contratar aprendices, siempre y cuando se demuestre que dichas deficiencias serán compensadas a través de una formación complementaria en centros supraempresariales de formación profesional (BMBF, 2001). En tercer lugar la cantidad de aprendices a formar debe estar en proporción con la cantidad de puestos de aprendizaje disponibles y con la cantidad de personal cualificado que trabaja en la empresa en cuestión. En cuarto lugar, la persona o empresa que contrata a los aprendices, o los tutores e instructores contratados a su vez por ella, deben ser considerados aptos para instruir a los aprendices. La aptitud de la empresa para formar aprendices es controlada por la cámara de industria y comercio o por la cámara del artesanado correspondiente. Se considera que la proporción entre aprendices y personal cualificado es adecuada si por cada uno o dos trabajadores cualificados no hay más de dos aprendices, o también, si por cada seis u ocho trabajadores cualificados no hay más de tres. Con un número mayor de trabajadores cualificados, se tendrá en cuenta la siguiente proporción: sólo se admitirá un aprendiz por cada tres trabajadores cualificados de más. Además se supone que un instructor de empresa que asume esa función docente a tiempo parcial, no puede capacitar a más de tres aprendices al mismo tiempo, mientras que un instructor que asume sus funciones a tiempo completo en la empresa puede capacitar a dieciséis aprendices.

El tamaño de la empresa no es criterio suficiente para determinar la calidad de la formación profesional. Si bien es cierto que numerosas empresas grandes disponen de talleres de aprendizaje y centros de formación propios, en los que es más sencillo ofrecer

una instrucción sistemática y planificada, también existen muchas otras de tipo artesanal que ofrecen una alta calidad. Las empresas de tipo artesanal han de enviar a sus aprendices a clases en centros de formación de carácter supraempresarial para complementar aquellas cualificaciones que no pueden impartirse en la compañía por carecer del instrumental necesario. Sin embargo, un aspecto positivo de las firmas pequeñas es que son capaces de integrar a los aprendices en su estructura social, consiguiendo así transmitirles cualificaciones de carácter fundamental, tales como la capacidad de comunicar con los demás, la independencia en el trabajo, etc.

La combinación de los espacios donde se ubican las actividades de enseñanza constituye un factor esencial para conseguir buenos resultados en la formación profesional impartida en la empresa (CRAMER; SCHMIDT; WITTWER, 2004). Sin embargo, no existe una combinación óptima, sino que el uso de diversos espacios tiene que decidirse dependiendo del tipo, tiempo y secuencia de cada una de las exigencias que se ponen de manifiesto. El puesto de trabajo, en su calidad de espacio de aprendizaje, sirve principalmente para la formación técnica mientras que el taller de aprendizaje de la propia empresa está destinado a la instrucción básica. Las clases teóricas impartidas en un aula dentro de la empresa tienen como finalidad ampliar y profundizar en las materias contenidas dentro del plan de estudios de las escuelas de FP así como para preparar los exámenes.

La capacidad que tiene el puesto de trabajo de cualificar al aprendiz se explica porque el aprendiz se forma en una situación real, por lo que la distancia entre aprender y aplicar lo aprendido es mínima. Este aprendizaje en una situación real y la recompensa que se obtiene por los resultados alcanzados constituyen importantes factores de motivación. Y, por supuesto, a actuar se aprende sólo actuando. En este sentido el puesto de trabajo es el lugar idóneo para adquirir la experiencia necesaria en el trato social, para dominar métodos y,

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en consecuencia, para ser suficientemente competente.

Los aprendices que se forman en una misma profesión dentro de una determinada empresa pasan por los mismos lugares de aprendizaje. Así, por ejemplo, en algunas empresas (CRAMER; KIEPE, 2002) empiezan durante seis meses en el taller de aprendizaje, continuando después durante 27 meses en el puesto de trabajo, para terminar volviendo al taller durante tres meses. Las clases teóricas dentro de la compañía suelen tener una frecuencia de dos horas por semana. Así, se garantiza que todos reciban una formación homogénea. Sin embargo, pueden existir diferencias en la medida que los aprendices no cuenten con los mismos instructores o tutores dentro de la empresa, sobre todo cuando estos actúan a tiempo parcial. También puede haber disparidad por las exigencias que plantea un determinado puesto de trabajo, lo que condiciona las posibilidades de aprendizaje. Esto suele solventarse aplicando un sistema de rotación a través de los diferentes trabajos.

De todas formas, es necesario señalar que los niveles de conocimientos exigidos por los reglamentos de formación profesional, además de las exigencias de los exámenes (BMBF, 2005a), hacen que la empresa se vea obligada a intervenir ofreciendo una formación equilibrada para todos.

Con la nueva Ley de Reforma de la Formación Profesional del año 2005, se regula la necesidad de cooperación entre la empresa y la Berufsschule (SONDERMANN, 2005). Esta nueva legislación (BMBF, 2005b) surgió ante los problemas que se dieron en el pasado entre la empresa y la Berufsschule, especialmente en lo referente a la organización temporal de las clases en la escuela así como en la calidad de la preparación de cara a la prueba final de evaluación. También la falta de sintonía en cuanto a los contenidos impartidos complicaba aún más la situación. Sin embargo, vista la diferencia de calidad en la enseñanza impartida en las diferentes compañías, acudir a las clases

de la Berufsschule ha tenido a lo largo de todos estos años un valor significativo y positivo para los aprendices.

Un elemento fundamental del sistema es la figura del tutor de empresa, ya que se encarga de transmitir las habilidades y conocimientos recogidos en la programación, dirigiendo a los aprendices en la realización correcta de sus actividades e instruyéndolos en la práctica. Asimismo les adiestra en las medidas de seguridad en el trabajo, observando siempre el cumplimiento del plan de formación en cuanto a los tiempos y a los contenidos transmitidos. Igualmente evalúa con frecuencia a los aprendices, manteniendo para ello entrevistas personales (CRAMER; SCHMIDT; WITTWER, 2004).

El tutor está obligado a respetar las disposiciones jurídicas correspondientes, en todo lo referente a la legislación laboral y a los convenios de empresa.

El éxito del sistema dual viene dado por las exigencias de cualificación que ha de cumplir dicho tutor. Se le requiere haber realizado los estudios de formación profesional en la especialidad correspondiente y tener bastantes años de experiencia profesional así como pericia en el trato con jóvenes. Para ello ha de superar una prueba de capacitación profesional y de capacitación pedagógica que se divide en dos partes: un examen escrito y una prueba práctica; dicha prueba abarca el desarrollo de una unidad didáctica y una entrevista de evaluación, siendo las cámaras las encargadas de formar el tribunal o comisión de evaluación correspondiente. El aspirante que haya superado el examen recibe un certificado en el que consta que está capacitado profesional y pedagógicamente para el desarrollo de dichas tareas, teniendo que cumplir además con la normativa recogida en el reglamento de capacitación de tutores (BUNDESGESETZBLATT, 2009) que está referida a tutores de empresas industriales, de la minería, de la agricultura, de la economía doméstica y del servicio público.

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La capacitación profesional y pedagógica necesaria para ser tutor abarca el aprendizaje de una serie de contenidos; concretamente se les exige tener conocimiento sobre las bases de la formación en la empresa, su marco jurídico así como los requerimientos exigibles tanto a los aprendices como a ellos mismos, los tutores. En cuanto al ámbito de la planificación y organización de los estudios, se les instruye acerca de cuáles son las condiciones que ha de cumplir una empresa, cómo se ha de organizar la instrucción, las vías de coordinación con la Berufsschule y cómo se debe aplicar el sistema de evaluación.

Otros contenidos importantes que tienen que aprender son aquellos relacionados con la selección y contratación de aprendices, la formación en el puesto de trabajo y el desarrollo de las cualificaciones y competencias. Por ello, se les adiestra en la selección de los puestos de trabajo donde se va a desarrollar la instrucción así como en la preparación de las tareas a realizar y en su organización. También se trabaja el desarrollo de las competencias básicas, los controles de los resultados en el aprendizaje, la aplicación de entrevistas de valoración, así como todo lo relacionado con las pruebas de evaluación. Es evidente que no se descuida el ámbito de la metodología didáctica, especialmente lo relacionado con el aprendizaje colaborativo en grupo.

Otro factor muy influyente en el éxito del sistema dual es el control y la exigencia en el cumplimiento de las normas; esta función la desarrollan los asesores de formación profesional que pueden depender tanto de las cámaras de comercio e industria como de las cámaras del artesanado. Estos son los encargados de determinar si la ubicación de la formación es adecuada examinando las condiciones de los talleres, la relación entre el número de puestos de aprendizaje y el número de tutores empleados en la empresa así como supervisando la capacitación personal y académica de los tutores. También se encargan de aclarar a los aprendices cualquier duda relacionada con sus derechos y deberes contractuales además

de supervisar el cumplimiento del reglamento de formación y del plan de formación de la empresa. Igualmente los asesores de las cámaras empresariales comprueban que los aprendices no sean ocupados con trabajos ajenos a la formación e incluso verifican que estos puedan asistir a la Berufsschule y a las medidas complementarias organizadas en los centros de formación supraempresarial. Por último, controlan que, en caso de incumplimiento del contrato por parte de la empresa, se le abonen al aprendiz las indemnizaciones pertinentes.

Otro elemento decisivo en el progreso del sistema dual a lo largo de estos años ha sido el contrato de aprendizaje, por las características y elementos que en él se contienen. No existe acuerdo entre los especialistas acerca de la naturaleza del contrato de aprendizaje. Para la Ley Federal de Formación Profesional (2005) se trata de una relación contractual especial, debido a que se basa en una relación de enseñanza-aprendizaje. Dicha ley establece unos contenidos mínimos que tienen que estar recogidos en el contrato. Para ello existen unos formularios en las cámaras empresariales que se han de cumplimentar totalmente, teniendo que ser firmado por ambas partes y ser inscrito en el registro de la cámara. Con ello se obtiene la seguridad de que se cumplan todas las disposiciones legales mínimas, permitiendo así cualquier comprobación de lo establecido y evitando cualquier dificultad de interpretación en lo acordado. En el contrato se indica el tipo de instrucción y la organización de los contenidos, especificando además para qué actividad profesional se está siendo formado. Asimismo en él se señala la fecha de comienzo y fin, las medidas de formación fuera de la empresa, la duración regular diaria y el pago y nivel de retribución que va a recibir el aprendiz. En relación a este último aspecto, existen notables diferencias entre sectores profesionales, pudiendo variar entre 269 y 968 euros la cantidad que se puede percibir (BEICHT, 2012). La cantidad media que se les abonó a los aprendices en toda Alemania

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durante el año 2012 fue de 730 euros, siendo la media para la antigua Alemania del Este de 674 euros y de 737 euros para la antigua Alemania Occidental. Ha habido un incremento porcentual de 4,1% con respecto al año 2011. Durante la última década las diferencias de remuneración entre los antiguos y los nuevos Länder para una misma profesión han ido disminuyendo, llegando incluso en algunas de ellas a desaparecer, tal como ha pasado en la de panadero donde un aprendiz cobra 500 euros independientemente del lugar donde resida. Sin embargo, las desigualdades entre unas profesiones y otras son evidentes: un aprendiz de albañil recibe 968 euros mensuales mientras un peluquero se embolsa sólo 454 euros. Normalmente en las actividades relacionadas con la industria, el comercio y el sector público se percibe más que en aquellas que pertenecen al ámbito del artesanado.

Según el último informe publicado por el Instituto Federal de Formación Profesional (BIBB, 2012), el número de nuevos contratos firmados en el período comprendido entre el uno de octubre de 2010 y el treinta de septiembre de 2011 ascendió a 570.140, un 1,8% más que en el periodo anterior, esto es, alrededor de diez mil contratos más. En la actualidad hay 1.508.328 alumnos que se instruyen en el sistema dual alemán.

Muchos aprendices son contratados por la empresa una vez terminan la formación. Por lo general un 80% de los aprendices suelen ser contratados por la misma compañía, mientras que el 20% restante se divide entre los que no superan la prueba de evaluación, los que continúan realizando estudios superiores y los que se deciden a cambiar de empresa. Por tanto, este factor hace que muchos jóvenes se decanten por el sistema dual, dadas las grandes oportunidades de empleo que tienen en cuanto acaban sus estudios.

Conclusiones

El sistema dual de formación profesional alemán es un modelo que está comenzando a

ser exportado a otros países, porque responde adecuadamente a las exigencias del entorno económico y posibilita así la incorporación del alumnado al mercado de trabajo. Además, dicho sistema de formación supera a aquellos otros de carácter netamente escolar por favorecer una mejor adecuación de las cualificaciones profesionales a las necesidades de la producción como también una fácil y rápida adaptación a los cambios tecnológicos que se dan en el mundo laboral; en este sentido, es necesario indicar que los gobiernos de aquellos países que no disponen de un sistema dual tienen que hacer una inversión notable en los recursos tecnológicos que son necesario en cualquier centro de formación profesional mientras que en el modelo dual la inversión en tecnología la hace la propia empresa, siendo rentable porque pueden recuperar los gastos realizados a través de la producción vendida.

Cualquier país que quisiera adoptar el modelo alemán, y especialmente aquellos que tienen formas de gobierno descentralizadoras, deben de tener en cuenta una característica esencial del mismo; su sistema de FP tiene un marco unitario a nivel federal, a pesar de que Alemania es un país compuesto por dieciséis Länder. Esto se consiguió gracias al consenso político. De esta manera, tanto los reglamentos de formación como el diseño marco de los planes de enseñanza se trabajan siempre de forma paralela entre el Gobierno Federal, los interlocutores sociales y la Conferencia de Ministros de Educación de los Länder, haciendo concertar entre ellos cada uno de sus puntos. Por tanto, en los países con políticas de gestión descentralizadoras difícilmente se puede conseguir un marco unitario en este ámbito, si no hay consenso político entre las distintas administraciones y entre los interlocutores sociales.

Otro elemento clave en el éxito del sistema lo constituye el papel desarrollado por la Berufsschule, ya que esta institución proporciona al alumnado una capacitación profesional extraordinaria, ya que une competencias profesionales con capacidades básicas de índole

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personal y social, sirviendo así de complemento a la formación impartida en el mundo empresarial. Cultivar competencias básicas de índole personal y social tales como la autonomía individual o la toma de decisiones son fundamentales para cualquier trabajador que quiera tener éxito en el mundo laboral; de ahí que la labor desarrollada por la Berufsschule sea un referente a tener en cuenta en este ámbito. Asimismo, este modelo posibilita además que durante la instrucción impartida en las empresas el aprendiz pueda desarrollar los comportamientos y los rasgos de personalidad propios para el ejercicio de una actividad profesional. De esta forma, la firma puede conocer mejor al aprendiz, reduciendo así el riesgo de realizar un reclutamiento equivocado de los futuros trabajadores, y consiguiendo además que dicho aprendiz se identifique fuertemente con su empresa. Este conjunto de razones hace que el modelo dual aventaje a aquellos otros sistemas escolares de formación profesional. Sin embargo, también hay que destacar como la gestión de una Berufsschule puede verse afectada negativamente por los vaivenes en el mercado laboral. La disminución del número de empresas que forman a aprendices puede afectar no sólo a la cantidad de alumnos que acuden a la Berufsschule sino al presupuesto que reciben como al número de horas de docencia, lo que se traduce en una pérdida de profesores.

Por otro lado, aquellos países, cuyo tejido empresarial se sustenta en las pequeñas y medianas empresas, pueden ver como en Alemania

los centros de formación supraempresariales son una pieza clave en el sistema, porque posibilitan que las compañías pequeñas que no disponen del instrumental necesario puedan también instruir a los aprendices. Por tanto, la adopción del modelo dual puede ser realizada por países con una economía basada en la pequeña y mediana empresa, siempre y cuando se creen también este tipo de instituciones, que actuarán como complemento a la formación impartida en las compañías.

Finalmente, podemos afirmar que para la exportación del modelo dual a otros países han de ser incluidos otros tres elementos. El primero es el control en el cumplimiento de las normas, puesto que sin supervisión no se podría garantizar la calidad de la formación impartida en la empresa. El segundo viene dado por el riguroso proceso de evaluación de los aprendices mientras que el tercero, que es la piedra angular del sistema, se basa en la exigente cualificación que han de tener los tutores de empresa. Así pues, estos están obligados a superar una prueba de capacitación profesional y pedagógica. Probablemente este sea el gran reto para cualquier país que desee implantar el modelo dual.

Todo ello hace que la FP alemana obtenga muy buenos resultados, ya que las empresas contratan al 80%de los aprendices, posibilitándoles así la inserción con éxito en el mundo laboral, siendo ésta la principal finalidad de cualquier sistema de formación profesional.

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Recebido en: 26.07.2013.

Aprobado en: 07.03.2014.

Jesús A. Alemán Falcón es doctor en educación por la Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), profesor del Departamento de Educación de la Universidad de Las Palmas de Gran Canaria y miembro del Grupo de Investigación sobre Desarrollo Organizativo y Profesional.

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Empresa HD, aluno monitor: a Microsoft e a construção da crença nas tecnologias

Michelle PrazeresI

Resumo

Existe um consenso de que as tecnologias digitais podem incidir na melhoria da qualidade da educação. Articulado por múltiplos campos sociais interessados na relação entre educação e tecnologias, um universo simbólico de valores (em geral, positivos) relacionados aos aparatos digitais se converte em repertório que consagra esse consenso e o transforma em uma espécie de mito, uma crença. Esse mito circula por diversos espaços sociais, formando uma ambiência favorável às tecnologias, que envolve o campo educacional (em inter-relação com outros campos sociais) e pressiona a escola pela modernização a partir da adesão às tecnologias. Este artigo tem como objetivo promover uma reflexão acerca da contribuição do campo empresarial para a conformação dessa ambiência favorável à modernização, a partir da análise do repertório produzido e difundido pela multinacional Microsoft acerca do uso das tecnologias na educação. Esse repertório está registrado em relatórios corporativos que foram analisados para entender de que modo representam: (1) o impacto das tecnologias na educação; o modo como a educação adere às (2) tendências tecnológicas; e (3) os efeitos e potenciais das linguagens tecnológicas em espaços educativos. Entende-se que a empresa pretende ter uma ação totalizante relacionada à educação, prescrevendo o uso das tecnologias em materiais institucionais, incidindo na mídia e na universidade e atuando em parceria com governos para a adoção de seus equipamentos, produtos e programas. Com base nos relatórios institucionais, investiga-se o corpo simbólico produzido pela Microsoft, que integra e reforça uma rede em prol das tecnologias, composta também por outros campos sociais interessados na modernização da educação, a exemplo do poder público, da mídia e da universidade.

Palavras-chave

Educação – Tecnologias – Socialização – Cibercultura – Microsoft

I- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.Contato: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022015041662

528 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 527-542, abr./jun. 2015.

HD company, monitor student: Microsoft and the construction of belief in technologies

Michelle PrazeresI

Abstract

There is a consensus that digital technologies are able to positively change the quality of education. Through the articulation of multiple social fields interested in the relationship between education and technologies, a symbolic universe of (usually positive) values related to digital devices is converted into a repertoire which enshrines this consensus and turns it into a kind of myth, a belief. This myth is spread over several social spaces and it shapes a favorable environment for technologies, which involves the field of education (in an interrelation with other social fields) and puts pressure on schools for modernization through the adoption of technologies. This article aims to reflect on the contribution of the corporate field for the shaping of this favorable environment for modernization, based on the analysis of the repertoire created and disseminated by Microsoft regarding the use of technologies in education. This repertoire is registered in corporate reports, which have been analyzed in order to understand how they represent (1) the impact of technologies on education; the way education embraces (2) technological trends; and (3) the effects and potential of technological languages in education spaces. It is understood that the company intends to have an all-encompassing action towards education, prescribing the use of technologies in institutional material, focusing on the media and universities, and working in partnership with the government for the adoption of their equipment, products and software. Based on institutional reports, we examine the symbolic material produced by Microsoft, with comprises and strengthens a network in favor of technologies, also formed by other social fields interested in modernizing education, such as the government, the media and universities.

Keywords

Education – Technologies – Socialization – Cyberculture – Microsoft

I- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.Contact: [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022015041662

529Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 527-542, abr./jun. 2015.

Introdução

Existe um consenso de que as tecnologias digitais podem incidir na melhoria da qualidade da educação. Articulado por múltiplos campos sociais interessados na relação entre educação e tecnologias, um universo simbólico de valores relacionados aos aparatos digitais se converte em repertório que consagra esse consenso e o transforma em uma espécie de mito, uma crença. Este mito circula por diversos espaços sociais, formando uma ambiência favorável às tecnologias, que envolve o campo educacional e pressiona a escola pela modernização a partir da adesão às tecnologias nos processos educativos. Tal pressão se dá sob a forma de projetos específicos e também de políticas públicas, que respondem ao coro pela modernização, levando equipamentos, programas e um modelo mental tecnológico para alunos, professores e escolas. A crença nas tecnologias está instalada no coração da sociedade contemporânea de tal forma que (1) pode ser entendida como uma cultura que atravessa as demais – a cibercultura; e (2) é difícil e rara a contestação de suas engrenagens, valores e esquemas estruturantes.

Partindo do entendimento de que existem diversos campos interessados na relação entre educação e tecnologias e que esse interesse compartilhado contribui para a dinâmica de construção de um repertório comum que tende a valorizar o uso das tecnologias em processos educativos, este artigo analisa como a empresa de tecnologia Microsoft constrói, publica e dissemina um discurso a respeito da necessidade e positividade das tecnologias na educação.

Cabe informar que este estudo está relacionado a uma investigação mais ampla, que busca entender a complexidade de um fenômeno que se nomeou de moderna socialização escolar, que diz respeito à introdução contínua das tecnologias nas escolas, a partir da construção silenciosa e velada da crença em suas potencialidades e realizações. Integra, assim, um mapeamento amplo de representações a respeito da moderna

socialização escolar, a partir da análise de documentos representativos dos repertórios de campos sociais interessados na modernização da educação via tecnologias, como poder público, mídia, empresas e universidade1.

Tal mapeamento foi construído a par-tir da análise minuciosa de documentos re-lacionados a esses campos e sua atuação no estado de São Paulo. A seleção da amostra e do procedimento de análise foi um trabalho artesanal. Sabia-se que não se desejava rea-lizar uma análise de discurso clássica, pois se pretendia mapear elementos discursivos, re-presentações subjetivas e valores neles conti-dos. O método escolhido foi o que se chamou de olhar relacional: ou seja, um exercício te-órico-metodológico de promover um encontro entre os documentos, as hipóteses e objetivos da pesquisa, em permanente diálogo.

Em relação aos relatórios da Microsoft, o primeiro passo consistiu na sua leitura. Nessa etapa, buscou-se listar ideias e categorias-chave presentes nos documentos como, por exemplo, avaliação, gestão, transformação/impacto nas vidas dos sujeitos, aprendizagens, práticas, acesso etc. Chegou-se assim a um primeiro mapa das representações acerca das tecnologias em contextos educacionais.

Em uma segunda leitura para validar tais ideias, deu-se a tomada de consciência de que elas poderiam ser agrupadas em três categorias básicas – impacto, tendências e linguagem2. Definidas tais categorias, a atenção voltou-se novamente aos documentos para a execução do processo final de classificação.

Ao construir e optar por esse método, o esforço seguinte foi o de buscar nos documen-tos os aspectos centrais, evidentes ou prepon-derantes em cada texto para classificá-los sem deixar de registrar quando um deles representa-va mais de uma ideia básica ou categoria. Desse modo, acredita-se ter detectado as sinergias e 1- Para maiores informações, confira o trabalho de Prazeres (2013).2- A categoria 1 se refere à tecnologia como elemento transformador da realidade da educação e das pessoas; a categoria 2 relaciona o uso da tecnologia ao avanço, ao desenvolvimento e ao futuro; e a categoria 3 trata da tecnologia enquanto expressão de época ou geração.

530530 Michelle PRAZERES. Empresa HD, aluno monitor: a Microsoft...

divergências no tratamento de cada eixo insti-tucional de cada um dos temas em questão.

A escolha pelos documentos de poder público, mídia, empresas e universidade não foi fortuita. Ela obedeceu a uma evidência empírica. Em primeiro lugar, todos podem ser considerados como campos de atuação: espaços estruturados em que agentes e instituições travam lutas a partir de suas posições e das relações dinâmicas que estabelecem entre si (BOURDIEU, 2004a, 2004b, 2010).

Em segundo lugar, cada campo é composto por agentes, instituições, valores e regras. Os agentes e as instituições desses campos se organizam em redes que notadamente produzem e difundem valores, bem como se posicionam quando o assunto é a modernização da educação.

O complexo emaranhado de agentes e instituições envolvidos no processo de valorização, adoção e uso de mídias e tecnologias nas escolas inclui alunos, professores, gestores, pais, consultores, técnicos, políticos, entre outros; escolas públicas e privadas, diretorias regionais, organizações da sociedade civil, empresas, prefeituras, governos estaduais e o federal. Juntos, e se relacionando, esses agentes e instituições conformam uma rede que parece extrapolar os muros da escola e as fronteiras do campo educacional. Ainda que a moderna socialização escolar se traduza, na prática, em ações via tecnologias – na e para a escola –, entende-se que é a complexidade dessa trama que gesta o multidimensional processo de construção de um consenso que a consagra e a promove. Portanto, essa rede carece de estudo e desvelamento.

Como questão de fundo, busca-se com-preender a relação entre o campo educacional e as tecnologias, entendidas simultaneamente como “instituição, linguagem, estética, forma-to industrial e epistemologia que contém uma lógica de produção, distribuição e consumo” (OROZCO GÓMEZ, 2001). Tal entendimento compreende a cibercultura enquanto ambiên-cia ampla, que ocupa posição central em nossa

sociedade. Não se trata da cultura das mídias apenas em ato de conexão ou simplesmente da cultura inerente à internet ou às conexões em rede, mas da cultura de um tempo, do espírito de uma época (TRIVINHO, 2007), da ambiência da contemporaneidade, do sensorium (BENJAMIN, 1996); ou ainda: de um entorno (MARTÍN-BARBERO, 2007), tão presente para os indiví-duos na contemporaneidade quanto o natural e o social. Trata-se de uma cultura que atravessa a vida do indivíduo hoje, capaz de perpassar a existência humana e as demais culturas e ma-trizes culturais de modo determinante.

Nesse sentido, o conceito de cibercultura é entendido tanto como o arranjo material, simbólico e imaginário contemporâneo quanto como os processos sociais internos (estruturais e conjunturais) que lhe dão sustentação (TRIVINHO, 2007, p. 59). Ou seja, está presente nos indivíduos, nas instituições e no modus operandi contemporâneos; e, ainda que encontre suporte em suas estruturas materiais, extrapola-as, estabelecendo-se como presença no âmbito da psique, mesmo na ausência de suas ferramentas e representantes institucionais. Em sua tendência totalizante, essa cultura possui modos próprios de funcionamento e valores, entre eles, os da inovação tecnológica (CAZELOTO, 2005), da inclusão (digital), da velocidade, da eficiência, da interatividade, da conectividade, da mobilidade, da visibilidade, da flexibilidade, do desejo por mudança, do progresso, da transformação e do lúdico.

Vale acrescentar que tais valores estão constantemente associados a uma ideia de progresso, à qual estamos suscetíveis por se tratar, inevitavelmente, de algo positivo. Por sua vez, esse progresso remete ao novo, como se esse novo se constituísse apenas de coisas boas. Portanto, a modernização só encerraria bons aspectos, o que explica o fato de sua noção estar constantemente acompanhada de sentidos de desenvolvimento e de caminhos que conduzem ao ápice.

Assim, a cibercultura está associada a uma lógica utópica: a uma – assim chamada –

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revolução que o mundo tecnológico poderia tra-zer para as vidas cotidianas dos indivíduos. E, claro, igualmente, para os ambientes educativos. Pode-se afirmar que os valores relacionados a essa cultura constituem um “novo modo de ser” que mitifica a tecnologia, transformando-a em uma crença ideológica (SETTON, 2011). Parte-se do pressuposto de que essa crença marca a con-dição contemporânea do campo da educação, que – obrigado a seguir e acompanhar o ritmo de um novo tempo – vê-se constrangido a aderir a demandas de outros campos para não perder o bonde da história.

Mapeando a ação da Microsoft na educação

Compreendendo a cibercultura enquanto ambiência e considerando os campos interessa-dos na moderna socialização escolar, destaca--se neste artigo a ação do campo empresarial, representado pela multinacional Microsoft. Busca-se compreender como a empresa repre-senta a moderna socialização escolar, pois vei-cula valores empresariais, contribuindo (1) para a conformação da orquestração de sentidos favorável à modernização; e (2) para a adesão a programas que transmutam essa crença em políticas educacionais de uso de tecnologias. A análise concentra-se no Programa Aluno Monitor, ação da empresa que se considera um dos expoentes desse processo.

Cabe ressaltar que a escolha da empresa Microsoft como expoente do campo empresarial não se deu ao acaso. Além de ser uma das maiores empresas do mercado tecnológico do mundo, a Microsoft desenvolve uma ação que pretende ser totalizante no que diz respeito à moderna socialização escolar, atuando em múltiplas frentes, que cumprem o papel de reforçar o ideário da empresa em diferentes campos sociais. Se o processo de socialização dos indivíduos se dá a partir da “articulação entre matrizes de sentido responsáveis pela formação de sujeitos sociais singulares” (SETTON, 2009), uma ideia ou valor presente em

múltiplas instâncias ou espaços de socialização pode ter um maior potencial de adesão por parte dos indivíduos.

Para construir o mapa de representações da Microsoft acerca da moderna socialização escolar, foram analisados os Relatórios de cida-dania corporativa da empresa, publicados entre os anos de 2004 e 20113. Os documentos foram analisados com base nas três categorias: 1. impacto; 2. tendências; e 3. linguagem.

O título deste artigo faz uma alusão a dois componentes de um computador. É uma licença poética que tem como intenção sensibilizar o leitor para uma inquietação: o Hard disk (HD) ou disco rígido é a parte do computador responsável pelo armazenamento de dados, a sua memória; já o monitor é a tela do computador, em que é possível visualizar a interface da máquina, responsável por conduzir as informações a seus usuários. O jogo de palavras contém uma questão: seriam os alunos do Programa Aluno Monitor da Microsoft condutores de informação? Seria a empresa a mantenedora de um repertório lógico, criadora, produtora e divulgadora do conhecimento nas atividades previstas no programa? Esta é uma das provocações que move este artigo.

Os relatórios são documentos institucionais que apresentam números e casos que a empresa considera de sucesso na utilização dos seus produtos e soluções em escolas, tanto no âmbito das práticas pedagógicas quanto no âmbito da gestão. Voltados para funcionários, apoiadores, financiadores e para o público em geral, e organizados como forma de prestação de contas à sociedade da ação de seus braços sociais, os relatórios obedecem a uma lógica de construção: (1) seus títulos representam leituras sintéticas da empresa sobre a realidade, a conjuntura nacional e o contexto do Brasil no período em que o documento foi publicado; e (2) seus conteúdos são elaborados

3 - O período foi escolhido porque, em 2004, o Programa Aluno Monitor foi criado e em 2011 foi analisado o último relatório da empresa, posto que se fez necessário o fechamento da amostra de pesquisa. No entanto, o projeto continua em vigência.

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explorando resultados numéricos, mas também buscando personagens e histórias que possam conferir concretude e realidade àqueles números e cifras. Dessa forma, os documentos se constituem em preciosas fontes acerca do repertório da empresa a respeito da moderna socialização escolar.

Tabela 1 – Títulos dos relatórios anuais da Microsoft.

Ano Título do relatório Título da apresentação do presidente

2004 Compromisso com o Brasil Inclusão social: uma meta possível

2005 Seu potencial, nossa inspiração

Potenciais, inspirações e realizações

2006 Seu potencial, nossa inspiração Microsoft Brasil: cidadania global

2007 Potencial ilimitado Tecnologia para a inovação

2008 Microsoft Brasil 20 anos Compromisso com a inovação

2009 20 Somar para multiplicar

2010 A gente inova, você transforma

Protagonistas de um futuro sem pobreza

2011 Todos os dias perto de você

Mais do que nunca, comprometidos com a América Latina

Fonte: Elaboração da autora.

A tabela 1 apresenta os títulos dos relatórios e das mensagens dos presidentes contidas em cada anuário. Supõe-se que o título geral (que consta na capa) apresenta valores mais relacionados à missão da empresa e que a mensagem do presidente carrega, por sua vez, aspectos mais relacionados à questão social e de responsabilidade corporativa e cidadania.

Nos títulos dos documentos, as mensagens parecem ser mais corporativas ou relacionadas à trajetória da empresa, ao mercado ou à questão econômica. É possível visualizar valores como: o compromisso da empresa com o Brasil; o potencial do país como motor para as ações da empresa (a palavra potencial é mencionada em três títulos); mensagens mais institucionais, como as duas que celebram os vinte anos da empresa; bem como valores relacionados ao universo simbólico cibercultural, como inovação, transformação e conectividade (proximidade).

Já nos títulos das mensagens dos presidentes, ficam evidentes questões de cunho mais social, como inclusão, cidadania, protagonismo e futuro sem pobreza. Parece que o papel destas mensagens é justamente o de conectar a mensagem empresarial à de ação social. Os títulos parecem buscar equilibrar os valores de cidadania e ações filantrópicas aos valores econômicos e mercadológicos, usando também expressões como potencial, realizações, inovação etc. Um elemento relevante nos títulos das mensagens dos presidentes é o caráter internacional das ações da empresa. Em expressões como global, isso fica evidente, e também quando se fala em compromisso com a América Latina.

Uma ação totalizante

Os relatórios corporativos da Microsoft parecem indicar que a ação da empresa em matéria de educação se pretende totalizante, na medida em que abrange várias dimensões, caracterizando uma ação socializadora complexa e inexorável.

A análise do material mostrou que a Microsoft é uma instituição do campo empresarial das comunicações e tecnologias que (1) investe em projetos educacionais com uso de seus recursos tecnológicos por meio de um braço social; (2) gera projetos em parceria com poderes públicos, incidindo em políticas públicas educacionais; (3) tem seu repertório divulgado pelo campo das mídias; e (4) lança mão de outras estratégias de visibilidade, como assessoria de imprensa e premiações. Por fim, a Microsoft (5) incide também no campo acadêmico, sendo objeto de estudo direto de teses, dissertações e artigos4. Neste campo, a empresa também desenvolve uma ação direta de fomento a pesquisas, por meio de seu Instituto

4- Em uma busca simples nos sites Domínio Público (<http://www.dominiopublico.gov.br>) e Banco de Teses da Capes (<http://www.capes.gov.br/servicos/banco-de-teses>), foram encontrados 571 estudos que continham, em suas palavras-chave, títulos ou resumos, o termo Microsoft.

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Microsoft Research - FAPESP de Pesquisas em Tecnologia da Informação5.

Além de estar presente de diversas formas em múltiplos campos, a Microsoft é um dos maiores expoentes da cultura tecnológica no mundo. Como se sabe, a formação para a cibercultura tem múltiplos aspectos e não se dá apenas via aparatos materiais, mas também diz respeito a um corpo simbólico e lógico. A incursão da empresa no setor educacional pode ser, portanto, uma de suas estratégias de ampliação de mercado.

No Brasil, a atuação da empresa na área da educação é vasta e se dá por meio de projetos e oferta de soluções destinadas à modernização da educação6. A ação nacional se divide em três âmbitos: educação superior, educação básica e produtos e soluções (de gestão). Na visão de inovação da empresa, a mudança na educação7 seria conquistada através de: (1) formação de educadores; (2) acesso à tecnologia para educadores e alunos; e (3) acesso à tecnologia para a instituição. A ação prática relacionada a esses pilares se dá de forma cruzada com a iniciativa Parceiros da Aprendizagem, cuja missão institucional seria “auxiliar alunos e educadores a alcançarem seu potencial pleno”.

Um texto de apresentação no website da empresa demonstra o que a iniciativa representa para a Microsoft: a possibilidade de incidir na educação e promover uma verdadeira revolução:

Parceiros na Aprendizagem é uma iniciativa mundial da Microsoft que visa disponibili-zar tecnologias e apoio pedagógico para o desenvolvimento do potencial pleno de ges-tores, educadores, estudantes e comunidade escolar. É um compromisso para melhorar

5- A iniciativa apoia “projetos de pesquisa em Tecnologias de Informação e Comunicações propostos por pesquisadores associados a universidades e institutos de pesquisa no Estado de São Paulo”. Para mais, veja-se: <http://www.fapesp.br/2820>. 6 - Informações do portal: <http://www.microsoft.com/brasil/educacao/default.mspx>.7- Baseado em apresentação da empresa na Semana de Educação 2011. Disponível em: <http://download.microsoft.com/download/B/F/F/BFF86CC6-8C6A-4C9C-B3FE-5A6B251D78FA/Semana_de_Educacao-Visao_de_Inovacao.pdf>.

a qualidade da educação e ampliar a inclu-são digital e social por meio dos recursos da tecnologia. [...] Os programas possibili-tam desde licenças mais acessíveis para uso dos softwares Microsoft em instituições de ensino, até o desenvolvimento de projetos inovadores que necessitam de apoio peda-gógico e tecnológico especializado para sua implementação, com o intuito de alcançar o maior número de professores e alunos. Várias escolas de vários países estão incor-porando estas novas possibilidades, já de-monstrando resultados surpreendentes no processo de ensino e aprendizagem, moven-do as esperanças de melhoria sociocultural para patamares nunca antes imaginados. (MICROSOFT, 2012).

O alcance do que a empresa qualifica como potencial pleno por parte de educadores, estudantes e escolas ou ambientes educativos estaria relacionado ao “uso das tecnologias para apoio ao desenvolvimento de competên-cias”. Para a multinacional, essa dimensão está diretamente vinculada à promoção de comuni-dades de aprendizagem e à expansão de práti-cas inovadoras.

Nos materiais de promoção e divulgação dos projetos, essas iniciativas e práticas peda-gógicas estão relacionadas a diversos valores da educação moderna. Os valores mais marcantes e reiteradamente publicados pela empresa são: inovação e mudança; e qualidade educacional e inclusão social. A primeira dupla de valores es-taria mais diretamente relacionada ao negócio da Microsoft: a tecnologia; enquanto a segunda dupla estaria mais vinculada ao principal setor de atuação do braço social da empresa: a edu-cação. Novamente aqui, é possível perceber a estratégia da empresa, visualizada nos títulos e noções mais presentes nos relatórios: seus do-cumentos constroem constantemente os laços entre uma ação mercadológica e o que seria a sua ação social.

Parte integrante dessa ação ampla, o Programa Aluno Monitor articula as ações

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empresarial e social da empresa e tem como objetivo formar “alunos para multiplicação das competências pedagógicas para o uso das tecnologias”. Essa informação pode auxiliar a compreender como se dão as articulações de sentidos e valores entre campos para a cons-trução de políticas modernizantes da educação. A iniciativa é desenvolvida em parceria com o poder público do estado de São Paulo (e outros 18 estados) e voltada para estudantes de ensino fundamental como o objetivo de:

[...] promover a formação em conceitos básicos de tecnologia, o gerenciamento do laboratório de informática das escolas e a multiplicação de conhecimentos para educadores e alunos. (MICROSOFT, s.d.)

Em termos práticos, o Programa Aluno Monitor é composto de um curso on-line de 140 horas de estudo, aplicado por instituições ou secretarias de educação. É composto por fases, que abrangem conhecimentos necessários para lidar tanto com as características físicas quanto com lógicas do computador: (1) primeiros passos; (2) conhecendo o computador; (3) sistemas operacionais; (4) redes; (5) manutenção de microcomputadores; e (6) programas de produtividade (orienta no uso dos programas mais populares da Microsoft, tais como Word, Excel e Power Point).

Dentro das estratégias educacionais da Microsoft no Brasil, o aluno monitor integra a iniciativa Parceiros da Aprendizagem, desenvolvida em conjunto com empresas e instituições que a Microsoft chama de Parceiros Técnicos de Cidadania, que seriam: a Universidade Estadual de Londrina (UEL), o Instituto Paramitas, as consultorias Digicad Informática e Educommatica – Educação, Comunicação e Informática, a Fundação Bradesco, o Instituto Crescer para a Cidadania, o MSTech, o Planeta Educação e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Em seu site, a empresa divulga resultados do programa, como estratégia de reforço de

sua legitimidade e de visibilidade aos projetos educacionais. No espaço virtual, afirma que está:

[...] “transformando a educação em ci-fras” e publica que a iniciativa Parceiros da Aprendizagem pode ser representada pelos seguintes números: 2 milhões de professores capacitados; 70 milhões de estudantes bene-ficiados; 252 mil professores registrados na Rede de Professores Inovadores; e US$ 30 milhões investidos. (MICROSOFT, s/d).

No Relatório de impactos na sociedade ,publicado pela empresa no ano de 2010, e disponível em seu site (MICROSOFT, 2010), a empresa cita dados do estudo Auxílio para a recuperação: o impacto econômico de TI, software e do ecossistema da Microsoft na economia, realizado pela consultoria International Data Corporation (IDC) em outubro/2009. Os números dão conta de que a Microsoft Brasil lidera uma cadeia de valor (que chama de ecossistema de parceiros), formada por 18 mil empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação. Esse universo gerou mais de R$ 31 bilhões em receita em 2009; cada real gerado pela Microsoft Brasil rende outros 12,17 reais para o ecossistema de parceiros; esse ecossistema emprega 230 mil pessoas e outros 418 mil profissionais trabalham com softwares ou produtos com tecnologia Microsoft.

Note-se que, até o ano de 2010, os relatórios eram chamamos de Relatórios de cidadania corporativa ou, ainda, de Relatórios de responsabilidade social. No ano de 2010, a nomenclatura mudou e a empresa passou a utilizar o termo Impacto no título dos documentos. A nosso ver, esta alteração não se dá de forma neutra. Existe, de fato, uma busca por promover transformações grandiosas, rupturas, uma verdadeira revolução na educação a partir das tecnologias, princípio conforme a cibercultura é entendida enquanto cultura de época.

A noção de ecossistema utilizada pela empresa no documento de 2010 é outro elemento de repertório que está em sinergia com

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a cibercultura e com o processo da moderna socialização escolar, entendido como a construção de uma ambiência favorável à modernização da educação via tecnologias. O termo pode ajudar a compreender a ação em rede para a construção do repertório compartilhado acerca da inovação tecnológica que buscamos mapear neste estudo. Trata-se da construção de um entorno positivo, que reforça também o argumento de que a ação da Microsoft no setor educacional pretende ser multidimensional e totalizante.

Impacto: a Microsoft transformando a vida dos jovens

Os relatórios representam a voz e os valores institucionais da Microsoft e divulgam a posição fundamental da empresa. Além de expressar tais valores a partir de mensagens institucionais próprias, a empresa convida alguns agentes e instituições externas para oferecer depoimentos relacionados à sua ação em textos cujos formatos se aproximam do jornalístico. Tais agentes são personagens, ao contar histórias de vida; ou especialistas, que oferecem suas palavras com o intuito de legitimar a posição da empresa acerca de um determinado aspecto de sua ação.

Considerando a voz da empresa e também as vozes convidadas a falar a respeito da sua ação, o ordenamento das informações mostra que o impacto das tecnologias na vida das pessoas e em processos sociais é o principal tema abordado pelos relatórios.

A empresa tem interesse na legitimidade de suas iniciativas, com ênfase na transformação da vida das pessoas envolvidas no processo de modernização, sejam elas educadores, alunos ou gestores. Essa visão pode estar relacionada a certo tipo de socialização escolar na contemporaneidade. Nesse caso, uma socialização marcada pelos valores da cibercultura. Em alguns trechos dos documentos, a Microsoft explicita declaradamente o desejo de marcar essa socialização por meio da inclusão digital:

O Programa Aluno Monitor é realizado em parceria com prefeituras e governos estaduais. Por meio de um curso de 140 horas, alunos dos ensinos fundamental e médio recebem noções básicas de Tecnologia da Informação que podem contribuir para a inserção dos estudantes no mercado de trabalho. Cerca de 31 mil participaram do programa em 2009. A ação promove a inclusão digital e a socialização dos jovens. (MICROSOFT BRASIL, 2009, p. 22).

Ainda que o termo seja usado pela própria empresa como sinônimo de formação social ou formação educacional dos jovens, cabe uma incursão pelo modo como se entende socialização neste estudo. Trata-se de um processo contínuo de transmissão e legitimação cultural (BERGER; LUCKMANN, 1983). Aqui, além dessa acepção mais ampla, a noção de cultura adquire o significado trabalhado por Bourdieu (2008; 2009), de práticas culturais que tecem relações sociais e mantêm formas simbólicas em contextos ao mesmo tempo estruturados, estruturantes e dinâmicos.

Portanto, socializar-se seria a capacidade sistemática ou difusa de estabelecer uma visão de mundo por meio de processos formais ou in-formais, intencionais ou dissimulados de apren-dizado. Ou seja, um processo que, ainda que pareça desinteressado, não o é . Nesse sentido, não se trata de um processo harmonioso, mas de um constante jogo de forças, tensões e re-sistências. Numa palavra: de negociação entre indivíduos e matrizes de socialização, sendo as matrizes os corpos materiais e simbólicos que produzem, transmitem e legitimam os valores e as visões de mundo que circulam nos processos socializadores. Vale ressaltar que a negociação promovida pelo indivíduo em relação aos con-teúdos e formatos das mensagens socializado-ras não é necessariamente uma postura crítica em relação a estes. O produto da negociação é, antes de tudo, um entendimento daquela men-sagem promovido pelo indivíduo a partir do seu estoque de conhecimento (MATTELART, 2000),

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podendo originar uma relação de harmonia ou tensão com aquela mensagem. Ou seja, ao ne-gociar, o indivíduo confere um sentido à men-sagem, a partir do que Martín-Barbero (2007) chama de mediações.

Além de ser um processo de negociação de sentidos, toda socialização é marcada pela relação entre as diversas matrizes com as quais o indivíduo estabelece relações. Estas matrizes estão em inter-relação constante, sendo que o produto dessa relação permanente constitui uma trama de sentidos, uma configuração (SETTON, 2002). Entender a socialização como um processo de negociação permite que se rompa com a ideia de que as instituições socializadoras e seus agentes sejam antagônicos. Salienta-se assim a relação de interdependência das instâncias e dos agentes da socialização. Deste modo, concorda-se com Setton (2005): o processo de socialização contemporâneo possui uma particularidade a partir da emergência de novos modelos de socialização. A contemporaneidade diz respeito a uma configuração social e cultural altamente complexa, e um único olhar – para apenas uma ou outra matriz de socialização – não é capaz de oferecer uma compreensão adequada do processo em sua integridade.

A socialização e os processos de incor-poração estão marcados, na contemporaneida-de, pela inter-relação entre as diversas matrizes de cultura, entre elas, a escola, as empresas e a mídia. Como foi possível checar no relatório da Microsoft, a empresa se coloca como insti-tuição socializadora de jovens. E, de fato, o é. Em diversos trechos de diferentes documentos, é possível encontrar histórias de vida que sofre-ram rupturas após o contato com os aparatos e o conhecimento oferecidos pela empresa aos alunos através do Projeto Aluno Monitor:

Desde que participou do Aluno Monitor, um dos projetos do Parceiros na Aprendizagem, o estudante José Eduardo da Silva Alves mudou sua rotina na escola estadual que frequenta, em Guarabira, interior da

Paraíba. Eduardo, que tem 19 anos e cursa o 2º ano do ensino médio, ia à escola no período da tarde só para assistir às aulas. No resto do dia, jogava bola, dormia ou conversava com os amigos. Depois de tornar-se monitor, ele passa as manhãs e as noites no laboratório de informática da escola, ajudando colegas e professores. Vai à escola até nos finais de semana, para dar aulas de computação para pessoas da comunidade. O comportamento em sala de aula também é diferente. (MICROSOFT BRASIL, 2004. p. 16).

Nesse trecho do relatório de 2004, o alu-no, após o contato com as tecnologias, adquiriu responsabilidade e “se tornou mais assíduo e interessado”. Em outro relatório, o registro se dá do ponto de vista da escolha profissional:

Em 2009, o Programa Aluno Monitor deu a 31 mil jovens a oportunidade de ser monitor em escolas e telecentros. Jéssica Kathleen Chagas Barros fez parte desse time. Ex-aluna da Escola Estadual César Donato Calabrez, em Guaianases, São Paulo, ela conta que a monitoria foi decisiva para a escolha de sua profissão. “Nos cursos que fiz para atuar na sala de informática da escola, aprendi a mexer com edição de imagens e gostei”, explica. “Então me decidi pelo curso de publicidade e propaganda.” Hoje, ela cursa o primeiro ano dessa carreira nas Faculdades Metropolitanas Unidas. (MICROSOFT BRASIL, 2009. p. 23).

Ou seja, pode-se considerar que disposições foram apresentadas a esses alunos pela empresa, enquanto instância socializadora. Em negociação com esses conteúdos, estabeleceram-se configurações de sentido nesses indivíduos, cujos dispositivos foram acionados na tomada de decisão à escola e em relação à escolha profissional.

Percebe-se que o convite a depoentes para oferecerem seus pontos de vista nos

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relatórios é uma estratégia de reforço dos valores da empresa, que conta com personagens e especialistas para referendar a sua posição acerca da moderna socialização escolar e seu potencial de transformação.

Tendências: professor capacitado

No que diz respeito às tendências, estão em jogo para a Microsoft novos formatos de educação, modelos de gestão e a inovação na aprendizagem, que proporcionariam uma renovação para a escola, os professores e os alunos. Para a empresa, a escola seria modernizada, inovada e renovada pelas tecnologias e pelos ensinamentos que mestres e educandos passam a acessar por conta dos aparatos por ela oferecidos.

Essa escola renovada pelas tecnologias é retratada pela empresa como um espaço mais interessante, mais moderno e até mais diverti-do para os alunos; e apresentada como ponto de partida para a revolução que as tecnologias podem promover por meio da inclusão digital na educação. Essa inclusão é vista como fator--chave para o progresso de um Brasil que seria o motor da economia na América Latina.

Desse ponto de vista, se, por um lado, os alunos são protagonistas do impacto do trabalho da Microsoft, por outro, os professores são os personagens principais das tendências vislumbradas pela empresa. A capacitação de educadores e técnicos é afirmada e reforçada constantemente enquanto estratégia de construção da renovação da escola por meio de tecnologias. É possível verificar um exemplo no relatório de 2005, em que a Microsoft informa que:

[...] a expectativa [com a implementação do Projeto Aluno Monitor] é de que a capacitação de educadores e técnicos, além da formação de jovens estudantes, auxilie na apropriação efetiva das TICs e na multiplicação do conhecimento. (MICROSOFT BRASIL, 2005. p. 20).

A empresa explicita seu desejo de que as ferramentas – e sua lógica – sejam incorporadas pelos participantes de suas ações de formação. No relatório de 2010, a empresa explicita que “foram 36.493 educadores e 30.490 estudantes capacitados” (MICROSOFT BRASIL, 2010. p. 14). Os números estão presentes para comprovar a eficácia e a abrangência da ação; as parcerias com secretarias são mencionadas como forma de legitimação político-pedagógica da iniciativa; e, por fim, a noção de replicação deixa clara a intenção da empresa: a disseminação de seus recursos e lógicas operacionais, por meio da inclusão digital de alunos e professores.

Essa inclusão se daria quando o aluno e professor atingissem o que a empresa nomeia de potencial pleno. Para isso acontecer, os professores devem vencer uma suposta barreira que existe entre eles e seus alunos. A solução para superar esta lacuna estaria na inversão de papéis: nos projetos da empresa e nas escolas que deles participam, o aluno vira professor. Essa inversão está retratada no depoimento do aluno Helon da Rocha Gouveia Junior, que, no relatório de 2005, afirma que “a perspectiva de o aluno apoiar o professor no laboratório era pouco nítida [...] e com o programa, a barreira é derrubada” (MICROSOFT BRASIL, 2005, p. 25). A professora Kátia Cristina Botelho referenda a posição do estudante, no relatório de 2006: “Precisei muito da ajuda deles para utilizar os programas do Microsoft Office [...] eles estão se saindo ótimos professores” (MICROSOFT BRASIL, 2006, p. 19).

O debate a respeito do papel dos profes-sores com a modernização da educação não é recente. A academia nas áreas da comunicação e da educação se ocupa de fazer esta reflexão desde o paradigma das velhas mídias. Mas – as-sim como vimos que as novas mídias desfrutam de certo prestígio, enquanto as velhas mídias são historicamente vistas com maus olhos pela escola – percebe-se uma diferença de tratamen-to relacionada à capacitação dos professores para lidar com as tecnologias digitais. Em re-lação às velhas mídias, esse professor deveria

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desempenhar uma função de tutela; já em re-lação às novas mídias, sua posição seria a de filtro de informações e agente motivacional do aluno. Para isso, ele deve estar bem preparado para o uso consciente do potencial das tecno-logias (ALMEIDA; LOBATO; GHAZIRI, 2011) e, nesse sentido, intensificam-se as demandas por formação. Por isso, em relação às novas mídias, essa preparação recebe mais ênfase, dado que a visão parece ser de que essas seriam mais comple-xas do que as velhas mídias; e que os jovens alu-nos dominam a linguagem com mais facilidade e familiaridade do que os professores. Em alguns momentos, a transformação do sistema educacio-nal parece passar necessariamente pela transfor-mação do professor para a resolução de um im-passe instalado na educação (PRETTO, 1997).

De um modo ou de outro, o papel desse professor não é o de exercitar a crítica às tecnologias, mas, sim, de promover uma integração harmônica (OROZCO GÓMEZ, 1997) e criativa (OROZCO GÓMEZ, 2007) destas com a escola, servindo como elo de mediação dos possíveis conflitos entre a cultura escolar e a cultura digital. Ou seja, o papel desse professor é ciberalfabetizar. Esta ciberalfabetização, na visão da empresa, garantiria a professores e alunos um passaporte para os novos tempos. Por isso, mais do que incluir educadores e estudantes na era digital, a empresa deposita na inclusão digital a esperança de estender o que chama de poder digital – e os benefícios que tal poder traria – a todas as pessoas, para que elas mudem os rumos de suas vidas (MICROSOFT BRASIL, 2011).8

Linguagem: alunos e professores dromoaptos

Alunos e professores plenamente inclu-ídos e exercendo seu potencial máximo, para proporcionar uma verdadeira revolução. Para

8- Diferentemente dos demais que foram publicados em versão impressa, o relatório de 2011 foi publicado apenas na internet em versão hotsite para navegação. Disponível em: <http://www.microsoft.com/latam/responsabilidadsocial/2011/pt/educ/>.

a Microsoft, eles possuem mais em comum do que as salas de aula, os espaços da escola e os recursos e linguagens tecnológicas. Agora, eles desfrutam da mesma condição: o aluno é pro-fessor, e o professor é aluno. Todos estão juntos quando o assunto é a busca pelo poder digital.

A lógica que permeia os relatórios da empresa é a de que – de posse de uma linguagem específica informacional – os indivíduos passam a desfrutar de um tipo de poder, que os torna aptos a encarar os desafios de um mundo que é digital. Com sorte, eles se tornam até mais criativos e obstinados e, assim, as mudanças extrapolam o âmbito da educação e da escola. Por exemplo, no relatório de 2006, a inovação e a criatividade são ressaltadas enquanto valores da iniciativa Aluno Monitor:

As instituições que participam do programa se destacam com ações criativas e inovadoras. Em uma escola de Olinda (PE), por exemplo, esses jovens ajudaram a montar uma Biblioteca Virtual. (MICROSOFT BRASIL, 2006. p. 18).

Ao passar pelo Aluno Monitor e incorporar as linguagens prescritas pela empresa, uma educadora – ciberalfabetizada e, agora, ciberalfabetizadora – foi responsável pela implementação da biblioteca:

[...] além de se capacitar, a educadora fez questão de incorporar a tecnologia ao dia-a-dia da escola – conseguiu máquinas novas para o laboratório e criou, ao lado de professores e alunos, a Biblioteca Virtual, uma comunidade na Internet com o objetivo de abrigar trabalhos realizados por estudantes. (MICROSOFT BRASIL, 2006. p. 18).

Para a empresa, essa incorporação plena (de capacidade de manipular os recursos e também da lógica que eles abrigam, além da dimensão do poder digital) é fundamental. É esse processo o motor da disseminação a que

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a Microsoft se refere em seus documentos; e é essa condição que faz dos jovens soldados de um exército que vai formar novos alunos e professores nas habilidades e senhas específicas da empresa.

Os jovens que participam do projeto são nomeados Multiplicadores do Núcleo de Tecnologia Educacional (NTE). Um deles, Jairo Ribeiro, de 16 anos, tem sua história retratada no relatório de 2008:

Estudante do ensino médio, o adolescente participou do curso Aluno Monitor em sua escola, em Planaltina (DF) e passou a multiplicar o conhecimento como monitor de informática voluntário. (MICROSOFT BRASIL, 2008, p. 20)

A formação para a multiplicação dos valores da Microsoft é um complexo processo de socialização, que abrange: (1) recursos (computadores e softwares, por exemplo); (2) uma lógica específica de manipulação desses aparatos (navegação, organização e arquitetura de informação dos programas e projetos); (3) a dimensão do poder digital, valorizado tanto pela escola quanto pelo mercado de trabalho; e (4) a dinâmica proprietária dos equipamentos e programas.

Esse poder digital enfatizado pela empresa em seus documentos é considerado requisito para professores e alunos (1) transformarem suas vidas; (2) terem novas oportunidades; e, (3) em especial, para os alunos conquistarem postos desejados em um mercado de trabalho que cada vez mais exige habilidades tecnológicas. A esse poder, damos o nome de dromoaptidão. Trata-se: da “capacidade de sintonia com a velocidade estrutural das mudanças”; e do “domínio de determinados fatores de privilégio (...) as senhas infotécnicas de acesso à cibercultura” (TRIVINHO, 2007). Bourdieu (2008, p. 241) o chamaria de competência legítima.

O importante a se entender aqui é que a dromoaptidão – conjunto de capitais informacionais – é central na ação da Microsoft

e que a dinâmica de transmissão desse capital possui um aspecto de perversidade. Na medida em que os equipamentos e programas possuem uma obsolescência programada, independentemente das necessidades concretas dos usuários, se os equipamentos são constantemente renovados, “o ‘capital cognitivo’ dos usuários também deveria passar pelo mesmo processo, tendo que ser renovado ciclicamente” (CAZELOTO, 2005, p. 13). Estaríamos sempre atrasados?

Algumas sínteses

Neste artigo, foram analisados relatórios corporativos de cidadania da empresa Microsoft. A partir da leitura desses documentos, foi possível: (1) entender a ação da empresa no Brasil no campo da educação; e (2) visualizar as conexões entre os valores publicados pela Microsoft e o consenso em torno da moderna socialização escolar.

Viu-se que a ação da empresa em matéria de educação é ampla e envolve múltiplos campos e zonas de intervenção, caracterizando uma ação socializadora complexa que se deseja (ou que se apresenta como) inexorável ao adentrar as escolas e marcar a socialização escolar. Como fundamento dessa ação, estão valores caros à empresa e reiteradamente publicados em seus relatórios corporativos ,como inovação, mudança, inclusão social, responsabilidade social e cidadania. A iniciativa da empresa voltada para o campo da educação é caracterizada como ação social e está relacionada: (1) à socialização dos jovens, no que diz respeito ao impacto; (2) à formação dos professores para práticas educacionais inovadoras e ao progresso do país, no que diz respeito às tendências; e (3) a alunos e professores multiplicadores quando o assunto é linguagem.

Quando o que está em jogo é o impac-to de seus projetos, a Microsoft está preocupada com a transformação na vida dos jovens estu-dantes. Sua tese é de que o poder digital, ao ser conferido, revoluciona as trajetórias dos alunos,

540540 Michelle PRAZERES. Empresa HD, aluno monitor: a Microsoft...

marcando-as definitivamente. As disposições tecnológicas apresentadas aos alunos pela em-presa enquanto instância socializadora passam por um processo de negociação, configurando novos indivíduos. Os dispositivos da cibercultura são acionados na tomada de decisão em relação à escola, à escolha profissional e a outros âmbi-tos de suas vidas.

A visão da empresa em relação a esses jovens é, por um lado, a de que são protagonistas de suas histórias. A Microsoft os transforma, inclusive, em grandes personagens de seus relatórios, sendo eles os agentes mais presentes nos documentos. Por outro lado, curiosamente são esses jovens o “exército de multiplicadores” do qual a empresa lança mão para reproduzir o ciclo de consagração de seus valores (e consequentemente de seus produtos) em ambientes educacionais9.

A formação para a multiplicação dos valores da empresa se estende ainda aos professores. A lógica que predomina nos textos é a de que, de posse de uma linguagem específica, os indivíduos desfrutam de um poder que os habilita para estar no mundo digital.

9 - Vários são os agentes convidados a dar depoimentos nos relatórios. São consultores, diretores, estudantes, pesquisadores, presidentes da empresa, representantes do poder público e professores. Os estudantes parecem ser os grandes protagonistas. Talvez por se tratar de um texto que tem como objetivo relatar os efeitos do trabalho da empresa na área educacional e social, os personagens e suas histórias de vida alteradas pela chegada da tecnologia sejam a estratégia mais certeira para representar as transformações causadas pela ação da Microsoft. Os estudantes falam a respeito da revolução causada pelas tecnologias em suas vidas que, muitas vezes, extrapola o âmbito escolar. É o caso do estudante paulistano Douglas Portela de Souza, que afirma: “Eu faltava muito, não fazia as atividades que o professor pedia [...]. Aprendi a ser mais responsável no trabalho e acabei adotando essa postura também em sala de aula” (MICROSOFT BRASIL, 2009, p. 27). O suposto protagonismo oferecido pela empresa aos alunos nas páginas dos documentos contrasta com a visão sobre eles expressa no relatório de 2006: o grupo seria um exército de alunos monitores, composto por 201.673 jovens (MICROSOFT BRASIL, 2006, p. 24). O termo exército diz respeito à visão empresarial, que trata os jovens enquanto potenciais multiplicadores dos valores e dos recursos oferecidos pela Microsoft.

Mais do que incluir os indivíduos social e digitalmente, o poder digital caracteriza o com-plexo movimento de socialização levado a cabo pela empresa e que prepara os indivíduos para:

(1) manejar seus recursos; (2) entender (e incorporar) seus valores e sua lógica de operação; (3) reproduzir as práticas educativas, formando novos educadores, novos alunos e monitores.

Parece plausível cogitar a possibilidade de que a empresa se coloca como centro emis-sor de valores (de uma memória instalada de dispositivos de socialização), enquanto vê nos alunos (e também nos professores) potenciais entes indutores de seus valores e práticas para a escola e, assim, para o campo da educação. À Microsoft interessam indivíduos dromoaptos, pois eles configurarão o futuro.

Fica aqui um convite para se penetrar em um universo de sentidos que busca entender os processos de construção de um consenso tão forte, que se tornou uma fé, uma espécie de crença dificilmente questionável.

O estudo foi motivado pelo que se confirmou ser um tipo de violência simbólica, sutil, doce e difusa, de algo que se tornou evidente e paira sobre todos os espaços. Tal violência (cujo expoente é imperativo da cibercultura sob a forma de apelo pela modernização via tecnologias) é exercida e incorporada quando agentes e instituições a submetem e a ela são submetidos de maneira aparentemente natural e destensionada. Esse retrato revela uma pulverização de ideias e representações, uma verdadeira socialização orquestrada de um consenso, matéria de investigação para o campo da sociologia da educação.

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Recebido em: 28.10.2013

Aprovado em: 12.08.2014

Michelle Prazeres é jornalista, mestre em comunicação e semiótica (PUCSP) e doutora em educação pela Faculdade de Educação da USP.

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Formador de leitores, formador de professores: a trajetória de Max Butlen

Belmira Oliveira BuenoI

Neide Luzia de RezendeI

Resumo

Nesta entrevista, Max Butlen, amplamente conhecido por seu trabalho no campo da leitura, da formação de leitores e de professores, traça um percurso de sua trajetória e desenvolve uma discussão rica a partir das contribuições teóricas assentadas em uma longa vivência na escola pública, que o tornaram referência em dois temas dentre os mais desafiadores para a escola nos dias de hoje: o ensino da cultura da escrita e a profissionalização dos professores. Na França, foi sucessivamente professor em diferentes instituições de formação de professores, junto ao Ministério da Educação e o da Cultura, onde, em funções e cargos múltiplos, fez sobressair seu trabalho em prol da atualização das práticas escolares de leitura e da configuração e uso das bibliotecas públicas e escolares. Sua tese de doutorado em ciências da educação, Les politiques de lecture et leurs acteurs, 1980-2000, defendida na Universidade de Paris 5, reúne esses dois campos de saberes universitários e da ação profissional e mostra a centralidade que as questões da leitura assumem na França nos finais do século XX. No Brasil, ele trabalhou junto ao Ministério da Educação, de 1994 a 1998, ampliando, desde então, sua colaboração com grupos de pesquisadores de vários estados, para tratar seja das temáticas da leitura seja daquelas referidas à universitarização dos professores. Desenvolve também, a partir de suas experiências em ambos os países, comparações profícuas no que se refere a procedimentos de formação de professores e ao comportamento intelectual dos jovens diante das novas tecnologias e das mudanças sociais.

Palavras-chave

Leitura — Formação de leitores e professores — Universitarização — Profissionalização — França-Brasil

I- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contatos: [email protected]; [email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-970220154102002

544 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. 543-564, abr./jun. 2015.

From the education of readers to the education of teachers: an interview with Max Butlen

Belmira Oliveira BuenoI

Neide Luzia de RezendeI

Abstract

In this interview, Max Butlen, widely recognized for his work in the areas of reading, reader education and teacher education, outlines his trajectory and offers a fruitful discussion based on his theoretical contributions, grounded in a long experience in public schools, which turned him into a reference in two of the most challenging themes for the school today: the teaching of the culture of writing, and the professionalization of teachers. In France, he worked in various teacher education institutions and with the Ministries for Education and Culture, where, in multiple posts and functions, his work in favor of the renewal of school reading practices and of the configuration and use of public and school libraries gained visibility. His doctorate thesis in the Sciences of Education, Les politiques de lecture et leurs acteurs, 1980-2000, presented to the University of Paris V, brings together these two fields of academic knowledge and professional activity, and demonstrates the centrality that the issues of reading have taken in France in the late 20th century. In Brazil, he worked with the Ministry for Education and Culture from 1994 to 1998, afterwards expanding his collaboration to groups of researchers from various states, both in themes related to reading and to the process of teacher universitization. Based on his experience in both countries, he also makes fertile comparisons regarding the procedures of teacher education, and the intellectual behavior of youngsters when faced with the new technologies and social transformations.

Keywords

Reading — Education of readers and of teachers — Universitization — Professionalization — France-Brazil

I- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contatos: [email protected];[email protected]

http://dx.doi.org/10.1590/S1517-970220154102002

545Educ. Pesqui., São Paulo, v. 41, n. 02, p. p. 543-564, abr./jun. 2015.

Max Butlen é conhecido por seu trabalho no campo da leitura, da formação de leitores e de professores. Suas contribuições teóricas, assentadas em uma longa vivência na escola pública, tornaram-no referência obrigatória em dois temas dentre os mais desafiadores para a escola nos dias de hoje: o ensino da cultura da escrita e a profissionalização dos professores. A presente entrevista dá a conhecer seu percurso na área da leitura e no campo da educação, da formação e da pesquisa. Ao mesmo tempo, fornece informações e reflexões preciosas sobre o processo de constituição dos formadores de professores na França desde a década de 1970, época de grandes mudanças tanto para essa área quanto para as políticas, práticas e teorias sobre a leitura.

Ele foi sucessivamente professor em diferentes instituições de formação de professores, junto ao Ministério da Educação e o da Cultura. Seus cargos e funções foram múltiplos nessas instituições francesas, nas quais se destaca seu trabalho em prol da atualização das práticas escolares de leitura e da configuração e uso das bibliotecas públicas e escolares. Sua tese de doutorado em ciências da educação, Les politiques de lecture et leurs

acteurs, 1980-2000, defendida na Universidade de Paris 5, reúne esses dois campos de saberes universitários e da ação profissional e mostra a centralidade que as questões da leitura assumem na França nos finais do século XX (BUTLEN, 2008).

Particularmente a questão das políticas de leitura e do acesso à informação o trouxe ao Brasil por diversas vezes (BUTLEN, 1995). De início, trabalhou como assessor do Ministério da Educação por quatro anos, de 1994 a 1998, período em que visitou e assessorou múltiplas universidades, incluindo a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Estadual Paulista (UNESP) e a Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Sua cooperação com o Brasil tem se ampliado também com a recepção na França de doutorandos e doutores brasileiros, principalmente da USP e da UNESP. Esses vínculos não se deram por acaso: as intervenções de Max Butlen no campo educacional tocam em pontos centrais do processo de escolarização, ao abordar os desafios da formação de um leitor polivalente e da construção de uma cultura literária ao longo do ensino básico, desde a escola maternal, de modo a favorecer a constituição de uma cultura comum.

Tendo trabalhado como professor de alunos de meios sociais desfavorecidos, em colégio da periferia parisiense, desenvolveu a forte convicção de que esse desafio só poderia ser enfrentado se a formação dos professores estivesse igualmente contemplada nessa perspectiva, a qual não diz respeito apenas à formação dos professores de língua materna, visto considerar que todos os docentes acham-se envolvidos com a formação de leitores. Nesse elo reside a originalidade de seu pensamento, cujo direcionamento às práticas de formação de professores se tornou cada vez mais intenso, sobretudo a partir da implantação dos Instituts Universitaires de Formation de Maîtres (IUFM) no final dos anos 1980, que buscavam unificar a formação dos professores na França.

Apresentação

Fonte: arquivos do entrevistado

546546 Belmira O. BUENO; Neide L. REZENDE. Formador de leitores, formador de professores: a trajetória de Max Butlen

Os IUFM sofreram resistências políticas e instigaram grandes polêmicas teóricas, o que contribuiu para torná-los terreno fértil para o desenvolvimento de pesquisas e de práticas inovadoras de formação. A partir de 2009, tais polêmicas se reacenderam, dessa vez devido à inclusão obrigatória do mestrado profissional no curso de formação de professores, em obediência às diretrizes da União Europeia. Na época, como diretor adjunto do IUFM de Versailles na Universidade de Cergy-Pontoise, Max Butlen coordenou a criação do mestrado “Ofícios do ensino, da educação e da formação”, que respondia ao conjunto dos percursos de formação dos futuros professores e também dos responsáveis pelos setores educativos e culturais. Nesse âmbito, ele impulsionou particularmente a criação de duas especialidades de mestrado: de um lado, a especialidade “formação de formadores”, que preparava para o trabalho de formação de professores e de outros profissionais; de outro lado, a especialidade “literatura juvenil, preparação ao trabalho do livro e da leitura para o público jovem”. O curto lapso de tempo transcorrido desde o início da masterização e da criação, em 2013, das Écoles Supérieures du Professorat et de l’Éducation (ESPE), que vieram a substituir os IUFM, ainda não permite avaliar o êxito dessa experiência. Todavia, não há dúvida de que essas mudanças marcam uma nova etapa na política de universitarização e profissionalização dos professores na França1.

Ora, todas essas experiências são de grande importância para o Brasil, uma vez que tanto educadores como pesquisadores sempre nutriram interesse pelas experiências pedagógicas francesas e seus modelos de formação docente. A perspectiva comparada

1- O termo universitarisation (aqui traduzido por universitarização, no seu uso recente em português) foi cunhado por Bourdoncle (1997, 2000), para se referir ao processo de transferência da formação dos professores primários para as universidades, antes feita pelas Escolas Normais. Similarmente, o termo masterisation (traduzido aqui por masterização) generalizou-se a partir das discussões que ocorreram no sistema de formação de professores na França, com a obrigatoriedade do mestrado profissional (master). Para maiores detalhes, ver: Chartier e Butlen (2006), Bello e Bueno (2012), Sarti (2013), dentre outros.

é oportuna para aguçar nossos olhares e nos conduzir a uma maior compreensão dos objetos de pesquisa, das políticas educacionais, das práticas escolares. Por exemplo, sobre as diferenças que marcam as concepções e as políticas de universitarização e profissionalização dos professores na França e no Brasil. De que modo essas experiências podem se iluminar mutuamente, quais desafios apresentam? Eis uma das indagações que orientaram a condução da presente entrevista, visando a explorar as potencialidades da experiência que Max Butlen acumulou na França e em suas estadias no Brasil.

No segundo semestre de 2013, ele trabalhou na Faculdade de Educação como professor visitante da USP, retornando em abril de 2014. Nessas ocasiões, ministrou, em parceria com docentes da FEUSP e da UNESP, três cursos de pós-graduação: Leitura no século XXI: políticas, espaços de formação, abordagens e avaliação; Modelos contemporâneos de formação e profissionalização docente: Brasil e França; e Instâncias de constituição de leitores – as mediações na família, escola, biblioteca/sala de leitura em meios impressos e digitais. Sínteses do trabalho que vem desenvolvendo (BUTLEN, 2012; 2015), os conteúdos abordados por ele ajudam a repensar aspectos importantes da formação docente e da formação de leitores.

Por meio da análise comparativa, mostrou que, no contexto francês, houve, num primeiro período, a busca de um processo de profissionalização do ensino superior nos IUFM por meio da construção da figura original do formador, enquanto no Brasil a ênfase tem recaído, a partir de 1996, sobre a universitarização dos professores das séries iniciais do ensino fundamental. Essa diferença decorre das relações estreitas que os profissionais dos IUFM desenvolveram com os formadores “du terrain”2, favorecendo uma troca intensa

2- São chamados “formateurs du terrain professionnel” os professores que se tornaram formadores após ter passado por um exame de

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de saberes entre o campo da pesquisa e o da prática. Essa relação é ainda tênue no Brasil, razão pela qual a universitarização se encontra mais referida à titulação em nível superior. No que diz respeito à cultura letrada, os conceitos trazidos por ele ajudam igualmente a repensar vários aspectos, em especial a transformação das bibliotecas públicas (e escolares) em decorrência das novas práticas de leitura. As bibliotecas francesas desde o século XIX vinculavam-se a uma tradição de conservação e não a uma dinâmica de difusão, o que definia toda uma configuração – arquitetura, espaço, gestão das coleções, formação de pessoal – pensada e organizada para servir essencialmente a práticas letradas e eruditas (de resto, também essa era a concepção nas bibliotecas brasileiras, que adotavam modelos culturais franceses), enquanto, nas escolas, a leitura concentrava-se numa seleção de textos do cânone. Butlen (2008) denominou essa biblioteca tradicional como Templo do Saber e essa prática de leitura como intensiva. A emergência e desenvolvimento paulatino de um novo modelo – Tous les livres pour tous les lecteurs [Todos os livros para todos os leitores] – ao longo do século XX promoveram o aparecimento de bibliotecas modernas, multimídias, com livre acesso, a serviço de todo tipo de leitor, as quais se multiplicaram nas últimas décadas, de modo a que a oferta pública de leitura correspondesse às evoluções das práticas sociais e culturais e às exigências

qualificação específico. Muitos deles dividem seu tempo de trabalho entre a sala de aula de uma escola, as atividades de formação nos IUFM / ESPE e o acompanhamento profissional dos professores iniciantes.

populares de distração, instrução e orientações (leitura extensiva).

Como conclui na entrevista, tais desenvolvimentos não foram, todavia, suficientes para alterar o paradigma de ensino tradicional da literatura, mesmo na França. Entretanto, com o advento de novas teorias sobre recepção, sobre o papel do leitor, discutido em vários campos da área de humanas, com o consenso sobre a necessidade de melhoria da oferta de leitura a partir dos anos 1980 e a inserção dessa questão nas propostas educacionais, a escola é colocada mais uma vez na berlinda e instada a transformar suas ações e resultados em prol da formação de leitores. Max Butlen confia na escola e na contribuição que ela pode oferecer para que cada aluno tenha melhores perspectivas, mas acredita também que, por conta própria, ela não será capaz de impor transformações radicais na estrutura e relações sociais.

Tendo em vista o acesso à tecnologia digital e o afastamento da leitura nos moldes convencionais impressos, no contexto de ambos os países, Butlen aponta para a necessidade da construção de pontes entre as modalidades de cultura, de modo a repensar e recriar as didáticas da leitura literária, ao mesmo tempo em que se coloca, evidentemente, o trabalho necessário do formador de professores e do formador de leitor. Trata-se, como ele sublinha, de um caminho cheio de pedras, tanto numa situação de excelentes aportes teóricos e de políticas públicas consequentes (ainda que muitas vezes criticadas por ele), quanto naquela de um país como o Brasil, que há pouco começou a se atualizar nesses campos.

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Formador de leitores, formador de professores: a trajetória de Max Butlen.

Para iniciar, gostaríamos que você nos contasse como foi sua formação e como nasceu seu interesse pelas questões da leitura e da formação de professores.

Fui formado numa época em que o sistema de formação era muito diferente do que é hoje, do ponto de vista da profissionalização e, mais ain-da, da universitarização . Entrei na École Normale d’Instituteurs (ENI) após o ensino fundamental II, aos 16 anos. As ENI possuíam a reputação de funcionar como um tipo de elevador social, uma vez que os bons alunos dos meios populares eram selecionados ao final do ensino secundário para ali continuarem seus estudos. Isso se dava graças a um sistema de bolsas oferecidas mediante um concurso altamente concorrido. Como contrapartida, exi-gia-se que os alunos selecionados assinassem um contrato com o compromisso de servir ao Estado e à educação nacional por dez anos. Esse foi o meu caso. Após o baccalauréat (equivalente do Exame Nacional de Ensino Médio – ENEM), ao invés de começar a formação profissional de um ano para trabalhar como instituteur [professor do ensino fundamental I] nas escolas básicas, tive a chance de entrar na universidade como aluno de Letras, graças a uma segunda bolsa, cuja seleção ocorreu no seio da ENI de Paris. Ao final do primeiro ano universitário, tendo sido aprovado num concurso para o instituto de preparação para o ensino do segundo grau, passei a receber um salário muito bom, que me permitiu preparar tranquilamente o bacharelado na Sorbonne e, além disso, o concur-so final de recrutamento de professores do colégio [ensino fundamental II] e do liceu [ensino médio].

Os bons alunos provenientes de meios populares encontram ainda hoje condições de concorrer para a progressão nos estudos e na carreira, tal como ocorreu em sua época?

Minha história pessoal é bem representativa do percurso de muitos alunos dos meios populares

que conseguiram fazer seus estudos na época. De fato, as Escolas Normais garantiam essas funções de acompanhamento, formação e promoção, possibilidades que quase já não existem depois da criação dos Instituts Universitaires de Formation de Maître (IUFM). Desse ponto de vista, pode-se notar que o processo de universitarização , mesmo sendo útil e necessário, teve como consequência indireta afastar da carreira do ensino muitos alunos oriundos de meios desfavorecidos, uma vez que já não são oferecidas bolsas suficientes que lhes permitam levar a cabo estudos mais longos. Assim, contrariamente ao que se observa no Brasil, a distância social e cultural entre os novos professores e os alunos se agudiza hoje na França.

Em que momento desse percurso você identifica seu interesse pelas questões da leitura e se direciona para essa área?

Eu sempre quis me tornar professor, mas, de início, não sabia exatamente em que área poderia atuar. Já tínhamos na família várias disciplinas “ocupadas” por meus vários irmãos. Então, pensei “vou fazer Letras, já que sempre gostei muito de ler”. Sou leitor desde os 9-10 anos, e isso se deu por influência dos padres. Eu pertencia à igreja católica, frequentava as colônias de férias dos padres, gostava de ler as histórias de vida dos santos, mas também de jogadores de futebol. Descobri a leitura desse modo e pouco a pouco me apaixonei por essa atividade. Em casa, tínhamos poucos livros, mas meus pais me incentivavam, apesar de seu distanciamento da cultura escolar. Eles tinham fortes valores educacionais e meus irmãos colocavam seus livros à minha disposição. Alguns professores também me estimularam.

Em que momento você começou a dar aula, a ser professor?

Após ter sido aprovado no concurso de recrutamento de professores de letras modernas, que era muito difícil na época, fui nomeado em primeiro lugar para um colégio da periferia

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parisiense, numa zona de educação prioritária, onde dei aula para alunos de 12 a 16 anos. Foi quase um choque, pois encontrei um colégio muito diferente daquele que havia cursado em minha juventude. Descobri, então, problemas de aprendizagem da língua e da literatura para os quais a Sorbonne não havia absolutamente me preparado. Isso foi em 1972-73, exatamente no momento em que ocorria na França uma grande massificação do ensino primário e secundário. Foi um momento marcado pela concentração de muitos imigrantes na periferia parisiense, um período de muita transformação no país. O trabalho do professor tornou-se outro, uma vez que o colégio passou a ser frequentado por jovens muito distantes da cultura erudita, legítima. Ao desembarcar nessa periferia, dei-me conta de que não se tratava apenas de ensinar a leitura literária aos herdeiros descritos por Bourdieu. Houve um aumento do número de alunos fracos na área da leitura e da escrita. Entretanto, essas crianças me proporcionaram um aprendizado profissional surpreendente. Como os outros professores, a formação acadêmica que recebi foi inteiramente clássica, letrada. Nas salas dos professores da escola em que fui ensinar, podia-se ouvir comentários assim: “Gente, viram essas crianças que recebemos este ano? Nunca vimos isso! Não sabem ler, não podemos fazer nada com eles!”. Esse tipo de discurso era recorrente, na medida em que os professores não estavam preparados para aquela nova tarefa. Aqui começou meu interesse pela formação de leitores e de professores. Fundamentalmente, eu assim indagava: se os alunos de 14-15 anos não sabem ler, qual deve ser a nossa tarefa como professores? Não seria ensiná-los a ler? Fui, então, em busca de conhecimentos sobre como formar um leitor, como aprender a ler, como introduzir alunos fracos no aprendizado da cultura escrita. Esses alunos se encontravam no nível que no Brasil corresponde ao 5º. ano do ensino fundamental, mas havia também alunos com tais dificuldades em séries mais avançadas. Procurei leituras e pesquisas sobre a formação de professores na área da leitura, passei a trocar ideias com outros

profissionais e a me interrogar sobre a oferta de leitura que se fazia aos jovens. Descobrindo a literatura infanto-juvenil, conjecturei a possibilidade de fazer uma oferta pedagógica de leitura diferente, mais bem ajustada à idade e aos interesses dos alunos. Entendi que era preciso reconsiderar simultaneamente a oferta de leitura, a natureza e as formas de mediação para permitir a entrada na cultura escrita. Percebi que, no trabalho de ensino da leitura, era necessário levar em conta as práticas culturais efetivas das crianças e adolescentes, sem menosprezá-las, para tentar alargá-las. Interessei-me tanto pelas técnicas da alfabetização e do letramento como pela oferta de literatura infanto-juvenil articulada à descoberta do patrimônio cultural. Com isso, comecei também a me interessar pela problemática da formação de professores.

E qual foi o resultado desse trabalho com os alunos?

Acho que consegui alguns bons resul-tados na formação de leitores, sobretudo para torná-los mais interessados e mais eficientes na leitura. Esse trabalho acabou despertando o interesse de alguns responsáveis pela forma-ção docente. Fui convidado, então, para atuar na área da formação de futuros docentes para as escolas primárias [fundamental I] e também para trabalhar na formação dos futuros profes-sores [fundamental II e ensino médio] de Letras. Desse modo, entrei na esfera da formação ini-cial e continuada. Saí do ensino das Letras para me consagrar inteiramente à formação, como professor da Escola Normal. Passei, assim, de professor a formador de professores.

Como foi o seu percurso nessa nova tarefa de formação?

Foi bem ligado a um desejo de eficiência profissional na formação. Após dez anos de ensino em zona de educação prioritária, eu tinha sempre em mente as dificuldades de leitura e domínio da língua por parte dos alunos da minha antiga escola

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da periferia. Então, nos anos 1980, decidi voltar à universidade (Paris 7) para fazer um duplo mestra-do, em literatura e em didática das Letras. Trabalhei especialmente sobre as práticas de leitura dos adul-tos, confrontadas com as práticas de leitura dos jo-vens e com os livros da literatura infanto-juvenil. Ao mesmo tempo, comecei a participar de diver-sos grupos de pesquisa: no Institut National de Recherche Pédagogique (INRP), sobre as práticas de ensino; na Sorbonne, sobre a literatura juvenil; no Centre Régional de Documentation Pédagogique, sobre as bibliotecas escolares. Isso tudo me permi-Isso tudo me permi-tiu adotar uma postura mais reflexiva em relação a minhas experiências profissionais e ter acesso a novos saberes. Realmente, quanto mais eu me for-Realmente, quanto mais eu me for-mava, mais se alargava meu trabalho de forma-dor e mais eu sentia a necessidade de me ligar à pesquisa. Comecei a trabalhar com Jean Hébrard e Anne-Marie Chartier e também com outros pesqui-sadores, linguistas, estudiosos da literatura, psico-linguistas, sociólogos, na área da leitura e da escrita, bem como das bibliotecas. Nos anos 1980, cresceu a necessidade de analisar, repensar e nortear as po-líticas de leitura e as políticas de formação dos lei-tores, o que veio a constituir meu eixo de pesquisa. Enquanto as coisas evoluíam assim, fui convidado a organizar formações locais e depois regionais para os professores e bibliotecários de meu depar-tamento e da região parisiense, sobre a leitura, a literatura, o acesso à informação, as bibliotecas, o ensino da língua. Depois, dirigi estágios nacionais voltados para professores formadores nas ENI, nos IUFM, e também para inspetores e conselheiros pe-dagógicos. Durante esses encontros, compreendi a importância de conjugar formação e pesquisa, de desenvolver um trabalho teórico enraizado no ter-reno escolar. Tendo estabelecido relações com inú-meros profissionais, formadores e pesquisadores do campo, percebi que dispúnhamos de poucos meios de comunicação entre nós. Nenhuma revista pro-punha um espaço de pesquisa ao conjunto desses atores e a seus parceiros. Assim, em 1987, planejei a criação da Argos, uma revista dedicada à cultura da escrita, ensino da língua e uso das bibliotecas. O objetivo era confrontar e articular a análise das experiências da prática com as propostas de pes-

quisa e formação. Tratava-se de oferecer a todos os atores envolvidos um espaço de diálogo, de troca, e de abrir a revista aos parceiros do mun-do da leitura e da escrita – bibliotecários, auto-res, editores, responsáveis pelas políticas de leitura. A revista funcionou durante 26 anos, de início, caracterizando-se como uma revista profissional, parisiense, que adquiriu depois uma abrangência nacional, tendo mesmo uma dimensão interna-cional. Em razão desse conjunto de atividades e de experiências, fui chamado em 1991 pelo Ministério da Educação para cuidar do Plano Nacional de Leitura, Biblioteca, Domínio da Língua. Trabalhei com Jean Hébrard, que se tornou, na época, conselheiro especial do mi-nistro Jack Lang. Foi uma época de mudanças relativamente importantes que, a meu ver, mar-cou uma ruptura.

Como você situa essa ruptura? No prazo de uma década, deu para perceber uma mudança, uma ruptura, em relação aos paradigmas anteriores de formação?

Acho que a ruptura ocorreu nos anos 1990, mas os efeitos foram sentidos bem depois, até hoje, não sem contradição e, mesmo, sem retrocesso. Nessa década, ocorreram profundas transformações. Após o desaparecimento das escolas normais, a formação dos professores e a formação dos leitores se afastaram de uma concepção militante, intuitiva, para se profissionalizar, se racionalizar e se universitarizar. Logicamente, as resistências foram muitas e esse movimento está ainda em curso. Aprendi que as mudanças na esfera pedagógica demoram sempre muito para se realizar.

Foi nessa época que você veio para o Brasil? O que o motivou a vir para cá?

Eu vim para o Brasil em 1994. Em 1993, houve uma mudança no governo francês. Deixei o cargo no Ministério da Educação. Durante o ano anterior, tivera a oportunidade de conhecer e receber em Paris a professora

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Magda Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que fora convidada pelo ministério francês para uma estadia de estudo sobre nosso sistema. Foi meu primeiro encontro com o Brasil e os brasileiros. Depois, recebi uma proposta do Ministério das Relações Exteriores para trabalhar no Brasil como consultor na Secretaria de Educação Fundamental, para dar continuidade ao Pró-Leitura, um programa que já existia desde 1991, iniciado por Elie Bajard. Trabalhei quatro anos junto ao MEC como consultor para essa proposta, que visava a melhorar a formação de leitores e a formação dos professores. Considerei muito interessante essa ideia de pensar a transformação da formação de professores a partir da entrada de um conteúdo de formação: a cultura da escrita.

Em que instância isso se dava? Você tinha um grupo no MEC?

No MEC, havia um pequeno grupo de assessores do programa com professores da UFMG, USP, Rio Grande do Sul, Recife, Salvador e Natal. Era o comitê científico que animamos e dinamizamos. Em Brasília, contávamos com o apoio de um núcleo de pessoas que, no início, eram coordenadas por Margarida Cavalcante e, depois, por Cinara Dias Custódio. Paulo Renato era ministro. Tínhamos também corresponden-tes em vinte estados, junto às secretarias de educação. Foi um período muito rico, apaixo-nante para eu descobrir o Brasil, sob muitos pontos de vista – social, geográfico, cultural – e singularmente aprender como as coisas acon-tecem aqui na área da leitura, da formação dos professores e na pesquisa. Descobri o Brasil pelo prisma da leitura e da formação docente. Havia, nessa época, muita discussão a respeito da ela-boração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), cujas orientações teóricas eram muito interessantes. Só que os professores pareciam não entendê-las e houve dificuldade na recep-ção daquelas ótimas ideias. Essa apropriação dos PCN pelos professores supunha um impor-tante trabalho de formação e de mediação.

Como essa experiência do Pró-Leitura se disseminou pelo país?

Em cada estado implicado, o desenvolvi-mento do projeto ficou sob a responsabilidade da Secretaria da Educação, que nomeou uma equipe encarregada de impulsionar o projeto. Havia lugares-piloto, experimentais, e momen-tos de formação, dispositivos de circulação, de difusão e informação. Produzimos um texto de orientação intitulado “Pró-Leitura na formação de professores”. Havia encontros técnicos na-cionais e locais. O comitê científi co dava asses- e locais. O comitê científico dava asses-soria nos diversos estados participantes. Além disso, o projeto comportava também estágios de estudo, o que favorecia a organização de inter-câmbio de formadores e pesquisadores entre os dois países. Na época, uma concepção política global para a formação tanto dos professores como dos alunos estava em obra. O Pró-Leitura correspondia a um espaço de reflexão entre ou-tros, num país em busca de mudança e melhoria em todos os aspectos. Percebi os grandes avan-ços do país nas taxas de alfabetização e, com a lei Darcy Ribeiro, um movimento impressio-nante de universitarização docente. O contex-to brasileiro era muito diferente do francês, e era interessante notar as variações nas formas adquiridas pela universitarização e pela profis-sionalização, comparar as estratégias e as von-tades políticas tanto para a leitura quanto para a formação docente. De um lado, um processo aparentemente muito centralizado (na França); de outro, políticas aparentemente muito diver-sificadas (Brasil). Portanto, grandes diferenças de contexto e de história. Mas pude observar também algumas semelhanças, preocupantes às vezes, mesmo que os problemas não tivessem exatamente as mesmas causas nem as mesmas escalas. Penso em especial em uma tendência social de desvalorização do trabalho dos pro-fessores, o que justificaria redobrar os esforços nos dois casos. Observei também um sistema de ensino público em dificuldade, questio-nado e criticado por todos, no momento em que os dispositivos de avaliação começavam

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a se generalizar. Nos dois países, muitas críti-cas dos resultados da escola no campo de for-mação de leitores, justo quando a internet se anunciava e gerava evoluções consideráveis e convergentes nas práticas de leitura dos jovens nesse fim de século XX. No final das contas, o Pró-Leitura conseguiu se integrar a uma políti-ca mais abrangente de formação de professores. Voltei a Paris em 1998. A partir dessa época, tive a oportunidade e a sorte de continuar a participar, e a organizar, muitos intercâmbios entre pesquisadores, formadores e instituições franco-brasileiras.

E como foi seu retorno à França. Lá o panorama já era outro?

Ao retornar à França em 1998, os IUFM já estavam bem instalados. De certa forma, tive que recomeçar minha carreira, pois, ao sair do país, perdi meu posto. Precisei me concursar novamente para ser recrutado por um IUFM, tendo sido admitido pelo IUFM da Academia de Versailles. Propus-me então a fazer o doutorado, já que antes não tivera tempo para fazê-lo. Mas também havia outra razão: no tempo das escolas normais, não se exigia o título de doutorado para assumir a função de professor formador; a primeira condição era passar pelo concurso de recrutamento de professor do ensino médio. Com a criação dos IUFM em 1990, e a emergência dos desafios da profissionalização e da universitarização , as coisas mudaram, o que criou problemas para alguns colegas. A falta de um diploma de pesquisador foi a origem de muitas dificuldades para a inserção deles no ensino superior. Raymond Bourdoncle observou que a universitarização da formação de professores provocou rupturas às vezes dolorosas para o antigo pessoal das ENI e dos IUFM. Eu fiz parte dos formadores que tentaram ultrapassar essas dificuldades e rupturas, aceitando completar sua formação universitária após ter vivido um processo de profissionalização como formadores nas escolas normais. Então, fiz o doutorado sobre as políticas de leitura e seus atores no

final do século XX. Quando acabei esse trabalho, ganhei o título de maître de conférences das universidades. Depois fui chamado pelo INRP para dirigir, com Anne-Marie Chartier, a missão Pesquisa e Formação. Dois anos depois, fui designado diretor adjunto do INRP, na função de diretor de pesquisa. Isso perdurou até a chegada de um ministro que pretendeu ditar aos pesquisadores da área da leitura os resultados de suas pesquisas. Voltei ao IUFM de Versailles e lá assumi a função de diretor adjunto.

Como se deu a unificação do sistema de formação de professores com a criação dos IUFM, diante das resistências vindas de vários setores, incluindo o próprio professorado?

Foi uma luta permeada por muitas tensões. Na história da formação docente na França, sempre houve briga entre vários campos. Para simplificar, destaco aqui dois deles. O primeiro campo reúne aqueles que (desde o século XIX) consideram que, para se tornar professor, não é necessária uma formação de alto nível acadêmico. O segundo campo reúne aqueles que, inversamente, consideram que ensinar é algo tão complexo que demanda um alto nível teórico e prático, necessário para adquirir saberes acadêmicos e saberes profissionais. Entre as outras tensões, podemos destacar também o choque de cultura que ocorreu quando docentes das duas tradições passaram a conviver, pela primeira vez, no mesmo instituto de formação. Na época anterior, como apontei, os professores primários, herdeiros dos instituteurs, eram formados nas escolas normais, enquanto os professores secundários, especialistas de cada disciplina, tinham, após um difícil concurso de recrutamento, uma curta formação prática num centro específico de formação. Os primeiros tinham tendência a considerar que possuíam melhor atuação do ponto de vista pedagógico e muitos estimavam que, mais importante do que os conteúdos, era a qualidade das práticas pedagógicas. Por sua vez, os segundos achavam que não precisavam de discursos sobre a

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prática, uma vez que o que importava era o domínio dos conteúdos disciplinares a ensinar. Além disso, havia uma hierarquia implícita que valorizava os professores de colégio e liceu, em detrimento dos professores primários. Nesse quadro, o desafio dos IUFM consistia em juntar esses dois grupos de professores para oferecer uma formação que tivesse, no mesmo espaço, a mesma duração e, com isso, criar uma cultura comum. Houve outras resistências, notadamente no campo político; a formação docente foi também um campo de divisão entre esquerda e direita, no qual os IUFM estavam no primeiro grupo.

Como os IUFM venceram essas resistências? É possível afirmar que eles foram implantados mais por uma força externa do que interna?

Na verdade, não havia outra opção se-

não implantar os institutos, na medida em que a análise objetiva da situação do ensino den-tro do contexto da mundialização, da revolu-ção tecnológica e da massificação não permi-tiu outro caminho senão aquele da elevação do nível da formação docente em todos os pa-íses. Instâncias internacionais diversas, entre as quais a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Conselho Europeu, insistiam igualmente nessa mudança. Qual dirigente sério poderia dizer que não era bom elevar o nível de formação dos pro-fessores do ponto de vista acadêmico e profissio-nal? De fato, quando a direita voltou ao poder na França, ela não suprimiu os IUFM. As forças ex-ternas sem dúvida tiveram uma forte influência, mas, inversamente, podemos dizer que o peso da França foi importante nas instâncias europeias. Houve também o rico trabalho de uma comuni-dade de pesquisadores francófonos.

Em relação a essas mudanças, a França tem um campo teórico muito forte, que inclusive impulsiona a reflexão fora do seu país, principalmente aqui no Brasil. As teorias sobre políticas de leitura e o campo intelectual

provocaram uma mudança muito grande do ensino desde 1970. As teorias que hoje temos, mais contemporâneas, vieram no bojo dessas mudanças. Você poderia falar um pouco mais sobre esse momento?

Esse campo de construção de saberes profissionais se firmou com a participação e o encontro de três categorias de atores – a elite dos profissionais do cotidiano da sala de aula, os formadores de professores, e os pesquisa-dores. Graças a pesquisas e experimentações sucessivas nas ENI, nos IUFM, nas universi-dades, elaboraram-se, entre outros, o benefí-cio da formação docente, o campo teórico da análise de práticas de ensino, dos estudos de caso, das situações-problema, do memorial profissional, da entrevista de explicitação, do trabalho sobre os gêneros profissionais, sobre o ajustamento dos gestos profissionais na dinâmica da aula, sobre a avaliação das competências, a gestão dos imprevistos... A respeito de todos esses tópicos, as contribui-ções conjugadas de pesquisadores da franco-fonia foram determinantes. Penso sobretudo em Marguerite Altet, Raymond Bourdoncle, Philippe Perrenoud, Léopold Paquay, Maurice Tardif, Dominique Bucheton e muitos outros. No campo da língua, encontramos igualmen-te uma configuração de pesquisas cruzadas de alta qualidade, como, por exemplo, aquelas de Jean-Paul Bronckart, Joaquim Dolz, Bernard Schneuwly. No caso da didática da leitura e da literatura, as propostas de Yves Reuter, Catherine Tauveron, Roland Goigoux sobre a leitura, a compreensão, a interpretação, que levaram a repensar profundamente o diálo-go didático aluno-professor. Os conceitos de leitura literária, de sujeito leitor foram rede-finidos por Annie Rouxel, Jean-Louis Dufays, Gérard Langlade. As pesquisas não nasceram todas nos centros de formação de professo-res. Todavia, os IUFM, assim como as Écoles Supérieures du Professorat et de l’Éducation (ESPE) hoje, foram e continuarão sendo, creio, caixas de ressonância bastante eficazes.

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Poderia precisar as relações entre os laboratórios universitários e a pesquisa nos IUFM e, hoje, nas ESPE?

Muitos pesquisadores das ciências da educação, das diversas didáticas das disci-plinas, começaram sua carreira nos IUFM. Alguns deixaram as estruturas de formação dos professores para se dedicar completamente às atividades de pesquisa. Outros permanece-ram dentro dos IUFM na qualidade de enseig-nants chercheurs [professores pesquisadores]. Em 2005, a decisão política de integração à universidade, e mesmo de inclusão, clarificou a situação dos IUFM, sublinhando uma eta-pa decisiva no processo de universitarização . Antes dessa decisão, de 1990 a 2005, consi-dero, de acordo com Bourdoncle (2007), que se tratava de uma falsa universitarização , ou seja, de uma semiuniversitarização , na medida em que os IUFM, apesar de ligados ao ensino superior, permaneceram fora da universidade, em sua periferia, sem ter a possibilidade de fazer pesquisa própria e ter verdadeiros labo-ratórios. Com a criação de mestrados profis-sionais em 2009, a masterização representou a última etapa da universitarizaçao.

Você diria que o mestrado profissional, como etapa obrigatória da formação de professores, realiza uma universitarização mais plena?

Quero lembrar que, em 2009, estabeleceu-se que, para se tornar professor (da escola maternal ao final do ensino médio), era indispensável ter um mestrado, além do concurso de recrutamento. Com isso, iniciou-se o processo de criação de mestrados profissionais no âmbito dos IUFM, chamado de masterização. De modo sintético, pode-se dizer que as Escolas Normais promoveram um primeiro movimento de profissionalização e algumas premissas de pesquisa e que, em seguida, os IUFM promoveram pouco a pouco uma forte aproximação com a universidade e o fortalecimento da postura de pesquisa dos formadores. A história de

muitos formadores já refletia essa aproximação e integração, como minha própria história. Vários formadores transformaram-se em docentes pesquisadores, mas outros não, o que criou um problema. Por outro lado, parece-me importante sublinhar que, dentro dos IUFM, ao mesmo tempo em que houve esse processo de universitarização , a profissionalização se desenvolveu. Antes da masterização, em 2009, talvez o movimento de profissionalização tenha sido mais forte do que o de universitarização . Entretanto, após 2009, paradoxalmente, houve um retrocesso, uma inversão dessa tendência, e a universitarização se tornou dominante. Em 2013, as ESPE substituíram os IUFM com o intuito de retomar e levar ainda mais adiante esse movimento de profissionalização de todos os professores. Agora, o desafio é buscar um bom equilíbrio entre ambos os processos, o de universitarização e de profissionalização.

Por que, de seu ponto de vista, a masterização se deu de modo equivocado?

Num contexto de crise europeia, essencialmente por razões orçamentárias, em nome da universitarização , da profissionalização e da masterização, foram impostas formações “rebaixadas” que, em verdade, tenderam a diminuir a profissionalização e mesmo a afastar dos centros de formação os formadores vindos das escolas, que eram justamente aqueles que davam uma contribuição preciosa para a profissionalização. Nessa época, tivemos uma consequência inesperada: uma universitarização mal pensada, o que quer dizer um rebaixamento da profissionalização. A evolução recente se revelou caótica e muito decepcionante para muitos atores. Hoje, a questão é saber se as ESPE serão capazes de inverter esse processo. O novo modelo permanece em construção.

De que modo pode ser observado o papel profissionalizante dos IUFM? Como definir a função de formador de professores e as qualidades que isso supõe?

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O sistema de formação francês dispõe de um trunfo que não existe em todos os países: a figura do formador profissional. Acho que vale a pena descrever essa fisionomia moldada lentamente nas ENI, nos IUFM e agora nas ESPE. O formador é um profissional experiente do ensino, que dispõe de saberes diversos – saber teórico, saber-ser, saber-fazer – construídos por meio da prática pedagógica da profissão de professor, bem como de pesquisas pessoais e coletivas, disciplinares e transdisciplinares, tanto sobre os saberes a ensinar como sobre os saberes para ensinar, segundo a distinção feita por Perrenoud. Para formar os futuros professores, esse formador constrói situações de descoberta, aprendizagem, reflexão e apropriação da cultura e das práticas da profissão. Ele também coloca à disposição informações, pode dar orientações, permite, enfim, aos futuros professores adquirir os conhecimentos indispensáveis para entrar e atuar na vida profissional. Convida a trabalhar com instrumentos de análise dos conteúdos das aulas, incentiva a refletir sobre posturas, gestos, métodos de trabalho, abordagens pedagógicas, dispositivos de avaliação, criando, desse modo, as condições de um desenvolvimento profissional e fomentando uma atividade mais autônoma, reflexiva e eficaz. Sua atuação é articulada com as pesquisas. Essa figura do formador resulta, pois, de uma longa construção.

Durante muito tempo, as tarefas de for-mação de professores se diferenciavam de manei-ra discutível. Nos centros de formação docente, encarregavam-se os professores especialistas de uma disciplina de transmitir os saberes a ensinar (os conteúdos disciplinares), enquanto os saberes da profissão, os saberes para ensinar, supunha--se que poderiam ser adquiridos por meio da ob-servação, da imitação de colegas experientes nas escolas anexas. A evolução e a complexidade das tarefas de professores provocaram a necessi-dade de mudanças qualitativas de conteúdos de formação e a revisão dessa tradicional distribui-ção das tarefas. As posturas e as atividades dos dois tipos de profissionais se aproximaram até criar um desdobramento da figura do formador.

Por um lado, os professores das escolas anexas das ENI passaram a trabalhar mais com os pro-fessores encarregados de uma disciplina na for-mação docente, e gradualmente ganharam um novo estatuto, diferente daquele dos professores exemplares, ou seja, os mestres modelos a serem copiados e imitados. Tornaram-se formadores re-flexivos, verdadeiros conselheiros pedagógicos, com o título de maîtres-formateurs [professores formadores], a partir do momento em que con-quistaram um diploma específico que valorizou e trouxe reconhecimento de suas competências profissionais na formação. Constituíram uma elite da profissão docente, particularmente no ensino primário, e foram integrados às equipes pedagógicas das ENI e dos IUFM, onde muitas vezes continuam a ser designados formateurs de terrain3. Alguns deixaram completamente a sala de aula para se tornarem formadores em tem-po integral no IUFM, e agora nas ESPE. Por ou-tro lado, os professores disciplinares nomeados nas ENI, e depois nos IUFM e ESPE, desejaram responder melhor às necessidades crescentes de formação. Como não era mais possível se limitar a uma mera transmissão de saberes disciplina-res na formação inicial, passaram a se interes-sar pelas práticas de terrain. Nas salas de aula, nas escolas de aplicação dos maîtres-formateurs, observaram, experimentaram, analisaram no-vas abordagens didáticas. Desse modo, os pro-fessores disciplinares dos centros de formação conseguiram construir os saberes para ensinar que lhes faltavam, deles se apropriando e os teorizando. Ao longo do tempo, muitos con-seguiram se transformar em formadores mais completos, conjugando os dois tipos de saberes. Consequentemente, a profissionalização foi for-talecida e enriquecida, graças à atuação comple-mentar de ambos os formadores, sobretudo du-rante os estágios. Ao invés de ser uma espécie de momento de turismo profissional, o estágio pas-sou a ser um momento-chave para a formação dos professores e para uma boa ligação teoria--prática, e universitarização -profissionalização.

3 - Ver nota de rodapé no. 3.

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Como os estágios foram estruturados no âmbito dos IUMF e nas ESPE?

Chegamos a distinguir três tipos de estágio, sendo que cada um tinha de ser cuidadosamente preparado, acompanhado e explorado por formadores de todos os tipos – formadores de terrain, da universidade, ou seja, da ESPE. Os conteúdos teóricos do mestrado tiveram que se articular a essa preparação e exploração, o que constitui condição sine qua non de uma verdadeira formação. Destacamos o estágio de observação, o estágio de prática acompanhada e o estágio com responsabilidade plena. O primeiro permite descobrir a escola e os principais componentes da atividade profissional; o segundo é um grande momento de formação ao lado de um professor formador de terrain, que vai dar sentido ao trabalho de análise das práticas; o terceiro marca uma real entrada na profissão. As situações vividas na sala de aula alimentam o memorial profissional, no qual o futuro professor deve abordar alguma questão profissional, em debate à luz das pesquisas pedagógicas, mas, sobretudo, a partir de uma reflexão sobre a experiência pessoal adquirida durante os estágios.

Isso significa que a elevação do nível de profissionalização se deu por meio de uma articulação mais efetiva da teoria com a prática? É isso que está no âmago da ideia de profissionalização que ocorreu nos IUFM?

Profissionalização e universitarização se interpelam reciprocamente. O saber profissional passou a ser revisitado, aprofundado e teorizado cada vez mais segundo as regras da pesquisa, à medida que os professores dos IUFM e das escolas passaram a conviver com os pesquisadores vinculados às universidades. Mas isso não se realizou sem conflitos. A chegada desses novos atores aos IUFM – os pesquisadores com doutorado – modificou muito o contexto e a perspectiva da formação. No início, esse grupo era pequeno, ao contrário

do grupo dos antigos professores das escolas normais que lá permaneceram e que era mais numeroso. Como já apontei, por um lado, só uma minoria dos antigos formadores aceitou o esforço de fazer doutorado; por outro lado, uma plena universitarização da formação docente supunha que os pesquisadores conhecessem e trabalhassem para além das realidades da profissão docente. O que não ocorreu espontaneamente. Então, a entrada dos pesquisadores e a convivência das três categorias foram e ainda são problemáticas. Houve e ainda há lutas de território, de poder e por reconhecimento recíproco.

Nesse caminho marcado por trocas, mas também por conflitos e resistências, é que se deu a elevação do nível de profissionalização? O que chamamos aqui no Brasil de universitarização é um processo muito diferente do que aconteceu na França. Lá, essa experiência chegou a provocar uma perda de qualidade na formação de professores?

Na verdade, para certo número de colegas da universidade, a profissionalização é malvista ou mal aceita, justamente, em nome da pureza dos saberes eruditos, saberes esses que, segundo eles, devem permanecer independentes de toda pressão externa, a fim de evitar a instrumentalização. A meu ver, a universitarização deveria elevar o nível de formação dos professores dos dois lados: do lado do domínio do saber a ensinar, do saber acadêmico-científico, ou seja, dos conteúdos científicos de ensino relacionados à construção do conhecimento em cada disciplina; e também do lado dos saberes profissionais docentes, quer dizer, dos saberes para ensinar, relacionados à analise das realidades pedagógicas. A universidade pode e deve, daqui para a frente, contribuir com o enriquecimento desses saberes. Da força dessa articulação depende a melhoria da qualidade da formação. Por isso, não acho que o aumento do tempo de formação universitária para os professores seja

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acompanhado de uma queda de qualidade. Ao contrário, sob certas condições, é desejável que esse processo se faça em estreita relação com a profissionalização. Infelizmente, após a integração dos IUFM com a universidade, essa dupla perspectiva começou a ser esquecida, cedendo lugar a uma masterização mal concebida. Não quero dizer que o mestrado profissional em si não seja desejável, mas, da maneira como esse processo tem sido levado a efeito, foi um grande equívoco. É por isso que hoje as ESPE têm por objetivo restabelecer a necessária qualidade dessa articulação.

Após 25 anos de experiência dos IUFM, pode--se considerar que houve uma melhoria no nível de formação dos alunos? As novas po-líticas de leitura repercutiram positivamente sobre a escolarização?

Essa é uma pergunta difícil de responder,

mas é uma pergunta-chave, uma vez que os resultados não são totalmente positivos, justamente por causa das persistentes diferenças sociais e culturais. Há uma persistência da desigualdade, uma vez que os melhores alunos são cada vez melhores e os mais fracos continuam fracos. Então, só posso constatar que houve uma clara melhoria de resultados para os alunos bons e médios.

Então, Bourdieu tinha razão, e você foi uma exceção?

Sim. Mas o que é escandaloso na escola é quando as desigualdades se agravam. Com relação às pesquisas no campo da formação docente, como aceitar que os resultados dos alunos mais desfavorecidos continuem tão insuficientes diante da expectativa das famílias e das necessidades sociais, e apesar de todos os nossos esforços? Como se explica que nossos professores do século XXI têm, talvez, mais dificuldades do que os professores de tempos passados tiveram para lidar com os alunos mais fracos? Acredito que é o resultado

de uma massificação mal conduzida, que não foi acompanhada de uma verdadeira democratização. A massificação foi planejada econômica e socialmente, mas a democratização não foi pensada, talvez não tenha sido realmente desejada. No final das contas, o nível global dos alunos progrediu em termos de aquisição da língua, mas é difícil atribuir isso a uma melhor distribuição social dos saberes; na verdade, essa relativa melhoria é, em grande parte, ligada ao prolongamento da escolarização. Hoje, muitos alunos que frequentam a escola não teriam tido a mesma possibilidade no passado. Por isso, se considerarmos o nível geral da população francesa, assim como o da brasileira, pode-se dizer que globalmente houve significativa melhoria em termos de acesso aos saberes, de uso da leitura e da escrita. Mas isso não significa que a proficiência dos alunos de 15 anos de hoje sejam aceitáveis no Brasil, assim como na França, conforme o Programme for International Student Assessment (PISA) revela. Houve melhoras, mas o nível médio alcançado pelos jovens alunos de hoje está longe do que seria necessário e esperado de um futuro cidadão do século XXI.

Nesse sentido, pode-se dizer que o que investimos em uma dada situação, em um dado grupo de alunos, acaba sendo uma gota no oceano?

Na França, bem como em outros países, se considerarmos os resultados do PISA, nossos esforços didáticos, de maneira evidente, aproveitaram os melhores alunos, incluindo um pouco daqueles que estiveram no portal do sucesso escolar, alunos de boa vontade cultural. Mas as dificuldades não se resolveram bem com os alunos fracos. É possível que as exigências e a elevação do nível de competência, as expectativas da sociedade e as necessidades de formação dos alunos sejam tão grandes hoje que as melhorias indiscutíveis efetuadas no ensino não permitem, de fato, superar todas as defasagens, não compensam as desigualdades

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sociais. Melhoramos, sem dúvida, nosso trabalho de pesquisa e de formação. Só que o que temos que fazer com e para os alunos é sempre mais difícil e complicado porque a defasagem continua a existir em benefício dos melhores. É uma coisa triste constatar que as desigualdades sociais não param de crescer na sociedade francesa. Mas como não levar em conta que a pedagogia, a formação e a pesquisa não podem eliminar nem ultrapassar sozinhas todas as injustiças sociais? No entanto, não é uma razão para desistir. Muito pelo contrário.

Nós temos uma diferença muito grande em relação à França e suas práticas culturais. Você considera possível fazer um paralelo entre a realidade dos alunos de nossas escolas públicas e aquela dos filhos de imigrantes na França, que representam a camada mais desprovida? Seria possível adotarmos aqui as políticas de leitura desenvolvidas no contexto francês, considerando as configurações das escolas públicas francesas?

Penso que podemos aprender muito con-siderando as experiências dos outros, se puder-mos ser capaz de absorvê-las, transformá-las e configurá-las de acordo com nossas realida-des locais. Claro: Só a antropofagia nos une! Sabemos que existe uma grande tradição de circulação de saberes e modelos educacionais entre o Brasil e a França. Uma pesquisa dirigida por Belmira Bueno sublinha isso e mostra ao mesmo tempo quanto precisamos nos acautelar contra o imediatismo, para considerar a ruptura, a diferença, a contextualização como problema de método. É claro que os contextos culturais e sociais, a relação histórica, as culturas da escri-ta são totalmente diferentes, as problemáticas da imigração também são outras. Só que se observam em ambos os países aspectos comuns, por exemplo, no que tange tanto à postura dos professores a respeito da oferta de leitura como à recepção dessas propostas pelos adolescentes, particularmente por aqueles muito afastados da cultura legítima. Tanto na França como no

Brasil, podemos observar um divórcio entre a formação dos professores do ensino médio, de cunho acentuadamente disciplinar e acadêmico, e a realidade das práticas culturais e vivências dos alunos. De certa forma, as práticas cultu-rais dos alunos referentes à leitura não são le-vadas em conta de modo muito forte e eviden-te no ensino médio. O mesmo tipo de rejeição à leitura literária escolar que se observa entre os alunos brasileiros do ensino médio lembra muitas vezes as rejeições que se observam na França. Então, vale a pena considerar as leitu-ras reais e as leituras invisíveis dos alunos, pois estamos diante de um fenômeno relacionado ao divórcio entre a oferta pedagógica e a recepção por parte dos leitores adolescentes.

Você pode falar um pouco mais sobre essas leituras invisíveis para a escola?

Na representação comum, ler é ler a literatura, ler livros de literatura essencialmente em suportes de papel. Muitos adolescentes não se consideram verdadeiros leitores porque apreciam pouco a literatura escolar e pouco leem as obras recomendadas ou impostas. No entanto, eles leem! Eles leem, até mesmo muito mais do que os adultos imaginam. Só que eles não leem aquilo que os adultos, sobretudo os professores, desejariam que eles lessem. Daí decorre um grande mal-entendido. Suas práticas de leitura mais correntes são invisíveis em classe e parecem não ter a menor importância. No entanto, eles leem, sobre muitos suportes, notícias, jornais, revistas. Leem e escrevem abundantemente em múltiplas telas. Alguns, em números até significativos, até leem literatura, só que não é a desejada pela escola. Os gêneros que eles amam não são legítimos no campo escolar. Ora, rejeitar essas leituras invisíveis significa rejeitar sua cultura e finalmente eles próprios. Em contrapartida, muitos deles rechaçam também os textos e os autores que à escola parecem essenciais, mas que a eles se mostram muito distantes de suas vidas e de sua língua. Essa rejeição parece

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crescente. Por isso, é preciso sair desse impasse pedagógico, porém, sem cair numa demagogia. Isso não abriria nenhuma perspectiva de desenvolvimento cultural. É preciso questionar e reduzir essa distância que existe entre a realidade dos alunos e as práticas clássicas de ensino da literatura. As formas tradicionais de transmissão do patrimônio cultural ganhariam muito se se transformassem em mediações suscetíveis de favorecer as passagens de uma leitura a outra, de uma cultura a outra. Na prática, temos que reinventar o papel e as formas de mediação, uma vez que elas poderão permitir que na escola se faça o caminho entre a cultura dos jovens, a cultura do século XXI e a cultura legítima que os professores desejam compartilhar com os alunos. Acho que é uma questão de pontes. Temos que organizar e estabelecer pontes entre essas culturas. Realizar essa tarefa é um verdadeiro desafio! O desafio da democratização. Isso supõe rever a formação dos professores; supõe, por exemplo, ser capaz de propor aos alunos textos e ferramentas que se articulam com temas e questões da contemporaneidade, assim como a própria contemporaneidade da leitura. Nas salas de aula, a existência de uma literatura infanto-juvenil de boa qualidade pode permitir estabelecer essas pontes entre o texto de hoje e os textos clássicos do patrimônio nacional e mundial.

Essa questão nos remete às pesquisas que evocamos, particularmente aos trabalhos recentes sobre o lugar do sujeito leitor em didática da literatura. Na tradição escolar, a recepção dos textos pelo sujeito leitor tem pouco espaço. O que importa antes de mais nada é levar o aluno àquilo que consideramos como boa compreensão ou uma boa interpretação. Essa interpretação correta, na antiga tradição pedagógica, supunha identificar a intenção do autor (o que chamamos o texto do autor). Considerava-se também e, sem dúvida, considera-se ainda hoje, implicitamente, que a boa interpretação do aluno é aquela que se cola à do professor (o que chamamos de o texto do professor). Nos anos 1960, por

reação, o estruturalismo quis glorificar o texto, desvinculando-o de todo aporte biográfico e histórico, declarando inclusive, com Barthes ,a “morte do autor”. Durante uma determinada época, toda a atenção foi então voltada para o texto, unicamente para o texto, a fim de extrair dele redes de significação. Nos últimos tempos, os trabalhos sobre a recepção e as pesquisas em didática evidenciaram um aspecto essencial da leitura: a existência de um texto do leitor, produto da recreação original que representa toda leitura. Nessa perspectiva, o jovem leitor em formação passa do estatuto de simples receptor passivo à de ator cultural, de cocriador. Em consequência, é importante saber: como fazer aparecer o texto de cada leitor e que valor conceder a ele; como usá-lo na análise literária e na condução da aula; que fontes intelectuais, psíquicas, culturais, sociais, alimentam esse texto do leitor. Essas fontes, repousam claramente sobre a diversidade das culturas e das experiências de vida, o que supõe uma nova questão, introduzida por Catherine Tauveron: que lugar dar aos ”direitos do leitor” e aos ”direitos do texto”? Como não se deixar levar pelos delírios interpretativos individuais ou coletivos? E, enfim, que lugar dar ao texto do professor, à autoridade e ao saber do professor? Classicamente, supõe-se que o texto do professor ajuda o aluno a descobrir o texto, o texto do autor. O texto do professor teria por objetivo levar cada aluno a melhor construir seu próprio texto a partir do texto do autor. Entretanto, a análise das práticas mostra que, se o texto do professor pode guiar o aluno, não é incomum que seja um obstáculo para a aparição do texto do leitor, até finalmente impor uma leitura magistral. Por último, apontarei um questionamento decorrente da tese de Pierre Bayard: na medida em que o “texto se constitui de uma parte importante de reações individuais de todos aqueles que o encontram e o animam com sua participação”, como organizar e gerir em sala de aula essa polifonia interpretativa dos leitores? Eis aí um vasto campo de pesquisa e de formação.

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Pistas pedagógicas fecundas foram abertas nesses últimos anos e se inscrevem num vasto campo de renovação da aprendizagem da leitura e do ensino da literatura, mesmo que ainda devam ser aprofundadas. Entre elas, quero citar a prática da intertextualidade, que se traduz didaticamente pela organização de leituras em redes, o debate interpretativo, os círculos de leitores – ambos susceptíveis de favorecer a emergência do sujeito leitor –, a leitura em voz alta (reconsiderada em suas funções escolares), o diário de leitura. Diretamente provenientes das pesquisas, essas proposições serão certamente retrabalhadas, redefinidas, enriquecidas nos próximos anos. Sua eficácia dependerá essencialmente da associação a uma pedagogia da compreensão, preocupada em ensinar as estratégias de leitura e ajudar os alunos a construírem os saberes culturais, cognitivos e metacognitivos indispensáveis para superar as dificuldades na leitura, no tratamento da informação e na realização de inferências tanto textuais quanto extratextuais.

Você tem falado sobre a configuração das bibliotecas, a importância da inserção e atualização das bibliotecas no mundo digital. Na França, os profissionais que trabalham nas bibliotecas escolares têm uma formação específica na universidade?

Sim, na universidade, nas ESPE, é oferecida uma formação em nível de mestrado para os futuros bibliotecários e documentaristas escolares que irão atuar depois em todas as escolas do ensino médio e no ensino fundamental II, uma vez que essa presença é uma obrigação institucional. Necessariamente, essa formação dos bibliotecários em cinco anos, no nível de mestrado, prepara para a gestão de informática de um centro de documentação, mas também para a formação dos leitores e o ensino do tratamento da informação. É claro que hoje em dia as bibliotecas, sem deixar de lado a promoção tradicional da cultura da escrita, têm que se reposicionar como cybercentros a serviço

da informação e da formação permanente de todos. Elas têm um papel insubstituível para conjugar as antigas práticas de leitura com as novas. Na França, os professores se inspiraram bastante no modelo das bibliotecas públicas para criar as bibliotecas escolares. Um dos maiores objetivos das bibliotecas como centros documentários nas escolas era modificar a relação com o saber e o acesso à informação; tratava-se de modificar a clássica relação frontal, vertical, entre um professor e uma sala de trinta alunos, durante uma hora, um dia, um ano, muitos anos... A ideia era permitir a cada um construir seus saberes numa outra configuração, de modo mais autônomo, responsável, diferente do tradicional frente a frente aluno-professor. Hoje ainda há muito a se fazer nessa área. A revolução digital oferece muitas possibilidades, mas tudo vai depender da inserção dessas novas ferramentas no universo escolar.

Será que elas vão abrir um novo gap? O que estamos tentando colher ao promover acessos, meios e políticas de inclusão por meio das tecnologias é uma crença de que se pode vencer, apesar da falta de uma herança cultural. O fato é que 90% da população brasileira está na escola pública e esses alunos não têm herança letrada. Entretanto, eles têm acesso às tecnologias muito mais do que aos livros. Como isso se repercute na escola, principalmente no que se refere à leitura? Mais uma vez, como fica o papel da escola?

As novas tecnologias oferecem ferramentas extraordinárias para construir os saberes, sem dúvida. Mas é possível também que sejamos vítimas de novas ilusões, como foi o caso anterior, quando da aparição do audiovisual. A ferramenta é uma coisa, o domínio da mesma é outra coisa; a introdução e a inclusão dessa inovação na sala de aula é, por sua vez, uma terceira coisa. Dispor de milhares de informações na web não implica automaticamente a apropriação delas. A localização, o tratamento, a análise, os usos das fontes de informação

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demandam uma aprendizagem complicada e requerem professores capazes de acompanhar esse percurso. A leitura e a pesquisa sobre qualquer suporte necessitam de uma formação constante, ao longo de toda a escolarização. Nesse âmbito, o papel da biblioteca e o dos professores de leitura se torna essencial. Essas realidades foram aclaradas pelas últimas avaliações PISA, que, pela primeira vez, propuseram provas de leitura em monitores para avaliar as competências mobilizadas na leitura digital. Por enquanto, esse campo de formação é pouco explorado. Ainda que um movimento de interação do digital pareça estar se afirmando, ele é ainda tímido. Quando falei sobre o afastamento e a distância entre as práticas de ensino e as práticas culturais reais das crianças e jovens, referi-me também a esse aspecto da modernidade tecnológica. Uma parte importante das leituras invisíveis dos alunos é digital. Nesta época da comunicação informática e da revolução tecnológica, como poderíamos deixar de incluir essa dimensão no nosso trabalho com os alunos, já que eles nasceram nesse mundo? Entretanto, as escolas, muitas vezes, fogem desse mundo. Em muitos países, os jovens utilizam com frequência mais a informática e as tecnologias fora da

escola. Ora, se essa aprendizagem dos usos se realiza e se aprofunda longe da esfera escolar, é preciso considerar que ela é também marcada socialmente. As desigualdades se mantêm vivas no que concerne às possibilidades de acesso à informação digital. Existem novas formas de analfabetismo funcional e é bem possível que os novos iletrados sejam dos mesmos meios sociais que os antigos alunos fracos, maus leitores sobre o suporte papel. Nesse campo, como em muitos outros, a escola pode contribuir para a melhoria das oportunidades e das perspectivas de cada aluno, mas sabemos que sozinha não é capaz de impor transformações radicais na estrutura e nas relações sociais. Se a sociedade continua a reproduzir desigualdades, isso vai se encontrar novamente na escola, inclusive no uso escolar das tecnologias para formar o leitor que se deseja no século XXI. Dito isso, continuo, apesar de tudo, relativamente confiante, pois, se observarmos os grandes mecanismos de nossas sociedades, em longo prazo, a educação é sempre percebida como uma engrenagem capaz de melhorar a relação com o mundo de cada um. Estou persuadido de que ela continuará a funcionar assim. E é certamente isso que dá sentido a nossos esforços.

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Processo de avaliação pelos pares

Os artigos recebidos para eventual publicação em Educação e Pesquisa serão previamente avaliados pela Comissão Editorial. Aqueles que estiverem fora dos critérios editoriais da revista serão devolvidos e os demais encaminhados para a análise de pareceristas, sendo no máximo um deles membro da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, à qual esta publicação está subordinada. Os avaliadores consultados terão, no mínimo, o título de doutor e pertencerão a instituições científicas diversas. Os nomes dos autores, dos pareceristas e das instituições a que pertencem permanecerão em sigilo durante todo o processo. A revista publica anualmente os nomes de seu corpo de pareceristas ad hoc.

Os aspectos que orientam a avaliação dos originais encaminhados aos pares para análise são: conteúdo teórico e empírico, domínio da literatura científica, atualidade do tema, contribui-ção para a área de conhecimento específica, originalidade da abordagem, estrutura do texto e qualidade da redação. Os avaliadores poderão recomendar a aceitação integral do texto, indicar recusa ou, ainda, sugerir modificações para nova avaliação. A Comissão Editorial poderá sub-meter as sugestões de reformulações ao autor e o artigo, já reformulado, retornará aos mesmos avaliadores para um parecer final.

Autoria

Entende-se como autor todo aquele que tenha efetivamente participado da concepção do estudo, do desenvolvimento da parte experimental, da análise e interpretação dos dados e da redação final. Recomenda-se não ultrapassar o número total de quatro autores. Caso a quantidade de autores seja maior do que essa, deve-se informar ao editor responsável o grau de participação de cada um. Em caso de dúvida sobre a compatibilidade entre o número de autores e os resultados apresentados, a Comissão Editorial reserva-se o direito de questionar as participações e de recusar a submissão se assim julgar pertinente.

Ao submeter um artigo para publicação em Educação e Pesquisa, o autor concorda com os seguintes termos:

1. O autor mantém os direitos sobre o artigo, mas sua publicação na revista implica, au-tomaticamente, a cessão integral e exclusiva dos direitos autorais para a primeira edição, sem pagamento.2. As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões da revista. 3. Após a primeira publicação, o autor tem autorização para assumir contratos adicionais, independentes da revista, para a divulgação do trabalho por outros meios (ex.: publicar em repositório institucional ou como capítulo de livro), desde que feita a citação completa da mesma autoria e da publicação original.4. O autor de um artigo já publicado tem permissão e é estimulado a distribuir seu trabalho on-line, sempre com as devidas citações da primeira edição.

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Conflitos de interesse e ética de pesquisa

Caso a pesquisa desenvolvida ou a publicação do artigo possam gerar dúvidas quanto a potenciais conflitos de interesse, o autor deve declarar em nota final que não foram omitidas quaisquer ligações a órgãos de financiamento, bem como a instituições comerciais ou políticas. Do mesmo modo, deve-se mencionar a instituição à qual o autor eventualmente esteja vinculado, ou que tenha colaborado na execução do estudo, evidenciando não haver quaisquer conflitos de interesse com o resultado ora apresentado. É também necessário informar que as entrevistas e experimentações envolvendo seres humanos obedeceram aos procedimentos éticos estabelecidos para a pesquisa científica.

Os nomes e endereços informados à revista serão utilizados exclusivamente para os serviços prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.

Correspondência:Faculdade de Educação - USPEducação e PesquisaAv. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca05508-040 - São Paulo/SPTel./Fax: (11) 3091-3520E-mail: [email protected]

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Instructions to authors

Educação e Pesquisa publishes only previously unpublished articles in the field of education and does not consider manuscripts concurrently submitted for publication in books or other periodicals in Brazil or abroad. Manuscripts must be submitted via the journal’s page in SciELO publishing system (http://www.scielo.org/php/index.php).

The time frame necessary for submissions to complete the review process – and be selected or rejected – varies according to the complexity of the reviews and possible changes suggested and implemented. The dates of receipt and approval of each article are stated in the published text. For each of the journal’s issues, the Editorial Board establishes the criteria of organization of the articles approved.

Guidelines for manuscript submission

Upon submission of an article, authorship and the author’s institutional affiliations must be filled out in proper spaces in SciELO System and should not be mentioned in the text, which will be submitted to blind peer review. Any references that enable reviewers to infer indirectly the authorship of the work are not accepted either. Authorship information is recorded separately, as metadata, and it is accessed only by the editors.

When preparing the manuscript, the following guidelines should be followed:

• The manuscript can be submitted in Portuguese, Spanish or English. It should be typed in Word for Windows, Times New Roman font, 12-point font size, 1.5 line spacing. All the manuscript pages should be numbered sequentially. The body of the manuscript should have a minimum length of 35,000 and a maximum length of 50,000 characters, including spaces and not including the abstract.

• The title of the manuscript should have 15 words or fewer.

• The abstract should contain between 200 and 250 words and describe, in an informative manner and without listing topics, the following items: general theme and research problem; objectives and/or hypotheses; methodology; main results and conclusions. It is recommended that the abstract should be written as a single paragraph, in the active voice, in the third person of the singular, in concise and affirmative sentences. The following items should be avoided: neologisms, bibliographical citations, symbols and abbreviations except those in common use, as well as formulae, equations, diagrams etc., unless absolutely necessary. The journal does not require an English version of the abstract along with the original text; if an article is accepted for publication the journal will provide an English version of its abstract.

• The article should have 3 to 5 keywords.

• Possible acknowledgements should be cited with the title, but in a footnote, and without any direct or indirect reference to the authorship.

• Tables, charts, graphs, and figures (photos, drawings and maps) should be numbered with Arabic numerals in the order in which they appear in the text and should include appropriate headers. Legends should appear right below each figure. Maps should contain graph scales and legends.

570

• Images must be grayscale, be scanned electronically in JPG format with 300 dpi or higher resolution and have dimensions that allow reducing or enlarging them without impairing their readability. All images must be submitted as separate files and named according to their references in the text (e.g., Graph 1).

• Explanatory footnotes should be avoided and used only when strictly necessary for understanding the text. Their maximum length should be three lines. Notes should be numbered in Arabic numerals according to the order in which they appear in the text.

• Citations in the text should meet the following criteria:a) quotations of up to three lines should be run in – integrated into the text in the same font size as the text - enclosed in quotation marks and be followed by the following information in parentheses: last name of the author of the quote, the year of publication and page numbers;b) quotations longer than three lines should be set off as block quotations – that is, in a new paragraph with a hanging indent of 4 cm on the left, 11 point font, without quotation marks;c) if there is no quotation, but just a reference to some work, the author’s last name should be cited in parentheses in capital letters along with the year of publication.

• References must conform strictly with the technical standard NBR6023 of August 30, 2002 of the Brazilian Association of Technical Standards (ABNT). Only works cited in the text should be included in the reference list, under the heading References, at the end of the article and on a separate page.

Statistical methods

When employed, statistical methods must be described in sufficient detail to allow a com-petent reader access to the original data and verification of the results presented, whilst avoiding excessively technical language and presenting results with enough clarity so as to facilitate their understanding by a non-specialized reader. This guidance to authors requires steps such as: seeking, as much as possible, to quantify the results and present them with corresponding indi-cators of measurement error or uncertainty (for example, confidence intervals); avoiding relying solely on statistical inference tests that convey no relevant quantitative information; discussing the eligibility of the experimentation units; supplying detailed information about randomization and about the observations; discussing the reasonableness of the results, as well as the possible limitations of the method used; specifying the software employed; restricting tables and graphics to the amount necessary to explain the foundations of the article and their robustness; avoiding tables with too many topics and duplication of data; defining statistical terms, abbreviations and symbols used in the article.

571

Peer review process

The articles received for their eventual publication in Educação e Pesquisa will be previously read by the Editorial Board. The articles that do not meet the editorial requirements shall be returned, and the rest of them will be forwarded to three evaluators for their analysis. At the most, one of the evaluators will be a member of the School of Educaton of the Universidade de São Paulo, to which the journal is subordinated. All evaluators have at least a doctor’s degree and belong to various scientific institutions. The names of the authors, the evaluators and the institutions they belong to will remain undisclosed throughout the entire process. The journal publishes annually the names of its body of evaluators ad hoc.

The aspects that guide the evaluation of the articles are: theoretical and empirical content, author’s knowledge of scientific literature, current relevance of the topic, contribution to the specific area of knowedge, originality of the approach, text structure and writing style. The evaluators may recommend the integral acceptance of the text or its rejection, or they may suggest modifications for a new evaluation. The Editorial Board may submit such suggestions to the author of the article, and after the changes have been included, the Board will send the article again to the evaluators for a final evaluation

Authorship

Author is understood here as anyone who has effectively taken part in the conception of the study, in the development of the experimental sections, in the analysis and interpretation of data and in the final writing. It is recommended that the total number of authors should not be greater than four. If the number of authors is larger than that, the editor in charge must be informed of the degree of participation of each author. In the case of doubt about the compatibility between the number of authors and the results presented, the Editorial Board has the right to question the participation of authors and to refuse submission at its discretion.

By submitting an article for publication in Educação e Pesquisa the author agrees to the following terms:

1. The author holds the article copyrights, but its publication in the journal automatically implies the author’s agreement to release its complete copyright to the journal’s first issue, without financial compensation.2. The ideas and opinions expressed in the article are the author’s exclusive responsibility and they do not necessarily reflect the opinions of the journal.3. After the article’s first publication, the author is authorized to assume additional contracts, independent from the journal, to publish or present the work through other means (e.g. in an institutional repository or as a book chapter), as long as a complete quote of the authorship and of the original publication are provided.4. The author of an article published in the journal has the right to, and is encouraged to, distribute the work on-line, always quoting its first publication in the journal.

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Conflicts of interest and research ethics

When the research developed or the publication of the article may raise doubts about potential conflicts of interest, the author should declare in an endnote that no links to funding agencies or to commercial or political institutions have been omitted. Similarly, the institution to which the author is associated, or that has collaborated in the conducting of the study, should also be mentioned to guarantee that there are no conflicts of interest with the results being presented. It is also necessary to inform that the interviews and experiments involving human beings have followed the ethical procedures established for scientific research.

The names and email addresses entered in this journal site will be used exclusively for the stated purposes of this journal and will not be made available for any other purpose or to any other party.

Contact:Faculdade de Educação - USPEducação e PesquisaAv. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca05508-040 - São Paulo/SPTel./Fax: (11) 3091-3520E-mail: [email protected]

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Educação e Pesquisa publica solamente artículos inéditos en el área de Educación y no acepta trabajos que hayan sido enviados simultáneamente a libros u otros periódicos nacionales o extranjeros. Los trabajos se deben enviar a través de la página de la revista en el Sistema SciELO de Publicação (http://www.scielo.org/php/index.php).

El plazo para respuesta (aceptación o rechazo) varía según la complejidad de las evaluaciones y posibles alteraciones sugeridas y realizadas. Las fechas de recibimiento y aprobación de cada colaboración se informarán en el texto publicado. Le corresponde al Comité Editorial definir, en cada número de la revista, los criterios para reunir los artículos ya aprobados.

Directrices para la presentación de trabajos

Al proponer un artículo, la identificación del (de los) autor(es) y la pertenencia institucional se deben rellenar en los espacios propios del Sistema SciELO y no deben figurar en el cuerpo del texto, que se enviará para evaluación. No se aceptará ninguna referencia que le permita al lector crítico inferir indirectamente la autoría del trabajo. Las informaciones autorales se registran a parte y solamente los editores tienen acceso a ellas. De esa forma, el Comité Editorial garantiza el anonimato de autores y evaluadores.

Al redactar el artículo, se deben considerar las siguientes orientaciones:

• El texto se puede presentar en portugués, español o inglés, se debe digitar en procesador de texto Word for Windows, en Times New Roman 12 pto, espacio 1,5. Todas las páginas del original se deben numerar secuencialmente. El texto debe tener como mínimo 35.000 caracteres y como máximo 50.000, considerando espacios y excluyendo el resumen.

• El título del artículo debe tener como máximo 15 palabras.

• El resumen debe contener entre 200 y 250 palabras y explicitar, con carácter informativo y sin enumeración de tópicos, los siguientes ítems: tema general y problema de la investiga-ción; objetivos y/o hipótesis; metodología empleada; principales resultados y conclusiones. Se recomienda el uso de un único párrafo, voz activa y tercera persona del singular, frases concisas y afirmativas. Se deben evitar: neologismos, citaciones bibliográficas, símbolos y contracciones que no sean de uso corriente, así como fórmulas, ecuaciones, diagramas, etc. que no sean absolutamente necesarios. La revista no solicita la versión en inglés en la entrega de los originales, sino que le encarga el abstract a un traductor una vez aprobado el artículo.

• Se deben incluir de 3 a 5 palabras clave.

• Los agradecimientos (opcionales) se deben mencionar junto al título, pero en nota de pie de página y sin ninguna referencia, directa o indirecta, a la autoría.

• Tablas, cuadros, gráficos y figuras (fotos, dibujos y mapas) deben estar numerados con números arábigos según la secuencia en que aparezcan, siempre referidos en el cuerpo del

Instrucciones a los autores

574

texto y encabezados por su respectivo título. Inmediatamente debajo de las figuras deben constar sus respectivos subtítulos. Los mapas deben presentar escalas y subtítulos gráficos.

• Las imágenes deben figurar en blanco y negro y deben estar digitalizadas electrónicamente en formato JPG con resolución a partir de 300 ppp. Deben presentarse en dimensiones que permitan ampliarlas o reducirlas sin perjudicar su legibilidad. Todas las imágenes deben enviarse separadamente, en sus archivos originales. El nombre de cada archivo debe corresponder al nombre de la imagen (por ejemplo: Gráfico 1).

• Notas de pie de página de carácter explicativo se deben evitar. Pueden utilizarse únicamente cuando sean imprescindibles para la comprensión del texto y deben tener la extensión máxima de tres líneas. Las notas deben estar numeradas con números arábigos según la secuencia en que aparezcan en el texto.

• Las citas en el cuerpo del texto deben obedecer a los siguientes criterios:a) Citas textuales que tengan hasta tres líneas se deben incorporar al párrafo, transcritas entre comillas y acompañadas de las siguientes informaciones entre paréntesis: apellido del autor de la cita, año de publicación y número de página;b) Citas textuales que tengan más de tres líneas deben estar en párrafo aislado, con margen izquierdo de 4 cm, letra tamaño 11 y sin comillas;c) Si no hay cita textual sino cita bibliográfica, el apellido del autor tiene que estar indicado entre paréntesis, con letras mayúsculas, junto al año de la publicación mencionada.

• Las referencias deben obedecer a la norma técnica NBR6023, de 30/08/2002, de la Asso-ciação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Solamente las obras mencionadas a lo largo del texto deben figurar en la bibliografía, que debe constar con el título de Referencias, al final del texto y en página separada.

Métodos y estadísticas

Cuando utilizados, los métodos estadísticos se tienen que describir con el detalle necesario para permitir el acceso a los datos originales y la comprobación de los resltados presentados por un lector versado en el asunto; por otro lado, se debe evitar un lenguaje excesivamente técnico y presentarlo con suficiente claridad de modo a favorecer la comprensión de un lector no especia-lizado. Tal solicitud a los autores requiere providencias tales como: buscar, siempre que posible, cuantificar los resultados y presentarlos con los correspondientes indicadores de error de medición o de incertidumbre (por ejemplo, intervalos de confianza); evitar basarse solamente en tests de inferencia estadística, que no vehiculan información cuantitativa relevante; discutir la elegibilidad de las unidades de experimentación; proveer información pormenorizada sobre lo aleatorio y sobre las observaciones; discutir la razonabilidad de los resultados y dar a conocer posibles limitacio-nes del método utilizado; especificar los programas informáticos empleados; restringir cuadros y figuras a la cantidad necesaria para explicitar la fundamentación del artículo y su solidez; evitar cuadros con demasiados tópicos y duplicación de datos; definir términos estadísticos, abreviaturas y símbolos utilizados en el artículo.

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Proceso de revisión por pares

Los artículos enviados para eventual publicación en la Educação e Pesquisa serán previamente evaluados por el Comité Editorial. Los que no estén de acuerdo con los criterios editoriales de la revista se devolverá a sus autores y los demás enviados para análisis de tres evaluadores, como máximo uno de ellos será miembro de la Facultad de Educación de la Universidad de São Paulo, a la que la revista está subordinada. Los evaluadores consultados pertenecen a instituciones científicas diversas y tendrán, como mínimo, el título de doctor. Los nombres de los autores, de los evaluadores y de las instituciones a que pertenecen permanecen anónimos durante todo el proceso. La revista publica a cada año los nombres de sus evaluadores ad hoc.

Los aspectos que orientan la evaluación de los originales enviados a los pares para el análisis son: contenido teórico y empírico, dominio de la literatura científica, actualidad del tema, contribución para el área de conocimiento específica, originalidad del abordaje, estructura del texto y calidad de redacción. Los evaluadores podrán recomendar la aceptación del texto en su íntegra, o su rechazo, o aun sugerir modificaciones para nueva evaluación. El Comité Editorial podrá someter las sugerencias de reformulación al autor y el artículo, ya reformulado, retornará a los mismos evaluadores para una evaluación final.

Autoría

Se entiende por autor todo el que haya participado efectivamente de la concepción del estu-dio, del desarrollo de la parte experimental, del análisis e interpretación de datos y de la redacción final. Se recomienda no exceder el número total de cuatro autores. En el caso de que la cantidad de autores exceda ese número, se debe informar al editor responsable el grado de participación de cada uno. Si hay alguna duda sobre la compatibilidad entre el número de autores y los resul-tados presentados, el Comité Editorial se reserva el derecho de cuestionar las participaciones y de rechazar la sumisión del artículo si lo juzga pertinente.

Al someter un artículo para publicación en Educação e Pesquisa el autor está de acuerdo con los siguientes términos:

1. El autor mantiene los derechos sobre el artículo, pero su publicación en la revista implica, automáticamente, la cesión total y exclusiva de los derechos de autor para la primera edición, sin pago.2. Las ideas y opiniones expresadas en el artículo son de exclusiva responsabilidad del autor y no reflejan necesariamente las opiniones de la revista. 3. Después de la primera publicación, el autor tiene autorización para asumir contratos adicionales, independientes de la Revista, para la divulgación del trabajo por otros medios (ex.: publicar en repositorio institucional o como capítulo de libro), desde que hecha la cita completa de la misma autoría y de la publicación original.4. El autor de un artículo ya publicado tiene permiso y es estimulado a distribuir su trabajo online, siempre con las debidas citas de la primera edición.

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Conflictos de interés y ética de investigación

En el caso de que la investigación desarrollada o la publicación del artículo puedan ge-nerar dudas en cuanto a potenciales conflictos de interés, el autor debe declarar en nota final que no se han omitido cualesquiera relaciones con órganos de financiamiento ni tampoco con instituciones comerciales o políticas. De la misma manera, se debe mencionar la institución a la que el autor esté vinculado, o que haya colaborado en la ejecución del estudio, evidenciando que no hay cualquier tipo de conflictos de interés con el resultado que se presenta. También es necesario informar que las entrevistas y experimentos que impliquen a seres humanos obedezcan a los procedimientos éticos establecidos para la investigación científica.

Los nombres y las direcciones informados en esta revista serán utilizados exclusivamente para los servicios dados por la publicación, no estarán disponibles a otros propósitos o a terceros.

Correspondencia:Faculdade de Educação - USPEducação e PesquisaAv. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca05508-040 - São Paulo/SPTel/Fax: (11) 3091-3520E-mail: [email protected]

Leia também / See also

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Sumários

Educação e Pesquisar e v i s t a d a f a c u l d a d e d e e d u c a ç ã o d a u s p

Educação e Pesquisav. 40, n. 4, out./dez. 2014

Artigos

ROMÁN, Marcela; MURILLO, F. Javier. Disponibilidad y uso de TIC en escuelas latinoamericanas: incidencia en el rendimiento escolar. p. 879-895.

RICOY, María Carmen; COUTO, Maria João V. S. As boas práticas com TIC e a utilidade atribuída pelos alunos recém--integrados à universidade. p. 897-912.

KRISCAUTZKY, Marina; FERREIRO, Emilia. La confiabilidad de la información en Internet: criterios declarados y utilizados por jóvenes estudiantes mexicanos. p. 913-934.

BORGES, João Paulo Fonseca; COELHO JUNIOR, Francisco Antonio; FAIAD, Cristiane; FERREIRA, Natália. Diagnóstico de competências individuais de tutores que atuam na modalidade a distância. p.935-951.

MORAIS, Carla; PAIVA, João. Olhares e reflexões contemporâneas sobre o triângulo sociedade-educação-tecnologias e suas influências no ensino das ciências. p. 953-964.

QUINTRIQUEO, Segundo; QUILAQUEO, Daniel; TORRES, Héctor. Contribución para la enseñanza de las ciencias naturales: saber mapuche y escolar. p.965-982.

CAVALCANTI, Alberes de Siqueira. Olhares epistemológicos e a pesquisa educacional na formação de professores de ciências. p. 983-998.

ALMEIDA, Sheila Alves de; GIORDAN, Marcelo. A revista Ciência Hoje das Crianças no letramento escolar: a retextualização de artigos de divulgação científica. p. 999-1014.

ARAOS, Ximena Troncoso. Literatura y competencia comunicativa: ¿matrimonio mal avenido?. p. 1015-1028.

CORAZZA, Sandra Mara; RODRIGUES, Carla Gonçalves; HEU-SER, Ester Maria Dreher; MONTEIRO, Silas Borges. Escrileitu-ras: um modo de ler-escrever em meio à vida. p. 1029-1044.

ABRANTES, Pedro; ROLDÃO, Cristina. Faces e metamorfoses do poder: uma sociografia dos ministros da educação no Portugal democrático. p.1045-1060.

CACETE, Núria Hanglei. Breve história do ensino superior brasileiro e da formação de professores para a escola secundária. p. 1061-1076.

CUNHA, Marcela Brandão. Possíveis relações entre percep-ções de violência dos alunos, clima escolar e eficácia co-letiva. p. 1077-1092.

DAINÊZ, Débora; SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. O conceito de compensação no diálogo de Vigotski com Adler: desen-volvimento humano, educação e deficiência. p.1093-1108.

Entrevista

GALIAN, Cláudia Valentina Assumpção; LOUZANO, Paula Baptista Jorge. Michael Young e o campo do currículo: da ênfase no “conhecimento dos poderosos” à defesa do “conhecimento poderoso”. p. 1109-1124.

Educação e Pesquisav. 41, n. 1, jan./mar. 2015

Artigos

DOZOL, Marlene de Souza. Jean-Jacques Rousseau entre uma poética da superfície e a ideia de infância. p.17-31.

SILVA, Roberto da. A eficácia sociopedagógica da pena de privação da liberdade. p. 33-48

BOLEIZ JÚNIOR, Flávio.Trabalho e práxis e sua relação com as pedagogias de Célestin Freinet e de Paulo Freire. p. 49-62.

LIMA, Rita de Cássia Pereira; CAMPOS, Pedro Humberto Faria. Campo e grupo: aproximação conceitual entre Pierre Bourdieu e a teoria moscoviciana das representações sociais. p. 63-77.

RIBEIRO, Marlene. Reforma agrária, trabalho agrícola e educação rural: desvelando conexões históricas da educação do campo. p. 79-100.

TERRÓN-CARO, Teresa; PALMA, Verónica Cobano-Delgado. Interculturalidad e inclusión del alumnado marroquí en educación primaria de Andalucía. p. 101-117.

MOREIRA, André; VÓVIO, Claudia Lemos; MICHELI, Denise De. Prevenção ao consumo abusivo de drogas na escola: desafios e possibilidades para a atuação do educador. p. 119-135.

ALVES, Luciana; BATISTA, Antônio Augusto Gomes; RIBEIRO, Vanda Mendes; Érnica, Maurício. Seleção velada em escolas públicas: práticas, processos e princípios geradores. p. 137-152.

FERREIRA, Carlos Alberto. A avaliação das aprendizagens no ensino básico português e o reforço da avaliação sumativa externa. p. 153-169.

RAMÍREZ, Javier F. A. Vega; RUIZ, Alberto Galaz. Evidencias para una transformación y complejización del modelo chileno de evaluación docente. p. 171-183.

PASSONE, Eric Ferdinando Kanai. Notas psicanalíticas: os discursos contemporâneos acerca da avaliação educacional no Brasil. p. 185-201.

OLIVEIRA, Damião Bezerra; ABREU, Waldir Ferreira de. Conhecimento, arte e formação na República de Platão. p. 203-215.

HERMANN, Nadja Pensar arriscado: a relação entre filosofia e educação. p. 217-228.

PEREIRA, Rafael Ferreira de Souza Mendes. Das perguntas wittgensteinianas à pedagogia das competências: ou desmontando a caixa-preta de Perrenoud. p. 229-242.

Entrevista

MORETTI, Vanessa Dias; PANOSSIAN, Maria Lúcia; MOURA, Manoel Oriosvaldo de. Educação, educação matemática e teoria cultural da objetivação: uma conversa com Luis Radford. p.243-260.

Tradução

NÓVOA, António. Em busca da liberdade nas universidades: para que serve a pesquisa em educação? p. 263-272.

Educação e Pesquisav. 40, n. 2, abr./jun. 2014

Artigos

PACKER, Abel Laerte. A eclosão dos periódicos do Brasil e cenários para o seu porvir, p. 301-323.

REGO, Teresa Cristina. Produtivismo, pesquisa e comunicação científica: entre o veneno e o remédio, p. 325-346.

BENCHIMOL, Jaime L.; CERQUEIRA, Roberta C.; PAPI, Camilo. Desafios aos editores da área de humanidades no periodismo científico e nas redes sociais: reflexões e experiências, p. 347-364.

ALVES, Mariana Gaio; AZEVEDO, Nair Rios; GONÇALVES, Teresa N. R. Satisfação e situação profissional: um estudo com professores nos primeiros anos de carreira, p. 365-382.

RAMOS, Madalena; PARENTE, Cristina; SANTOS, Mónica. Os licenciados em Portugal: uma tipificação de perfis de inserção profissional, p. 383-400.

ABREU, Daniela Gonçalves de; MOURA, Manoel Oriosvaldo de. Construção de instrumentos teórico-metodológicos para captar a formação de professores, p. 401-414.

FERNANDES, Priscila Correia; MUNFORD, Danusa; FERREIRA, Marcia Serra. Sentidos de prática pedagógica na produção brasileira sobre formação inicial de professores de ciências (2000-2010), p. 415-434.

PAULA, Benjamin Xavier de; GUIMARÃES, Selva. 10 anos da lei federal nº 10.639/2003 e a formação de professores: uma leitura de pesquisas científicas, p. 435-448.

MONTEIRO, Sara Mourão; SOARES, Magda. Processos cognitivos na leitura inicial: relação entre estratégias de reconhecimento de palavras e alfabetização, p. 449-466.

MARCHIORI, Patricia Zeni; GREEF, Ana Carolina. Atividade de escrita colaborativa: percepção de alunos, princípio cooperativo de Grice e social loafing, p. 467-482.

VALLERA, Tomás; PAZ, Ana Luísa. O sábio-aprendiz e o efêmero lugar da escrita: para uma ética da inventividade acadêmica, p. 483-498.

CORRÊA, Humberto. Antecedentes do baixo nível de escolarização alcançado por uma coorte de jovens mães brasileiras, p. 499-516.

FONSECA, Maria da Conceição Ferreira Reis; SIMÕES, Fernanda Maurício. Apropriação de práticas de numeramento na EJA: valores e discursos em disputa, p. 517-532.

TOMMASI, Livia De. Tubarões e peixinhos: histórias de jovens protagonistas, p. 533-548.

Entrevista

SALVADORI, Maria Angela Borges; BICCAS, Maurilane de Souza. Comparar: verbo transitivo; uma conversa com Jürgen Schriewer, p. 549-564.

Educação e Pesquisav. 40, n. 3, jul./set. 2014

Artigos

MENDOZA, Miguel Ángel Gómez; PIEDRANHITA, María Victoria Alzate. La enseñanza y su relación con el saber en los estudiantes universitarios colombianos. p.599-616.

BICALHO, Maria Gabriela Parenti; SOUZA, Maria Celeste Reis Fernandes. Relação com o saber de estudantes universitários: aprendizagens e processos. p. 617-636.

METZNER, Andreia Cristina. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem baseada em casos, p. 637-650.

HOFFMANN, Celina; ZANINI, Roselaine Ruviaro; CORRÊA, Ângela Cristina; SILUK, Julio Cezar Mairesse; SCHUCH JÚNIOR, Vitor Francisco; Ávila, Lucas Veiga. O desempenho das universidades brasileiras na perspectiva do Índice Geral de Cursos (IGC), p. 651-666.

LIMA, Laísy de; ALVES, Simone Salviano; RAMALHO, Jaqueline Vilar; AQUINO, Fabíola de Sousa Braz. Contribuições da perspectiva crítica de base histórico-cultural para a produção científica em psicologia educacional, p. 667-682.

FREITAS, Marcos Cezar de. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa do CRPE-SP. p. 683-698.

LÓPEZ-VELARDE, Jaime Rogelio Calderón. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas: las tesis de un concurso latinoamericano, p. 699-716.

CARVALHO, Marília Pinto de; SENKEVICS, Adriano Souza; LOGES, Tatiana Avila. O sucesso escolar de meninas de camadas populares: qual o papel da socialização familiar? p. 717-734.

PIRES, Carlos Manoel Pimenta.As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em instituições católicas, p. 735-750.

MELO, Victor Andrade de. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos. p. 751-766.

KANAMARU, Antonio Takao. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia solidária internacional, p. 767-782.

BRANCO, Maria Luísa Frazão Rodrigues. A educação progres-siva na atualidade: o legado de John Dewey. p. 783-798.

DALBOSCO, Claudio Almir. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento em Honneth e Rousseau. p. 799-812.

PIRES, Eloiza Gurgel. Experiência e linguagem em Walter Benjamin. p. 813- 826.

Entrevista

STRECK, Danilo R. . Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer, p. 829-844.

FORMAS DE PAGAMENTO

Em cheque: Nominal à FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA USP Depósito em Conta ou transferência em Conta: Banco: BANCO DO BRASILNº do Banco: 001Agência: 7009-2Conta: 13-0210-8

Nome/Instituição: _________________________________________________Endereço: ______________________________________________________CNPJ: _________________________________________________________CEP: __________ Cidade: __________________ Estado: _____ País: ________E-mail: ________________________________ Tel.: ( ) _________________Contato: _______________________________ Data: _____/ _____/ _____Estou enviando:[ ] comprovante de depósito bancário[ ] cheque nominal à Faculdade de Educação da USP, do banco____________, nº do cheque: _____________________ valor: R$ _________________.Referente a:[ ] assinatura de Educação e Pesquisa (especificar quantidades de assinaturas: ____)[ ] números avulsos: __________________________________________.

Números avulsos: R$ 25,00 Assinatura:

Assinatura anual (4 exemplares): R$ 100,00 / Pessoa Jurídica R$ 90,00 / Pessoa Física;

Assinatura bianual (8 exemplares): R$ 190,00 / Pessoa Jurídica R$ 180,00 / Pessoa Física;

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