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BOLETIM CONTEÚDO
JURÍDICO N. 534 (ano VIII)
(05/02/2016)
ISSN - 1984-0454
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Conselho Editorial
COORDENADOR GERAL (DF/GO/ESP) - VALDINEI CORDEIRO COIMBRA: Fundador do Conteúdo Jurídico. Mestre em Direito Penal Internacional Universidade Granda/Espanha.
Coordenador do Direito Internacional (AM/Montreal/Canadá): SERGIMAR MARTINS DE ARAÚJO - Advogado com mais de 10 anos de experiência. Especialista em Direito Processual Civil Internacional. Professor universitário
Coordenador de Dir. Administrativo: FRANCISCO DE SALLES ALMEIDA MAFRA FILHO (MT): Doutor em Direito Administrativo pela UFMG.
Coordenador de Direito Tributário e Financeiro - KIYOSHI HARADA (SP): Advogado em São Paulo (SP). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP.
Coordenador de Direito Penal - RODRIGO LARIZZATTI (DF/Argentina): Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.
País: Brasil. Cidade: Brasília – DF. Contato: [email protected] WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR
Boletim Conteú do Júrí dico
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SUMÁRIO
COLUNISTA DO DIA
05/02/2016 Alexandre Triches
» O direito dos professores na aposentadoria sem a incidência do
fator previdenciário
ARTIGOS
05/02/2016 Raquel de Melo Freire Gouveia » Constitucionalismo plurinacional da América Latina
05/02/2016 Natanne Lira de Morais
» Súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro
05/02/2016 Kerinne Maria Freitas Pinheiro
» A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas
05/02/2016 Natalia de Rosalmeida
» Regime Disciplinar Diferenciado - análise de sua inconstitucionalidade frente aos
direitos fundamentais e a disposições internacionais
05/02/2016 Gabriel Carneiro de Lima
» Da necessidade de motivação para demissão dos empregados de empresa públicas e
sociedades de economia mista. Entendimento STF divergente ao do TST
05/02/2016 Ramon de Sousa Nunes
» A isenção do imposto de importação em remessas internacionais de pequeno valor
MONOGRAFIA
05/02/2016 Carlos Ulisses Lisboa Cordeiro » A (in)efetividade da participação popular na Administração Pública
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O DIREITO DOS PROFESSORES NA APOSENTADORIA SEM A INCIDÊNCIA DO FATOR PREVIDENCIÁRIO
ALEXANDRE TRICHES: Advogado. Especialista em Direito Previdenciário.
Uma das profissões mais desgastantes do mundo é a de
professor. A necessidade da constante atualização, a convivência
com pessoas dos mais diversos perfis, a jornada de trabalho pesada
e o compromisso com o ensino e com a formação do aluno são
apenas algumas circunstâncias desta que é verdadeiramente uma
nobre profissão.
Justamente em razão das peculiaridades da função, os
professores do sistema privado no Brasil possuíam, até 1981, o
direito a aposentadoria especial, com redução do tempo necessário
para a jubilação em face do desgaste inerente a atividade. Contudo,
com o advento da Emenda Constitucional nº 18/81, o direito da
aposentadoria especial do professor foi extinto, deixando a
categoria dos professores sem a possibilidade da jubilação
antecipada.
Foi somente com o advento da Constituição Federal de 1988
que uma aposentadoria diferenciada aos professores foi novamente
prevista, não como aposentadoria especial, mas por tempo de
contribuição. O benefício constitucional passa a prever o direito de
redução no tempo de contribuição dos docentes em cinco anos: a
aposentadoria da professora aos 25 anos e do professor aos 30
anos.
Em que pese a previsão constitucional de uma aposentadoria
diferenciada aos professores, o parágrafo 9º do art. 29 da Lei de
Benefícios da Previdência social, com redação incluída pela Lei n.
9.876/99, prevê a incidência do fator previdenciário nos benefícios
de aposentadoria por tempo de contribuição do professor.
O fator previdenciário é um índice multiplicador do valor da
aposentadoria que leva em consideração a expectativa de vida do
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trabalhador no momento do pedido de seu benefício. No caso dos
professores, como o direito a aposentadoria é por tempo reduzido,
via de regra a aposentadoria costuma ocorrer em circunstâncias em
que o fator previdenciário reduz o valor das aposentadorias, muitas
vezes de forma bastante drástica.
Foi com base nesse raciocínio que os tribunais brasileiros
passaram a entender pela ilegalidade da incidência do fator
previdenciário nas aposentadorias por tempo de contribuição dos
professores. Assim, tem permitido a revisão de milhares de
benefícios de professores aposentados, pois todos,
necessariamente, estão sofrendo prejuízos com a incidência desta
fórmula que é nefasta para os professores brasileiros.
O principal argumento é que se o legislador constituinte tomou
a cautela de fazer constar do texto constitucional uma
aposentadoria ao professor com redução do tempo necessário à
sua outorga, é de se concluir que entendeu dar especial proteção
aos que exercem tão relevante atividade, dentre outros aspectos,
pelo desgaste físico e mental que a profissão gera, com prejuízo à
saúde desses profissionais.
Assim, os tribunais brasileiros, principalmente o Superior
Tribunal de Justiça consolidaram o entendimento de que a atividade
de magistério permite uma aposentadoria ao professor com redução
do tempo necessário à sua outorga, em cinco anos, sem a
incidência do fator previdenciário.
Portanto, todos os professores possuem o direito de postular
judicialmente a exclusão da incidência do fator previdenciário na
apuração da renda mensal dos benefícios de aposentadoria, em
funções de magistério, com revisão da renda mensal e pagamento
das parcelas retroativas.
Os tribunais têm decidido que a aposentadoria por tempo de
contribuição ao professor é extensível a todos os trabalhadores de
instituições de ensino escolar, seja infantil, fundamental, médio,
bem como ensino técnico. Além disso, fazem jus ao benefício
especial não apenas docentes que trabalhem em sala de aula, mas
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todos aqueles que, no âmbito escolar, exercem atividades
vinculadas ao ensino, seja na função de coordenação,
assessoramento, direção, monitoria etc.
Ademais, outro aspecto fundamental e que precisa ser
destacado é que, apesar de a aposentadoria por tempo de
contribuição, com regras diferenciadas, ser um direito dos
professores do ramo privado, aqueles docentes que exercem sua
função no setor público em municípios que não possuam regime
próprio de Previdência Social (RPPS), terão sua aposentadoria
regida pelo sistema do INSS, de modo que também farão jus a
revisão judicial para fins de exclusão do fator previdenciário do
cálculo do benefício, como a majoração do salário e pagamento de
parcelas retroativas.
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CONSTITUCIONALISMO PLURINACIONAL DA AMÉRICA LATINA
RAQUEL DE MELO FREIRE GOUVEIA: Advogada. Pós-graduada em Direito Público.
Resumo: O presente trabalho visa analisar o sentido de
constituição e de constitucionalismo. Primeiramente, é apresentada
a ideia de constituição e constitucionalismo tradicionalmente
estudada nos manuais de Direito constitucional. Sendo que este
constitucionalismo clássico possui como base a história da Europa,
a qual foi difundida para a América e para outras localidades em
virtude de questões históricas, principalmente pela colonização. Em
contraponto a este modelo tradicional de constitucionalismo, o
segundo ponto é a apresentação de um novo movimento
constitucional que vem sendo desenvolvido na América Latina, qual
seja o constitucionalismo plurinacional. Este novo movimento pode
ser visto com mais destaque nas Constituições do Equador de 2008
e da Bolívia de 2009. O novo constitucionalismo que vem sendo
desenvolvido na América Latina configura uma verdadeira quebra
de paradigmas e uma conquista na busca da identidade dos seus
povos originários e na concretização de seus direitos.
Palavras-chave: Constituição. Constitucionalismo.
Constitucionalismo plurinacional. Constitucionalismo da América
Latina.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa analisar o sentido de constituição e
de constitucionalismo, partindo da ideia de que a constituição é
organização e estruturação, do Estado e que o constitucionalismo é
o movimento que impulsiona a formação das constituições.
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Ocorre que não é possível chegarmos a uma definição exata
sobre o que seja uma constituição. É bastante árdua a tarefa da
doutrina de definir o termo “constituição”. O que existe de fato são
várias concepções sobre o que seja uma constituição. Da mesma
forma, não há uma única forma de constitucionalismo, mas vários
tipos de movimentos constitucionais.
Primeiramente, será apresentada a ideia de constituição e
constitucionalismo tradicionalmente estudada nos manuais de
Direito constitucional. Sendo que este constitucionalismo clássico
possui como base a história da Europa, a qual foi difundida para a
América e para outras localidades em virtude de questões
históricas, principalmente pela colonização.
Em contraponto a este modelo tradicional de
constitucionalismo, o segundo ponto é a apresentação de um novo
movimento constitucional que vem sendo desenvolvido na América
Latina, qual seja o constitucionalismo plurinacional.
Este novo movimento pode ser visto com mais destaque nas
Constituições do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009. O novo
constitucionalismo que vem sendo desenvolvido na América Latina
configura uma verdadeira quebra de paradigmas e uma conquista
na busca da identidade dos seus povos originários e na
concretização de seus direitos.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 Constituição e constitucionalismo
A palavra constituição tem sua origem no verbo construir. A
constituição é a construção/estruturação de algo. Se trouxermos
esse raciocínio para o âmbito jurídico, teremos a constituição como
um documento que organiza e estrutura os elementos de um
Estado. Nas palavras de Kildare Gonçalves Carvalho, “o direito
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constitucional refere-se à estruturação do poder político, seus
contornos jurídicos, limites de sua autuação, e aos direitos
fundamentais”. (CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito
Constitucional. p. 1)
Partindo da ideia de que a constituição é organização e
estruturação, podemos afirmar que sempre que houver uma
sociedade minimamente organizada, haverá também uma
constituição. "Em todos os lugares do mundo e em todas as épocas
sempre existiu e sempre existirá isso que chamamos de
constituição”. (Digressão desenvolvida propedeuticamente por
Ferdinand Lassalle em seus estudos – 1863)
Explicando a digressão desenvolvida por Lassalle, o
doutrinador Bernardo Gonçalves Fernandes expõe que:
Mesmo não definindo o que seja uma
constituição e seu significado, partimos de uma
digressão de que ela sempre existiu e sempre
existirá (perspectiva temporal) em todos os
lugares (perspectiva especial-universal).
(...) Bem, para provar a existência da
constituição devemos nos ater a seguinte
pergunta: o que necessitamos para vislumbrar
uma determinada comunidade, sociedade ou
(modernamente falando) um Estado? Ou seja,
quais as matérias (fundantes, basilares) para
que consigamos enxergar determinadas
comunidades (sociedades ou Estados)? Entre
vários elementos (matérias) podemos trabalhar
com três: a) identidade: ideia de “nós e outros”
(alteridade, noção de pertencimento. Aquilo que
me permite afirmar que sou cidadão de Esparta
e não de Atenas, b) organização social e
especialização (hierarquia e linha sucessória)
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quem detêm o poder (mando), e como se dá a
reprodução social nessa estrutura, c) valores
subjacentes (regras) preestabelecidos e
naturalizados a partir de um processo constritivo
que permitiu, inclusive e sobretudo, desenvolver
um tipo de organização social e especialização
do poder, bem como possibilitou a construção de
uma identidade, diferenciando-se de outras
identidades.
(...) essas matérias explicitam como os Estados
se reproduzem como tais com seus respectivos
“modos de ser”. E se existem como comunidade,
sociedade ou Estado é porque foram
constituídos e, portanto, a parti daí eles têm uma
determinada constituição.” (FERNANDES,
Bernardo Gonçalves. Curso de Direito
Constitucional. 2015, p. 29 e 30)
Assim, podemos afirmar que a constituição é a organização e
a estruturação do Estado e a limitadora do poder político. Essa é a
ideia básica trazida pelo termo “constituição”.
Ocorre que não é possível chegarmos a uma definição exata
sobre o que seja uma constituição. É bastante árdua a tarefa da
doutrina de definir o termo “constituição”. Em verdade, não temos
um consenso ou uma única definição. Como afirma Pedro Lenza,
“existem várias concepções ou acepções a serem tomadas para
definir o termo “constituição”. Alguns autores preferem a ideia da
expressão tipologia dos conceitos de constituição em várias
acepções.” (LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado.
2015. p. 89)
Podemos citar algumas das mais estudadas concepções de
constituição, como por exemplo, a concepção sociológica de
Ferdinand Lassalle, para a qual a constituição é a soma dos fatores
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reais de poder; a concepção política de Carl Schmith, na qual a
constituição pode ser definida como uma decisão política
fundamental. Temos ainda a concepção jurídica de Hans Kelsen, na
qual há uma constituição jurídico-positiva situada no vértice de uma
pirâmide (se imaginado um escalonamento normativo) que deve ser
obedecida pelas demais normas do ordenamento jurídico. A
constituição jurídico-positiva retira seu fundamento de validade de
uma constituição lógico-jurídica ou normativa abstrata, a qual existe
apenas no plano lógico-hipotético. Por fim, citamos a concepção
jurídico-normativa de Konrad Hesse que, de certa forma, se
aproxima da concepção jurídica. Esta concepção afirma que a
norma é um texto concretizado dentro de um contexto. Este
movimento de aliar o texto e o contexto é chamado pela doutrina de
círculo-hermenêutico. (LENZA, Pedro. Direito Constitucional
Esquematizado. 2015. 19ª Ed. p. 89 a 92)
Pois bem, visto o significado do termo constituição,
passaremos ao fenômeno de formação das constituições: o
constitucionalismo.
O constitucionalismo pode ser visto sob um viés amplo,
abrangendo toda a história de formação das constituições desde os
tempos mais remotos. Pode ser visto ainda por um viés restrito, no
qual o constitucionalismo é definido e estudado como sendo uma
técnica de limitação de poder. É a partir desse segundo viés que
analisaremos o constitucionalismo.
Canotilho relata a existência de vários tipos de
constitucionalismo ou movimentos constitucionais, como o inglês, o
americano e o francês. E define estes movimentos como uma
técnica específica de limitação do poder com fins garantíticos. (J. J.
Gomes Canotilho.Direito Constitucional e teoria da constituição. 7ª
Ed. p. 51)
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Assim, o constitucionalismo moderno poder ser definido como
um movimento formador de uma nova ordem jurídica, sem
precedentes na história da constituição das sociedades, formando
um “conceito ocidental de constituição”. O grande objetivo do
constitucionalismo moderno seria a limitação do poder, organização
e estruturação do Estado, bem como a consecução de direitos e
garantias fundamentais. (FERNANDES, Bernardo
Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 7ª Ed. p. 32 e 33)
O constitucionalismo moderno ou conceito ocidental de
constitucionalismo é decorrência de uma “dimensão histórico-
constitucional” de viés inglês que se desenvolveu por meio de
movimentos constitucionais desde a Magna Carta de1215 à Petition
of Rights de 1628, do Habeas Corpus Act de 1679 aoBill of
Rights de 1689. (FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de
Direito Constitucional. 7ª Ed. p. 33)
Ao falar sobre o conceito ocidental de constitucionalismo,
afirma Kildare Gonçalves que:
Apesar de tudo, entendemos indispensável
destrinçar no Estado constitucional ocidental três
grandes famílias, três grandes sistemas-tipos,
não como tipos ideais, insista-se, mas como
tipos históricos bem situados. Em vez de
dualismo ou polarização, a pluralidade em razão
da complexidade de fatores de poder. O direito
tem que ser visto numa dimensão muito mais
ampla que a da ideologia e a da afinidade de
sistemas políticos ou econômicos. O Direito faz
parte da vida dos povos e o Direito constitucioal
ostenta, positiva ou negativamente, as
particularidades da sua conveniência política, da
sua cultura, do seu ambiente humano. O fim dos
regimes autoritários e totalitários, em primeiro
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lugar, e, em segundo, os progressos da
integração comunitária levaram a que por toda a
Europa triunfasse uma concepção comum sobre
o Estado e sobre os direitos das pessoas. No
entanto, ultrapassados afrontamentos
ideológicos, tornaram-se também mais patentes
os contrastes de organização jurídica e política
entre os diversos países, de moda arecortarem-
se, com mais serenidade e clareza, os trações
identificadores dos sistemas constitucionais.
(CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito
Constitucional. 15ª Ed. p. 28)
A maior parte da doutrina estuda a história do
constitucionalismo a partir da história da Europa, a qual poder ser
dividida em Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade
Contemporânea.
Na Idade Antiga, Karl Loewenstein identificou dois
importantes acontecimentos que retratam a limitação do poder
político, caracterizando o constitucionalismo desta época.
Primeiramente, Loewenstein aponta o povo hebreu, que vivia em
um Estado teocrático, o qual tinha o poder político limitado pelas
previsões bíblicas. Em segundo, é apresentada experiência das
cidades-Estado gregas como exemplo de democracia
constitucional, estando o poder político distribuído entre todos os
cidadãos ativos. .(LOEWENSTEIR, Karl. Teoría de La constitución.
2.ed. p. 154 e155)
O Constitucionalismo medieval, durante a Idade Média, é
representado, ainda que formalmente, pela Magna Carta de 1215,
pois estabelecia importantes direitos individuais. (LENZA, Pedro.
Direito Constitucional Esquematizado. 2015. 19ª Ed. p. 71)
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Durante a Idade Moderna, temos como destaque o Petition of
Rights de 1628, o Habeas Corpus Act de 1679, o Bill of Rigths de
1689 e o Act of Settlement de 1071.
Segundo a doutrina de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a
Magna Carta de 1215 e o Pitition od Rigths são exemplos dos
chamados pactos. Estes podem ser definidos como acordos entre o
monarca e os súditos para estabelecer o modo de governo e direitos
individuais. (Curso de direito constitucional, 32ª Ed. p. 4 e 5).
Por fim, temos o constitucionalismo moderno, da Idade
contemporânea, o qual se caracteriza pelas constituições escritas
como mecanismo de combater o poder arbitrário.
Dois são os marcos históricos e formais do
constitucionalismo moderno: a constituição
norte-americana de 1787 e a francesa de 1791
(que teve como preâmbulo a Declaração
Universal dos direitos do Homem e do Cidadão
de 1789) movimento este deflagrado durante o
Iluminismo e concretizado como uma
contraposição ao absolutismo reinante, por meio
do qual se elegeu o povo como titular legítimo do
poder. (LENZA, Pedro.Direito Constitucional
Esquematizado. 2015. 19ª Ed. p. 72)
O constitucionalismo moderno pode ser analisado conforme
suas fases. Inicialmente, temos o constitucionalismo liberal, próprio
de um Estado Liberal, o qual é caracterizado pelo individualismo,
absenteísmo estatal, valorização da propriedade privada e proteção
do indivíduo. A consequência desse modelo liberal é a
concentração de renda e a exclusão social, gerando para o Estado
um dever de intervenção a fim de evitar abusos e limitar o poder
econômico. É nesse ponto que vão surgir os direitos de segunda
dimensão, amparados pelo Estado Social de Direito. Temos como
destaque nesta fase inicial do Estado Social a Constituição do
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México de 1917 e a de Weimar de 1919, bem como a Constituição
brasileira de 1934.
Hodiernamente, o constitucionalismo contemporâneo está
centrado na ideia de totalitarismo constitucional, pautado por
normas de conteúdo social e constituição programática. (BULOS,
Uadi Lammêgo.Constituição Federal anotada. 5 ed. p. 16)
2.2 Constitucionalismo Plurinacional
Um movimento, de certa forma, bastante recente, tem
desenvolvido um novo tipo de constitucionalismo, chamado de
plurinacional, o qual visa à construção de um Estado plurinacional.
Esse novo movimento chega para contrapor a forma adotada
no Estado moderno e seu respectivo sistema jurídico. A ideia central
do novo constitucionalismo plurinacional é a quebra da forma dos
Estados modernos, tendo em vista que foram idealizados a partir da
lógica da homogeneização e uniformização, ou seja, foram criados
com o ideal de negar a diversidade.
A forma moderna de Estado é estruturada através de
instrumentos de normatização e estabilização a partir da construção
de uma identidade nacional própria que afasta as possibilidades de
construção de um pensamento ou uma ordem plural.
Esse processo de “ocultamento e encobrimento”
teria se iniciado, sobretudo , no século XV (aqui
teríamos a formação do “Estado Moderno”,
tendo como data “simbólica” o ano de 1492, com
a invasão das Américas pelos europeus e a
expulsão dos mulçumanos da Europa) e se
desenvolveu até o final do século XIX com a
formação dos últimos Estados Nacionais
europeus (Itália e Alemanha). Com isso, ocorre
a preponderância dos valores europeus e de um
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processo civilizatório eurocêntrico que determina
a homogeneização de um “modelo de vida”, de
“Estado”, de “constituição” e de “direitos
humanos de matriz européia”. Com isso, o
colonizador se apresenta como alguém superior
frente ao colonizado (relação: nós e outros/
iguais e diferentes/ superiores e inferiores). As
bases jurídicas desse arcabouço foram
determinadas de forma monologa pelo direito de
propriedade, direito de família e pela proteção
jurídica à economia capitalista (e seus marcos
regulatórios).” (FERNANDES, Bernardo
Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 7ª
Ed. p. 102)
O novo constitucionalismo plurinacional ou da América Latina
é um movimento que se contrapõe ao modelo homogêneo e
uniformizador europeu. O novo constitucionalismo traz como
destaque a diversidade no âmbito da cultura, da ciência, da política,
da economia, entre outros. Bem como a constitucionalização da
referida diversidade.
O constitucionalismo plurinacional advoga uma
transformação radical nos modos de ver, pensar,
trabalhar e aplicar o direito, bem como as
constituições adstritas ao mesmo. Para tal, parte
da afirmação de que o atual modelo de Estado
nacional e de direito estatal, e até mesmo de
direito internacional se encontram em xeque.
(FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de
Direito Constitucional. 7ª Ed. p. 101)
Nem sempre foi esse o pensamento reinante na América
Latina. Pois, esta é uma área marcada pela centralização política e
a concentração de poder.
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“A América Latina, que ao longo de sua história
foi marcada por práticas políticas de
centralização e concentração de poderes,
fatores culturais e sociais, problemas
econômicos e instabilidade política, incorporou
institutos do sistema constitucional norte-
americano, como o federalismo, o controle de
constitucionalidade e o presidencialismo. O
direito constitucional da América Latina
distanciou-se, no entanto, do sistema
constitucional dos Estados-Unidos, em
decorrência, sobretudo, da prática do
presidencialismo, que assume, em diversos
países latino-americanos, contornos nitidamente
autoritários e centralizadores, acompanhado de
um sistema político-partidário que lhe dá
adequada sustentação e que envolve
multipartidarismo e representação proporcional.”
(CARVALHO, Kildare Gonçalves.Direito
Constitucional. 15ª Ed. p. 34)
Como afirmamos de início, o constitucionalismo plurinacional
é bastante recente, aparecendo com mais enfoque na Constituição
Boliviana de 2009 e na Constituição do Equador de 2008,
apresentando-se como uma verdadeira ruptura com modelo
tradicional europeu. Este novo movimento vem recebendo diversos
nomes por parte da doutrina, temos: novo constitucionalismo
democrático latino-americano, Estado plurinacional, Estado
intercultural, constitucionalismo pluralista, andino ou indígena.
Trata-se, inegavelmente, de necessária e real
transformação estrutural, e, assim, conforme
aposta Grijalva, “o constitucionalismo
plurinacional só pode ser profundamente
intercultural, uma vez que ele corresponde
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constituir-se no âmbito de relação igual e
respeitosa de distintos povos e culturas, a fim de
manter as diferenças legítimas e eliminar –ou, ao
mesmo, diminuir- as ilegítimas, mantendo a
unidade como garantia de diversidade.”
(GRIJALVA, Augutín. O Estado plurinacional e
intercultural na Constituição equatoriana de
2008. In: LENZA, Pedro. Direito constitucional
esquematizado. 19ª Ed. p. 81)
Como afirmado, o constitucionalismo plurinacional pressupõe
a quebra de paradigmas, sendo os principais, na apreciação de
Raquel Yrigoyen Frajano, o colonialismo, o constitucionalismo
liberal, o constitucionalismo social-integracionista e o
constitucionalismo pluralista. No colonialismo vigora um modelo de
“inferioridade natural dos índios” em uma estrutura de
subordinação. No constitucionalismo liberal do século XIX temos um
único sistema jurídico geral para todos. Assim, não era admitido,
dentro do mesmo Estado-nação, a coexistência de vários sistemas
jurídicos, isso gerava a exclusão de povos originários,
afrodecententes, entre outros. No constitucionalismo social-
integracionista, que possui como marco as constituições do México
de 1917 e de Weimar de 1919, define-se o modelo de integração
dos índios, faltando ainda o rompimento com a ideia de Estado-
nação e com o monismo jurídico. Por fim, o constitucionalismo
pluralista é definido por Yrigoyen Frajano a partir da divisão em três
clicos: o ciclo multicultural, o ciclo pluricultural e o ciclo
plurinascional. (Raquel Yrigoyen Frajano, El horizonte Del
constitucionalismo pluralista: Del multiculturalilismo a La
descolonización. P. 139 e 140)
O ciclo multicultural pode ser caracterizado pela introdução do
direito à identidade cultural, junto com a inclusão de direitos
indígenas específicos. Essa sistemática pode ser encontrada no
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Canadá,- 1982, no Brasil – 1988 entre outros. O ciclo pluricultural
incorpora os direitos estabelecidos na convenção 169 da OIT,
desenvolvendo o conceito de nação multiétnica e reconhece o
pluralismo jurídico. Por fim, no ciclo plurinacional os povos
indígenas demandam que sejam reconhecidos não apenas culturas
diversas, mas como nações originárias e como sujeitos políticos
coletivos com direito a participar dos novos pactos do Estado. Neste
caso, temos como exemplo as constituições do Equador – 2008 e
da Bolívia 2009.
Na constituição Boliviana há a definição de 36 novos povos
originários (que viviam na Bolívia antes da colonização européia) os
quais passaram a ter participação no estado e na economia. No
parlamento Boliviano passa a existir uma cota de parlamentares
vinda dos povos indígenas. Ainda, os índios passam a ter a
propriedade exclusiva sobre recursos florestais e hídricos de suas
comunidades. Percebe-se não apenas um reconhecimento das
diferenças, mas uma efetivação da diversidade e os respectivos
direitos. .(FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito
Constitucional. 7ª Ed. p. 103)
3 CONCLUSÃO
A história da constituição e do constitucionalismo sempre foi
vista e estudada a partir da história da Europa. O modo de pensar
e os valores europeus estão bastante infiltrados em outros
continentes por conta de fatores históricos e sociais. A colonização
dos povos da América e da África teve como consequência o
enraizamento do pensamento europeu na política, na economia, na
forma de identificar e estabelecer direitos.
Esta ainda é uma realidade bastante presente nos países que
outrora foram colonizados. Não é fácil abandonar os padrões que
estão fortemente abraçados a estas sociedades. Não é fácil se
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despir de um modo imposto de ser que os encobre há centenas d
anos.
O novo constitucionalismo da América Latina é uma grande
evolução no resgate da identidade dos seus povos originários. Este
novo constitucionalismo vem para quebrar o paradigma unitário
imposto pelos europeus colonizadores. Os povos originários
resgatam seus padrões de cultura, seu modo de pensar e de ser,
bem como de construir seu espaço e seus direitos. Não é apenas
uma questão de reconhecimento como sendo uma cultura diversa,
mas de reconhecimento como povos originários e sujeitos de direito
com poder de influenciar na construção no Estado.
REFERÊNCIA
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 5 ed.
São Paulo. Saraiva: 2000.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da
constituição. 6ª Ed. rev. Coimbra:Almedina, 1993 (7ª Ed. 2003).
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 15ª Ed.,
rev., atual. e ampl. – Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 19ª Ed.
rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2015.
LOEWENSTEIR, Karl. Teoría de La constitución. 2.ed.
Barcelona: Ariel, 1970.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito
Constitucional. 7ª Ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2015.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito
constitucional. 34 ed. ver. Atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
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FRAJANO, Raquel Yrigoyen. Aos 20 anos da convenção 169
da OIT: balanço e desafios da implementação dos direitos dos
povos indígenas na América Latina.
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SÚMULA VINCULANTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
NATANNE LIRA DE MORAIS: Graduada em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. Pós-Graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Servidora Pública do Ministério Público Federal lotada na Procuradoria da República em Imperatriz/MA.
RESUMO: O presente artigo analisa o instituto da súmula
vinculante, que foi inserida no ordenamento como uma alternativa
para uma maior racionalização do sistema jurídico brasileiro.
Outrossim, comenta-se a respeito dos seus requisitos e elementos
trazidos pelo art. 103-A da Constituição Federal e pela Lei nº
11.417/2006.
Palavras-chave: Jurisprudência. Súmula. Súmula Vinculante. Lei
nº 11.417/2006.
INTRODUÇÃO
A Emenda Constitucional nº 45/2004, que implementou a
reforma do Poder Judiciário, trouxe a possibilidade de o Supremo
Tribunal Federal editar súmulas com caráter vinculante. Tal
inovação justifica-se, principalmente, pela dificuldade dos órgãos
julgadores em dar uma resposta em tempo razoável às questões
que lhes são levadas pela sociedade.
O presente artigo discorrerá sobre os aspectos
constitucionais e legais do instituto da súmula vinculante,
notadamente no que diz respeito aos procedimentos para edição,
revisão, cancelamento de um enunciado, bem como quanto aos
seus efeitos e as consequências decorrentes da sua violação.
DA PREVISÃO CONSTITUCIONAL E
INFRACONSTITUCIONAL: ALGUNS ASPECTOS DA SÚMULA
VINCULANTE NA EC Nº 45/2004 E NA LEI Nº 11.417/06
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O constituinte derivado reformador incumbiu o legislador
ordinário de dispor a respeito da disciplina infraconstitucional da
súmula vinculante criada pela Emenda Constitucional nº 45/2004.
Coube à lei ordinária regulamentar vários aspectos do instituto,
como, por exemplo, as formas e modos de aprovação, revisão e
cancelamento.
A Lei nº 11.417/2006 - que regulamenta a criação,
aplicação, alteração e revogação de súmula vinculante - originou-se
do Projeto de Lei nº 6636/2006, da comissão mista especial de
reforma do Judiciário. Referida lei veio traçar diversos aspectos e
solucionar questões surgidas a respeito do então recém criado
instituto.
A edição de um enunciado de súmula vinculante, como ato
estatal de grande repercussão no meio jurídico e na sociedade em
geral, só se legitima quando atendidos os requisitos insculpidos no
artigo 103-A caput e §1º da Constituição Federal. Outrossim, a Lei
nº 11.417/2006 traz também uma série de requisitos cumulativos
para aprovação de uma súmula, quais sejam, a
legitimidade, quorum, matéria constitucional, decisões reiteradas,
controvérsia atual, grave insegurança jurídica e relevante
multiplicação de processos.
Dessa forma, ao se analisar os pressupostos
constitucionais para criação de uma súmula vinculante, depreende-
se que o constituinte derivado impôs cautelosos limites, prevendo
uma série de restrições ao seu cabimento e alcance.
Tanto a Lei Maior, no caput do seu artigo 103-A, como a
Lei nº 11.417/06, em seu artigo 2º, dispõem ser competência do
Supremo Tribunal Federal, ex officio ou mediante provocação, a
competência exclusiva para a edição, revisão ou cancelamento de
enunciado de súmula vinculante. Isso se dá, pois, a despeito de não
deter o monopólio da atribuição de declaração de
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constitucionalidade, compete-lhe, seja no controle concentrado,
seja no difuso, proferir a última decisão sobre matéria constitucional,
uma vez que é a Corte destinada a garantir a ordem jurídica do
Estado.
Com efeito, muito embora a proposta originária da criação
da súmula vinculante estendesse a competência para edição ao
Superior Tribunal de Justiça e aos demais Tribunais Superiores,
esta acabou se restringindo ao Supremo Tribunal Federal.
Nesse contexto, intenciona-se que a utilização da súmula
vinculante pelo Supremo Tribunal Federal lhe permita julgar as
relevantes questões constitucionais, resguardando, dessa forma, os
princípios basilares do Estado.
A edição de enunciado de súmula vinculante deve ser
aprovada, nos termos do § 3º, do artigo 2º da lei nº 11.417/2006,
por quórum qualificado no Supremo Tribunal Federal, com anuência
de dois terços dos ministros. Dessa forma, como o Pretório Excelso
compõe-se de onze ministros, a súmula vinculante, para sua edição,
deverá ser aprovada por pelo menos oito deles. Ressalte-se,
contudo, que a fração referente ao quórum deve ser calculada sobre
o número de juízes investidos, abstraindo-se eventuais vagas
abertas.
O legislador infraconstitucional, ao regulamentar o
instituto, ampliou o rol de legitimados ativos para provocar o
processo de criação de enunciado de súmula vinculante, uma vez
que a Constituição não foi exaustiva nesse ponto. Tal ampliação
serviu para tornar o procedimento mais democrático e plural.
A lei de súmula vinculante inovou pois passou a prever
legitimados autônomos e incidentais. Assim, também poderão
propor a edição de enunciado vinculante o Defensor Público-Geral
da União, os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de
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Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais
Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais
Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares. O Município também
poderá, incidentalmente, propor enunciado de súmula vinculante no
curso de processo em que seja parte.
Interessante é o entendimento esposado por Figueiredo
(2007, p. 01) segundo o qual, tal como ocorre no controle de
constitucionalidade concentrado, deve-se adotar - no que se refere
à propositura, revisão e cancelamento das súmulas vinculantes - o
critério da demonstração de pertinência temática. Com isso, para
determinados legitimados será exigida a demonstração de interesse
objetivo na vinculação, por meio de enunciados normativos, da
interpretação da norma legal por parte do Supremo Tribunal
Federal. Nesse ponto, Figueiredo (2007, p. 01) classifica, ainda, os
legitimados ativos em universais ou neutros e especiais ou
sectários.
Além dos legitimados autônomos, a Lei nº 11.417/2006
acrescentou o município como legitimado incidental, que poderá
formular proposta de súmula incidentalmente no curso de processo
em que seja parte, nos termos do §1º, do artigo 3º, da referida lei.
Outra questão atinente ao aspecto formal para a criação
de um enunciado de súmula vinculante trazida pelo artigo 2º, § 2º,
da Lei nº 11.417/2006 é a obrigatoriedade da intervenção do
Procurador-Geral da República previamente à edição, revisão ou
cancelamento de enunciado de súmula vinculante, salvo no caso de
tais propostas terem sido por ele formuladas.
A edição de um enunciado de súmula vinculante por parte
do Pretório Excelso deve, ademais, ir ao encontro de outras
decisões anteriores, que possuam semelhante teor, de modo a
caracterizar jurisprudência assente na Corte Constitucional. Resta
claro, portanto, pela disciplina constitucional e legal, que o legislador
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buscou impedir que um entendimento não assente, manifestado em
decisão isolada, pudesse ensejar a criação uma súmula vinculante.
Dessa forma, uma vez que o enunciado vinculante decorre
de decisões tomadas a partir da análise de casos concretos,
conclui-se que ele só poderá ser editado após reiteradas decisões
do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, Tavares (2009, p. 18)
alerta, inclusive, que “o conteúdo da súmula vinculante não pode
representar apenas o pensamento imediato e isolado do STF”.
A Súmula Vinculante possui, pois, um modo de elaboração
baseado na conclusão prolongada da atividade técnica dos juízes.
Isso se dá após ampla e reiterada discussão sobre determinada
matéria, devendo resultar em maturidade jurídica.
Há a necessidade de que as súmulas incidam sobre
questões já reiteradamente decididas em um mesmo sentido e,
portanto, já devidamente estabilizadas e amadurecidas. Nesse
sentido, o enunciado da súmula deve representar a evolução do
entendimento esposado pela Corte Constitucional nas decisões
antecedentes e não criação de nova regra que solucione eventual
divergência existente.
A matéria objeto da súmula vinculante deve sempre ser
atinente ao plano constitucional, nada obstante possa versar sobre
questões tanto de direito material, quanto de processual. Vale dizer,
a exigência trazida pelo artigo 103-A da Constituição Federal a
respeito da necessidade de reiteradas decisões sobre matéria
constitucional de forma alguma significa que o enunciado deverá
tratar necessariamente sobre artigos da Magna Carta, mas sim
sobre temas constitucionalmente relevantes, como controle de
constitucionalidade e a interpretação conforme a Constituição.
Em regra, os enunciados devem ser formulados a partir
das questões processuais de massa ou homogêneas, envolvendo
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matérias constitucionalmente previstas como as previdenciárias,
administrativas, tributárias ou até mesmo processuais, suscetíveis
de uniformização e padronização. Ademais, além de tratar de
matéria constitucional, a súmula deve versar sobre questão
controvertida, ou seja, terá lugar quando houver controvérsia atual
entre órgãos judiciários ou entre esses e a Administração Pública,
que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de
processos sobre questão idêntica.
Frise-se, por oportuno, que, haja vista a ausência de
previsão constitucional, a divergência apenas entre órgãos da
Administração Pública não será apta a ensejar a edição de um
enunciado de súmula vinculante.
As súmulas vinculantes criadas pelo Supremo Tribunal
Federal podem ser revisadas e, até mesmo, canceladas. Essa
dinâmica é positiva, na medida em que evita o temido
engessamento do Direito. Assim, a possibilidade de revisão pelo
Supremo e cancelamento de enunciado vinculante confere a
característica da flexibilidade necessária, sem a qual haveria o
perigo de estagnação dos entendimentos sufragados e da
jurisprudência da Suprema Corte.
Bonfim Filho (2008, p. 234) citando Décio Sebastião
Daidone, diz que:
Evidentemente, os requisitos para revisão ou
cancelamento, deverão ser determinados de
forma criteriosa, de modo que sejam observadas
as teses advindas de decisões contrárias, após
reiterados julgamentos, permitindo assim a
mobilidade jurisprudencial e também para que
não haja comprometimento da almejada
segurança.
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Tais possibilidades de revisão e cancelamento de súmula
são de premente relevância, notadamente quando se vislumbra que
é da natureza da sociedade e, consequentemente da ciência
jurídica, estar em contínuo processo de evolução. Nesse sentido,
faz-se imprescindível a possibilidade de alteração dos enunciados
vinculantes, de modo a evitar o engessamento dessa jurisprudência
consolidada.
A própria Lei nº 11.417/2006 dispõe em seu artigo 5º que,
sendo revogada ou modificada a lei da qual se originou o enunciado
vinculante, este deverá ser revisado ou cancelado, conforme for o
caso.
Fica claro, portanto, que a revisão e o cancelamento de
enunciado vinculante, assim como a sua edição, devem ser
cercados de cuidados, de forma a garantir que sejam preservadas -
da melhor forma possível - a uniformidade e a segurança jurídica,
ideais basilares desse instituto.
Tal qual como ocorre na iniciativa para edição, a Lei nº
11.417/2006 também ampliou o rol constitucional – que não era
taxativo – dos legitimados a propor a revisão e o cancelamento de
enunciado de súmula vinculante. Com isso, maximiza-se a
possibilidade de a sociedade participar, por meio de seus diversos
segmentos, do processo de atualização das súmulas vinculantes do
Pretório Excelso.
A norma constitucional também delineou que, a exemplo
de como ocorre para a edição, a revisão e o cancelamento de
enunciado vinculante se darão a partir de decisão de dois terços dos
membros do Supremo Tribunal Federal, que o fará
espontaneamente ou por provocação dos legitimados.
O artigo 7º, da Lei nº 11.417/2006 elencou como causas
de descumprimento da súmula vinculante toda ação ou omissão
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que a contrariar, que negar-lhe vigência ou que aplicá-la
indevidamente. Referida norma adotou, portanto, uma concepção
ampla do que seria uma violação ao enunciado.
Dessa forma, o legislador infraconstitucional pretendeu
ser explícito e não deixar margem para dúvidas ou discussões sobre
como se daria a violação ao enunciado de súmula vinculante.
Assim, pontua Tavares (2009, p. 19) que:
[…] considera-se como descumprimento de
súmula vinculante tanto as ações quanto as
omissões que possam ser consideradas, de
alguma forma, como contrariando, ignorando,
negando vigência, aplicando ou interpretando
indevidamente a súmula cuja a incidência seja
invocada.
Desse modo, a súmula passou a vincular diretamente os
órgãos judiciais e os órgãos da Administração Pública, ao passo que
abriu a possibilidade de que qualquer interessado faça valer a
orientação do Supremo Tribunal Federal, não mediante interposição
de recurso, mas pela apresentação de uma reclamação por
descumprimento de decisão judicial.
Com efeito, reclamação é instituto jurídico previsto no
artigo 102, I, da Constituição Federal, competindo ao Supremo
processá-la e julgá-la. É, ademais, instrumento jurídico que visa
garantir que um órgão judicial não ultrapasse a esfera de
competência de outro.
Mais uma vez, importantes comentários tecidos por
Tavares (2009, p. 78):
Logo, a reclamação constitucional passou a
desempenhar um papel importante no cenário do
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controle de constitucionalidade brasileiro. E,
doravante, em virtude de se ter contemplado
expressamente seu cabimento nos casos de
descumprimento de súmula vinculante, sua
importância será reforçada enquanto
instrumento próprio para fazerem-se impor
efetivamente as decisões sumulares do STF
dotadas de eficácia geral e efeito vinculante.
A novidade, porém, no caso de descumprimento a preceito
contido em súmula vinculante, é que a reclamação poderá ser
arguida também em face de atos administrativos.
A infringência ao disposto no enunciado vinculante do
Supremo, apurada em sede de reclamação àquela Corte, enseja,
além da anulação do ato administrativo e da cassação da decisão
judicial, também a determinação para que outro ato ou decisão
sejam prolatados com ou sem a aplicação da súmula, conforme o
caso. Além disso, a autoridade administrativa que desobedeça o
mesmo enunciado, em caso futuro e análogo, ficará sujeita à
responsabilização cível e criminal.
CONCLUSÃO
A edição de um enunciado de súmula vinculante traz
profundas consequências ao ordenamento jurídico. Por isso, é
necessário que antes da sua edição, revisão ou cancelamento haja
um amadurecimento a respeito do tema a ser versado, devendo
este ter sido amplamente debatido no STF e nas demais instâncias
judiciais.
Todos os requisitos para edição de enunciado de súmula
vinculante devem ser rigorosamente respeitados, sob pena de fugir
à intenção do constituinte derivado ao criar o citado instituto.
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Destarte, todos os pressupostos materiais e formais
elencados no artigo 103-A da Constituição e na Lei nº 11.417/2006
devem ser observados, uma vez que constituem elementos
imprescindíveis à eficácia e, principalmente, à validade do
enunciado vinculativo. Vale dizer, se o legislador constituinte
consagrou na Magna Carta o autorizativo da criação, por parte do
Supremo Tribunal Federal, de normas emanadas da atividade
judicial com força cogente, conclui-se que o não atendimento a
qualquer dos requisitos impostos corresponderá à violação da
própria norma constitucional, ensejando um desequilíbrio entre as
funções do Estado.
Além disso, a revisão e o cancelamento de enunciado
vinculante, assim como a sua edição, devem ser cercados de
cuidados, de forma a garantir que sejam preservadas, ao máximo,
a uniformidade e a segurança jurídica, ideais basilares desse
instituto.
REFERÊNCIAS
BOMFIM FILHO, Luiz Régis. As súmulas vinculantes: uma
abordagem crítica em consideração ao acesso à justiça. Themis:
Revista da ESMEC, Fortaleza, v. 6, n. 1, jan. 2008. Disponível em:
<http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/37149>. Acesso em: 30
jan. 2016.
CADORE, Maria Regina Lusa. Súmula vinculante e
uniformização de jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2007.
FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Súmula vinculante e a Lei nº
11.417/2006: apontamentos para compreensão do tema. Jus
Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1295, 17 jan. 2007. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/9400>. Acesso em: 29 jan. 2016.
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A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS
KERINNE MARIA FREITAS PINHEIRO: Advogada. Pós-graduada em Direito Constitucional. Aprovada no concurso para Analista do MPU em 2013, aprovada no concurso para Procurador do Município de Salvador 2015.
RESUMO: O presente trabalho teve como escopo principal apontar
os aspectos encontrados, na jurisprudência e na doutrina pátria, que
evidenciam a aplicação dos direitos fundamentais nas relações
entre particulares. Com efeito, o surgimento desses direitos remonta
ao início do Liberalismo, quando havia a necessidade de o cidadão,
particular, defender-se do Estado que antes era autoritário. Nessa
época, os direitos fundamentais eram aplicados apenas nas
relações entre Estado e particular, garantindo a estas liberdades
individuais. Todavia, com a evolução da sociedade, para garantir-se
a efetiva observância a esses direitos, fez-se necessário que eles
fossem aplicados também nas relações privadas. Sendo assim, o
objetivo do presente artigo foi demonstrar como esses direitos
podem ser aplicados quando um particular se relaciona com outro,
analisando, a princípio, a evolução dos direitos fundamentais
durante os anos, o seu conceito e a sua classificação, evidenciando,
ao final, que esta aplicação ainda carece de estudos aprofundados,
tendo em vista que não se encontra pacificada, em especial, no
ordenamento jurídico brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Fundamentais. Eficácia Horizontal.
Garantias Fundamentais. Eficácia Vertical.
ABSTRACT: This work had as main purpose to point out the
aspects found in the case law and doctrine in the country, which
demonstrate the application of fundamental rights in relations
between individuals. Indeed, the emergence of these rights back to
the beginning of Liberalism, when there was the need for citizens,
particular, defend the state was once authoritarian. At that time,
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fundamental rights were applied only in the relations between state
and private, ensuring that individual freedoms. However, with the
evolution of society, to ensure the effective observance of these
rights, it was necessary that they be also applied in private affairs.
Thus, the aim of this paper was to demonstrate how these rights can
be applied when a particular relates to another, analyzing, in
principle, the development of fundamental rights during the years,
its concept and its classification, showing at the end, this application
still lacks depth studies, with a view that is not pacified, especially in
the Brazilian legal system.
KEYWORDS: Fundamental rights. Horizontal effectiveness.
Fundamental guarantees. Vertical effectiveness
1 INTRODUÇÃO
O tema da eficácia horizontal, também chamada de eficácia
externa ou privada, dos direitos fundamentais vem ganhando muita
relevância entre a doutrina e a jurisprudência, carecendo ainda de
desenvolvimento mais aprofundado.
Com efeito, o constitucionalismo atual tem reconhecido, cada
vez mais, a expansão da eficácia dos direitos fundamentais nas
relações privadas.
Não se trata, no entanto, de deixar de aplicar o princípio
constitucional da autonomia da vontade, mas de restringir a atuação
dos particulares todas as vezes que estes, em detrimento dos
demais, abusarem de suas liberdades, ofendendo os preceitos de
direitos fundamentais.
Nesse sentido, leciona Nelson Nery Costa:
É preciso que se construa uma muralha para que o
Poder Público ou outros cidadãos não interfiram
naquilo que se manifesta no aspecto mais pessoal
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dos indivíduos. Existe um limite intransponível, dentro
do qual a pessoa faz o que quer, e desde que não
esteja cometendo um crime, nem uma infração civil
ou administrativa, não precisa dar satisfação a
ninguém, nem ao Poder Público.
Os direitos fundamentais foram, a princípio, positivados pelas
constituições para serem aplicados em oposição ao Estado,
garantindo aos particulares o exercício de suas liberdades públicas.
Por esse motivo, a questão da eficácia desses direitos nas relações
privada é um tema ainda controvertido. Entretanto, importante
perceber que as ofensas aos direitos fundamentais não são
exclusivas do Estado, sendo, muitas vezes, advindas de
particulares que, ao exercerem sua autonomia, podem afetar
direitos garantidos constitucionalmente. Em razão disso, não se
pode olvidar de reconhecer a aplicação desses direitos garantias
também aos particulares em face dos demais indivíduos e não do
Estado.
Tendo em vista essa situação, o presente trabalho tem por
escopo fundamental abordar a questão da eficácia horizontal dos
direitos fundamentais, trazendo uma breve caracterização desses
direitos e citando o entendimento doutrinário a respeito das teorias
que fundamentam essa eficácia. Ademais, a título de
complementação, far-se-á uma breve análise da jurisprudência
pátria no que concerne à aplicação dos direitos fundamentais nas
relações privadas.
2 CONCEITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais constituem elementos necessários à
concretização do direito público interno de cada Estado,
especialmente do direito constitucional, e são considerados os
direitos do homem que estão objetivamente vigentes numa ordem
jurídica positivada. Tais direitos, estabelecidos pelo ordenamento
de determinada comunidade politicamente organizada, têm o
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escopo principal de satisfazer os ideais ligados à dignidade da
pessoa humana e, sobretudo, à liberdade, igualdade e fraternidade.
Nos termos das lições de Canotilho, os direitos fundamentais,
em sentido próprio, são:
(...)essencialmente direitos ao homem individual, livre
e, por certo, direito que ele tem frente ao Estado,
decorrendo o caráter absoluto da pretensão, cujo o
exercício não depende de previsão em legislação
infraconstitucional, cercando-se o direito de diversas
garantias com força constitucional, objetivando-se
sua imutabilidade jurídica e política. (...) direitos do
particular perante o Estado, essencialmente direito de
autonomia e direitos de defesa.
Do mesmo modo, para o Ministro Gilmar Ferreira Mendes:
Os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos
subjetivos e elementos fundamentais da ordem
constitucional objetiva. Enquanto direitos subjetivos,
os direitos fundamentais outorgam aos titulares a
possibilidade de impor os seus interesses em face dos
órgãos obrigados. Na sua dimensão como elemento
fundamental da ordem constitucional objetiva, os
direitos fundamentais tanto aqueles que não
asseguram, primariamente, um direito subjetivo,
quanto aqueloutros, concebidos como garantias
individuais formam a base do ordenamento jurídico
de um Estado de Direito democrático.
Ademais, para aclarar a definição de direitos fundamentais,
interessante trazer à baila alguns termos que, por vezes, são
confundidos com o conceito alhures evidenciado.
2.1 Direitos fundamentais X Direitos humanos
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Hodiernamente, no Brasil e em diversos outros países,
constate-se uma verdadeira confusão terminológica entre direitos
fundamentais e direitos humanos. Não se tratam, pois, de
expressões sinônimas.
Com efeito, os direitos humanos são vistos como proposições
jurídicas de caráter universal e atemporal que beneficiam qualquer
indivíduo, independentemente da ordem estatal a que ele esteja
vinculado. São direitos reconhecidos pelo direito internacional como
se existissem antes mesmo dos próprios documentos que os
declaram.
Por sua vez, os direitos fundamentais, diferentemente dos
direitos humanos que se fundamentam no jusnaturalismo, possuem
fundamentação positivista, consistindo naqueles direitos
estabelecidos pelo Estado e cuja existência se dá apenas após a
promulgação das normas estatais.
Tratam-se, pois, os direitos fundamentais de verdadeiros
direitos humanos positivados por uma ordem jurídica.
2.2 Direitos fundamentais X Deveres fundamentais
A Constituição Federal de 1988 (CF/88), ao estabelecer os
direitos fundamentais, menciona tanto o termo “direito” quanto o
termo “dever” sem, no entanto, fazer qualquer especificação ou
enumeração quanto ao último. Outrossim, para parcela da doutrina,
essa omissão constitucional foi intencional, posto que no momento
em que a CF/88 estabelece determinado direito fundamental em
favor de um sujeito passivo também está estabelecendo o
respectivo dever que as demais pessoas têm de cumprir e observar
o direito concedido, razão pela qual não haveria necessidade de
tratar-se dos deveres intrínsecos aos direitos fundamentais.
Essa correspondência, no entanto, é criticada por alguns
autores, como Canotilho. Este afirma que os direitos fundamentais
podem também vincular entidades privadas sem que haja nisto um
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dever fundamental, senão apenas uma eficácia daqueles direitos
em face da ordem jurídica privada.
2.3 Direitos fundamentais X Garantias fundamentais
Para a maior parte da doutrina há que se fazer uma distinção
entre os direitos e as garantias fundamentais, embora, no termos
exatos, estas não deixem de ser também uma forma de exercício
dos direitos fundamentais.
Pois bem, embora os direitos sejam gênero do qual as
garantias constituem espécie, insta consignar que estas últimas
costumam ser normas que visam proteger o exercício dos direitos
fundamentais, estes estabelecidos por normas meramente
enunciativas.
Com efeito, interessante compilar a análise de Rui Barbosa
sobre o tema, veja-se:
As disposições meramente declaratórias, que são as
que imprimem existência legal aos direitos
reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que
são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder.
Aquelas instituem os direitos, estas as garantias;
ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição
constitucional, ou legal, a fixação da garantia, com a
declaração do direito.
Assim, por exemplo, enquanto o inciso XV do artigo 5º da
CF/88 aduz um direito fundamental à livre locomoção no território
brasileiro em tempos de paz, o inciso LXVIII do mesmo dispositivo
garante esse direito à liberdade ao cuidar do habeas corpus,
remédio constitucional específico que pode ser utilizado pelo
indivíduo que se vê ameaçado de locomover-se livremente.
2.4 Características dos direitos e garantias fundamentais
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A caracterização dos direitos e garantias fundamentais é uma
tarefa da qual já se desincumbiram muitos doutrinadores.
Com efeito, Pedro Lenza, ao destacar tais atributos, menciona
a classificação feita por David Araújo e Serrano Nunes.
Segundo os referidos doutrinadores, os direitos humanos são
dotados de historicidade, isto é, possuem caráter histórico, tendo
nascido com o Cristianismo, passado por diversas revoluções e
chegado aos dias atuais. Com efeito, afirmou Noberto Bobbio:
Os direitos do homem, por mais fundamentais que
sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em
certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em
defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e
nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e
nem de uma vez por todas. (...) o que parece
fundamental numa época histórica e numa
determinada civilização não é fundamental em outras
épocas e em outras cultuas.
É característica dos direitos fundamentais, também, a
universalidade. Isto porque os direitos e garantias fundamentais
destinam-se, de modo indiscriminado, a todos os seres humanos,
independentemente de raça, credo, cor, nacionalidade ou convicção
política. Todavia, nem todos os direitos fundamentais possuem essa
característica, tal como obtempera Gilmar Mendes:
Não é impróprio afirmar que todas as pessoas são
titulares de direitos fundamentais e que a qualidade
de ser humano constitui condição suficiente para a
titularidade de tantos desses direitos. Alguns direitos
fundamentais específicos, porém, não se ligam a toda
e qualquer pessoa. Na lista brasileira dos direitos
fundamentais, há direitos de todos os homens – como
o direito à vida – mas há também posições que não
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interessam a todos os indivíduos, referindo-se
apenas a alguns – aos trabalhadores, por exemplo.
Do mesmo modo, a limitabilidade constitui outra característica
dos direitos e garantias fundamentais. Segundo esse atributo, esses
direitos não são absolutos, são, ao contrário, relativos. Havendo
conflitos entres os direitos, no caso concreto, um deles deverá
prevalecer, devendo-se levar em consideração a máxima
observância dos direitos fundamentais envolvidos e, ao mesmo
tempo, a sua mínima restrição.
Os direitos e garantias fundamentais são, ainda, concorrentes
entre si já que podem ser exercidos cumulativamente. Isto é, o
exercício de um determinado direito fundamental não exclui, por si
só, o exercício de outro direito.
Além disso, é característica desses direitos a
irrenunciabilidade. Os direitos e garantias fundamentais não podem
ser renunciados pelo seu titular. Admite-se, no entanto, que o sujeito
ativo titular do direito não o exerça, sem que isso signifique que
renunciou àquele direito.
Consoante entendimento de José Afonso da Silva, os direitos
fundamentais ainda possuem outras duas características, quais
sejam, a inalienabilidade e a imprescritibilidade. Ou seja, os direitos
e garantias fundamentais não possuem conteúdo econômico-
patrimonial, não podendo ser alienados e, ademais, não estão
sujeitos à prescrição, já que podem, a qualquer tempo, ser
exercidos.
3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988
A Constituição Federal de 1988 (CF/88) caracteriza-se por ser
uma Constituição pluralista, isto é, idealizada para acolher em seu
texto as diversas necessidades e os fins pretendidos por toda uma
coletividade. Sendo assim, a CF/88 acaba por positivar posições
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que chegam a ser controvertidas entre si. No que tange aos direitos
fundamentais, por exemplo, a Carta Magna não acatou uma teoria
única, o que influenciou diretamente na catalogação desses direitos
dentro de seu texto. Com efeito, os direitos fundamentais
encontram-se espalhados por todo o texto constitucional.
Em seu Título II, a CF/88 classifica o gênero direitos e
garantias fundamentais em alguns grupos, tais como, direitos e
deveres individuais e coletivos, direitos sociais, direitos políticos,
dentre outros.
Embora não haja um rigor científico na disposição desses
direitos na Constituição Federal, importante ressaltar, ainda, que a
Carta Magna de 1988 foi a primeira a trazer em seu bojo normas
fundamentais de primeira, segunda e terceira dimensões. Ademais,
cabe frisar, ainda, que em seu artigo 60, § 4º, estabelece que os
direitos e garantias individuais não poderão ser objeto de emenda
que os tenda a abolir, incluindo-os no rol das chamadas cláusulas
pétreas.
4 A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
(DIMENSÕES DE DIREITOS)
A evolução dos direitos fundamentais está intimamente ligada
aos lemas e objetivos da Revolução Francesa. Assim, a liberdade,
a igualdade e a fraternidade, respectivamente direitos de 1ª, 2ª e 3ª
dimensões, anunciavam o progresso, com o passar dos anos, dos
direitos fundamentais.
Com efeito, os direitos fundamentais são históricos, nascidos
de modo gradual, um de cada vez com o decorrer do tempo. Por
isso que a doutrina tradicional reconhece a evolução desses
direitos, conforme ver-se-á a seguir.
4.1 Direitos fundamentais de primeira dimensão
Os direitos de primeira dimensão são aqueles considerados
como um direito de defesa do indivíduo contra o Estado. Tratava-se
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de uma perspectiva social de absenteísmo estatal, possuindo um
caráter negativo, ligada profundamente ao ideal de liberdade.
Surgiram com o constitucionalismo do século XVIII e seu
reconhecimento deu-se quando da passagem do Estado autoritário
para o Estado de Direito que primava pelas liberdades individuais.
Segundo Juliano Taveira Bernardes e Olavo Augusto Vianna:
Traduzem-se como faculdades pessoais a serem
utilizadas tanto como direitos potestativos, a cujos
efeitos o Estado se sujeita juridicamente (direito a não
prestar serviço militar em razão de convicção
religiosa, por exemplo), quanto como direitos
subjetivos à prestação de deveres estatais negativos
(direito de ir e vir, liberdade de reunião, etc).
Esses direitos consubstanciam-se nos direitos individuais,
civis e políticos.
4.2 Direitos fundamentais de segunda dimensão
Surgiram a partir do século XIX com o início da Revolução
Industrial europeia. As péssimas condições de vida e emprego dos
trabalhadores da época fez eclodir diversas manifestações em
busca de normas assistenciais que pudessem garantir melhoria da
qualidade de vida desses indivíduos.
Fez-se presente, portanto, a necessidade de garantir-se à
população os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os
direitos coletivos. Estes são direitos atrelados ao ideal de igualdade
e relacionam-se com o trabalho, o seguro social, o amparo à velhice
e à doença, dentre outros.
Os direitos fundamentais de segunda dimensão possuem um
caráter eminentemente positivo, visto que exigem uma atuação do
Estado para sua concretização.
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4.3 Direitos fundamentais de terceira dimensão
Essa dimensão de direitos está relacionada com o ideal de
fraternidade e surgiu em decorrência das mudanças ocorridas na
comunidade internacional. Nesse contexto, a preocupação dos
indivíduos passou a ser com os direitos difusos, tais como, a
proteção ao meio ambiente, aos consumidores e ao patrimônio
comum da humanidade.
Tais direitos possuem um elevado teor de humanismo e
universalidade, visto que não se direcionam especificamente à
proteção de um indivíduo em si considerado, mas à proteção dos
interesses de vários ramos da sociedade. São também exemplos
desses direitos o direito ao desenvolvimento, à paz, à
autodeterminação dos povos etc.
4.4 Direitos fundamentais de quarta dimensão
Considerando que os direitos fundamentais são dotados de
historicidade, isto é, vêm sendo adquiridos pelos indivíduos com o
passar dos anos, e considerando, ainda, o desenvolvimento
tecnológico e a globalização política, é possível defender a
existência de uma quarta dimensão dos direitos fundamentais.
Segundo Noberto Bobbio, essa dimensão seria caracterizada
pela existência dos direitos à democracia, ao pluralismo e à
informação. Abrangendo, ainda, direitos ligados à informática,
biociências, alimentos transgênicos, sucessão de filhos gerados por
inseminação artificial, clonagens, dentre outros.
Há, ainda, autores que afirmam existir uma quinta dimensão
dos direitos fundamentais que enquadraria direitos relativos à paz
ou, ainda, à era virtual, mas não há uma consolidação de tais
pensamentos.
5 A EFICÁCIA VERTICAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
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Conforme exposto acima, os direitos fundamentais, mormente
em sua primeira dimensão, surgiram, como direito efetivamente
positivados em cartas constitucionais, no século XVIII com a
transição do Estado autoritário para o Estado Democrático de
Direito.
Esses direitos nasceram das revoluções liberais, ocorridas na
França e nos EUA, nas quais a insurgente burguesia exigia o
respeito às suas liberdades individuais e a limitação dos poderes,
até então considerados absolutos, do Estado. De fato, os direitos
fundamentais, oponíveis, sobretudo, ao Estado, são direitos
marcados pela resistência de determinado setor da sociedade em
relação ao ente que a governa. Desse modo, tais direitos, possuindo
caráter eminentemente negativo, exigem que o Estado, a princípio,
abstenha-se de intervir nas relações sociais.
Ademais, os direitos fundamentais de segunda e terceira
dimensões surgiram com o escopo fundamental de garantir a
igualdade e a fraternidade, respectivamente. Sendo, também,
oponíveis ao Estado, exigindo deste, prestações positivas que
sejam capazes de os concretizar. Do mesmo modo, ocorre com a
quarta dimensão dos direitos fundamentais.
Diante do exposto, conclui-se que, a princípio, os direitos
fundamentais possuem como principal sujeito passivo o Estado,
aquele que deverá deixar de agir para garanti-los ou atuar de forma
comissiva para efetiva-los.
Além disso, caberá ao Estado garantir que tais direitos
fundamentais dos indivíduos sejam usufruídos sem que haja
interferência dos demais integrantes da sociedade.
Esta oposição dos direitos fundamentais ao Estado, gerando
para ele um dever de ação ou de abstenção, é o que se denomina
de eficácia vertical dos direitos fundamentais. Fala-se em eficácia
vertical porque a relação entre o Estado e o indivíduo particular não
constitui uma relação igualitária. O Poder Público sempre atuará em
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posição de superioridade em face do particular titular do direito
fundamental.
8 A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Além da eficácia vertical, típica do plano das relações entre
particulares e o Estado, os direitos fundamentais possuem, ainda,
aquilo que se denomina de eficácia horizontal, privada ou externa.
Trata-se da aplicabilidade ou vinculação dos direitos fundamentais,
historicamente concebidos para regular as relações jurídicas
polarizadas por algum órgão ou agente do Estado, às relações
privadas.
Nesse diapasão, ocorre atualmente o fenômeno que a
doutrina denomina de constitucionalização do direito privado ou,
ainda, de direito civil constitucional.
Ademais, há, atualmente, uma discussão em torno da
questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, havendo
doutrinadores que sustentam que os direitos fundamentais
possuem eficácia imediata sobre as relações entre os particulares,
e outros que afirmam que esses direitos possuem, apenas, uma
eficácia mediata ou indireta. Há também aqueles que sustentam ter
os direitos fundamentais uma eficácia intermediária, direta
moderada ou atenuada, conforme se verá a seguir.
8.1 Teoria da eficácia indireta ou mediata dos direitos
fundamentais
Esta teoria possui fundamento e origem naquilo que ensinou
Günther Dürig. Segundo o alemão, a eficácia dos direitos
fundamentais também seria aplicada às relações privadas, mas
desde que se observasse uma condição, qual seja a de não haver
normas jurídicas de direito privado que regulamentassem o tema.
Para essa teoria, os direitos fundamentais são idealizados
para regular a atuação dos órgãos estatais, devendo ser opostos a
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estes. Sendo assim, não podem ser diretamente aplicados às
relações privadas, ao menos que o próprio direito privado assim
estabeleça.
Desse modo, mesmo que as leis de direito privado devam
estar de acordo com a Constituição e ser interpretadas segundo os
preceitos de direitos fundamentais, estes não têm aplicação
imediata sobre as relações regidas pelo direito privado, posto que
os particulares não são, a princípio, os destinatários (sujeitos
passivos) dos direitos fundamentais.
Portanto, caberá ao Poder Público em sua função legislativa,
em uma dimensão proibitiva, não editar leis que violem os direitos
fundamentais. Do mesmo modo, deve o legislador implementar os
direitos fundamentais que poderão ser aplicados às relações
particulares, configurando-se a dimensão positiva da teoria ora
explicitada. Somente dessa forma estar-se-á respeitando os direitos
fundamentais à liberdade e autonomia privada, sem que outros
direitos fundamentais os possam restringir, salvo se houver
previsão legal.
8.2 Teoria da eficácia direta ou imediata dos direitos
fundamentais
Hans Carl Nipperdey, por sua vez, deu origem, também na
Alemanha, à teoria da eficácia imediata ou direta (direkte
Drittwirkung) dos direitos fundamentais. Destacou-se também
Walter Leisner, como precursor da mesma teoria.
Essa teoria sustenta que a eficácia das normas de direitos
fundamentais atinge, objetivamente, toda a ordem jurídica,
independentemente de a relação ser entre particulares ou entre
estes e o Estado. Desse modo, os direitos fundamentais aplicam-se
indistintamente no âmbito das relações particulares, sem que seja
necessária a intermediação do legislador.
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Segundo essa teoria, a despeito da legislação específica, a
liberdade e autonomia privada podem ser atenuadas pela aplicação
direta de outros direitos fundamentais, sobretudo do direito à
dignidade da pessoa humana, embora a prevalência da autonomia
privada seja tanto mais forte quanto mais próxima estiver
relacionada a direitos de ordem personalíssima ou a direitos ligados
ao pluralismo político.
8.3 Teoria intermediária da eficácia direta moderada ou
atenuada
A teoria intermediária defende que os direitos fundamentais
podem ser aplicados às relações privadas independentemente de
intermediação do legislador. Todavia, essa eficácia horizontal
somente terá lugar quando a relação entre os particulares denunciar
uma assimetria substancial entre eles, isto é, quando uma das
partes envolvidas possuir, em detrimento da outra, um poder
jurídico ou de fato que o concede certo grau de superioridade.
Seriam exemplos dessas relações assimétricas a relação
entre associação e associados, entre conveniado e plano de saúde,
partido político e filiado, condomínio e condômino, dentre outras.
8.4 Eficácia diagonal dos direitos fundamentais
Também tomando por base relações assimétricas, alguns
doutrinadores do Direito do Trabalho entendem existir, nos casos
de relações empregatícias, uma aplicação diagonal dos direitos
fundamentais, tendo em vista a superioridade do empregador
perante o empregado.
Esse argumento, entretanto, não acrescenta em relação à
eficácia direta moderada apresentada acima, visto que esta limita a
aplicação dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas
à existência de assimetria nessas relações, tal como ocorre na
relação entre empregador e empregado.
8.5 Eficácia irradiante dos direitos fundamentais
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Pedro Lenza, ao citar Daniel Sarmento afirma que uma
importante consequência dessa dimensão objetiva dos direitos
fundamentais, considerando sua eficácia, seria justamente a
eficácia irradiante dos mesmos. Tal eficácia permitiria que os
direitos fundamentais sejam observados em todas as esferas de
poder. Com efeito, o Poder Legislativo deverá observa-los quando
da edição de uma nova norma, o Judiciário ao resolver eventuais
conflitos e o Poder Executivo não poderá deixar de observar os
preceitos de direitos fundamentais enquanto exerce sua função
principal de administrar.
9 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS SEGUNDO A JURISPRUDÊNCIA
Algumas constituições contemporâneas já incorporaram em
seu texto a tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Exemplo disso é a Constituição portuguesa de 1976 que estabelece
que os preceitos constitucionais referentes aos direitos e garantias
fundamentais devem ser diretamente aplicáveis e que vinculam
tanto os entes públicos como os privados.
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, não possui
dispositivo semelhante, sendo omissa. Nesse diapasão, cabe à
doutrina e aos Tribunais Superiores promover essa aplicação direta
através da interpretação dos preceitos constitucionais.
Dessa forma, será abordada neste tópico a atuação do
Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça
(STJ) quando em face de situações que envolvem interesses e
relações particulares, nas quais devem ser aplicados os direitos
fundamentais, tendo em vista sua eficácia horizontal.
Em um primeiro momento, importante trazer o entendimento
do STF no Recurso Extraordinário (RE) nº 160.222-8, no qual a
Suprema Corte entendeu constituir constrangimento ilegal
a imposição por gerente de indústria de lingerie de revistas íntimas
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às suas empregadas, sob ameaça de dispensa. Esclareceu a
ementa:
E M E N T A - I. Recurso extraordinário: legitimação
da ofendida - ainda que equivocadamente arrolada
como testemunha -, não habilitada anteriormente, o
que, porém, não a inibe de interpor o recurso, nos
quinze dias seguintes ao término do prazo do
Ministério Público, (STF, Sums. 210 e 448). II.
Constrangimento ilegal: submissão das operárias de
indústria de vestuário a revista íntima, sob ameaça de
dispensa; sentença condenatória de primeiro grau
fundada na garantia constitucional da intimidade e
acórdão absolutório do Tribunal de Justica, porque o
constrangimento questionado a intimidade das
trabalhadoras, embora existente, fora admitido por
sua adesão ao contrato de trabalho: questão que,
malgrado a sua relevância constitucional, já não pode
ser solvida neste processo, dada a prescrição
superveniente, contada desde a sentença de primeira
instância e jamais interrompida, desde então. (RE n°
160.222-RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de
01/09/1995).
Por outro lado, no RE 158.215-4, de relatoria do Ministro
Marco Aurélio, o mesmo Supremo Tribunal fez incidir, também, os
direitos fundamentais sobre as relações entre particulares. O caso
julgado trazia um membro de cooperativa que havia sido expulso se
que houvesse a observância dos direitos ao contraditório, ampla
defesa e, por conseguinte, do devido processo legal. A ementa
elucida tal entendimento nos seguintes termos:
DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV
DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS -
EXAME - LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade
do preceito constitucional assegurador do devido
processo legal direciona ao exame da legislação
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comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a
qual a violência à Carta Política da República,
suficiente a ensejar o conhecimento de
extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso,
compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo
sobre a matéria, distinguindo os recursos
protelatórios daqueles em que versada, com
procedência, a transgressão a texto constitucional,
muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-
se do que previsto na legislação comum.
Entendimento diverso implica relegar à inocuidade
dois princípios básicos em um Estado Democrático
de Direito - o da legalidade e do devido processo
legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a
pressuporem a consideração de normas estritamente
legais. COOPERATIVA - EXCLUSÃO DE
ASSOCIADO - CARÁTER PUNITIVO - DEVIDO
PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de
associado decorrente de conduta contrária aos
estatutos, impõe-se a observância ao devido
processo legal, viabilizado o exercício amplo da
defesa. Simples desafio do associado à assembleia
geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair
adoção de processo sumário. Observância
obrigatória do próprio estatuto da cooperativa. (RE n°
158.215-RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de
07/06/1996)
No RE 161. 243-6, desta vez de relatoria do Ministro Carlos
Velloso, o Tribunal não admitiu que a invocação do princípio da
autonomia fosse argumento legítimo para discriminar nacionais de
estrangeiros, no que concerne à percepção de benefícios
constantes no estatuto pessoal de determinada empresa. Rebateu,
pois, a discriminação de empregado brasileiro em relação ao
francês na empresa “Air France”, mesmo realizando atividades
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idênticas, determinando a observância do princípio da isonomia.
Consignou-se na ementa:
CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA
IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO
EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA:
ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA:
APLICABILIDADE AO TRABALHADOR
ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR
BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988,
art. 5º, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês,
não obstante trabalhar para a empresa francesa, no
Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da
Empresa, que concede vantagens aos empregados,
cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de
nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da
igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art.
5º, caput). II. - A discriminação que se baseia em
atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do
indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o
credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente
do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ
119/465. III. - Fatores que autorizariam a
desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E.
conhecido e provido. (RE n° 161.243-DF, Rel. Min.
Carlos Velloso, DJ de 19/12/1997)
Em importante julgado, o STF parece ter-se rendido para a
aplicação da eficácia direta ou imediata, ainda que moderada, dos
direitos fundamentais nas relações privadas. Trata-se do RE
201.819 que aborda a exclusão de membro de sociedade sem a
possibilidade de sua defesa. Conforme voto do Ministro Gilmar
Mendes, a identificação da presença tanto do caráter público ou
geral da atividade quanto de dependência do vínculo associativo
para o exercício profissional do artista foi considerada fator decisivo
para legitimar a aplicação direta dos direitos fundamentais
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concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla
defesa (art. 5º, LIV e LV da CF/88) ao processo de exclusão de sócio
de entidade. Observa-se o teor da ementa:
SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS.
UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES.
EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA
DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.
I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS
RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos
fundamentais não ocorrem somente no âmbito das
relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente
nas relações travadas entre pessoas físicas e
jurídicas de direito privado. Assim, os direitos
fundamentais assegurados pela
Constituição vinculam diretamente não apenas os
poderes públicos, estando direcionados também à
proteção dos particulares em face dos poderes
privados.
II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO
LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS
ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional
brasileira não conferiu a qualquer associação civil a
possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos
nas leis e, em especial, dos postulados que têm por
fundamento direto o próprio texto da Constituição da
República, notadamente em tema de proteção às
liberdades e garantias fundamentais. O espaço de
autonomia privada garantido pela Constituição às
associações não está imune à incidência dos
princípios constitucionais que asseguram o respeito
aos direitos fundamentais de seus associados. A
autonomia privada, que encontra claras limitações de
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ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento
ou com desrespeito aos direitos e garantias de
terceiros, especialmente aqueles positivados em
sede constitucional, pois a autonomia da vontade não
confere aos particulares, no domínio de sua
incidência e atuação, o poder de transgredir ou de
ignorar as restrições postas e definidas pela própria
Constituição, cuja eficácia e força normativa também
se impõem, aos particulares, no âmbito de suas
relações privadas, em tema de liberdades
fundamentais.
III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS.
ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO,
AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE
CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM
GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO
LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO
CONTRADITÓRIO. As associações privadas que
exercem função predominante em determinado
âmbito econômico e/ou social, mantendo seus
associados em relações de dependência econômica
e/ou social, integram o que se pode denominar de
espaço público, ainda que não-estatal. A União
Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil
sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e,
portanto, assume posição privilegiada para
determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos
autorais de seus associados. A exclusão de sócio do
quadro social da UBC, sem qualquer garantia de
ampla defesa, do contraditório, ou do devido
processo constitucional, onera consideravelmente o
recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os
direitos autorais relativos à execução de suas obras.
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A vedação das garantias constitucionais do devido
processo legal acaba por restringir a própria liberdade
de exercício profissional do sócio. O caráter público
da atividade exercida pela sociedade e a
dependência do vínculo associativo para o exercício
profissional de seus sócios legitimam, no caso
concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais
concernentes ao devido processo legal, ao
contraditório e à ampla defesa
(art. 5º, LIV e LV, CF/88).
IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.
O STJ também possui precedentes no sentido da aplicação
dos direitos fundamentais às relações privadas, em nítida
observância à eficácia horizontal desses direitos. Com efeito, no
Recurso Especial (Resp) nº 249.321 o Superior Tribunal entendeu
ser abusiva a cláusula de indenização tarifada em caso de
responsabilidade civil do transportador aéreo, sob pena de estar-se
violando a dignidade da pessoa humana. Nesses casos, a
indenização deverá ser calculada conforme a legislação comum, de
acordo com o caso concreto.
Consoante se demonstra com a colação das ementas acima,
é patente o posicionamento da jurisprudência pátria acerca da
eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Com efeito, os
tribunais superiores têm admito tal eficácia, exigindo a aplicação
dos direitos fundamentais também nas relações entre particulares.
10 CONCLUSÃO
Diante do exposto acima, imperioso concluir que a eficácia
horizontal dos direitos fundamentais, isto é, a aplicação destes nas
relações privadas é amplamente aceita no ordenamento jurídico
brasileiro, a despeito de não haver previsão expressa na
Constituição Federal.
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De fato, doutrina e jurisprudência, convergem no sentido de
que também os particulares podem ser sujeitos passivos dos
direitos fundamentais, devendo observá-los em suas relações, sob
pena de ter sua autonomia privada tolhida para que outro direito
fundamental seja respeitado.
Entendimento contrário, no sentido de que os direitos
fundamentais só devem ser opostos ao Estado em sua relação com
os particulares, acabaria por legitimar os indivíduos a atuarem em
ampla liberdade, sem qualquer ingerência estatal, e sem que
observassem os limites onde iniciam os direitos dos seus
semelhantes, fato que geraria um estado de insubordinação.
Desse modo, havendo no caso concreto, um conflito entre o
direito à autonomia privada e um direito fundamental, há que se
fazer uma ponderação de valores, não podendo a autonomia
privada prevalecer a todo custo em detrimento de outro direito que
possui semelhante hierarquia.
Por fim, importante ressaltar que a adoção da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais, mormente a divergência que
existe dentro do tema em relação às teorias adotadas, ainda é
questão que não se encontra pacificada e carece de estudos mais
aprofundados, embora esteja sendo aplicada de forma paulatina na
maioria dos ordenamentos jurídicos, em especial no brasileiro. É
preciso, ademais, que o assunto seja amplamente discutido a fim
de que se possa suprir a lacunas existentes e apontar soluções
cada vez mais adequadas aos problemas jurídicos e aos anseios da
sociedade.
11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal
Serrano. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo:
Saraiva, 2006.
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BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus,
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positivo. 35. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional n. 66, de
21.12.2011. São Paulo: Malheiros, 2012.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.RESPONSABILIDADE
CIVIL. Transporte aéreo doméstico. Extravio de mercadoria. A
indenização deve ser calculada pela legislação comum.
Primeiro recurso conhecido e provido, e não conhecido o
segundo. 12 mar. 2001. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=recurso+e
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JURÍDICO, Consultor. Entidade privada também responde
por direitos fundamentais. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2005-jan-
11/entidade_privada_tambem_responde_direitos_fundamentais?p
agina=6>. Acesso em: 16 dez. 2015.
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REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO - ANÁLISE DE SUA INCONSTITUCIONALIDADE FRENTE AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A DISPOSIÇÕES INTERNACIONAIS
NATALIA DE ROSALMEIDA: Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará.
Resumo: Esse trabalho, de caráter eminentemente bibliográfico,
insere-se no contexto do estudo da execução penal, mais
especificamente da sanção disciplinar denominada Regime
Disciplinar Diferenciado (RDD). Analisa-se criticamente o RDD e
trata-se da sua inconstitucionalidade frente à Constituição Federal
de 1988 e da inobservância, na sua aplicação, das Regras Mínimas
para o Tratamento dos Reclusos adotadas pela ONU, bem como
das disposições do Pacto San Jose da Costa Rica. Discute-se
também sobre o recrudescimento do regime penal como obstáculo
à ressocialização do preso.
Palavras-chave: Regime disciplinar diferenciado. Constituição.
Processo Penal. Regras Mínimas da ONU. Pacto San Jose da
Costa Rica.
Introdução
Introduzido pela Lei Federal n° 10.792/2003, o Regime
Disciplinar Diferenciado (RDD) é uma espécie de tratamento
excepcional, configurando a execução da pena privativa de
liberdade em modalidade diversa da padrão, devido a
peculiaridades que caracterizem determinados condenados e as
conseguintes valorações sobre sua personalidade. É, mais
especificamente, um tratamento diferenciado por aquilo que
PAVARINI e GIAMBERARDINO (Teoria da Pena e Execução Penal,
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2011) convencionaram chamar de razões de periculosidade
penitenciária.
Essa modalidade de sanção disciplinar (art. 53, V da Lei de
Execução Penal) é fruto da atividade legislativa brasileira
caracterizada pela motivação casuística, tratando-se da resposta do
Poder Legislativo, que, fortemente pressionado pelos meios de
comunicação, buscou leis mais severas devido à comoção causada
por graves fatos delituosos ocorridos.
Metodologia
O presente trabalho foi desenvolvido à luz das modalidades
descritiva e explicativa, de fonte essencialmente bibliográfica. As
informações advindas de leituras de doutrinas processuais penais,
da análise da Constituição Federal de 1988 e dos dispositivos do
Pacto San José da Costa Rica, bem como das Regras Mínimas para
Tratamento de Reclusos da ONU, serviram de alicerce para que a
pesquisa tomasse a forma de uma análise critica do texto da Lei
10.792/2003.
O método a ser aplicado na pesquisa é o indutivo, com a
utilização de premissas específicas visando chegar a conclusões
gerais. A técnica a ser adotada será a monográfica, utilizando-se as
diversas obras consultadas como ferramentas para conclusões a
serem fornecidas pela pesquisa, com foco no direito processual
penal e constitucional. O levantamento bibliográfico e a pesquisa
das normas internacionais citadas, portanto, formam as fontes do
presente trabalho.
Resultado e Discussão
I. Características e aplicação do RDD
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De acordo com as disposições da Lei Federal n° 7.210/1984
(Lei de Execuções Penais – LEP), modificada pela Lei Federal n°
10.792/2003, ao Regime Disciplinar Diferenciado devem ser
encaminhados os presos que tiverem praticado fato previsto como
crime doloso, desde que este ocasione a subversão da ordem ou
disciplina interna, sem prejuízo da sanção penal cabível. Importante
ressaltar que se trata, aqui, de fato previsto como crime e não o fato
criminoso devidamente apurado e julgado e condenado pelo Poder
Judiciário.
O RDD pode ser aplicado também aos presos provisórios,
pois a LEP determina a possibilidade de serem incluídos no mesmo
regime os presos, nacionais ou estrangeiros, provisórios ou
condenados, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança
do estabelecimento penal ou da sociedade (art. 52, § 1º, LEP), bem
como aqueles que estiverem envolvidos ou participarem – com
fundadas suspeitas -, a qualquer título, de organizações criminosas,
quadrilha ou bando (art. 52, § 2º, LEP).
Em suma, são três as hipóteses para a inclusão no RDD: a)
quando preso provisório ou condenado praticar, mesmo sem
condenação definitiva, fato previsto como crime doloso,
conturbando a ordem e a disciplina interna do presídio onde se
encontre; b) quando preso provisório ou condenado representar alto
risco para a ordem e à segurança do estabelecimento penal ou da
sociedade; c) quando preso provisório ou condenado estiver
envolvido com organização criminosa, quadrilha ou bando,
bastando fundada suspeita.
As duas últimas situações dispensam o cometimento de falta
grave, que seria a causa geradora de uma sanção disciplinar,
possibilitando a aplicação da sanção somente por causa da aferição
realizada pela autoridade administrativa sobre a periculosidade
criminal e penitenciária do preso, o que pode ser compreendido
como verdadeira ressignificação normativa da noção de disciplina
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(FREIRE. O Regime Disciplinar Diferenciado: Notas Críticas à
Reforma do Sistema Punitivo Brasileiro. In: CARVALHO, Crítica à
Execução Penal, 2007, p. 277 e ss.).
Ainda sobre as hipóteses que dão causa à adoção do RDD,
importante observar que a lei não definiu os parâmetros do que seja
“alto risco” para ordem e segurança do estabelecimento e da
sociedade, sendo este um conceito vago. Tampouco existe, na
legislação brasileira, a definição de “organizações criminosas”. A
falta de textos legais que claramente definam essas hipóteses
coloca em risco a aplicação do preceito, pugnando a sua ineficácia,
ou, ainda pior, dando margem a arbitrariedades. Verificam-se, aqui,
resquícios do chamado Direito Penal do Inimigo também no âmbito
da execução penal (BUSATO . Regime disciplinar diferenciado
como produto de um direito pena do inimigo. In: CARVALHO, Crítica
à Execução Penal, 2007, p. 293 e ss.).
Para que haja a inclusão nesse regime de exceção, a
autoridade administrativa diretora do estabelecimento deverá
elaborar um requerimento circunstanciado e alegar um dos três
motivos supracitados. A prerrogativa segue, então, para os seus
superiores, in casu, o Secretário de Segurança Pública ou da
Administração Penitenciária. Feita a emissão do posicionamento
pela administração penitenciária, caberá ao juiz das execuções
decidir sobre a inclusão no RDD, após a oitiva do parquet.
Se o preso estiver em penitenciária federal, o diretor do
estabelecimento penal federal, se possível, de acordo com o
Regulamento Penitenciário Federal, cuja aprovação consta no
Decreto Nº 6049 / 2007, instituirá o expediente de inclusão com o
termo de declarações da pessoa visada e de sua defesa técnica.
No tocante à faculdade de defesa técnica prevista no art. 55
do Regulamento Penitenciário Federal, posicionamo-nos ao lado de
BRITO (Execução penal, 2011, p. 171),criticando-a, diante do rigor
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da medida e da previsão constitucional do contraditório e da ampla
defesa. Acreditamos, portanto, que o juiz, antes de proferir sua
decisão, deverá permitir ao sujeito visado que apresente defesa
técnica.
Antes da decisão judicial, há, também, a manifestação do
Ministério Púbico, uma vez que se trata de incidente à execução.
Não existe, porém, previsão legal para que o Ministério Público
requeira a inclusão de preso, provisório ou condenado, no Regime
Disciplinar Diferenciado.
Embora o juiz tenha o prazo máximo de 15 dias para decidir
a respeito da inclusão no RDD, a autoridade administrativa, em caso
de urgência, pode isolar o preso preventivamente, por até dez dias,
aguardando a decisão judicial (art. 60, LEP). Esse tempo de
isolamento provisório será computado no Regime Disciplinar
Diferenciado, como autêntica detração, caso o juiz decida pela
aplicação deste. Caso seja deferida decisão em sentido oposto,
parece ser cabível alegação de constrangimento ilegal.
Ao ser adotado, o RDD possuirá as seguintes características:
a) duração máxima de 360 (trezentos e sessenta) dias, sem prejuízo
de repetição da sanção por falta grave de mesma espécie, até o
limite de um sexto da pena aplicada; b) recolhimento em cela
individual; c) visitas semanais de duas pessoas, sem contar
crianças, com duração de duas horas; d) direito de saída da cela
para banho de sol por duas horas diárias (art. 52, incisos I a IV, Lei
7.210/84).
O Decreto 6.049/07 ainda inclui o uso de algemas nas
movimentações internas e externas, dispensadas apenas as áreas
de visita, banho de sol, atendimento assistencial e, quando houver,
nas áreas de trabalho e estudo; e a sujeição do preso aos
procedimentos de revista pessoal, de sua cela e seus pertences,
sempre que for necessária sua movimentação interna e externa,
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sem prejuízo das inspeções periódicas. Esse decreto também
dispõe, em seu art. 56, que, antes mesmo do término do prazo
estipulado pelo juiz, o diretor do estabelecimento em que se cumpre
o RDD poderá recomendar ao diretor do Sistema Penitenciário
Federal que requeira à autoridade judiciária o termino da medida.
Observa-se a seriedade inconteste do RDD, que tenta, sem
sucesso, combater o crime organizado e deter os líderes de facções
que, de dentro dos presídios, continuam a atuar na condução de
negócios criminosos fora do cárcere. Por isso, é preciso que o juízo
competente para presidir a execução penal tenha a cautela que o
cargo lhe demanda para avaliar a real e efetiva “necessidade” de
inclusão do preso no regime, especialmente do provisório, cuja
inocência ainda não foi dele destituída tendo em vista ainda estar
pendente de julgamento definitivo.
II. A Lei 10.792/2003 e a Constituição Federal de 1988
Não há na doutrina entendimento pacífico sobre a
constitucionalidade do RDD e, apesar de os Tribunais Superiores já
terem se manifestado pela constitucionalidade do instituto, defende-
se serem mais arrazoados os argumentos que refutam a sua
aplicação e defendem que o regime diferenciado agride o primado
da ressocialização do sentenciado.
No entender de BRITO (Execução penal, 2011, p. 174), do
ponto de vista técnico, a previsão legal do RDD possui, ao menos,
dois pontos de duvidosa constitucionalidade: a) a imprecisão ou
falta de taxatividade das hipóteses de inclusão; e b) o isolamento
diário de 22 horas. No que diz respeito ao primeiro ponto, refere-se
o autor à incompatibilidade da utilização de termos vagos como “alto
risco à sociedade” ou “fundadas suspeitas de envolvimento” com
uma medida de tamanha excepcionalidade. Defende-se que tal
abstração dá margem a perseguições e arbitrariedades. Como
acertadamente prega o Direito Administrativo, as previsões
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administrativas devem observar o princípio da legalidade, e
especialmente a taxatividade. A ausência de descrição legal
específica certamente compromete a definição jurídica do RDD. O
isolamento pelo período de 22 horas, por sua vez, tratar-se de
medida claramente prejudicial à saúde do preso, uma vez que forçá-
lo o isolamento certamente lhe causará prejuízos a sua integridade
física e psíquica. Verifica-se, assim, ofensa ao art. 5º, inciso XIX da
Constituição Federal, que assegura ao preso o respeito a sua
integridade física e moral.
A aplicação do RDD, sem julgamento definitivo, fere o
princípio da presunção de inocência, insculpido em nossa Carta
Magna em seu art. 5º, LVI, bem como o da individualização da pena
(art. 5º, XLVI), segundo o qual não se pode admitir, a priori, que,
alguém seja condenado a cumprir a sua pena em regime
integralmente fechado, vedando-se absolutamente qualquer
possibilidade de progressão. Segundo Távora, “a inclusão no RDD
em razão de o detento representar alto risco para a segurança do
estabelecimento ou da sociedade é imputar o ônus da falência do
sistema prisional exclusivamente ao preso, caracterizando o Direito
Penal do autor, vedado em nosso ordenamento jurídico.” (Curso de
Direito Processual Penal, 2010, p. 501).
Além disso, o prolongado isolamento celular, previsto no
RDD, que pode chegar a 360 dias, sem prejuízo de repetição da
sanção, pode ser considerado um meio de pena cruel, vedada pela
Carta Magna, em seu art. 5º, XLVII, “e”, refletindo a arcaica noção
de pena como exercício da vingança social (CARVALHO, Crítica à
Execução Penal, 2007, p. 279).
III. O RDD e as Regras Mínimas para Tratamento dos
Reclusos da ONU e o Pacto San José da Costa Rica
Na 68ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas
foram enunciados os princípios básicos que sustentam as Regras
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Mínimas para o Tratamento dos Reclusos. Tais regras foram aceitas
pelo Brasil. Dentre os princípios básicos previstos, destaca-se o que
determina que “serão absolutamente proibidos como punições por
faltas disciplinares os castigos corporais, a detenção em cela
escura, e todas as penas cruéis, desumanas ou degradantes”.
Sugeriu-se, nesta 68ª Assembleia Geral, a abolição do
isolamento celular, tendo sido editado o princípio de número 07 no
sentido de que “devem empreender-se esforços tendente à abolição
ou restrição do regime de isolamento, como medida disciplinar ou
de castigo”. Não parece precipitado, portanto, afirmar que a
normatização do RDD nas prisões brasileiras ofende os princípios
básicos preceituados pela ONU no tocante ao tratamento dos
reclusos.
A Lei 10.792/2003 também vai de encontro às disposições da
Convenção Americana de Direitos Humanos, adotada e aberta na
Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos,
em 1969, o chamado Pacto San José da Costa Rica, cujos termos
foram ratificados pelo Brasil em 1992. Assim dispõem os artigos 5º
e 11 da Convenção:
Artigo 5º - Direito à integridade pessoal: 1. Toda
pessoa tem direito a que se respeite sua
integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém
deve ser submetido a torturas, nem a penas ou
tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda
pessoa privada de liberdade deve ser tratada
com o respeito devido à dignidade inerente ao
ser humano. (...) 6. As penas privativas de
liberdade devem ter por finalidade essencial a
reforma e a readaptação social dos condenados.
(...)
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Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade.
Toda pessoa tem direito ao respeito da sua
honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
As circunstâncias revelam que a adoção das medidas
previstas na Lei 10.792/2003 contraria não somente a Constituição
Federal de 1988 e as Regras Mínimas para o Tratamento dos
Reclusos editadas pela ONU, mas também, segundo o teor dos
artigos supramencionados, o Pacto de San José da Costa Rica,
que, de acordo com a emenda constitucional nº 45, por tratar de
Direitos Humanos, possui status supralegal.
Mister citar o entendimento de MOURA (Notas sobre a
Inconstitucionalidade da Lei 10.792/2003, que criou o Regime
Disciplinar Diferenciado. In: CARVALHO. Crítica à execução penal,
2007, p. 287) a respeito:
O castigo físico imposto ao condenado
submetido ao regime disciplinar diferenciado
viola a dignidade da pessoa humana que é um
dos fundamentos do Estado Democrático de
Direito, inscrito no art. 1º, inciso III, da vigente
Constituição da República. Mas, não para aí a
inconstitucionalidade. A Lei Maior assegura,
como um dos princípios de suas relações
internacionais, a prevalência dos direitos
humanos (art. 4º), estando disposto no art 5.2 da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
em vigor no Brasil que ninguém deve ser
submetido a torturas, nem a penas ou tratos
cruéis, desumanos ou degradantes. Toda
pessoa privada de liberdade deve ser tratada
com o respeito devido à dignidade inerente ao
ser humano´. O mesmo direito está assegurado
no art. 5º, III, da Constituição da República, que
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também garante, dentre o rol dos direitos e
garantias fundamentais, o respeito à integridade
moral e física dos presos (art. 5º, XLIX).
Para além da inconstitucionalidade apontada acima e da
inobservância das Regras Mínimas para o Tratamento dos
Reclusos adotadas pela ONU, bem como das disposições do Pacto
San José da Costa Rica, conclui-se que a Lei 10.792/2003
representa real ofensa aos direitos e garantias assegurados pelo
nosso ordenamento jurídico a qualquer pessoa, não importando que
esta se trate de um acusado ou mesmo condenado, não existindo
justificativas plausíveis para tamanha violação.
IV. O recrudescimento do regime como obstáculo à
ressocialização do preso.
O RDD significa um agravamento qualitativo à pena privativa
de liberdade, aumentando o sofrimento imposto aos presos, através
de um regime de super-reclusão, que representa a maxipunibilidade
do Estado. Na redação da Lei 10.792/2003, a prevalência do
sentimento de que não basta “apenas” prender, é preciso fazer com
que o preso sofra mais, como se esta fosse uma maneira de evitar
que este entre em contato com o ambiente extra-carcerário, garantir
a segurança interna do presídio ou mesmo de impedir a corrupção
interna no ambiente carcerário. Essa visão, que parece predominar
no senso comum, é usada para tentar justificar a aplicação do RDD,
pressionando às autoridades a serem a favor da implementação de
um regime carcerário cada vez mais severo.
Percebe-se, entretanto, que o entendimento distorce a função
ressocializadora da pena, tratando o preso como um “verdadeiro
inimigo”, segundo a doutrina de JAKOBS. A condenação, em uma
clara substituição do Direito Penal de fato pelo Direito Penal de
autor, passa a ser encarada como uma punição à determinada
classe de autores e não ao fato em si. Assim, não importa o que se
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faz ou omite, mas quem pratica o crime doloso ou a falta e grave,
quem representa risco para a ordem e segurança do
estabelecimento penal ou da sociedade ou quem é suspeito de
envolvimento em organizações criminosas, quadrilhas ou bando. A
adoção do RDD viola o princípio da igualdade, na medida em que
representa um tratamento diferenciado a certo tipo de autor de
delito, classificando os presos em “cidadãos” e “inimigos”.
Na contramão da noção de reintegração social que inspirou
a Lei de Execução Penal, o Regime Disciplinar Diferenciado
aumenta a punição com a ressignificação da disciplina e da
segurança. A violação teleológica constitucional da pena é latente,
deixando a mesma de ser utilizada como instrumento
ressocializador, para representar a força do Estado.
Trata-se, portanto, evidentemente, de uma política criminal
equivocada, que resulta na reprodução e multiplicação da violência.
Vejamos o que ensinam PAVARINI E GIAMBERARDININO (Teoria
da Pena e Execução Penal, 2011, p. 344):
não é necessária uma intensificação tão
significativa da produção de sofrimento humano
para a consecução dos fins propostos,
vinculados à segurança e à ordem internas e
atingíveis mediante a utilização de recursos
tecnológicos e o combate interno à corrupção.
Não é o recrudescimento do regime de
cumprimento da pena que vai preservar a
segurança da população e do sistema
carcerário, mas, principalmente, o combate à
corrupção dentro das prisões, que é a maior
ameaça à sociedade.
Nesse sentido, o Regime Disciplinar Diferenciado, como
forma de punição de presos por faltas cometidas durante a
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execução da pena, deve ser repensado, a fim de que o Estado não
incorpore, sob o pretexto da legalidade, medidas de caráter
nitidamente inconstitucional, tendo em vista os ditames da própria
Carta Magna e a tendência internacional de proteção ao direitos
humanos e de garantia aos direitos dos presos, com forte influência
de medidas ressocializadoras.
Conclusão
Conclui-se que o RDD não é a forma adequada para conter a
violência existente nas prisões, pois representa uma sobrepena
cruel e degradante, ferindo a dignidade da pessoa humana, que é
um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Não é razoável desconsiderar os direitos constitucionalmente
assegurados aos infratores em nome da “segurança social”. A
repressão ao crime deve ocorrer dentro dos limites da lei. Submeter
os presos a condições degradantes, não acabará com a violência
urbana, não tornará os condenados pessoas melhores, nem
garantirá segurança à sociedade. Ao contrário, esse regime apenas
contribui para a marginalização dos presos, reduzindo ao máximo a
possibilidade de ressocialização dos mesmos e obstaculizando as
formas de progressão de regime.
Referências
BRITO, Alexis Couto de. Execuçao penal. 2 ed. Sao Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011. BUSATO, Paulo César. “Regime
disciplinar diferenciado como produto de um direito pena do
inimigo”. In: CARVALHO, Salo de (org,). Crítica à Execução Penal,
2ª ed. ver, ampl. e atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.
FREIRE, Cristiane Russomano. O REGIME DISCIPLINAR
DIFERENCIADO: NOTAS CRÍTICAS À REFORMA DO SISTEMA
PUNITIVO BRASILEIRO. In: CARVALHO, Salo de. CRÍTICA À
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EXECUÇÃO PENAL. 2ª ed. ver, ampl. e atual. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2007.
MOURA. Notas sobre a Inconstitucionalidade da Lei
10.792/2003, que criou o Regime Disciplinar Diferenciado. Em:
CARVALHO, Salo de. CRÍTICA À EXECUÇÃO PENAL. 2ª ed. ver,
ampl. e atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.
PAVARINI, Massimo & GIAMBERARDINO. Teoria da Pena e
Execução Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues, curso de
Direito Processual Penal, 4ª ed. rev. ampl. e atual. Ed. Jus Podivm:
Bahia, 2010.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal.
Tradução de Seérgio Lamarão – Rio de Janeiro: Revan, 2007, 3ª
edição dezembro de 2011.
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DA NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO PARA DEMISSÃO DOS EMPREGADOS DE EMPRESA PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA. ENTENDIMENTO STF DIVERGENTE AO DO TST
GABRIEL CARNEIRO DE LIMA: Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região- Sede, graduado em Direito pela Faculdades Integradas Barros Melo- Olinda- PE em 2011, Especialista em Direito Público pela Faculdade Estácio (2013), Pós-graduado em Direito Constitucional pela Anhanguera- Uniderp (2015).
Resumo: O TST possui o entendimento exposto na Orientação
Jurisprudencial 247 da SDI-1 no sentido que é possível a dispensa
de empregados de empresa pública e de sociedade de economia
mista sem a necessidade de motivação para a validade do ato,
mesmo aqueles admitidos por concurso público. No entanto, o
Supremo Tribunal Federal, no julgado do RE 589.988 PI firmou
entendimento que é indispensável a motivação do ato de demissão
em virtude dos princípios da impessoalidade e da isonomia.
Palavras-chave: Direito do Trabalho. Demissão. Empresas
Públicas. Sociedades de Economia Mista. Justificativa. Validade.
STF e TST.
1- Introdução
As empresas públicas e as sociedades de economia mista
são pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da
Administração Pública Indireta. Tais entes encontram-se definidos
no artigo 5º do Decreto-Lei 201/67. Em que pese existirem
divergências doutrinárias acerca do conceito legal, sua natureza de
pessoa jurídica de direito privado é pacífica. Isso é fundamental para
definir que a Consolidação das Leis Trabalhistas rege os contratos
de trabalho dos empregados públicos e dos empregados das
sociedades de economia mista.
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A Constituição Federal impõe a exigência da prévia
aprovação em concurso público para o acesso aos empregos nas
empresas públicas e nas sociedades de economia mista em seu
artigo 37, inciso II. Trata-se de uma garantia da observância dos
princípios da isonomia e da impessoalidade consagrados no
sistema constitucional. Com base nesses fundamentos, o STF
entende ser indispensável a motivação para a dispensa, mesmo
sem justa causa, desses empregados. Tal entendimento difere da
posição do TST, conforme se verá a seguir.
2- Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista
2.1- Conceito
O conceito de Empresa Pública está presente no art. 5º, II do
Decreto-Lei 201/67, que assim a define: “Empresa Pública- a
entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com
patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a
exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a
exercer por força da contingência ou de conveniência administrativa
podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito. ”
Já Sociedade de Economia Mista está definida no art. 5º, III
do mesmo diploma legal, que assim dispõe: “Sociedade de
Economia Mista- a entidade dotada de personalidade jurídica de
direito privado, criada por lei para a exploração de atividade
econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com
direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da
Administração Indireta. ”
Esses conceitos legais são bastante criticados por Celso
Antônio Bandeira de Mello. Segundo o doutrinador, o Decreto-lei
900 possui autorização que autoriza a participação de outras
pessoas jurídicas de Direito Público Interno, bem como de
entidades da Administração indireta da União, dos Estados, Distrito
Federal e Municípios. Assim, fica visível que empresas públicas não
são apenas as que se constituem de capital “integralmente da
União”. Também não se pode desconsiderar a hipótese em que o
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capital não pertença majoritariamente à União, mas sim a alguma
autarquia ou outro ente público. E não pode descaracterizá-la
apenas por conta desse fato. Assim, vê se que o conceito legal de
Empresa Pública contém algumas impropriedades.
A mesma falha ocorre com as sociedades de economia
mista. O conceito legal não leva em conta que essas sociedades
podem exercer não só atividades econômicas, bem como atividades
de serviço público. Isso ocorre com várias prestadoras de serviço
público de água encanada e tratamento de esgotos, as quais muitas
vezes são estruturadas sob a forma de Sociedades de Economia
Mista. Também não é necessário que a maioria do capital votante
pertença a uma só pessoa jurídica de direito público, podendo
pertencer a várias.
Feitas essas considerações, será analisada a natureza
jurídica desses entes.
2.2- Natureza jurídica
Como já citado acima, as Empresas Públicas e Sociedades
de Economia Mista tem personalidade jurídica de direito privado. No
entanto, como fazem parte da Administração Pública Indireta,
possui seu regime derrogado por normas de direito público. Isso
acontece por exemplo na obrigatoriedade de seguir os princípios da
Administração Pública previstos no art. 37 da CF/88.
Obviamente, que o regime de tais entidades não pode ser
igual os das demais pessoas jurídicas de direito público, tendo em
vista a exploração de atividade econômica e o risco de ter sua
atividade engessada e não conseguir concorrer com as pessoas
jurídicas de direito privado. Por isso mesmo, o art. 173, § 1º da
CF/88 dispõe:
“Art. 173 (...) § 1º- A lei estabelecerá o estatuto
jurídico da empresa pública, da sociedade de
economia mista e de suas subsidiárias que
explorem atividade econômica de produção ou
comercialização de bens ou de prestação de
serviços, dispondo sobre: I- sua função social e
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formas de fiscalização pelo Estado e pela
sociedade; II- a sujeição ao regime jurídico
próprio das empresas privadas, inclusive quanto
aos direitos e obrigações civis, comerciais,
trabalhistas e tributários; III- licitação e
contratação de obras, serviços, compras e
alienações, observados os princípios da
administração pública; IV- a constituição e o
funcionamento dos conselhos de administração
e fiscal, com a participação de acionistas
minoritários; e V- os mandatos, a avaliação de
desempenho e a responsabilidade dos
administradores.”
Em suma, a CF/88 delegou à lei federal a competência para
o estabelecimento dos estatutos jurídicos das Empresas Públicas e
das Sociedades de Economia Mista com a intenção de proporcionar
mais flexibilidade na persecução de seus objetivos essenciais. É
importante salientar que essa lei jamais foi editada, então aplica-se
as normas aplicáveis às entidades da Administração Pública com
seus devidos temperamentos.
3- Regime de pessoal
3.1- Regime aplicável
É pacífico na doutrina e na jurisprudência que o regime
aplicável aos empregados das Empresas Públicas e das
Sociedades de Economia Mista é o previsto na CLT. Obviamente a
admissão desses empregados não é livre e se dá mediante
concurso público, conforme o disposto no artigo 37, II da CF/88. Isso
se dá para a observância dos princípios da isonomia e da
impessoalidade, tão prestigiados na ordem Constitucional brasileira.
3.2- Dispensa desses empregados: TST Vs STF
Para o TST a dispensa de empregados de empresa pública
e de sociedades de economia mista independe de qualquer espécie
de motivação, mesmo que esses empregados sejam admitidos por
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concurso público. Vejamos o entendimento constante na Orientação
Jurisprudencial nº 247 da SDI-1:
“247. Servidor Público. Celetista concursado.
Despedida imotivada. Empresa Pública ou
sociedade de economia mista. Possibilidade. I-
A despedida de empregados de empresa pública
e de sociedade de economia mista, mesmo
admitidos por concurso público, independe de
ato motivado para a sua validade. II- A validade
do ato de despedida do empregado da Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) está
condicionada à motivação, por gozar a empresa
do mesmo tratamento destinado à Fazenda
Pública em relação à imunidade tributária e à
execução por precatório, além das prerrogativas
de foro, prazos e custas processuais. “
Essa OJ exprime o entendimento do TST, para o qual a
demissão de empregados de empresas públicas e de sociedades
de economia mista não precisa de motivação. A única exceção fica
por conta da ECT, visto que essa empresa é equiparada à Fazenda
Pública em diversos aspectos. Bom salientar que esse
entendimento visa a dar mais flexibilidade para tais entes
controlarem suas relações trabalhistas.
Já o STF possui entendimento oposto. Segue ementa do
acórdão proferido pela Egrégia Corte e depois sua análise apurada:
EMENTA: EMPRESA BRASILEIRA DE
CORREIOS E TELÉGRAFOS – ECT.
DEMISSÃO IMOTIVADA DE SEUS
EMPREGADOS. IMPOSSIBILIDADE.
NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DA
DISPENSA. RE PARCIALEMENTE PROVIDO. I
- Os empregados públicos não fazem jus à
estabilidade prevista no art. 41 da CF, salvo
aqueles admitidos em período anterior ao
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advento da EC nº 19/1998. Precedentes. II - Em
atenção, no entanto, aos princípios da
impessoalidade e isonomia, que regem a
admissão por concurso publico, a dispensa do
empregado de empresas públicas e sociedades
de economia mista que prestam serviços
públicos deve ser motivada, assegurando-se,
assim, que tais princípios, observados no
momento daquela admissão, sejam também
respeitados por ocasião da dispensa. III – A
motivação do ato de dispensa, assim, visa a
resguardar o empregado de uma possível
quebra do postulado da impessoalidade por
parte do agente estatal investido do poder de
demitir. IV - Recurso extraordinário parcialmente
provido para afastar a aplicação, ao caso, do art.
41 da CF, exigindo-se, entretanto, a motivação
para legitimar a rescisão unilateral do contrato de
trabalho. (RE 589.998 PI, Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, julgado em 20/03/2013).
Então está claro que o STF entende ser indispensável a
motivação para que a demissão dos empregados de empresas
públicas e sociedades de economia mista. Em suma, considerando
que esses empregados são admitidos por meio de concurso
público, em observância aos princípios da impessoalidade e da
isonomia. Obviamente, esses empregados não gozam da
estabilidade. Essa garantia assegura apenas que a administração
pública seja obrigada a motivar as demissões das empresas
públicas e das sociedades de economia mista. É uma garantia em
favor desses empregados e também para a administração siga seus
princípios. Portanto, é provável que em breve o TST reformule o seu
entendimento, alinhando ao entendimento do STF.
4- Conclusão
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Conforme visto, o TST possui o entendimento que a
Administração Pública pode demitir os empregados das Empresas
Públicas e das Sociedades de Economia Mista sem necessidade de
motivação, tendo em vista a natureza privada desses entes. Já o
STF em recente decisão entendeu que a demissão de tais
empregados deve ser sempre motivada, tendo em vista a
necessidade de observância os princípios da isonomia e da
impessoalidade. Tendo em vista esse novo entendimento do STF,
o TST tende a modificar o seu entendimento, alinhando-se a
posição da Suprema Corte.
5- Referências
NEIVA, Rogério. Direito e Processo do Trabalho aplicados à
Administração Pública e Fazenda Pública. 2ª Ed. Editora Método.
São Paulo. 2015.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito
Administrativo. 32ª Ed. Editora Malheiros. São Paulo. 2015.
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A ISENÇÃO DO IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO EM REMESSAS
INTERNACIONAIS DE PEQUENO VALOR
RAMON DE SOUSA NUNES: Advogado, graduado pela UFMA.
RESUMO: O presente trabalho tem como finalidade determinar qual
o valor da isenção do imposto de importação em remessas
internacionais de pequeno valor. Com efeito, tem sido noticiado que,
ao contrário do que estabelecem a Portaria do Ministério da
Fazenda nº 156/99 e a Instrução Normativa da Receita Federal nº
97/99, tal isenção seria não de $50 (cinquenta dólares), mas de até
$100 (cem dólares), ou o equivalente em outra moeda. Da análise,
observou-se que tais atos administrativos contrariam o Decreto-Lei
nº 1.804/80, sendo, portanto ilegais. Assim, a isenção atualmente é
mesmo de cem dólares americanos, desde que enviada para
pessoa física, ao contrário, neste último requisito, dos atos
administrativos em questão que exigiam o envio de pessoa física
para pessoa física.
Palavras-chave: isenção; imposto de importação; remessas
internacionais; remessas de pequeno valor.
ABSTRACT: This study aims to determine the value of the
exemption from import taxes on international shipments of small
value. Indeed, it has been reported that, contrary to establish the
Ordinance of the Ministry of Finance No. 156/99 and Normative
Instruction of the Federal Revenue No. 97/99, the immunite would
not be $ 50 (fifty dollars Americans), but up to $ 100 (one hundred
US dollars Americans), or the equivalent in another currency. From
the analysis, it was observed that such administrative acts contrary
to the Decree-Law No. 1.804/80, and is therefore illegal. Thus, the
exemption is currently up to one hundred US dollars, since sent to
individuals, unlike in the latter requirement, the administrative acts
in question that required sending individual to individual.
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Keywords: immunite; taxes import; international shipments; small
vallue shipments.
INTRODUÇÃO
Recentemente, com a globalização e a ampliação do acesso
à internet, multiplicaram-se as compras por partes de brasileiros em
sites internacionais, aumentando, portanto, o número de
importações por remessas.
Nesse contexto, com as consequentes tributações por parte
da Receita Federal, em aplicação do imposto de importação,
passou a ser questionada legalidade da Portaria do Ministério da
Fazenda nº 156/1999 (BRASIL, 1999a), e da Instrução Normativa
da Secretaria da Receita Federal nº 96/1999 (BRASIL, 1999b), que
estabelecem, em resumo, o limite da isenção em até $50
(cinquenta dólares), ou o equivalente em outra moeda, em
remessas enviadas de pessoa física para pessoa física, frente ao
Decreto-Lei nº 1.804/80 (BRASIL, 1980), que limitaria a isenção em
até $100 (cem dólares), ou o equivalente em outra moeda, desde
que o destinatário fosse pessoa física.
Cabe relatar que tem sido noticiado na mídia, inclusive,
decisões judiciais que encontraram guarida nessa tese. Nesse
sentido, o sítio eletrônico Consultor Jurídico identificou quatro
ações, nas quais sentenças ampliaram a isenção para cem dólares
(RECEITA, 2014).
Diante desta crise de incerteza, a Receita Federal se
manifestou em Nota Técnica, na qual reafirmou a validade dos
aludidos atos administrativos (BRASIL, 2014).
Neste panorama de insegurança jurídica e na falta de texto
jurídicos que esclareçam a celeuma, ressai a necessidade de se
determinar qual, de fato, é o limite da isenção do imposto de
importação no que tange às remessas de pequeno valor.
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1. ASPECTOS GERAIS DO IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO E
DA ISENÇÃO
O imposto de importação, previsto no art. 153, I, da
Constituição Federal, tem como objeto e fato gerador a entrada de
produtos estrangeiros no Brasil, ainda que o aspecto temporal deste
último seja apurado com o da declaração de importação
(ALEXANDRE, 2014, p. 543), possuindo caráter marcadamente
extrafiscal, o que, nas palavras de Ricardo Alexandre, significa que:
(...) seu principal objetivo não é carrear
recursos para os cofres públicos federais, mas
sim servir como mecanismo de controle sobre as
importações, podendo ser utilizado, por exemplo,
como instrumento de planejamento de terminado
setor da indústria nacional que esteja sofrendo
dificuldades em face da concorrência de produtos
similares estrangeiros (2014, p. 542).
Outrossim, segundo Harada:
Como imposto de caráter regulatório da
economia, a faculdade de o Executivo alterar sua
alíquota há de fundar-se em motivação que
harmonize com a norma do art. 174 da CF, que
confere ao Estado o papel de agente normativo e
regulador da atividade econômica (2011, p. 394).
Em outras palavras, por conta do seu caráter extrafiscal, ou
seja, regulatório da economia, a Constituição, por força do §1º, do
seu art. 153, excepcionou o princípio da legalidade tributária e
possibilitou ao Poder Executivo alterar sua alíquota por meio de atos
administrativos.
A isenção, por sua vez, é “uma mera dispensa legal de
pagamento de tributo devido” (SABBAG, 2011, p. 892), vale dizer,
isentar significa que, não obstante a ocorrência do fato gerador em
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uma determinada situação e da consequente incidência do tributo,
o legislador escolheu dispensar o pagamento deste (hipótese de
exclusão do crédito tributário, portanto).
Outrossim, conforme o comando do §6º, do art. 50, da CF, a
isenção apenas poderá ser dada através de lei específica, a ser
elaborada pelo ente instituidor do tributo, dessa forma, submetendo-
se ao princípio da legalidade.
A isenção pode ser de caráter geral ou de caráter individual,
será do primeiro caso o benefício atinja a generalidade dos sujeitos
passivos, sendo prescindível a comprovação de quaisquer
requisitos pessoais especiais (ALEXANDRE, 2014, p. 285).
No entanto, será individual nos casos em que a lei restringir
a abrangência dos benefícios às pessoas que preenchiam
requisitos específicos, sendo necessário, assim, requerimento
administrativo, no qual se comprove o preenchimento dos
pressupostos legais (ALEXANDRE, 2014, p. 285).
1.1 O REGIME DE TRIBUTAÇÃO SIMPLIFICADA DO IMPOSTO
DE IMPORTAÇÃO
O Decreto-Lei nº 1.804/80 institui o regime de tributação
simplificada para a cobrança do imposto de importação incidente
sobre bens contidos em remessas postais internacionais (art. 1º,
caput).
De acordo com Leandro Paulsen e José de Melo:
Os bens objeto de remessa postal ou de
encomenda aérea internacional sujeitam-se,
quando de valor até $3.000,00 ao Regime de
Tributação Simplificada – RTS, instituído pelo DL
1.804/1980 e regulamentado pela Portaria MF
156/1999 e pela IN SRF/1999. Aplica-se ao
destinatário pessoa física ou jurídica (2015, p.
40).
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Basicamente, a disciplina deste regime está estabelecida em
seu art. 2º, in litteris:
Art. 2º O Ministério da Fazenda,
relativamente ao regime de que trata o art. 1º
deste Decreto-Lei, estabelecerá a classificação
genérica e fixará as alíquotas especiais a que se
refere o § 2º do artigo 1º, bem como poderá:
I - dispor sobre normas, métodos e padrões
específicos de valoração aduaneira dos bens
contidos em remessas postais internacionais;
II - dispor sobre a isenção do imposto de
importação dos bens contidos em remessas de
valor até cem dólares norte-americanos, ou o
equivalente em outras moedas, quando
destinados a pessoas físicas. (BRASIL, 1980).
Destarte, da forma como se vem interpretando, o Decreto-
Lei, basicamente, reenvia a matéria ao Ministério da Fazenda, o
qual deverá, de fato, instituir o regime simplificado específico às
remessas postais internacionais, e dispor sobre a isenção do
imposto de importação, porém, tendo lhe sido estabelecidas
restrições quanto a este último aspecto, quais sejam: a) a isenção
só poderá incidir sobre remessas até cem dólares norte-
americanos, ou o equivalente em outras moedas; e b) quando as
remessas foram destinadas a pessoas físicas.
Fazendo uso dessa faculdade, o Ministério da Fazenda (MF)
editou a Portaria nº 156/1999, que em síntese, em seu art. 1º,
instituiu o regime de tributação simplificado, para as remessas
postais ou encomendas aéreas até o valor de $3.000 (três mil
dólares), ou o equivalente em outra moeda, e no parágrafo 2º, deste
mesmo artigo, criou a isenção de até $50 (cinquenta dólares norte-
americanos), ou o equivalente em outra moeda, nas remessas de
pessoa física para pessoa física.
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Nessa esteira, a Instrução Normativa (IN) nº 96/99, da
Secretaria da Receita Federal (SRF), apenas repetiu em seu art. 2º,
§2º, o que já dispôs a Portaria do MF sobre a isenção das remessas
de pequeno valor.
Não é outra a interpretação da doutrina acerca dos
dispositivos citados:
(...) Remessas ou encomendas de até US$
50,00 (cinquenta dólares), que tenham como o
remetente e como destinatário pessoas físicas,
são isentas do Imposto de Importação, nos
termos do art. 1º, §2º, da Portaria MF 156/99
(PAULSEN e MELO, 2015, p. 40).
1.2 A RECEPÇÃO DO DECRETO-LEI Nº 1.804/80 PELA
CONSTITUIÇÃO DE 1988
De acordo com a doutrina de Gilmar Mendes (2010, p. 279),
em relação às normas anteriores à Constituição se adota a teoria
da recepção, pela qual, se houver compatibilidade material, a norma
anterior é pela Constituição nova recepcionada. Caso contrário,
ocorre a revogação e não a inconstitucionalidade superveniente.
Tendo em vista que o Decreto-Lei nº 1.804/80 é anterior à
Constituição de 1988, não se pode crer que tenha sido
recepcionado por esta, ao menos no que tange ao seu art. 2º, inc.
II, caso se entenda que o sentido dele foi de outorgar ao Ministério
da Fazenda a criação de uma isenção, como sustentou a Receita
Federal em sua Nota Técnica, litteris:
Dessa forma, o que fez o Decreto 1.804/80
foi delegar ao Ministro da Fazenda a faculdade
de dispor sobre a isenção em remessas entre
pessoas físicas da maneira que melhor convier
aos interesses da Fazenda Nacional e da
economia do país. Ao fixar o valor em US$
50,00, respeitou-se o teto estabelecido pela Lei,
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que é de cem dólares dos Estados Unidos da
América ou o equivalente em outra moeda, o
qual não deve ser confundido com o valor da
própria isenção. (BRASIL, 2014).
Eis que, neste caso, o Decreto-Lei possuiria em si uma
delegação legislativa para o Poder Executivo, mais
especificamente, para o Ministério da Fazenda, acerca da
competência da criação de isenção nas remessas internacionais
que é contraditória à regra do §6º, do art. 50, da Constituição, a
qual reserva à lei a criação de quaisquer isenção.
E que não se diga que o caráter extrafiscal que ressalva o
princípio da legalidade na alteração da alíquota do Imposto de
Importação permitiria a isenção sem fundamento na lei, eis que
seria possível ato administrativo que reduzisse a alíquota a zero.
A natureza jurídica entre isenção e alíquota zero não
permitiria tal interpretação, não foi outra a conclusão de um estudo
específico sobre a matéria:
Pelos apontamentos anteriores, conclui-se
que, na isenção tributária, não há á incidência da
norma de tributação, em virtude da prévia
incidência de norma isentiva, de natureza
autônoma, que torna insuficiente o suporte fático
da norma de tributação, evitando, portanto, o
surgimento do fato jurídico tributário. A norma de
isenção, por ter suporte fático e preceitos
próprios, dever ser considerada norma jurídica
autônoma. Tal norma possui caráter de norma
permissiva (exceção à norma geral de
tributação). Assim, sob o ponto de vista lógico-
formal, a sua incidência afasta a incidência da
norma geral de tributação. Sob a ótica da teoria
do fato jurídico, significa dizer que o suporte
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fático da norma de tributação tornar-se
insuficiente com a incidência prévia da norma
isentiva, afastando, deste modo, a incidência da
norma de tributação.
Por sua vez, na situação de alíquota zero, há
incompletude da própria norma de tributação em
decorrência da nulificação do critério quantitativo
do seu consequente, não tendo, assim,
condições de incidir sobre o suporte fático nela
previsto. Assim, não há incidência da norma de
tributação, porque esta, por ser incompleta,
jamais terá a possibilidade de incidir (= eficácia
normativa). Destarte, quando o legislador nulifica
a alíquota, a norma de tributação se torna
incompleta, uma vez que o seu preceito
determinará um nada. Por conseguinte, ainda
que o fato “X”, descrito na hipótese normativa,
ocorra no mundo dos fatos, ele não ingressa no
mundo jurídico, por não se transformar em fato
jurídico. Ademais, como visto, a norma
incompleta é o mesmo que falta de norma
(BRITO, 2013).
De fato, pelo sentido literal, não há escapatória, o Decreto-
Lei em epígrafe não foi recepcionado e estaria, assim, revogado. É
possível, entretanto, salvar o Decreto-Lei interpretando-o de outra
forma?
Penso que sim.
No caso em tela, partindo da intepretação sistemática, lendo
o Decreto-Lei a partir da Constituição e lembrando ainda que o
próprio caráter extrafiscal do imposto de importação denota a
finalidade de regulamentar o mercado e não meramente o intuito
arrecadatório do Estado, é possível crer que no momento que o
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Decreto-Lei dispõe sobre a isenção do imposto de importação dos
bens contidos em remessas de valor até cem dólares norte-
americanos, ou o equivalente em outras moedas, quando
destinados a pessoas físicas, está, em verdade, determinando que
o Ministério da Fazenda deve observar em suas portarias a isenção
de até cem dólares norte-americanos e não meramente escolher,
por oportunidade e conveniência, uma isenção nesse limite.
“Dispor”, nesse sentido, seria na acepção de “pôr de acordo”,
não tendo sido recepcionada a acepção de dispor como
“estabelecer” – na prática, essa seria a única forma de interpretar o
dispositivo conforme a Constituição. Tratar-se-ia de uma obrigação
de repetição, apenas com o fim de dar fiel execução ao Decreto-Lei.
Adotando este mesmo sentido ao Decreto-Lei, assim
estabeleceu o seguinte precedente do Tribunal Regional Federal da
4ª Região: “Conforme disposto no Decreto-Lei nº 1.804/80, art. 2º,
II, as remessas de até cem dólares, quando destinadas a pessoas
físicas, são isentas do Imposto de Importação.” (BRASIL, 2010).
Como se vê, esta interpretação não-literal atende inclusive
ao princípio da proporcionalidade e da própria função do imposto de
importação, eis que, se, por um lado, fortalece o princípio da
legitimidade da leis, por outro, não impede a Administração Pública
de proteger o mercado interno de produtos estrangeiros e ao
mesmo tempo não onerar demasiadamente o contribuinte, tendo-se
em vista o razoável e modesto limite de até $100, ou o equivalente
disto em outra moeda.
Ademais, atende muito mais ao princípio jurídico do diálogo
das fontes uma mudança de interpretação da lei, por mais que
minimamente contrarie o seu sentido literal, do que a revogação
pura e simples desta (ou a não recepção, como no caso em tela).
1.2 LEGALIDADE DA PORTARIA MF Nº 196/99 E DA
INSTRUÇÃO NORMATIVA 96/99
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Partindo-se da noção de que o Decreto-Lei nº 1.804/80
estabeleceu uma isenção e não uma delegação legislativa ao Poder
Executivo (posicionamento que se adota neste trabalho), não é
necessária uma análise aprofundada dos citados atos
administrativos, para se saber que eles são contra legem, uma vez
que afrontaram diretamente o inc. II, do art. 2º, do Decreto-Lei em
comento.
Com efeito, se de um lado tais atos administrativos
impuseram uma isenção menor que o Decreto-Lei, isto é, adotaram
$50 ao invés $100, de outro lado, também restringiram mais ainda
o benefício, versando que só poderia ser utilizado quando a
remessa fosse feita de pessoa física para pessoa física e não
quando enviado para pessoa física, sem necessidade de ser
endereçado por pessoa física como determinado no Decreto-Lei.
Nesse sentido, o Tribunal Regional da 4ª Região também
decidiu que:
1. (...)
2. A Portaria MF 156/99 e a IN 096/99, ao
exigir que o remetente e o destinatário sejam
pessoas físicas, restringiram o disposto no
Decreto-Lei nº 1.804/80.
3. Não pode a autoridade administrativa, por
intermédio de ato administrativo, ainda que
normativo (portaria), extrapolar os limites
claramente estabelecidos em lei, pois está
vinculada ao princípio da legalidade. (BRASIL,
2010).
Seriam, nessa hipótese, portanto, atos administrativos
ilegais, porquanto contrariaram a norma material em que tentaram
se fundar. Não é outro o entendimento da Suprema Corte:
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EMENTA AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
ARTS. 1º, 2º E 3º DA RESOLUÇÃO Nº 102/2007
DO SECRETÁRIO DE ESTADO DA
AGRICULTURA E DO ABASTECIMENTO DO
ESTADO DO PARANÁ. FUNDAMENTO EM
LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL.
NATUREZA REGULAMENTAR. ATO
SECUNDÁRIO. CONTROLE CONCENTRADO
DE CONSTITUCIONALIDADE. INVIABILIDADE.
1. Decisão denegatória de seguimento de ação
direta de inconstitucionalidade por manifesto
descabimento. 2.Segundo a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, somente os atos
normativos qualificados como
essencialmente primários ou autônomos
expõem-se ao controle abstrato de
constitucionalidade. Precedido o conteúdo
do ato normativo atacado por legislação
infraconstitucional que lhe dá amparo
material, a evidenciar sua natureza de ato
regulamentar secundário, inviável a sua
impugnação pela via da ação direta.
Precedentes. Agravo regimental conhecido e
não provido.
(ADI 4095 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER,
Tribunal Pleno, julgado em 16/10/2014,
PROCESSO ELETRÔNICO DJe-218 DIVULG
05-11-2014 PUBLIC 06-11-2014)
Caso, entretanto, se considere, não ter sido recepcionado
pela Constituição de 1988 (posição a qual o presente artigo refuta),
o inc. II, do art. 2º, do Decreto-Lei nº 1.804/90, necessário pensar
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se ele teria vida própria, de acordo com o ordenamento jurídico
brasileiro em vigor.
Sobre o tema, André Ramos Tavares ensina que:
Apenas o Poder Legislativo é que goza da
faculdade de criar normas jurídicas que inovem
originariamente o sistema jurídico nacional. É
isso que distingue a competência legislativa da
mera competência regulamentar.
As normas regulamentares se inserem na
competência privativa dos Chefes do Executivo,
tendo como finalidade última a
instrumentalização dos comandos legais,
fornecendo meios materiais adequados a seu
cumprimento efetivo. Sua exteriorização dá-se
por meio de decreto. (2009, p. 639).
Em outras palavras, está expressamente vedado, com
exceção das hipóteses previstas no art. 84, inc. VI, da CF, a figura
do Decreto Autônomo no direito pátrio, que significa “(...) a
prerrogativa de editar regulamentos como atos primários,
diretamente da Constituição (...)” (ALEXANDRINO e PAULO,
2014b, p. 140), apenas sendo permitido decretos para a fiel
execução de leis (art. 84, IV, e 87, II, ambos da CF).
As exceções permitidas do Decreto Autônomo são, por sua
vez, as seguintes hipóteses: a) organização e funcionamento da
administração federal, quando não implicar aumento de despesa
nem criação ou extinção de órgãos públicos; e b) extinção de
funções ou cargos públicos, quando vagos.
Logo, a partir de uma análise perfunctória, é possível concluir
que não se tratariam, caso se entenda que o Decreto-Lei não foi
recepcionado, a Portaria do Ministério da Fazenda nº 156/99 e a
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Instrução Normativa da Receita Federal nº 97/99 de Decretos
Autônomos permitidos.
Ademais, como se viu acima, a Constituição (§6º, do art. 50)
reservou a criação de isenção expressamente à lei.
Não há, portanto, aqui outra conclusão: a) ou seriam tais atos
administrativos inconstitucionais, passíveis de controle de
constitucionalidade, inclusive de acordo com o precedente acima
colacionado do STF, e, esse caso, não haveria qualquer isenção
nas remessas de pequeno valor no que tange ao imposto de
importação; b) ou seriam tais atos ilegais (principal tese do presente
artigo), tendo em vista que contrariaram o Decreto-Lei, sendo,
assim, contra legem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que se viu, chega-se a conclusão de que é
possível interpretar o Decreto-Lei nº 1.804/80 de acordo com a
Constituição Federal, extraindo-se dele que a isenção nas
remessas internacionais de pequeno valor para o imposto de
importação é atualmente de até $100 (cem dólares americanos), ou
o equivalente em outra moeda, desde que enviada para pessoa
física.
Ademais, entendeu-se também que a Portaria do Ministério
da Fazenda nº 156/99 e a Instrução Normativa da Receita Federal
nº 97/99 são ilegais e estão em contrariedade ao precitado pelo
Decreto-Lei.
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01/1999/portmf015699.htm>. Acesso em: 1 dez. 2014.
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1980. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/1965-1988/Del1804.htm >. Acesso em: 9 nov. 2014.
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Relator: Álvaro Eduardo Junqueira. Julgado em:
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0304-2340.2013v62p599/262>. Acesso em 01 mar 2015.
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RECEITA não pode cobrar taxa de importação de compras
abaixo de US$ 100. Consultor Jurídico, por Tadeu Rover, [S.L.],
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17/receita-nao-tributar-importacao-abaixo-us-100>. Acesso em: 4
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TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional.
7ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS – UFAL
Faculdade de Direito de Alagoas – FDA
CARLOS ULISSES LISBOA CORDEIRO
A (IN)EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA
Maceió/AL.
Março/2014.
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CARLOS ULISSES LISBOA CORDEIRO
A (IN)EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA
Monografia de conclusão de curso, apresentada à Faculdade
de Direito de Alagoas (FDA/UFAL) como requisito parcial
para obtenção do grau de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Fábio Lins de Lessa Carvalho
__________________________________________
Assinatura do Orientador
Maceió/AL.
Março/2014.
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CARLOS ULISSES LISBOA CORDEIRO
A (IN)EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA
Esta monografia de conclusão de curso de graduação em
Direito, apresentada à Faculdade de Direito de Alagoas
(FDA/UFAL) como requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Direito, obteve a devida aprovação perante a
presente banca examinadora.
Banca Examinadora:
_________________________________________________
Presidente: Prof. (a) Dr./Msc./Esp. Nome do Professor
____________________________________________________
Membro: Prof. (a) Dr./Msc./Esp. Nome do Professor
____________________________________________________
Coordenador do NPE: Prof. (a) Dr./Msc./Esp. Nome do
Professor
Maceió/AL.
Março/2014.
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Ao povo brasileiro, que mesmo molestado
por exaustivos tributos, custeou minha
faculdade.
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"O que me preocupa não é nem o grito dos
corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem
caráter, dos sem ética... O que me preocupa é o
silêncio dos bons."
Martin Luther King
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RESUMO
A participação popular na administração pública é direito fundamental consagrado pelo
ordenamento jurídico brasileiro, expressamente destacado pela Constituição Federal de 1988.
Para atingir status constitucional, no entanto, árduo foi o caminho. Participação popular,
democracia e cidadania são institutos que nasceram, desenvolveram-se e até hoje caminham
juntos. O presente trabalho objetiva explanar suas trajetórias, com origem comum na
Antiguidade, passando pela idade média e baixa idade média, onde houveram contribuições
importantes dadas pelas revoluções burguesas. No Brasil, a ideia de participação popular
atinge seu apogeu com a promulgação da Constituição Cidadã. No decorrer deste trabalho
serão discutidos os avanços trazidos pela Carta Maior, apresentados os instrumentos nela
expressos, como referendo, plebiscito e iniciativa popular, os normatizados pelo ordenamento
infraconstitucional, como orçamento participativo, audiências públicas, consultas públicas e
conselhos gestores de políticas públicas, e analisados os problemas que dificultam a
efetivação de tais instrumentos, em que se incluem velhas mazelas da administração pública,
como o clientelismo político, as famosas práticas assistencialistas, a falta de transparência da
coisa pública, a falta de cultura participativa e, principalmente, a corrupção.
Palavras-chave: Administração Pública. Cidadania. Democracia. Participação popular.
Constituição Cidadã. Instrumentos participativos. Efetividade.
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ABSTRACT
The public participation in public administration is a fundamental right enshrined in Brazilian
law, expressly highlighted by the 1988 Federal Constitution. To achieve constitutional status,
however, was the hard way. Popular participation, democracy and citizenship institutes are
born, evolved and today go together. This paper aims to explain their trajectories with
common origin in antiquity, through the middle and lower middle age, and where there have
been important contributions made by the bourgeois revolutions. In Brazil, the idea of popular
participation reaches its zenith with the promulgation of the Constitution Citizen. In this work
we will discuss the advances brought by Carta Maior, presented the instruments expressed
therein, as referendum, referendum and popular initiative, standardized by infra management,
such as participatory budgeting, public hearings and management boards of public policies,
and discusses the problems that hinder the effectiveness of such instruments, in which old ills
of public administration, as political patronage, the famous welfare practices, lack of
transparency in public affairs, and especially the lack of participatory culture include.
Keywords: Public Administration. Citizenship. Democracy. Popular participation. Citizen
Constitution. Participatory tools. Effectiveness.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
1. DEMOCRACIA, CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO POPULAR ................................ 12
1.1 DEMOCRACIA ............................................................................................................. 12
1.1.1 Democracia Direta ................................................................................................. 14
1.1.2 Democracia Representativa .................................................................................. 14
1.1.3 Democracia Participativa ...................................................................................... 16
1.2 CIDADANIA.................................................................................................................. 17
1.2.1 Evolução da cidadania ........................................................................................... 18
1.3 PARTICIPAÇÃO POPULAR ........................................................................................ 20
1.3.1 Participação na gestão pública e no controle da atividade administrativa ...... 21
2. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ........................................................................... 28
2.1 CONSTITUIÇÃO CIDADÃ .......................................................................................... 28
2.2 CONSTITUIÇÃO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................................. 29
2.2.1 Do Estado de Direito .............................................................................................. 29
2.2.2 Do Estado Social de Direito ................................................................................... 30
2.2.3 Do Estado Democrático de Direito ....................................................................... 31
2.2.4 Soberania popular .................................................................................................. 32
2.3 DIREITO POLÍTICOS ................................................................................................... 33
2.3.1 Sufrágio universal .................................................................................................. 35
2.3.2 Iniciativa popular ................................................................................................... 36
2.3.3 Plebiscito e Referendo ............................................................................................ 39
3. A EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR ................................................... 43
3.1 INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR ................. 43
3.1.1 Orçamento participativo ....................................................................................... 43
3.1.2 Audiências públicas ............................................................................................... 49
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3.1.3 Consultas públicas ................................................................................................. 56
3.1.4 Conselhos gestores de políticas públicas .............................................................. 58
4. A INEFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR ............................................... 62
4.1 DIFICULDADES DE EXERCER O DIREITO À PARTICIPAÇÃO ........................... 62
4.1.1 Apatia, abulia e acracia política ........................................................................... 62
4.1.2 Clientelismo político ............................................................................................... 64
4.1.3 Assistencialismo ou paternalismo ......................................................................... 67
4.1.4 Falta de educação e cultura participativa ............................................................ 68
4.1.5 Dificuldade para acessar as informações públicas .............................................. 69
4.1.6 Corrupção ............................................................................................................... 71
CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 74
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 76
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10
INTRODUÇÃO
A participação popular na administração pública é direito fundamental de todo
cidadão. No Brasil, várias foram as etapas trilhadas desde a ditadura militar até a promulgação
da Constituição Federal de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã” por todas as
conquistas trazidas expressa e implicitamente.
O presente trabalho tem o condão de demonstrar a evolução da participação popular,
intrinsecamente ligada à democracia e à cidadania. Portanto, imperioso se faz a análise da
origem da democracia, papel exercido pelo capítulo inicial.
No primeiro momento, trataremos da democracia grega, analisando como era
estruturada e como o poder restava distribuído. A própria origem etimológica da palavra
democracia nos orienta sobre seu fundamento, uma vez que temos a junção dos termos gregos
Demos, que significa povo, e Kratos, que significa poder, daí porque democracia significa
“poder do povo”.
A democracia encontrada na Grécia é conhecida como democracia direta, já que o
poder era exercido diretamente pelos cidadãos. Ao longo dos séculos, novas modalidades
surgiram, variando o modo como o poder era desempenhado. Na democracia indireta, o poder
era exercido por meio de representantes, geralmente, eleitos pelo povo. A terceira modalidade
é resultado da junção das anteriores, ou seja, nela tem-se representação e atuação direta pelo
povo, é a chamada democracia semidireta ou participativa. Para cada modalidade, há uma
forma de exercício da cidadania e, consequentemente, de participação dos cidadãos.
No segundo capítulo, versaremos sobre a Constituição Federal de 1988, a famosa
Constituição Cidadã, tida por muitos, a mais completa constituição que o Brasil já teve.
Dentre as inovações, nas mais diversas searas, destacam-se as ocorridas no campo social,
como a garantia dos direitos humanos fundamentais e do acesso à cidadania.
A Carta Maior de 1988 consagra o Estado Democrático de Direito, sucessor do Estado
de Direito e do Estado Democrático, tido por alguns teóricos como “superconceito”, do qual
se podem extrair diversos princípios, como o da separação dos poderes, pluralismo político,
isonomia e, especialmente, aquele tido por muitos como o “princípio dos princípios”, marca
central do Estado Democrático de Direito: o princípio da dignidade humana.
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11
Alguns instrumentos participativos foram incluídos diretamente no texto
constitucional, fundados na ideia de sufrágio universal e nos direitos políticos, visando
permitir a interação direta dos cidadãos com o poder público. São eles: plebiscito, referendo e
iniciativa popular.
Por sua vez, o terceiro capítulo ocupou-se pela análise dos instrumentos garantidos
pela Constituição, mas por ela não regulados. Ficou a critério do ordenamento
infraconstitucional normatizá-los e garantir-lhes efetividade. Como várias são as ferramentas
participativas, limitamo-nos a realizar uma breve análise de quatro das mais importantes.
A primeira delas, o orçamento participativo, teve origem no Estado do Rio Grande do
Sul e constitui ferramenta essencial, através da qual os cidadãos podem participar da
construção do orçamento público, peça chave do planejamento governamental. O orçamento
participativo permite o combate à má gestão dos gastos e investimentos públicos, pois à
população é dado maior poder de ação e decisão, capaz de romper com velhos hábitos
maléficos à efetivação da cidadania.
As audiências públicas, consultas públicas e conselhos gestores de políticas públicas
são instrumentos de participação que também merecem destaque. Cada um a sua maneira, são
responsáveis por estreitar os laços entre cidadãos e administração pública, possibilitando que
a população atue diretamente na condução do Estado.
O quarto e último capítulo é incumbido de elencar os fatores que comprometem a
efetividade da participação popular na administração pública, dentre os quais se destacam: o
clientelismo político, o assistencialismo ou paternalismo, as dificuldades de acesso às
informações públicas, a falta de cultura participativa, e aquele que é, a nosso ver, o grande
vilão, responsável por afastar os cidadãos da vida pública, acarretando patologias como
apatia, abulia e acracia política: a corrupção.
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12
1. DEMOCRACIA, CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO POPULAR
1.1 DEMOCRACIA
Ao longo da história, diversos regimes de governo foram conhecidos. No entanto, dois
foram os que tiveram maior destaque, sendo considerados por alguns como “formas puras”,
pois se trataram de verdadeiros gêneros das diversas espécies que os seguiram. Foram eles:
Democracia e Autocracia.
Recorrendo à origem etimológica da palavra Democracia, encontramos a junção dos
termos gregos Demos, que significa povo, e Kratos, que significa poder, ou seja, democracia é
a palavra que denota poder do povo.1 Enquanto na democracia temos o “poder do povo”, na
autocracia2 encontramos o “poder por si próprio”.
No governo autocrático, nos deparamos com um regime estruturado de cima para
baixo, onde os destinatários das normas e da política governamental não participam da sua
produção. Na autocracia, a vontade do governante é imposta ao povo, que não possui direito
de manifestação. Na história, encontramos diversas variantes que se pautam na autocracia,
são exemplos: autoritarismo, absolutismo, despotismo, ditadura e tirania.
Noutro passo, o regime democrático resta estruturado de baixo para cima. Aqui há
uma efetiva participação daqueles que são os destinatários das normas e políticas públicas.
Em um governo democrático, o que predomina é a vontade da maioria, no entanto, as
minorias não são deixadas de lado: seus direitos são reconhecidos e lhes é garantida a devida
proteção. Por constituir um governo de todos - e para todos -, a democracia pauta-se no
aumento da liberdade e da igualdade de seus cidadãos.3
Destes dois regimes, o que podemos destacar, por ter obtido maior êxito no contexto
atual, é a democracia. Em sua obra, Bonavides4 afirma que “nos dias correntes, a palavra
democracia domina com tal força a linguagem política desde o século XX, que raro o
governo, a sociedade ou o Estado que se não proclamem democráticos”.
1 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 33 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.
125/126. 2 Autocracia vem da junção dos radicais gregos autos (por si próprio) e kratos (poder). 3 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 289 4 Idem. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 286
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13
Ainda segundo Bonavides5, a estrutura democrática "trata-se da melhor e mais sábia
forma de organização do poder, conhecida na história política e social de todas as
civilizações". Um dos grandes filósofos do século VIII, Rousseau, acreditava que “se
houvesse um povo de deuses, esse povo se governaria democraticamente.”6.
A forma democrática de governo pode ser encontrada na história sendo exercida de
diferentes modos. A depender de fatores como: época, extensão territorial, densidade
demográfica e complexidade dos problemas sociais, podemos nos deparar com três
modalidades de democracia: direta, indireta ou representativa, e semidireta ou participativa.7
Quando nos pomos diante de uma organização onde todos os cidadãos participam
ativamente da vida pública, elaborando diretamente as leis, administrando e julgando as
questões do Estado, temos uma democracia direta. Esta modalidade de democracia só pode
ser encontrada em sua forma pura na antiguidade.
Existem Estados em que o “poder do povo” é exercido não pelo povo, mas por seus
representantes. Esses representantes, eleitos pela vontade da maioria, são responsáveis pela
condução da coisa pública. Há verdadeira outorga das funções de governo, fazendo com que
os atos emanados pelos dirigentes sejam considerados legítima materialização da vontade
popular. Essa modalidade, onde o povo tem o poder, mas não o exerce diretamente, é
conhecida como democracia indireta ou representativa.
A terceira modalidade de democracia é resultado da combinação das outras duas.
Democracia semidireta ou participativa denota um governo democrático representativo
com traços e institutos que permitam a participação direta dos cidadãos na coisa pública. O
objetivo é alcançar um equilíbrio entre representação e soberania popular exercida de forma
direta.
Sempre que falamos em democracia, falamos também em cidadania e participação. A
depender da forma como é exercida, será maior ou menor o envolvimento dos cidadãos na
direção dos negócios públicos. Antes de adentrar na questão da cidadania e da participação,
será feita uma análise das modalidades de democracia.
5 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 286. 6 Apud BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 227. 7 Idem. Ciência política. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 288.
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14
1.1.1 Democracia Direta
Assim como a palavra, o sistema de governo democrático teve origem na Grécia, mais
precisamente em Atenas. A democracia grega foi marcada pela fervorosa participação de seus
cidadãos junto à coisa pública. Vale destacar, no entanto, que apenas uma seleta parcela da
sociedade grega tinha direito a envolver-se na condução da vida política; eram excluídos
escravos, estrangeiros, mulheres e crianças.
Na Grécia, o poder era exercido, de fato, pelo povo e para o povo. Todas as decisões
da pólis8 eram tomadas pelos cidadãos, que se reuniam nas ágoras9 e, em regime de igualdade,
valendo-se da oratória, construíam longos debates que desencadeavam no direcionamento
legislativo, executivo e judicial do Estado-cidade.
O fato de a sociedade grega ser constituída sobre um regime escravista, permitindo aos
homens livres (cidadãos) foco total nas questões públicas, sem preocupações de cunho
material, foi uma das condições que propiciaram o funcionamento do sistema democrático
grego. “Ao homem econômico dos nossos tempos correspondia o homem político da
Antiguidade: a liberdade do cidadão substituía a liberdade do homem”.10
Filósofos do calibre de Rousseau, Hegel e Nietzsche, exaltam a liberdade do homem
grego quando comparado com o homem moderno:
Compreendendo e enaltecendo a liberdade e a democracia dos gregos, filósofos da
envergadura de Rousseau, Hegel e Nietzsche entendem que verdadeiramente livre
foi o homem grego e não o homem moderno; o homem das praças atenienses e não o
homem da sociedade ocidental de nossos dias11.
A herança democrática deixada pelos gregos aos povos do ocidente foi enorme. Nos
dias de hoje, Estados buscam no regime de governo praticado em Atenas inspiração para que
possam ampliar o envolvimento de suas populações nas questões públicas, achando um ponto
em comum entre representação e participação direta.
1.1.2 Democracia Representativa
Diversos foram os fatores que contribuíram para a defasagem da democracia direta e o
consequente surgimento do regime representativo. As mudanças estruturais das cidades
modernas impossibilitaram a continuidade da democracia clássica, tornando necessário o
8 A pólis era o modelo das antigas cidades gregas, desde o período arcaico até o período clássico, vindo a perder
importância durante o domínio romano. 9 Ágora era a praça principal na constituição da pólis. 10 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 289. 11 Idem, Ibidem, p. 290.
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15
depósito do poder, que continuava sendo do povo, nas mãos de representantes, que
garantiriam uma melhor administração da res publica12.
Em primeiro lugar, a complexidade dos Estados modernos exige que as decisões sejam
tomadas por pessoas capacitadas, representantes especializados. O homem econômico da
modernidade, ao contrário do homem político da antiguidade, não tem mais tanto tempo para
se preocupar com a coisa pública, o que o torna despreparado para opinar sobre alguns temas.
Sobre o homo economicus, assevera Bonavides13:
O homem moderno, via de regra, “homem massa”, precisa de prover, de imediato, às
necessidades materiais de sua existência. Ao contrário do cidadão livre ateniense,
não se pode volver ele de todo para análise de problemas de governo, para a faina
penosa das questões administrativas, para o exame e interpretação dos complicados
temas relativos à organização política e jurídica e econômica da sociedade.
Além disso, as dimensões continentais dos países modernos impossibilitaram a
implantação das práticas adotadas em Atenas. Não é mais viável reunir os cidadãos em praças
públicas para a tomada de decisões; as dimensões territoriais embaraçam crucialmente essa
hipótese. O Estado-cidade de outros tempos desapareceu, dando espaço ao Estado-nação.
Desta forma, a democracia representativa parecia o modelo de governo democrático mais
apropriado ao Estado moderno14.
De um ponto de vista político, a democracia representativa é o sistema onde o povo
governa a si mesmo, mas conta com a mediação de seus representantes. O voto é a forma pela
qual os cidadãos participam da coisa pública. Aos cidadãos cabe eleger os representantes, e a
esses, cabe fazer as vezes da nação. Partindo de uma análise jurídica, chegamos à conclusão
de que todos os atos emanados por aqueles que forem eleitos reproduzirão a materialização da
vontade popular, como se tivessem sido produzidos pelo próprio povo, titular da soberania.
Sobre isso, afirma Bonavides15 que “o poder é do povo, mas o governo é dos representantes,
em nome do povo: eis ai toda a verdade e essência da democracia representativa”.
Se comparada com a democracia grega, vemos que a democracia indireta amplia a
cidadania, mas acaba por fragilizar a participação do povo na condução do Estado. Ao mesmo
tempo em que existe uma inclusão, há exclusão. Na democracia clássica, o poder pertencia
aos cidadãos, mas poucos eram os que se enquadravam como tal. Com a modernidade, houve
uma redefinição do conceito de cidadão, de modo que grande parte da população passou a
possuir esse “título”. No entanto, o que se viu foi um distanciamento entre sociedade e coisa
12 Res publica é uma expressão latina que significa "coisa do povo", "coisa pública". 13 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 294. 14 Idem, Ibidem, p. 293. 15 Idem, Ibidem, p. 296.
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16
pública. A representatividade retirou do povo o poder de “pôr a mão na massa”, tornando-o
um ser passivo, que se restringe a votar e deixar o resto na mão dos representantes. Acerca da
necessidade que passa a ter o povo de atuar de modo direto, especificamente no Brasil,
registra Carlos Ayres Brito16:
A democracia brasileira já não é exclusivamente representativa, diz o parágrafo
único do art. 1º [da Carta Magna de 1988], resgatando o componente que faltava no
célebre conceito lincolniano de que ela é o regime que realiza o governo do povo,
pelo povo e para o povo (o regime exclusivamente representativo se traduz no
governo do povo, mas sem o povo). Agora, como que se dá uma satisfação parcial a
Jean-Jacques Rousseau, para quem “a soberania não pode ser representada”.
A passividade gerada pela representatividade, aliada a reiteradas práticas de corrupção
por parte dos representantes, leva à necessidade de um novo regime, onde o povo abandone a
ociosidade participativa e volte a interagir com a coisa pública. Resta clara a impossibilidade
da implantação daquela democracia praticada pelos gregos, mas, de acordo com Bonavides17,
“percebeu-se ser possível fundar instituições que fizessem do governo popular um meio-termo
entre a democracia direta dos antigos e a democracia representativa tradicional dos
modernos”.
1.1.3 Democracia Participativa
A modalidade participativa da democracia, se comparada à direta, praticada na Grécia
antiga, é nova, tendo surgido em meados do século XX. Seu nascimento e fortalecimento
estão intimamente ligados ao declínio da democracia representativa.
Uma vez que os interesses de eleitores e representantes começaram a se distanciar, a
confiança e legitimidade depositadas nos governantes restaram abaladas, fazendo com que os
cidadãos se sentissem “cada vez menos representados por aqueles que elegeram”18. Nesse
contexto, surgiu a necessidade de emergirem meios de participação direta da população.
Apesar de enfraquecida, a representatividade não foi abolida, pelo contrário. Segundo
Santos, o surgimento da democracia participativa não acarretou a destruição da democracia
representativa, mantendo o propósito da representação. No entanto, as possibilidades de
participação foram ampliadas, abalando a ociosidade participativa em que se encontrava a
sociedade19.
16 BRITTO, Carlos Ayres. Distinção entre “controle social do poder” e “participação popular”. In: Revista
de Direito Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, nº 189, p. 114-122, jul./set., 1992, pág. 122. 17 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, pág. 295. 18 SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, pág. 42. 19 Idem, Ibidem, pág. 32.
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17
Não podemos comparar, simploriamente, o modelo participativo moderno àquele
praticado na Grécia. Deve-se ter em mente que, ao contrário do que era feito em Atenas, a
democracia participativa funda-se na participação maciça da sociedade na coisa pública. Basta
lembrar que, na antiguidade clássica, apenas os ditos cidadãos tinham direito a participar da
vida pública, e estes eram minoria (cerca de 10% da população). Apesar das diferenças, é
inegável a contribuição da democracia clássica na construção do regime participativo
moderno.
Na democracia participativa, o que se busca é um equilíbrio entre representação e
participação. Ao contrário do que alguns pensam, a construção de uma democracia
participativa não denota que toda e qualquer decisão relacionada à coisa pública deverá contar
com a intervenção popular direta; não obstante, deve haver consonância entre os momentos
em que deverão agir os representantes eleitos, e os momentos em que, de fato, haverá
participação direta. Para Bovero20, não há contraposição ou antagonismo entre democracia
representativa e participativa; deve-se buscar estabelecer uma complementaridade,
possibilitando que sejam amenizados os males do sistema puramente representativo e
ampliados os instrumentos de participação direta.
1.2 CIDADANIA
A cidadania é, conforme os preceitos do Art. 1º, II, da Constituição de 198821, um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil. Neste contexto, cidadania pode ser
considerada como o conjunto de direitos e deveres ao qual um indivíduo, intitulado cidadão,
está sujeito em relação à sociedade em que vive. A Carta Magna de 1988 tem cinco capítulos
destinados somente aos direitos fundamentais do cidadão.
Em sua obra, Bonavides22 acentua:
Da cidadania, que é uma esfera de capacidade, derivam direitos, quais o direito de
votar e ser votado (status activae civitatis) ou deveres, como os de fidelidade à
Pátria, prestação de serviço militar e observância das leis do Estado. Sendo a
20 BOVERO, Michelangelo. Contra o governo dos piores: uma gramática da democracia. Rio de Janeiro:
Campus, 2002, p. 39. 21 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
II - a cidadania
(...) 22 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 82.
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18
cidadania um círculo de capacidade conferido pelo Estado aos cidadãos, este poderá
traçar-lhes limites, caso em que o status civitatis apresentará no seu exercício certa
variação ou mudança de grau. De qualquer maneira é um status que define o vínculo
nacional da pessoa, os seus direitos e deveres em presença do Estado e que
normalmente acompanha cada indivíduo por toda a vida.
Cidadania é exercício. Exercitar a cidadania significa saber cumprir deveres e exigir
direitos, lutar para que sejam colocados em prática, tenham eles cunho civil, político ou
social. Os cidadãos, indivíduos que possuem deveres para com a sociedade em que vivem,
devem atuar como seres ativos, que cumprem seu papel, e não como sujeitos omissos,
individualistas, que não se mobilizam frente aos problemas coletivos. A sociedade e os
problemas da sociedade dizem respeitos a todos os cidadãos.
Neste passo, segundo Jaime Pinsky23, cidadania é “um processo histórico, de um
movimento lento, não linear, mas perceptível que parte da inexistência total de direitos para a
existência de direitos cada vez mais amplos”. Para o autor, se considerada de um modo
amplo, cidadania seria a materialização do exercício da própria democracia.
1.2.1 Evolução da cidadania
Não se pode afirmar o dia, mês ou ano em que se firmou o conceito de cidadania. No
entanto, é de conhecimento notório que suas primeiras formas de expressão remontam a
Antiguidade, estando os principais registros localizados na Grécia e Roma antigas. Como a
sociedade grega foi amplamente utilizada para ilustrar a origem da democracia, usaremos a
romana para demonstrar o sentido da expressão cidadania na Idade Antiga.
Na Roma Antiga, o termo cidadania designava a condição política de uma pessoa e os
direitos que poderia gozar. Naquela sociedade, havia diferenciação de vários níveis.
Inicialmente, os nascidos em Roma eram separados dos estrangeiros. Ainda entre os
“romanos de nascimento”, havia a distinção entre aqueles que eram livres e os escravos.
Dentre os livres, havia a categoria dos nobres, ou patrícios, e a dos homens comuns, ou
plebeus24.
Todos os romanos livres possuíam cidadania, sendo, portanto, considerados cidadãos.
No entanto, nem todos os cidadãos podiam ocupar cargos políticos, mas só aqueles dotados
do que Dalmo de Abreu Dallari25 chama de cidadania ativa. Para o autor, o direito de
participar integralmente da vida política romana, ou seja, ocupar as mais altas patentes da
23 PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla B. (orgs.). História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, p. 12. 24 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e cidadania. 2. ed. reform. São Paulo: Moderna, 2004, p.
17. 25 Idem, Ibidem, pág. 18.
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19
administração – os cargos de juízes e senadores – era privilégio dos patrícios, pois só eles
possuíam cidadania ativa.
Podemos concluir que a cidadania romana era voltada essencialmente aos direitos
políticos e desprovida de igualdade. Poucos eram os que podiam usufruir a cidadania por
completo; a grande maioria possuía apenas um status ilusório de cidadão.
Na idade média, após a queda do império romano, ocorreu uma significativa mudança
nas estruturas sociais. Os direitos políticos são deixados em segundo plano e questões de
cunho religioso passam a predominar. A sociedade agora é estamental, sendo rigidamente
dividida em castas sociais bem delineadas; ou se era membro do clero, ou pertencente à
nobreza, ou servo/campesino.26
A Igreja católica possuía o monopólio do controle político-social na idade medieval.
Ela ditava o comportamento das pessoas e era o centro das relações entre homens e Estado.
Sua doutrina era baseada em conceitos de liberdade e igualdade entre os indivíduos, mas não
era bem isso que se via, uma vez que só aqueles detentores de riquezas e poder – à época,
nobreza e clero – eram considerados cidadãos. Os servos, maioria esmagadora da população,
nunca teriam seus direitos de cidadania reconhecidos, já que a possibilidade de mobilidade
social era praticamente zero. Sobre a estruturação social na Idade média, afirma Cyro de
Barros27:
Era, portanto, uma sociedade de ordens, diferenciadas tanto política quanto
juridicamente. Clero e Nobreza detinham, respectivamente, saber e poder e,
conseqüentemente, os direitos advindos do termo cidadania. Servos permaneciam
alheios aos privilégios dos “cidadãos”, não podendo acessar o poder público, sem a
mediação de outro estamento, detentor de maior poder.
Pode-se dizer que na idade medieval houve verdadeira diluição do princípio da
cidadania. Os servos, ocupados a maior parte do tempo com a produção agrícola – para
conseguirem pagar as taxas e tributos cobrados pelos senhores feudais – jamais foram
considerados cidadãos.
A baixa idade média – período entre os sécs. XIII e XV –, marcada pela crise do
feudalismo, transformações de cunho econômico, religioso, político e cultural, e avanços
tecnológicos, foi “a responsável pelo ressurgir da ideia de um Estado centralizado e, por
consequência, da noção clássica de cidadania, ligada à concessão de direitos políticos”28.
26 REZENDE FILHO, Cyro de Barros; CÂMARA NETO, Isnard de Albuquerque. A evolução do conceito de
cidadania. In: Revista de Ciências Humanas Unitau, Vol. 7, No. 2, Taubaté, 2001. Disponível em:
<http://site.unitau.br//scripts/prppg/humanas/index.htm>. Acesso em: 09 de nov. de 2013, p. 3. 27 REZENDE FILHO, ibidem, p. 3. 28 REZENDE FILHO, ibidem, p. 3.
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20
O fim dos feudos levou à migração dos servos aos centros urbanos, lugar onde
passaram a desenvolver as mais diversas atividades. Aqueles que se dedicaram ao comércio
deram origem à classe burguesa, que teve papel essencial no desenvolvimento da noção de
cidadania tal qual se tem hoje. Foram os burgueses, insatisfeitos com as arbitrariedades e
injustiças praticadas pela nobreza, que desencadearam uma série de embates, conhecidos
como revoluções burguesas.
A mais famosa/importante aconteceu na França. A revolução francesa, motivada por
ideais de igualdade e liberdade alimentados pelos pensadores iluministas Locke e Rousseau,
eliminou os privilégios da nobreza e instituiu a “Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão”, com o objetivo de assegurar uma sociedade livre e igualitária, em que todos
tivessem garantidos seus direitos de cidadania.
A nova concepção cidadã ficou apenas no campo das ideias, pois o que se viu, logo na
aprovação da primeira Constituição francesa pós-revolução, foi a deformação dos ideais
almejados. A respeito deste desvio, assinala Dalmo Dallari29:
(...) a cidadania continuou a indicar o conjunto de pessoas com direito de
participação política, falando-se nos “direitos da cidadania” para indicar os direitos
que permitem participar do governo ou influir sobre ele, o direito de votar e ser
votado, bem como o direito de ocupar os cargos públicos considerados mais
importantes. Mas a cidadania deixou de ser um símbolo da igualdade de todos, e a
derrubada dos privilégios da nobreza deu lugar ao aparecimento de uma nova classe
de privilegiados.
1.3 PARTICIPAÇÃO POPULAR
A Carta Magna de 1988 tem cinco capítulos destinados somente aos direitos
fundamentais do cidadão, portanto, cidadão não é apenas sinônimo de eleitor, cidadania vai
muito além da simples participação no processo eleitoral. Cidadão é um status atribuído
àquele indivíduo participante e controlador da atividade estatal.
Uma das condições primordiais para se alcançar uma sociedade verdadeiramente
democrática, é, sem dúvidas, a participação de modo direto de todos os cidadãos na
organização da coisa pública. Assim como era na pólis, no contexto atual, a cidadania consiste
na participação efetiva dos cidadãos nas decisões da sociedade. Deste modo, tem-se que
cidadania acarreta em se reconhecer como elemento de uma sociedade e ser reconhecido
29 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e cidadania. 2. ed. reform. São Paulo: Moderna, 2004, p.
21.
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21
como tal. Segundo a pesquisadora baiana Débora Nunes30, “num país onde o poder de
decisão foi historicamente monopolizado pelos representantes de uma elite econômica muito
restrita, a participação da população significa uma democratização desse poder”.
Decisões que antes deviam ser tomadas somente pelos representantes, passam a
necessitar da intervenção direta da população, pois só deste modo podem ser alcançadas
melhorias realmente significativas. Destarte, o que deve haver é uma verdadeira inversão do
fluxo da tomada de decisões, passando a fluir da base para o topo. Um dos motivos desse
“trabalho em equipe” entre sociedade e Poder Público representar tanta vantagem, se
comparado ao trabalho concentrado nas mãos dos representantes eleitos, é o fato de que os
cidadãos, melhor do que seus representantes, sabem os reais problemas e necessidades por
quais passam, pois possuem uma visão mais reduzida, do âmbito local.
Como já foi dito anteriormente, a inserção da população na administração da coisa
pública não rompe com o sistema representativo, mas o auxilia, ao tempo em que faz com que
os cidadãos sintam-se verdadeiramente engrenagens da grande máquina administrativa. Sobre
isso, discorre Marcus Dexheimer31:
É imprescindível que um número que se poderia chamar de absurdo de decisões seja
tomado por terceiros, por representantes. Mas, por outro lado, também é necessário
aproximar o Estado da razão de sua existência: as pessoas. É preciso que se criem,
cada vez mais, novos canais de participação, para que cada um sinta mais governado
por si mesmo. É uma questão de legitimidade. E é também uma questão de
legalidade, já que os mecanismos participativos são criados pela norma jurídica:
fazer da lei um instrumento a serviço da democracia. Sentindo-se mais próximo do
Estado, percebendo-se como governante, cada cidadão pode desempenhar com mais
clareza seu inevitável papel político e tomar consciência de sua relação com a
sociedade, deixando de atribuir a entidades abstratas as causas de seus problemas
materiais e psíquicos. O governo deixa de ser uma entidade metafísica para estar
presente no dia-a-dia de cada um.
A participação na administração funda-se na ampliação dos canais de interação entre
cidadão e máquina pública com vistas à intervenção direta da população nas decisões
políticas. Para isso, faz-se necessário o aperfeiçoamento dos métodos representativos
atualmente existentes32, que serão apresentados nos próximos capítulos.
1.3.1 Participação na gestão pública e no controle da atividade administrativa
30 NUNES, Débora. Por uma pedagogia da participação popular. In: Organizações e Sociedade, v. 6, n.16.
Salvador: EAUFBA, 2006, p. 14. 31 DEXHEIMER, Marcus Alexsander. Estatuto da Cidade e Democracia Participativa. Florianópolis:
OAB/SC Editora, 2006, p. 19. 32 Idem, ibidem, p. 18.
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22
Antes de adentrarmos ao estudo da participação popular no contexto constitucional,
importante destacar a diferença existente entre participação popular na gestão pública e no
controle da administração pública, o chamado controle social.
Inicialmente, cabe ressaltar que ambas as formas de participação são, como veremos
mais detalhadamente no próximo capítulo, inerentes ao conceito de Estado Democrático de
Direito. Nas palavras de Di Pietro33:
É inerente ao conceito de Estado Democrático de Direito a ideia de participação do
cidadão na gestão e no controle da Administração Pública, no processo político,
econômico, social e cultural; essa ideia está incorporada na Constituição não só pela
introdução da fórmula do Estado Democrático de Direito – permitindo falar em
democracia participativa -, como também pela previsão de vários instrumentos de
participação. (grifo nosso)
Percebe-se que a ilustre professora trata a participação do cidadão na gestão e no
controle da administração pública como institutos distintos. Tal separação também é realizada
por Adriana Schier34, segundo a qual
De qualquer forma, a Constituição de 1988 foi a primeira que garantiu, também na
esfera administrativa, a participação dos cidadãos, assegurando a possibilidade de
interferirem significativamente na tomada de decisões do poder público, bem como
a possibilidade de exercerem o controle dos atos administrativos.
A participação popular na gestão pública se dá quando o cidadão, usufruindo de suas
prerrogativas constitucionalmente garantidas, influi de modo direto na formação da vontade
estatal. Participação está ligada à ideia de deliberação popular, ou seja, através dela permite-se
ao cidadão realizar uma interferência direta no funcionamento da administração pública.
É pela participação popular que há uma aproximação entre Estado e cidadão, onde este
passa a sentir-se incluído na gestão pública. Pode-se dizer que a participação dos
administrados na gestão da máquina pública é condição sem a qual não se pode considerar um
Estado como democrático.
A participação popular pode ocorrer no âmbito da estrutura dos três poderes estatais.
Na esfera do Poder Judiciário, ela efetiva-se através do tribunal do júri, previsto pelo art. 5º,
XXXVIII, da CF/88, que consiste na inserção de cidadãos comuns, na posição de jurados, nos
julgamentos de crimes dolosos contra a vida, possibilitando sua integração na construção de
decisões judiciais. Interessante citar também a figura dos juízes leigos, que, segundo os
ditames do art. 7º da Lei nº 9.099/95, “são auxiliares da Justiça, recrutados (...), entre
33 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 30. 34 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na Administração Pública: o direito de
reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 107.
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23
advogados com mais de cinco anos de experiência”. Os juízes leigos são responsáveis, nos
termos do art. 98 da Carta Maior, por promover “a conciliação, o julgamento e a execução de
causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo,
mediante os procedimentos oral e sumaríssimo (...)”. Ao lado do tribunal do júri, a instituição
da figura dos juízes leigos representa o maior espaço de participação dos cidadãos no
judiciário.
No campo Legislativo, os principais instrumentos de participação são aqueles
elencados nos incisos do art. 14 da Constituição Federal, responsáveis por garantir o exercício
da soberania popular, quais sejam: plebiscito, referendo e iniciativa popular. Os três
instrumentos possibilitam a atuação direta da população nas decisões tomadas no âmbito
legislativo. Não nos preocuparemos em estudá-los agora; momento especial foi reservado a
cada um deles no próximo capítulo.
Por fim, temos a participação cidadã na esfera executiva ou administrativa, foco
central do presente trabalho. É através desta participação que os administrados podem
deliberar sobre os atos administrativos e, consequentemente, interferirem diretamente nos
caminhos trilhados pela Administração Pública. Dentre as principais ferramentas das quais
poderão valer-se os cidadãos, destacam-se o orçamento participativo, as audiências públicas, a
consulta pública e os conselhos gestores de políticas públicas. Assim como aos instrumentos
de participação no legislativo, a estas ferramentas também foi reservado momento oportuno
de análise.
O Controle social, por sua vez, realiza-se quando há o envolvimento da sociedade nas
questões governamentais, através de um complexo de instrumentos constitucional e
legalmente previstos, com o objetivo de fiscalizar, supervisionar e avaliar a execução dos atos
públicos. Vejamos a definição trazida por Fernando Malafaia35:
Por controle social entende-se a participação da sociedade no acompanhamento e
verificação das ações da gestão pública na execução das políticas públicas,
avaliando os objetivos, processos e resultados. Trata-se de uma ação conjunta entre
Estado e sociedade em que o eixo central é o compartilhamento de responsabilidades
com vistas a aumentar o nível da eficácia e a efetividade das políticas públicas.
Apesar do controle da administração pública ser atribuição tipicamente estatal, a
sociedade participa dele à medida que pode e deve suscitar o procedimento de controle, não
somente na proteção de seus interesses individuais, mas também na tutela do interesse
35 MALAFAIA, Fernando César Benevenuto. Controle Social e Controle externo podem interagir? :
avaliação as práticas do TCE-TO no estímulo à participação cidadã. 2011. 112 f. Dissertação (Mestrado em
Administração) – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, FGV-RJ, Rio de Janeiro, p. 31.
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24
coletivo. A Constituição confere aos administrados determinados instrumentos de ação a
serem utilizados com essa finalidade. O controle social é, nas palavras de Di Pietro36,
“provavelmente, o mais eficaz meio de controle da Administração Pública”.
O controle social pode efetivar-se através de instrumentos disponibilizados pelos três
poderes. No âmbito administrativo, destacam-se os recursos administrativos, que, segundo Di
Pietro37, “são todos os meios que podem utilizar os administrados para provocar o reexame do
ato pela Administração Pública”. Para a autora, tais recursos têm fundamento no direito de
petição, instituído pelo art. 5º, XXXIV, da CF.
Amparadas pelo direito de petição, e disciplinadas por legislação esparsa, estão várias
modalidades de recursos administrativos, como a representação, a reclamação, o pedido de
reconsideração, os recursos hierárquicos próprios e impróprios e a revisão.
Dentre as modalidades de recursos administrativos, evidenciaremos a representação e
a reclamação, previstas no art. 37, §3º, I e III, da Constituição38. Vejamos:
Art. 37. Omissis.
(...)
§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública
direta e indireta, regulando especialmente:
I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas
a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa
e interna, da qualidade dos serviços;
II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de
governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;
III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo,
emprego ou função na administração pública.
A reclamação traduz a possibilidade dos cidadãos elaborarem denúncias sobre
irregularidades acerca da atuação administrativa expressamente vinculada à prestação de
serviços públicos. Segundo Moreira Neto39, o direito de reclamação é uma decorrência natural
do direito fundamental de participação dos cidadãos no controle administração pública, uma
vez que se apresenta como um direito dos indivíduos exercerem a fiscalização dos serviços
públicos.
36 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 622. 37 Idem, ibidem, p. 625. 38 BRASIL, Constituição Federal de 1988. In: SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira.
Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso
em: 17/02/2014. 39 Apud SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na Administração Pública: o direito de
reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 172.
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25
Podem-se referir, deste modo, dois aspectos relevantes na construção de um conceito
do direito de reclamação: (i) apresenta-se como uma forma de controle social da prestação dos
serviços públicos e (ii) consubstancia-se como uma provocação da instância administrativa,
que deve dar início a um processo administrativo com o objetivo de apurar as irregularidades
referidas pelos cidadãos.40
A representação, de seu lado, consiste na denúncia de irregularidades feita perante a
própria administração. Quando tratar-se de representação contra abuso de autoridade, fundar-
se-á na Lei nº 4.898/65, estabelecendo o art. 2º que a representação será dirigida à autoridade
superior competente para aplicação de sanção ao culpado, e ao Ministério Público competente
para iniciar processo-crime contra a autoridade.41 Na esfera constitucional, caberá
representação perante o Tribunal de Contas, nos termos do art. 74, § 2º. In verbis.
Art. 74. Omissis.
(...)
§ 2º - Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima
para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal
de Contas da União. (grifo nosso)
No que diz respeito à obrigatoriedade de apurar ou não a irregularidade denunciada, a
regra é que a Administração designe o levantamento da ilegalidade cometida sob pena de
incidência em crime de condescendência criminosa42. A administração tem, portanto, “o
poder-dever de averiguar e punir os responsáveis em decorrência da sua sujeição ao princípio
da legalidade, ao qual não pode fazer sobrepor simples razões de oportunidade e
conveniência”.43
Além das aludidas modalidades de recursos administrativos, importante citar outro
dispositivo de fiscalização e controle social encontrado no art. 31, § 3º da CF, que estabelece
que as contas dos Municípios fiquem, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de
qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade.
Na seara judicial, a Constituição prevê ações específicas de controle da administração
pública, às quais a doutrina se refere com a denominação de remédios constitucionais.
Possuem fundamento no art. 5º, XXXV, da Constituição, segundo o qual “a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
40 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na Administração Pública: o direito de
reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 173. 41 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 627. 42 Crime definido pelo Art. 320 do Código Penal. 43 DI PIETRO, ibidem, p. 628/629.
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26
Para Di Pietro44, os ditos remédios constitucionais possuem dupla natureza de direitos
e de garantias. São direitos em sentido instrumental, já que fundados no inciso XXXV do
artigo 5º, e são garantias porque objetivam resguardar outros direitos fundamentais (em
sentido material) previstos no mesmo artigo.
São remédios constitucionais o habeas corpus, o habeas data, o mandado de
segurança individual, o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção, a ação
popular e o direito de petição; excluído o último, os demais são meios aptos a provocar o
controle jurisdicional de ato da Administração Pública.
Para Vanderlei Siraque45, a concretização do controle social acontecerá em dois
momentos. O primeiro se dará quando da análise jurídica de determinada norma estabelecida
pela Administração pública, ocorrendo verdadeiro exame de legalidade, ou seja, averiguação
de compatibilidade da dada norma com outras hierarquicamente superiores. O segundo
momento corresponde à fiscalização, exercida pelos cidadãos, da execução ou aplicação das
mencionadas normas ao caso concreto. A participação popular, de seu lado, “ocorre antes ou
durante o processo de decisão da Administração Pública”, ou seja, não se trata aqui de
restrição aos atos administrativos lesivos ao interesse individual ou coletivo, mas de atuação
direta na própria produção de tais atos. No entendimento de Siraque46,
Enquanto a participação popular colabora para a formação das normas jurídicas
estatais, a finalidade do controle social é outra, isto é, aproveitar as regras
previamente elaboradas para submeter o Estado a uma posição de submissão ao
cidadão controlador de seus atos.
O Ministro do STF, Carlos Ayres Britto47, evidencia as características próprias do
controle social que o diferenciam da participação na gestão. Vejamos:
Com efeito, seja qual for a maneira pela qual o controle se manifeste (denúncia,
representação, reclamação...), o objetivo do particular é simplesmente desfrutar de
uma situação jurídica ativa contra o Poder Público. Ele não quer formar
propriamente a vontade do Estado, mas impor ao Estado a vontade dele, particular,
que é a de penetrar na intimidade das repartições públicas para reconstruir fatos ou
apurar responsabilidades.
Ao contrário do que acontece no âmbito do controle, na participação popular “a
interferência dos particulares não é para saber das coisas passadas do Estado, não é para
44 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 649/650. 45 SIRAQUE, Vanderlei. Controle social da função administrativa do Estado: possibilidades e limites na
Constituição de 1988. Sao Paulo: Saraiva, 2005, p. 112. 46 Idem, ibidem, p. 100. 47 BRITTO, Carlos Ayres. Distinção entre “controle social do poder” e “participação popular”. In: Revista
de Direito Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, nº 189, p. 114-122, jul./set., 1992, p. 116.
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27
questionar atos oficias já praticados, mas, isto sim, para formar um novo querer normativo de
índole política”.48
Em face do exposto, não há que se confundir a participação popular com o controle
social. A finalidade de quem realmente participa não é dar cumprimento a um comando
constitucional pré-estabelecido que obrigue o Estado a reparar seus erros, mas debater com
ele a produção de uma nova regra jurídica pública. Para Britto49, a participação é uma
emanação da soberania popular, e, consequentemente, poder. O controle social, de seu lado,
representa uma emanação da cidadania, ou da liberdade e, portanto, direito.
48 BRITTO, Carlos Ayres. Distinção entre “controle social do poder” e “participação popular”. In: Revista
de Direito Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, nº 189, p. 114-122, jul./set., 1992, p. 121. 49 Idem, ibidem, p. 121.
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28
2. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
2.1 CONSTITUIÇÃO CIDADÃ
A atual Constituição Federal nasceu em meio a um dos períodos de maior
instabilidade política e social que já viveu o Brasil. Com o fim da ditadura militar – que durou
de 1964 a 1984 – tornou-se essencial o advento de uma nova Carta, pois a que vigorava a
época havia sido promulgada em 1967, ainda durante o regime ditatorial. Somente a
instituição de uma nova Lei Maior poderia completar o processo de redemocratização pelo
qual passava o país.50
O primeiro presidente da fase pós-regime militar, José Sarney, foi o responsável por
convocar a Assembleia Nacional Constituinte, por meio de emenda à constituição. Apenas a
título de esclarecimento, vale salientar que a EC n. 26 – enviada ao Congresso por Sarney –
constituiu, na verdade, um ato político, uma vez que seu objetivo não era alterar e manter a
Constituição vigente à época, mas destruí-la e criar uma nova51.
A Assembleia Nacional Constituinte, formada por 559 Deputados e Senadores eleitos
em 1986, instalou-se em 1º de fevereiro de 1987, somente finalizando os trabalhos em 05 de
outubro de 1988, com a promulgação da nova Constituição Federal. Segundo o ilustre Dirley
da Cunha Júnior52, “a Constituição de 1988 surge como esperança para o povo brasileiro,
suscitando no País um sentimento constitucional jamais visto antes”.
A Constituição Federal de 1988 é considerada até hoje a mais completa entre as sete
constituições que o Brasil já teve. Muitas foram as inovações trazidas pela nova carta, nos
mais diversos segmentos.
Em sua versão original, a Lei Maior de 1988 contava com 245 artigos, organizados em
nove títulos: princípios fundamentais, direitos e garantias fundamentais, organização do
estado, organização dos poderes, defesa do estado e das instituições democráticas, tributação e
orçamento, ordem econômica e financeira, ordem social e disposições gerais.
A mudança mais significativa trazida pela sétima constituição federal foi a que se deu
no campo social, mais especificamente nas garantias de acesso à cidadania. Por esse motivo, a
50 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 33 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 88/89. 51 Idem. Curso de direito constitucional positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 87. 52 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 4 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2010, p.
502.
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29
Carta de 1988 recebeu de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional
Constituinte, o apelido de “Constituição Cidadã”.
Logo em seu primeiro artigo, a Carta Cidadã53 informa as principais características do
novo Estado brasileiro:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos:
(...)
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Trata-se, portanto, de uma federação, cujo governo é do tipo republicano e que optou
pelo regime político democrático; constituindo, ainda, um Estado de Direito54.
2.2 CONSTITUIÇÃO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
É clara a escolha da Constituição de 1988 pelo regime democrático. O Estado
Democrático de direito é mencionado tanto em seu preâmbulo como no caput de seu primeiro
artigo.
Além da Constituição brasileira, o Estado democrático de Direito está consagrado nos
artigos inaugurais das Leis Fundamentais de diversos países pelo mundo, tais como Espanha,
França, Índia, Itália e Portugal55. O Estado Democrático de Direito corresponde à junção de
dois princípios fundamentais: o Estado de Direito e o Estado Democrático. No entanto, não se
trata da simples junção formal dos elementos de cada um dos princípios, já que é originado
um novo conceito, superior a uma mera unificação de definições56.
2.2.1 Do Estado de Direito
O surgimento do Estado de Direito está associado ao esforço despendido pela classe
burguesa em oposição ao regime absolutista que prevaleceu durante boa parte do século
XVIII. O ideal defendido era o da submissão de tudo e todos, cidadãos e governantes, aos
53 BRASIL, Constituição Federal de 1988. In: SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira.
Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso
em: 10/02/2014. 54 PAULO Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo; Direito Constitucional Descomplicado. São Paulo:
MÉTODO, 2011, p. 91. 55 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
direito constitucional. 2. ed. ver. e atual. São Paulo : Saraiva, 2008, p. 149. 56 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 112.
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30
ditames da lei; separação entre Executivo, legislativo e judiciário e a declaração dos direitos
individuais57.
Trata-se, em verdade, de um Estado de caráter liberal, pois com o triunfo burguês
sobre as classes outrora privilegiadas, há o abandono do antigo Estado de Polícia, em que
todas as atividades do povo eram rigidamente reguladas pelo Estado, e o advento de um
verdadeiro Estado abstencionista, limitado à defesa da ordem e segurança públicas. O campo
econômico e social agora é responsabilidade de cada indivíduo58.
Segundo Bobbio59, o Estado de Direito é marcado pela ênfase no cidadão. Esse
Estado, ao contrário dos antigos modelos despótico e absoluto, não prioriza asseverar os
deveres do cidadão, mas seus direitos.
No Estado despótico, o indivíduo só tem deveres, e não direitos. No Estado
absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No
Estado de Direito, o indivíduo tem não só direitos privados, mas também direitos
públicos. O Estado de Direito é o Estado de cidadãos.
No entanto, como bem registra Dirley da Cunha Júnior60, a concepção de Estado de
Direito acaba por reduzir-se à ideia de que o importante seria apenas a limitação do Estado
pela lei, crua, tida apenas como o resultado da produção do poder legislativo, pouco
importando seu caráter valorativo. Desta forma, qualquer Estado que possuísse um aparato
legal e a ele se subordinasse, independentemente de seu conteúdo axiológico, possuía o status
de Estado de Direito.
2.2.2 Do Estado Social de Direito
No Estado de Direito, nos deparamos com um contrassenso, pois de um lado há
igualdade política, do outro, desigualdade social. O Estado Social de Direito nasce como uma
forma de corrigir o individualismo existente no modelo antecessor. Há o abandono da
neutralidade do Estado e consequente preocupação com os direitos sociais. A lei continua a
ser o fundamento do Estado, mas agora existe forte preocupação com seu conteúdo. O Estado
Social de Direito visa o desenvolvimento de políticas de promoção do bem-estar social,
capazes de concretizar a igualdade entre os cidadãos. Vale destacar que o Estado Social não
57 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2010, p.
512. 58 NOVELINO, Marcelo; Direito Constitucional. 4 ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
MÉTODO, 2010, p. 325. 59 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro, Editora Campus, 2004, p. 78. 60 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Ibidem, p. 512.
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31
se confunde com o Estado Socialista idealizado por Marx, já que aquele adota o sistema
capitalista para reger sua economia61.
Esse mesmo Estado Social de Direito, fomentador do bem-estar social, foi responsável
pelo advento de governos tiranos sanguinolentos. A Alemanha nazista de Hitler, a Itália
fascista de Mussolini, a Espanha de Francisco Franco, Portugal de Salazar e Marcello
Caetano, são exemplos de regimes arbitrários fundados com base no Estado Social.
Sobre os motivos que levaram à decadência dos Estados de Direito e Social de Direito,
e projetaram a implantação do Estado Democrático de Direito, aduz José Afonso da Silva62:
(...) a igualdade do Estado de Direito, na concepção clássica, se funda num elemento
puramente formal e abstrato, qual seja a generalidade das leis. Não tem base material
que se realize na vida concreta. A tentativa de corrigir isso, como vimos, foi a
construção do Estado Social de Direito, que, no entanto, não foi capaz de assegurar a
justiça social nem a autêntica participação democrática do povo no processo
político.
2.2.3 Do Estado Democrático de Direito
A Democracia realizada pelo Estado Democrático de Direito visa instituir uma
sociedade livre, justa e solidária, onde o poder é do povo e em seu proveito deve ser exercido;
participativa, pois deve haver participação do povo nas decisões e atos de governo; pluralista,
pregando pelo respeito à pluralidade de ideias, culturas e etnias.
Sobre Estado Democrático de Direito, vejamos a conceituação trazida por Inocêncio
Mártires Coelho63:
(...) entende-se como Estado Democrático de Direito a organização política em que o
poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes,
escolhidos em eleições livre e periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto e
secreto, para o exercício de mandatos periódicos, como proclama, entre outras, a
Constituição brasileira. Mais ainda, já agora no plano das relações concretas entre o
Poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se
empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos
direitos civis e políticos, mas também e, sobretudo dos direitos econômicos, sociais
e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos.
Nascido para superar os modelos antecessores, o Estado Democrático de Direito,
consagrado pela Constituição Federal de 1988, traz como princípios essenciais a soberania
popular e os direitos fundamentais da pessoa humana.
61 NOVELINO, Marcelo; Direito Constitucional. 4 ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
MÉTODO, 2010, p. 330. 62 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 118. 63 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
direito constitucional. 2. Ed. Ver. E atual. São Paulo : Saraiva, 2008, p. 149.
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O Estado Democrático de Direito é tratado por Inocêncio64 como “superconceito”, do
qual se podem extrair diversos outros princípios, tais como o da separação dos poderes, o do
pluralismo político, o da isonomia e até mesmo aquele tido como “princípio dos princípios”, o
da dignidade da pessoa humana.
Marcelo Novelino65 denomina-o Estado Constitucional Democrático com o intuito de
acentuar “a mudança de paradigma, de ‘império da lei’ (Estado de direito) para ‘força
normativa da Constituição’ (Estado constitucional)”. Dirley da Cunha66 reforça esse
entendimento, atribuindo ao Estado Democrático de Direito o caráter de “Estado
Constitucional submetido à Constituição e aos valores humanos nela consagrados”.
2.2.4 Soberania popular
O princípio da soberania popular é a base em que se funda o Estado Democrático de
Direito.
Segundo Dirley67, “o Estado Democrático se assenta no pilar da soberania popular,
pois a base do conceito de Democracia está ligada à noção de governo do povo, pelo povo e
para o povo”.
Em seu parágrafo único, o art. 1º da Constituição reforça o princípio democrático em
que se alicerça a Constituição, consagrando a ideia de soberania popular. Nas palavras de
Uadi Lammêgo Bulo68, “soberania popular é a qualidade máxima do poder extraída da soma
dos atributos de cada membro da sociedade estatal, encarregado de escolher os seus
representantes no governo através do sufrágio universal e do voto direto, secreto e
igualitário”.
O poder é do povo, dele emana e a ele pertence. O exercício desse poder poderá dar-se
de modo indireto, através dos representantes eleitos – democracia indireta –, ou diretamente
pelo povo, através dos mais variados instrumentos. A respeito das formas de exercício do
poder, doutrina Dirley da Cunha Júnior69:
64 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
direito constitucional. 2. Ed. Ver. E atual. São Paulo : Saraiva, 2008, p. 149. 65 NOVELINO, Marcelo; Direito Constitucional. 4 ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro : Forense; São Paulo :
MÉTODO, 2010, p. 331. 66 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2010, p.
513. 67 CUNHA JÚNIOR. Ibidem, p. 512. 68 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 9. Ed. Ver. E atual. Até a Emenda Constitucional n.
57/2008. São Paulo : Saraiva, 2009. Pág. 494 69 CUNHA JÚNIOR. Ibidem, p. 513.
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33
Quando a constituição afirma que o povo exerce o seu poder por meio de
representantes eleitos, ela explicita a Democracia representativa; contudo, quando
indica que o povo exerce o seu poder diretamente, ela exprime a Democracia direta.
Da conjugação da Democracia representativa e Democracia direta temos um modelo
misto de Democracia semidireta, que nada mais é senão uma Democracia
representativa com alguns institutos ou mecanismos de participação direta do povo
na formação da vontade política nacional. Da Democracia semidireta se desenvolve
a chamada Democracia participativa.
A democracia representativa é responsável por regular a participação popular no
processo político de escolha daqueles que irão exercer o poder. Em sua obra, José Afonso da
Silva70 explica que “na democracia representativa a participação popular é indireta, periódica
e formal, por via das instituições eleitorais que visam a disciplinar as técnicas de escolha dos
representantes do povo”.
A democracia participativa, fruto da união da democracia direita e indireta, é o pilar
essencial do Estado Democrático de Direito e a concretização do princípio da soberania
popular. No texto constitucional, podem ser encontradas diversas previsões de participação
direta do cidadão na administração pública.
Em face de tudo que foi exposto até o momento, pode-se inferir que o próprio direito de
participação popular constitui direito fundamental constitucional, concretizado pelo Estado
Democrático de Direito. Nas palavras de Adriana Schier71:
Desde logo é possível afirmar que o direito de participação é um direito fundamental
definido em normas constitucionais que decorrem diretamente do princípio do
Estado de Direito e do princípio Democrático. Portanto, concretiza o Estado
Democrático de Direito, princípio estruturante da República Federativa do Brasil,
conforme a fórmula prevista no art. 1º, caput, da Constituição Federal de 1988. Dada
a sua natureza, submete-se ao regime dos direitos fundamentais.
Desta feita, tamanha revela-se a importância do princípio fundamental da participação
popular. Fica a cargo da Constituição garantir-lhe efetividade, quando não de maneira
expressa, de modo a permitir ao ordenamento infraconstitucional que o faça.
2.3 DIREITO POLÍTICOS
Os direitos políticos constituem grande triunfo da sociedade, conquistado a duras
penas. Apesar de vários Estados e Impérios, ao longo da história, terem contado com alguma
forma de governo “representativo”, a escolha das lideranças nem sempre coube a todos, mas a
70 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 137. 71 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na Administração Pública: o direito de
reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 27.
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34
uma minoria privilegiada, detentora de riquezas e poder. A Revolução francesa foi a
responsável pelo questionamento sobre a igualdade dos indivíduos e seu direito de interceder,
por meio de suas opiniões, nas decisões do Estado.
A democracia representativa desenvolveu vários procedimentos voltados à realização
da escolha dos mandatários do povo. Alguns desses procedimentos foram convertidos em
regras, mais tarde positivadas e transformadas em normas. O amadurecimento do direito
democrático representativo, onde a participação do povo no governo é materializada por seus
representantes, demandou a uniformização de um aparato legal, que recebeu a denominação
de direitos políticos.72
No caso específico do Brasil, a evolução se deu gradativamente. De início, na Primeira
República, somente uma restrita parcela da população possuía capacidade eleitoral. Com o
fim da chamada “República Velha”, em meados de 1930, houve uma significativa ampliação
na quantidade de indivíduos com direito a voto. No entanto, com o advento do Estado Novo
de Getúlio Vargas, deu-se início a um período turbulento em que não foram sequer realizadas
eleições. Em seguida, com uma nova Constituição, o país atravessou o chamado período
democrático, onde houve clara extensão do poder participativo da população, que agora podia
votar e se organizar em partidos. A tranquilidade política pela qual passava o Brasil foi
abalada pelo Golpe Militar de 1964 e só voltou a vigorar com a chegada da Constituição
Federal de 1988.
Os direitos políticos, consagrados no capítulo IV do título II73 da Carta Fundamental,
podem ser vistos como um aglomerado de regras responsáveis por disciplinar o efetivo
exercício da soberania popular. Desta forma, constituem um conjunto de normas que irão
regular a “participação dos indivíduos (cidadãos) nos processos de poder, ou seja, nas
tomadas de decisões que envolvem a vida pública do Estado e da sociedade”.74
A expressão direitos políticos, em sentido lato, expõe o direito de participar do
processo político, visto como um todo. Já em sentido estrito, tal como empregado pela
Constituição, representa o conjunto de regras concernentes ao processo eleitoral.
72 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 343. 73 O título II é dedicado à abordagem dos Direitos e Garantias Fundamentais garantidos pela Carta Magna de 88. 74 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
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35
2.3.1 Sufrágio universal
O sufrágio universal, adotado pela Lei Maior como uma das formas de exercício da
soberania popular, representa o fundamento dos direitos políticos e indica, em síntese, o
direito de votar e ser votado.
Sufrágio, do latim sufragium, significa aprovação, apoio75. Para José Afonso da
Silva76, “constitui a instituição fundamental da democracia representativa e é pelo seu
exercício que o eleitorado, instrumento técnico do povo, outorga legitimidade aos
governantes”.
Embora sejam comumente empregadas como sinônimos, as palavras sufrágio e voto
possuem significados diferentes. A própria Constituição Federal acentua esta disparidade. O
sufrágio é qualificado como universal, já o voto é direto, secreto e tem valor igual. Escrutínio
é outro termo usualmente confundido com sufrágio e voto. A confusão é justificada pelo fato
de todos os três termos estarem inseridos no processo de participação popular, significando,
respectivamente: o direito (sufrágio), o exercício (voto) e o modo de exercício (escrutínio).77
Sobre o tema, contribui Marcelo Novelino78:
O direito de sufrágio é a própria essência do direito político, expressando-se pela
capacidade de eleger, ser eleito e, de uma forma geral, participar da vida política do
Estado. O sufrágio é o direito em si. Não se confunde com o voto, que é o exercício
do direito, nem o escrutínio, o modo como o exercício se realiza. A constituição
consagra, como cláusula pétrea o sufrágio universal, o voto direto e o escrutínio
secreto (CF, art. 60, § 4.º, II).
O regime político adotado pelo Estado irá definir a forma como se exercerá o sufrágio.
O sufrágio universal, adotado pelos regimes democráticos, caracteriza-se pelo fato de todo
cidadão ter a possibilidade de votar e ser votado, independentemente de qualquer tipo de
distinção: social, econômica, quanto ao sexo ou à capacidade intelectual. A Constituição de
88 claramente adotou esse modelo.79
Em contrapartida, o sufrágio restrito, em que apenas determinados indivíduos, que
atendam certas condições, poderão participar da vida política. As limitações podem ser
determinadas pela condição econômica (censitário), capacidade especial, de natureza
75 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 9. Ed. rev. E atual. Até a Emenda Constitucional n.
57/2008. São Paulo : Saraiva, 2009, p. 494. 76 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, pág. 348. 77 Idem, ibidem, p. 348. 78 NOVELINO, Marcelo; Direito Constitucional. 4 ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro : Forense; São Paulo :
MÉTODO, 2010, p. 494. 79 Idem, ibidem, p. 494.
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36
intelectual (capacitário), ou, em razão do sexo. Marcelo Novelino80 salienta que a existência
de condições como o regular alistamento eleitoral, a nacionalidade brasileira e a idade mínima
de 18 anos – ou 16 anos, facultativamente – não afastam o caráter universal do sufrágio.
O direito de sufrágio pode ser dividido em duas modalidades, uma ativa e outra
passiva. A capacidade eleitoral ativa representa o direito de votar em eleições, plebiscitos ou
referendos, de alistar-se como eleitor (alistabilidade). A capacidade eleitoral passiva é o
direito de ser votado, de candidatar-se a cargo político (elegibilidade).81 Tanto numa como
noutra, deverão ser preenchidos certos requisitos previstos constitucionalmente.
Os direitos de participação assegurados aos cidadãos, também conhecidos como
direitos de cidadania, derivados do princípio democrático, são adquiridos por meio do
alistamento eleitoral. O alistamento é o registro do indivíduo como eleitor, realizado junto à
Justiça Eleitoral. Só será considerado cidadão, no sentido estrito trazido pela Constituição,
aquele dotado do “atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de
ser ouvido pela representação política”.82 Ou seja, para a Carta Fundamental, cidadão é o
brasileiro eleitor.
De um ponto de vista formal, de acordo com a Constituição, a nacionalidade
apresenta-se como pressuposto da cidadania. Todo aquele considerado nacional, nato ou
naturalizado, participante da vida do Estado e em pleno gozo de seus direitos políticos, é
reputado cidadão. Portanto, podemos logicamente afirmar que todo cidadão é necessariamente
um nacional, mas nem todo nacional é cidadão, tal como aquele privado de seus direitos
políticos.83
2.3.2 Iniciativa popular
A iniciativa popular, prevista, em âmbito federal, pelos artigos 14, III e 61, §2º, da
Carta Maior, consiste na proposição de determinado projeto de cunho popular perante a
Câmara dos Deputados, com objetivo de conversão em lei. Um de seus requisitos formais
consiste na necessidade de o projeto ter sido subscrito por, no mínimo, um por cento do
eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com, ao menos, três décimos
por cento dos eleitores de cada um deles.
80 NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4 ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro : Forense; São Paulo :
MÉTODO, 2010, p. 494. 81 PAULO Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo; Direito Constitucional Descomplicado. São Paulo:
MÉTODO, 2011, p. 267. 82 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, pág. 345. 83 NOVELINO, Marcelo. Ibidem, pág. 494.
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37
De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE)84, em 2012 o número de eleitores
do Brasil foi de 140.646.446, ou seja, naquele ano, para que se pudesse levar um projeto de lei
de iniciativa popular para apreciação na Câmara dos Deputados, seriam necessárias,
aproximadamente, 2,1 milhão de assinaturas, no mínimo.
O projeto de lei fruto da iniciativa popular deverá circunscrever-se a um só assunto,
conforme preceitua o Art. 13, §1º da Lei nº 9.709/9885. Além disso, segundo o Art. 252, IX,
da Resolução nº 17 de 198986, que aprova o regimento interno da câmara dos deputados, não
poderá o projeto ser rejeitado por vício de forma, estando a cargo da Câmara dos Deputados,
mais especificamente da Comissão de Constituição e Justiça, providenciar a correção de
eventuais lapsos ou imperfeições de técnica legislativa.
O instrumento da iniciativa popular aparentava ser, à primeira vista, a “arma” que o
povo precisava para intervir no legislativo, dar seu toque no aparato legal do Estado. No
entanto, na prática, os projetos deparam-se com um protocolo exacerbado, que embaraça sua
concretização. Além dos requisitos suso mencionados, que já são de difícil obtenção, o Art.
252 da Resolução nº 17 de 198987, ainda lhes acrescenta uma série de formalidades:
Art. 252. A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos
Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um centésimo do eleitorado
nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três
milésimos dos eleitores de cada um deles, obedecidas as seguintes condições:
I - a assinatura de cada eleitor deverá ser acompanhada de seu nome completo e
legível, endereço e dados identificadores de seu título eleitoral;
II - as listas de assinatura serão organizadas por Município e por Estado, Território e
Distrito Federal, em formulário padronizado pela Mesa da Câmara;
III - será lícito a entidade da sociedade civil patrocinar a apresentação de projeto de
lei de iniciativa popular, responsabilizando-se inclusive pela coleta das assinaturas;
IV - o projeto será instruído com documento hábil da Justiça Eleitoral quanto ao
contingente de eleitores alistados em cada Unidade da Federação, aceitando-se, para
esse fim, os dados referentes ao ano anterior, se não disponíveis outros mais
recentes;
84 Disponível em: <http://www.tse.jus.br/hotSites/estatistica2012/estatistica-
eleitorado/quantitativo/eleitorado.html>. Acesso em: 01 de outubro de 2013. 85 BRASIL, Lei nº 9.709, de 18 de Novembro de 1998. Regulamenta a execução do disposto nos incisos I, II e III
do art. 14 da Constituição Federal. In SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1998.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm>. Acesso em: 10 out. 2013. 86 BRASIL, Resolução nº 17, de 1989. Aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. In CÂMARA
FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1998. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescad/1989/resolucaodacamaradosdeputados-17-21-setembro-1989-
320110-normaatualizada-pl.html>. Acesso em: 10 out. 2013. 87 BRASIL, Resolução nº 17, de 1989. Aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. In: CÂMARA
FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1998. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/internet/legislacao/regimento_interno/RIpdf/RegInterno.pdf>. Acesso em: 10 out.
2013
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38
V - o projeto será protocolizado perante a Secretaria-Geral da Mesa, que verificará
se foram cumpridas as exigências constitucionais para sua apresentação;
VI - o projeto de lei de iniciativa popular terá a mesma tramitação dos demais,
integrando a numeração geral das proposições;
Desde 1988, quando o direito de apresentar projetos de lei de iniciativa popular foi
garantido pela Constituição Cidadã, o Congresso Nacional transformou em norma apenas
quatro propostas elaboradas pela sociedade, sendo a mais recente delas a que criou a Lei
Complementar nº. 135 de 201088, a famosa Lei da Ficha Limpa. O projeto, que pretendia
impedir a candidatura de políticos condenados por órgãos colegiados da justiça, tramitou
durante cerca de oito meses até finalmente ser aprovado pelo Congresso Nacional e
sancionado pelo então presidente da República, Luis Inácio “Lula” da Silva.
Dentre os quatro projetos de iniciativa popular convertidos em lei, aquele de trâmite
mais rápido, foi o que visava tornar a compra de votos crime passível de cassação de
mandato. O projeto, apresentado em agosto de 1999, foi sancionado no mês seguinte,
originando a Lei 9.840, de 28 de setembro de 1999. Assim como existiria mais tarde no
projeto Ficha Limpa, houve aqui forte mobilização por parte da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), apoio determinante
para a celeridade da conversão do projeto em lei.
A Lei 8.93089 foi a primeira nascida de um projeto de iniciativa popular. A norma
publicada em 7 de setembro de 1994, seis anos após o advento da Constituição Cidadã,
incluiu o homicídio, quando realizado por esquadrão da morte, no rol dos crimes considerados
hediondos.
O penúltimo projeto de cunho popular convertido em Lei pelo Congresso Nacional foi
o que acarretou, após massivo apoio do Movimento Popular por Moradia (MPM), na criação
do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, normatizado pela Lei 11.124, de 16 de
Junho de 2005. Este projeto, dentre os quatro, foi o que mais tempo tramitou no parlamento:
88 BRASIL, Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010. Altera a Lei Complementar no 64, de 18 de maio
de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9o do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade,
prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a
proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. In: SENADO FEDERAL.
Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 2010. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp135.htm>. Acesso em: 10 out. 2013. 89 BRASIL, Lei nº 8.930, de 06 de setembro de 1994. Dá nova redação ao art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho
de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5o, inciso XLIII, da Constituição Federal, e
determina outras providências. In: SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1994.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8930.html>. Acesso em: 10 out. 2013
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13 anos. Segundo o Art. 252, VI, do Regimento Interno da Câmara90, “o projeto de lei de
iniciativa popular terá a mesma tramitação dos demais, integrando a numeração geral das
proposições”. Malgrado terem nascido pela iniciativa popular, originados pelo clamor social,
na prática, os projetos precisaram ser acolhidos por algum deputado, ou até mesmo pelo
Presidente da República, para que pudessem tramitar no Congresso, pois o próprio Legislativo
não tem condições de conferir o número de assinaturas e títulos exigidos. Apesar de não
serem realmente processados como um projeto de iniciativa popular, o fato de terem sido
emanados no seio da sociedade tem caráter simbólico relevante, uma vez que contaram com
apoio expresso de parcela significativa da população.
Em seu Art. 29, XIII, o texto constitucional prevê a iniciativa popular de projetos de lei
de interesse do Município, da cidade ou de bairros, estipulando como requisito a manifestação
de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado; a adoção ficará a cargo da lei orgânica de cada
municipalidade. Já no âmbito estadual, de acordo com o Art. 27, § 4º, a iniciativa popular será
regulada por lei.
2.3.3 Plebiscito e Referendo
Plebiscito e referendo são instrumentos de participação popular com características em
comum. Inicialmente, ambos são formas de exercício da soberania popular, conforme atesta o
art. 14, I e II da CF91. Ademais, de acordo com o art. 2º da lei 9.709/9892, plebiscito e
referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada
relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa.
A diferença entre os dois dispositivos reside no momento em que a “consulta
formulada ao povo” irá ocorrer. O plebiscito será convocado antes do ato legislativo ou
administrativo ser executado. Uma vez convocado, caberá ao povo, mediante voto, a
aprovação ou denegação do ato a ele submetido. No caso do referendo, o chamamento da
90 BRASIL, Resolução nº 17, de 1989. Aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. In CÂMARA
FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1998. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/internet/legislacao/regimento_interno/RIpdf/RegInterno.pdf> Acesso em: 10 out.
2013. 91 Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;
(...) 92 BRASIL, Lei nº 9.709, de 18 de Novembro de 1998. Regulamenta a execução do disposto nos incisos I, II e III
do art. 14 da Constituição Federal. In SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1998.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm> Acesso em: 10 out. 2013.
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população ocorrerá posteriormente ao ato legislativo ou administrativo. Quando o referendo é
convocado, o ato já foi executado, cabendo ao povo apenas ratificá-lo ou rejeitá-lo93.
As consultas deverão ser convocadas nos termos da lei 9.709/98. O plebiscito ou
referendo será considerado aprovado ou rejeitado por maioria simples, ou seja, metade dos
votos mais um, de acordo com o resultado homologado pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Como regra geral, conforme os ditames do art. 49, XV, da CF/8894, é competência
exclusiva do Congresso Nacional autorizar referendo e convocar plebiscito.
De acordo com o art. 3º da lei 9.709/98, nas questões de relevância nacional, de
competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, e no caso do §3º do art. 18 da
Constituição, que trata da incorporação, subdivisão ou desmembramento dos estados-
membros, o plebiscito e o referendo serão convocados por decreto legislativo, por proposta
de 1/3, no mínimo, dos membros de qualquer das casas do Congresso Nacional.
Nas demais questões – que não possuam relevância nacional – de competência dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o plebiscito e o referendo serão convocados de
acordo com os ditames das respectivas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas (Art. 6º da
lei 9.709/98).
.5.2.1 Plebiscitos para formação de estados e municípios
O plebiscito poderá ser convocado em situações específicas, ou seja, já delineadas pelo
legislador constituinte, como é o caso da possibilidade de alteração da estrutura territorial
interna dos estados-membros e dos municípios.
A Constituição Federal95, em seu art. 18, § 3º, prescreve que os estados podem
incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou
formarem novos estados ou Territórios Federais, mediante aprovação da população
diretamente interessada, por plebiscito, e do Congresso Nacional, pela edição de lei
complementar.
93 LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 13. Ed. rev. Atual. E ampl. São Paulo: Saraiva, 2009,
pág. 16. 94 BRASIL, Constituição Federal de 1988. In: SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira.
Brasília, 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso
em: 10 out. 2013. 95 BRASIL, Constituição Federal de 1988. In: SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira.
Brasília, 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso
em: 10 out. 2013.
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Por força do art. 48, VI, o Congresso Nacional deverá ouvir as Assembleias
Legislativas dos estados envolvidos. Tal consulta, no entanto, terá função meramente
opinativa, pois em nenhum caso – opinião negativa ou positiva – obrigará a aprovação de lei
complementar pelo Congresso96.
Para que possa ocorrer alteração na estrutura territorial interna dos estados, é
obrigatória a consulta prévia às populações interessadas por meio de plebiscito. A consulta
ulterior, por meio de referendo, resta vedada, ainda que prevista por Constituição Estadual97.
No caso dos Municípios, sua criação, incorporação, fusão ou desmembramento, far-se-
á por lei estadual e não por lei complementar, como é no caso dos estados. Aqui, lei
complementar federal será responsável por determinar o período em que poderá haver a
mudança territorial do Município, que dependerá, obrigatoriamente, assim como no caso dos
estados, de consulta prévia, por meio de plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos,
conforme os ditames do Art. 18, §4º, da Lei Maior98.
Fugindo à regra do art. 49, XV, CF99, o plebiscito destinado à mudança da estrutura
territorial de Municípios, será convocado pela Assembleia Legislativa, conforme legislação
federal e estadual (Art. 6º da lei nº 9.709/98).
De acordo com o art. 7º da lei nº 9.709/98100, entende-se por população diretamente
interessada tanto a do território que se pretende desmembrar, quanto a do que sofrerá
desmembramento. Nos casos que envolverem fusão ou anexação, tanto a população da área
que se quer anexar quanto a da que receberá o acréscimo serão tidas como interessadas. Ou
seja, terão direito a opinar todas as pessoas afetadas diretamente pela mudança territorial do
Estado.
Seja qual for o procedimento almejado – incorporação, subdivisão ou
desmembramento, no caso dos estados, ou incorporação, a fusão e o desmembramento, no
caso dos municípios –, o plebiscito apresentará papel vinculante para sua concretização. Se o
96 PAULO Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. São Paulo:
MÉTODO, 2011, p. 320. 97 Idem, Ibidem, p. 319. 98 BRASIL, Lei nº 9.709, de 18 de Novembro de 1998. Regulamenta a execução do disposto nos incisos I, II e III
do art. 14 da Constituição Federal. In SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1998.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm> Acesso em: 10 out. 2013. 99 Segundo o Art. 49, XV, da Constituição Federal, é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar
referendo e convocar plebiscito. 100 BRASIL, Lei nº 9.709, de 18 de Novembro de 1998. Regulamenta a execução do disposto nos incisos I, II e
III do art. 14 da Constituição Federal. In SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira. Brasília,
1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9709.htm> Acesso em: 10 out. 2013.
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42
resultado do plebiscito for desfavorável, o procedimento não poderá ocorrer, uma vez que a
aprovação das populações interessadas constitui condição indispensável para a modificação
territorial. No entanto, restando favorável o resultado, no caso dos estados, caberá ao
Congresso Nacional, soberanamente, decidir pela aprovação ou não da lei complementar. Ou
seja, caso haja denegação do procedimento pela população interessada, encerra-se ai seu
projeto, não sendo necessária apreciação por parte do Congresso. No entanto, caso a resposta
ao plebiscito seja no sentido de admitir o procedimento, o Congresso não restará obrigado a
aprovar lei complementar para sua formalização101.
101 PAULO Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. São Paulo:
MÉTODO, 2011, p. 320.
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43
3. A EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR
3.1 INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR
Como foi visto, a participação popular constitui verdadeiro direito fundamental
garantido constitucionalmente. Para atestar efetividade a este direito, a Carta Maior previu
expressamente alguns instrumentos, como os já comentados - plebiscito, referendo e iniciativa
popular -, e deu abertura e amparo para que o ordenamento infraconstitucional se
encarregasse da produção de vários outros.
Sobre a necessidade da criação de novos mecanismos, comenta Adriana Schier102:
O Estado Social e Democrático de Direito, para sua efetivação como um Estado
direcionado ao respeito da dignidade da pessoa humana em todas as suas dimensões
demanda um aperfeiçoamento da democracia, sendo necessária a criação de
mecanismos que permitam ao cidadão participar diretamente da gestão da coisa
pública.
Perez103, por sua vez, responsabiliza-se por nos trazer uma definição para os
instrumentos participativos, chamados por ele de “institutos jurídicos de participação popular
na administração pública”. Vejamos:
(...) podemos definir os institutos jurídicos de participação popular na
Administração, em traços gerais, como instrumentos legalmente previstos que
possibilitem aos administrados, diretamente, ou através de representantes escolhidos
especificamente para este fim, tomar parte na deliberação, na execução ou no
controle das atividades desenvolvidas pela Administração Publica, com o objetivo
de tornar mais eficiente a atuação administrativa e dar efetividade aos direitos
fundamentais, por meio da colaboração entre a sociedade e a Administração, da
busca de adesão, do consentimento e do consenso dos administrados e, afinal, da
abertura e transparência dos processos decisórios.
Poderíamos comentar sucintamente sobre os diversos instrumentos de participação
popular disponíveis no ordenamento jurídico e administrativo brasileiro, no entanto, optou-se
aqui por tratar de maneira um pouco mais detalhada, mas não exaustiva, de apenas quatro
instrumentos, escolhidos por sua importância e capacidade real de oferecer efetividade à
participação.
3.1.1 Orçamento participativo
O Estado é responsável pelo planejamento e gestão das finanças públicas, sendo sua
missão precípua a correta aplicação das verbas, com vistas à persecução do bem-estar da
população. Nesse passo, necessita delimitar e regular seu numerário, utilizando, para isso, um
102 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na Administração Pública: o direito de
reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 237. 103 PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática. Belo Horizonte: Forum, 2004, p. 96.
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instrumento intitulado orçamento público. Nele estão documentadas as atividades financeiras
do Estado, toda sua receita e o cálculo das despesas a serem despendidas para o regular
funcionamento dos serviços públicos e demais atividades planejadas pelo governo104.
A Carta Magna de 1988 reserva a seção II de seu capítulo II para dispor sobre o ciclo
orçamentário, que consiste no conjunto de etapas responsáveis pela elaboração e execução do
orçamento público.
O art. 2º da Lei nº 4.320/64105 – que estatui normas gerais de direito financeiro para
elaboração e controle dos orçamentos de todos os entes federativos –, define o conteúdo do
orçamento público. In verbis.
Art. 2° A Lei do Orçamento conterá a discriminação da receita e despesa de forma a
evidenciar a política econômica financeira e o programa de trabalho do Governo,
obedecidos os princípios de unidade universalidade e anualidade.
Para José Afonso da Silva106, o orçamento é muito mais do que mera previsão de
receita e fixação de despesa,
É uma peça de governo muito mais complexa do que isso, porque é o processo e
conjunto integrado de documentos pelos quais se elaboram, se expressam, se
aprovam, se executam e se avaliam os planos e programas de obras, serviços e
encargos governamentais, com estimativa da receita e fixação das despesas de cada
exercício financeiro.
Sobre a temática, vejamos a conclusão de Uâdi Lammêgo Bulos107:
Desse modo, o orçamento é o instituto de caráter jurídico, governamental,
econômico e técnico, traduzido numa lei, cuja responsabilidade é programar,
planejar e aprovar obras e despesas, os processos estatísticos para cálculo
aproximado dos gastos e das compensações, apresentação gráfica e contábil do
documento orçamentário etc.
O orçamento é, segundo o art. 165, III, da Constituição Federal108, estabelecido por
uma lei de iniciativa do poder executivo, intitulada lei orçamentária anual (art. 165, §5º), ou
simplesmente LOA.
104 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 9. Ed. rev. E atual. Até a Emenda Constitucional n.
57/2008. São Paulo : Saraiva, 2009, pág. 1236. 105 BRASIL, Lei nº 4.320, de 17 de Março de 1964. Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração
e contrôle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. In SENADO
FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1964. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4320.htm> Acesso em: 12 nov. 2013. 106 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, pág. 714. 107 BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 9. Ed. rev. E atual. Até a Emenda Constitucional n.
57/2008. São Paulo : Saraiva, 2009, p. 1237. 108 BRASIL, Constituição Federal de 1988. In: SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira.
Brasília, 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso
em: 10 out. 2013.
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Duas outras leis de caráter orçamentário auxiliarão a confecção da LOA, são elas o
plano plurianual (PPA) e a lei de diretrizes orçamentárias (LDO). Vejamos o que diz o já
mencionado art. 165 da Constituição Federal, em seus dois primeiros parágrafos. In Verbis.
Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:
I - o plano plurianual;
II - as diretrizes orçamentárias;
III - os orçamentos anuais.
§ 1º - A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as
diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de
capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração
continuada.
§ 2º - A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da
administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício
financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá
sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das
agências financeiras oficiais de fomento.
As leis orçamentárias são instrumentos integrados de planejamento governamental. O
Plano Plurianual constitui verdadeiro planejamento estratégico, estabelecendo o que se “quer
fazer” a médio e longo prazo, tendo em vista sua vigência de quatro anos. A lei de diretrizes
orçamentárias delineia um planejamento de cunho tático, regulando o “poder fazer” em curto
prazo. A lei orçamentária anual, orientada pelas duas outras, firma o planejamento
operacional, materializando o “fazer”.
A atuação direta dos cidadãos na elaboração do orçamento permite um melhor
direcionamento dos investimentos públicos. O OP possibilita que os cidadãos orientem o
administrador público, tendo como foco as prioridades locais e uma melhor prestação dos
direitos fundamentais sociais.109
A participação popular na construção do orçamento público tem o condão de combater
“a tradicional forma conservadora, elitista e excludente do poder público em gerir o
orçamento”110. Por meio do orçamento participativo a população tem maior poder de ação e
decisão, estando a par da destinação dos recursos, o que favorece o rompimento do antigo
padrão patrimonialista e clientelista, tido como um dos principais empecilhos à efetivação da
participação popular.
109 GONÇALVES, Hermes Laranja. Uma visão crítica do Orçamento Participativo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005, pág. 47. 110 CARVALHO, Cesar Machado; ARAUJO, Geraldo Jose Ferraresi de. O orçamento participativo: avanços e
desafios do orçamento participativo de Araraquara em direção à ampliação da cidadania local. In: Revista
Gestão e Sociedade. Vol. 4, No. 7, Minas Gerais, 2010. Disponível em:
<http://www.gestaoesociedade.org/gestaoesociedade/article/view/941/764>. Acessado em: 25 de novembro de
2013, pág. 469.
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A Lei de Responsabilidade fiscal tem papel determinante na implementação do
orçamento participativo, uma vez que estabelece a participação popular como condição
necessária, mediante realização de audiências públicas, à instituição das leis orçamentárias.
Vejamos o art. 48, parágrafo único, I. In verbis.
Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada
ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos,
orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo
parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de
Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.
Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante:
I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas,
durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes
orçamentárias e orçamentos; (grifo nosso)
O Orçamento participativo constitui ferramenta indispensável, por meio da qual os
cidadãos poderão cobrar maior eficiência e transparência dos atos emanados pela
administração local, tornando menor o risco de balburdia com as verbas públicas e
possibilitando uma otimização do planejamento focado nas necessidades e interesses do povo.
A utilização desta ferramenta irá gerar a corresponsabilidade entre poder Executivo e
população na tarefa de destinar os escassos recursos públicos, evitando, consequentemente,
seu desvio e seu desperdício. Desta forma, é notável o viés de educação política trazido pelo
Orçamento participativo, uma vez que ele atiça o debate entre os próprios cidadãos e entre
esses e a Administração, objetivando o melhor para a coletividade.111
A primeira experiência de orçamento participativo foi realizada na cidade de Pelotas,
Rio Grande do Sul, mas foi em Porto Alegre que o instrumento de participação popular
melhor se desenvolveu, sendo utilizado desde 1989112. Sobre a experiência de Porto Alegre,
comenta Gabriela Soares Balestero113:
A experiência de Porto Alegre tem chamado a atenção pelas suas características
fundamentais: democracia, equidade, solidariedade, eficiência. Tais características
teriam melhorado a qualidade de vida da população de baixa renda devido
principalmente ao efeito redistributivo dos orçamentos. Portanto, houve uma
extensão do processo democrático para os setores organizados da população pobre
da cidade, melhorando as condições de vida da população.
111 CARVALHO, Cesar Machado; ARAUJO, Geraldo Jose Ferraresi de. O orçamento participativo: avanços e
desafios do orçamento participativo de Araraquara em direção à ampliação da cidadania local. In: Revista
Gestão e Sociedade. Vol. 4, No. 7, Minas Gerais, 2010. Disponível em:
<http://www.gestaoesociedade.org/gestaoesociedade/article/view/941/764>. Acessado em: 25 de novembro de
2013, pág. 467. 112 BALESTERO, Gabriela Soares. Os orçamentos participativos como instrumento de participação popular
na efetivação das políticas públicas. In: Prismas: Dir., Pol. Publ. e Mundial. Vol. 8, No. 1, Brasília, 2011.
Disponível em: <http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/prisma/article/view/1996/19970>.
Acesso em: 25 de Nov. 2013, pág. 52. 113 Idem, Ibidem, pág. 63
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O que ocorreu em Porto Alegre, desde os primeiros ensaios do orçamento participativo
em 1989, foi a instauração de uma administração compartilhada, onde governo e sociedade
civil atuaram num só caminho, resultando em ganhos de ambos os lados. Por sua importância,
o orçamento participativo gaúcho é tido como uma referência nacional e internacional.114
É essencial ressaltar o caráter redistributivo do OP. Como há uma aproximação entre
administração e povo, torna-se possível uma melhor visualização, por parte dos governantes,
dos problemas e necessidades que afligem a população, possibilitando, desta forma, uma
maior alocação de recursos nos pontos críticos das municipalidades. Não é por menos que
“desde a sua implantação [do orçamento participativo], as regiões mais pobres foram as que
receberam o maior número de investimentos per capita”115. No entanto, resta claro que a
capacidade financeira dos entes será um limitador da capacidade do orçamento participativo,
cingindo seu efeito redistributivo.116
Além de Porto Alegre, outras cidades obtiveram êxito na implantação do OP, como
são os casos de Recife, Fortaleza e Belo Horizonte. No entanto, o sucesso dos orçamentos
participativos não é regra. A dificuldade de seu estabelecimento é enorme. As inúmeras
benesses possibilitadas pela participação dos cidadãos no orçamento esbarram em alguns
problemas culturais, tais como a falta de preparo técnico da população e a ausência de
composição entre povo e legislativo, e normativos, como é o caso da inexistência de
necessária vinculação entre aquilo que foi deliberado durante o orçamento participativo e a
decisão final do governante.117
Essencialmente, o orçamento participativo é composto por duas fases. A primeira,
aberta a todos os munícipes, consiste na instituição de assembleias onde os cidadãos podem
atuar diretamente; a segunda é restrita aos representantes escolhidos pelo povo – conhecidos
como delegados. A atuação dos envolvidos na construção do OP restará balizada por critérios
de caráter técnico, já que nem tudo pode ser realizado do jeito que se quer, devendo-se
observar elementos objetivos, como o numerário disponível para confecção do orçamento
114 GONÇALVES, Hermes Laranja. Uma visão crítica do Orçamento Participativo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005, pág. 50. 115 BALESTERO, Gabriela Soares. Os orçamentos participativos como instrumento de participação popular
na efetivação das políticas públicas. In: Prismas: Dir., Pol. Publ. e Mundial. Vol. 8, No. 1, Brasília, 2011.
Disponível em: <http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/prisma/article/view/1996/19970>.
Acesso em: 25 de Nov. 2013, p. 64. 116 Idem, Ibidem, p. 64 117 Idem, Ibidem, p. 62.
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anual. Assim sendo, “a alocação do investimento municipal terá como suporte as diretrizes
estabelecidas pelos técnicos da prefeitura e respeitado os limites financeiros do município”.118
Sérgio de Azevedo119 sintetiza os procedimentos englobados no orçamento
participativo:
Embora variando bastante para cada cidade, os diferentes modelos do Orçamento
Participativo possuem alguns pontos comuns. Normalmente, o processo tem início
com a realização de assembléias que congregam moradores de bairros próximos
localizados em cada uma das regiões tradicionais da cidade. Os moradores são então
informados sobre a composição do orçamento municipal e o montante de recursos
disponível, e são realizadas uma ou mais assembléias para a seleção das demandas
da sub-região e a escolha dos delegados que irão defendê-las no Fórum Regional. Na
seqüência do processo, os delegados eleitos nessas assembléias participam do Fórum
Regional, em que definem uma ordem de prioridades das demandas de serviços e
obras a serem encaminhadas ao Fórum Municipal. Na instância regional, em muitos
casos, é ainda realizada a escolha dos membros que irão representar cada região na
Comissão ou Grupo encarregado do acompanhamento e fiscalização do Orçamento
Participativo, por ocasião da implementação das obras e serviços. Por fim, o
Orçamento Participativo é consolidado no Fórum Municipal na versão que será
encaminhada à Câmara dos Vereadores para apreciação dos parlamentares. Pode-se
dizer que o Fórum Municipal é um evento de cunho político, no qual culmina todo o
processo. Após o encaminhamento oficial da proposta ao legislativo municipal, há
diferentes tipos de mobilização para que a população potencialmente beneficiada
atue na Câmara de Vereadores, a fim de garantir a aprovação da maior parte das
obras e serviços pactuados durante o processo do Orçamento Participativo.
Os Orçamentos Participativos têm a capacidade de fortalecer o poder em âmbito local
e resgatar a democracia social, dando, desta forma, respaldo à efetiva participação popular. O
fato de os cidadãos participarem diretamente da condução do Estado, por meio da construção
do orçamento, leva a um maior engajamento político, fazendo com que o povo se sinta útil, o
que “mitiga ou até mesmo inibe a ocorrência do fenômeno do refluxo, da repulsa da
população à política”.120
A maior virtude do OP é, sem dúvidas, seu poder de aproximar sociedade e
administração. Tal estreitamento é capaz de promover inúmeros ganhos na educação cidadã
da população. A atuação na confecção do orçamento permite que os anseios particulares
118 CARVALHO, Cesar Machado; ARAUJO, Geraldo Jose Ferraresi de. O orçamento participativo: avanços e
desafios do orçamento participativo de Araraquara em direção à ampliação da cidadania local. In: Revista
Gestão e Sociedade. Vol. 4, No. 7, Minas Gerais, 2010. Disponível em:
<http://www.gestaoesociedade.org/gestaoesociedade/article/view/941/764>. Acessado em: 25 de novembro de
2013, p. 467. 119 Apud BALESTERO, Gabriela Soares. Idem, p. 56. 120 BALESTERO, Gabriela Soares. Os orçamentos participativos como instrumento de participação popular
na efetivação das políticas públicas. In: Prismas: Dir., Pol. Publ. e Mundial. Vol. 8, No. 1, Brasília, 2011.
Disponível em: <http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/prisma/article/view/1996/19970>.
Acesso em: 25 de Nov. 2013, p. 58.
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sejam discutidos coletivamente, de modo que sejam escolhidas as prioridades da localidade,
propiciando, consequentemente, o caráter redistributivo do OP.121
Oklinger Mantovaneli Júnior122 destaca quatro princípios pelos quais se fundamenta o
orçamento participativo. Em primeiro lugar, está a universalidade da participação, segundo a
qual todos os cidadãos dispostos a participar podem fazê-lo. Em seguida, vem a publicidade,
que permite aos cidadãos o acompanhamento e controle da efetiva execução daquilo que foi
aprovado no orçamento. O terceiro princípio é o da autorregulamentação, ou seja, o OP deve
reger-se por normas elaboradas pelos representantes do povo – conselheiros e delegados
devidamente eleitos em assembleias – pautadas por critérios técnicos liberados pela
administração. Por último, aponta o princípio da prestação de contas, pelo qual o executivo
municipal seria forçado a uma contínua prestação de contas, perante as assembleias, da
totalidade das atividades desenvolvidas por meio do instituto.
3.1.2 Audiências públicas
Audiência pública nada mais é do que um instrumento de participação popular por
meio do qual os cidadãos são consultados sobre os mais variados assuntos de seu interesse.
Esta ferramenta permite uma participação ativa da população na orientação dos assuntos
públicos, revelando-se mecanismo apto a legitimar, por meio de um processo democrático, as
decisões tomadas pela administração pública.123
Em uma definição sucinta, Diogo de Figueiredo Moreira Neto124 trás seu entendimento
sobre o que é audiência pública:
Um processo administrativo de participação aberto a indivíduos e grupos sociais
determinados, visando o aperfeiçoamento da legitimidade das decisões da
Administração Pública, criado por lei, que lhe preceitua a forma e a eficácia
vinculatória, pela qual os administrados exercem o direito de expor tendências,
121 CARVALHO, Cesar Machado; ARAUJO, Geraldo Jose Ferraresi de. O orçamento participativo: avanços e
desafios do orçamento participativo de Araraquara em direção à ampliação da cidadania local. In: Revista
Gestão e Sociedade. Vol. 4, No. 7, Minas Gerais, 2010. Disponível em:
<http://www.gestaoesociedade.org/gestaoesociedade/article/view/941/764>. Acessado em: 25 de novembro de
2013, pág. 468. 122 Apud CARVALHO, Cesar Machado; ARAUJO, Geraldo Jose Ferraresi de. Ibidem, p. 467. 123 LOCK, Fernando do Nascimento. Participação popular no controle da administração pública: um estudo
exploratório. In: Revista Eletrônica de Contabilidade, ano 1, nº 1, Santa Maria: set./nov. 2004. Disponível
em: <http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/contabilidade/article/view/122/3530>. Acesso em: 04
de dez. de 2013, p. 127. 124 FONSECA, Gilberto Nardi. A participação popular na administração pública: audiências públicas na
elaboração e discussão dos plano, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos dos municípios. In: Revista
de Informação Legislativa, ano 40, nº. 160, Brasília: Senado Federal/Subsecretaria de Edições Técnicas, p.
291-305, out./dez. 2003, p. 300.
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preferências e opções que possam conduzir o poder público a decisões de maior
aceitação consensual.
As vantagens trazidas pela realização de audiências públicas não trazem benefícios
apenas à população, mas também aos governantes. Explico. Ao passo em que aos cidadãos é
viabilizada a obtenção de informações sobre a atuação dos administradores públicos, a estes é
dada a oportunidade de melhor avaliar como proceder, uma vez que há verdadeira
administração compartilhada. Como assevera Gilberto Nardi Fonseca, “Ouvindo o cidadão, a
possibilidade de errar diminui consideravelmente”.125
Segundo Moreira Neto126, audiência pública seria:
[...] um instituto de participação administrativa aberta a indivíduos e a grupos sociais
determinados, visando à legitimidade da ação administrativa, formalmente
disciplinada em lei, pela qual se exerce o direito de expor tendências, preferências e
opções que possam conduzir o Poder Público a uma decisão de maior aceitação
consensual.
Deste modo, duas questões principais são acentuadas. Em primeiro lugar, a realização
de audiências públicas irá assegurar o direito fundamental constitucional dos cidadãos de
serem ouvidos e de opinarem sobre a condução da máquina pública, especialmente nos temas
que lhe interessem. Em seguida, salienta-se o perfil didático das audiências, “uma vez que se
estabelece uma real oportunidade de conscientização e educação da população sobre as
diretrizes e políticas públicas”.127 Assim como no caso das audiências públicas, todas as
experiências participativas bem sucedidas passaram pelo estágio de educação e
conscientização do povo.
Deve-se ressaltar o viés legitimador das audiências públicas. O fato de o cidadão poder
estar continuamente opinando a maneira pela qual gostaria de ser governando, unido ao
elemento informador do instrumento, através do qual se torna possível uma melhor obtenção
de informações sobre o comportamento do administrador público, materialização clara do
princípio constitucional da publicidade, proporciona a elevação da legitimação popular ante a
atuação administrativa.128
125 FONSECA, Gilberto Nardi. A participação popular na administração pública: audiências públicas na
elaboração e discussão dos plano, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos dos municípios. In: Revista
de Informação Legislativa, ano 40, nº. 160, Brasília: Senado Federal/Subsecretaria de Edições Técnicas, p.
291-305, out./dez. 2003, p. 300. 126 Apud BONELLA, Danielle Soncini. Espaço público e cidadania: a participação popular em audiências
públicas no município de Santa Maria-RS. 2008. 137 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de
Santa Cruz do Sul, UNISC, Santa Cruz do Sul. 2008, p. 66. 127 BONELLA, Danielle Soncini. Ibidem, p. 66. 128 FONSECA, Gilberto Nardi. Ibidem, p. 300.
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A Constituição Federal de 1988129 trás, em seu Art. 58, §2º, II, previsão sobre a
realização de audiências públicas, que deverão ser convocadas pelas comissões do Congresso
Nacional. In verbis.
Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e
temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo
regimento ou no ato de que resultar sua criação.
(...)
§ 2º - às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe:
I - discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a
competência do Plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da
Casa;
II - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil; (Grifo nosso).
Inúmeros são os dispositivos legais que preveem a realização de audiências públicas.
A Lei Complementar 101/00130 – Lei de responsabilidade fiscal – e a Lei 10.257/01131, que
institui o Estatuto da Cidade, por exemplo, determinam a realização de audiências públicas
nos processos de formação das leis orçamentárias.
A disposição do Art. 44 da Lei 10.257/01 não se limita a facultar a prática de
audiência pública, ao contrário, é categórica em afirmar que a realização do instrumento de
participação popular constitui conditio sine qua non para que as propostas orçamentárias
possam ser aprovadas pelo legislativo municipal. In Verbis.
Art. 44. No âmbito municipal, a gestão orçamentária participativa de que trata a
alínea f do inciso III do art. 4o desta Lei incluirá a realização de debates, audiências e
consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes
orçamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para sua
aprovação pela Câmara Municipal. (grifou-se)
Caráter substancial também é encontrado no art. 48, parágrafo único, I, da Lei de
responsabilidade Fiscal, apesar de não ser expresso. In verbis.
Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada
ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos,
orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo
parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de
Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.
129 BRASIL, Constituição Federal de 1988. In: Senado Federal. Legislação Republicana Brasileira. Brasília,
1988 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 nov.
2013. 130 BRASIL, Lei Complementar nº 101, de 4 de Maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas
para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. In SENADO FEDERAL. Legislação
Republicana Brasileira. Brasília, 2000. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm> Acesso em: 28 nov. 2013. 131 BRASIL, Lei nº 10.257, de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. In SENADO FEDERAL. Legislação
Republicana Brasileira. Brasília, 2001. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm> Acesso em: 10 out. 2013.
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Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante:
I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os
processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e
orçamentos; (Grifou-se).
Numa leitura apressada, pode-se pensar que a realização de audiências públicas
durante o planejamento do orçamento deverá ser meramente incentivada, inexistindo, desta
forma, obrigatoriedade. No entanto, sua prática é essencial “porque a transparência e o
controle popular na gestão fiscal é norma de caráter obrigatório”.132
O razão de ser desta obrigatoriedade, segundo Lock133, é o fato da participação
popular estar firmada sob a forma de princípio constitucional, e sendo a audiência pública um
dos instrumentos de concretização da participação, sua realização, uma vez que prevista por
lei, torna-se condição necessária de validade para o processo legislativo quando do
planejamento e construção dos planos orçamentários.
Oportuno registrar a diferença existente entre a obrigatoriedade de realização da
audiência pública e a necessária vinculação às decisões oriundas desta. O administrador
público é obrigado a realizar audiências públicas em determinadas situações, como no caso do
planejamento orçamentário, pois há expressa determinação legal neste sentido. No entanto,
nenhum dispositivo normativo vincula o governante a orientar-se pelas conclusões
provenientes do instrumento, tendo este a chamada “eficácia não vinculante”134. Desta forma,
“não há como falar-se em efeito vinculante, pois o administrador recebe comandos da
sociedade por meio da lei e dos princípios gerais da administração pública, e não diretamente
de assembleias populares, como na ecclesia da antiguidade clássica”135.
Conquanto não exista obrigação de cunho legal, há imposição moral dos agentes
políticos ante as decisões emanadas em sede de audiência pública. A aplicação da opinião
popular dependerá “[...] do grau de consciência política da comunidade envolvida e do
132 LOCK, Fernando do Nascimento. Participação popular no controle da administração pública: um estudo
exploratório. In: Revista Eletrônica de Contabilidade, ano 1, nº 1, Santa Maria: set./nov. 2004. Disponível
em: <http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/contabilidade/article/view/122/3530>. Acesso em: 04
de dez. de 2013, p. 129. 133 Idem, Ibidem, p. 130. 134 Classificação trazida pelo professor Paulo Modesto em seu artigo “Participação popular na administração
pública: mecanismos de operacionalização”. 135 FONSECA, Gilberto Nardi. A participação popular na administração pública: audiências públicas na
elaboração e discussão dos plano, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos dos municípios. In: Revista
de Informação Legislativa, ano 40, nº. 160, Brasília: Senado Federal/Subsecretaria de Edições Técnicas, p.
291-305, out./dez. 2003, p. 301.
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comprometimento do agente político com o modelo de gestão democrática, pois não há
nenhuma previsão legal que obrigue a sua vinculação”136.
Apesar da existência de situações em que as audiências públicas são expressamente
exigidas, o administrador público não está a elas restrito. Explico. Em determinados casos,
pode a administração julgar necessário conhecer a opinião dos cidadãos, sem que haja
previsão legal para isto. Ademais, seria impossível a catalogação em lei de todas as situações
em que deve ser utilizada a audiência pública. Cabe ao governante, no exercício de seu poder
discricionário, analisar a necessidade de convocação popular, seja por motivos de legitimação
da decisão a ser tomada, seja para adentrar nos reais anseios sociais. Afirma Alessandra
Obara137: “Em outras palavras, a realização de audiência popular será necessária quando
prevista em lei e será possível quando, diante do caso concreto, for constatada sua
necessidade e utilidade para encontrar a melhor solução possível”.
Moreira Neto138 compreende a audiência pública como um processo, englobado no
processo administrativo decisório, e, assim sendo, considera que a ela aplicam-se:
[...] todos os princípios constitucionais, infraconstitucionais e doutrinários que se
imponham aos processos administrativos [...] como, desde logo, o do devido
processo legal, com seus consectários; o da publicidade, que é da própria essência da
atividade pública; o da oralidade, que abre oportunidade para os debates; o da
instrução, permitindo o interrogatório dos participantes; e o da economia processual;
bem como o da oficialidade, que rege a impulsão de ofício, o da verdade material,
que exige a investigação fatos como realmente o são e não como se apresentem em
suas versões, o do formalismo moderado, que recomenda a simplicidade suficiente
para propiciar um grau de certeza, segurança, respeito aos direitos dos sujeitos, o
contraditório e a ampla defesa.
A audiência pública está para os processos administrativos de caráter decisório, assim
como a audiência judicial está para os processos judiciais, fazendo-se necessária a obediência,
em ambos os casos, a um rito previamente determinado. Deste modo, aplicam-se às
audiências públicas princípios reguladores gerais, sendo alguns, inclusive, semelhantes aos
empregados nas audiências judiciais, tais como: devido processo legal, verdade material,
oralidade, informalidade, ampla instrução probatória, gratuidade, etc.139
136 FONSECA, Gilberto Nardi. A participação popular na administração pública: audiências públicas na
elaboração e discussão dos plano, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos dos municípios. In: Revista
de Informação Legislativa, ano 40, nº. 160, Brasília: Senado Federal/Subsecretaria de Edições Técnicas, p.
291-305, out./dez. 2003, p. 301. 137 SILVA, Alessandra Obara Soares da. Participação popular na Administração pública: as audiências
públicas. 2009. 159 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-
SP, São Paulo. 2009, p. 77/78. 138 Apud SILVA, Alessandra Obara Soares da. Ibidem, p. 69. 139 SILVA, Alessandra Obara Soares. Ibidem, p. 75.
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De acordo com Augustín Gordillo140, a audiência pública apresenta natureza pública
dúplice. A primeira vertente é pautada pela publicidade e transparência, marcas características
do instrumento, orientadas pela oralidade, registros e publicações dos atos emanados. Através
dela o governo irá informar, pedagogicamente, a totalidade de dados contábeis, financeiros,
orçamentários e operacionais do Poder Estatal. A segunda é marcada pela participação aberta
de todos os cidadãos interessados. O povo pode sair da condição de mero espectador e
participar ativa e efetivamente, através de um procedimento ordenado, da condução do
Estado, decidindo sobre a atuação administrativa a ser realizada e acompanhando e
controlando as ações já em andamento.
Alessandra Obara Soares da Silva141, em sua tese de mestrado, após colacionar várias
definições sobre o conceito de audiência pública encontradas na doutrina, arrisca,
embasadamente, sua própria conceituação. Vejamos:
Audiência pública é uma fase do processo administrativo decisório que
instrumentaliza a participação popular direta no âmbito da Administração Pública, a
qual, no exercício de competência discricionária, por imposição legal ou por
entender extremamente relevantes os direitos em causa, se vale da oitiva dos
interessados para legitimar a decisão administrativa e ampliar a eficiência e eficácia
desta decisão, aproximando-se dos administrados e da realidade fática.
Segundo a autora, a realização de audiência pública está limitada às decisões
provenientes do exercício da competência discricionária da administração. Argumenta que, se
resta ao governante somente uma saída viável perante determinada situação, estando ela
positivada em lei, não há que se falar em participação popular, pois seria desnecessária e
inútil, tendo em vista a impossibilidade legal de adoção de decisão destoante daquela
previamente determinada. Complementa afirmando que, mesmo quando o caso concreto
permitir a utilização do poder discricionário administrativo, sendo a hipótese de apenas uma
solução viável ser encontrada, novamente a participação popular não encontraria respaldo,
tendo em vista a ausência de utilidade e necessidade. Conclui, neste diapasão, que a
participação popular por meio de audiência pública só é viabilizada “no exercício de
competência discricionária que deixe ao administrador uma margem de decisão entre duas ou
mais soluções possíveis e igualmente concretizadoras do interesse público”.142
140 Apud BONELLA, Danielle Soncini. Espaço público e cidadania: a participação popular em audiências
públicas no município de Santa Maria-RS. 2008. 137 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de
Santa Cruz do Sul, UNISC, Santa Cruz do Sul. 2008, p. 67. 141 SILVA, Alessandra Obara Soares da. Participação popular na Administração pública: as audiências
públicas. 2009. 159 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-
SP, São Paulo. 2009, p. 73. 142 Idem, ibidem, pág. 73.
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55
As regras norteadoras da realização das audiências públicas devem buscar garantir
uma atuação cidadã a mais significativa possível. Deste modo, detalhes como data, horário e
local possuem grande relevância; deve-se marcar dia e hora que facilite o comparecimento
dos cidadãos, sendo evitadas audiências em horário comercial ou em feriados, atentando-se
também para que aconteça em local de fácil acesso.143
A atuação dos poderes, notadamente Executivo e Legislativo, é fundamental para que
as audiências públicas sejam realizadas tal como idealizadas. Cabe a eles a implantação de
ações educativas, com o propósito de informar – de certa forma sensibilizar – a população
acerca da importância de sua participação nos processos decisórios do município. A utilização
de material que facilite o acesso da massa, valendo-se de linguagem informal, “na forma de
revista em quadrinhos, literatura de cordel ou até músicas que esclareçam os propósitos e o
conteúdo do que será discutido”. A convocação para as audiências também deve ser pensada
de modo a incluir o maior número de pessoas; não pode a administração limitar-se a uma
divulgação por edital, mas deve sim valer-se dos meios de comunicação mais efetivos, como
rádio, televisão e outdoors.144
Não cabe impugnação ao resultado de audiência pública, nem mesmo por recurso
administrativo, haja vista a inexistência de previsão legal. Sem embargo, conforme
entendimento de Alessandra Obara Soares da Silva145 há a possibilidade de correção de vício
legal, pela própria administração, valendo-se de seu poder de autotutela, ou pelo poder
judiciário, mediante provocação do administrado, conforme decorrência do art. 5º, XXXV, da
Constituição Federal146, limitando-se à análise dos aspectos legais, estando impossibilitado de
adentrar o mérito do ato administrativo.
143 BONELLA, Danielle Soncini. Espaço público e cidadania: a participação popular em audiências
públicas no município de Santa Maria-RS. 2008. 137 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de
Santa Cruz do Sul, UNISC, Santa Cruz do Sul. 2008, pág. 68. 144 BONELLA, Danielle Soncini. Espaço público e cidadania: a participação popular em audiências
públicas no município de Santa Maria-RS. 2008. 137 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de
Santa Cruz do Sul, UNISC, Santa Cruz do Sul. 2008, pág. 69. 145 SILVA, Alessandra Obara Soares da. Participação popular na Administração pública: as audiências
públicas. 2009. 159 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-
SP, São Paulo. 2009, pág. 82. 146 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
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56
3.1.3 Consultas públicas
A consulta pública em muito se assemelha à audiência pública, caracterizando-se
como um processo aberto aos cidadãos para que estes possam, uma vez consultados,
manifestar-se sobre assuntos a eles pertinentes. O objetivo da consulta pública é permitir à
Administração Pública a oitiva e coleta de dados oriundos da opinião pública, permitindo,
deste modo, uma melhor fundamentação acerca da necessidade de determinados atos
administrativos, levando em conta as manifestações e sugestões recebidas e incluindo-as
como peças formais e integradoras do processo decisório como um todo.147
Vejamos os comentários de Rachel Sacheto148 sobre o instrumento participativo da
consulta pública:
Por meio da consulta pública, o cidadão obtém informações e conhecimento sobre as
ações que a administração pública visa implementar, assim como avalia a
conveniência, oportunidade e a intensidade de suas ações em uma forma de atuação
compartilhada. Ela pode ser aplicada durante o processo de elaboração de leis,
resoluções, instruções normativas, projetos ou quaisquer outros atos da
administração pública.
A realização de consulta pública está prevista na Lei nº 9.784/99149, que regula o
processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Segundo o caput do art.
31 da referida lei, se a matéria da qual trata o processo envolver assunto de interesse geral, o
órgão competente poderá abrir período de consulta pública para manifestação de terceiros,
que deverá ocorrer antes da decisão do pedido, tanto que não haja prejuízo para a parte
interessada. Sobre o procedimento de sua realização, dispõem os §§ 1º e 2º. In verbis.
Art. 31. Quando a matéria do processo envolver assunto de interesse geral, o órgão
competente poderá, mediante despacho motivado, abrir período de consulta pública
para manifestação de terceiros, antes da decisão do pedido, se não houver prejuízo
para a parte interessada.
§ 1o A abertura da consulta pública será objeto de divulgação pelos meios oficiais, a
fim de que pessoas físicas ou jurídicas possam examinar os autos, fixando-se prazo
para oferecimento de alegações escritas.
§ 2o O comparecimento à consulta pública não confere, por si, a condição de
interessado do processo, mas confere o direito de obter da Administração resposta
fundamentada, que poderá ser comum a todas as alegações substancialmente iguais.
147 SACHETO, Raquel. Participação popular na era da informação: o caso das consultas públicas
eletrônicas na administração pública federal do Brasil. 2008. 131 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação)
- Universidade de Brasília, UNB-DF, Brasília, 2008, p. 30. 148 Idem, ibidem, p. 30. 149 BRASIL, Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da
Administração Pública Federal. In: SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1990.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm>.
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57
O caput do artigo elenca as condições necessárias para possibilitar a abertura de uma
consulta pública. De acordo com o dispositivo, a consulta só acontecerá se: a) a matéria
envolver assunto de interesse geral; b) não houver prejuízo para a parte interessada; e c) o
órgão público responsável proferir despacho que justifique sua realização. Ressalta, por fim,
que a abertura de consulta pública é faculdade da Administração, que deverá ponderar os
eventuais prejuízos à parte interessada e as finalidades públicas que poderão ser satisfeitas a
partir da realização desta espécie de participação popular.150
Apesar de muito semelhante, não há de se confundir consulta e audiência pública, pois
ambas ocorrem em momentos e de formas distintas. Na audiência pública, a discussão pública
ocorre com data, hora e local pré-fixados, e sua efetivação realiza-se pela presença direta de
representantes de empresas e de cidadãos que irão contribuir, de forma oral, com sugestões e
ressalvas sobre a matéria discutida. As consultas públicas, por sua vez, ocorrem em períodos
previamente determinados e não demandam a presença dos administrados para manifestarem
suas opiniões, já que esta se dará por escrito, tendo relevante importância na decisão final do
ato administrativo. A divulgação de sua realização será feita, obrigatoriamente, por
publicação em diário oficial dos autos a serem analisados e do prazo para envio de
manifestações, levando em conta data e hora de abertura e encerramento da consulta,
conforme os ditames do art. 31, § 2º da Lei nº 9.784/99.
A realização de consulta pública é também prevista pela Lei nº 9.472/97, que dispõe
sobre a criação e funcionamento da ANATEL, órgão regulador das telecomunicações. De
acordo com o art. 42 da referida lei, as minutas de atos normativos serão submetidas à
consulta pública, que deverá ser formalizada por publicação no Diário Oficial da União,
devendo as críticas e sugestões ser sujeitas a exame e permanecerem à disposição do público.
Neste condão, o objetivo da consulta pública é permitir aos administrados,
formalmente e por escrito, expressarem seus interesses e exporem seus argumentos favoráveis
ou contrários ao acolhimento de determinada norma reguladora a ser possivelmente
publicada, influindo, deste modo, nos rumos da regulação.151
150 BORGES, Ana Paula Dutra. Processo Administrativo e Participação Popular: consulta pública,
audiência pública e conselhos de gestão de políticas públicas. In: Revista Direito e Realidade, v. 2, n. 1,
Monte Carmelo, p. 1-15. 2013, p. 9. 151 MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Regulação econômica e social e participação pública no Brasil. In:
COELHO, Vera Schattan P., NOBRE, Marcos (Orgs.). Participação e deliberação: teoria democrática e
experiências institucionais no Brasil contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 313-342. P. 320/321.
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58
3.1.4 Conselhos gestores de políticas públicas
Na atual conjuntura, os conselhos gestores de políticas públicas apresentam papel de
destaque dentre os instrumentos democráticos de participação popular na administração
pública. Assim como a Constituição Federal de 1988, os conselhos “são frutos de demandas
populares e de pressões da sociedade civil pela redemocratização do País”152.
Os Conselhos possuem a função de elaborar e estruturar a implementação de políticas
públicas. Para Borba e Lüchmann153,
Com efeito, a criação e ampliação de espaços político-decisórios participativos, a
exemplo dos Conselhos Gestores, buscam romper com o distanciamento e a redução
da política enquanto caracterizada como campo de ação exclusivo dos representantes
políticos que orientam as estratégias, escolhas e decisões políticas a partir do jogo
eleitoral.
Vejamos a definição trazida por Juliana Brina Corrêa Lima de Carvalho154 e os fatores
que, segundo ela, tornam os Conselhos Gestores uma inovação tão importante para efetivação
da participação popular na administração pública:
Tais Conselhos constituem-se como espaços públicos de composição plural e
paritária entre Estado e sociedade civil, de natureza deliberativa, cuja função é
formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais. Em três fatores,
portanto, reside sua novidade histórica: no fato de serem espaços públicos de
composição plural e paritária; no fato de terem no processo dialógico o principal
instrumento de resolução dos conflitos inerentes à diversidade dos interesses em
jogo; no fato de funcionarem como instâncias deliberativas com competência legal
para a formulação de políticas e para a fiscalização de sua implementação.
Os Conselhos são órgãos colegiados, formados paritariamente por representantes do
poder público e da população, o que visa o equilíbrio nas decisões. Agente públicos titulares
de cargos de direção indicados pelo chefe do Executivo representarão o governo, enquanto a
sociedade civil será representada por conselheiros escolhidos em fórum próprio, dentre
membros de entidades e organizações não governamentais, movimentos, associações
comunitárias, sindicatos, etc. Apesar das reuniões dos Conselhos serem abertas aos cidadãos
em geral, estes não possuem direito a voto.155
Possuem natureza administrativa, integrando o órgão da administração responsável
pela política pública objeto de seu intento. Um Conselho pode integrar a estrutura de um
152 GOHN, Maria da Glória. Conselhos gestores e gestão pública. In: Ciências Sociais Unisinos, v. 42, n. 1,
São Leopoldo, p. 5-11, jan./abr. 2006, pág. 7. 153 BORBA, Julian; LÜCHMANN, Lígia Helena Hahn. A Representação Política nos Conselhos Gestores de
Políticas Públicas. In: Revista Brasileira de Gestão Urbana (Brazilian Journal of Urban Management), v. 2,
n. 2, p. 229-246, jul./dez. 2010, p. 232. 154 CARVALHO, Juliana Brina Corrêa Lima de. Conselhos Gestores de Políticas Públicas:
institucionalidades ofensivas ou espaços de burocratização do “Mundo da Vida”?. In: Revista Democracia
Digital e Governo Eletrônico, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), n. 6, p. 1-16, 2012, pág. 4. 155 CARVALHO, ibidem, pág. 8.
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Ministério, Secretaria ou até de uma Fundação Pública, da qual receberá suporte de caráter
técnico, administrativo, operacional e financeiro. Apesar da integração, não existe
subordinação entre um Conselho e o órgão ou entidade do qual faz parte.
A ausência de subordinação entre Conselho e órgão governamental é crucial para a
garantia do perfeito desempenho de suas funções. Só um Conselho dotado de independência
pode exercer livre e corretamente suas atribuições, dentre as quais está a fiscalização de
órgãos e autoridades públicas. O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana do Estado de São Paulo, de acordo com o art. 3º da lei que o institui - Lei Estadual nº
7.576/912156-, quando no exercício de suas atribuições, não está sujeito a qualquer
subordinação hierárquica, integrando-se na estrutura da Secretaria da Justiça e da Defesa da
Cidadania para fins de suporte administrativo, operacional e financeiro.
A criação dos conselhos públicos se dá por iniciativa do Estado, através de lei. A lei
que institui a criação de um conselho deverá delinear suas competências e as matérias sobre as
quais poderá deliberar ou opinar. Um município só se subordinará às deliberações de um
conselho municipal caso esta subordinação esteja legalmente prevista.
A Lei nº 8.069/90157, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), prevê
a criação de conselhos em todas as esferas de poder. Tais conselhos são, segundo o art. 88, II,
órgãos de caráter deliberativo que têm assegurada a participação popular através de
organizações representativas. São exemplos, em âmbito estadual, o Conselho Estadual dos
Direitos da Criança e do Adolescente de Alagoas (CEDCA/AL), criado pela Lei Estadual nº
5.336/92, e, em âmbito federal, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CONANDA), criado pela Lei Federal nº 8.242/91. Ambos constituem órgãos
colegiados deliberativos de composição paritária, sendo metade dos membros representantes
do Executivo e a outra, representantes de entidades não governamentais que atuam na
promoção e defesa dos direitos de criança e adolescentes.
156 Lei Estadual N. 7.576, de 27 de Novembro de 1991.
<http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1991/lei%20n.7.576,%20de%2027.11.1991.htm>. Visto em
30 de outubro de 2013. 157 BRASIL, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá
outras providências. In: SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1990. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>.
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60
Apesar da inexistência de viés hierárquico, Murilo Melo Vale158 comenta sobre a
dependência existente entre a boa atuação dos conselhos e a atuação estatal:
Todavia, por mais que se trate de um formato interessante para a consolidação da
democracia deliberativa na administração pública, os conselhos gestores de políticas
públicas estão longe de cumprirem plenamente o viés deliberativo. Percebe-se certa
dependência dos conselhos gestores para com a boa vontade dos governos locais
para a obtenção das informações necessárias e dos recursos materiais para o seu
devido funcionamento.
Os conselhos possuem o poder de conferir uma mudança de dimensão às políticas
sociais, haja vista seu envolvimento com o processo de constituição das políticas públicas e
de tomada de decisões. Nesse passo, assevera Maria da Glória Gohn159:
Com os conselhos, gera-se uma nova institucionalidade pública, pois eles criam uma
nova esfera social-pública ou pública não-estatal. Trata-se de um novo padrão de
relações entre Estado e sociedade, porque eles viabilizam a participação de
segmentos sociais na formulação de políticas sociais e possibilitam à população o
acesso aos espaços em que se tomam as decisões políticas.
Cresce a cada dia o número de conselhos gestores pelo Brasil. Isso se dá pela
exigência “dos princípios constitucionais que prescrevem a participação da sociedade na
condução das políticas públicas”160 e a existência de leis estaduais e municipais, das quais sua
implementação é dependente. Em 2006, pesquisas apontavam a existência de
aproximadamente 27 mil conselhos no país; o número de conselheiros ultrapassava a marca
de 100 mil pessoas.
Os municípios deverão, por exigência legal, desde 1996, criar conselhos de caráter
deliberativo, sendo esta criação condição para a percepção de fundos a serem aplicados nas
áreas sociais. É por isso que de 1996 em diante houve um aumento significativo no número de
conselhos municipais. Somente nas áreas de educação, assistência social e saúde, o número
saiu de 73 conselhos criados antes 1991, para 1.167 até 1998.161
Na percepção de Vale, a multiplicação desenfreada e atropelada de conselhos gestores
pelo país revela-se infrutífera e em nada ajuda na evolução da ferramenta participativa, uma
vez que ocasiona um desempenho desordenado e acentua o cenário de despreparo e desleixo
de seus conselheiros. Esta proliferação não irá abandonar o caráter improdutivo, mesmo que
aconteça de modo ordenado, caso restrinja-se ao âmbito local – esfera municipal -, haja vista a
158 VALE, Murilo Melo. Os conselhos gestores de políticas públicas e a democracia deliberativa: limites e
desafios para a consolidação deste instituto deliberativo. In: Revista do TCEMG, n. 1, vol. 31, Minas
Gerais: Rona Editora Gráfica, p. 43-54, jan./fev./mar., 2013, p. 51. 159 GOHN, Maria da Glória. Conselhos gestores e gestão pública. In: Ciências Sociais Unisinos, v. 42, n. 1,
São Leopoldo, p. 5-11, jan./abr. 2006, p. 7. 160 GOMES, Eduardo Granha Magalhães. Conselhos gestores de políticas públicas: democracia, controle
social e instituições. São Paulo, 2003, p. 4. 161 GOHN, Maria da Glória. Ibidem, 2006, p. 8.
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competência legislativa meramente residual deste ente. Segundo o autor, “de fato, a
importância deliberativa dos conselhos gestores de políticas públicas só se concretizaria se
fosse possível se institucionalizar, de forma plena, nas competências federal e estadual e não
meramente com caráter consultivo”162.
Maria da Glória Gohn frisa a diferença entre os conselhos gestores de políticas
públicas e os conselhos comunitários, populares ou fóruns civis não governamentais. Segundo
a autora, estes são constituídos apenas por representantes da sociedade civil, limitando-se a
utilização da “força da mobilização e da pressão”, já que não atuam formalmente ao lado da
Administração Pública. Difere-os ainda dos antigos conselhos de “notáveis”, cuja formação
dava-se exclusivamente por especialistas.163
Uma das limitações dos conselhos é ocasionada pela ausência de um formato
institucionalizado. Inexistindo uma configuração previamente determinada, várias são as
diferenças e particularidades encontradas entre os milhares de conselhos existentes no Brasil.
A Constituição Federal de 1988 não previu expressamente a instituição da ferramenta, não
sendo, portanto, obrigatória na estruturação de quaisquer dos entes federados, “o que deixa a
desejar no que tange à sua importância institucional na gestão pública brasileira”.164
Apesar dos pontos positivos trazidos pelos conselhos gestores de políticas públicas, é
notável a necessidade de aperfeiçoamento e aprimoramento do instituto para que sua atuação
se dê de modo realmente efetivo, consolidando um espaço democrático deliberativo e tendo
papel estruturador no processo de tomada de decisão da Administração Pública. Para Vale165,
“muito há que se desenvolver para que possa ser considerado, enfim, um instituto deliberativo
e essencial dentro das competências decisórias do gestor público”.
162 VALE, Murilo Melo. Os conselhos gestores de políticas públicas e a democracia deliberativa: limites e
desafios para a consolidação deste instituto deliberativo. In: Revista do TCEMG, n. 1, vol. 31, Minas
Gerais: Rona Editora Gráfica, p. 43-54, jan./fev./mar., 2013, p. 51. 163 GOHN, Maria da Glória. Conselhos gestores e gestão pública. In: Ciências Sociais Unisinos, v. 42, n. 1,
São Leopoldo, p. 5-11, jan./abr. 2006, p. 7. 164 VALE, Murilo Melo. Ibidem, p. 51. 165 VALE, Murilo Melo. Ibidem, p. 52.
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62
4. A INEFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR
4.1 DIFICULDADES DE EXERCER O DIREITO À PARTICIPAÇÃO
No capítulo anterior, conhecemos um pouco mais sobre quatro das principais
ferramentas disponibilizadas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Tais instrumentos são
responsáveis por permitir, ao menos em tese, uma participação direta dos cidadãos na
administração pública.
Neste quarto e último capítulo, veremos alguns dos problemas que dificultam o uso
perfeito de tais ferramentas e, consequentemente, impossibilitam a efetivação plena da
participação popular, objetivada pela própria Constituição Federal.
4.1.1 Apatia, abulia e acracia política
O professor Diogo Figueiredo Moreira Neto166 distingue e ordena os problemas
associados à participação dos cidadãos na administração pública em três níveis de dificuldade,
sendo elas: apatia, abulia e acracia política.
Apatia, de um ponto de vista psicológico, consiste numa falta de emoção, motivação
ou entusiasmo para realização das atividades corriqueiras do ser humano. A apatia política,
por sua vez, é caracterizada pela falta de estímulo, especificamente, para a ação cidadã.
Consiste em verdadeira indiferença por parte do administrado, que não se interessa em
participar da vida do Estado, não exercendo, desta forma, a cidadania. A apatia política está
relacionada, de modo direto, à falta de informações acerca dos direitos e deveres dos
cidadãos, causada pela ausência de vias de comunicações efetivas entre cidadãos e
Administração Pública. A morosidade ou inexistência de respostas às solicitações, demandas
e críticas dos administrados, também é responsável pela desmotivação do cidadão em
participar da vida pública. Por último, mas não menos importante, está a falta de tradição
participativa, ou seja, a ausência de uma cultura, que deveria estar enraizada desde cedo,
voltada para atuação cidadã.167
166 Apud MODESTO, Paulo. Participação Popular na Administração Pública: mecanismos de
operacionalização. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº
2, abril/maio/junho, 2005. Disponível na internet: <http//:www.direitodoestado.com.br>. Acesso em:
10/02/2013, p. 5 167 Idem, Ibidem, p. 5.
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A Abulia política, de seu lado, pode ser vista como o “não querer participar da ação
cidadã”. Ao contrário da apatia, em que há verdadeira indiferença quanto à atuação cidadã, na
abulia encontramos falta de vontade, ou seja, o indivíduo, geralmente instruído e conhecedor
da possibilidade de atuação popular junto à administração, simplesmente não manifesta o
elemento volitivo necessário a essa atuação. Esta abstenção está relacionada ao ceticismo
quanto à efetiva análise e consideração de sua manifestação ou pleito pela Administração
Pública. O não reconhecimento e valorização da população quanto às atividades de
participação cidadã também influem para a renúncia, por parte do administrado, do direito de
participar.168
O terceiro problema apontado pelo professor é a acracia política, que, objetivamente,
pode ser entendida como o “não poder participar da ação cidadã”. O principal elemento
fomentador da acracia política é o baixo grau de escolarização dos cidadãos, daí porque o
“público alvo” do problema é a parcela mais carente da população, administrados sem acesso
à educação básica, tampouco educação participativa. Outras causas, comuns tanto à acracia
quanto à apatia e abulia, caminham em paralelo com o problema da educação, sendo
consequências diretas ou indiretas deste. O formalismo exacerbado da administração (uma das
disfunções da burocracia apontadas por Weber169), que impossibilita a conversão de
solicitações orais dos requerentes em solicitações formalizadas; a ausência de clareza acerca
dos direitos e deveres das partes quando em processos administrativos e os já conhecidos
problemas de ordem política e econômica que o Brasil enfrenta.170
As dificuldades apontadas por Moreira Neto retratam situações gerais, colhidas de
uma análise de cunho político e social. Cada um dos problemas deve ser considerado de
forma isolada, evitando assim a teorização abstrata, que acabaria por padronizar as situações
reais. Tal abstração nos levaria a crer que os problemas de participação popular são os
mesmos para todas as classes sociais e, especificamente, iguais aos problemas encarados pela
168 MODESTO, Paulo. Participação Popular na Administração Pública: mecanismos de operacionalização.
Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 2, abril/maio/junho,
2005. Disponível na internet: <http//:www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 10/02/2013, p. 5. 169 O sociólogo Karl Emil Maximilian Weber, ou simplesmente Max Weber, foi o criador da teoria da
burocracia. Em sua teoria a burocracia seria uma organização estruturada por regras e procedimentos
regularizados, divisão de responsabilidades, especialização do trabalho e hierarquia. A expressão burocracia,
largamente utilizada nos tempos modernos para descrever um sistema lento, excessivamente formal e complexo,
na verdade, é uma das disfunções da organização burocrática proposta por Weber. 170 MODESTO, Paulo. Ibidem, p. 5.
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classe média urbana, o que não é verdade, pois “a participação não é uniforme em qualquer
lugar do planeta”.171
Exemplificando a necessidade de análise isolada das situações problema – apatia,
abulia e acracia políticas –, basta pensarmos que em uma situação de apatia, a criação de
novos instrumentos de participação formal poderia surtir efeito, no entanto, os mesmos
instrumentos, disponibilizados para cidadãos em estado de acracia, não passariam de
alegorias, tendo em vista o baixo grau de instrução e a distância desses indivíduos dos centros
de decisão, isso sem citarmos circunstâncias mais graves, como escravidão laboral e
coronelismo. Desta forma, resta claro que “as questões de participação popular em cada nível
ou situação referida reclamam soluções operacionais distintas”.172
Vanderlei Siraque aponta diversos fatores que obstam a participação popular. Cada um
desses problemas acaba por dar causa, direta ou indiretamente, às patologias descritas por
Moreira Neto – apatia, acracia e abulia política. De acordo com Siraque173,
Existem fatores políticos, culturais e jurídicos [...] que impedem ou dificultam a
realização concreta do direito à participação popular e ao controle social das
atividades do Estado. Dentre eles, citamos: clientelismo político; tráfico de
influências; assistencialismo ou paternalismo político; as dificuldades de acesso ao
Poder Judiciário; as dificuldades para acessar as informações públicas; a falta de
cultura participativa e de fiscalização.
Veremos, de maneira sucinta, cada um dos elementos elencados por Siraque, para que
possamos compreender melhor os motivos que os tornam barreiras à efetivação da
participação popular.
4.1.2 Clientelismo político
A utilização dos órgãos da administração pública através de agentes públicos, eleitos
ou nomeados, com intuito de beneficiar uns em detrimento de outros, sendo estes “outros” a
maior parte da população, caracteriza o Clientelismo Político.174 Qualquer utilização da
máquina pública objetivando privilegiar alguém ou certo grupo constitui um vício
administrativo e social que deve ser abolido, haja vista o claro desrespeito aos princípios
administrativos da moralidade e impessoalidade.
171 MODESTO, Paulo. Participação Popular na Administração Pública: mecanismos de operacionalização.
Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 2, abril/maio/junho,
2005. Disponível na internet: <http//:www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 10/02/2014, p. 4. 172 Idem, ibidem, p. 4/5. 173 SIRAQUE, Vanderlei. Controle Social da Função Administrativa do Estado: possibilidades e limites na
Constituição Federal de 1988. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 143 174 ALFRADIQUE, Cláudio Nascimento; SILVA, Gecilda Esteves. A Importância da Participação Popular
como Forma de Controle Social de Obras Públicas e Exercício da Democracia. 2006. Rio de Janeiro, p. 15.
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Os privilégios ofertados não estão vinculados a um patamar social, ou seja, quando se
diz que determinado indivíduo é beneficiado por uma atuação pessoal da administração, não
há uma ascensão social, mas apenas um tratamento que não é dado aos demais membros da
sociedade. Ademais, é notável que o clientelismo apresenta-se muito mais incisivo com
relação àquelas pessoas que se encontram abaixo da linha da pobreza, haja vista que são elas,
e não os membros da “elite”, que mais dependem dos serviços provenientes da máquina
pública.175
A prática do clientelismo político é imoral, uma vez que fere cabalmente o princípio
da moralidade administrativa. Tais condutas demandam, ainda, atuação pessoal por parte dos
agentes públicos, o que deflagra clara afronta ao princípio da impessoalidade. Ambos os
princípios atacados são conquistas trazidas, expressamente, pelo art. 37 da Carta Maior, o que
torna os comportamentos clientelistas claramente inconstitucionais.
Mas o desrespeito do clientelismo político à Carta Maior não se resume ao desdém aos
princípios supracitados, ele vai além. Vejamos atentamente os objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, constantes no art. 3º da CF/88176. In verbis.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação. (grifo nosso)
O clientelismo político manifestamente vai de encontro a um dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, vez que consiste justamente em discriminar
cidadãos, ofertando-lhes benesses injustificadamente.
Para finalizar a lista de violações à Carta Magna, notemos o nítido desatendimento das
práticas clientelistas a um dos artigos mais importantes da Lei Maior, aquele que inaugura o
título responsável por tratar dos direitos e garantias fundamentais, abrindo caminho para o rol
dos direitos e deveres individuais e coletivos. Vejamos:
175 SILVA, Gecilda Esteves. Os Tribunais de Contas e o controle social: a proposta de criação de uma
ouvidoria para o tribunal de contas do Estado do Rio de Janeiro e sua importância no processo
democrático fluminense. 2008. 111 f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Fundação Getulio Vargas,
FGV, Rio de Janeiro. 2008, p. 44. 176 BRASIL, Constituição Federal de 1988. In: SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira.
Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso
em: 17/02/2014.
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Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
(...)
O mal trazido pelo clientelismo entende-se para além da série de violações morais,
legais e constitucionais, sendo responsável direto pelos problemas que envolvem a apatia,
abulia e acracia política. Aqueles que se beneficiam das práticas clientelistas, por receberem
benefícios de ordem pessoal, não se preocupam com o restante da população, já que o deles
está “garantido”. Por outro lado, os que não são privilegiados, ou seja, a maior parte dos
cidadãos, desacreditam na figura dos administradores públicos, preferindo afastar-se da gestão
da vida pública para não se “misturarem à corja”.
Vanderlei Siraque177 sugere uma série de ações a serem tomadas com o intuito de
combater o clientelismo político. Para o autor, o primeiro passo é a descentralização do poder
estatal, fazendo-se necessária a democratização das decisões tomadas pelos administradores,
resultando em uma co-gestão – entre cidadãos e governantes – da máquina pública. Esta
gestão compartilhada seria efetivada através de espaços comunitários, tais como: parques
públicos, escolas públicas, postos de saúde, dentre outros; importando salientar que, para isso,
seria necessária uma conscientização de toda comunidade, resultando na abertura e
aperfeiçoamento de canais de participação nas decisões, como, por exemplo, o já existente
orçamento participativo. Seguindo esta linha, imperioso também se faz a desburocratização da
administração pública com o intuito de que se evite a venda de facilidades, pois, uma vez que
o setor público funcione de modo simples, célere e justo para todos, desnecessário o interesse
na obtenção de benefícios de caráter pessoal. Em continuidade, Siraque elenca a importância
da implantação e aperfeiçoamento de mecanismos de transparência dos atos administrativos e
facilitação da divulgação de informações sobre os serviços públicos existentes e disponíveis e
o modo como a população pode ter acesso aos mesmos. Por último, mas não menos
importante, o autor destaca o papel dos debates entre cidadãos e poder público acerca dos
problemas cotidianos das comunidades, salientando que tais debates devem acontecer de
modo constante e continuado, de modo a não permitir a acumulação e agravamento dos
problemas.
177 SIRAQUE, Vanderlei. Controle Social da Função Administrativa do Estado: Possibilidades e Limites na
Constituição de 1988. São Paulo, Saraiva, 2005, p. 151.
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67
4.1.3 Assistencialismo ou paternalismo
O assistencialismo aqui tratado, aquele maléfico à efetividade da participação popular,
é, em verdade, um conceito reducionista da ideia de ser humano. É tradicionalmente pautado
em diversos meios de criar laços entre governante, aquele que “doa”, e governado, aquele que
recebe a “esmola”.178
A respeito do tema, as opiniões são divididas. Enquanto uma parcela encara o
assistencialismo como uma prática válida como paliativo para os inúmeros problemas sociais
existentes no país, outra, da qual fazemos parte, enxerga esta conduta como sendo maléfica à
democratização da Administração Pública, pois, apesar de, de certo modo servir para retirar, a
exemplo do programa bolsa família, várias famílias da miséria, esta prática só apresenta
resultados favoráveis no curto prazo, acostumando seus destinatários, que ficam acomodados
com a situação.
Para o deputado Vanderlei Siraque179,
O assistencialismo não encara o ser humano como um sujeito de direito e
obrigações, com dignidade, mas como um ser desprezível, que necessita somente
de ajuda e de caridade de forma episódica e não continuada. Fazer assistencialismo
e paternalismo é como dar o peixe, mas nunca ensinar a pescar. É dar a ajuda para o
desencargo de consciência, porém não criar condições objetivas para que o ser
humano possa sair da condição em que se encontra.
Segundo Gecilda Esteves Silva180, o assistencialismo ou paternalismo “acaba por
impedir a promoção da cidadania, a politização e as políticas públicas de combate à pobreza e
à ignorância”. Para a autora, “é preciso criar condições objetivas para que o homem possa sair
da condição em que se encontra, garantidas pela constituição e pela democracia plena”.
Ao invés da implantação de programas assistencialistas, algumas medidas poderiam
ser tomadas e incentivadas pelo governo a fim de garantir resultados de longo prazo e não
apenas “tapa buracos”.
Para Siraque181, o primeiro passo seria a garantia de uma assistência pública bem
delineada, com foco no atendimento àqueles que se encontram abaixo da linha da pobreza.
Outra medida seria a integração de Defensorias Públicas estaduais e municipais, objetivando a
178 VERONEZE, Renato Tadeu. Assistência Social enquanto política pública: na luta da separação do
assistencialismo e da filantropização. P. 196. 179 SIRAQUE, Vanderlei. Controle Social da Função Administrativa do Estado: Possibilidades e Limites na
Constituição de 1988. São Paulo, Saraiva, 2005, p. 162. 180 SILVA, Gecilda Esteves. Os Tribunais de Contas e o controle social: a proposta de criação de uma
ouvidoria para o tribunal de contas do Estado do Rio de Janeiro e sua importância no processo
democrático fluminense. 2008. 111 f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Fundação Getulio Vargas,
FGV, Rio de Janeiro. 2008, p. 44/45. 181 SIRAQUE, Vanderlei. Ibidem, p. 164/168.
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garantia, aos mais necessitados, de acesso ao judiciário e obtenção de informações legais. Em
âmbito local, o estimulo à organização de cooperativas de trabalho e manufatura dos mais
variados produtos. Merece destaque, ainda, a formulação de parcerias entre Poder Público e
setor privado, onde o governo oferecesse vantagens, estimulando a responsabilidade social de
empresas de pequeno e grande porte, cada uma contribuindo na medida de seu potencial.
4.1.4 Falta de educação e cultura participativa
Um dos melhores critérios para se definir o desenvolvimento de um povo, é o nível de
participação de seus cidadãos na conjuntura sociopolítica de seu Estado. Quanto mais
desenvolvido é um país, mais vigoroso é o controle social exercido por seus populares, vez
que há uma preocupação geral em saber, minuciosamente, como está sendo aplicada a verba
pública. Um controle social efetivo, no entanto, depende tanto da atuação do povo como da
vontade da Administração. Deste modo, na hipótese do povo não possuir um bom grau de
instrução, restará impossibilitado de aferir se as ações desenvolvidas por seus governantes
estão em conformidade com aquilo que é de seu desejo, e mais ainda, se a conduta estatal
coaduna-se com as normas aplicáveis à Administração Pública. Ou seja, quanto mais
ignorante for o povo, mais liberdade o mau administrador terá para agir. É por isso que,
segundo Aguiar, Albuquerque e Medeiros182, “era, e em alguns rincões ainda é, comum a
manutenção de parcela da população com baixo grau de instrução, pois, assim, esta parcela
poderia ser utilizada como fácil massa de manobra, a fim de alavancar votos em eleições
futuras”.
No Brasil, é flagrante a falta de educação e cultura política da população. Apesar de
tantos instrumentos disponibilizados, a participação popular ainda encontra-se em níveis
baixíssimo. Para Peruzzo183, trata-se de uma herança que nos persegue desde o período
colonial. Segundo o autor:
Globalmente, há que se levar em conta que essa questão se hospeda dentro da
experiência histórica de um povo. Nas condições do Brasil e de outros países
latino-americanos, onde os povos não têm tradição nesse sentido, aliado isso à
reprodução de valores autoritários, à falta de conscientização política e a outros
fatores, pretender alcançar um grau de participação mais elevado é algo de difícil
concretização. Em nosso caso, desde o período colonial, nos foi obstada ou até
usurpada a possibilidade de avançar nessa prática. Nossas tradições e nossos
costumes apontam mais para o autoritarismo e a delegação de poder do que para o
assumir o controle e a co-responsabilidade na solução dos problemas.
182 AGUIAR, Ubiratan Diniz de; ALBUQUERQUE, Márcio André Santos de; MEDEIROS, Paulo Henrique
Ramos. A administração pública sob a perspectiva do controle externo. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p.
152. 183 PERUZZO, C. M. K. Comunicação nos movimentos populares. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 73.
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No mesmo sentido, registra Gunter Axt184. Vejamos:
O que está dando errado? Para Dahl, o entendimento esclarecido – amplo
conhecimento das regras do jogo pelos cidadãos – é essencial. Séculos de um
sistema educacional precário inviabilizam aqui essa condição. Sem educação de
verdade não qualificaremos o debate público. Democracia, como diz Stephen
Holmes, não é simplesmente governo da maioria, mas é, sobretudo, o governo que
se dá pela discussão pública.
Paulo Modesto185 defende que o problema da participação popular não pode ser
resolvido pela simples inserção de novos instrumentos no aparato normativo participativo.
Para o professor baiano, a ampliação do leque de ferramentas participativas, sem
concomitante amadurecimento político e cultural dos cidadãos, acarretaria efeito meramente
ludibriador de eficácia simbólica:
É ingenuidade supor que o incremento da participação popular na administração
pública possa ser isolado da questão da participação popular nos demais setores do
Estado ou reduzido a uma questão meramente jurídica, relacionada unicamente à
definição de instrumentos normativos de participação. A participação popular é
sobretudo uma questão política, relacionada ao grau de desenvolvimento e
efetivação da democracia. O aparato jurídico é incapaz de induzir a participação
popular; mais ainda, frequentemente cumpre papel inverso, dificultando a
participação, estabelecendo mecanismos de neutralização e acomodação
extremamente sutis.
4.1.5 Dificuldade para acessar as informações públicas
No Brasil, muitas são as dificuldades encontradas para que a população possa ter livre
acesso às informações públicas. Boa parte destas dificuldades está atrelada a uma falta de
cultura cívica que abrange tanto a comunidade quanto os agentes públicos, responsáveis pela
cessão das informações. Difícil de acreditar, mas parcela considerável deles considera as
informações estatais um segredo da Administração Pública.186
O amplo acesso às informações públicas, compreensíveis para todos os cidadãos, é
corolário de uma gestão pública transparente. Assim sendo, configura-se dever dos gestores
públicos, para garantia desta gestão transparente, conferir limpidez aos atos administrativos,
de modo que qualquer cidadão médio tenha capacidade de acompanhar, participar e controlar
184 AXT, Gunter. Democracia no Brasil: um breve histórico. In: Revista Cult, n 137, ano 12, jul/2009.
Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/democracia-no-brasil-um-breve-historico/>. Acesso
em: 10/02/2014, p. 49. 185 MODESTO, Paulo. Participação Popular na Administração Pública: mecanismos de operacionalização.
Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 2, abril/maio/junho,
2005, p. 3. 186 SILVA, Gecilda Esteves. Os Tribunais de Contas e o controle social: a proposta de criação de uma
ouvidoria para o tribunal de contas do Estado do Rio de Janeiro e sua importância no processo
democrático fluminense. 2008. 111 f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Fundação Getulio Vargas,
FGV, Rio de Janeiro. 2008, p. 46.
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suas atividades. Ou seja, a administração não deve ater-se apenas à mera divulgação e
publicação de relatórios técnicos complexos, ininteligíveis a maior parte dos administrados.187
Para Torres, “em grandes linhas, a transparência e a disponibilização da informação no
setor público consagram, entre outros, dois grandes objetivos: atacar o importante problema
da corrupção e propiciar o aperfeiçoamento constante das ações estatais”.188
O aumento da transparência das ações da Administração Pública leva à consequente
ampliação dos mecanismos de controle social, refletindo diretamente sobre a
responsabilização dos governantes, o que inevitavelmente acarreta na diminuição dos índices
de corrupção praticados no setor público.189
O outro objetivo apontado pelo autor é também consequência necessária da circulação
das informações. Quanto maior a transparência, maiores as chances e possibilidades de
implantação e ajuste das políticas públicas de modo mais eficiente e eficaz. Além disso, a
ampliação da difusão de informações permitirá maior interação do cidadão com os
governantes, o que ocasionará um aprimoramento das políticas públicas.190
A Lei de Responsabilidade Fiscal normatiza instrumentos de transparência da gestão
pública fiscal, aos quais deve ser dada ampla divulgação pelo administrador público, que
deverá valer-se de todos os meios possíveis, não se limitando ao uso de diário oficial. A Lei
Complementar nº 101 atesta a necessidade da existência de versões simplificadas destes
instrumentos, possibilitando, desta forma, o acesso de qualquer cidadão à informação. É o que
vemos no art. 48 da referida lei. In verbis.
Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada
ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos,
orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo
parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de
Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.
A participação popular só poderá consolidar-se por meio do acesso do cidadão à
informação. A divulgação das informações públicas possibilita o estabelecimento de relações
mais estreitas entre Estado e sociedade civil. É prerrogativa do cidadão saber o que se passa
187 MOREIRA, Alguimar Serafim; CALDAS, Vivaldo José de Araújo. Controle Social da Administração
Pública e Princípios Administrativos, Dois Mecanismos e Uma Meta: gestão pública transparente, p. 3. 188 TORRES, Marcelo Douglas de Figueiredo. Estado, Democracia e Administração Pública no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 42. 189 Idem, ibidem, p. 42. 190 Idem, ibidem, p. 42.
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na vida pública, não podendo o administrador negar-lhe esse direito, pois “o Estado tem
caráter público pertencendo não ao administrador, mas, ao povo”.191
4.1.6 Corrupção
Corrupção pode ser definida como “um desvio de normas que envolve trocas
clandestinas entre o agente público e um terceiro, o corruptor”192.
As causas desta mazela estatal são inúmeras, dentre as quais, três merecem destaque.
Em primeiro lugar, temos que o ato corrupto nada mais é que um arbítrio pessoal do agente
público que, mensurando as vantagens e possíveis retaliações, opta pela ilegalidade. Para
Becker193, “uma pessoa comete um crime quando a expectativa de recompensa excede os
ganhos que ela obteria usando seu tempo em outras possibilidades de negócio. Muitas pessoas
tornam-se corruptas não porque a motivação delas difira de outras, mas porque suas equações
de custo e benefício diferem”.
Outra motivação para a ação corrupta, desta vez específica de cargos públicos eletivos,
está relacionada ao financiamento eleitoral. Campanhas com valores astronômicos, aliadas à
vontade de permanência no cargo que tanto lhe traz vantagens, levam a alianças entre gestor
público e atores do mercado (com destaque para o mercado clandestino), que lhes garantem
apoio financeiro em troca de privilégios futuros. Nesses casos, “o dinheiro não vai
diretamente para o bolso do político, mas vira uma reserva monetária custeada por capitalistas
amigos para garantir, mais tarde, sua sobrevivência política”194.
Por último, temos uma explicação que supera a questão do custo-benefício envolver
uma única variável, ou seja, valores econômicos. A corrupção leva também em consideração
valores morais, ou melhor, o custo moral de praticar a ação corrupta. Sobre custo moral,
discorre Luiz Alberto Weber195:
A noção de custo moral reflete a ideia de que os indivíduos são capazes de ponderar
a censura da sociedade e avaliar a conveniência de se transgredir ou não as
convenções normas do grupo. Para o indivíduo, o custo moral é tanto mais baixo
quanto mais frágil o círculo moral de reconhecimento que fornece ao personagem
191 MOREIRA, Alguimar Serafim; CALDAS, Vivaldo José de Araújo. Controle social da administração
pública e princípios administrativos, dois mecanismos e uma meta: gestão pública transparente. In: Anais
da Conferência Internacional de Estratégia em Gestão, Educação e Sistemas de Informação (CIEGESI), Vol. 1, No. 1, Goiânia: jun. 2012. Disponível em:
<http://www.prp.ueg.br/revista/index.php/ciegesi/article/view/761/806>. Acesso em: 10/02/2014, p. 6/7. 192 WEBER, Luiz Alberto. Capital social e corrupção política nos municípios brasileiros (o poder do
associativismo). 2006. 109 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Instituto de Ciência Política da Universidade
de Brasília, UNB/DF, Brasília. 2006, p. 31. 193 Apud WEBER, Luiz Alberto, ibidem, p. 31. 194 Idem, ibidem, p. 31. 195 Idem, ibidem, p. 32.
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as regras de respeito à lei. Em síntese, pode-se definir custo moral como o bem
perdido por causa de uma transação ilegal.
Em outras palavras, custo moral justifica a transformação do agente público ético em
corrupto, pois por mais “puro” que seja o indivíduo, se afastado de seu grupo de referência,
com custo moral elevado, e introduzido numa estrutura estatal corrupta, onde o custo moral é
quase inexistente, invariavelmente estará mais suscetível a corromper-se.
Pois bem, uma vez envolvidos em esquemas de corrupção, logicamente, é de interesse
dos maus governantes facilitar ao máximo a continuidade e impunidade de suas atividades
ilegais. Por isso, buscam dificultar, desestimulando e burocratizando, o acesso daqueles que
deveriam ser os maiores fiscalizadores dos atos governamentais: os cidadãos.
Uma das táticas dos maus governantes é a manipulação da população por meio da
implantação de instrumentos participativos maquiados, sem efetividade, mas que aparentam
estar cumprindo seu papel democratizante. Neste mérito, comenta Peruzzo196 que
Manipular a comunidade denota a tentativa de, via de regra, de forma velada,
adequar suas demandas aos interesses de quem detém o poder. Quando isso se torna
difícil, é comum o processo participativo ser interrompido. Nestas circunstâncias, a
participação pode ser uma farsa, usando-se o grupo social como massa de manobra
para angariar popularidade e legitimação política, com vistas a um desempenho
eleitoral favorável.
Clientelismo, assistencialismo ou paternalismo, dificuldades de acesso às informações
públicas e a falta de cultura participativa, são mazelas diretamente ligadas à corrupção
administrativa. Nada mais são que meios financiados e estimulados pelos corruptos, pois é de
seu total interesse manter a população à margem da vida pública, o que lhes garante total
liberdade e certeza de impunidade. A este respeito, perfeitas as palavras de Vanderlei Siraque:
Os clientelistas, despachantes de luxo, do Executivo e do Legislativo não promovem
a cidadania e a politização da comunidade, nem políticas públicas de inclusão social,
não buscam a universalização dos serviços públicos e a participação cidadã nas
decisões da Administração Pública. Na realidade, vivem à custa da pobreza social,
política, espiritual e intelectual da população. Para essas autoridades não interessa a
organização da comunidade. Não interessa a eles a consciência de direitos e as
garantias constitucionais. Interessa a patuleia, clamando por favores a seus pés e
depois agradecendo as migalhas recebidas, pois, assim, curral eleitoral se perpetua
juntamente com as misérias humanas!197
É certo que a corrupção diminui à medida que cresce a economia. Dentre todas as
justificativas desta relação, encontra-se o fato de que, com o aumento da riqueza de um país,
aumenta também o nível educacional e, consequentemente, a instrução da população, que terá
196 PERUZZO, C. M. K. Comunicação nos movimentos populares. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 80. 197 SIRAQUE, Vanderlei. Controle Social da Função Administrativa do Estado: Possibilidades e Limites na
Constituição de 1988. São Paulo, Saraiva, 2005, p. 151.
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maior interesse e possibilidade em identificar e punir a corrupção. Segundo Weber198,
pesquisas e literatura mostram que “uma renda média elevada e alto desenvolvimento humano
estão associados a comunidades com melhor gestão dos recursos públicos”.
É certo que os instrumentos que permitem a participação do cidadão na administração
pública são pouco utilizados e diversas vezes manipulados pelos maus administradores. Deste
modo, de nada adianta possuir uma gama imensa de mecanismos, se seus destinatários não
estão interessados ou preparados para usá-los. É preciso que cada cidadão compreenda seu
papel e o poder de sua atuação, e para isso, é imprescindível que seja desenvolvido um senso
crítico, implementado por um amplo investimento em educação.
Para Paulo Modesto199, os problemas que dificultam a efetividade da participação
popular na administração pública não se resumem à ausência de instrumentos normativos.
Segundo o professor, a real causa pode ser percebida em “dimensões não normativas”:
A ordem jurídica brasileira não é carente de instrumentos normativos para
operacionalização da participação popular na administração pública. Mas a
participação permanece escassa. Falta uma clara percepção de suas dimensões não
normativas e a exploração mais atenta das normas existentes.
Muitas são as soluções indicadas para resolver o problema da corrupção, de suas
variantes, e consequentemente permitirem uma participação popular verdadeiramente efetiva,
mas uma coisa é certa: qualquer que seja a medida tomada, deverá inevitavelmente passar
pela educação da população.
A educação é incontestavelmente a mais vigorosa ferramenta para o enfrentamento do
problema da corrupção e suas variantes. É verdade que um investimento em educação
apresentará resultados apenas no longo prazo, mas só estes serão capazes de possibilitar uma
democracia verdadeira, tal como idealizada pela Carta Maior.
198 WEBER, Luiz Alberto. Capital social e corrupção política nos municípios brasileiros (o poder do
associativismo). 2006. 109 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Instituto de Ciência Política da Universidade
de Brasília, UNB/DF, Brasília. 2006, p. 90. 199 MODESTO, Paulo. Participação Popular na Administração Pública: mecanismos de operacionalização.
Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 2, abril/maio/junho,
2005, p. 8.
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CONCLUSÃO
Diante de tudo que foi exposto ao longo desse trabalho, podemos chegar a algumas
conclusões. A primeira delas é que a noção de participação popular percorreu vasto terreno
até chegar ao que é hoje. Inicialmente com a participação garantida pela democracia direta
dos gregos, passando pelos modelos participativos da democracia representativa da idade
média, até a chegada do ápice participativo com o nascimento da democracia semidireta ou
participativa da modernidade.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 foi verdadeiro divisor de águas no que diz
respeito à garantia dos direitos sociais. A implantação do Estado Democrático de Direito
trouxe diversas inovações à ordem constitucional, destacando-se dentre elas o princípio da
soberania popular, base para a elevação da participação popular à condição de direito
fundamental.
Com o princípio da soberania popular, através do qual o poder é do povo, dele emana
e a ele pertence, vieram os instrumentos responsáveis por garantir o exercício deste poder.
Seja em âmbito constitucional, seja no infraconstitucional, estamos cercados de um aparato
capaz de materializar a soberania do povo, no entanto, não é isso que vemos.
Hoje o Brasil vive uma democracia representativa, mas seria ela participativa como
almejava a constituição de 1988? Cidadania, democracia e participação popular são os pilares
de uma sociedade plena e justa. Porém, as classes populares brasileiras encontram-se nos
níveis mais baixos de participação na gestão publica, pois são poucas as pessoas que utilizam
os meios ofertados pelo ordenamento (audiências públicas, consultas públicas, conselhos
gestores de políticas públicas, orçamento participativo, etc.).
Diversas dificuldades são encontradas por aqueles que tentam participar da condução
da vida pública na condição de meros cidadãos, ou seja, sem possuírem vínculo direto com a
administração, seja por meio de cargo efetivo ou eletivo.
Inadmissível pensar que em pleno século XXI ainda nos deparemos com práticas
clientelistas, oriundas do período do Brasil Colônia, mas essa é uma triste realidade.
Assistencialismo, tráfico de influências, e falta de transparência e informação sobre os atos
administrativos ainda são realidade na administração pública brasileira.
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Tais mazelas dificultam a efetividade da participação administrativa, uma vez que
impedem que a maior parte da população se quer saiba que possui direito a participar; ou
ainda, os que conhecem o direito, não sabem como exercê-lo. Mas não só por isso. A pequena
parcela dos cidadãos que possui conhecimento sobre todos os seus direitos, bem como a
maneira correta de exercê-los, ou situa-se dentre os que recebem privilégios ilegais ou
encontra-se desestimulada e descrente na possibilidade de alguma mudança de panorama.
Certo é que, via de regra, boa parcela da problemática que envolve a inefetividade da
participação popular na administração pública está ligada a um problema dos mais difíceis de
combater: a corrupção.
Portanto, não é por meio da inclusão de novos instrumentos que se conseguirá uma
alteração do cenário participativo brasileiro. O ordenamento jurídico já nos oferece tantas
ferramentas que ainda hoje se encontram inutilizadas ou mal aproveitadas, que a oferta de
novos instrumentos de nada adiantaria, além de dar uma falsa impressão de garantismo.
Embora vivamos num Estado de regime democrático, os cidadãos, em sua maior parte,
nada mais são que súditos da administração, massa de manobra dos maus gestores. Com uma
parcela da população que desconhece os próprios direitos – a maior, diga-se de passagem –
outra que se omite e uma terceira que se beneficia das más práticas, a quem cabe engrenar a
mudança?
É necessário democratizar não apenas o Estado, mas a sociedade. Democracia deve
deixar de ser apenas uma nomenclatura, passando a ser exercida de fato. Requerer
participação popular é requerer a concretização da democracia, é requerer efetivação de um
direito fundamental.
O que o país precisa é de educação, não só aquela que nos ensina a somar e assinar o
próprio nome, mas uma educação participativa. Para isso, é necessário um engajamento entre
sociedade e a parcela de “bons governantes” que ainda nos restam.
Educação e consciência política da sociedade são essenciais para a utilização dos
meios de participação popular disponíveis, esses elementos visam uma participação mais
efetiva e ajudam a compreender melhor a administração. Como dito anteriormente, é
necessário desenvolver a identidade coletiva na sociedade para alcançarmos uma democracia
participativa, diminuindo, assim, a aplicação de modelos de pseudo-participação, criando um
terreno fértil para o desenvolvimento de um país menos desigual.
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