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ÉTICA DA RESPONSABILIDADE COMO PILAR DA CIDADANIA NO
SÉCULO XXI
Josélia Fonseca1
Resumo
O desenfreado desenvolvimento científico e biotecnológico que se verifica ao longo da
segunda metade do século XX e inícios do século XXI tem suscitado numerosas
questões relativamente à preservação da integridade e dignidade da vida humana e à
salvaguarda de toda a espécie de vida futura no planeta Terra.
A preocupação com a existência de Vida, tanto no presente como no futuro, exige a
presença de uma (bio)ética cívica global, que favoreça o desenvolvimento de um agir
eticamente responsável do cidadão do século XXI. Este tem sido classificado como um
ser apático e inerte, pouco preocupado com o futuro da humanidade. Tal situação induz-
nos a refletir sobre o terá conduzido a que numa sociedade democraticamente livre
exista tanta inércia social. Do nosso ponto de vista, consideramos que a afirmação da
liberdade como background da sociedade atual se releva insuficiente para a manutenção
de uma cidadania ativa. Neste sentido, entendemos que é necessário que a ética da
responsabilidade se afirme como princípio estruturante dos cidadãos comprometidos e
empenhados com o desenrolar da vida comunitária, que se pretende global, justa,
solidária. Assim, neste artigo, para além de analisarmos a pertinente exigência da
(bio)ética cívica global, abordamos a necessidade de existir uma ética da
responsabilidade se afirme como princípio estruturante dos cidadãos comprometidos e
empenhados com o desenrolar da vida comunitária, que se pretende global, justa,
solidária. Deste modo, problematizamos e discutimos o conceito de responsabilidade
que se perfila para o século XXI e refletimos sobre o processo educativo que deve estar
implicado na formação para a cidadania ativa e responsável.
Palavras-chave: Educação. Cidadania. Ética da Responsabilidade.
ETHICS OF RESPONSIBILITY AS THE PILLAR OF CITIZENSHIP IN THE
XXIth
CENTURY
Abstract
The unbridled scientific and biotechnological development that has taken place
throughout the second half of the 20th century and the beginning of the 21st century has
raised many questions regarding the preservation of the integrity and dignity of human
life and the safeguarding of all future life on Earth. Concern for the existence of Life,
both now and in the future, requires the presence of a global (bio) civic ethic, which
favors the development of a critical and reflexive moral consciousness that is the
driving force of deliberating and acting ethically responsible of the citizen of the 21st
century. This has been classified as an apathetic and inert being, little concerned with
the future of humanity. Such a situation induces us to reflect on what has led to such a
social inertia in a democratically free society. From our point of view, we consider that
the affirmation of freedom as the background of current society is insufficient for the 1 Prof. Dra. Josélia Mafalda Ribeiro Fonseca, é professora auxiliar no Departamento de Ciências da
Educação na Universidade dos Açores em Portugal. E-mail: [email protected].
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maintenance of an active citizenship. In this sense, we understand that it is necessary
that the ethics of responsibility be affirmed as a structuring principle of citizens
committed and committed to the development of community life, which is intended to
be global, fair and supportive.Therefore, in this article, in addition to analyzing the
pertinent requirement of global (bio) civic ethics, we address the need for an ethics of
responsibility to be affirmed as a structuring principle of citizens committed and
committed to the development of community life, which is intended globally , Fair,
solidary. In this way, we discuss and discuss the concept of responsibility that is
emerging for the 21st century and reflect on the educational process that must be
involved in training for active and responsible citizenship.
Keywords: Education. Citizenship. Ethics of Responsibility
A necessidade de uma (bio)ética cívica global
A evolução cientifica, tecnológica e as consequentes alterações sociais, vinculadas
à necessidade de um diálogo universal consciente e responsável, que seja
simultaneamente equilibrador de um desmesurado poder de forças, tornou premente o
surgimento de uma (bio)ética global. Esta deverá ser entendida como um ethos comum,
[...] um conjunto de princípios, valores, crenças, ideais, e utopias
partilhados por toda a Humanidade ou à volta dos quais fosse
possível estabelecer um consenso vinculador e vinculativo de
forma a garantir não só a paz entre os homens mas também uma
resposta eficaz. (Patrão-Neves e Osswald, 2014, p. 303-4).
Na verdade, esta ética global assume-se como fiel da balança de uma sociedade
pautada pelo pluralismo axiológico, impulsionador, em certo sentido, do niilismo e em
que o relativismo moral e de valores se torna apanágio da comunidade do “homem
light” (Rojas, 1994), mais preocupado com o hedonismo individual do que com a
unidade e o bem comunitários.
Neste contexto de vazio de valores, que Patrão-Neves e Walter Osswald (2014, p.
312) designam de “descrédito generalizado nos valores tradicionais [e] ausência de um
fundamento, universal da moral”, a ética global que é exigida para o século XXI
imprime ao conceito de bioética um novo sentido, o de uma ética cívica. Na realidade, o
conceito de bioética do século XXI não se reporta apenas às questões ecológicas e
médicas, como se verificou no século XX, mas assume uma conotação social, que
evidencia a preocupação no estabelecimento de consensos alargados, consubstanciados
num forte sentimento de pertença que é motivador de um processo de participação e
deliberação ativo e responsável.
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Enquanto ética cívica, a bioética procura, no contexto das sociedades
axiologicamente plurais, ser legitimadora da ação e do processo deliberativo de todos os
cidadãos, em busca do que é consensual para o bem comum. Na verdade, a bioética,
como ética cívica,
[…] pode ser primeiramente entendida como uma moral
comum. Isto é, uma experiência moral partilhada de uma
comunidade implícita na vivência quotidiana dos seus membros
de uma mesma comunidade. Neste sentido, trata-se de uma
moral substancial, ou seja, que exprime uma concepção de bem;
tratar-se ia de uma ética dos máximos […] que exorta o ideal de
acção. (Patrão-Neves e Osswald, 2014, p. 314-15)
A ética dos máximos a que se refere Patrão-Neves e Walter Osswald situa-se na
mesma linha da concebida por Adela Cortina (1989, 2001) como os princípios ideais de
ação que visam com bem supremo, o convite à Felicidade. A ética dos máximos
reporta-se a “propostas de vida feliz” (Cortina, 2001, p. 140), neste sentido podemos
afirmar que se refere a uma dimensão mais formal e subjetiva da ética, na medida em
que os graus de felicidade são diferentes de pessoa para pessoa, de sociedade para
sociedade. Segundo Adela Cortina (2000, p.139), a felicidade é um conceito vazio, fruto
da imaginação, “todos os homens aspiram a felicidade mas não a entendem de igual
modo, nem leigos nem sábios, nem jovens nem adultos, nem as distintas sociedades
entre si.”
A ética dos máximos não é a que melhor se coaduna com as exigências e com as
necessidades da sociedade global tecnológica e axiologicamente descrente do novo
milénio, na medida em que a reflexão e a resposta do cidadão aos problemas e desafios
do mundo atual exige uma tomada de consciência e uma ação eticamente esclarecida,
que se consubstancie em princípios estruturantes e essenciais à vida e à dignidade
humana no planeta Terra. Isto é, o contexto tecnológico e sociocultural do século XXI
exige a presença de uma (bio)ética cívica, que deve assentar no que Adela Cortina
(1989, 2001) designa ética dos mínimos, nos princípios indispensáveis à salvaguarda do
bem de todos, como sejam os mínimos de igualdades, de justiça para que todos sejam
tratados com dignidade.
Esta ética cívica consiste, na verdade numa ética procedimental, em que se
procura estabelecer o que pode ser consensualmente aceite e legitimado por todos como
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práticas sociais viáveis, não lesáveis da integridade humana nem da vida, no sentido
mais lato do termo.
A ética procedimental a que nos reportamos deve ser entendida na linha do que
Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel concebem a ética do discurso e a ética da
responsabilidade respetivamente, como um processo dialógico de ação que aspira e
realiza o bem.
A ética do discurso e da responsabilidade de Habermas e Apel consistem numa
interpretação intersubjetiva do imperativo categórico kantiano, visam desencarcerar este
imperativo do carácter monológico a que lhe estava conferido e imprimi-lhe uma
dimensão construtiva e coparticipada. Ao homem não basta agir tendo em vista a
“pessoa como fim em si mesmo”, é também necessário que tome medidas e decisões
que garantam esta premissa. Isto é, não é suficiente que exista uma regra formal que
oriente a ação humana em prol do consenso e do bem comum, é necessário que existam
mecanismos que façam vigorar essa regra e que ela seja uma realidade concreta e
aplicável.
É neste sentido que caminha a ética do discurso de Habermas e Apel,
[...] na ética do discurso, o método de argumentação moral
substitui o imperativo categórico. É ela que formula o principio
«D»: as únicas normas que têm direito a reclamar validade são
aquelas que podem obter anuência de todos os participantes
envolvidos num discurso prático. O imperativo categórico desce
ao mesmo tempo na escala transformando-se num princípio de
universalização «U», […] nos casos das normas em vigor, os
resultados e as consequências secundárias, provavelmente
decorrentes do cumprimento geral dessas mesmas normas e a
favor dos interesses de cada um, terão de poder ser aceites
voluntariamente por todos. (Habermas, 1999, p.16).
Deste modo, concordamos com Adela Cortina (2002) quando afirma que a
“Teoria dos Discurso habermasiana coloca em funcionamento a fórmula kantiana do
contrato social”, pois, na verdade, o que se verifica com a ética do discurso é a
materialização do imperativo categórico kantiano, é a busca de um entendimento ético
(Habermas, 2007) sob a égide da justiça, da igualdade e da solidariedade.
O consenso moral e o ethos que consubstanciam o processo deliberativo apoiado
na ética do discurso parte do pressuposto de que todas as pessoas têm os mesmos
direitos, devem ser igualmente respeitadas e que é correto (justo) que o consenso
normativo ocorra nestas condições.
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Não obstante reconhecermos a importância dos princípios da igualdade, da
solidariedade e da justiça no estabelecimento de consensos morais e no
desenvolvimento de uma ética cívica, entendemos que estes não são suficientes para a
promoção da participação ativa dos membros de uma determinada comunidade.
A igualdade, a solidariedade e a justiça são fundamentais para legitimar a
racionalidade ética das normas morais da sociedade e a colaboração dos seus membros
na sua construção, mas não são garante da participação efetiva dos cidadãos nesse
processo construtivo.
Em nenhum outro período histórico se falou tanto de passividade dos cidadãos.
Uma passividade insólita num momento e num contexto social, político, axiológico
conturbado, pluralista, desafiante, que convidam o cidadão a intervir e a responder aos
desafios da sociedade tecnológica global.
Esta situação denuncia que os princípios de igualdade, solidariedade e justiça já
outorgados pela carta dos direitos do homem e do cidadão, do século XVIII, e
consolidados no século XX pela Declaração dos Direitos do Homem (1948) não são
plenamente reconhecidos pelos cidadãos do século XXI. Como referimos num trabalho
anterior (Fonseca, 2011), estes demitem-se de participar na resolução dos problemas da
sua sociedade porque se sentem confortavelmente protegidos pelo Estado de Bem-estar
Social, menosprezando o sentido de pertença comunitária e as exigências que este
sentimento acarreta.
Assim sendo, e sem negligenciar a importância que os princípios da autonomia, da
igualdade, da justiça e da solidariedade desempenham para a unidade e bem social,
entendemos que no contexto pluralista e desafiante da sociedade global é importante
eleger um novo pilar axiológico que, associado aos anteriores (autonomia, igualdade,
solidariedade e justiça), promova a tomada de consciência do cidadão como membro da
sociedade e como ser interveniente e ativo, trata-se do princípio ético da
responsabilidade.
Que responsabilidade para a sociedade do século XXI?
A eleição da ética da responsabilidade como princípio estruturante da sociedade
exigente e global deste milénio sugere-nos a reflexão e o esclarecimento concetual do
que se preconiza ser o sentido desta responsabilidade.
Como é comumente conhecido, o conceito de responsabilidade surge
primeiramente no domínio jurídico, assumindo o sentido de punição e de reparação. O
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homem, enquanto ser de ação, deve ser imputado pelos atos que realiza e em caso de
causador de dor ou dano tem a obrigação de reparar erro cometido, beneficiando a
vítima do malefício.
Embora reconheçamos a importância da dimensão jurídica para a clarificação do
conceito de responsabilidade, dada a natureza ético-moral deste trabalho, não lhe
dedicaremos minuciosa atenção, centraremos a nossa análise reflexiva na aceção ética
do termo e na sua evolução histórico-filosófica, com o intuito de compreender qual a
conceção de responsabilidade que melhor se coaduna às exigências da sociedade do
novo milénio.
No nosso entender, e influenciadas pela filosofia de Hans Jonas (1995) na obra Le
principe responsabilité. Une éthique pour la civilisation technologique, o conceito de
responsabilidade das tradicionais éticas teleológicas (Aristóteles) e deontológica (Kant e
os que prosseguiram na mesma linha conceptual a ética do discurso de Apel e
Habermas) não é suficiente para fazer frente ao desenfreado progresso científico e
tecnológico da sociedade do século XXI e às consequências ameaçadoras deste. De
acordo com Jonas (1995, p. 13) “a nova terra da prática coletiva, na qual nós entramos
com a tecnologia de ponta, é ainda uma terra virgem de teoria ética.”
Na perspetiva das éticas teleológicas, de inspiração aristotélica, a responsabilidade
reporta-se ao sentido de imputação. Aristóteles, em Ética a Nicómaco, entende a
responsabilidade sob o ponto de vista de causa-efeito, o homem é a causa das suas ações
e daí deriva a sua responsabilidade.
Para as éticas deontológicas, a responsabilidade (imputabilidade) assume uma
dimensão moral, ela é correlato da liberdade e, na filosofia kantiana, liberdade e
imputabilidade “coincidem na instauração da obrigatoriedade de agir de acordo com a
lei.” (Patrão-Neves, 2001, p.853)
Segundo Habermas (2007, p. 174), “a ética discursiva justifica o conteúdo de uma
moral do igual respeito e da responsabilidade solidária para com todos.” No âmbito da
ética do discurso, a responsabilidade é concebida sob o ponto de vista da solidariedade e
perspetivada como mote de uma ação e de construção da lei moral e política que visa o
estabelecimento da reciprocidade do dever na resolução do problema existente.
[…] quem pisar o solo do discurso com uma questão séria não
supõe apenas automaticamente a igualdade de direitos de todos
os virtuais parceiros «de discurso, mas também algo assim como
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uma solidariedade da responsabilidade na solução do
problema. (Apel, 2007, p. 324)
Embora distintas, as éticas tradicionais (teleológicas e deontológicas) defendem
uma noção de responsabilidade antropocêntrica, centrada nas relações de reciprocidade
intersubjetiva, tanto a nível individual como a nível coletivo, temporal e espacialmente
voltada para ações passadas e nem a humanidade nem o planeta podem estar sujeitos às
consequências da ação, sobretudo num contexto do poder desenfreado da ciência e da
tecnologia da sociedade vigente.
O mundo tecnológico contemporâneo caracteriza-se pelo triunfo do homo faber
sobre o homo sapiens, (Jonas, 1995), do homem sedento de sucesso e de poder sobre o
homem eticamente consciente e esclarecido, a sociedade atual está sobre a hegemonia
do homem que relega para segundo plano as preocupações com a sobrevivência da
humanidade, em prol do crescente prestígio e do poder. O homem tornou-se um “[…]
Prometeu desagrilhoado a quem a ciência nunca atribuiu poderes conhecidos e a
economia dá o infatigável impulso” (Jonas, 1995, p. 13). Este “Prometeu
desagrilhoado” contemporâneo mais do que roubar o fogo e desafiar os deuses, coloca,
com o seu ilimitado poder tecnológico, em risco a natureza, a preservação da vida e a
sobrevivência da humanidade.
É neste contexto que se revela pertinente a emergência da ética da
responsabilidade jonassiana, uma ética prospetiva, que visa o “[…] refreamento
voluntário do seu poder impeça o ser humano de cair em desgraça […]” (Jonas, 1995,
p.13).
A responsabilidade que se refere Jonas não se reporta apenas ao passado e ao
presente da ação humana, o filósofo defende uma responsabilidade não recíproca
voltada para o futuro preocupada com os mais vulneráveis e com as gerações vindouras.
É neste sentido que Jonas elabora o seu imperativo ético, “Age de tal forma que os
efeitos da tua acção sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente
humana sobre a terra” (Jonas, 1995, p. 30). Ou ainda na forma de expressão negativa
deste imperativo, “Não comprometas as condições da sobrevivência indefinida da
humanidade sobre a terra; inclui na tua escolha actual a integridade futura do homem
como objecto secundário do teu querer.” (Jonas, 1995, p. 30-31).
Na verdade, o que Jonas pretende garantir com o seu imperativo é “que a
humanidade seja” (Jonas, 1995, p. 30). E o homem tem não apenas o dever, como se
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verificava na filosofia kantiana, mas, acima de tudo, o poder de responder perante a
vulnerabilidade dos mais fracos e dos perecíveis no presente, cuidando para que as
gerações vindouras possam ser. Ao contrário do que se verifica na ética kantiana, a
responsabilidade não é um correlato da liberdade, ela é o princípio estruturante do
princípio da vida no planeta e de uma vida com garantia de dignidade.
O princípio de responsabilidade voltada para o futuro a que se refere Jonas tem
um fundamento, não ético nem político, ontológico. Esta dimensão ontológica
manifesta-se na preocupação da manutenção e da existência da vida em si e no dever
do homem em responder à permanente necessidade de atualizar a sua potência de ser e
de garantir que os outros também o sejam.
Como refere Jonas (1998, p.81),
A responsabilidade terá a ver agora e sempre com o Ser,
entendido não só no sentido passivo, como objecto
transformável do meu agir, mas também no sentido activo, como
o sujeito permanente de um apelo que me arrebata de um dever.
A ética da responsabilidade jonassiana ao fundamentar-se num substrato
ontológico distingue-se do imperativo categórico de kantiano, que Jonas define como
meramente lógico e formal, pois, a filosofia deste último filósofo pretende uma ética
universal, mas “não para que todos os homens ajam e pensam da mesma maneira mas
porque assim defende a vida e a dignidade humana.” (Fernandes, 2004, p. 32)
A responsabilidade de Jonas também se distingue da ética solidária postulada pela
ética do discurso de Habermas e Apel. Estes também perspetivam uma ética da
responsabilidade voltada para o futuro, preocupada com a sobrevivência da
humanidade. “Afirma Apel (2007, p. 151) que a “fundamentação final da ética do
discurso contém […] uma fundamentação racional do postulado de Hans Jonas, que
também no futuro haverá uma humanidade.”
No entanto, esta conceção de responsabilidade da ética do discurso tem uma
dimensão procedimental, visa a constituição de normas e regras consensuais de ação
que garantam a vida presente e futura da humanidade. O discurso argumentativo é um
[…] meio indispensável para a fundamentação de normas
consensuais da moral e do direito […]. Pois o […] o [que] se
trata é de assumir a responsabilidade solidária pelas
consequências e subconsequências à escala mundial das
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actividades colectivas dos homens […] e de organizar a
responsabilidade como praxis colectiva (Apel, 1995, p. 148).
Não obstante entendermos que a responsabilidade é um princípio essencial e
estruturante de toda e qualquer sociedade e que, por isso mesmo, deve ser fundamento
das leis morais que visam consensualmente o bem de todos, consideramos também que
toda e qualquer pessoa deve ser co naturalmente interpelada pelo sentimento da
responsabilidade e deve ter consciência deste apelo que a leva a responder ao seu
desafio de ser e ao desafio do Bem ser, no sentido de criar condições para que a
humanidade seja.
A responsabilidade não deve ser algo artificial que é imposto extrinsecamente aos
sujeitos de ação. Se assim o for, poderá não estar salvaguardado o Bem em si, sobretudo
num período em se assiste ao desenfreado poder tecnológico que constrange a vida
humana à destruição.
Mais do que uma responsabilidade artificial, é necessário uma responsabilidade
ontológica, o que Jonas designa de substancial, uma responsabilidade que atende ao
Bem enquanto Bem, que fala à consciência de pessoa e que a leva agir com os outros
em prol do bem comum.
Não é a obrigação que é objecto [da moral]; não é a lei moral
que motiva o agir moral, mas o apelo do bem em si possível no
mundo que dirige face ao meu querer e que exige ser escutado
em conformidade à lei moral. Escutar este apelo é o que ordena
a lei moral (Jonas, 1995, p. 123).
Na realidade, acreditamos que só esta responsabilidade substancial que é
conatural à existência humana e que, por isso mesmo se assemelha à responsabilidade
parental, do dever global e infinito do pai sobre o filho instituído desde o nacimento
deste, pode impulsionar o homem do século XXI a responder perante os desafios da
sociedade, a ser um cidadão ativo.
Não obstante reconhecermos a pertinência desta ética da responsabilidade para o
desenvolvimento do cidadão ativo deste milénio, que se pretende que seja interventivo,
também entendemos que não podemos correr o risco de deixar o futuro da humanidade
sob a égide da responsabilidade substancial, pois o homem pode demitir-se sua
responsabilidade global, conatural. A esta responsabilidade substancial deverá juntar-se
a responsabilidade solidária que está associada à ética do discurso, no sentido em que é
importante que cada ser humano tenha consciência da sua responsabilidade e aja
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naturalmente fazendo uso dela, assim como é importante que existam normas e leis, que
consensual, garantam com justiça a prática dessa responsabilidade.
Neste sentido, revela-se muito importante o desenvolvimento de um processo
educativo que promova o desenvolvimento da personalidade humana no
reconhecimento da sua responsabilidade, como elemento integrante desse
desenvolvimento; e não apenas que apresente o conjunto de leis morais e coaja os
cidadãos a obedecê-lo, sem compreender o real sentido da sua existência. A força
motriz que leva à ação humana deve ser uma responsabilidade intrínseca e imanente,
que deve ser desvelada no percurso da existência, e não uma responsabilidade que é
imposta extrinsecamente pela coação da lei.
Como educar para a cidadania ativa e responsável?
A eleição da ética da responsabilidade como princípio impulsionador de uma
cidadania ativa para o século XXI parece ser duplamente redundante. Desde a sua
origem, Grécia do século V a.C., que sempre esteve associado ao conceito de cidadania
a conotação de participação, pro-atividade. O cidadão grego era o ateniense que
participava na vida da pólis (cidade-estado). Para além disso, e ainda que segundo
outros contornos, assumindo o sentido de imputação e causa-efeito da ação, o conceito
de responsabilidade também sempre esteve associado ao processo deliberativo do
cidadão da polis. O homem é o aitios dos seus atos e, enquanto causa dos seus atos, ele
tinha a obrigação de os assumir e de responder por eles.
O que é facto é que a expressão “cidadania ativa” tornou-se recorrente neste novo
milénio. Adela Cortina (1999), na obra Los Cuidadanos como Protagonistas,
caracteriza o cidadão dos finais do século XX e inícios do século XXI como passivo e
acrítico, um ser “ dependente […] apático e medíocre, alheio a todo o pensamento de
livre iniciativa, responsabilidade ou empresa criadora.” (Cortina, 1999, p. 28)
A referência à passividade dos cidadãos e o reconhecimento da necessidade de um
maior nível de responsabilidade que estimule a sua pro-atividade não se restringe ao
contexto político e social. No âmbito educativo, tanto nacional como
internacionalmente, tem sido recorrente a bibliografia específica deste domínio
mencionar a pertinência em promover a formação do cidadão como membro ativo e
responsável da sua comunidade.
Em Portugal, o Conselho Nacional de Educação publica, em 2004, o Relatório do
Saberes Básicos do Cidadão do Século XXI, no qual indica a cidadania ativa como um
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desses cinco saberes, enfatizando a dimensão axiológica, nomeadamente a ética da
responsabilidade, com um dos pilares essenciais dessa cidadania.
Segundo este relatório a “cidadania ativa” deve ser preconizada como:
[…] agir responsavelmente sob o ponto de vista pessoal e social
no quadro das sociedades modernas que se querem abertas e
democráticas […]. Aqui se privilegia a vertente axiológica, de
forma a agir no quadro de uma ética da responsabilidade,
solidariedade e tolerância. Saber lidar adequadamente com
diferenças culturais e de géneros passa por aqui, bem como a
sensibilização para a importante vertente do desenvolvimento
sustentável, envolvendo […] a harmoniosa relação
homem/natureza. Trata-se de desafiar o actual sentido da
globalização […] que deve também incorporar a globalização,
da liberdade, da justiça e da solidariedade (Cachapuz, Sá-
Chaves & Paixão, 2004, p. 29).
Na verdade, o que o Conselho Nacional de Educação defende com a educação
para a cidadania ativa é um processo educacional que promova a aquisição de
conhecimentos, o desenvolvimento de competências e valores, que favoreçam a
formação de uma consciência reflexiva e ética dos alunos, no sentido de os preparar
para viverem democraticamente, sabendo conviver com a globalidade e com a
diferença, sendo membros comunitários interventivos, solidários e responsáveis capazes
de resolver conscientemente problemas e de ter preocupações ambientais.
A manifestação explícita e veemente da formação para a cidadania ativa induz-
nos a questionar sobre o que deve ser feito no processo educativo para que esta
exigência se cumpra?
Ainda que assumindo diferentes contornos, a educação teve desde sempre uma
dimensão antropológica e ética, visava a formação do homem tendo em vista a sua
inserção social.
Esta dimensão antropológica e ética enfatiza-se na segunda metade do século XX,
depois dos horrores cometidos contra a humanidade no holocausto e da afirmação da
democracia por toda a Europa Ocidental. Verifica-se que há um investimento na
educação como meio que promove o desenvolvimento pessoal e social do homem,
como um ser livre e digno.
O 26º artigo da Declaração dos Direitos Humanos (1948), consagra a educação
como um direito universal do Homem definindo que esta deve ter como finalidade “[…]
a plena expansão da personalidade humana e o reforço dos direitos do homem e das
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liberdades fundamentais.” Em 1976, a assinatura do Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos reforça a dimensão de participação consciente e responsável
dos cidadãos que está associada à educação, quando, altera o artigo 26º supracitado, e
acrescenta como finalidades educacionais o sentido da dignidade e a preparação do
Homem para agir na sociedade livre.
A preparação do homem para agir e deliberar em contexto comunitário livre exige
que o processo educativo se centra na formação do Homem como Pessoa, no sentido
ético do termo, entendida como a unicidade dinâmica do eu singular e do eu
comunitário. Isto é, como uma identidade que se constrói na interação dialética entre o
ser único e irrepetível que é cada ser humano e a sua dimensão social, o saber ser e
viver com os outros.
A construção deste processo identitário pressupõe a existência de um quadro
axiológico que permita a cada Homem olhar para a sua singularidade, a responder
conscientemente ao apelo ser, zelando pela sua integridade e dignidade, e a olhar para o
outro como igual a si mesmo, reconhecendo idênticos direitos e respondendo perante a
sua solicitude e sua a vulnerabilidade.
Na verdade, ser pessoa é ser cidadão. Como refere Ferreira Patrício, numa
entrevista publicada por Luís Sebastião e Maria Teresa Santos (2006, p. 1999), que “Ser
pessoa é ser com-pessoa ou pessoa-com, em que o “com” assinala a presença, a
necessidade, apelo do outro e orientação para o outro. A pessoa autêntica e plena é pois
[…] portadora da dimensão da cidadania”.
A educação enquanto processo que visa o pleno e global desenvolvimento da
personalidade humana tem, indubitavelmente, o dever de preparar o Homem para
exercer a sua cidadania.
O exercício da cidadania que, no nosso entender, exige, para além da autonomia
pessoal, um conatural sentido de pertença que exorta uma ética da responsabilidade no
sentido que falamos anteriormente.
O desenvolvimento desta ética da responsabilidade no processo educativo implica,
segundo o nosso ponto de vista, alterações estruturais no domínio educacional: o
entendimento consensual dos professores sobre o que consiste educar, reconhecendo-o
como um processo que visa a formação da Pessoa na sua dimensão singular e
comunitária e que, em função disso, não se pode restringir a uma prática instrutiva; a
criação de condições que promovam o desenvolvimento de uma práxis docente crítica e
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reflexiva, em que o professor, pela análise contextualizada da sua situação educativa, se
sinta coresponsabilizado pela formação dos seus alunos e responda às suas necessidades
no domínio da atual sociedade global e tecnológica; o desenvolvimento da consciência
reflexiva do professor sobre as suas práticas educativas permitirá também que ele
concebe o currículo como um conjunto de princípios norteadores da sua ação educativa,
que podem e devem ser adequados às necessidades do seu contexto educacional, isto é,
possibilitar-lhe-á criar situações e condições educativas facilitadoras de um processo de
construção ativa do conhecimento por parte dos alunos, que envolve o desenvolvimento
de uma consciência moral progressivamente mais autónoma na resolução dos
problemas.
Na realidade, entendemos que a ética da responsabilidade que se assinala como
elemento estruturante no desenvolvimento da cidadania da sociedade global,
tecnológica e axiologicamente plural do século XXI, perspetiva o desenvolvimento de
uma escola cidadã, em que todos os membros da comunidade educativa são
corresponsabilizados pelo processo educacional e interpelados a criarem situações
facilitadores da apropriação ativa do saber e do desenvolvimento da racionalidade
crítica, (Perrenoud, 2002), dos professores e dos alunos.
O desenvolvimento desta escola cidadã implica que os professores devem
conceber a cidadania como conatural e intrínseca ao desenvolvimento humano. Assim
sendo, a cidadania não deve ser imposta de fora aos alunos, como um conjunto
estruturado de normas e regras que ele tem que saber e cumprir acriticamente, sem
compreender o seu sentido, sem as discutir e sem as refletir. Isto é, sem a formação de
uma consciência ética e axiológica, facilitadora do desenvolvimento nos alunos de um
sentido de pertença social e impulsionadora do reconhecimento da responsabilidade
substancial, que mencionamos anteriormente, em que cada um se sente impelido a
responder perante o apelo e a vulnerabilidade do outro. Os professores têm a
responsabilidade de criar condições educativas em que os alunos sejam levados à
constituição de uma racionalidade crítica e de um desenvolvimento moral que
transcenda o que Kohlberg designa de estádio convencional.
Trilhando conclusões para uma ética da responsabilidade cívica…
A afirmação da ética da responsabilidade como pilar estruturante da cidadania do
século XXI ocorre numa conjuntura sociocultural complexa, na qual entendemos que
ser livre não é condição suficiente para a participação ativa do cidadão.
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O cidadão atual, confortavelmente instalado no Estado de Bem-estar Social e
inebriado pela sede de poder, revela-se do ponto de vista social e ético um ser passivo e
apático. No nosso entender, esta apatia deve-se ao facto de não compreender a cidadania
como algo intrínseco ao seu desenvolvimento enquanto Pessoa.
A Pessoa, enquanto categoria ética, constrói-se ao longo do percurso existencial
do ser humano na resposta ao apelo de ser e na relação intersubjetiva, na qual também é
responsável pelo que o Outro seja.
É neste sentido que se perspectiva a ética da responsabilidade, como resposta de
cada eu à interpelação de ser com e pelos outros, tanto no presente como
prospectivamente, criando condições para que futuramente haja vida saudável na Terra
e a humanidade seja (Jonas, 1995)
Cada ser humano tem de aprender a “escutar” a voz da responsabilidade, que lhe é
intrínseca e conatural à sua existência e que lhe permitirá prosseguir com a sua
progressiva realização em comunidade.
Cabe à educação, enquanto processo que promove o desenvolvimento da
personalidade como identidade que se constrói na unicidade dinâmica do eu singular e
do eu comunitário, favorecer o desenvolvimento desta responsabilidade substancial.
Para a concretização desta finalidade, o processo educativo deve potenciar uma
formação em que a cidadania não seja compreendia como uma realidade que é
extrínseca à Pessoa, mas como algo que é constitutivo do seu ser; e em que a
responsabilidade não seja perspetivada apenas como imputação, mas como motor da
atividade de um ser que deve responder às solicitações da sociedade a que ele pertence e
que reconhece pertencer.
Para que tal ocorra é necessário que se conceba a educação como um processo que
transcende a instrução e a imposição de normas e regras sociais e visa, pela apropriação
ativa de conhecimentos, o desenvolvimento de uma consciência moral e cívica
progressivamente autónoma, crítica, reflexiva e motivadora da ação.
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