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O Instituto de Ciências Sociais (ICS) é uma escola da Universidade de Lisboae um Laboratório Associado do Sistema Científico Nacional dedicado à
investigação, aos estudos pós-graduados e à divulgação de ciência nas áreasde Antropologia, Ciência Política, Economia, Geografia, História, PsicologiaSocial e Sociologia (www.ics.ulisboa.pt). Durante um ano, todos os domingos,investigadoras e investigadores com diferentes formações, idades e
percursos académicos partilham o seu trabalho com os leitores do P
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Pandemias enacionalismoontem e hojeCiências Sociais em Público (V) AnáliseA dimensão nacional atravessa o discursodos políticos, os apelos à população, osanúncios de publicidade. As intersecçõesentre pandemia e nacionalismo não podiamser mais claras
Por Tose Manuel Sobral
1"Grazie caro Macron, cara
signora Merkel..." , obrigadocaro Macron, cara senhora
Merkel, assim começa um vídeo
divulgado quando a Itália
começava a sentir os efeitosdramáticos da pandemia atual.9 Num tom irónico,
agradecia-se-lhes terem abandonado os
italianos, referindo-se a notícias que davamconta de que a França e a Alemanha nãotinham querido vender a Itália máscaras e
outro equipamento para enfrentar o vírus.Em seguida, depois de reiterar a sua
condição de italianos, referindo-seretoricamente aos lugares-comuns habituais
pejorativos de que seriam alvo como os de
palhaços ou mafiosos, reivindicava para eles
a autoria de uma gama ampla de feitos em
que seriam pioneiros, da banca à arte e à
ciência. Nesta representação, os italianosnão são os meros cidadãos do Estadonacional fundado na segunda metade doséculo XIX, mas um povo milenar a quem se
deve o Império Romano, a primeira entidadea unificar uma boa parte da Europa. Quaseao mesmo tempo, os noticiários transmitiamas declarações do ministro das Finançasholandês, que exprimia a sua recusa a umamutualização da dívida, entendendo que se
devia investigar as razões pelas quais certos
países não dispunham de reservasfinanceiras para fazer face à conjunturaatual.
Estas declarações trouxeram à memória osucedido na crise anterior, em que um outroministro das Finanças holandês havia
expressado as suas reticências quanto ao
auxílio a prestar aos países do Sul,endividados, em sua opinião, por gastaremde mais em "álcool" e "mulheres". Este tipode estereótipos está associado a
representações antigas dos povos do Norte e
do Sul da Europa, denegridoras dos últimos.
Nelas, as diferenças entre eles são umasvezes explicadas pela influência do clima -os do Norte seriam mais frios e racionais, os
do Sul mais quentes e passionais - outras
pela da religião - os católicos sofreriam osefeitos da Inquisição, que teria coartado odesenvolvimento da instrução e da ciência -ou ainda por fatores raciais, explicaçãopopular no século XIX e durante boa partedo seguinte, enquanto o racismo teve amplaaceitação. Os povos do Norte seriam de raçamais pura, superior, as populações do Sul
sofriam os efeitos perniciosos da sua
condição racial menos pura, inferior, poisestariam contaminadas por sangue semitaou africano. Os estereótipos deste teor são
importantes, pois são parte do nacionalismo
popular ou banal, o nacionalismo damaioria.
2. A pandemia de covid-19 não é umacontecimento sem precedentes. Temhavido outras, uma das quaisparticularmente devastadora, a gripeespanhola de 1918-19, conhecida em Portugalcomo "gripe pneumónica", cuja recordaçãofoi agora avivada com este surto pandémico.Dá-se o caso de, no decurso da minha vidade investigador, me ter dedicado ao estudodo nacionalismo e desta pandemia
específica.Estima-se que possa ter sido uma das mais
mortíferas, se não mesmo a mais mortífera,que a humanidade conheceu. As estimativasdas suas vítimas variam muito. Há quem faleem trinta milhões, quem sugira cinquenta,quem diga que foram entre cinquenta oucem e mesmo quem refira um númerosuperior. Essa incerteza também existe parao caso português, apontando-serecentemente para um quantitativo bem
superior aos 100 mil mortos, numa alturaem que o país tinha cerca de seis milhões dehabitantes! É fácil imaginar o que terá sido a
experiência traumática dos que lhesobreviveram. Todavia, a pandemia acabou
por ser esquecida na esfera pública.A razão principal que conduziu ao seu
esquecimento dever-se-á ao fato de elaocorrer no decurso da Grande Guerra econcorrer com esta na recordação. A guerralegou-nos muitas descrições literárias,narrativas e imagens, o que não ocorreu, em
proporção comparável, com a pandemia.Mas a memória da guerra perdurou,sobretudo, porque existiu um conjuntogrande de atores que a mantiveram viva nalembrança coletiva, dos antigos combatentesaos Estados em conflito. Cemitérios e
monumentos aos combatentes
espalharam-se pelos campos de batalha e
pelos países de que eram naturais. Em
Portugal, há um número muito avultado demonumentos associados à Primeira GuerraMundial. Celebram quem combateu e
morreu pela pátria, uma velha divisainvocada para lembrar ser dever supremodos combatentes dar a vida pelo coletivonacional e não por um rei, príncipe ouGoverno. Comemorações anuais mantêmessa recordação viva, como ocorreu em2018, ano do centenário do Armistício quepôs fim ao conflito. Para quem também se
interessa pela memória coletiva, como eu, os
destinos contrastantes das recordações da
pandemia e da guerra constituem um factoda maior riqueza.
3. A Grande Guerra de 1914-18, que possuidimensões económicas cruciais,nomeadamente as relacionadas comambições coloniais, foi alimentada pelonacionalismo. O fim do conflito acarretou a
dissolução dos impérios na Europa -alemão, austro-húngaro, otomano -substituídos por Estados nacionais. O
próprio Império Russo transformou-se numaunião de repúblicas socialistas em que sereafirmava a identidade nacional de cadauma delas. A consolidação dos Estadosnacionais no pós-guerra foi acompanhadapela criação da Liga das Nações, destinada aevitar novos confrontos armados por meiodo recurso à negociação. Contudo, a Ligarevelou-se impotente para solucionar osconflitos entre os Estados que a constituíam,não conseguindo nem limitar as ambiçõesdos vencedores, nem apaziguar a amargurados vencidos. As novas fronteiras saídas da
guerra eram fonte de discórdia econtinuaram a não abranger populaçõeshomogéneas de um ponto de vista nacional.Os alemães, por exemplo, haviam perdido a
Alsácia e a Lorena para os franceses econstituíam uma minoria descontente naentão Checoslováquia e noutros países. O
ressentimento alemão, fruto também deenormes dificuldades económicas nopós-guerra, acabaria por levar ao poder os
nazis, que conduziram a Alemanha à guerra
em nome de um nacionalismo rácicoexacerbado.
Os crimes genocidas do nazismo e dosseus aliados trouxeram o descrédito ao tipode nacionalismo que representavam, masnão a outros, até porque a oposição aonazismo e seus aliados recorreu à
mobilização nacionalista, associada à defesadas pátrias invadidas e mesmo, no caso dosaliados ocidentais, à das suas tradiçõespolíticas liberais e democráticas. Depois da
Segunda Guerra Mundial, o nacionalismo
inspirou o movimento de descolonização,apresentado como de libertação nacionalcontra a dominação colonial e o racismo.
Entretanto, o impacto destrutivo donacionalismo no contexto europeu deu umnovo alento às tentativas de criação de umacomunidade europeia no pós-guerra, umaunião económica e política entre Estados,
que permitisse superar os conflitos do
passado: a União Europeia.
4. Ninguém sabe como irá acabar a
pandemia que enfrentamos, nem quando,pelo que seria prematuro esboçar qualquercomparação entre ambas. Todavia, apesarde existir hoje uma coordenaçãointernacional incontestavelmente mais
significativa do que então, através da
Organização Mundial de Saúde, o combateantiepidémico continua aindafundamentalmente a ter lugar no quadronacional. Está a cargo de cada Estado em
EUA versus ChinaO número de mortos pela gripeespanhola (1918) variam entre 30 e100 milhões, o que a torna numa das
pandemias mais mortíferas que seconhecem. O início do surto, aocoincidir com a I Grande Guerra(1914-1918), foi relegado parasegundo plano nas informações queajudem a compreender melhor o seu
percurso. No entanto, tanto ontemcomo hoje, as intersecções entrepandemia e nacionalismo não
poderiam ser mais claras, com osEUA e a China como principaisprotagonistas do actual crise
particular, o que reforçou a noção desoberania nacional. As fronteiras nacionais
ganharam de novo significado na Europa ouviram o seu papel aumentado em outroslocais. As próprias respostas das autoridadesà pandemia variam entre os países, apesarda aceitação quase geral da necessidade de
algum tipo de isolamento social. A dimensãonacional atravessa o discurso dos políticos,os apelos à população, os anúncios de
publicidade. As intersecções entre pandemiae nacionalismo não podiam ser mais claras.
A persistência do quadro nacional não é
de admirar. Ao nível das perceções dos
cidadãos, o vínculo nacional continua arevelar-se sólido. Quem tenha acompanhadoregularmente os estudos de opinião sobre a
identificação nacional e a identificação coma UE, verifica que a maioria dos inquiridosexpressa uma ligação ao seu país bastantemais forte do que à Europa. A identidadenacional é um produto de uma história maisou menos antiga. É parte integrante da
própria identidade individual, fruto de umasocialização intensa que opera não só atravésda atuação das agências do Estado, como a
escola, como por meio da simples partilha
da vida quotidiana no Estado-nação, de
geração em geração. A ligação à comunidade
política europeia é fruto de processos bemmais recentes.
Uma das expressões mais visíveis donacionalismo no decurso da atual pandemiareside no confronto geopolítico entre os EUAe a China. Este teve o seu início quando oatual Presidente americano tomou medidas
inspiradas pelo nacionalismo económicodestinadas a penalizar as exportaçõeschinesas para o mercado americano.Entretanto, ao longo do desenrolar da
pandemia, o poder norte-americano temvindo a insistir na retórica nacionalista aoassinalar o suposto caráter "chinês" do vírus,a ocultação da gravidade da pandemia pelasautoridades chinesas, ou uma supostasubserviência da OMS à China. Por sua vez, onacionalismo chinês, consolidado pordécadas de crescimento, não constitui umaforça menos poderosa.
O Estado chinês tem ripostado,contrapondo à atitude isolacionista dos EUAo apoio a diversos países europeus. O auxílio- ou a venda - de material usado na lutacontra o vírus é rico em simbolismonacionalista. Lembra-nos que o que está em
causa, em termos geopolíticos, é a disputapor um lugar cimeiro entre as
superpotências, ao mesmo tempo quemanifesta a superioridade do doador e ainferioridade de quem recebe a dádiva, oumesmo do comprador: países da UniãoEuropeia. Mas não se trata apenas deconflitos de natureza simbólica, pois o que aatual política americana põe em causa é o
tipo de globalização ocorrido nas últimas
décadas, por entender que ele favoreceu aascensão chinesa e prejudicou os interessesnacionais norte-americanos, bem como o
multilateralismo, encarnado em instituiçõescomo a ONU e as suas agências.
As manifestações do nacionalismo não se
resumem aos afrontamentos entre as duasmaiores superpotências, pois fazem-se sentirno seio da UE. As dificuldades por que está a
passar atualmente, para definir uma
estratégia solidária entre os diversos Estados
em torno da definição dos meios paraenfrentar a crise económica, refletem em
parte, pelo menos - pois não anulam o pesodas fraturas político-ideológicas -importantes clivagens nacionais. Não se trataapenas da ação dos Governos, pois as
populações europeias foram habituadas pelasua experiência histórica, e pela propagandados seus Estados, a pensar-se principalmentecomo coletividades delimitadas e não como
parte de uma comunidade mais ampla.Os problemas provocados em cada
Estado-membro pela atual crise económicasão de amplitude muito diferente, e poderãovir a ter, como se afigura provável nomomento em que escrevo, resultadosnacionais distintos, o que implicadificuldades e sofrimentoincomparavelmente maiores para a
população dos menos poderosos. Istoconstitui um grande risco para a UniãoEuropeia, enquanto projeto de aliançacoletiva supranacional, pois a sua
capacidade para ultrapassar os interessesnacionais divergentes no seu seio - algo quenão ocorreu aquando da crise de 2007-2008- está em questão neste momento.
Mas as articulações entre nacionalismo e
pandemia poderão ainda ter outras
expressões. Entre elas, a possívelmobilização do descontentamento social,gerado pelas desigualdades agravadas pelacrise presente, por movimentos denacionalismo radical e xenófobo, como os
que têm vindo a ressurgir nas últimasdécadas.
Investigador, ICS-ULisboa, é co-autorde A Pandemia Esquecida: OlharesComparados sobre a Pneumónica 1918-19(Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais,2OO9) [acesso aberto em www.ics.ulisboa.pt/en/livros/pandemia-esquecida], e autor de Portugal,Portugueses: Uma Identidade Nacional(Lisboa, Fundação Francisco Manueldos Santos, 2O12)