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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Salto SP – 17 a 19/06/2016
Jornalismo, Afetos e a Cidade: Inventário Afetivo de Jornais Impressos Marianenses 1
Ana Carolina Vieira DO AMARAL 2
Karina Gomes BARBOSA 3
Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana MG
RESUMO
Neste artigo, investigamos as maneiras pelas quais o jornalismo atua na construção e circulação de afetos em Mariana. Partimos da ideia de que os afetos são devires não humanos do homem, encontros e entrelaçamentos de sensações entre objetos, sujeitos, com intensidade marcada em instantes. Assim, os jornais de Mariana atuam como condutores/objetos de afeto, que os constroem e os veiculam periodicamente. O artigotraça as primeiras pistas de uma cartografia e inventário amplos das relações afetivas propostas pelos jornais e efetivadas por meio das construções textuais desses veículos. Compreendemos que os jornais podem se constituir em objetos ou condutores de afetos, tratandose de movimentos, instantes e intensidades compartilhadas e experienciadas entre sujeitos, por sujeitos e objetos, que os unem, mas também distanciam, como forças de intensidades distintas.
PALAVRASCHAVE
Jornalismo; jornal impresso; afetos; estudos culturais; Mariana.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Uma das palavras correntes e constantes para definir o atual estado de coisas do
jornalismo impresso, sobretudo do jornal, é crise. Seja em referência à práxis jornalística ou ao
modelo de negócios, é comum afirmar que há uma crise do jornal impresso ou do modelo de
negócio deste. Advém daí a previsão de que o jornal irá acabar em um futuro próximo – há
perspectivas de até 50 anos ou menos para o papel. Os números, de fato, não soam animadores.
Em 2015, grandes jornais brasileiros, como Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo
1 Trabalho apresentado no IJ 01 – Jornalismo do XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste realizado de 17 a 19 de junho de 2016. 2 Graduando do Curso de Jornalismo do ICSA UFOP, email: [email protected] 3 Orientadora do trabalho. Professora Doutora do Curso de Jornalismo do ICSAUFOP, email: [email protected]
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realizaram significativos cortes nas redações. Em 2016, a imprensa mineira tem realizado
demissões, atrasado pagamentos de salários, burlado o depósito de direitos trabalhistas como
recisões demissionais, como Estado de Minas e Hoje em Dia.
Veículos desse porte representam os grandes centros urbanos do CentroSul, eixo
prioritário onde é produzida e por onde circula a informação jornalística brasileira. Jornais como
os paulistas, cariocas e mineiros das capitais produzem o grosso do noticiário político e
econômico que abastece o circuito de informações que transita pelo país. Ao mesmo tempo, por
conta da localização geográfica, dos custos de cobertura, dos critérios de noticiabilidade e dos
perfis editoriais, produzem informações sobre seu próprio eixo.
De fato, no interior do Brasil não é produzido nenhum dos dez maiores jornais do país 4
(em circulação paga). A primeira publicação de fora de uma capital a figurar na lista do Instituto
Verificador de Circulação (IVC) é de Novo Hamburgo (o jornal dominicalABC Domingo), com
66 mil exemplares. Em muitas delas sequer há jornais auditados pelo instituto. Contudo, segundo
Toni André Vieira,
numericamente, os veículos de comunicação do interior são bem mais significativos que os dos grandes centros. Empregam mais pessoas e, em vários casos, possuem uma maior sobrevida. São inúmeros os títulos impressos que existem há mais de 100 anos em todo o interior do Brasil. (VIEIRA, 2002, p. 2)
Percebese, assim, que, embora não constituam o maior volume de circulação, os jornais
do interior do país têm importância para a empregabilidade de milhares de pessoas e também,
sobretudo, para fazer circular fora dos grandes centros informações jornalísticas que dizem
respeito aos milhões de brasileiros que vivem em pequenas cidades, não nos grandes centros
urbanos. Esse rico contexto de produção e circulação de informações jornalísticas muitas vezes
não é acompanhado de investimentos, qualidade na produção e nas rotinas produtivas
encontradas nas grandes redações, assim como na repercussão do material produzido, mas conta,
segundo Vieira, com mais aproximação entre jornalistas e o público. O pesquisador propõe um
modelo de jornalismo que resgate “as cenas vivas do complexo acontecer das cenas sociais
cotidianas” por meio de veículos de “comunicação local” que primam pela “proximidade
4 De acordo com dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC) relativos aos anos de 2010, 2011, 2012 e, parcialmente, 2013 (apenas os cinco primeiros meses).
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destacada” (2002, p. 8). Tratase, portanto, de um panorama jornalístico muito distinto: jornais
numericamente importantes mas subsumidos no panorama de relevância midiática, investimentos
publicitários e circulação paga.
O panorama jornalístico da cidade de Mariana é bastante próximo ao descrito por Vieira.
A primaz de Minas Gerais possui, desde o século XIX, posição de destaque no campo do
jornalismo do estado. Já em 1860, integrava o “diminuto território mineiro, compreendido entre
Pouso Alegre e Diamantina, passando por Campanha, São João delRei, Tiradentes (na época
São José DelRei), Barbacena, Ouro Preto, Mariana e Sabará” (CAMISACA, VENÂNCIO,
2007, p. 4) que possuía meios de comunicação. Em 1873, foi fundado na cidade o religioso O
bom ladrão.
No século XXI, a imprensa marianense (produzida em Mariana ou nos municípios
próximos e que circula regularmente na cidade) não desfruta de nenhum jornal de circulação
diária. Entre os títulos mais difundidos pela chamada Região dos Inconfidentes estão Ponto
Final, O Espeto, O Liberal, Folha Marianense e O Mundo dos Inconfidentes. Os semanários da
cidade, de Ouro Preto ou de Itabirito possuem filiações políticas perceptíveis, ainda que não
explicitadas; são desprovidos de redações profissionais ou têm equipes bastante reduzidas para a
produção do material, muitas vezes capitaneada por estagiários do curso de Jornalismo da
Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), situado em Mariana; o conteúdo, muitas vezes,
apresenta deficiências em relação ao que se compreende como modelos jornalísticos
profissionais, bem como se distancia das convenções jornalísticas consagradas no produto
impresso. Malaco et al. apontam diagnóstico nesse sentido:
Observamos que devido à falta de um dispositivo crítico, as notícias apresentavam defasagem informativa, principalmente por: não responderem as questões básicas dolead, falta de pluralidade de fontes, escassez na disciplina de verificação, entre outras questões fundamentais para a prática de um jornalismo realmente preocupado com seu compromisso público. (MALACO ET AL, 2012, p. 2, grifos originais)
Além dos jornais comerciais, há classificados impressos (Panfletu's), jornais de cunho
religioso, como o veículo da arquidiocese (Jornal Pastoral), institucionais, como o jornal da
prefeitura de Mariana (O Monumento), e o jornallaboratório do curso de Jornalismo da
Universidade Federal de Ouro Preto, Lampião, reconhecido por ser o único de perfil
independente na região. Assim, pode o jornal acabar, mas hoje, no interior do país, ele viceja,
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sob as condições possíveis. É sobre tal panorama de jornalismo impresso que este artigo se
debruça, mais especificamente sobre um desses jornais marianenses, oPonto Final, "jornal local
de maior circulação na cidade de Mariana" (MALACO ET AL, 2012, p. 5), que mantém poucos
jornalistas na estrutura de produção e constantemente emprega estagiários da Ufop nos quadros.
Como muitos veículos da região, "mantém contratos com a Prefeitura para a divulgação das
ações feitas por essa (...) quando a Prefeitura, a Câmara dos Vereadores e outros órgãos
encaminham releases às redações dos jornais, temse um acordo comercial, o material é cobrado
para ser inserido, e parece muitas vezes entrar como publicidade" (QUEIROZ; VIEIRA, 2014, p.
26). O jornal circula há 22 anos e, atualmente, tem tiragem divulgada de 2 mil exemplares, que
circulam às sextasfeiras com, em média, 20 páginas. É vendido em padarias e outros
estabelecimentos comerciais da cidade por R$ 1.
Nosso interesse sobre o jornalismo marianense diz respeito à capacidade do jornalismo –
e dos jornais, portanto – de atuarem como condutores/objetos de afetos em Mariana. A partir da
ideia de que os afetos (afectos, na perspectiva deleuziana) são devires não humanos do homem
(DELEUZE E GUATTARI, 2010), encontros e entrelaçamentos de sensações entre objetos,
sujeitos, o jornalismo possui papel importante em fazer circular tais afetos, e mesmo como objeto
de afeto. Tratase de compreender o jornalismo como um regime estético (RANCIÈRE, 2009),
composto por “blocos de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos” (DELEUZE E
GUATTARI, 2010, p., 193, grifo original); afetos que, por sua vez, transbordam a força de
sentimentos e dos que são atravessados por tais sentimentos, num constante tornarse composto
de contiguidades, enlaçamentos “entre duas sensações sem semelhança ou, ao contrário, no
distanciamento de uma luz que capta as duas num mesmo reflexo” (p. 205), não absolutamente
distinguíveis; estados.
E por que o afeto? Tratada como umturnrecente nas ciências humanas e sociais, a virada
afetiva se concentra em tratar o afeto como categoria epossibilidade de conhecimento, autônomo
ou não, mas capaz de atestar as sensações dos sujeitos. Pensar o jornal impresso a partir deatos
se coaduna com a proposta de Lopes acerca do papel do afeto na comunicação: “a necessidade de
resgatar o afetivo (...) como possibilidade de comunicação”. O que se coloca em evidência são as
“experiências dos sujeitos contemporâneos” (2007, p. 2425). Para o autor, a partir da
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perspectiva dos Estudos Culturais, a experiência se inscreve em solo sóciohistórico e se
apresenta como aquilo que buscamos explicar, aquilo sobre o qual se produz conhecimento.
Narrativa é palavrachave nessa apreensão que se encontra entre os Estudos Culturais e o
pragmatismo: “a experiência se faz fluxo a ser narrado, compartilhado”, no que se denomina ato
social. Para Lopes, “o ato de narrar implica um uso afetivo, num contexto indissociado do
mercado” (2007, p. 2829). Ele se refere a fluxos narrativos, e defendemos a possibilidade dessa
apropriação afetiva da experiência, por meio da narrativa, para o universo do jornalismo
impresso. Colocase, aí, então, o problema que este artigo busca responder: Quais são os afetos
circulados, ou quais afetos fazem circular, (n)as narrativas veiculadas no jornalismo
marianense efetivado pelo Ponto Final? Nosso objetivo central é compreender como o
jornalismo impresso comercial produzido na cidade de Mariana propõe e circula afetos. Como,
enfim, as narrativas veiculadas por esses jornais circulam ou constroem afetos, e as maneiras
pelas quais tais afetos manifestam diferença e também mecanismos de reprodução social
(HEMMINGS, 2005, p. 551).
2. AFETO E JORNALISMO IMPRESSO
Para atingir este objetivo, é mister compreender a relação do campo da comunicação com
a categoria do afeto, empreendendo um estado da arte dos estudos a esse respeito, como as
aproximações já realizadas por Cremilda Medina, Muniz Sodré e outros. Para além disso, e
paralelamente a isso, uma tentativa – entre tantas – de epistemologia do afeto (dos afetos) se faz
necessária para situálo além do senso comum do que é afetivo ou sentimental, em um corpo de
reflexão que remonta a Spinoza e, atualmente, tem sido palco de debates e profícuas análises,
sobretudo no campo culturalista.
O produto jornal impresso desdobrase em tempo e espaço, mapa de territorialidades que
presentifica constantemente os acontecimentos (MOUILLAUD, 2012) e, assim, seu estudo ajuda
a configurar e visualizar certos cortes temporais e espaciais – quais são os afetos veiculados no
Ponto Final e de que maneira eles dizem do hoje e aqui da cidade; instantâneos, momentos,
instantes (DELEUZE E GUATTARI, 2010). Tal mapa é, também, um zoom in, uma
aproximação, da comunidade marianense, por meio do jornalismo, atividade de pesquisa que
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parte de um lugar de fala não apenas do sujeito de pesquisa, mas também do objeto e dos sujeitos
da comunidade em que o pesquisador atua, compreendida como um lócus de compartilhamento
(BAUMAN, 2003) – de identidades, memórias e, também, afetos.
Finalmente, tomamos como premissa uma prática de jornalismo que seja conceitualmente
assentada nas dimensões humanísticas, temporais e mesmo nas ligações umbilicais entre
jornalistas e comunidades, mas que sobretudo reconheça o papel do afeto no amplo sistema de
conhecimentos, técnicas, que constitui o jornalismo como campo do conhecimento, práxis,
objeto de pesquisa e ensino.
Nesse contexto, o jornalismo local impresso como o efetivado pelo Ponto Final também
deve ser pensado em articulação com o cenário midiático nacional, especialmente o cenário do
jornalismo impresso. A mais recente Pesquisa Brasileira de Mídia, divulgada pela Presidência da
República (BRASIL, 2014, p. 7) indica que no contexto atual da mídia nacional, o brasileiro
ainda considera que “os jornais são os veículos mais confiáveis” 58% dos brasileiros e 71% dos
mineiros confiam muito ou sempre nos veículos. A PBM apresenta uma informação relevante
sobre a atenção dedicada à leitura do jornal:
Mesmo que sejam baixas a frequência e a intensidade de leitura de jornais e revistas, eles são os meios de comunicação com maior nível de atenção exclusiva. Entre os leitores de jornal, 50% disseram não fazer nenhuma outra atividade enquanto o consome. (BRASIL, 2014, p. 8)
De todo modo, não se pode desconsiderar o fato de que 76% dos entrevistados pela PBM
não leem jornal (dos que leem, 79% o fazem apenas na versão impressa 81% em Minas
Gerais), bem como os índices de leitura são menores quanto menores são os municípios. Numa
cidade como Mariana, com cerca de 58 mil habitantes segundo dados do IBGE Cidades,
estimase que 81% dos habitantes não leem jornais, e 5% o fazem uma vez por semana. Quando
abrem um jornal, buscam se informar sobre a cidade (28%).
É um cenário complexo, rico e desafiador. O produto jornal impresso vive panoramas
distintos nos grandes centros e nas pequenas cidades; nos locais com altos níveis de acesso à
internet e nas localidades com baixa penetração e velocidade da rede. A partir dessas e outras
distinções contextuais, esse mapeamento de afetos contribui para ampliar os conhecimentos
acerca de uma mídia que tem perdido importância para outros meios, outros suportes, mas ainda
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é a principal forma de se informar em muitas localidades: é confiável, estável, reconhecível,
tradicional.
3. METODOLOGIA
Como prática de análise cultural, aderimos à área de Estudos Culturais, que
epistemológica e metodologicamente constituise como campo paradoxal, cujos estudos se
debruçam, por vezes, sobre elementos “contraditórios, equívocos e polémicos” (BAPTISTA,
2009, p. 452). Essa teia se explica devido à intrínseca complexidade dos fenômenos culturais.
Nos coadunamos com Otto Groth quanto à natureza do jornal: “são obras culturais” (2011, p.
33). Como obra cultural, se presta à investigação que enfatiza a “produção contextual,
multidimensional e contingente do conhecimento cultural, procurando reflectir nos resultados da
sua investigação e complexidade e o carácter dinâmico e até, frequentemente, paradoxal do
objeto cultural que abordam” (BAPTISTA, 2009, p. 452). A “análise cultural faz convergir
princípios e preocupações académicas com uma exigência de intervenção cívica, ou seja, articula
inquietações simultaneamente teóricas e preocupações concretas com a polis” (2009, p. 453,
grifo original).
Pela natureza dos objetos e do olhar infligido sobre eles, a análise cultural é,
majoritariamente, qualitativa. Podese enquadrála em um conjunto de investigações dos modos
de construção política e social de identidades – aqui, identidades locais, comunitárias – por meio
dos afetos que circulam entre o jornalismo e tais sujeitos, criando um regime estético de
fruição/consumo/leituras/experiências do jornal impresso. Se nos debruçamos sobre os textos,
compreendemolos como histórias que buscam fornecer explicações para o mundo – narrativas
(2009, p. 452) – mas também como pontos de ancoragem em busca de uma abordagem
cartográfica dos sujeitos, objetos e afetos (DELEUZE E GUATTARI, 2010), tendo em conta que
tais afetos se relacionam ao poder, classe, gênero, raça, etnia, identidade, lugar, ou seja, estão
contextualizados nas narrativas sociais e nas relações de poder (HEMMINGS, 2005).
O que Deleuze propõe são mapas de intensidade, tendo em vista que os afetos
constituemse como instantes, distenções e forças em determinado tempo. Na visão de
Hemmings, é possível conceber ciclos afetivos que formam padrões; estes devem ser descritos
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não como uma série de repetições (corpo, afeto, emoção), mas como cadeia contínua, sempre se
alterando e influenciando a capacidade de ação do sujeito para agir no mundo (HEMMINGS,
2005, p. 564). Bennett evoca a imagem da espiral, padrões ou conjuntos reconhecíveis de sons,
cheiros, gostos, formas, cores e texturas (imagens e narrativas); certos tipos de repetição que nos
engajam a percepção. A partir de Deleuze, ela evoca a imagem de espirais de repetição, em que
cada nova volta possibilita novas formações e novas imagens, identidades e movimentos
(BENNETT, 2001): a repetição espiral é a capacidade transformativa do fenômeno afetado.
Na lógica da análise cultural, há o de outras práticas discursivas capazes de desvelar a
multiplicidade de elementos que constituem as identidades dos sujeitos e das comunidades. Para
a realização específica da análise, o privilégio é dado ao uso de fontes diversas e de técnicas e
métodos variados, situando objetos particulares – contextualizandoos, pontuandoos e
reconhecendo a incapacidade de oferecer explicações gerais acerca dos fenômenos culturais, mas
somente no tempo e no espaço (em um tempo e um espaço), atravesados pelas relações sociais,
afetivas e de poder.
Nos valemos, desse modo, da bricolagem como método de pesquisa para abordar os
fenômenos ora em estudo. De acordo com Kincheloe, a bricolagem diz respeito ao uso de
múltiplos métodos na pesquisa e à tentativa de sintetizar desenvolvimentos contemporâneos na
teoria social, na epistemologia e na interpretação contemporâneas (KINCHELOE, 2001, p. 680).
Indissociada, portanto, da noção de interdisciplinaridade e do reconhecimento das limitações de
métodos singulares de pesquisa diante de um quadro fragmentado, incerto e instável das ciências
atualmente. Qualquer bricolagem reconhece, como os Estudos Culturais, que todo objeto de
pesquisa é inseparável de seu contexto (2001, p. 682). Ainda assim, associase ao rigor da
pesquisa tradicional, no que Kincheloe chama de sinergia no uso de diferentes métodos de
pesquisa e perspectivas interpretativas na análise cultural.
É a partir da perspectiva da bricolagem, das múltiplas perspectivas, que buscamos aliar a
análise contextualiza à cartografia deleuziana dos afetos por meio de mapas de intensidade. Essa
abordagem nos auxilia no que se considera “inventário” afetivo para as teorias do afeto
(SEIGWORTH e GREGG, 2010, p. 11), a partir da perspectiva de Barthes. “Essa é uma paixão
pela diferença como contínua, brilhante gradação de intensidades. Realizando um inventário (de
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singularidades). E no intervalo, a tensão: descortinando uma patologia (de “ainda nãos”)"
(Idem).
4 AFETOS E O JORNALISMO LOCAL
Nas últimas décadas, as formas de vida urbana e o tamanho das aglomerações
modificaram a percepção da identidade local dos habitantes e empurram a imprensa para uma
compreensão detalhada do que seria informação local (TETÚ,1997). Nesse contexto,
comunicação e territorialização caminharam ambas, paralelamente, com o caráter de valorizar as
relações de comunicação que se instauram em um determinado grupo social, afirma Tétu. Assim,
esta informação local toma por objetos, homens integrados nesse sistema e exclui aqueles que
não o integram, ressaltando a comunicação oral, ou seja, relatos de acontecimentos locais que
envolvam a participação de figuras que são institucionalizadas na localidade (TETÚ, 1997).
Seguido este viés, oPonto Final é um jornal local de grande representatividade na cidade
de Mariana e que, preferencialmente, aborda questões relacionadas à localidade e ao vínculo
presente entre o “privado” e o “público” . Dessa forma, apesar das dificuldades em identificar 5
matérias devido à falta de padronização jornalística , a presença de afetos, de acordo com a 6
definição deleuziana, foi percebida e classificada de forma a montar um mapa de intensidade nos
quais determinados afetos se repetem, como refrões, e dão personalidade ao jornal. Nossa
percepção se construiu a partir de pares afetivos em ressonância. Partindo da classificação
proposta por Spinoza (2012), extrapolandoa, os pares de afetos que configuram este mapa são
cobrança/ reparação e bem estar/ nostalgia, afetividades que serão explicadas posteriormente.
A tendência contemporânea de reforçar um panorama na qual a psicologia da felicidade
se sobressai também aparece nas edições escolhidas. Freire Filho fala da permanência de um
ideário feliz como necessidade humana e o que o jornal propõe ao leitor não é diferente.
Segundo o autor, independentemente de faixa etária, gênero, classe socioeconômica, situação
familiar ou afetiva, (in)definição profissional, as regras do bem viver, ou melhor, do viver feliz,
são seguidas à risca para que não se padeça dos horrores da rejeição, do ostracismo ou do
5 Essa é uma das principais características consideradas por Tetú que configuram um jornalismo como local, TETÚ (1997). 6 Souza (2001) propõe alguns padrões do jornalismo, aos quais o jornal adere em maior ou menor grau,o que impôs dificuldades à tarefa de coleta para este trabalho.
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escárnio (FREIRE FILHO, 2010). Assim, por mais que existam matérias de cunho negativo no
jornal , a felicidade associada à qualidade de vida, ao bemestar e ao vivernesta cidade e o que 7
se depreende como qualidades da vida nesta comunidade , se faz presente de forma a manter a
própria condição humana de felicidade compulsiva e compulsória (FREIRE FILHO, 2010).
Sara Ahmed (2010) também trabalha a questão da opressão da felicidade na sociedade
(Sociable Happiness) por meio de objetos felizes (happy objects). Para a autora certos objetos se
tornam embutidos de afeto positivo sendo considerados como bons objetos e o que é excluído
desse circuito é percebido como um afect alien, um alienado afetivo. Esses bons objetos não só
incorporam uma boa sensação, mas também são percebidos como necessários para uma boa vida
(AHMED, 2010). Nessa mesma perspectiva, Ahmed pontua que a promessa da felicidade
fomentada pelos objetos felizes promove a própria felicidade dentro e sobre a sociedade. Os
objetos felizes são passados ao redor, acumulando valor afetivo positivo como bens sociais e
qualidade de vida (AHMED,2010).
Como técnica de análise para entender o mapa de intensidade criado a partir da leitura e
interpelação de 12 edições do Jornal Ponto Final , usamos como estratégia a análise do discurso 8 9
proposta por Bardin na qual a relação semânticasintáctica estabelece um vínculo com a
sociologia do discurso e procura estabelecer ligações entre as condições de produção cujo o
sujeito se encontra e se manifesta (BARDIN, 2004). Ou seja, a partir da percepção de um
contexto local trazida pelo Ponto Final, foi possível destacar fragmentos textuais e palavras
chaves capazes de indicar possíveis afetos. 10
Nos apropriando das categorias propostas por Spinoza (2012), pontuamos nas edições
amor, paixão, satisfação, orgulho, esperança, glória, violência, entre outros afetos, como a
felicidade, para onde tende a cartografia que este artigo inicia. Contudo, dois pares afetivos
7Crimes relacionados à tráfico de drogas e assaltos são comuns no jornal. Em relação a política local, os debates relacionados à aprovação de leis e projetos na câmara possuem destaque também. 8 Escolhemos como amostragem as edições dos dias 7 de agosto a 29 de outubro de 2015 por se tratar das edições mais recentes de acordo com o período da pesquisa. As edições anteriores não foram usadas como recorte para a análise devido ao contexto político local do período, em que a cidade estava passando por instabilidade depois da cassação do exprefeito Celso Cota. As edições posteriores ao dia 29 de outubro também foram desconsideradas pelo fato do jornal ter sido totalmente direcionado a um acontecimento inesperado, o rompimento da barragem de Fundão, no dia 5 de novembro, desastre este que destruiu os distritos de Mariana Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, além de outros lugares. 9 Editorias de cunho opinativo não fizeram parte do recorte estudado. A editoria “Volante”, sobre automóveis, sem material próprio, e conteúdo referente à cidade de Ouro Preto também foram descartados por ampliar para um contexo nãolocal. 10 Como mecanismo pragmático de identificação dos afetos nas matérias, selecionamos nos textos marcadores que os exemplificam.
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aparecem com maior frequência nas edições: reparação e cobrança, bem estar e nostalgia. As
matérias que trazem a cobrança e a reparação como afetos em destaque possuem, normalmente,
um cunho político e remetem a problemas da cidade, considerados pontuais, associados ao 11
governo municipal. Na página 3 da edição 1008, de 31/7 a 6/8, na editoria de cidades, a matéria
“Prefeito cobra dívida da Vale aos municípios mineradores” apresenta Mariana como uma das
importantes cidades mineradoras, com um passado áureo na mineração, além de manter vivo o
vínculo da cidade com essa prática extrativista (pertencimento e tradição).
A cobrança e a reparação aparecem, nesse contexto, como apelo por mudanças na
dinâmica financeira, propondo a necessidade de novas atividades para aumentar as possibilidades
de recursos. Já a necessidade de reparo, no caso, é o reflexo da falta de investimento das
empresas na cidade. "Os prefeitos estão conscientes que precisam mudar a forma de se relacionar
com as empresas que levam a riqueza e quase não contribuem com o desenvolvimento." No
entanto, por mais que a atividade mineradora apareça como problema na matéria e seja criticada,
o saudosismo e a importância da mineração circunscrevem todo o texto.
Outra matéria da mesma edição, com o título “Moradores desperdiçam água e SAAE tem
dificuldades para controlar”, segue a mesma ideia. Como prestação de serviço e denúncia, a
matéria questiona a falta de água e a ausência de fiscalização da empresa em relação ao
desperdício considerando o cenário de escassez de água na época (cobrança). A reparação vem
com a resposta da empresa, que dá o suporte online para a reclamação como solução, ou seja,
uma resolução simples para um problema pontual. “Muitas reclamações sobre falta e desperdício
de água são feitas através de portais online, mas as infrações seguem acontecendo. Sobre as
outras reclamações encontradas no Reclame Aqui online e que questionam a efetividade dos
serviços prestados pelo SAAE.”
O bem estar e a nostalgia aparecem como característica da qualidade de vida dos
marianenses, que está associada à cidade antiga, com tradição e nostalgia. Na editoria de Cultura
da edição 1008, na página 13, a matéria sobre o evento “Minas ao Luar” em Mariana reforça essa
ideia, ao posicionar a cidade como palco de atrações culturais que remetem à sua historicidade e
fortificam a relação de bem estar e pertencimento entres os marianense e a cidade.
11 As matérias da editoria de “Polítca” são as que apresentam maior diversidade de afetos por se basearem, majoritariamente, em falas expressivas dos representantes políticos, especialmente nas sessões da Câmara Municipal.
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“Comemorações dos 319 anos do município. Pessoas de todas as idades soltaram a voz e
relembraram sucessos de vários estilos e épocas, como a Jovem Guarda, fazem muito bem para a
alma, além do Minas ao Luar, outros eventos itinerantes da área de cultura do Sesc estão nas
estradas mineiras”.
O mesmo acontece na edição 1010, de 14 a 20 de agosto. Na página 5 da editoria de
cidades, a matéria “Conferência debate Assistência Social em Mariana” define a cidade como um
local no qual os direitos dos cidadãos são assistidos em conjunto. Assim, o texto sugere que a
gestão da cidade se preocupa com o bem estar social da comunidade, além de zelar pelo
cumprimento da lei referente à assistência social. “Em meio a debate, palestra e apresentação
teatral o evento foi uma oportunidade de reunião e apresentação de trabalhos dos usuários da
assistência social, tal como, o projeto Recriavida e o CRAS Colina e Cabanas.”
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A importância do jornal local na dinâmica informativa de Mariana configura um cenário
de pertencimento e proximidade entre o leitor e o veículo. Aquilo que é local não se refere
apenas ao território, mas à noção de lugar de vida, não apenas de ancoragem territorial do
habitat, mas, sobretudo de um lugar, não forçosamente territorializado, mas onde os conflitos e
os efeitos das decisões acontecem (TÉTU, 1997).
Dessa maneira, o Ponto Final contribui para a construção e circulação de afetos ao
caracterizar um imaginário afetivo no qual o cenário político se faz muito presente e é precursor
de afetos como indignação, satisfação, cobrança, reparação, esperança, bemestar, nostalgia,
glória e tensão. Outros afetos como a violência e o medo também aparecem no jornal, contudo de
forma a reforçar que a cidade possui problemas comuns, como tráfico de trocas e porte ilegal de
armas, mas não enfrenta questões estruturais. A dimensão política desses afetos se coaduna ao
que Hemmings aponta, no sentido de reproduzirem mecanismos sociais em vez de fomentar a
transformação social: diante do bemestar, da glória, da esperança, o que há para mudar? A
necessidade é de permanência, imanência e retorno a um passado idílico que só se efetiva como
performance narrativa, nunca se efetivou como história.
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Essa circulação de afetos positivos também se alinha ao que propõe Ahmed (2010) com
a sociable happiness, ou felicidade social. Tal é percebida como estratégia na busca pela
idealização de Mariana como um bom lugar para se viver; onde os marianenses são munidos de
história, cultura e qualidade de vida. Desse modo o Ponto Final é visto como um happy object
que impulsiona a noção contemporânea, quase compulsória, de felicidade plena na comunidade
local. Como bem comum ao alcance de todos e demandado para todos, exigência para o
bemviver, a felicidade se colocaria como possibilidade, promessa, obrigação e devir, e nos
afetos circulados pelo jornalismo local, como palpabilidade aliada ao pertencimento e à
anuência.
Esse enlace formado entre a comunicação e o sentimento propõe uma reflexão sobre
mediações operadas por um veículo comunicacional, no caso o Ponto Final, a partir da
instrumentalização do registro da realidade (SODRÉ, 2006) e em suas relações com seus
públicos. Isso contribui para a manutenção de costumes locais e intensifica a relação entre o
cotidiano da cidade e o sujeito, permite ver as relações entre sujeitos, a comunicação, os afetos e
o poder.
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