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Cornelius a Lapide, sj (1597-1637) + ABUSO DE GRAÇAS Tradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz O abuso das graças é um grande mal Ó cidade ingrata, exclamava Jesus Cristo derramando lágrimas sobre Jerusalém que abusava de tantas graças! Ó cidade desgraçada! Ah! Se neste dia também tu conhecesses a mensagem de paz! Agora, porém, isso está escondido a teus olhos(Luc. XIX, 42); não queres ver os favores que te prodigalizei, para não ter que me agradecer por eles. Ó filha de Sião, a quem tanto amei, honrei, enriqueci e instrui! Não somente não queres me conhecer, senão que me rejeitas, me condenas, me persegues e me crucifixas!... Por ti desci do céu à terra; por ti nasci, vivi em contínuos trabalhos, nas dores e na pobreza; visitei-te, ensinei-te, insisti contigo; curei a teus leprosos, a teus enfermos, a teus possessos; dei vida a teus mortos: e tu foges de mim, me desprezas e me persegues por ódio! Olhem-se os cristãos infiéis e ingratos neste quadro: Não imitam aos judeus?... Escuta a Santo Agostinho quando põe na boca de Jesus Cristo estas palavras: homem ingrato, diz ele, minhas próprias mãos te fizeram com um pouco de argila, infundi em teu ser o alento vital; tive por bem criar-te à minha imagem e

01 - ABUSO DE GRAÇAS - pdf

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Texto traduzido da Obra "TESOROS DE CORNELIO Á LÁPIDE" - Tomo I, por Uyrajá Lucas Mota Diniz

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  • Cornelius a Lapide, sj (1597-1637)

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    ABUSO DE GRAAS Traduo por Uyraj Lucas Mota Diniz

    O abuso das graas um grande mal

    cidade ingrata, exclamava Jesus Cristo derramando lgrimas sobre

    Jerusalm que abusava de tantas graas! cidade desgraada! Ah! Se neste dia

    tambm tu conhecesses a mensagem de paz! Agora, porm, isso est escondido a

    teus olhos (Luc. XIX, 42); no queres ver os favores que te prodigalizei, para no

    ter que me agradecer por eles.

    filha de Sio, a quem tanto amei, honrei, enriqueci e instrui! No somente

    no queres me conhecer, seno que me rejeitas, me condenas, me persegues e me

    crucifixas!... Por ti desci do cu terra; por ti nasci, vivi em contnuos trabalhos,

    nas dores e na pobreza; visitei-te, ensinei-te, insisti contigo; curei a teus leprosos, a

    teus enfermos, a teus possessos; dei vida a teus mortos: e tu foges de mim, me

    desprezas e me persegues por dio! Olhem-se os cristos infiis e ingratos neste

    quadro: No imitam aos judeus?...

    Escuta a Santo Agostinho quando pe na boca de Jesus Cristo estas palavras:

    homem ingrato, diz ele, minhas prprias mos te fizeram com um pouco de argila,

    infundi em teu ser o alento vital; tive por bem criar-te minha imagem e

  • semelhana: e tu desprezando meus mandamentos ditados para dar-te vida,

    preferiste o demnio a teu Deus. Depois que foste expulso do paraso e ficaste preso

    pelos laos da morte por causa de teu pecado, encarnei-me, estive exposto em um

    estbulo, tomado e envolvido em faixas; sofri afrontas e privaes sem nmero,

    recebi bofetadas, e os que me ridicularizavam cuspiram em meu rosto; fui aoitado,

    coroado de espinhos, e expirei cravado na cruz. Por que perdeste o fruto de meus

    sofrimentos? Por que, ingrato, desconheceste e recusaste os dons da redeno? Por

    que manchaste com a impureza ou a intemperana, a manso que eu me havia

    reservado em ti? Por que me cravaste na cruz de teus crimes, cruz infinitamente

    mais dolorosa que a do Glgota? A cruz de teus pecados muito mais penosa para

    mim que a do Calvrio; porque me acho cravado nela a pesar meu, enquanto me

    sobrecarreguei com a primeira pela compaixo que me inspiravas, e morri nela para

    dar-te a vida (Enchirid.).

    Isto o que faz o homem que abusa das graas; estas so as desgraas a que

    este abuso o conduz.

    O meu Amado, diz Isaas, tinha uma vinha em uma encosta frtil. Ele cavou-

    a, removeu a pedra e plantou nela uma vinha de uvas vermelhas. No meio dela

    construiu uma torre e cavou um lagar. Com isto, esperava que ela produzisse uvas

    boas, mas s produziu uvas azedas: et exspectavit, ut faceret uvas, et fecit labruscas.

    Agora, habitantes de Jerusalm e homens de Jud, servi de juzes entre mim e a

    minha vinha. Que me restava ainda fazer minha vinha que eu no o tenha feito?

    Por que, quando eu esperava que ela desse uvas boas, deu apenas uvas azedas? Quid

    est quod debui ultra facere vineae meae et non feci ei? (Isai. IV, 2-4).

    No vemos nestas palavras a condenao daquele que abusa das graas? No

    somos todos a videira do Senhor? No cuidou Ele esmeradamente de arrancar de

    nosso corao as mazelas e as ervas daninhas? No temos sido escolhidos, como o

    vinhateiro escolhe os rebentos de sua videira, para produzir frutos? No temos sido

    atendidos e cumulados de graas? Que mais poderia fazer por ns o Senhor? Criou-

    nos sua imagem, e esta imagem a temos profanado, rasgado e arrastado no lodo

    pelo pecado; resgatou-nos a preo de seu Sangue; fundou os Sacramentos como

  • uma torre invencvel destinada a proteger-nos, e temos abusado de todos esses

    benefcios. Que responsabilidade e que desgraa!...

    Abusamos da criao, da redeno, dos Sacramentos, das santas inspiraes,

    da Palavra e da Lei de Deus. Abusamos de nossa vista, de nosso ouvido, de nossa

    lngua, de nossos ps, de nossas mos e de todo o nosso corpo. Abusamos de nossa

    sade, de nossas foras, de nossos anos. Abusamos de todos os elementos do dia e

    da noite. Abusamos de nossa alma e de suas faculdades, da memria, da inteligncia

    e da vontade. Abusamos de nosso corao. Abusamos das riquezas, das honras e

    dos prazeres. Abusamos do alimento e da bebida. Abusamos das roupas. Abusamos

    da vida, do tempo e da eternidade. Abusamos dos anjos, dos homens e de todas as

    criaturas. Abusamos do prprio Deus!... Que crime e que desgraa!

    Castigos do abuso de graas

    Agora vos farei saber o que vou fazer da minha vinha!, diz o Senhor.

    Arrancarei a sua cerca para que sirva de pasto, derrubarei o seu muro para que seja

    pisada: Et nunc ostendam vobis quid ego faciam vineae meae: auferam saepem

    eius, et erit in direptionem; diruam maceriam eius, et erit in conculcationem. (Isai.

    IV, 5) Reduzi-la-ei a um matagal: ela no ser mais podada nem cavada:

    espinheiros e ervas daninhas crescero no meio dela. Quanto s nuvens, ordenar-

    lhe-ei que no derramem a sua chuva sobre ela. Et ponam eam desertam: non

    putabitur et non fodietur, et ascendent vepres et spinae; et nubibus mandabo, ne

    pluant super eam imbrem (Isai. IV, 6).

    Os que abusam das graas, diz So Paulo aos Romanos, esto acumulando

    ira para o dia da ira e da revelao da justa sentena de Deus: thesaurizas tibi iram

    in die irae et revelationis iusti iudicii Dei (Rom. II, 5).

    Os que temos recebidos mais graas do que muitos outros, diz So Gregrio,

    seremos tambm julgados com maior severidade; porque medida que aumentam

    as graas, aumenta a responsabilidade em que incorremos. Devemos, pois, ser

    humildes e estar dispostos a servir a Deus por meio das graas recebidas, tanto mais

  • quanto, segundo seu nmero e valor, estaremos obrigados a dar mais estreita conta

    delas: Nos qui plus caeteris in hoc mundo accepisse aliquid cernimur, ab Auctore

    mundi gravius inde judecemur; cum enim augentur dona, rationes etiam crescunt

    donorum. Tanto ergo esse humilior, atque ad serviendum Deo promptior quisque

    debet esse ex munere, quanto se obligatiorem esse conspicit in reddenda ratione.

    (Homil. IX in Evang.).

    Deus abenoa a terra, diz So Paulo aos Hebreus, que bebe a chuva que lhe

    vem abundante e produz vegetao til aos cultivadores. Mas se produzir espinhos e

    abrolhos abandonada, rejeitada, e est perto da maldio; e, por fim, seus

    miserveis produtos viro a ser pasto das chamas, acabaro sendo queimados: Terra

    enim saepe venientem super se bibens imbrem et generans herbam opportunam

    illis, propter quos et colitur, accipit benedictionem a Deo; proferens autem spinas

    ac tribulos reproba est et maledicto proxima, cuius finis in combustionem (Heb. VI,

    7-8).

    O Senhor, diz o Esprito Santo no Livro da Sabedoria, aguar sua clera

    como uma espada disposta a ferir aqueles que abusam de seus dons: Acuet autem

    duram iram in lanceam (Sap. V, 20). E segundo So Gregrio, ns que de tudo

    abusamos, em tudo haveremos de ser feridos. Tudo quanto recebemos para o uso da

    vida, consagramos ao pecado; porm tambm tudo quanto tivermos separado de seu

    verdadeiro fim para empreg-lo mal, converter-se- em um instrumento de

    vingana: Quia in cunctis deliquimus, in cunctis feriemur: Omnia manque quae ad

    usum vitae accepimus, ad usum convertimus culpae, sed cuncta quae ad usum

    pravitatis infleximus, ad usum nobis vertentur ultionis (Lib. Moral.).

    O universo inteiro combater ao lado de Deus contra os insensatos que

    abusam de suas graas, diz-se no Livro da Sabedoria: Pugnabit cum illo orbis

    terrarum contra insensatos (Sap. V, 21).

    O sol, os astros, a terra, as plantas, as rvores, os animais, os elementos

    pediro vingana contra aqueles que tenham abusado de seus dons, dons que so

    outros tantos benefcios de Deus.

  • Prostitumos nossa sade aos vcios, acrescenta So Gregrio, violentamos a

    abundncia que se concedeu, no para atender s necessidades do corpo, seno para

    pervertermo-nos pela voluptuosidade. , pois, muito justo que tudo o que temos

    posto lastimosamente a servio de nossas paixes, nos fira juntos, a fim de que

    aquilo mesmo que fizemos servir de instrumento para indevidas alegrias no mundo,

    seja logo a causa de nossas penas mais terrveis: Salutem corporum redigimis in

    usum vitiorum; ubertatis abundantiam, non ad necessitatem carnis, sed ad

    perversitatem intorsimus voluptatis. Jure ergo restat, ut simul nos omnia feriant,

    quae simul omnia vitiis nostris male subaeta serviebant; ut quot prius in mundo,

    inclumes habuimus gaudia, tot de ipso postmodum cogamur sentire tormenta (Lib

    Moral.).