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Texto livre sobre a vicissitudes das viagens em ônibus, que muito sobram para serem contadas no papel.
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Crônicas de Viagem
"Mesmo que tenha alto poder aquisitivo ande, ao menos uma vez, de ônibus."
Em demasia ouvi essa frase e sempre guardei-a com cuidado, no intuito de compreendê-
la. Mas foi-me necessário um tempo. Tempo para que compreendesse que, em quase
toda viagem, há sempre uma novela da vida.
Primeiro foi essa senhora que sequer conhecia a cidade de destino. Perguntava-
me constantemente por onde estava. Quando finalmente alcançáramos a cidade, a
senhora, dessa gente humilde, ofereceu-me casa, comida e estadia onde morava.
Obviamente agradeci-a e disse-lhe que a qualquer hora aparecia. Mas, claro, é este o fim
desta história. Da outra vez foi um casal com sua brigas ininterruptas. Juro que me senti
frente a uma novela das oito, no clímax do enredo. Lembro-me de um bêbado que se
sentou ao meu lado e, com seu bafo expressamente alcoólico, contava-me as peripécias
de sua vida. Algumas sem sentido. Acredito, pois, que era esse tal de teor alcoólico.
Seguindo a rotina de passageira observadora, tornei-me babá por curtas horas. A mãe
que, viajando sozinha com a criança de colo, necessitava de um colo amigo. E lá eu
estava. E o senhor que, do embarque ao desembarque, contou toda história de sua vida,
ao celular (e, de quebra, aos passageiros). Aliás, constantemente pergunto-me se apenas
eu observo as histórias, as atitudes excêntricas e como é a vida de cada um. Mas...
Voltemos ao assunto. Lembro-me da menina que chorava, da criança que só ficava em
pé, do vendedor inovador que, a fim de comprovar as maravilhas que seu aparelho
exercia, caiu um desses tombos terríveis. Pois digo que sempre há um quebra-molas pra
causar obstáculos na vida das pessoas. Lembrem-se disso.
Encontrei-me também com o rapaz que acreditava que o ônibus fosse ponto de
encontro. Sentava-se ao lado de uma moça solitária e quando o resultado lhe era
insatisfatório, ia perturbar o ouvido de outra. Mas não foi o único: havia um senhor de
uns 60 anos que, compreendendo a desilusão de sua aparência e idade, apelava para o
dinheiro (talvez ele seja um desses que estivesse experimentando, ao menos uma vez na
vida, o prazer em andar de ônibus. Quem sabe?). Como não poderia faltar, deparei-me
com as mulheres falantes, com seus assuntos fúteis e inacabáveis (às vezes, a estratégia
era dormir); com crianças irritantes, sempre querendo saber se já haviam chegado, ou
com os choros incessantes dos mais novos e, claro, com os usuários vips de banheiro.
Talvez seja a mera curiosidade em saber urinar em movimento. Vai saber. Ah! Não
posso deixar de mencionar a ilustre passageira de semana passada: falando ao telefone
com o "coração", dizia estar com saudades, e que desejava ser roubada novamente para
a vida do rapaz (ou moça... Coração não determina gênero), com despedida de “beijos
em sua boca” e tudo mais. Juro que não ri. Posteriormente, relatou a problemática das
celas femininas. Nessa hora a tensão subiu e acho até que guardei o celular, por
impulso.
Muitas histórias presenciei, fiz parte; muitas vidas por mim se passaram, mas
não há como lembrar de todas elas. Na memória fica o riso, a dúvida, o espanto, o
medo. Mais que isso, a sensação de reconhecer que o ser humano é incrível em suas
peculiaridades e mesmo os meros fatos, podem e tornam-se histórias pra contar. Pois
assim lhes digo, em minha "antologia onibulesca", que a vida, se observada, torna-se
um espetáculo bem mais interessante que as novelas televisivas. Claro, sem um próximo
capítulo, mas cheio de novas histórias.
Jéssica França de Oliveira, 09 de janeiro de 2014