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S21 • Revista Brasileira de Psiquiatria • vol 33 • Supl I • mai2011 Diagnóstico diferencial entre experiências espirituais e psicóticas não patológicas e transtornos mentais: uma contribuição de estudos latino-americanos para o CID-11 Differential diagnosis between non-pathological psychotic and spiritual experiences and mental disorders: a contribution from Latin American studies to the ICD-11 Alexander Moreira-Almeida 1 , Etzel Cardeña 2 1 Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (NUPES), Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG, Brazil 2 Professor Thorsen de Psicologia, Lund University, Suécia Resumo Objetivo: Contribuir para a validade da Classificação Internacional de Doenças-11ª edição no diagnóstico diferencial entre experiências espirituais/ anômalas e transtornos mentais revisando artigos de pesquisa sobre o tema em psiquiatria e psicologia envolvendo populações latino-americanas e/ou produzidos por pesquisadores latino-americanos. Método: Pesquisa em bases de dados (PubMed, PsycINFO, Scopus, and SciELO) por meio de palavras- chave (possessão, transe, experiência religiosa, experiência espiritual, Latin*, Brazil) em busca de artigos com dados psicológicos e psiquiátricos originais em experiências espirituais. Também foram analisadas as referências dos artigos selecionados e autores na área foram contactados em busca de dados e referências adicionais. Resultados: Há evidências consistentes que experiências psicóticas e anômalas são frequentes na população geral e que em sua maioria não estão relacionadas a transtornos psicóticos. Frequentemente, experiências espirituais envolvem experiências dissociativas e psicóticas de caráter não patológico. Embora as experiências espirituais não estejam habitualmente relacionadas a transtornos mentais, elas podem causar sofrimento transitório e são frequentemente relatadas por pacientes psicóticos. Conclusão: Propomos algumas características que sugerem a natureza não patológica de uma dada experiência espiritual: ausência de sofrimento, de prejuízo funcional ou ocupacional, compatibilidade com o contexto cultural do paciente, aceitação da experiência por outros, ausência de comorbidades psiquiátricas, controle sobre a experiência e crescimento pessoal ao longo do tempo. Descritores: Transtornos psicóticos; Espiritualidade; Diagnóstico diferencial; Classificação Abstract Objective: To review research articles in psychiatry and psychology involving Latin American populations and/or produced by Latin American scholars to investigate the differential diagnosis between spiritual/anomalous experiences and mental disorders in order to contribute to the validity of the International Classification of Diseases towards its 11 th edition in this area. Method: We searched electronic databases (PubMed, PsycINFO, Scopus, and SciELO) using relevant keywords (possession, trance, religious experience, spiritual experience, latin*, Brazil) for articles with original psychiatric and psychological data on spiritual experiences. We also analyzed the references of the articles found and contacted authors for additional references and data. Results: There is strong evidence that psychotic and anomalous experiences are frequent in the general population and that most of them are not related to psychotic disorders. Often, spiritual experiences involve non-pathological dissociative and psychotic experiences. Although spiritual experiences are not usually related to mental disorders, they may cause transient distress and are commonly reported by psychotic patients. Conclusion: We propose some features that suggest the non-pathological nature of a spiritual experience: lack of suffering, lack of social or functional impairment, compatibility with the patient’s cultural background and recognition by others, absence of psychiatric comorbidities, control over the experience, and personal growth over time. Descriptors: Psychotic disorders; Spirituality; Diagnosis, differential; Classification Correspondência Alexander Moreira-Almeida Rua da Laguna, 485/104 - Jardim Glória 36015-230 Juiz de Fora, MG, Brazil Tel.: (+55 32) 9123-4564 Fax: (+55 32) 3216-7122 E-mail: [email protected] Introdução Um número crescente de estudos tem demonstrado a alta prevalência de experiências psicóticas*, dissociativas ou incomuns na população geral, embora a maioria dos indivíduos que vivenciam tais experiências não sofra de transtornos psicóticos ou dissociativos 1-4 . Pessoas com estas vivências parecem formar um grupo heterogêneo, no qual algumas são afetadas por transtornos

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  • S21 Revista Brasileira de Psiquiatria vol 33 Supl I mai2011

    Diagnstico diferencial entre experincias espirituais e psicticas no patolgicas e transtornos mentais: uma contribuio de estudos latino-americanos para o CID-11

    Differential diagnosis between non-pathological psychotic and spiritual experiences and mental disorders: a contribution from Latin American studies to the ICD-11

    Alexander Moreira-Almeida1, Etzel Cardea2

    1 Ncleo de Pesquisas em Espiritualidade e Sade (NUPES), Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG, Brazil2 Professor Thorsen de Psicologia, Lund University, Sucia

    ResumoObjetivo: Contribuir para a validade da Classificao Internacional de Doenas-11 edio no diagnstico diferencial entre experincias espirituais/anmalas e transtornos mentais revisando artigos de pesquisa sobre o tema em psiquiatria e psicologia envolvendo populaes latino-americanas e/ou produzidos por pesquisadores latino-americanos. Mtodo: Pesquisa em bases de dados (PubMed, PsycINFO, Scopus, and SciELO) por meio de palavras-chave (possesso, transe, experincia religiosa, experincia espiritual, Latin*, Brazil) em busca de artigos com dados psicolgicos e psiquitricos originais em experincias espirituais. Tambm foram analisadas as referncias dos artigos selecionados e autores na rea foram contactados em busca de dados e referncias adicionais. Resultados: H evidncias consistentes que experincias psicticas e anmalas so frequentes na populao geral e que em sua maioria no esto relacionadas a transtornos psicticos. Frequentemente, experincias espirituais envolvem experincias dissociativas e psicticas de carter no patolgico. Embora as experincias espirituais no estejam habitualmente relacionadas a transtornos mentais, elas podem causar sofrimento transitrio e so frequentemente relatadas por pacientes psicticos. Concluso: Propomos algumas caractersticas que sugerem a natureza no patolgica de uma dada experincia espiritual: ausncia de sofrimento, de prejuzo funcional ou ocupacional, compatibilidade com o contexto cultural do paciente, aceitao da experincia por outros, ausncia de comorbidades psiquitricas, controle sobre a experincia e crescimento pessoal ao longo do tempo.

    Descritores: Transtornos psicticos; Espiritualidade; Diagnstico diferencial; Classificao

    AbstractObjective: To review research articles in psychiatry and psychology involving Latin American populations and/or produced by Latin American scholars to investigate the differential diagnosis between spiritual/anomalous experiences and mental disorders in order to contribute to the validity of the International Classification of Diseases towards its 11th edition in this area. Method: We searched electronic databases (PubMed, PsycINFO, Scopus, and SciELO) using relevant keywords (possession, trance, religious experience, spiritual experience, latin*, Brazil) for articles with original psychiatric and psychological data on spiritual experiences. We also analyzed the references of the articles found and contacted authors for additional references and data. Results: There is strong evidence that psychotic and anomalous experiences are frequent in the general population and that most of them are not related to psychotic disorders. Often, spiritual experiences involve non-pathological dissociative and psychotic experiences. Although spiritual experiences are not usually related to mental disorders, they may cause transient distress and are commonly reported by psychotic patients. Conclusion: We propose some features that suggest the non-pathological nature of a spiritual experience: lack of suffering, lack of social or functional impairment, compatibility with the patients cultural background and recognition by others, absence of psychiatric comorbidities, control over the experience, and personal growth over time.

    Descriptors: Psychotic disorders; Spirituality; Diagnosis, differential; Classification

    CorrespondnciaAlexander Moreira-Almeida Rua da Laguna, 485/104 - Jardim Glria36015-230 Juiz de Fora, MG, BrazilTel.: (+55 32) 9123-4564 Fax: (+55 32) 3216-7122E-mail: [email protected]

    IntroduoUm nmero crescente de estudos tem demonstrado a alta

    prevalncia de experincias psicticas*, dissociativas ou incomuns na populao geral, embora a maioria dos indivduos que

    vivenciam tais experincias no sofra de transtornos psicticos ou dissociativos1-4. Pessoas com estas vivncias parecem formar um grupo heterogneo, no qual algumas so afetadas por transtornos

  • Experincias espirituais e transtornos mentais

    Revista Brasileira de Psiquiatria vol 33 Supl I mai2011 S22

    psiquitricos e outras no. De fato, alteraes de conscincia que podem ser interpretadas como psicticas tm sido relatadas ao longo da histria e interpretadas como tendo valor pessoal e social, sendo consideradas ainda fontes de inspirao nas artes, religio e outras reas5,6. Uma vez que a maior parte do conhecimento recebido sobre tais experincias baseia-se em amostras clnicas e geralmente hospitalizadas, pouco se sabe de suas implicaes em populaes no clnicas. Muitos clnicos ao redor do mundo ainda no esto cientes desses resultados recentes em populaes no clnicas e no possuem diretrizes clnicas para auxili-los na compreenso de indivduos que relatam experincias pseudo-psicticas ou outros eventos incomuns sem relao com transtornos psicticos ou outros quadros patolgicos. Esta situao resulta em um alto risco de diagnsticos errneos e iatrogenia.Outro campo emergente em psiquiatria o estudo das relaes

    entre espiritualidade e sade mental. Um tema que foi pouco explorado neste campo refere-se s experincias espirituais. Do ponto de vista clnico, um conhecimento mais aprofundado sobre o assunto necessrio, pois certas experincias espirituais podem ser confundidas com episdios psicticos, uma vez que envolvem eventos de natureza visionria ou transcendental que podem ser interpretados como sintomas de esquizofrenia. Por outro lado, pacientes psicticos podem apresentar sintomas de contedo religioso/espiritual7,8.Em decorrncia destes problemas, o Manual Diagnstico

    e Estatstico de Transtornos Mentais-4 Edio (DSM-IV) introduziu uma nova categoria chamada Problemas Religiosos ou Espirituais para direcionar a ateno clnica, justificando a avaliao de experincias religiosas e espirituais como parte constituinte da investigao psiquitrica sem necessariamente julg-las como psicopatolgicas. Lukoff, Lu e Turner definem problemas religiosos como sendo conflitos relacionados f e doutrina (como perda ou questionamento da f e converses religiosas) e problemas espirituais como conflitos envolvendo a relao com questes transcendentais ou derivados de prticas espirituais9. Como exemplos de problemas espirituais, os autores mencionam experincias msticas desencadeadas por prticas meditativas, experincias de quase morte e emergncias espirituais (desconforto e incapacidade associados ao surgimento de experincias espirituais). Tais experincias religiosas/espirituais no implicam, de modo geral, em dificuldades psicolgicas relevantes, mas podem ser perturbadoras e levar busca por avaliao e tratamento mdico ou psicolgico. Nestes casos, as experincias podem ser compreendidas como problemas religiosos ou espirituais que no necessariamente constituem transtornos mentais, podendo apenas refletir o modo da pessoa de adaptar-se a uma nova fase da vida ou a uma experincia com efeitos potencialmente positivos12. Existe desde longa data a ideia de que determinadas experincias

    psicticas, tais como as alucinaes, possam ser parte de estgios do desenvolvimento espiritual, e no apenas sintomas de um transtorno psiquitrico13.Com base nas consideraes acima, acreditamos que seria til

    incluir diretrizes baseadas nas evidncias j disponveis para auxiliar no diagnstico diferencial entre experincias espirituais, experincias anmalas no patolgicas e sintomas patolgicos reais na 11 Edio da Classificao Internacional de Doenas (CID-11). Para atingir este propsito, revisamos artigos cientficos das reas de psiquiatria e psicologia envolvendo populaes latino-americanas e/ou publicados por pesquisadores latino-americanos sobre o diagnstico diferencial entre experincias espirituais que se assemelham a sintomas psicticos e/ou dissociativos e transtornos reais. Esta reviso poder contribuir para a CID-11 em diversas reas, incluindo a classificao de transtornos mentais na Amrica Latina, e aprimorar a aplicabilidade global das classificaes de transtornos mentais, especialmente no que se refere esquizofrenia e outros transtornos.

    MtodoForam realizadas vrias buscas em bancos de dados eletrnicos.

    No PubMed, utilizaram-se as expresses de busca ((((possession) OR trance) OR religious experience) OR spiritual experience) AND (latin* OR Brazil), as quais resultaram em um total de 140 referncias; no Scopus, buscas utilizando as expresses ABS (possession OR trance OR religious experience OR spiritual experience) AND ABS (latin* OR Brazil) acusaram 73 artigos; no banco SciELO, uma busca com as expresses transe OR possesso OR experincia religiosa OR experincia espiritual localizou 24 artigos; e, por fim, a busca realizada no PsycINFO com os termos trance e spirit possession resultou em mais de 700 artigos, a maioria dos quais escapava ao tema desta reviso. As listas de referncias bibliogrficas dos artigos selecionados foram examinadas em busca de outras publicaes relevantes e os pesquisadores da rea foram contatados e questionados sobre referncias e dados adicionais. A reviso foi focada em artigos com dados originais relacionados aos aspectos psiquitricos e psicolgicos de experincias espirituais, assim como em artigos de reviso com nfase em mas no limitados a populaes latino-americanas. Finalmente, realizou-se uma busca no banco de dados PubMed a partir das expresses psychotic symtoms e general population para localizar artigos recentes representativos do estado atual da pesquisa na rea.

    Resultados1. Experincias psicticas em populaes no clnicasUm levantamento recente realizado pela Organizao Mundial

    da Sade (OMS) envolvendo mais de 250.000 pessoas de 52 pases descobriu uma alta prevalncia de experincias psicticas (que

    * Embora o termo psictico seja geralmente utilizado para se referir a transtornos mentais graves, experincias normalmente consideradas psicticas, como alucinaes, inseres de pensamento e vivncias de passividade no so necessariamente patolgicas. Casos como estes seriam provavelmente melhor agrupados por meio de um termo mais neutro como experincias anmalas10, por exemplo. Neste artigo, no entanto, seguiu-se a sugesto de Jackson e Fulford11 de utilizar as expresses fenmenos psicticos ou experincia psictica em um sentido mais amplo para designar tanto experincias patolgicas como no patolgicas. Daqui em diante, o termo sintoma psictico ser utilizado apenas para designar uma experincia psictica patolgica.

  • Moreira-Almeida A & Cardea E

    S23 Revista Brasileira de Psiquiatria vol 33 Supl I mai2011

    populaes latino-americanas que avaliaram critrios para o diagnstico diferencial. Dada a escassez de estudos adequados, so apresentados ainda dados obtidos a partir de outras populaes.Uma das maneiras de se encontrar marcadores do carter

    patolgico de experincias psicticas consiste na identificao de caractersticas associadas busca por assistncia mdica. Lovatt et al. compararam uma amostra clnica de pacientes com transtornos psicticos e uma populao no clnica de pessoas com histrico de experincias psicticas (a maior parte dos indivduos neste grupo pertencia a associaes espiritualistas ou paranormais) no Reino Unido21. Os dois grupos apresentaram os mesmos escores totais em uma medida de percepes anormais/psicticas; no entanto, diferenas importantes foram observadas. A amostra clnica teve maiores ndices de problemas cognitivos/de ateno (bloqueio do pensamento, dficits de ateno) e de sintomas depressivos e ansiosos. Com respeito a experincias anmalas/psicticas, a populao clnica apresentava uma propenso substancialmente maior para atribu-las a outras pessoas (avaliar as prprias experincias como sendo causadas por terceiros [OR = 21]) e para considerar estas experincias como perigosas, negativas e ansiognicas. A amostra no clnica, por outro lado, tendia a compreender tais experincias como normais e positivas. Em resumo, os grupos no apresentaram diferenas com respeito aos escores totais de experincias anmalas/psicticas, mas diferiram quanto ao tipo especfico, interpretao e resposta a estas experincias. Os autores concluram que avaliar tais experincias como parte da gama normal de experincias humanas parece ser, portanto, uma medida adaptativa; ao passo que avaliaes paranides e externalizantes parecem estar associadas a uma necessidade de cuidado clnico (p.817). Da mesma forma, pessoas que relataram ouvir vozes, mas que no possuem problemas psicolgicos, diferem de pacientes com transtornos mentais em variveis como controle sobre a experincia e contedo mais benevolente do que as vozes dizem22.Estudos envolvendo pessoas que praticam o espiritismo ouligadas

    parapsicolgia no Brasil, Argentina e Peru demonstraram que estes subgrupos especficos apresentam uma alta prevalncia de experincias anmalas/psicticas (vises, vozes, experincias de influncia, transmisso de pensamento etc.), mas que tais experincias so, em geral, associadas a nveis mais altos de espiritualidade e melhor sade mental, ajustamento social e bem-estar, ao invs de serem relacionadas patologia. Estes fenmenos so frequentemente percebidos como assustadores no incio, mas costumam ser mais tarde interpretados como tendo consequncias positivas profundas (como promotores de bem-estar, de significado para a vida, de esperana, crenas espirituais etc.) por aqueles que os vivenciam23-25. Outros autores tambm enfatizaram os efeitos potencialmente benficos de experincias anmalas26-28.A mediunidade, definida como um conjunto de experincias

    nas quais um indivduo (o mdium) alega entrar em contato com ou estar sob o controle da personalidade de uma pessoa j falecida ou outro ser imaterial, um tpico relevante nesta discusso. Experincias como estas, s vezes equiparadas possesso espiritual

    no ocorreram quando voc no estava sonolento, dormindo ou sob a influncia de lcool ou drogas) na populao geral nos 12 meses anteriores ao levantamento: 12,52% na amostra total. No entanto, a prevalncia destas experincias variou amplamente entre os pases, de 1% dos entrevistados do Vietn at 46% do Nepal que relataram ao menos uma experincia psictica. Dentre os sete pases latino-americanos includos no levantamento, a prevalncia variou entre 5,5% no Uruguai e 32% no Brasil (9% no Paraguai, Mxico e Equador, 15% na Guatemala e 21% na Repblica Dominicana). Embora associadas com o diagnstico de esquizofrenia em apenas 10% dos casos, o nmero de experincias psicticas correlacionou-se moderadamente com pior estado de sade4.Em uma amostra nacionalmente representativa de latinos

    vivendo nos Estados Unidos, a prevalncia de experincias psicticas ao longo da vida foi de 9,5%, mas 93% dos entrevistados que relataram experincias psicticas nunca haviam sido diagnosticados com quaisquer transtornos psiquitricos14. Os relatos de sintomas psicticos nesta populao, no entanto, foram associados a maior desconforto emocional e incapacitao, interpretados pelos autores do estudo mais como marcadores de morbidade psiquitrica geral (normalmente depresso, ansiedade ou transtornos relacionados ao uso de substncias) do que de transtornos psicticos. De forma interessante, cerca de 1/3 dos indivduos que relataram experincias psicticas no sofriam de transtornos psiquitricos conforme avaliao feita com uma entrevista clnica estruturada. A prevalncia de experincias psicticas ao longo da vida foi associada busca de conforto por meios religiosos/espirituais. Uma alta prevalncia de experincias psicticas (20,9%) tambm foi observada entre 1.005 pacientes de servios de sade geral em centros urbanos nos Estados Unidos15. Tais experincias foram mais frequentes entre pacientes de origem hispnica e com baixa renda e foram associadas com maior incidncia de transtornos mentais (geralmente depresso e ansiedade) e incapacitao.

    2. Prticas e experincias espirituaisDesde o sculo XIX, psiclogos e psiquiatras tenderam a

    considerar experincias espirituais como transtornos mentais e envolvimento religioso como um marcador de patologia ou imaturidade psicolgica9, com poucas excees, como William James16. Tal abordagem era especialmente forte no caso de experincias espirituais semelhantes a transtornos psicticos e dissociativos, como as que ocorrem dentro das tradies espritas e afro-americanas, bastante populares em pases latino-americanos. Esta abordagem psiquitrica inadequada fomentou o preconceito, a segregao e internaes psiquitricas involuntrias17-19.Modos particulares para expressar doenas ou desconforto,

    bem comoas crenas e prticas espirituais entre indivduos de origem latina podem implicar complicaes adicionais relativas ao significado de experincias psicticas nestas culturas. Portanto, necessrio buscar outros marcadores de transtornos mentais para avaliar o significado clnico dos relatos de tais experincias15,20. Apresentamos abaixo estudos envolvendo principalmente

  • Experincias espirituais e transtornos mentais

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    voluntria, so tambm chamadas de canalizao e tm sido relacionadas produo de vrios trabalhos criativos na literatura, na msica e nas artes em geral29. Formas institucionalizadas de possesso e outros estados alterados de conscincia induzidos ritualmente foram descritos em 53% de um total de 488 sociedades ao redor do mundo30 e so onipresentes tanto na histria ocidental como na oriental31. Atualmente, estas experincias so amplamente difundidas na Amrica Latina e ao redor do globo por meio de grupos religiosos, tais como os catlicos carismticos, evanglicos pentecostais, espritas e religies afro-americanas.Koss-Chioino realizou um estudo aprofundado sobre a

    integrao de cuidados em sade mental e prticas de cura realizadas por espritas em Porto Rico32,33. A maioria dos mdiuns consultados relatou que comeou a ver espritos (geralmente parentes falecidos, anjos ou outros espritos amigveis) quando criana ou na adolescncia, o que teve um efeito positivo no sentido de prover ajuda ou suporte emocional em momentos de crise. Embora a maioria dos pais aceitasse as experincias vividas por seus filhos, alguns as ignoravam ou as interpretavam como transtornos emocionais. A maior parte dos mdiuns jamais havia buscado assistncia em sade mental ou recebido diagnsticos de transtornos mentais. Todos os mdiuns participantes haviam passado por processos de iniciao em centros espritas para utilizar suas habilidades medinicas para ajudar outras pessoas. As caractersticas identificadas pelos autores como teis para diferenciar experincias espirituais de transtornos mentais foram o controle sobre alteraes no estado de conscincia e o aprimoramento de habilidades interpessoais (por exemplo, prticas medinicas dirigidas para a cura).Negro et al. avaliaram 110 pessoas (60% das quais eram

    mdiuns) que frequentavam cursos em centros espritas na cidade de So Paulo, Brasil34,35. No espiritismo, todas as atividades (incluindo cursos e intervenes medinicas) so gratuitas e compreendidas como atividades de caridade. Embora tivessem altos escores em medidas de dissociao, os mdiuns possuam bons ndices de socializao e adaptao (educao, vida profissional e nvel de felicidade), alm de baixos ndices de abuso na infncia. O treinamento medinico foi associado com controle sobre as experincias, mas no com nveis maiores de experincias medinicas. Patologia foi relacionada com menor controle sobre a atividade medinica, idade mais baixa, incio tardio de experincias anmalas, menor suporte social e mais sintomas psiquitricos anteriores. Nveis mais altos de atividade medinica foram associados a escores menores de evitao de danos (uma dimenso da personalidade comum em indivduos com propenso ansiosa e caracterizados por preocupaes pessimistas na antecipao de problemas futuros e comportamentos de evitao passivos) e no estavam relacionados com dependncia de recompensa (sentimentalidade e dependncia de aprovao alheia).Nosso grupo realizou um estudo envolvendo 115 mdiuns

    de centros espritas da cidade de So Paulo selecionados aleatoriamente. A amostra possua alto nvel socioeducacional, baixa prevalncia de transtornos mentais e era socialmente bem

    adaptada. Os mdiuns relataram altos nveis de experincias psicticas e dissociativas (incluindo uma mdia de quatro sintomas schneiderianos de primeira ordem, geralmente considerados na literatura psiquitrica como sugestivos de esquizofrenia, mas tambm encontrados entre indivduos com transtornos dissociativos, tais como pensamentos audveis ou insero de pensamentos). Tais experincias, no entanto, no tinham correlao com outros marcadores de transtornos mentais, como adaptao social, sintomas psiquitricos comuns (depresso, ansiedade ou queixas psicossomticas) e histria de abuso na infncia. De fato, experincias de incorporao (experincia de ser completamente controlado por uma entidade) correlacionaram-se com melhores ndices de ajustamento social e menos sintomas psiquitricos. Experincias auditivas e psicografia tambm se correlacionaram com melhor ajustamento social36-39. Em comparao com dados de pacientes com transtorno de mltiplas personalidades, redefinido como transtorno dissociativo de identidade (TDI), os mdiuns apresentavam melhor ajustamento social, menor prevalncia de transtornos mentais, uso menos frequente de servios de sade, ausncia de uso de antipsicticos, menor prevalncia de histrico de abusos fsicos ou sexuais na infncia, menos sonambulismo, menos caractersticas secundrias de TDI e menos sintomas de transtorno de personalidade limtrofe38.Em geral, as experincias medinicas relatadas surgiram na

    infncia e fora de ambientes culturais receptivos (parentes e conhecidos frequentemente definiam tais experincias como loucura ou possesso demonaca), o que gerava desconforto e sentimentos de ser diferente e socialmente isolado, embora seja importante mencionar que a cultura brasileira mais aberta do que a maioria das outras culturas a este tipo de manifestao. Somente dcadas depois as experincias medinicas eram integradas como eventos espirituais saudveis. Durante a realizao do estudo, experincias como ouvir vozes, ver espritos e eventos de influncia, embora fossem mais comuns em contextos rituais, tambm ocorriam no cotidiano, fora de tais contextos28,36.Em outra investigao, Laria estudou trs grupos de cubanos:

    mdiuns espritas, pacientes com transtornos mentais e um grupo controle sem mdiuns ou pacientes40. Os mdiuns relataram maior incidncia de experincias dissociativas comuns, menores ndices de psicopatologia, menos experincias traumticas (incluindo abuso sexual) e menor desconforto subjetivo do que os pacientes.Reinsel observou que mdiuns norte-americanos relatavam mais

    experincias de despersonalizao e absoro do que controles, mas que os dois grupos no diferiam com relao ao bem-estar subjetivo ou desconforto psicolgico41. Em contraste, Seligman relatou que, no candombl (religio afro-brasileira), os mdiuns tendem a somatizar e a experimentar outros transtornos, embora este estudo tenha a limitao de no controlar a influncia do perfil socioeconmico como uma potencial varivel de confuso42.No anseio de compreender as experincias anmalas em geral,

    alguns estudos investigaram o perfil de sintomas esquizotpicos (positivos, negativos e de desorganizao) na populao geral. A esquizotipia definida como um construto de personalidade

  • Moreira-Almeida A & Cardea E

    S25 Revista Brasileira de Psiquiatria vol 33 Supl I mai2011

    multifatorial cujos aspectos parecem localizar-se em um continuum com a psicose43. Um modelo de trs fatores compreendendo sintomas positivos (experincias anmalas cognitivo-perceptuais), negativos (prejuzos interpessoais, anedonia fsica ou social) e de desorganizao foi proposto. Claridge descreveu uma classe de esquizotpicos felizes, pessoas que tm experincias cognitivas e perceptuais incomuns sem relao com sintomas negativos ou de desorganizao. A esquizotipia positiva foi consistentemente associada a crenas e experincias paranormais43. Em uma amostra de estudantes universitrios de Buenos Aires, na Argentina, e de Lima, no Peru, voluntrios espiritualizados tinham maiores nveis de experincias paranormais e de sintomas esquizotpicos positivos do que voluntrios no-espiritualizados. No houve diferenas entre os grupos com relao aos sintomas negativos e de desorganizao24. Schofield e Claridge investigaram participantes de grupos com interesses paranormais na internet no Reino Unido44. Os autores observaram que a desorganizao cognitiva moderava a associao entre esquizotipia e avaliao subjetiva de experincias paranormais como agradveis ou desagradveis. O fato de possuir um sistema de crenas capaz de fornecer sentido s experincias esquizotpicas positivas teve um efeito protetor, relacionado com menor desorganizao cognitiva e experincias paranormais mais agradveis. Os autores sugerem que aqueles que no possuem esta estrutura cognitiva de proteo seriam bombardeados por eventos estranhos que no conseguem explicar (p.1910) e estariam mais vulnerveis a sentimentos desconfortveis e mau funcionamento, posto que tais experincias seriam assustadoras e perturbadoras. Isso pode explicar como o sistema explicativo de vrias tradies espirituais pode servir a propsitos teraputicos45.Um estudo prospectivo de 20 anos realizado na Sua demonstrou

    uma alta prevalncia de experincias psicticas entre pessoas na faixa dos 20 anos, a qual diminuiu ao longo do acompanhamento. Consoante com as dimenses da esquizotipia, a anlise fatorial das experincias psicticas gerou dois fatores: o primeiro relacionado principalmente com alucinaes e experincias de influncia, e o segundo compreendendo delrios paranides e dificuldades interpessoais. Estes dois fatores tinham padres diferentes de preditores, curso e desfecho funcional46.

    3. Experincias religiosas em pacientes psicticosUm estudo envolvendo mulheres porto-riquenhas com

    transtornos mentais graves vivendo nos Estados Unidos mostrou que os contedos mais frequentes de alucinaes so relacionados religio/espiritualidade, e que crenas e prticas religiosas proveem uma fonte de significado para lidar com sintomas psicticos. Alm disso, um dos achados mais importantes e frequentes do estudo referiu-se incapacidade dos mdicos para reconhecer e abordar o significado (geralmente religioso) destas experincias psicticas junto aos pacientes, alm da necessidade de se considerar a histria religiosa na avaliao inicial dos mesmos47. A importncia de levar em considerao crenas espirituais e inclusive de desenvolver alianas com grupos religiosos/espirituais no tratamento de

    pacientes foi ilustrada por outros relatos envolvendo pacientes psicticos em Porto Rico28,32,33,39 e na Sua48.A importncia de temas religiosos para pacientes psicticos

    tambm foi observada no Brasil por meio de um estudo etnogrfico envolvendo 21 pacientes em primeiro surto psictico que buscaram atendimento em um servio de emergncia psiquitrica na cidade de So Paulo49. Em quase todos os casos (20), os pacientes e suas famlias haviam buscado fontes de ajuda religiosa (geralmente pentecostais ou umbanda, uma religio afro-brasileira) paralelamente aos recursos psiquitricos.

    ConclusoNa ltima dcada, tornou-se claro que experincias psicticas so

    bastante prevalentes na populao geral, e que em aproximadamente 90% dos casos elas no tm conexo com transtornos psicticos. Designar tais experincias como sintomas psicticos resultaria em cerca de 90% de falsos positivos14. Acreditamos que outros termos propostos na literatura, como experincias psicticas11 ou o mais neutro experincias anmalas, seriam mais adequados para descrever tais fenmenos10.Em um artigo recente, Van Os sugeriu uma reformulao

    completa de nossa compreenso sobre os sintomas e transtornos psicticos. O autor prope uma conexo entre a psicose e as experincias humanas normais, uma vez que transtornos psicticos relacionam-se com experincias partilhadas pela populao geral. O artigo enfatiza o quanto ainda no sabemos sobre tais experincias e a necessidade de uma abordagem mais humilde nesta rea50 (veja Bentall22 para mais dados sobre alucinaes). As evidncias sobre a alta prevalncia de experincias psicticas na populao geral no clnica, em conjunto com outras descobertas cientficas recentes, alimentaram crticas sofisticadas aos conceitos atuais sobre a esquizofrenia e aos critrios diagnsticos utilizados na CID-10 e no DSM-IV51,52. Os achados indicam a necessidade de conceitos e critrios diagnsticos para a esquizofrenia com maior embasamento emprico, como proposto por autores que afirmam que h uma distncia significativa entre a tradio na qual se baseia a esquizofrenia definida pelo DSM-IV e o conhecimento acumulado nas ltimas dcadas (...) e que existe uma enorme lacuna entre as descobertas formuladas nas teorias contemporneas sobre a esquizofrenia e a forma (no baseada em evidncias) com que a esquizofrenia definida no DSM (p.409, 413)52.O reconhecimento pelos mdicos e pela populao de que

    experincias psicticas so bastante comuns e no necessariamente patolgicas pode no apenas melhorar a prtica clnica, mas tambm contribuir para diminuir o estigma associado aos transtornos psicticos, que se baseia na premissa errada de que tais eventos so totalmente distintos da experincia humana comum22,50,51. Castillo, em uma reviso sobre psicose e cultura, sugere que episdios psicticos podem durar menos e ter melhores desfechos em culturas capazes de acolh-los com compreenso, suporte social e prticas tradicionais de cura (p.15), em parte explicados pelo fato de que estes fatores podem resultar em menores nveis de emoo expressa e fornecer uma base para a

  • Experincias espirituais e transtornos mentais

    Revista Brasileira de Psiquiatria vol 33 Supl I mai2011 S26

    compreenso de tais experincias, alm de estratgias para reduzir seus efeitos negativos27. Em sociedades mais individualistas e de orientao biolgica, sentimentos de rejeio, isolamento social e desamparo relacionados possibilidade de se ter uma doena crnica e incurvel podem contribuir para piorar a evoluo do quadro.Dados epidemiolgicos sugerem fortemente que pessoas que

    tm experincias psicticas formam um grupo heterogneo no qual alguns sofrem de transtornos mentais e outros no, como sugerido por investigaes que exploram a relao entre experincias psicticas e espirituais34,37,38,53. A partir de uma perspectiva clnica, importante ter em mente o equilbrio entre dois extremos: considerar todas as experincias anmalas como marcadores de transtornos psicticos ou mesmo no psicticos, por um lado; ou entend-las como irrelevantes para a nossa compreenso do quadro de determinado paciente, por outro20,54.Nas ltimas dcadas, surgiram evidncias mostrando que o

    envolvimento religioso e as experincias espirituais so geralmente associados a desfechos positivos em sade55,56. Como expresso pelos proponentes da seo Problemas Religiosos ou Espirituais do DSM-IV, a resposta do clnico pode determinar se a experincia ser integrada e utilizada como um estmulo para o crescimento pessoal, ou se ser reprimida como um evento bizarro que pode indicar instabilidade mental (p.679)9. De modo geral, estudos transculturais mostram que pessoas que vivenciam possesses espirituais, glossolalia e prticas similares dentro de contextos rituais no tm maiores taxas de patologia em comparao com outros grupos, e em alguns casos parecem viver melhor a despeito de histrias eventuais de traumas ou situaes adversas importantes, o que sugere que estas prticas podem ter efeitos teraputicos26.A associao entre experincias espirituais e nveis normais ou at

    melhores de sade mental e ajustamento social no corroboram a viso de que experincias medinicas so sintomas menos graves em um continuum com os transtornos psicticos ou dissociativos. Se este fosse o caso, uma correlao diretamente proporcional entre a intensidade de experincias medinicas e transtornos psiquitricos ou m adaptao social seria provavelmente encontrada37. Estas afirmaes no se aplicam, no entanto, aos casos de possesso involuntria ou no controlada, as quais podem causar desconforto e prejuzos26.Para aumentar sua sensibilidade cultural, os manuais

    diagnsticos consideram que experincias dissociativas devem causar desconforto ou incapacitao e no podem ser aceitas pelo grupo cultural local para que sejam classificadas como patolgicas1,57. Embora teis, estes critrios so limitados e no podem ser utilizados de forma automtica. Por exemplo, experincias espirituais (cujos desfechos demonstram que no implicam patologia) podem ocorrer em ambientes culturais no receptivos a tais eventos, resultando em desconforto significativo para os envolvidos36.Ao lidar com pessoas oriundas de contextos culturais diferentes,

    clnicos e pesquisadores devem buscar o significado mico (culturalmente intrnseco) da experincia em questo, ao invs de serem guiados apenas por perspectivas universalistas e

    gerais (ticas). At mesmo os grupos religiosos reconhecem que transtornos psiquitricos ou neurolgicos so frequente e erroneamente rotulados como experincias espirituais, adiando a implementao de tratamento adequado36,39,58,59. Diagnsticos equivocados podem ser feitos em ambas as direes por mdicos e lderes espirituais, o que destaca a necessidade de diretivas mais sofisticadas, no tendenciosas e baseadas em evidncias para sustentar nosso raciocnio clnico. Tem havido carncia de diretrizes baseadas em evidncias empricas para fazer o diagnstico diferencial entre experincias espirituais saudveis e transtornos mentais.Uma limitao deste artigo refere-se escassez de estudos de

    qualidade planejados especificamente para investigar o tema em questo. Entretanto, a convergncia dos dados obtidos por autores diferentes a partir de populaes distintas nos permita tirar concluses e delinear recomendaes razoavelmente confiveis. Embora tenhamos discutido diretrizes para o diagnstico diferencial em outras publicaes,60,61 investigaes adicionais como as que podem ser obtidas a partir de estudos longitudinais ainda so necessrias62. Com base no conhecimento atualmente disponvel, seria til incluir informaes relativas ao diagnstico diferencial entre experincias espirituais e transtornos mentais na CID-11. Clnicos e pesquisadores devem perceber a importncia de se:- Reconhecer a relevncia da competncia cultural no manejo

    de pacientes com relatos de experincias espirituais e desenvolver esta competncia e o raciocnio clnico no estabelecimento do diagnstico diferencial entre experincias espirituais e transtornos mentais. Isso deve ajudar a reduzir a ocorrncia de danos iatrognicos ao evitar o risco de patologizao de comportamentos saudveis e a expandir a relevncia transcultural da CID-11;- Reconhecer que experincias dissociativas, psicticas ou outros

    eventos incomuns no so necessariamente patolgicos, embora possam causar desconforto caso o ambiente circundante no seja receptivo ou no fornea uma parmetros para uma interpretao no patolgica de sua ocorrncia;- Estimular pesquisas que expandam o nosso conhecimento

    sobre as experincias espirituais, melhorando nossa compreenso sobre sua natureza (por exemplo, prevalncia, fatores precipitantes, fenomenologia e desfecho) para que possamos realizar diagnsticos diferenciais e manejo clnico adequados.Embora a maior parte deste artigo se baseie em contribuies

    da Amrica Latina, os temas discutidos aqui no so relevantes apenas para minorias tnicas ou terras exticas, um preconceito comum em relao psiquiatria cultural63, mas tambm so importantes para a prtica clnica ao redor do mundo, uma vez que pesquisas demonstram altos nveis de experincias psicticas associadas a crenas religiosas e envolvimento religioso em todo o planeta4,13,64. Esta outra razo para que se inclua ao menos uma breve discusso sobre o assunto na CID-11, que tem o propsito de servir a todos os pases.Dado o reconhecimento crescente da importncia da religiosidade

    e da espiritualidade e de suas implicaes para a avaliao diagnstica e o planejamento teraputico, vrias organizaes mdicas recomendam a investigao da histria religiosa/

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    S27 Revista Brasileira de Psiquiatria vol 33 Supl I mai2011

    espiritual do paciente e prticas relacionadas durante a avaliao clnica65,66. A obteno destes dados de pacientes com relatos de experincias psicticas deve servir no apenas para aumentar a preciso diagnstica e evitar a rotulao de experincias espirituais potencialmente saudveis como patolgicas, mas tambm para ajudar os clnicos a lidarem melhor com pacientes psicticos.

    RecomendaoOs autores recomendam que a CID-11 inclua um texto dentro

    dos parmetros propostos abaixo.Considerando-se que crenas e experincias religiosas e espirituais

    podem afetar a sade mental e a forma com que os pacientes lidam com problemas e transtornos mentais, e que experincias espirituais saudveis podem apresentar caractersticas que se assemelham a sintomas dissociativos e psicticos, recomendvel investigar o contexto e as crenas, prticas e experincias espirituais e religiosas do paciente. fundamental desenvolver a competncia cultural e o raciocnio

    clnico para compreender o sistema de referncia cultural do indivduo

    e analisar a relevncia clnica de experincias que podem se assemelhar a sintomas dissociativos e psicticos. Profissionais clnicos devem estar cientes de que a maioria das pessoas que relatam experincias anmalas, psicticas ou dissociativas na realidade no sofre de transtornos psicticos ou dissociativos. Alguns elementos (Tabela 1), embora no necessariamente presentes ou suficientes em si, so indicativos da natureza no patolgica de tais experincias. Embora contra-exemplos patolgicos possam ser encontrados para cada um destes parmetros (por exemplo, episdios catatnicos sem sofrimento psicolgico), as variveis descritas na Tabela 1 geralmente falam contra a presena de psicopatologia. Quanto mais destes elementos estiverem presentes, de modo geral, menor a possibilidade de que a experincia em questo esteja relacionada a um transtorno mental.Os autores reconhecem que a utilizao destas diretrizes

    impe algumas demandas sobre os profissionais clnicos, no entanto, fazer menos resultaria em ignorar um corpo crescente de evidncias e, mais importante, na possibilidade de causar danos ao invs de benefcios.

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