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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.
A Musicoterapia num contexto educacional: perspectivas
de atuao
Laryane Carvalho Loureno da Silva7
RESUMO
Observamos que um dos grandes desafios da Musicoterapia nos dias atuais, alm de sua busca por uma fundamentao terica e legitimao dos espaos por ela ocupados, a insero de sua prtica nos diversos contextos problemticos e complexos que encontramos em nossos pases latinos, j que dividimos com estes, situaes semelhantes de desigualdade social. Dentre esses contextos, destacamos a prtica educacional nas escolas pblicas brasileiras, especificamente, nas do Rio de Janeiro, que encontra dificuldades reais no que condiz s condies de trabalho, de ensino e estruturais. Este artigo apresentar e tentar pensar junto sobre a prtica da Musicoterapia num espao educacional, o limite difuso existente entre a Musicoterapia e a educao neste espao, e principalmente, a necessidade de um dilogo cada vez mais interdisciplinar nas escolas pblicas brasileiras com o intuito de abrir solues coletivas para a superao de suas dificuldades.
Palavras-chave: Musicoterapia, educao.
7 Musicoterapeuta da Associao de Solidariedade Criana Excepcional, Rio de Janeiro. Email- [email protected]
mailto:[email protected]
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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.
Music therapy in an educational context: practice
perspectives
ABSTRACT One of the greatest challenges of Music therapy today, apart from its search for theoretical bases and its insertion into different areas of society, is the inclusion of its practice into different problematic contexts that we find in Latin countries, as we share with them similar situations of social inequality. Within these contexts, we highlight the education practices in Brazilian public schools, specifically those of Rio de Janeiro city, facing deteriorate labor and structural conditions. This article is a reflection on Music therapy practices inside the educational system, the gap between education and Music therapy, and mainly, the need for an interdisciplinary interaction for the purpose of collectively finding solutions for their problems.
Keywords: Music therapy, education.
INTRODUO
Nos dias atuais, torna-se cada vez mais comum a
entrada de profissionais musicoterapeutas em instituies de
educao, seja pela demanda de educadores em msica que
estes encontram em tais instituies, ou pela prpria
proximidade que a Musicoterapia tem com o ensino,
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principalmente quando nos referimos educao especial.
Alm disso, diante da problemtica social, financeira e
estrutural que as escolas pblicas apresentam em nossa
sociedade brasileira, no podemos negligenciar a importncia
do enfoque saudvel que tais instituies devem, ou
deveriam, promover em suas atividades, trazendo os aspectos
de sade do ser humano integrado aos seus objetivos gerais.
Assim, alm de um local de ensino, a escola tambm um
local de agncia da sade, que busca um atendimento integral
do homem, no seu desenvolvimento fsico, intelectual,
emocional e espiritual. Porm, nossas instituies pblicas de
educao encontram-se num estado cada vez mais difcil,
tanto no que condiz prpria funo que a educao deveria
exercer em nossa sociedade, quanto falta de incentivos
pblicos que pudessem favorecer meios dignos para a
execuo da prtica educacional. Com as dificuldades
encontradas, cada vez maiores, para a viabilizao do saber,
no s a sade dos educandos encontra-se em risco, como a
prpria sade do educador nessas condies. Da a
importncia de linhas de pesquisaiv que possam dialogar com
essas duas reasv, sade e educao, trazendo conceitos e
concepes que orientem para a soluo de problemas que
atingem as escolas brasileiras.
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Alm disso, sabemos tambm que a os problemas
educacionais so de ordem social e poltica, e, portanto, as
solues devem ter um carter cada vez mais coletivo e
interdisciplinar, exigindo polticas pblicas que possam
cumprir com seu dever primeiro de atender as necessidades
da comunidade, e abrir redes de dilogos que fortaleam a
ao coletiva e a recusa ao reducionismo e a objetivao dos
sujeitosvi. O cruzamento de diferentes saberes e prticas pode
ser uma sada para a superao de uma educao e terapia
que esto centradas no individualismo, permitindo assim uma
abordagem integral do ser humano.
Devido relao ntima existente entre educao e
terapia, torna-se tambm importante reconhecermos os
pontos de intercesso e de diferena entre essas duas reas.
Porm, devido ao objetivo especfico deste trabalho,
tentaremos relacionar apenas algumas caractersticas
similares a elas, apresentando concepes e objetivos que
permeiam tanto a rea teraputica quanto a pedaggica.
O PROJETO
O trabalho aqui exposto foi realizado atravs do
Projeto Escola Brasil, gerado e patrocinado pelo Banco Real,
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uma empresa privada, que contrata diversos profissionais,
dentre eles musicistas, para atuarem em escolas pblicas do
Rio de Janeiro. Meu contrato iniciou em fevereiro de 2005,
numa escola pblica no subrbio do Rio de Janeiro, prximo
ao Complexo do Alemovii. Atravs de uma pesquisa feita por
um funcionrio do banco, foi apresentado, em relatrio, que
tipo de atividade a escola gostaria ou necessitava ter naquele
momento. A instituio pediu um professor de msica com o
intuito de formar um coral da escola, e da surgiu o convite
para meu contrato. Porm, ao chegar ao local, eu me
apresentei como musicoterapeuta, e sugeri alm do coral, um
trabalho com as chamadas classes de progressoviii. A
proposta foi imediatamente aceita pela escola, iniciando um
trabalho com esses alunos, que muitas vezes tornavam-se
excludos socialmente por serem considerados difceis de
lidar. Os integrantes deste grupo apresentavam dificuldades
no aprendizado e nas relaes sociais, mostrando, em muitos
momentos, uma agressividade com as outras crianas e
dificultando suas relaes na escola. Eles eram bastante
dispersivos nas atividades, com uma grande dificuldade de
ouvir e uma imensa necessidade de falar. A maioria desses
sujeitos eram meninos, sendo alguns deles moradores da
prpria escola, j que esta possua uma residncia para
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alunos cuja famlia apresentava riscos sade do infante (em
casos de tutores viciados em drogas ou lcool, ou de pais
sem condies financeiras para cuidar de seus filhos). Muitos
desses alunos residentes possuam um atraso escolar e um
distrbio no comportamento, assim, apesar de estarem numa
instituio educacional, a situao dessas crianas exigia um
olhar para alm da educao, para um foco de preveno e
promoo da sade, entrando neste espao, a escuta do
musicoterapeuta.
Esta reflexo parte do princpio de que as instituies
educacionais deveriam ser, pelo menos em sua inteno,
locais que buscam, de alguma forma, a sade do ser humano.
Luz (2004), em seus estudos na rea de sade coletiva,
aponta uma srie de transformaes ocorridas ao longo do
sculo XIX, que contriburam para uma vulnerabilidade social,
traduzida em problemas coletivos de sade. A autora delineia
algumas transformaes econmicas, sociais e culturais que
poderiam ter acarretado graves conseqncias para o bem-
estar das populaes, gerando uma crise sanitria (LUZ,
2004)
As relaes entre o aumento, em termos absolutos e relativos, nas populaes do planeta, de busca por ateno mdica e
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cuidado teraputico na ltima dcada; a precarizao do emprego e das relaes de trabalho; a quebra de certos direitos sociais, sobretudo previdencirios, obtidos como fruto de luta e organizao dos trabalhadores ao longo de um sculo (segunda metade do XIX e primeira do XX); a queda de valores importantes em termos de solidariedade social (familiares, religiosos, corporativos, de classe) e a constatao de um mal-estar coletivo difuso (...), foram apontadas e analisadas em trabalhos anteriores (LUZ, 1997, 2001), como elementos caractersticos de uma crise sanitria contempornea. (LUZ, 2004, pg. 13).
Estamos atualmente numa sociedade que oferece
muitos riscos s crianas e aos adolescentes, e devemos
reconhecer as escolas como um meio de interveno da
sade, como mais um espao para oferecer novas
possibilidades de bem-estar dos indivduos. Pellizzari (2005)
mostra algumas possibilidades de interveno musicoterpica
preventiva nos chamados Sistemas de Apoioix, onde a escola
encontra-se como uma instituio includa. Alm da famlia, os
sistemas de apoio incluem outras redes sociais como os
amigos, vizinhos, clubes, escolas, centros religiosos, entre
outros. A autora completa:
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O musicoterapeuta preventivo se insere a partir de projetos que tm como objetivo impactar nestas redes sociais: a famlia e os diferentes sistemas de apoio, gerando uma abertura participao, construindo lugares de possvel intercambio social atravs da msica e do sonoro. (PELLIZZARI, 2005, pg.111)
Assim, a escola, como uma das instituies presentes
no desenvolvimento do homem, deve visar minimizar os riscos
psicossociais individuais e coletivos. O artigo aqui exposto
traz algumas reflexes a partir do trabalho realizado com os
alunos dessa classe, que alm de apresentarem dificuldades
de aprendizado, traziam em sua experincia de vida situaes
que colocavam em risco sua integridade fsica, psquica e
emocional.
OS ENCONTROS
Importante ressaltar que, dentro da escola no foram
realizadas sesses de Musicoterapia; mas o que trazemos
para este trabalho so algumas caractersticas desses
encontros, que podemos chamar de teraputicas, pela forma
diferenciada de abordagem educacional realizada, e pela
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caracterstica especfica do grupo, que demandava do
profissional um olhar mais cuidadoso.
Os atendimentos de sade so realizados a partir de
um rgo especfico, chamado CRE (Coordenadoria Regional
de Educao), que alm de proibir qualquer atendimento com
caractersticas clnicas dentro do espao escolar, realiza
avaliaes com as crianas encaminhadas pela escola,
conduzindo-as para um profissional da rea de sade. Assim,
as reunies musicais no eram chamadas de sesses de
Musicoterapia, mas tambm no tinham uma caracterstica de
aula de msica. As atividades no seguiam
condicionalmente o ensinamento de msica, mas eram
realizadas em formato de vivncias musicais, com o objetivo
de proporcionar aos indivduos uma melhor percepo de si
mesmo, do Outro e do mundo que o rodeia. Dessa forma,
chamvamos nossas reunies de encontros musicais, muitas
vezes utilizando tambm outras expresses artsticas como a
dana e as artes-plsticas.
As reunies aconteciam uma vez por semana, no
perodo de 45 minutos, numa sala ampla, contendo aparelho
de som, instrumentos de percusso e teclado. Todas as
crianas eram colocadas em crculo, e ouvidas as msicas de
suas preferncias, sendo muitas delas comuns a outras
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crianas do grupo. O violo, trazido por mim, era passado
para cada criana, que cantava e tocavax sua msica,
interagindo e expondo-se para o grupo. Nesses encontros
iniciais, o diferencial era a escuta que eu, como
musicoterapeuta, dava para o material trazido pelas crianas,
sem nenhum tipo de julgamento e/ou enquadramento esttico.
Outro objetivo nesta etapa era conhecer um pouco
sobre o repertrio desses meninos. As msicas mais cantadas
eram o Funk (que na escola era proibido de cantar, mas
aberta uma exceo nos encontros musicais)xi, msicas
romnticas e msicas religiosasxii. Aos poucos as crianas
foram se abrindo cada vez mais para o grupo, e criou-se ali
um vnculo diferenciado, de acolhimento e respeito. O fato de
eles terem a oportunidade de falar/cantar o que queriam,
trouxe tambm uma relao de confiana e de importncia
para o que esses infantes tm a dizer. Um desses alunos, L.
(14 anos) que cursava a terceira srie do primeiro grau, era
um adolescente extremamente tmido e com sries
dificuldades de relacionamento. Ele possua uma
desestruturao rtmica grande (no conseguia acompanhar a
pulsao de msicas simplesxiii), cantava sempre com pouca
intensidade, e era constantemente alvo de piadas e deboches
dos colegas. Quando era dado a ele a oportunidade de trazer
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sua msica, dificilmente o fazia em grupo, mas sempre
permanecia depois dos encontros. Enquanto a sala era
arrumada por mim, este aluno pedia o violo e cantava vrias
msicas de seu conhecimento. Assim, passei a estar com L.
mais um tempo, apenas ouvindo o que este precisava falar.
Num desses encontros, L. trouxe fotos dele em criana e de
sua famlia, e comeamos a conversar um pouco sobre sua
casa, sua famlia e sua infncia.
Apesar de no ser um espao de tratamento, numa
instituio onde o professor precisa lidar com 40 alunos dentro
de uma sala de aula, e numa condio de trabalho deficitria,
muitas vezes, ouvir a demanda de um aluno especfico, torna-
se praticamente impossvel. Assim, naquele espao, este
aluno pde ter acesso a uma pessoa que estava ouvindo sua
demanda, tendo um olhar sobre ele, e principalmente, um
outro tipo de escuta.
Esta escuta diferenciada est profundamente
relacionada com o tipo de dilogo que o educador tem com
seu educando. No existe escuta se no h dilogo, pois a
relao de acolhimento est na capacidade que o educador
possui de se destituir de sua posio de privilgio, para uma
posio de humildade diante do ser humano. Freire (1994)
aponta que no h uma educao do outro, mas o que existe
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uma educao entre os homens, ou seja, a educao se d
no dilogo entre educador e educando. Para o autor, o dilogo
inicia quando os educandos se perguntam em torno do que
vai dialogar com os educadores.
Portanto, a escolha sobre o que ser ensinado, vem a
partir de uma realidade que nossos educandos nos
apresentam, e no de nosso ponto de vista de educador, de
nossa realidade. Assim, ao invs de levar uma idia
salvacionista da msica, buscando ensinar contedos
musicais fechados s nossas prprias concepes de msica
e som, o objetivo primeiro foi de ouvir essas crianas. A partir
da, pude delinear o caminho educacional que eles me
indicavam mais importantes e necessrios para o grupo.
Neste exemplo podemos ainda trazer outro aspecto de
igual importncia que deve abranger a educao e a terapia.
A postura que o profissional possui diante do Outro, determina
tambm o tipo de relao construda entre educador/terapeuta
e educando/paciente. Percebi neste trabalho que havia um
estranhamento das crianas diante da postura que
esperavam de um professor. A expectativa do grupo, na
maioria das vezes, era de um professor autoritrio, onde o
ensinamento fosse unilateral. Mas ao invs disso, se
deparavam com uma pessoa que queria ouvi-los, saber de
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suas vidas, de seus gostos, e dar a eles a oportunidade de
falarem, de cantarem, de tocarem. Dessa forma, o trabalho
passou a ter uma dinmica em que o musicotrapeuta-
educador pde primeiramente perceber as necessidades
primordiais do grupo que ele recebia. A partir dessas
necessidades, foram realizadas algumas dinmicas grupais,
com o objetivo de prioriz-las, incluindo paralelamente a
educao, porm uma educao diferenciada, uma educao
do humano. Entendo que muitas de nossas instituies
escolares perderam seu olhar humanizador da educao,
transformando-se s vezes em meios de reproduo alienada
das relaes sociais de desigualdade e injustia. Infelizmente,
a prpria construo do educador como profissional e como
ser humano, encontra-se em risco quando este sai dos cursos
de graduao e depara-se em sua prtica com a realidade
assustadora de nossas salas de aula. Muitas vezes sem ter
condies dignas de trabalho, o professor pe em risco sua
prpria sade, como vemos muitos, e o acompanha a
frustrao de uma educao que, ao invs de olhar para o
desenvolvimento humano, pode acabar por enquadrar o aluno
dentro das concepes j existentes. Tais concepes, em
nosso caso, encontram-se numa sociedade capitalista,
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pautada no individualismo, na verticalidade das relaes, no
desejo ao consumo desenfreado e na misria humana.
Entendo que uma das funes tanto da terapia quanto
da educao, est na resistncia a estes valores construdos,
e na negao da indiferena humana diante das questes
complexas que nos atingem de maneira intensa. na
resistncia, mesmo difcil, que talvez possamos ser ouvidos e
possibilitar em algum momento, a transformao necessria
para construirmos uma sociedade mais justa e baseada nos
valores humanos.
Assim, foco-me apenas nesses dois aspectos
pautados acima, ou seja, no diferencial da escuta e da
postura do educador/musicoterapeuta, por acreditar que so
essenciais para uma transformao no lidar com nossos
infantes em sala de aula. A seguir, tentarei delinear alguns
pontos de interseo entre educao e terapia, buscando
apontar possveis dilogos entre essas duas reas.
EDUCAO E MUSICOTERAPIA
Quando falamos sobre educao e Musicoterapia,
muitas podem ser as divergncias e convergncias entre
essas duas reas. Porm, quando abordamos a educao a
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partir de um conceito de educao do humano, observamos
que est intimamente ligada, tambm, com conceitos que
permeiam a rea da sade. De acordo com Morin (2001), a
finalidade de toda educao deve estar adequada a quatro
fundamentos. Entre elas encontram-se: ensinar a condio
humana e ensinar a viver.
Convm, pois reconhecer o que o ser humano, que pertence ao mesmo tempo natureza e cultura, que est submetido morte como todo animal, mas que o nico ser vivo que cr numa vida alm da morte e cuja aventura histrica conduziu-nos era planetria. S assim se pode obedecer finalidade do ensino, que ajudar o aluno a se reconhecer em sua prpria humanidade, situando-a no mundo e assumindo-a. (...) Aprender a viver significa preparar os espritos para afrontar as incertezas e os problemas da existncia humana. (MORIN, 2001, p. 19-20)
Para o autor, preparar os indivduos para estar diante
de incertezas e problemas da existncia humana, faz parte de
uma educao que busca ir alm da informao de contedos
- esta o que Freire (1994) chama de educao bancria. De
forma similar, tambm podemos pensar que, uma das funes
de uma terapia, situar o sujeito em seu contexto, ajud-lo na
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conscientizao de sua responsabilidade pessoal, social e
humanitria. Alm disso, toda terapia, de alguma forma, est
lidando com incertezas e com problemas ligados prpria
existncia humana. Neste ponto, educao e terapia podem
andar juntas, porm com formas diferentes de abordar e
aprofundar cada assunto.
Muitas vezes durante os encontros musicais, abria-se
uma oportunidade de falarmos sobre temas considerados
educacionais, mas que tambm esto ligados sade. As
crianas traziam contedos afetivos, de seu coletivo, de sua
forma de ver o mundo, de seu cotidiano. A maioria habitava
em favelas prximas, e trazia musicalmente, a violncia, a
sexualidade exacerbada, a prpria pobreza e a carncia de
afetividade. Por conta de todos esses fatores, as crianas e
adolescentes da classe de progresso tornavam-se
extremamente vulnerveis, colocando em risco o prprio
futuro desses jovens. Atravs da msica, eles tinham a
oportunidade de trazer conscincia seu prprio estar no
mundo, e de se fortalecerem, descobrindo ferramentas que
pudessem ajud-los a enfrentarem os desafios da vida.
Pellizzari (2005), como colocado acima, traz vises
interessantes para musicoterapeutas que trabalham nos
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sistemas de apoio, considerando o desenvolvimento do
trabalho deste profissional como de preveno sade.
O musicoterapeuta preventivo desenvolve uma observao das situaes de conflito, seja com crianas ou adultos. Sua eficcia detectar estados de vulnerabilidade e fortalecer mecanismos de proteo. (PELLIZZARI, 2005, pg. 106)
Dessa forma, questes que inicialmente esto ligadas
educao e ao prprio cotidiano das crianas e da escola,
podem tornar-se um ponto de partida fecundo para
pensarmos a preveno e a promoo da sade.
Educao e terapia compartem objetivos similares,
dentre eles, o de proporcionar a reflexo de cada indivduo
como homem, situ-lo no mundo em que vive, e criar
condies para que ocorra uma transformao, seja do
indivduo com ele mesmo, ou da sua ao no mundo.
A educao como prtica da liberdade, ao contrrio naquela que prtica da dominao, implica na negao do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim tambm na negao do mundo como uma realidade ausente dos homens. (...) A educao problematizadora
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faz, assim, um esforo permanente atravs do qual os homens vo percebendo, criticamente, como esto sendo no mundo com que e em que se acham. (FREIRE, 1994, p.41)
Outra caracterstica presente na educao e na terapia
a transformao como objetivo final. Uma terapia sem atingir
qualquer tipo de transformao no sujeito, perde sua eficcia,
assim como uma educao sem transformar, torna-se infrtil e
domesticadora. Na bibliografia musicoterpica, Bruscia
(2000) define o trabalho em Musicoterapia como um
processo sistemtico de interveno em que o terapeuta
ajuda o cliente a promover a sade utilizando experincias
musicais e as relaes que se desenvolvem atravs delas
como foras dinmicas de mudana (p. 22). O processo
musicoterpico deve ter como objetivo final algum tipo de
mudana no individuo, alguma transformao, para se
caracterizar como terapia. Da mesma forma, como Freire
(1994) aponta na citao acima, a educao deve ser
problematizadora, e no uma ferramenta de imposio e
alienao dos valores j existentes, mas de transformao
destes. Desta maneira, essas duas reas buscam
problematizar a realidade na qual o ser humano se encontra,
e ajud-lo a enfrentar os desafios nela apresentados.
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Na sociedade brasileira, observa-se que os jovens
encontram-se cada vez menos preparados para se
protegerem dos perigos que os cometem, sejam eles
emocionais, sociais ou biolgicos. Na periferia e no centro das
grandes cidades, tem sido comum encontrar infantes que
sofrem diferentes tipos de violncia (familiar, psquica ou
fsica). Estes, quando vm para a escola, encontram ali um
espao que pode ser de segurana, de proteo e de sade,
apesar de todas as deficincias que existem em nosso
sistema educacional. Na ausncia desse espao,
provavelmente essas crianas teriam chances mnimas de se
fortalecerem como indivduos e como cidados. Alm disso,
devemos ter conscincia que somente atravs de uma
transformao efetiva dos sujeitos, e em nosso caso,
cidados de um pas extremamente desigual, podemos
deslumbrar uma sociedade mais justa e humana. Assim,
aponto que a terapia tambm deve estar de acordo com a
educao, pois muitos problemas que levam hoje nossos
pacientes aos consultrios particulares podem ser
provenientes de uma desestrutura social mais do que de um
distrbio individual. Dessa forma, a Musicoterapia tambm
deve reconhecer seu carter social na medida em que
enfrenta os desafios das doenas coletivasxiv. Promover a
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transformao pensar tambm que esta se encontra no
mbito individual, social, poltico e ecolgico. Portanto, toda
terapia tambm uma educao, na medida em que a vemos
como a conscientizao do sujeito no mundo, e a capacidade
que cada um desenvolve para transform-lo, recriando
atravs do saber o prprio mundo e a realidade na qual vivem.
Por esta razo, tambm enfatizo que a transformao
no se faz sozinha, mas atravs do engajamento constante
dos diversos saberes que constituem os seres-humanos.
Somente a partir de uma ao crtica, coletiva e integral,
podemos alcanar um acolhimento em todas as dimenses da
vida humana (necessidades biolgicas, culturais, sociais,
estticas, afetivas, etc.). Isso no quer dizer que somos
capazes de abranger todas as necessidades humanas, mas
que podemos ter conscincia de que a sade no um fim
em si mesmo, e, como diz Freire (1970), para a libertao dos
oprimidos ela est interligada com outras redes de apoio que
tambm fazem parte deste ser mltiplo e complexo que o
ser humano.
Ao alcanarem, na reflexo e na ao em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus re-fazedores permanentes. (...) Deste modo, a presena dos oprimidos na busca de sua libertao, mais que pseudo-participao, o que
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deve ser: engajamento.(FREIRE, 1994, p. 32)
Conforme observado neste trabalho, a escola traz em
seu eixo central, questes relacionadas sade, no momento
que entendemos a instituio escolar como mais um espao
de promoo e preveno de sade. Ela deve preocupar-se
tambm com o bem-estar humano, e trazer condies para
que este possa desenvolver-se em todos os aspectos durante
sua trajetria de vida. Paralelamente, observamos que a
Musicoterapia dentro de uma instituio educacional, e
principalmente, de uma instituio pblica educacional,
precisa estar atenta a todos os fatores sociais que permeiam
esses alunos e professores.
Torna-se igualmente importante que um profissional
musicoterapeuta que lide com este pblico, tenha
conhecimentos nas reas de estudos sociais, culturais e
educacionais. Observar qual o imaginrio que essas pessoas
possuem do mundo e de si mesmas; que tipo de sociedade
um funk ou um pagode, como exemplo, simbolizam? Quais
relaes existem entre a msica trazida por esses alunos, sua
sociedade e seu comportamento? Como podemos incluir a
sade nos espaos educacionais, e reciprocamente, a
educao nos espaos clnicos? Que linhas de pesquisa
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poderiam permear essas duas reas que podem ser to
diferentes, mas tambm similares e essenciais para
transformar a realidade em que vivemos?
Sem dvida que esse um grande desafio que merece
ser desenvolvido em projetos e linhas de pesquisa que
agreguem Musicoterapia/educao, pois este tema de
grande importncia para o contexto de sade social que
estamos inseridos. Detectar pontos de intercesso entre
sade e educao, buscando estratgias e metodologias que
tecem essas duas reas, pode enriquecer muito nossas
prticas e beneficiar bastante nossos alunos e pacientes.
Assim, entendo que a participao cada vez mais
interdisciplinar de nossos profissionais, o dilogo constante
construdo entre ns, deve ser o caminho inicial para a
soluo de muitas de nossas questes e desafios.
CONCLUSO
Como observamos na leitura, este ensaio traz em seu
bojo a viso da escola como espao de promoo e
preveno da sade, e a partir do conceito de pontos de apoio
de Pellizzari (2005), a escola torna-se mais um local de
atuao do profissional musicoterapeuta. Pudemos analisar
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na prtica de uma profissional musicoterapeuta em uma
escola pblica, caractersticas importantes que podem ser
teis para uma educao diferenciada, levando em conta as
problemticas existentes num sistema educacional como este
do Brasil. Apesar das diferentes formas de atuao existentes
entre Musicoterapia e educao, delineamos alguns pontos de
interseo entre essas duas reas, e trazemos o dilogo entre
autores da prtica educacional e musicoterpica. Assim, a
proposta fomentar estudos e projetos que possam
desenvolver e aprofundar o tema aqui exposto.
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1Qualidade vocal que revela o modo de ser, expressa impulsos
genunos de apelo e rejeio, carisma vocal. 2 Borges-Andrade exemplifica com clareza as dificuldades na definio (ou na ausncia) do conceito de linha de pesquisa, apesar de este termo ser amplamente usado nos relatrios como unidade de anlise para a avaliao de cursos e propostas de cursos enviados CAPES. Este termo recorrente tambm no Curriculum Vitae (CV) da Plataforma Lattes do CNPq e no Diretrio dos Grupos de Pesquisa do CNPq. Ele define linha de pesquisa como figuras institucionais que agregam variados projetos de pesquisa inseridos num Programa de Ps-graduao ou em uma rea de concentrao. A linha de pesquisa poderia ser entendia como um trao imaginrio que: 1) determina um rumo, ou o que ser estudado num determinado contexto ou realidade; 2) limita as fronteiras do campo especifico do conhecimento em que dever ser inserido o estudo; 3) oferece orientao terica; 4) estabelece os procedimentos que devero ser considerados adequados. Para maior aprofundamento no assunto, ver Borges-Andrade, Jairo:
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http://antiga.uffs.edu.br/wp/wp-content/uploads/2010/06/Conceito-de-Linha-de-Pesquisa.pdf 3 As reas de conhecimento so definidas pelo CAPES e divididas em quatro nveis: Grande rea, rea, Subrea e especialidade. Nesta classificao, Cincias da Sade encontra-se como Grande rea, e Educao como rea, inserida dentro da Grande-rea das Cincias Humanas. 4 Foucault (2004) desenvolve em Vigiar e punir a forma de punio caracterstica da priso, a partir de tcnicas disciplinares que tem como objetivo tornar os corpos dceis e submissos. As tcnicas de poder disciplinar ganham sentido na sociedade capitalista, no momento que h uma necessidade da fabricao de um corpo disciplinado para um sistema de sujeio, onde o corpo se torna til se ao mesmo tempo se torna produtivo e submisso. Da, a disciplina fabrica indivduos tornando-os objetos e instrumentos para o exerccio do poder. 5 O Complexo do Alemo um conjunto de treze favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro, considerada uma das reas mais violentas da cidade. Era comum, durante o perodo deste projeto, a escola ser fechada por ordem de traficantes da rea. Assim, tanto professores como alunos tornavam-se vulnerveis da violncia gerada pela complexidade construda das relaes sociais de desigualdade e marginalidade. 6 As classes de progresso so formadas por pr-adolescentes que, apesar de completarem todos os ciclos de alfabetizao, alcanam os nove anos de idade sem serem alfabetizados. Nessas classes o educando recebe um tratamento educacional especial. A maioria das vezes, o que prejudica o desenvolvimento dessas crianas na sala de aula, so comprometimentos outros, como fatores emocionais, sociais, familiares ou fsicos. 7 A autora define sistema de apoio como as unies entre indivduos ou de indivduos com grupos e instituies, que servem para melhorar a competncia adaptativa no afrontamento de crises a
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curto ou longo prazo, momentos de transio vital, desafios a longo prazo, stress e privaes. (PALLIZZARI, 2005, pg. 110) 8 No percebemos nas crianas deste grupo uma valorizao do esttico na forma de tocar. Cremos que a novidade do instrumento e a possibilidade de toc-lo superam a necessidade de tocar com tcnica musical. Assim, no ouvimos qualquer crtica vinda de outras crianas quando uma delas tocava o violo, mostrando muita espontaneidade e experimentao com o instrumento. 9 Diante da fora que o funk produzia entre os alunos, na maioria das vezes, fazendo apologia violncia, s drogas e ao sexo, a escola encontrou na proibio do estilo musical, a maneira de conter esta msica considerada um problema. Porm, cremos que esta aparente ausncia daquilo que poderia ser anti-educacional, na verdade revela o distanciamento profundo que a escola possui da realidade de seus alunos, e a falta de preparo de seus profissionais para tentar reverter a situao por outros meios sem ser a represso. 10 Numa etapa deste estudo, cada criana individualmente era atendida pela musicoterapeuta, que realizou uma gravao sonora das msicas cantadas pelos jovens. Pedia-se para a criana cantar o que viesse cabea. Muitas delas iniciavam cantando um funk, geralmente o funk proibido, e logo depois cantavam uma msica religiosa, na maioria das vezes, de igrejas evanglicas. Muitas das crianas participavam de reunies nessas instituies religiosas. Nestes locais o funk tambm era proibido, consideradas msicas do mundo, ou muitas vezes, como as prprias crianas falavam, msicas do diabo. Interessante observar a dualidade entre a msica do mundo ou do diabo, para logo depois expressarem a msica de Deus, ou a msica certa, numa atitude de confisso, de perdo, diante de uma ao culposa, errada, no desejada. Este foi um aspecto muito observado neste grupo especfico, que pode ser desenvolvido para um estudo mais aprofundado sobre as construes subjetivas que a msica pode adquirir nos grupos sociais.
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11 Chamo de msicas simples neste caso, aquelas que possuem compassos simples- binrio, tercirio ou quaternrio-, com o ritmo caindo sempre nos tempos fortes do compasso e com poucos ou nenhum deslocamento da acentuao natural. 12 Para maior aprofundamento sobre o tema, ver Madel Luz, 2004.