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Introdução ao AT - H 4.
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Antigo Testamento II Histricos e Poticos 96
OS LIVROS DE 1 E 2 SAMUEL
INTRODUO
No texto hebraico os dois livros de Samuel formam um s, porque na realidade a
atual diviso no vem apenas interromper a histria de Davi, como a da catstrofe em
Gilboa, em que Saul tomou parte. Os LXX consideraram os livros de Samuel e dos Reis
como uma histria nica do reino, dividindo-a, no entanto, em quatro partes. Chamaram-
lhes ento Livros do Reino e a Vulgata apenas Livros dos Reis, considerando os de Samuel como 1 e 2 dos Reis.
A partir do tempo de Daniel Bomberg, no sculo XVI, muitas bblias hebraicas
continuaram a dividir o livro de Samuel, chamando-lhes 1 e 2 livros de Samuel.
O AUTOR
Embora no ttulo aparea o nome de Samuel, no quer dizer que fosse ele o autor dos
livros. Uma tradio judaica atribui-lhe, de fato, a autoria; mas, a aceitar tal hiptese, apenas
a poderamos admitir para os primeiros 24 captulos de 1 Samuel.
fora de dvida que os livros constituem uma compilao, se bem que Samuel seja
realmente o autor duma grande parte do primeiro livro, pois devia conhecer profundamente
a histria do povo escolhido, por ter sido chefe das escolas dos profetas. que nas escolas
desse tempo (por Samuel freqentadas), que formavam o centro da cultura da nao,
guardavam-se vivas as relaes de Deus com o Seu povo.
Em 1Cr 29.29 lemos no hebraico: As crnicas do rei Davi, eis que esto escritas nas crnicas de Samuel, o vidente (roeh), e nas crnicas do profeta (nabi) Nat, e nas crnicas
de Gade, o vidente (chozeh). Houve, portanto, acontecimentos narrados por Samuel, Nat e Gade e o compilador das Crnicas fez aluso queles autores, enquanto nas suas obras se
encontram dispersos os sucessos do rei Davi. Por outro lado, achamos que certas pginas das Crnicas contm quase os mesmos acontecimentos que os dos livros de Samuel, com
ligeiras alteraes, evidentemente. Mas d-nos a impresso que o autor das Crnicas tem
mo todos os elementos de que se serve, o que no acontece com o compilador de Samuel.
Sabemos que alguns documentos eram conservados ao lado da arca, desde o tempo
de Moiss, e Samuel foi educado em Silo, precisamente junto da arca. Nada mais natural
que viesse a interessar-se pela histria de Israel, e que a ampliasse at, uma vez que no lhe
faltavam dotes de escritor. Recorde-se que, quando Saul subiu ao trono, foi Samuel quem
preparou uma constituio para o reino e escreveu-a num livro e p-la perante o Senhor (1Sm 10.25). Existia, pois, um documento escrito, e junto da arca. Em 2Cr 9.29 novamente
se faz aluso a Nat, mas desta vez como autor da histria dos feitos de Salomo. Outros
profetas so ainda citados como fontes para a histria daquele reinado.
H muitas mais referncias no Velho Testamento aos profetas, como autoridades para
a histria de outros reinados. Temos, pois, a certeza que Samuel, Nat e Gade, ou foram
autores diretos dos livros de Samuel, ou pelo menos dos seus escritos foram compilados os
acontecimentos que compem aquilo a que chamamos Livros de Samuel. Quanto a Samuel, confirmam-no testemunhas contemporneas, sabemos que viveu
quase at ao fim do reinado de Saul. Nat e Gade sobreviveram a Davi. Importa sublinhar as
ntimas relaes de Davi no s com o prprio Samuel, como com a escola dos profetas em
Naioth (cfr. 1Sm 19.18). Nat e Gade tambm andavam por vezes intimamente associados a
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Davi (cfr. 1Sm 22.5; 2Sm 24.11; 2Cr 29.25; 2Sm 7.2-17; 2Sm 12.25; 1Rs 1.8-27). Ningum
duvida da existncia de crnicas oficiais do rei Davi, como se deduz de 1Cr 27.24.
Havia ainda uma literatura potica da nao, tal como o livro do Reto (Jaser) (2Sm
1.18), que deve ter sido uma coleo de cnticos e baladas em honra dos heris nacionais.
Em fontes como estas que o autor dos livros de Samuel se deve ter inspirado (cfr. 1Sm
2.1-10; 2Sm 3.33-34; 2Sm 22.1-51).
O NOME
O fato de os livros terem o nome de Samuel suficiente para demonstrar a estima em
que ele era tido. Assim, entre os judeus era considerado um chefe nacional, um segundo
Moiss. Se este libertou Israel das garras dos egpcios, dando-lhes uma lei e levando-os at
vista da Terra da Promisso, Samuel foi por Deus enviado para libertar tambm Israel,
quando j as esperanas pareciam perdidas. Sob o ponto de vista espiritual e poltico a nao
parecia virtualmente perdida, quando Eli estava prestes a deixar esta vida (cfr. 1Sm 4.12-22;
Sl 78.59-64; Jr 26.6). Com Samuel surgiu uma maravilhosa renovao espiritual e uma nova
esperana inundou os coraes (1Sm 7).
Julgam muitos ser Samuel o fundador das escolas dos profetas, que durante sculos
to profunda influncia exerceram na vida da nao. volta destas escolas no s se
respirava o ambiente da vida espiritual de Israel, mas ainda o de sua vida cultural e
educativa. Se Moiss promulgou a Lei, foi Samuel quem garantiu que ela fosse propagada
juntamente com outras revelaes de Deus.
Ao mesmo tempo, Samuel era o instrumento providencial de Yahweh para guiar o
povo de Israel no momento crtico da mudana da era dos juzes para a monarquia.
Expectativa e prudncia! Deus pedia a Samuel nessa altura para incutir no povo o ideal
duma monarquia constitucional sob a orientao do mesmo Deus, j que o rei devia
observar a Lei e ser guiado pelas revelaes de Deus atravs dos profetas. Quando Saul
falhou na sua misso, aps ondas de crimes e de despotismo, l estava Samuel, sempre
bafejado pela sombra protetora de Deus, a preparar Davi para ser um rei segundo o corao de Deus. Apesar de algumas fraquezas, nunca Davi se colocou acima da Lei de Deus, nunca faltou ao respeito aos Seus profetas. por isso que os livros de Samuel tm como
principal objetivo narrar a histria do rei Davi.
Podia Samuel considerar-se deveras privilegiado, quando lhe foi concedida a misso
de dar aos profetas o verdadeiro lugar que lhes competia na vida do povo israelita. Ao
mesmo tempo, foi o introdutor da monarquia e o legislador providencial para que se
preparasse convenientemente o caminho quele que seria Profeta, Sacerdote e Rei. S um
homem como Samuel poderia, portanto, ter a honra de dar o nome ao conjunto dos dois
livros presentes.
DATA DA COMPILAO
Pelo estilo do livro, somos levados a considerar a data da sua compilao numa
poca muito remota. ainda o hebraico puro que encontramos nessas pginas de raro e vivo
colorido, isento das expresses aramaicas e formas mais recentes, que se encontram noutros
livros. Deve ter sido escrito pouco tempo depois da primeira apresentao de Saul a Samuel.
Nessa poca o termo roeh (vidente) aplicava-se ao profeta. Mas quando se fez a compilao j se usava o termo nabhi, sendo necessrio explicar s novas geraes o significado de
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roeh (cfr. 1Sm 9.9). Se se chegar concluso de que se trata, na realidade, duma nota adicional, esta pode ter sido acrescentada muito depois da compilao.
Seja como for, o livro deve ter sido compilado depois da morte de Davi (cfr. 2Sm
5.5), porque se indica a extenso do seu reinado. Antes do reinado de Roboo no deve ter
sido, pois, j Israel se encontrava separado de Jud (cfr. 1Sm 27.6), atendendo a aluso aos
reis de Jud. Os LXX tambm admitem uma data posterior a Roboo (cfr. 2Sm 8.7; 2Sm 14.27). O estilo do livro assim o reclama, aliado ao fato de no se fazer referncia a
qualquer acontecimento passado depois daquela poca.
CRONOLOGIA
A seguir a cronologia mais ou menos aproximada dos principais acontecimentos:
Nascimento de Samuel - 1090
Vocao de Samuel - 1080
Morte de Eli. Samuel juiz - 1070
Saul sobe ao trono - 1040
Morte de Samuel - 1015
Morte de Saul em Gilboa - 1010
Davi rei de Jud - 1010
Davi rei de todo o Israel - 1003
Convm notar que se passa em silncio uma grande parte da histria de Saul, talvez
um espao de cerca de vinte anos. Era jovem, e possivelmente solteiro, quando foi eleito
(1Sm 9.2). Os acontecimentos dos caps. 10 e 11 parece que sucederam aos do captulo 9
com um intervalo pequenssimo. Quando se torna a falar em Saul, j pai dum valente
soldado-Jnatas. Quer dizer que se passaram uns vinte anos, pelo menos. O principal
objetivo do autor no historiar a vida de Saul, mas, sim, a do grande Davi.
FORMA LITERRIA E MENSAGEM
Os livros de Samuel apresentam uma grande variedade de tcnicas literrias e uma
tremenda complexidade no que diz respeito maneira pela qual foram compostos.
Childs resume a situao atual da literatura samuelina como de perplexidade diante
das dificuldades inerentes estrutura dos livros e da diversidade de abordagens
hermenuticas de que se valem os estudiosos para tentar entender 1 e 2 Samuel como
literatura (Brevard S. Childs, Introduction to the Old Testament as Scripture, pp. 270-271).
Levando em conta a moldura pactual (aliana deuteronmica) utilizada pelo autor de
Samuel, as seguintes caractersticas so importantes para construir uma teologia bblica
desses livros:
Contraste
Uma das mais notveis tcnicas literrias de 1 Samuel o uso de contrastes para
tornar bvia sua mensagem. Em geral, os contrastes que estabelece tm como ponto de
referncia a aliana deuteronmica, especialmente quando trata de obedincia e
recompensas. Assim, encontramos o contraste inicial entre Ana e Penina, em que a ltima
despeja seu desprezo sobre a primeira devido a sua infertilidade, ao passo que Ana
demonstra f em Yahweh, em vez de na fertilidade em si. Ana termina recompensada, no
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 99
com a simples concepo, mas com a honra de ter dado luz o filho que haveria de reverter
a destino sombrio da nao.
Bem visvel tambm o contraste entre Samuel e os filhos de Eli. Enquanto o jovem
Samuel serve ao Senhor, os dois sacerdotes servem a si mesmos e desprezam o culto a
Yahweh (cf. 1 Sm 2.17, 18). Sua obedincia aliana foi recompensada com honra e
longevidade, enquanto que a imoralidade escandalosa e a ganncia gritante de Hofni e
Finias teve como recompensa a morte prematura e a infmia permanente.
Um exemplo final, entre muitos, o contraste chocante entre Jnatas e Saul, seu pai.
Saul relutou em confiar no Senhor para a vitria (1 Sm 13.8s.), ao passo que Jnatas foi
audaz em sua f (14.6). Saul esperou as coisas acontecerem em Gibe (13.8-13), enquanto
Jnatas fez as coisas acontecerem em Micms (14.1-14). Saul no se preocupou com o bem-
estar do povo (14.24), mas Jnatas o fez (14:29-31). Saul foi inconstante em sua devoo a
Yahweh (passim), ao passo que Jnatas perseverou em sua lealdade. Por fim, em um
contraste que acabaria por determinar o destino de ambos, Saul no reconheceu a indicao
de Davi como vinda de Yahweh (20.31), enquanto Jnatas altruistamente reconheceu que
Davi tomaria o lugar que caberia a ele, Jnatas, como sucessor de Saul no trono de Israel
(18.4; 23.17).
Justaposio de personagens
Esse recurso literrio parcialmente relacionado ao contraste, mas difere em dois
pontos: (a) a justaposio de personagens traz consigo uma das nfases teolgicas que o
autor deseja firmar na mente dos leitores, ou seja, que a lealdade aliana essencial para o
desfrute de vitalidade e prosperidade no contexto da teocracia, tanto na monarquia quanto
fora, na confederao tribal; e (b) o motivo da inverso de sorte destaca-se mais claramente
do que quando simples contrastes so empregados (veja John A. Martin, The Literary Quality of 1 and 2 Samuel, Bibliotheca Sacra 141:562 (abril-junho 1984):131-44. Um livro muito til no estudo das narrativas bblicas Ele Nos Deu Histrias (He Gave Us Stories),
de Richard L. Pratt, Jr., especialmente o captulo 6).
Assim, em cada uma das quatro divises principais do livro podem ser encontradas
justaposies de personagens ligadas a exemplos de inverso de papis, no esquema geral
de inverso de sorte.
A TEOLOGIA DE 1 SAMUEL (A PESSOA E O CARTER DE DEUS)
A proposio mencionada na pgina anterior fornece indcios quanto teologia no
apenas de 1 Samuel, mas de ambos volumes. Juntos, 1 e 2 Samuel servem para dar nao,
mais especificamente a seus lderes, uma viso apropriada da monarquia nos limites de sua
categoria mais ampla, a teocracia.
O conceito (vrias vezes mencionado ou sugerido) de que o rei estava sujeito s
estipulaes da aliana, conforme interpretadas pelos profetas, indicava claramente que a
monarquia nunca seria o ltimo foro da vida israelita. A autoridade ltima e,
conseqentemente, a lealdade ltima cabiam sempre a Yahweh, e transferi-las para um rei
humano era to mau quanto oferec-las a um deus pago. Essa ntima ligao entre a
idolatria do Estado e o paganismo pode ser vista em 1 Samuel 12.
De outro lado, todo o livro de 1 Samuel conduz o leitor direo da monarquia
davdica como o agente escolhido por Yahweh para dar continuidade teocracia (=
soberania mediada) na histria, seguindo as linhas prolepticamente traadas no cntico de
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 100
Ana humildade e dependncia de Yahweh trazem vitalidade e permanncia, enquanto que a auto-suficincia condena os indivduos e a nao ao fracasso (Cf. as observaes de Ralph
Klein, 1 Samuel, WBC, pp. 119-20).
Sua soberania
quase impossvel deixar de perceber este tema nos livros de Samuel, e seus
exemplos mais luminosos ocorrem no primeiro volume. A interveno em favor de Ana e
sua contnua fertilidade, depois de Samuel ter sido efetivamente dedicado a Yahweh, so o
primeiro exemplo da capacidade divina de controlar a vitalidade do indivduo em resposta
f humilde.
Talvez a demonstrao mais dramtica da soberania de Yahweh surja na narrativa da
arca (1 Sm 4 6). Ao contrrio do que pensam alguns comentaristas que a consideram uma narrativa isolada inserida ao acaso no texto, (Hertzberg, I & II Samuel, p. 46, afirma: A segunda diviso principal dos livros de Samuel no tem ligao direta com a primeira ...
conclui-se corretamente que a segunda diviso teve, originalmente, existncia
independente. A questo da origem independente da narrativa no invalida o fato de que o autor tem para ela uma funo importante e um significado especial no todo de sua obra.
Hertzberg retrata o perigo de darmos excessiva ateno aos detalhes e perdermos a viso do
todo) essa diviso demonstra no s a superioridade de Yahweh sobre os deuses com quem Israel flertava (supondo que eles concediam vida melhor aos povos volta), mas tambm a
necessidade de uma atitude correta em relao ao culto em Israel. Yahweh soberanamente
remove aqueles que se consideravam acima dos requisitos da lei (cf. 3.34; 4.10, 11),
soberanamente humilha Dagom, lanando o dolo por terra diante da arca da aliana e
quebrando sua cabea e mos como sinal da impotncia de Dagom diante de Yahweh,
soberanamente pune os filisteus com uma praga devastadora, ensinando-os que Ele no
um mero amuleto ou fetiche a ser carregado como trofu de batalha, mas o verdadeiro Deus
do universo. Ainda em Israel, essa soberania apresentada no caso dos moradores de Bete-
Semes e Quiriate-Jearim, em que os primeiros sofrem por sua atitude profana em relao
arca, e os ltimos so abenoados por sua reverncia.
A soberania divina exercitada de acordo com as bnos e maldies estipuladas na
aliana. O arrependimento nacional, sob a liderana de Samuel, trouxe a vitria (7.3-12) e o
alvio (temporrio) da opresso dos filisteus (7.13). O padro operacional de Yahweh fica
claro: O Deus soberano abenoar a nao enquanto esta permanecer humilde e for
conduzida por um indivduo escolhido por Ele.
Mesmo quando o povo interveio com seu pedido de um rei, a soberania de Yahweh
superou a vontade humana, demonstrando Seu desprazer em relao viso antropocntrica
dos israelitas, mas suprindo um lder que haveria de comprovar a verdade de Sua
advertncia (1 Sm 8; 12.18).
Os dois incidentes mais conhecidos do livro tambm apontam para a soberania de
Yahweh: o combate entre Davi e Golias (17) e a entrevista de Saul com a mdium de En-
Dor (28). No primeiro incidente, a confiana em Yahweh soberanamente recompensada
com a vitria, a despeito da fora e experincia militar do adversrio. No segundo, Deus usa
Samuel para demonstrar a inutilidade dos esforos desesperados de Saul para escapar ao
soberano veredicto divino de tirar de sua dinastia o trono de Israel.
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 101
Sua lealdade pactual
Embora a palavra (hesed, amor ou lealdade pactual) seja usada apenas uma vez no livro, com referncia a Yahweh (20.14), o conceito permeia o livro. Aqueles que se
humilham, os que confiam em Yahweh para a realizao do impossvel, e aqueles que se
alinham com o ungido de Yahweh so objeto de Seu hesed. Ana, o povo de Quiriate-Jearim,
Samuel, Saul (no incio do reinado), Jnatas e Abigail so exemplos marcantes.
A lealdade pactual, todavia, opera nos dois sentidos. As maldies sobrevm aos que
arrogantemente rejeitam a direo de Yahweh em suas vidas. Os exemplos principais so
Eli e seus filhos, os moradores de Bete-Semes, Saul (do meio para o fim do reinado) e
Nabal.
Jnatas a aparente contradio. Apesar de aparecer no livro como a eptome da
lealdade, ele encontra uma morte trgica em Gilboa. A razo de tal fato se acha em outro
princpio relacionado aliana o da solidariedade corporativa. A rejeio pessoal de Saul tambm significou a rejeio corporativa de sua famlia. Jnatas anteviu esse fato, mas no
previu que seu filho, e no ele mesmo, seria o beneficirio da lealdade pactual de Davi
(20.12-15; 41-42) (Mefibosete, o filho aleijado de Jnatas, foi realmente favorecido com a
lealdade pactual de Davi, mesmo depois de vrios incidentes em que a rejeio de Saul
continuou a afetar seus descendentes (cf. 2 Sm 9.1-12; 19.24-30; 21.1-14).).
Esse conceito da lealdade pactual de Deus tem por referencial no apenas a aliana
deuteronmica, mas tambm a abramica, que subjaz o propsito aparente do autor em
descrever o funcionamento da aliana deuteronmica na histria da nao.
Sua imutabilidade
Primeiro Samuel um campo de batalha para a doutrina da imutabilidade de Deus. O
conceito aparece, primeiramente, nas narrativas da transio teocrtica nos captulos 8 a 12,
em que o porta-voz de Yahweh parece vacilar entre a aprovao e a rejeio da monarquia.
Essa aparente contradio foi tratada anteriormente (pp. 259, 260) e aqui basta mencion-la.
A rejeio divina no relacionava-se ao conceito de monarquia em si (uma antiga
expectativa israelita, cf. Gn 49.10), mas ao conceito popular de um rei fac totum, que viesse
a ser a garantia humana de uma vida segura para Israel, em Cana. A monarquia seria o
instrumento escolhido, mas a fonte das bnos da aliana s poderia ser o doador da
aliana.
Outra passagem controvertida o relato, no captulo 15, da rejeio de Saul, em que
o autor parece afirmar, com um canto da boca, que Deus mudar de idia em relao
escolha de Saul como rei (15.10,35), e, com o outro, parece afirmar categoricamente a
imutabilidade divina (15.29). Essa aparente contradio explicada satisfatoriamente pelo
uso de linguagem antropomrfica (Hertzberg oferece uma explicao alternativa. Ele diz:
Deus no est escravizado s suas prprias decises, mas de tal modo todo-poderoso que senhor tambm de suas decises. Assim como ele leva em conta nas suas decises a ao
humana, de modo que a onipotncia jamais significa que o homem seja privado de sua
responsabilidade, assim, tambm, a eleio do rei no irrevogvel (I & II Samuel, p.126. A explicao deixa no ar a possibilidade de mudana no decreto de Deus, que no parte
essencial de Seu ser, mas reflete seu carter totalmente sbio. Apesar de amenizar a idia de
arrependimento, a alternativa me parece insuficiente). A mudana em um procedimento visvel explicada como uma mudana emocional na pessoa de Deus, quando, na realidade,
o desenvolvimento de Seu propsito imutvel que inclua novos meios, instrumentos e
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 102
direes, dando assim ao autor humano das Escrituras a impresso de que o plano de Deus
havia sido alterado.
Deus e o incidente de En-Dor
Este famoso incidente uma constante fonte de perplexidade para cristos e
opositores do cristianismo. Estes ltimos buscam nele apoio para prticas como mediunismo
e incorporao de espritos (o chanelling da Nova Era), e ignoram as proibies claras
contra tais prticas no restante da Escritura. Os primeiros procuram eliminar a apario real
de Samuel, argumentando que no h uma identificao positiva de Samuel e dando a
entender que este incidente apenas um caso de charlatanismo por parte da mdium e de
equvoco da parte de Saul (um tratamento popular do assunto o livreto Saul e a Mdium de
En-Dor, de Gilberto Stevo. Hertzberg circunda o problema propondo que a leitura do texto
precisa ser emendada, o que na prtica significa eliminar o elemento sobrenatural da
narrativa (I & II Samuel, p. 218-219). Klein (1 Samuel, p. 270s.) e Eugene Merrill (1 and 2 Samuel, The Bible Knowledge Commentary, OT Edition, pp. 435-454) preferem o ponto de vista de que foi realmente Samuel quem apareceu. As notas da Bblia Shedd, de autoria de
Frederico Vitols, apresentam uma batelada de argumentos aparentemente convincentes
contra a possibilidade de Samuel ter aparecido. Em um exame mais cuidadoso, verifica-se
que as evidncias foram ajustadas para se conformarem a uma teoria predeterminada).
Tais abordagens ignoram, em primeiro lugar, o artifcio literrio do autor em pr Saul
busca de Samuel, no incio e no fim de sua carreira. Dessa maneira, ele espera
impressionar seus leitores com a rejeio total de Saul. A meno ao manto (28.14) e a
referncia ao reino ser arrancado das mos de Saul (28.17) so aluses claras a 1 Samuel
15.27,28, ocasio em que a fatdica promessa fora feita. A mensagem desta percope clara:
Saul j passou do ponto em que o retorno possvel e, assim, no h mais esperana para
ele. Nem os vivos nem os mortos podem ajud-lo a escapar do juzo de Yahweh. Esta
passagem indica que a obedincia a Deus no pode ser determinada pela convenincia
humana: os que escolhem adiar a obedincia espera de uma ocasio mais favorvel podem
vir a lamentar para sempre tal escolha.
A ADMINISTRAO DOS PROPSITOS DE DEUS
As quatro linhas de ao de Deus na histria, por meio das quais Ele opera para
restabelecer Sua soberania mediada sobre o universo, esto presentes em 1 Samuel pelo
menos uma vez, e a maioria se manifesta mais de uma vez.
A permisso do mal
O primeiro exemplo desta linha de atividade de Deus a conduta escandalosa dos
filhos de Eli (2.12-17), cuja distoro do culto para fins egostas, quando a arca capturada
pelos filisteus, por fim se volta contra eles mesmos. possvel dizer o mesmo dos filhos de
Samuel, cuja tica distorcida e indulgente contrasta dramaticamente com a conduta
inatacvel de seu pai como juiz (8.2, 3; cf. 12.3). H ainda, claro, Saul e sua conduta
progressivamente rebelde, contra Yahweh e as exigncias de Sua aliana (13.7-14; 15.1-23),
e maldosa, contra Davi, seu sucessor escolhido por Deus. O exemplo mais chocante dessa
ao de Deus a permisso para que Samuel retorne dentre os mortos para confirmar a
rejeio definitiva de Saul (cap. 28).
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 103
A promessa/ao de julgar o mal
Estas promessas, em termos de exaltao dos humildes e queda dos arrogantes, esto
contidas no cntico de Ana (2.1-10). Em todo o livro, encontramos o tema na ameaa
proftica contra a casa de Eli (2.27-36) e em seu macabro cumprimento (4.1-12). O mesmo
tema resplandece no triunfo da arca sobre os deuses dos filisteus (caps. 46), na execuo de Agague por Samuel (15.32, 33), na remoo do Esprito de Yahweh de Saul devido a sua
rebeldia (16.14), e na derrota final do rei pelas mos dos filisteus (cap. 31).
A libertao do mal para/por uma semente escolhida
Esta linha de ao divina tem seu primeiro exemplo na narrativa do nascimento de
Samuel e em sua gradativa capacitao para servir como o agente divino de libertao (caps.
13, 7). Saul desperdia sua oportunidade de tornar-se o instrumento escolhido por Deus, a despeito de agir assim por algum tempo (caps. 11, 1415 [em que, todavia, Jnatas desempenha o papel mais positivo]). Davi torna-se a semente escolhida, e, aps poucos
pargrafos, o autor demonstra a disposio do jovem pastor em cumprir tal papel como
tambm sua capacidade de agir como libertador (cap. 17; cf. 18.7, 14). A despeito de falhas
ticas, que o autor no faz qualquer questo de esconder, Davi permanece como o principal
libertador de Israel, medida que Saul vai desaparecendo de cena devido sua conduta
autodestrutiva. Quando o livro termina, com a famlia de Saul dizimada, Davi aparece como
a nica alternativa para que Israel sobreviva como nao livre.
O decreto de abenoar os eleitos
Esta quarta linha de ao divina no muito proeminente em 1 Samuel, pois sua
apario aguarda a plena manifestao de Davi como o regente escolhido de Yahweh, o rei
cuja casa Ele promete estabelecer para sempre. Apesar disso, h indcios presentes em 2.9,
10, quando Ana antev a bno de Yahweh sobre os humildes e a escolha de um (msah, i.e., Ungido), como tambm na promessa do profeta annimo a Eli (2.35), em que Yahweh promete abenoar e estabelecer a casa de Seu sacerdote fiel (promessa cumprida
em Zadoque).
Duas outras linhas de ao divina aparecem com importncia no desenvolvimento do
livro e, embora possam ser encaixadas nas quatro linhas tradicionais, contribuem de maneira
especial para a mensagem do livro e merecem ser destacadas.
Yahweh age como o grande inversor da sorte
Esta atividade, que j foi considerada anteriormente, esboada no cntico de Ana
(2.1-10). Em todo o livro, o destino dos pobres, dos desprezados, dos humilhados e dos
amargurados modificado de acordo com sua fidelidade aliana, que prova de sua f em
Yahweh. Davi, obviamente, o exemplo maior de tal atividade. Sua constante recusa em
tomar a histria nas prprias mos (eliminando Saul) demonstra sua f na promessa divina
feita por intermdio de Samuel, bem como na capacidade divina de estabelec-lo como
regente da monarquia teocrtica que seria o meio de Yahweh dirigir Seu povo, Israel.
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 104
Yahweh age como o estabelecedor da monarquia
No h dvida na mente deste autor de que o plano de Yahweh para a teocracia
inclua, desde o princpio, a monarquia. As provises mosaicas (Dt 17) o indicam, e o
cntico proftico de Ana revela o que pode ter sido a sensao predominante entre o povo
durante o perodo dos juzes Israel precisa de um rei! desnecessrio postular inseres editoriais ou autoria recente para o cntico. Uma
mulher guiada pelo Esprito foi usada para expressar uma verdade divina que Deus realizaria, no futuro, maravilhas em favor de Seu povo. A questo de Ana ter composto o
salmo ou ter apenas recitado um salmo j existente totalmente irrelevante (veja os
comentrios de Hertzberg (I & II Samuel, p. 29-30) sobre a falta de ligao entre o salmo e a
histria de Ana. Ele evidentemente no percebeu a ligao crtica entre o cntico e a
experincia de Ana e a maneira em que eles resumem a experincia de outros personagens
do texto de 1 e 2 Samuel). O que o autor do livro quer comunicar que Deus tinha Seu
plano traado, e a estratgia correta para realiz-lo.
Por duas vezes, entretanto, Yahweh traria Seu povo ao ponto de total quebrantamento
e quase aniquilao, em que Israel reconheceria a necessidade de se humilhar perante Ele,
de se comprometer com Ele (este um dos propsitos da narrativa da arca), e de depender
de Sua superioridade sobre outros deuses (7.2-4) e de Sua soberania sobre o povo da aliana
(isto feito por meio dos discursos de Samuel sobre o tipo de monarquia que Israel teria e
deveria ter).
A TEOLOGIA DE 2 SAMUEL (A PESSOA E O CARTER DE DEUS)
O estudo de 2 Samuel demonstrou, at aqui, que um narrador magistral queria
comunicar verdade espiritual a seus leitores e reforar alguns conceitos teolgicos.
O fato de poucas de suas avaliaes ser explcitas no diminui o impacto teolgico de
sua obra, desde que o leitor esteja alerta para tcnicas literrias como as j mencionadas:
insinuao, ambigidade, recapitulao, quiasma e repetio.
Yahweh gracioso
A graa de Deus jamais mencionada explicitamente no livro, mas permeia toda a
narrativa. Ela mais claramente demonstrada nos dois eventos-chave do livro: o
estabelecimento da aliana davdica e o pecado de Davi com Bate-Seba.
No primeiro evento (7.117), a graa fica evidenciada na maneira pela qual Deus assume o cuidado de Davi (e, por meio dele, de toda a nao). Em vez de permitir que Davi
Lhe construa uma casa (que O tornaria, de alguma forma, devedor ao rei), Yahweh promete
abenoar Davi de tal forma que tudo que seus descendentes pudessem oferecer a Ele seria
apenas uma nfima resposta quela demonstrao inicial do hesed divino. O amor leal de
Yahweh no o fruto do amor leal do homem, mas a causa.
A graa criativa de Yahweh tambm vista na elevao de um humilde pastor
condio de grande rei (7.9), a quem vassalos prestaro homenagem. O prprio Davi
demonstra surpresa diante de tal demonstrao (7.19).
A graa de Deus tambm brilha em perdo, pelo fato de que o hediondo crime de
Davi, embora jamais tolerado, perdoado. Adultrio e homicdio premeditado so tratados
no conforme a Lei Mosaica, que prescrevia a pena capital para ambos (Lv 20.10; x
21.14), mas de acordo com a graa que detecta o arrependimento e a confiana no carter
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 105
misericordioso de Yahweh. Essa mesma graa non ex opera demonstrada no captulo 24,
quando o castigo divino suspenso antes que o anjo exterminador chegue a Jerusalm.
Embora haja envolvimento humano em intercesso, esta no apresentada como a causa do
ato divino de libertao, mas como seu mero (embora importante) instrumento.
Yahweh severo
A contrapartida da graa a severidade (cf. Rm 11.22). Em Sua santidade, Deus no
permite que se zombe de Sua pessoa ou de Seu carter. Portanto, o desprezo de Saul pelo
Senhor e Sua aliana (e.g. Arca, gibeonitas) punido pela justia divina sobre seus
descendentes que, com a exceo de Mefibosete, morrem violentamente ou so submetidos
vergonha da esterilidade (cf. Mical, no captulo 6).
As mesmas conseqncias do pecado esto presentes, de maneira chocante, na vida
de Davi. As ondas de choque de seu pecado fragmentam os sonhos de sua famlia de
maneira qudrupla (de conformidade com seu julgamento em 2 Sm 12.6): o filho de seu adultrio morre, com Amnom, Absalo e Adonias. Pelo estupro de Bate-Seba (o leitor no
informado de como ela reagiu no incidente), no apenas sua bela filha violada, mas suas
concubinas tornam-se objeto do exibicionismo de Absalo, em sua ousada tentativa de
tomar o trono de Israel.
A vida de Davi prova clara de que o perdo espiritual no garante iseno da
vergonha, do sofrimento e da tristeza, que invariavelmente acompanham o pecado em suas
muitas formas. Yahweh escolheu perdoar a culpa sem poupar-lhe as conseqncias.
Um exemplo final da severidade de Yahweh se acha na narrativa da arca em 2
Samuel 6. Uz, apesar de bem-intencionado, estava agindo fundamentado em uma
mentalidade humana e supersticiosa. Davi e seus homens tinham instrues mosaicas bem
claras sobre como transportar a arca. O mtodo que escolheram sugere uma tentativa de
duplicar o sucesso dos filisteus 70 anos antes. No entanto, para surpresa de Uz, e
consternao tardia de Davi, a presena santa de Yahweh e o respeito obediente devido a
Ele no podem ser tratados com leviandade.
Yahweh soberano
A maioria das referncias soberania de Yahweh est centralizada na pessoa de
Davi. Pacientemente, ele espera que Yahweh torne realidade a promessa de ser o rei ungido
de Israel, buscando a direo do Senhor (2.1,2) e esperando um pedido unificado das doze
tribos.
A soberania de Yahweh talvez aparea na esterilidade de Mical, depois de sua
repulsa ao entusiasmo de Davi diante da arca do Senhor. A despeito das causas de tal
esterilidade (uma interveno sobrenatural ou a simples recusa, por parte de Davi, em
manter relaes sexuais com ela o que certamente seria a sorte mais amarga), a soberana rejeio divina da linhagem de Saul foi assim efetuada.
O respeito que Davi tinha pela soberania de Yahweh transpira no relato da barragem
de ofensas que Simei dispara contra o rei deposto (16.5-14). Davi, quando lhe oferecida a
possibilidade de livrar-se de tal incmodo fsico e moral, recusa o gesto de lealdade de
Abisai, aludindo possibilidade de que o prprio Yahweh tivesse soberanamente ordenado
as aes de Simei (cf. 16.10).
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 106
Confiana semelhante subjaz em seu pedido para que Deus transtorne o conselho de
Aitofel. Sua crena, todavia, no o impediu de empregar os servios de Husai e de
estabelecer uma rede de espionagem na corte de Absalo.
Embora 2 Samuel no apresente um quadro claro da escolha davdica de um
sucessor, indcios da soberana escolha divina de Salomo podem ser encontrados no relato
de seu nascimento (cf. 12.24). O menino, da inevitvel vergonha associada ao passado
recente de sua me, foi alado posio de escolhido (amado; cf. Ml 1.2, 3). Jedidias, seu
nome alternativo, derivado da mesma raiz verbal que o nome Davi, sugere que a mensagem de Nat a Davi tinha algo a ver com a escolha divina de Salomo como herdeiro
do trono (cf. 1 Rs 1.13,30; 1 Cr 21.9,13). Assim, em certo sentido, a chamada narrativa da sucesso deveria chamar-se narrativa da eliminao, pois nela Deus vai soberanamente afastando os candidatos imprprios, enquanto opera, simultaneamente, as terrveis
conseqncias do pecado de Davi (Merrill (Histria, p. 262), situa o incio de uma co-regncia entre Davi e Salomo por volta de 973 a.C., dois anos antes da morte de Davi).
Uma ltima demonstrao da soberania de Yahweh surge no captulo 24, quando
creditada a Ele a origem do censo. Primeiro Crnicas atribui tais pensamentos a Satans,
que seria o agente designado soberanamente por Yahweh. O fato notvel que Yahweh
soberanamente administra o uso satnico do orgulho e ambio humanos para punir algum
pecado nacional no identificado (24.1) e produzir o bem maior na clara definio do local
onde Seu culto ficaria centralizado e a unidade religiosa da nao seria obtida.
A ADMINISTRAO DOS PROPSITOS DE DEUS
Dentro do propsito qudruplo de Deus de permitir a existncia do mal, de julgar o
mal, de vencer o mal em favor de uma semente escolhida, ou por meio dela, e de conceder
Sua bno aos eleitos, o livro de 2 Samuel opera como o elemento de focalizao.
Presumindo que a monarquia j havia sido definida como o agente temporrio de Deus em
Israel (a despeito da falha grotesca de Saul), Yahweh julga o mal dentro da nao e liberta
Seu povo escolhido (disciplinando Davi e removendo candidatos indignos ao trono), ao
garantir a Israel no apenas alvio de opresses estrangeiras, mas domnio sobre antigos
inimigos, de modo que a nao possa desfrutar a plenitude das bnos da aliana.
O desenvolvimento da aliana abramica
Segundo Samuel oferece um desenvolvimento da aliana abramica ao focalizar
aquela promessa de que reis procederiam dos patriarcas (cf. Gn 17.6,16; 35.11). A profecia
implcita de que um rei viria (cf. Dt 17.14s.) sugere que a monarquia operaria conforme o
duplo mbito das duas alianas prvias.
Isto parece claro em 2 Samuel 7.14: Se vier a transgredir, castig-lo-ei com vara de
homens, e com aoites de filhos de homens. A promessa a Jud (Gn 49.10) garantia a
natureza perptua da promessa feita linhagem de Davi; as ameaas da aliana
deuteronmica garantiam o inevitvel resultado do pecado na vida de qualquer representante
individual da linhagem.
A aliana davdica floresce, por assim dizer, da semente prometida a Abrao, que
ampliada para incluir uma casa ou dinastia (7.12,13a), um trono eterno (7.13b-15, 16b) e um
reino eterno (7.16a). Essa promessa complexa surge tecnicamente sob a forma de uma
aliana de doao real, um contrato pelo qual um soberano graciosamente concedia um benefcio, normalmente sob a forma de terra ou feudo, a um vassalo, quer por servios
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 107
prestados quer por pura generosidade e amor do soberano (para maiores detalhes sobre essa
forma de pacto veja Moshe Weinfeld, The Covenant of Grant in the Old Testament and in the Ancient Near East, Journal of the American Oriental Society 90 (1970): 184-203. Uma passagem paralela importante o Salmo 89, que interpreta em forma de hino o orculo
entregue por Nat (veja especialmente Sl 89.27, em que a natureza eterna do pacto
enfatizada e testemunhas celestiais so invocadas).).
A aliana tambm se baseia em Gnesis 49.10, que assegura que o direito de reinar
sobre Israel pertencer a Jud; a partir desse ponto, a promessa afunila-se at chegar casa
de Davi, antecipando assim o reino de Cristo.
2 Samuel 7 tem vrias implicaes escatolgicas, das quais as mais importantes so:
a) Israel deve ser preservado como nao; b) Israel, por fim, reconquistar pleno controle da
terra oferecida a Abrao; e c) o Grande Filho de Davi retornar corporalmente e
estabelecer o reino davdico.
Sacerdcio da ordem de Melquisedeque em 2 Samuel
As tradues modernas de 2 Samuel 8.18, no apenas em portugus, mas tambm em
ingls, evitam uma questo significativa, mas problemtica, ao dar um significado geral
palavra hebraica (khn, sacerdote). Ao fazerem isso, seguem uma antiga tradio, j que tanto o livro de Crnicas quanto a Septuaginta fizeram o mesmo para evitar a palavra
problemtica. Duas outras referncias complicam o problema: 2 Samuel 20.26 e 1 Reis 4.5.
A maioria dos comentrios consultados (com exceo de 2 Samuel, de P. R. Ackroyd
[CBC]), considera, a priori, que era impossvel que os filhos de Davi tenham oficiado como
sacerdotes (o sentido normal da palavra kohen). Essa posio, porm, ignora uma forte
tradio de sacerdcio real no Antigo Testamento. As aes de Davi, em 2 Samuel 6, seriam
absolutamente absurdas (oferecer sacrifcios, abenoar o povo etc.) a no ser que ele
estivesse convicto de que, em virtude de sua captura de Jerusalm e do papel real que ali
exercia, estava capacitado a exercer os privilgios que haviam precipitado a runa de Saul e
sua dinastia (cf. gesto semelhante de Saul em 1 Sm 13).
A isso deve somar-se o fato de que Davi afirmou que o rei ungido de Israel seria
tambm um sacerdote da ordem de Melquisedeque (Sl 110). luz da promessa de 2 Samuel
7, no de estranhar que ele tenha designado funes sacerdotais para seus filhos. Tal
designao sugere que Davi estivesse esperando para muito breve a promessa do surgimento
de Seu Filho maior e que por isso organizou o culto de maneira que seus filhos
desempenhassem os mesmos papis sacerdotais que, por um curto perodo de tempo, ele
desempenhara.
O fato de ter havido, por algum tempo (977-959 a.C.), dois focos no culto israelita
(um em Gibeo, onde estava o tabernculo, e outro em Jerusalm, onde estava a arca) pode
ter contribudo para essa diversificao sacerdotal (cf. 2 Sm 6.17; 1 Rs 3.4,5) (Hertzberg, I
& II Samuel p. 294, sugere, ao citar o exemplo de Juzes 17:5, que era aceitvel
mentalidade israelita que os filhos do patrono de um santurio oficiassem como sacerdotes.
A. A. Anderson, 2 Samuel, WBC, p. 137-138, sugere que o arranjo foi temporrio, mas no
fornece maiores explicaes).
Que tal esperana ainda ardia em Israel depois de sculos de desiluso fica evidente
na profecia de Zacarias (6.9-14) e na tentativa dos hasmoneus de combinar os do os dois
ofcios (rei e sacerdote). Esses lderes, embora tenham conseguido (alguns, at certo ponto,
mas Joo Hircano, totalmente) acumular as duas funes, no se qualificavam para cumprir
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 108
a profecia de Salmo 110, pois eram primariamente sacerdotes, e apenas secundariamente
governantes seculares, j que no pertenciam linhagem de Davi.
A objeo que pode ser feita que 2 Samuel 20.26 e 1 Reis 4.5 no apiam essa tese
proposta, j que os homens nela mencionados no so filhos de Davi. Todavia, bem
possvel que, dadas as condies caticas durante e aps a rebelio de Absalo, Ira, o jairita,
tenha funcionado como sacerdote real interino, com autoridade derivada de sua indicao
por Davi. Poderia se dizer o mesmo de Zabude , embora ele possa ter sido sobrinho de
Salomo, j que seu pai, de resto desconhecido, chamava-se Nat. O fato de outros filhos de
Davi se sentirem capacitados para tal funo pode ser observado quando Adonias ofereceu
sacrifcios por ocasio de seu frustrado golpe de Estado (1 Rs 1.19). Outra objeo possvel posio aqui proposta que ela faria Davi dependente de
um sacerdcio jebuseu, pago, cujo lugar ele teria assumido ao conquistar a cidade. Tal
idia negada contextualmente pelo profundo dio que Davi devotava aos jebuseus;
tambm duvidoso que assumisse uma posio de tal sincretismo religioso depois da
violenta punio a Uz, no caso do transporte da arca. melhor postular uma tradio
israelita de sacerdcio real, iniciada com a figura mstica de Melquisedeque, que teria sido
gradativamente reforada pelas figuras quase monrquicas de Moiss e Samuel e que fora
ambicionada por Gideo, com sua estola sacerdotal (cf. Jz 8.22-27). O fato de Saul jamais
ter tomado Jerusalm, fazendo de Gibe sua capital, pode ser uma razo a mais para que seu
ato sacerdotal tenha sido considerado inaceitvel diante de Yahweh.
Dentro do esquema divino de interveno na histria para restaurar Sua soberania
mediada, a linha de revelao centrada em Melquisedeque ocasionalmente converge com o
fluxo maior da atividade divina por meio das instituies de Israel.
Essa convergncia na pessoa de Davi, rei de Jerusalm, parece, a este autor, o
fundamento do uso de Melquisedeque no livro de Hebreus, cujo autor defende a
superioridade de Jesus Cristo sobre o judasmo (o ponto de vista aqui defendido oposto, de
maneira mais absoluta, ao de C. F. Keil e F. Delitzsch, The Books of Samuel, p. 368-369. C.
E. Armerding defende o sacerdcio dos filhos de Davi em Were Davids Sons Really Priests? em Current Issues in Biblical and Patristic Interpretation, editado por G. Hawthorne).
ESBOO
I. O FIM DE UMA ERA: SAMUEL, O LTIMO JUIZ DE ISRAEL (1Sm 1.112.25) a. O nascimento e a infncia de Samuel (1.14.1a)
i. A orao de uma mulher respondida (1.1-28)
ii. Ana exulta no Senhor (2.1-10)
iii. Samuel se depara com a corrupo em Sil (2.11-36)
iv. O Senhor chama Samuel (3.14.1a) b. Calamidade, arrependimento e livramento (4.1b7.17) i. Derrota e perda da arca da aliana (4.1b-22)
ii. Os filisteus tm problemas com a arca (5.1-12)
iii. A volta da arca (6.17.2) iv. Arrependimento e nova consagrao em Mispa (7.3-17)
c. A questo da monarquia (8.112.25) i. O pedido de um rei (8.1-22)
ii. A uno secreta de Saul (9.110.16) iii. Saul escolhido e aclamado rei (10.17-27)
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 109
iv. Saul confirmado como rei (11.1-15)
v. Samuel transfere o poder a Saul (12.1-25)
II. SAUL: O PRIMEIRO REI (13.131.13) a. Incidentes bsicos no reinado de Saul (13.115.35) i. Jnatas ataca a guarnio filistia (13.1-23)
ii. A segunda iniciativa de Jnatas (14.1-23)
iii. O voto precipitado de Saul (14.24-46)
iv. Um panorama do reinado de Saul (14.47-52)
v. O confronto final de Samuel com Saul (15.1-35)
b. Davi se destaca (16.119.17) i. A uno secreta de Davi (16.1-13)
ii. Saul precisa de um msico (16.14-23)
iii. Saul precisa de um guerreiro para combater Golias (17.118.5) iv. O cime e o medo que Saul sente de Davi (18.6-30)
v. Jnatas e Mical salvam a vida de Davi (19.1-17)
c. Davi, o fora-da-lei (19.1826.25) i. Davi se refugia junto a Samuel (19.18-24)
ii. Davi e Jnatas fazem uma aliana (20.1-43)
iii. O sacerdote Aimeleque ajuda a Davi (21.1-9)
iv. Davi enfrenta o perigo em Gate (21.10-15)
v. Davi em Adulo e em Moabe (22.1-5)
vi. O preo de proteger Davi (22.6-23)
vii. Saul caa a Davi (23.1-29)
viii. Davi poupa a vida de Saul (24.125.1a) ix. Davi conquista Abigail (25.1b-44)
x. Davi poupa a vida de Saul pela segunda vez (26.1-25)
d. Davi recorre aos filisteus (27.131.13) i. Com Aquis, rei de Gate (27.128.2) ii. Saul consulta uma mdium (28.3-25)
iii. A providencial rejeio de Davi por parte do exrcito filisteu (29.1-11)
iv. Davi e os amalequitas (30.1-31)
v. A ltima batalha de Saul (31.1-13)
III. O REINADO DE DAVI (2Sm 1.120.26) a. A ascenso de Davi ao poder em Jud (1.14,12) i. Davi recebe a notcia da morte de Saul (1.1-16)
ii. O lamento de Davi (1.17-27)
iii. Davi rei em Hebrom (2.1-4a)
iv. Embaixadores de Davi so enviados a Jabes-Gileade (2.4b-7)
v. O reino rival (2.83.1) vi. Os filhos e os herdeiros de Davi (3.2-5)
vii. Abner deserta para o lado de Davi (3.6-21)
viii. A morte de Abner (3.22-39)
ix. A queda da casa de Saul (4.1-12)
b. Davi rei sobre todo o Israel (5.19.13) i. A aliana de Davi com Israel (5.1-5)
ii. Davi faz de Jerusalm sua cidade (5.6-16)
Antigo Testamento II Histricos e Poticos 110
iii. Davi derrota duas vezes os filisteus (5.17-25)
iv. Davi torna Jerusalm a cidade de Deus (6.1-23)
v. Uma casa para o Senhor (7.1-29)
vi. O estabelecimento do imprio de Davi (8.1-14)
vii. Davi delega responsabilidades (8.15-18)
viii. Davi honra um possvel rival (9.1-13)
c. A crise pessoal de Davi (10.112.31) i. Guerra com Amom (10.1-19)
ii. O adultrio de Davi (11.1-27)
iii. O profeta confronta o rei (12.1-15a)
iv. A morte da criana (12.15b-23)
v. O nascimento de Salomo (12.24-25)
vi. O fim da guerra amonita (12.26-31)
d. Tal pai, tais filhos (13.119.40) i. Amnom violenta sua meia-irm Tamar (13.1-22)
ii. A vingana de Absalo (13.23-39)
iii. A ousada iniciativa de Joabe (14.1-33)
iv. A revolta de Absalo (15.1-37)
v. Os confrontos de Davi e as tramas de Absalo (16.117.29) vi. A derrota e a morte de Absalo (18.1-33)
vii. Rompendo o impasse (19.1-40)
e. O descontentamento em Israel (19.4120.26)
IV. EPLOGO (21.124.25) A. Um legado do passado (21.1-14)
B. Davi e seus assassinos de gigantes (21.15-22)
C. Um dos grandes salmos de Davi (22.1-51)
C1. As ltimas palavras de Davi (23.1-7)
B1. Mais menes de bravura (23.8-39)
A1. O juzo divino cai novamente sobre Israel (24.1-25)