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âS ua trajetĂłria Ă© realmente muito impressionante. Arrasta consigo a fĂsica no Brasil.â A sĂntese foi feita, hĂĄ exatos dez anos,
pela pesquisadora AmĂ©lia ImpĂ©rio Hamburger (1932-2011), ao se referir a CĂ©sar Lattes (1924-2005), um nome que se tornou â alheio Ă sua vontade â um mito, ao lado de cientistas como Carlos Chagas (1879-1934) e Oswaldo Cruz (1872-1917). Certamente, nenhum outro nome das ciĂȘncias exatas deste paĂs estĂĄ tĂŁo presente no imaginĂĄrio do povo brasileiro.
Hoje, uma dĂ©cada depois de sua morte, sabemos um pouco mais sobre a trajetĂłria cientĂfi ca e pessoal de Cesare Mansueto Giulio Lattes, graças Ă publicação de novos livros e artigos, Ă descoberta de entrevistas e documentação em arquivos no Brasil e no exterior, a depoimentos de amigos, entre outras novidades. Mas um quadro mais abrangente de sua vida intelectual e o entendimento do alcance de sua obra estĂŁo ainda por serem escritos â afi nal, em histĂłria da ciĂȘncia, um tema, por mais simples que aparente ser, raramente se esgota, dada a complexidade do entrelaçamento da ciĂȘncia com outras formas de cultura e com o tecido social, polĂtico e econĂŽmico.
Para tentar entender Lattes, Ă© preciso iluminar os bastidores de seu surgimento como cientista. Ele foi produto da fundação da Universidade de SĂŁo Paulo (USP) e da vinda para essa instituição do fĂsico Ătalo-ucraniano Gleb Wataghin (1899-1986). Foi naquele momento que se iniciou, de forma sistemĂĄtica, a pesquisa em fĂsica teĂłrica e experimental no paĂs. Antes da chegada de Wataghin, a fĂsica no Brasil pode ser resumida a açÔes isoladas de pioneiros, sem que estes, em geral, contassem com o apoio do governo ou da universidade. Um desses marcos se dĂĄ, por exemplo, com o engenheiro Henrique Morize (1860-1930), que trabalha, em sua tese de cĂĄtedra, com raios X e catĂłdicos, na Escola PolitĂ©cnica do Rio de Janeiro, pouco mais de dois anos depois da descoberta, na Europa, desses fenĂŽmenos.
Ao fi nal do sĂ©culo 19, Morize e outros intelectuais da Ă©poca deram inĂcio a um movimento em prol da âciĂȘncia puraâ que desembocou na fundação da Sociedade Brasileira de CiĂȘncias, em 1916 (mais tarde, Academia Brasileira de CiĂȘncias).
10 ANOS DEPOIS
CBPFCENTRO BRASILEIRO DE PESQUISAS FĂSICAS
PRESIDENTA DA REPĂBLICA
Dilma Rousseff
MINISTRO DE ESTADO DA CIĂNCIA, TECNOLOGIA E INOVAĂĂO
José Aldo Rebelo Figueiredo
SUBSECRETĂRIO DE COORDENAĂĂO DAS UNIDADES DE PESQUISA
Adalberto Fazzio
DIRETOR DO CBPF
Fernando LĂĄzaro Freire JĂșnior
CURADOR DA EXPOSIĂĂO
Ivan dos Santos Oliveira JĂșnior
PESQUISA, REDAĂĂO E EDIĂĂO
CĂĄssio Leite Vieira (ICH) e Antonio Augusto Passos Videira (UERJ)
PROJETO GRĂFICO, DIAGRAMAĂĂO E TRATAMENTO DE IMAGENS
Ampersand Comunicação Gråfi cawww.amperdesign.com.br
CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISAS FĂSICAS
Rua Dr. Xavier Sigaud, 15022290-180 - Rio de Janeiro - RJTel: (0xx21) 2141-7100Internet: http://www.cbpf.br
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FOTO CORTESIA BRIAN POLLARD/U. BRISTOL
FOTO CASSIO LEITE VIEIRAFOTO ALICIA IVANISSEVICH (ICH)
FOTO ARQUIVO CBPF (MCTI)
A partir daqui, em sentido horĂĄrio: registro portuĂĄrio da chegada de Lattes Ă Inglaterra em 1946; Ășnica fotografi a conhecida da primeira ida de Lattes Ă Chacaltaya (BolĂvia), no primeiro semestre de 1947; mosaico de imagens com o primeiro decaimento completo de um pĂon em mĂșon, como publicado em Nature (24/05/15); retrato de Lattes na âGaleria dos NotĂĄveisâ, na Universidade de Bristol; caixas de emulsĂ”es nucleares usadas, logo depois da Segunda Guerra Mundial, pelos fĂsicos no LaboratĂłrio H. H. Wills, em Bristol; e, ao fundo, visĂŁo geral do caminho para o monte Chacaltaya
HERĂI DA ERA NUCLEAR Nascido em Curitiba (PR), em 11 de julho de 1924, formado na USP em 1943 (Ășnico bacharel em fĂsica naquele ano), Lattes inicia sua carreira em um momento em que a fĂsica, no mundo, sofria grande transformação: passava de uma atividade feita por grupos pequenos, orçamentos restritos e produção de bancada para um cenĂĄrio co-mumente denominado Big Science: grandes laboratĂłrios, centenas ou milhares de fĂsicos e tĂ©cnicos, orçamentos milionĂĄrios e, principalmente, a construção de aceleradores de partĂculas de grande porte.
De certa forma, Lattes teve um pĂ© em cada um desses mundos. Começou como teĂłrico com Wataghin e MĂĄrio Schenberg (1914-1990) na USP, para, depois, optar pela fĂsica experimental, por infl uĂȘncia, em parte, do italiano Giuseppe Occhialini (1907-1990), que havia chegado ao Brasil em 1937 e seria professor de Lattes na graduação.
Nessa guinada experimental, Lattes e mais dois jovens fĂsicos, Andrea Wataghin (1926-1984) â fi lho de Wataghin â e Ugo Camerini (1925-2014), passaram a estudar a radiação vinda do espaço (os chamados raios cĂłsmicos) com a ajuda de uma pequena cĂąmara de nuvens, detector no qual a trajetĂłria de partĂculas subatĂŽ-micas com carga elĂ©trica Ă© vista na forma de diminutas bolhas de um lĂquido (em geral, ĂĄgua).
Provavelmente, no fi nal de 1945, Lattes recebeu de Occhialini â agora, trabalhando no LaboratĂłrio H. H. Wills, na Universidade de Bristol (Inglater-ra) â um novo tipo de detector: chapas fotogrĂĄfi cas especiais, denominadas emulsĂ”es nucleares. Nelas, a trajetĂłria das partĂculas podia ser observada, com a ajuda de um microscĂłpio, como uma âfi leiraâ de diminutos grĂŁos de prata metĂĄlica. A nitidez e precisĂŁo dessas trajetĂłrias impressionaram bastante o jovem fĂsico.
Lattes, entĂŁo, solicita a Occhialini que lhe consiga uma bolsa para tra-balhar no H. H. Wills, no grupo do fĂsico britĂąnico Cecil Powell (1903-1969). Pouco depois, embarca em Santos (SP), no navio cargueiro Saint Rosario â o primeiro, segundo Lattes, a transportar passageiros para a Europa depois do fi m da guerra. Chega a Bristol no inĂcio de 1946.
Começariam aĂ os eventos que dariam fama a Lattes, fazendo dele ânosso herĂłi da Era Nuclearâ.
LATTES... 10 ANOS DEPOIS
QUESTĂES INQUIETANTES Lattes chegou Ă Inglaterra com um projeto pessoal: empregar as emulsĂ”es nucleares â produzidas sob encomenda dos fĂsicos pela indĂșstria fotogrĂĄfi ca â para o estudo da radiação cĂłsmica. Esse objetivo começou aos poucos, com Lattes e jovens colegas do H. H. Wills tentando, por meio de experimentos, entender as propriedades do novo detector.
Para um desses experimentos, Lattes â jĂĄ tendo em mente o estudo da radiação cĂłsmica â solicita Ă empresa Ilford, fabricante das emulsĂ”es nucleares, que inclua em alguns lotes das chapas fotogrĂĄ-fi cas o elemento quĂmico boro. O brasileiro suspeitou que esse incremento possibilitaria a observação indireta de nĂȘutrons criados pelo choque da radiação cĂłsmica contra nĂșcleos atĂŽmicos da atmosfera terrestre.
No fi nal de 1946, Lattes pediu a Occhialini â que naquele momento saĂa de fĂ©rias para esquiar no Pic-Du-Midi, nos Pirineus franceses â que levasse consigo e expusesse Ă quela grande altitude lotes (com e sem boro) de emulsĂ”es nucleares. Cerca de um mĂȘs depois, jĂĄ em Bristol, as chapas com boro movimentariam o cotidiano â muitas vezes, monĂłtono â do H. H. Wills. Naquelas chapas, a equipe de fĂsicos e mulheres microscopistas encontrou os chamados mĂ©sons, partĂculas com massa intermediĂĄ-ria entre a do elĂ©tron e do prĂłton. Os artigos com esses resultados foram publicados no inĂcio de 1947 e deram Ă quele laboratĂłrio inglĂȘs fama mundial nos anos a seguir â e um Nobel a Powell em 1950.
Para entender a importĂąncia dessa descoberta, Ă© preciso lembrar que, entre 1937 e 1947, uma das grandes questĂ”es da fĂsica era saber se havia um ou dois mĂ©sons. O primeiro deles havia sido proposto ainda em 1935 pelo fĂsico teĂłrico japonĂȘs Hideki Yukawa (1907-1981), como a partĂcula responsĂĄvel por mediar a força forte nuclear, aquela que mantĂ©m prĂłtons e nĂȘutrons unidos. PorĂ©m, dois anos depois, uma partĂcula com massa e propriedades semelhantes â o segundo mĂ©son â foi descoberta na radiação cĂłsmica e ganhou o nome mĂ©sotron.
DaĂ a questĂŁo: o mĂ©sotron seria o mĂ©son de Yukawa? Ou teriam naturezas distintas? Se sim, quais as propriedades de cada uma dessas entĂŁo novas partĂculas? Essas questĂ”es reuniram em torno delas alguns dos mais brilhantes fĂsicos teĂłricos e experimentais da Ă©poca.
NOSSO HERĂI NUCLEAR Cerca de 10 dias depois de sua chegada, Lattes â jĂĄ experiente na tĂ©cnica das emulsĂ”es nucleares â e seu colega norte-americano Eugene Gardner (1913-1950) encontraram os mĂ©sons no acelerador em Berkeley. E, no inĂcio de março de 1948, anunciavam ao mundo â com grande repercussĂŁo na imprensa dos EUA e do Brasil â a produção artifi cial de mĂ©sons. Pela primeira vez, a ciĂȘncia produzia em laboratĂłrio, de forma controlada, uma partĂcula que atĂ© entĂŁo sĂł era conhecida na radiação cĂłsmica.
Os feitos de Gardner e Lattes foram usados estrategicamente por Ernest Lawrence (1901-1958) â Nobel de FĂsica de 1939 e entĂŁo diretor do LaboratĂłrio de Radiação, que abrigava o acelerador â para angariar fundos junto Ă poderosa ComissĂŁo de Energia AtĂŽmica dos EUA. Lawrence conseguiu uma quantia vultosa (cerca de US$ 8 mi-lhĂ”es), com a qual construiu um acelerador muito mais potente, o BĂ©vatron, no qual seria descoberto o antiprĂłton em meados da dĂ©cada de 1950 â rendendo um Nobel aos descobridores.
No Brasil, os feitos de Lattes foram usados por uma campanha em prol da fundação de um centro de pesquisa em fĂsica e da implantação do regime de dedicação integral Ă docĂȘncia. Essa campanha foi capitaneada pelo fĂsi co JosĂ© Leite Lopes (1918-2006) e levou Ă fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas FĂsicas, em janeiro de 1949. Na-quele momento, ciĂȘncia era parte de um projeto de nação, apoiado nĂŁo sĂł por cientistas, mas tambĂ©m por intelec-tuais, artistas, industriais e militares nacionalistas â estes esperando dominar o ciclo completo da energia nuclear.
Lattes havia se tornado ânosso herĂłi da Era Nuclearâ. Cerca de 10 anos depois dos primeiros trabalhos que deram inserção internacional Ă fĂsica no Brasil â feitos pelo grupo liderado por Wataghin e por Schenberg â, o Brasil via a chance de o paĂs ingressar pari passu em um novo cenĂĄrio geopolĂtico, no qual conhecimento era sinĂŽnimo de poder polĂtico e econĂŽmico.
Lattes se tornaria Doutor Honoris Causa no inĂcio de 1948 pela USP. Ele, que sempre criticou a pĂłs-graduação, agora era o âProf. Dr. Lattesâ. Por sua participação nas duas detecçÔes pĂon (principalmente, na de 1948, em Berkeley), seria indicado â como mostram pesquisas recentes â sete vezes ao Nobel de FĂsica, entre 1949 e 1954.
Tudo indica ser o maior nĂșmero de indicaçÔes de um fĂsico brasileiro atĂ© hoje.
LABORATĂRIO NAS NUVENS Lattes havia se tornado Diretor CientĂfi co do CBPF, aos 24 anos de idade. Dedicava-se quase integralmente Ă construção do que viria a se tornar o entĂŁo maior projeto de fĂsica experi-mental na histĂłria do Brasil: o LaboratĂłrio de FĂsica CĂłsmica de Chacaltaya â montanha que, devido Ă detecção do mĂ©son pi lĂĄ ainda em 1947, passou a chamar a atenção de pesquisadores de vĂĄrios paĂses.
Em 1952, Lattes decidiu levar para o alto daquela montanha uma cĂąmara de nuvens que ele havia ganhado de seu colega Marcel Schein (1902-1960), da Universidade de Chi-
cago (EUA). O projeto recebeu apoio da Unesco e envolveu a vinda para o Brasil de vĂĄrios estrangeiros â entre eles, Occhialini e Ca-merini, que seguia, entĂŁo, trabalhando em Bristol, onde chegou logo depois de Lattes.
O laboratĂłrio de Chacaltaya começou a se desenvolver no mesmo momento em que a Europa, destruĂda pela guerra, dava inĂcio ao Centro Europeu de Pesquisas Nucleares. Foi um salto signifi cativo na histĂłria da fĂsica experimental no Brasil se medi-do pelo montante de verbas, equipamentos, recursos humanos e nĂvel de gerenciamento exigido. Guardadas as proporçÔes, o Labo-ratĂłrio de Chacaltaya pode ser entendido como ecos da chamada Big Science, o novo modo de fazer fĂsica que marcou o perĂodo depois do fi m da Segunda Guerra, no qual se iniciou a Guerra Fria.
Em 1959, Lattes liderou a chamada Colaboração Brasil-JapĂŁo (CBJ), que aproveitaria e ampliaria signifi cativamente a estrutura jĂĄ existente em Chacaltaya, para dar continuidade ao estudo da radiação cĂłsmica. A CBJ estendeu-se por quase 30 anos e descobriu fenĂŽme-nos â atĂ© hoje mal compreendidos â relacionados Ă produção mĂșltipla de pĂons.
A SOLUĂĂO DO ENIGMAA equipe do H. H. Wills daria a resposta a essas perguntas. As emulsĂ”es nucleares (com boro) expostas no Pic-du-Midi mostraram que havia dois mĂ©sons: o mĂ©son pi (de Yukawa) â este, sim, responsĂĄvel pela força forte nuclear â e o mĂ©son mi (mĂ©sotron), que Ă©, na verdade, um elĂ©tron pesado. Bristol, porĂ©m, havia descoberto apenas dois eventos de um mĂ©son pi se desintegrando (decaindo) em um mĂ©son mi. Isso garantiu a primazia da descoberta ao grupo, mas impedia o conhecimento de propriedades dessas duas partĂculas. Era preciso mais eventos desse tipo.
Com a ajuda de um mapa do Departamento de Geografi a da Univer-sidade de Bristol, Lattes localizou o monte Chacaltaya (BolĂvia), a 5,2 mil metros do nĂvel do mar. Com subsĂdio do governo inglĂȘs, chegou ao pico boliviano por volta de maio de 1947 e lĂĄ expĂŽs emulsĂ”es nucleares com boro Ă radiação cĂłsmica â quanto mais alto o local, maiores a chance de capturar partĂculas dessa radiação. Cerca de dois meses depois, Lattes retornou ao H. H. Wills, e naquelas chapas a equipe encontrou mais de 30 novos decaimentos de mĂ©son pi em mĂ©son mi, o que permitiu a publica-ção de dois artigos importantes por ele, Occhialini e Powell em outubro daquele ano na revista Nature.
As descobertas de Bristol â e, hoje, sabemos que a participação de Lat-tes foi decisiva â repercutiram na Europa, o que rendeu aos membros do H. H. Wills convites para encontros cientĂfi cos. Uma dessas oportunidades foi endereçada a Lattes, que seguiu para Copenhague, em dezembro daquele ano, para uma sĂ©rie de palestras. Nessa ocasiĂŁo, ele se encontrou com o fĂsico dinamarquĂȘs Niels Bohr (1885-1962), ao qual relatou as descober-tas. Disse tambĂ©m que tinha planos de ir trabalhar em Berkeley (EUA), no mais potente acelerador de partĂculas da Ă©poca, o sincrociclĂłtron de 184 polegadas.
Bohr estranhou a saĂda de Lattes de Bristol justamente em um momento em que, nas palavras de Lattes, âas coisas estavam quentes por lĂĄâ. O brasileiro, porĂ©m, estava convencido de que seria possĂvel â contando com alguma sorte â encontrar mĂ©sons entre os estilhaços de partĂculas produzidos nas colisĂ”es do acelerador, usando emulsĂ”es nucleares como detector. Em sua volta ao Brasil, Lattes casa-se com Martha Siqueira Neto (1923-2002), com quem teria quatro fi lhas â ao todo, teve nove netos.
ARRASTADO PELA HISTĂRIA Apesar de se intitular stalinista â por sinal, pouco sabemos do porquĂȘ dessa opção â, Lattes citava a BĂblia com desenvoltura. Gostava de animais, era apreciador de mĂșsica clĂĄssica â Vivaldi era um de seus compositores preferidos â, da literatura brasileira â havia gostado particularmente de Viva o povo brasileiro, de JoĂŁo Ubaldo Ribeiro (1941-2014) â e da prĂłpria histĂłria da ciĂȘncia â costumava andar com o Principia Mathematica, de Isaac Newton (1643-1727), debaixo do braço. Esses interesses molda-vam sua pessoa e personalidade para muito alĂ©m da cultura da fĂsica.
Foi portador de um transtorno mental â do qual, por sinal, nunca se envergonhou e sobre o qual falava abertamente â que lhe fazia, por vezes, alternar entre episĂłdios de depressĂŁo e euforia. Seus feitos cientĂfi cos posteriores Ă detecção do pĂon acabaram injustamente ofuscados por sua imagem pĂșblica, marcada por esses momentos de estabilidade/instabilidade. Por exemplo, a partir de 1964, na ItĂĄlia, iniciou uma linha de estudos em geocronologia que se mantĂ©m ativa atĂ© hoje em universida -des brasileiras. Sua imagem cientĂfi ca tambĂ©m acabou arranhada por conta de suas idiossincrasias em relação Ă teoria da relatividade.
Esse quadro mental â que o marcou aparentemente desde a infĂąncia â foi fortemente agravado em 1954 por um escĂąndalo de desvio de verbas do CBPF destinadas Ă construção de um acelerador de partĂculas de grandes proporçÔes. Nessa tarefa, o Brasil fracassou fragorosamente. NĂŁo tĂnhamos nem capacidade tĂ©cnica, nem recursos humanos. âNĂŁo sabĂamos nem mesmo fabricar lĂąmpadas elĂ©-tricasâ, sintetizou Lattes, contrĂĄrio ao projeto.
O âescĂąndalo Difi niâ â referĂȘncia ao entĂŁo tesoureiro do CBPF, Ălvaro Difi ni, professor da entĂŁo Universidade do Rio Grande do Sul â foi levado Ă imprensa da Ă©poca, por decisĂŁo de Lattes, e acabou estampado na capa do jornal carioca Tribuna da Imprensa de 18 de janeiro de 1955, em texto escrito pelo jornalista e polĂtico Carlos Lacerda (1914-1977). Essa atitude de Lattes foi duramente criticada atĂ© mesmo por amigos de longa data, como Leite Lopes e o tambĂ©m fĂsico Joaquim da Costa Ribeiro (1906-1960).
A repercussĂŁo dos fatos levou Lattes a deixar o paĂs. Passou, assim, cerca de dois anos nos EUA, trabalhando na Universida-de de Chicago e na Universidade de Minnesota. Sob tratamento mĂ©dico, foi um perĂodo difĂcil e pouco produtivo para ele.
Os que conviveram com Lattes nĂŁo hesitariam em afi rmar que, mesmo nos momentos mais contundentes de uma crise, seus relatos sempre foram coerentes e apoiados em uma base sĂłlida da realidade. Suas declaraçÔes sempre foram embasadas por tremenda honestidade intelectual e, principalmente, modĂ©stia â duas caracterĂsticas acentuadas em sua personalidade.
No entanto, como Ă© comum em histĂłria da ciĂȘncia, tentou-se separar o cientista (pĂșblico) do homem (privado). Mas houve um sĂł Lattes. E ele foi o que foi por causa desse binĂŽmio indissociĂĄvel de sua personalidade: estabilidade/instabilidade.
Apesar de todos os prĂȘmios e as homenagens que recebeu, Lattes achava (sinceramente) que sua contribuição havia sido modesta. Em 1997, no 50Âș aniversĂĄrio da descoberta do mĂ©son pi, respondeu sem hesitar, ao ser perguntado se mudaria algo em sua vida: âFiz o possĂvel. Fui arrastado pela histĂłria.â
Uma histĂłria que, aos poucos, tem se revelado e que ajuda a entender â por sua importĂąncia, amplidĂŁo e seu momento â o placo e os bastidores da histĂłria nĂŁo sĂł da fĂsica, mas da ciĂȘncia no Brasil â afi nal, seus feitos estĂŁo ligados Ă fundação do entĂŁo Conselho Nacional de Pesquisa (hoje, CNPq), para fi car em um sĂł exemplo. Nas palavras do fĂsico e amigo Alfredo Marques, ex--diretor cientĂfi co do CBPF, âO Brasil contraiu com ele [Lattes] uma dĂvida irresgatĂĄvel.â
Ă possĂvel que Lattes, na visĂŁo que atribuiu Ă sua trajetĂłria, tenha sido empurrado por essa força inexorĂĄvel: a histĂłria. Mas nĂŁo podemos deixar de reconhecer que seu nome, seus feitos e sua fama contribuĂram para moldar e dar rumo Ă fĂsica no Bra-sil. Como afi rmou, em 1973, o fĂsico austrĂaco Guido Beck (1903-1988) a seu colega alemĂŁo Werner Heisenberg (1901-1976), âLat-tes foi o ponto fora da curva na fĂsica latino-americanaâ.
Dez anos depois de sua morte, em 8 de março de 2005, a homenagem mais justa que podemos fazer a ele Ă© reconhecĂȘ-lo em sua integridade. Como a persona historica que nĂŁo pode ser dissociada de sua ciĂȘncia, suas ideias e seus atos.
E, principalmente, de seu tempo.
âSua trajetĂłria Ă© realmente muito impressionante.
Arrasta consigo a fĂsica no Brasil.â AmĂ©lia ImpĂ©rio Hamburger (1932-2011)
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1. Lattes nos primeiros anos de vidaFOTO ACERVO DA FAMĂLIA
2. Com o pai, a mĂŁe e o irmĂŁo Davide (Ă esquerda)FOTO ACERVO DA FAMĂLIA
3. O fĂsico italiano Giuseppe Occhialini, no Brasil, na dĂ©cada de 1930FOTO ACERVO INSTITUTO DE FĂSICA/USP
4. O fĂsico Ătalo-ucraniano Gleb Wataghin, fundador do Departamento de FĂsica da USP em 1934 e pioneiro da fĂsica no BrasilFOTO ACERVO INSTITUTO DE FĂSICA/USP
5. âTorre do cigarroâ, que abrigava o LaboratĂłrio H. H. WillsFOTO ALICIA IVANISSEVICH
6. O britĂąnico Cecil F. Powell, Nobel de FĂsica de 1950 e chefe do LaboratĂłrio H. H. WillsFOTO THE NOBEL FOUDATION
7. O fĂsico teĂłrico japonĂȘs Hideki Yukawa, que propĂŽs a existĂȘncia do mĂ©son pi, em 1935, como a partĂcula âcarregadoraâ de força que mantĂ©m o nĂșcleo atĂŽmico coesoFOTO WIKIMEDIA COMMONS
8. Lattes e Gardner em 1948, ao lado do sincrociclĂłtron de 184â, em Berkeley (EUA), logo apĂłs a detecção de mĂ©sons pi naquele aceleradorFOTO CBPF(MCTI)
9. PavilhĂŁo MĂĄrio de Almeida, primeira sede prĂłpria do CBPF, construĂdo na dĂ©cada de 1950 e localizado na entĂŁo Universidade do Brasil (hoje, UFRJ)FOTO CBPF(MCTI)
10. Portal de entrada do LaboratĂłrio de FĂsica CĂłsmica, no monte Chacaltaya, a 5,2 mil metros de altitude, no inĂcio das obras de infraestruturaFOTO EDISON SHIBUYA/UNICAMP
11. TrajetĂłria de partĂculas, em fotografi as extraĂdas do caderno de laboratĂłrio de Lattes em Berkeley (EUA), em 1948 FOTO THE NATIONAL ARCHIVES (USA)
12. Ismael Escobar, Andrea Wataghin e Lattes em Chacaltaya no inĂcio da dĂ©cada de 1950FOTO CBPF (MCTI)
13. Joaquim da Costa Ribeiro, Lattes e OcchialiniFOTO CBPF (MCTI)
14. Lattes e Leite Lopes, no CBPFFOTO CBPF (MCTI)
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