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RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 263, p. 251-290, maio/ago. 2013 A supremacia do interesse público na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal durante a República Velha * The Supremacy of the Public Interest on The Brazilian Supreme Court during the Old Republic José Guilherme Giacomuzzi ** RESUMO O presente artigo analisa as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro sobre o alegado princípio jurídico da supremacia do interesse público sobre o privado tomadas durante a República Velha (1891 a 1930). O estudo pretende preencher lacuna na historiografia jurídica e na teoria do direito brasileiras, uma vez que, embora seja o referido princípio ensi- nado na faculdades de direito e utilizado nos tribunais como fundamento do direito público, não há estudos sobre o que o STF tem dito sobre o tema ao longo de sua história. A pesquisa reflete a primeira parte de um estudo mais abrangente, que pretende escrutinar as decisões do STF sobre o tema * Artigo recebido em 11 de março de 2013 e aprovado em 29 de abril de 2013. ** Doutor em direito (The George Washington University Law School, EUA, 2007), mestre em direito (UFRGS, 2000). Professor de graduação e mestrado em direito no UniRier, RS. Promotor de Justiça no RS. UniRier Laureate International Universities, Porto Alegre, Brasil. E-mail: [email protected].

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    a supremacia do interesse pblico na jurisprudncia do Supremo tribunal Federal durante a repblica velha*

    the Supremacy of the Public Interest on the Brazilian Supreme Court during the old republic

    Jos Guilherme Giacomuzzi **

    RESUMO

    O presente artigo analisa as decises do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro sobre o alegado princpio jurdico da supremacia do interesse pblico sobre o privado tomadas durante a Repblica Velha (1891 a 1930). O estudo pretende preencher lacuna na historiografia jurdica e na teoria do direito brasileiras, uma vez que, embora seja o referido princpio ensi-nado na faculdades de direito e utilizado nos tribunais como fundamento do direito pblico, no h estudos sobre o que o STF tem dito sobre o tema ao longo de sua histria. A pesquisa reflete a primeira parte de um estudo mais abrangente, que pretende escrutinar as decises do STF sobre o tema

    * Artigo recebido em 11 de maro de 2013 e aprovado em 29 de abril de 2013.

    ** Doutor em direito (The George Washington University Law School, EUA, 2007), mestre em direito (UFRGS, 2000). Professor de graduao e mestrado em direito no UniRitter, RS. Promotor de Justia no RS. UniRitter Laureate International Universities, Porto Alegre, Brasil. E-mail: [email protected].

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    desde a fundao da Corte. Como resultado, a pesquisa encontrou alguns acrdos que revelavam a linguagem utilizada pelo STF sobre o tema, mas no foi possvel encontrar uma sistematicidade na aplicao do princpio.

    PalavRaS-chavE

    Jurisprudncia do STF Repblica Velha princpios jurdicos supre-macia do interesse pblico

    aBSTRacT

    The article analyses the Brazilian Supreme Court decisions on the allegedly existent legal principal of supremacy of the public interest taken during the Old Republic period (1891 to 1930). The study aims at filling a gap in Brazilian legal history and jurisprudence, since there are no studies on the subject so far, despite the fact that the mentioned principle has been taught at Law Schools as dominant and applied by courts as foundational of Brazilian public law. The article reflects the first part of a larger work-in-progress that aims at scrutinizing the Brazilian Supreme Court decisions on the subject since the Courts creation. As a result, the study has found a few cases using some language about the subject that nonetheless reveal a lack of systematic treatment of the subject.

    KEy-wORdS

    Brazilian Supreme Court decisions Old Republic legal principles supremacy of the public interest

    1. Introduo

    A doutrina ptria h muito afirma quase em unssono que o direito pblico brasileiro regido pelo princpio jurdico da supremacia do inte-resse pblico sobre o particular. Essa afirmao tinha at ontem sabor de dogma e era repassada como tal nas faculdades de direito do pas, com reflexo nos tribunais, em especial no Superior Tribunal de Justia (STJ).1 Publicado no

    1 Agradeo s alunas Aline Medeiros Gorga, Brbara Bruna de Oliveira Simes, Paula Miranda e Manuela Keunecke Leo pelo auxlio na pesquisa das fontes jurisprudenciais. A seleo dos julgados e as eventuais carncias ou falhas na anlise dessas fontes so, porm, da minha inteira

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    final do sculo passado,2 um artigo iconoclasta questionando a existncia e a estrutura normativa desse alegado princpio gerou tanto adeptos quanto forte reao contrria da doutrina nacional.3

    Este estudo no justifica a posio de qualquer dos lados do debate nem aduz argumentos pr ou contra as teses sustentadas; tampouco se dedica tarefa mais fundamental de escrutinar a natureza dos princpios jurdicos, que se tornaram entre ns perigosos instrumentos de arbtrio argumentativo disfarados de normatividade moral.4 Essas tarefas foram reservadas a dois outros trabalhos ainda em preparo. Entretanto, na era dos princpios em que vivemos, e diante da crescente importncia da jurisprudncia na teoria do direito dos sistemas jurdicos continentais, chama a ateno o fato de nunca ter sido feita pesquisa sobre o que tem dito, ao longo de sua histria, o Supremo Tribunal Federal (STF) acerca do tema. O presente artigo pretende comear a preencher essa lacuna.

    Para isso, sero aqui apresentados e analisados os acrdos do STF que (supostamente) trataram do assunto desde sua criao at 1930. O corte temporal deu-se basicamente por questes pragmticas: alm da limitao de espao a um artigo acadmico, a vastido do lapso a estudar (mais de 100

    responsabilidade. Agradeo a Lcia Navarro a leitura atenta do artigo e a Cludio Ari Mello pela leitura de verso inicial e pelos comentrios crticos, que me salvaram de impropriedades na teoria geral do direito. As que eventualmente permanecem devem ser a mim atribudas.Ver citaes de doutrina e jurisprudncia atualizadas em GIACOMUZZI, Jos Guilherme. Estado e contrato: supremacia do interesse pblico versus igualdade. Um estudo comparado sobre a exorbitncia no contrato administrativo. So Paulo: Malheiros, 2011. p. 25, notas 11-12. Ver tambm FIGUEIREDO, Marcelo. Breve sntese da polmica em torno do interesse pblico e sua supremacia: tese consistente ou devaneios doutrinrios? In: MARRARA, Thiago. Princpios de direito administrativo: legalidade, segurana jurdica, impessoalidade, publicidade, motivao, eficincia, moralidade, razoabilidade, interesse pblico. So Paulo: Atlas, 2012.2 VILA, Humberto Bergmann. Repensando o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o particular. Revista Trimestral de Direito Pblico, So Paulo, n. 24, p. 159-180, 1998.3 Para artigos favorveis crtica, ver, p. ex., os artigos compilados em SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses pblicos versus interesses privados: desconstruindo o princpio da supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. Para a defesa do princpio, a obra mais recente da qual tenho conhecimento a compilao de artigos feita por DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vincius Alves (Org.). Supremacia do interesse pblico e outros temas relevantes do direito administrativo. So Paulo: Atlas, 2010. Ver tambm o recente estudo de Figueiredo, Breve sntese da polmica em torno do interesse pblico e sua supremacia, op. cit., no qual o autor apresenta inventrio, embora incompleto, dos autores e respectivas posies sobre a contenda, dividindo em contemporneos os autores que questionam ou negam a existncia do princpio e de clssicos os que o afirmam; os primeiros teriam, segundo Figueiredo, uma viso mais liberal de interesse pblico (p. 408), a qual o autor no endossa, filiando-se aos ditos clssicos.4 Sobre o abuso do uso dos princpios jurdicos, ver o provocativo estudo de SUNDFELD, Carlos Ari Vieira. Princpio preguia? In: MACEDO JR., Ronaldo Porto; BARBIERI, Catarina H. C. Direito e interpretao: racionalidades e instituies. So Paulo: Saraiva, 2011.

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    anos desde a criao do STF em 1891) recomendou uma diviso tripartida e mais ou menos equnime dos perodos: (1) da criao do STF at 1930; (2) de 1931 at a Constituio Federal de 1988; e (3) ps-1988 at hoje. Este primeiro estudo refere-se ao perodo inicial, a chamada Repblica Velha. Dois outros estudos, em fase de finalizao, completaro os perodos restantes.

    Apresento aqui os acrdos de forma predominantemente descritiva e brevemente os analiso.5 Embora eu empreenda por vezes breve anlise crtica aps a apresentao das decises, a concluso ser apenas parcial, na qual esboo questes para serem depois, em trabalho futuro, mais bem analisadas e qui respondidas; da que uma viso do conjunto mais ampla da perspectiva do STF e uma anlise crtica aprofundada sero deixadas ao ltimo estudo dos trs perodos acima delineados.

    Deixo claro e justifico, no item 2, o mbito do material pesquisado, bem como explico as limitaes encontradas na pesquisa de fontes. No item 3 expli cito os critrios utilizados para a seleo dos acrdos; essa explicao contm em si uma valorao crtica sobre os princpios jurdicos, que ser jus tifi cada. No item 4, o mais extenso, fao a apresentao e a anlise dos acrdos. Segue concluso no item 5.

    2. mbito do material pesquisado e limitaes das fontes

    Somente os acrdos proferidos pelo STF a partir de 1950 esto dispo-nveis no stio eletrnico oficial internet do Supremo; antes dessa data as decises esto disponveis na internet apenas de forma esparsa, sendo trs as formas de busca: os acrdos (1) da seco Coletnea de acrdos, no cone Jurisprudncia; (2) da seco julgamentos histricos, no cone Sobre o STF, que disponibiliza alguns poucos acrdos antigos, incluindo decises do STF (a partir de 1891), do STJ (1829 a 1891) e da Casa da Supli-cao (1808 a 1829); ressalta-se que somente os acrdos do perodo repu-blicano interessaram a esta pesquisa; (3) os acrdos constantes da seco Memria Jurisprudencial, no cone Publicaes, a qual, como diz o nome, pretende resgatar a memria do STF por meio do estudo de acrdos de

    5 Na teoria do direito, o debate metodolgico sobre a possibilidade de uma anlise descritiva um sem-fim. Esse debate no interessa aqui. A frase de H. L. A. Hart basta aos fins deste estudo: Uma descrio pode ainda continuar a ser descrio, mesmo quando o que descrito constitui uma avaliao. HART, H. L. A. The concept of law. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 1994.

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    seus mais eminentes ministros. Foram consultados os estudos publicados at hoje (agosto de 2012) sobre os ministros que integraram o STF no perodo abarcado pela presente pesquisa, quais sejam, Epitcio Pessoa e Pedro Lessa.6 Nesta ltima parte, a seleo dos acrdos que compem cada estudo foi feita pelos autores encarregados da anlise das decises dos ministros estudados, e nenhum deles tinha necessariamente o foco no tema tratado no presente artigo; da que as decises da seco Memria Jurisprudencial serviram mais como fonte complementar de acrdos que pudessem no constar dos loci eletrnicos antes referidos ou dos repositrios oficiais fsicos pesquisados.

    Por informao junto ao Supremo, sabe-se que a Seo de Arquivo do STF possui todos os acrdos da Corte a partir de 1919; antes desta data, nem mesmo a referida seco especfica do STF dispe dos acrdos de forma completa. Assim, salvo se for feita pesquisa direta nos arquivos do STF e for a pesquisa limitada a decises posteriores a 1919, qualquer pesquisa feita hoje sobre decises do Supremo ser, como a aqui empreendida, necessariamente incompleta.7

    Em razo da limitao ftica imposta pela escassez de dados disponveis na internet, e no tendo sido empreendida pesquisa nos arquivos do STF (a qual, se fosse realizada, seria igualmente incompleta para o perodo anterior a 1919), a quase totalidade do tempo do presente estudo abrangeu os acrdos publicados em quatro dos principais repositrios de jurisprudncia do STF em meio fsico, justamente os que, alm de cobrirem o perodo pesquisado, apresentam, em conjunto, a melhor viso possvel da jurisprudncia da poca: dois repositrios oficiais, (1) a Revista do Supremo Tribunal Federal (Rev. STF) e

    6 Epitcio da Silva Pessoa foi nomeado ministro do STF em 25 de janeiro de 1902, mas em 7 de junho do mesmo ano foi exonerado e nomeado procurador-geral da Repblica, cargo que ocupou at 21 de outubro de 1905, quando retornou ao cargo de ministro, aposentando-se em 17 de agosto de 1912. Pedro Lessa integrou o STF de 1907 a 1921. A memria desses ministros foi estudada, respectivamente, por: NOLETO, Mauro Almeida. Memria jurisprudencial: ministro Epitcio Pessoa. Braslia: Supremo Tribunal Federal, 2009. (Srie Memria Jurisprudencial) e HORBACH, Carlos Bastide. Memria jurisprudencial: ministro Pedro Lessa. Braslia: Supremo Tribunal Federal, 2007. (Srie Memria Jurisprudencial)7 O espao para comentrios sobre essa lamentvel carncia de registros histricos outro; fica porm o registro de que Lda Boechat Rodrigues j advertira, h quase 50 anos, sobre a falta de estudos histricos sobre o STF (RODRIGUES, Lda Boechat. Histria do Supremo Tribunal Federal: Tomo I 1891-1898. Defesa das Liberdades Civis. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1965. p. 5). A autora referia igualmente (p. 14, nota 17, e p. 59-60) que s em 1897 apareceu o primeiro volume da Revista do STF, intitulada S.T.F. Jurisprudncia, consultada nesta pesquisa. Ocorre que um perodo curto de tempo, de 1891 a 1894, ficou a descoberto, por no ter-me sido possvel o acesso aos volumes, publicados em 1897, que continham decises de 1891 a 1894. Anote-se, contudo, que os quatro primeiros anos do STF foram plenos de lapsos temporais nas sesses da Corte, seja por intercorrncias polticas, seja por carncia de ministros.

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    (2) a revista Supremo Tribunal Federal Jurisprudncia, e dois dos chamados repositrios tradicionais, as revistas (3) O Direito e (4) Revista de Direito (Bento de Faria), os quais, entretanto, no so exaustivos, mas de jurisprudncia selecionada, no contendo todos os acrdos julgados pelo STF.8

    Como era de se esperar, contudo, a pesquisa nas bases de dados em meio fsico revelou no haver sistematicidade na catalogao dos acrdos; qualquer dos peridicos consultados no parece seguir um padro de organizao no ndice, quando existente. Alm disso, o critrio de publicao varia no tempo. Por exemplo, os volumes da revista Supremo Tribunal Federal Jurisprudncia parecem elencar todas as decises do sculo XIX, mas os acrdos no foram publicados na ntegra, nem se tem como saber quem o relator do caso, nem o teor ou o autor dos votos vencidos. J no sculo XX, nos volumes da Revista do Supremo Tribunal Federal, muitos acrdos vinham publicados somente com a ementa; outros, com os votos vencidos, mas no todos; nalguns era publicada a deciso eventualmente recorrida, ou o parecer do procurador-geral (que era, poca, escolhido pelo presidente da Repblica dentre os 15 membros do STF, conforme o 2o do art. 58 da CF 1891, e integrava o Tribunal); nos processos de habeas corpus, eram por vezes publicadas as informaes da autoridade coatora. Por sua vez, nos volumes da revista O Direito, peridico no exclusivo de decises do STF (trazia tambm doutrina e decises de outros tribunais e juzos de primeira instncia, bem como leis e atos administrativos), embora fossem ainda menos completas as decises, eram publicadas algumas vezes as razes finais de uma ou ambas as partes, o que facilitou a compreenso da controvrsia, amide impossibilitada em razo do fato de muitos acrdos no virem com qualquer relatrio. Assim, nalguns julgados a tenso entre interesse pblico e interesse privado s perceptvel da leitura dos argumentos das partes, refletidos s muito indiretamente no acrdo publicado. Por fim, a Revista de Direito (Bento de Faria), que trazia tambm julgados de tribunais estrangeiros, doutrina, nacional e estrangeira, e legislao, publicava poucas decises do STF, e algumas sem indicar o nmero do acrdo.

    Creio, porm, que essas dificuldades e carncias na catalogao das decises inerentes a qualquer pesquisa de dados antigos em pas que no

    8 Segundo o art. 99 do Regimento Interno do STF, so repositrios oficiais de jurisprudncia do STF os seguintes peridicos: Dirio de Justia, Jurisprudncia do STF, Revista do STF, Revista Trimestral de Jurisprudncia, Smula Vinculante, Smula da Jurisprudncia Dominante, STF Jurisprudncia (1892 1898). So chamados Repositrios Tradicionais, reconhecidos pela Resoluo no 330, de 27 de novembro de 2006, os seguintes peridicos: Arquivo Judicirio, Direito, O Direito, Revista de Crtica Judiciria, Revista de Direito (Bento de Faria), Revista de Jurisprudncia Brasileira, Revista Jurdica.

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    prima pelo registro de sua histria , embora possam influir no resultado final da busca, necessariamente mais lenta, trabalhosa e passvel de apresentar incompletudes, no comprometeram a concluso final da pesquisa, que pre-tende apresentar uma viso geral do entendimento do STF sobre o tema. Cabe ao leitor avaliar o xito da empreitada. Explicito a seguir a metodologia empre gada na leitura e seleo dos acrdos.

    3. O critrio da seleo dos acrdos: do que estamos falando e por qu

    3.1 O que se investiga e por qu

    A prpria seleo das decises envolve um juzo de valor sobre problema crucial na teoria do direito, o dos princpios jurdicos. Duas hipteses de raciocnio ajudam a compreender o carter fundamental do problema e devem ser de pronto descartadas, porque no podem ser adotadas neste trabalho. A primeira: se, como premissa, entendermos, por exemplo, que o prin cpio jurdico estudado pode estar implcito no ordenamento jurdico (de ento ou de hoje) e a para ser descoberto e revelado pelos operadores do direito, no necessitando vir expressado de forma direta na linguagem dos juristas tericos e prticos, permanecendo ausente das decises judiciais (ou estando nelas oculto, precisando de revelao), ento a adoo da premissa tornaria o presente estudo incuo, porque pouco importariam as decises judiciais, que poderiam ou no revelar o princpio. Nesse caso, a discusso possvel sobre seria, por hiptese, se a lei lato sensu considerada ou o ordena-mento jurdico ou o esprito do direito vigente ou a moral social ou a opinio dominante da doutrina consagraria o princpio.9

    A segunda hiptese esta: se, como premissa, entendermos que o princpio jurdico estudado est consagrado no sistema jurdico, ento j passamos pela hiptese da sua existncia e a discusso que poderia ser

    9 Na 2. ed. do seu Hermutica e aplicao do direito, de 1933, Carlos Maximiliano, ministro do STF de 1936 a 1941, referia, nas pginas dedicadas aos princpios jurdicos, que eles abrangeriam os princpios filosficos (p. 304), e que o direito brasileiro h muito recorria aos elementos com elementos do chamado Direito Natural (p. 305) para preencher as lacunas. O autor depois comenta brevemente os sistemas de vrios pases, dentre os quais a Sua, enaltecendo a possibilidade l prevista de preenchimento de lacunas com a opinio doutrinria consagrada (Bewhrte Lehre): Este preceito final completa a noo de princpios gerais do Direito (p. 309).

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    feita neste caso seria sobre o fundamento moral do princpio (se utilitarista ou comunitarista ou deontolgico ou outro) e, depois, sobre quais obrigaes decorreriam desse princpio. Nenhuma dessas premissas aqui adotada, e nenhuma das questes referidas ser aqui analisada.10 Ficam claros nos dois prximos pargrafos os objetivos imediato e mediato do estudo, bem como seus pressupostos tericos.

    O objetivo imediato deste trabalho investigar, por meio da anlise da linguagem, ainda que indireta, mas identificvel, expressamente utilizada nas decises do STF tomadas no perodo investigado, se possvel extrair alguma indicao sobre o que o STF compreende ou compreendeu ao longo de sua histria sobre o assunto, se que h ou houve essa compreenso. Essa opo metodolgica implica, no campo da teoria do direito, a assuno de algumas premissas de anlise, duas das quais devem ficam claras: (1) a importncia de investigar o que dizem as autoridades institucionalmente constitudas pelo sistema jurdico tarefa de produo e identificao das normas jurdicas, mormente o mais alto tribunal do pas; (2) o fato de que aqui no estou sugerindo qualquer melhor princpio jurdico, menos ainda moral, para a estruturao do sistema jurdico brasileiro ou qualquer outro , nem estou aqui procedendo a uma anlise crtica do que penso devesse ser ou ter sido o princpio a adotar pelo STF. Estou simplesmente comeando a descrever o que a mais alta Corte do pas vem dizendo sobre o assunto, se alguma coisa vem dizendo. Trata-se de trabalho, como se v, preponderantemente descritivo. No procederei aqui anlise histrica ou sociolgica ou jusfilosfica das decises encontradas, o que ser reservado a trabalho futuro.

    O objetivo mediato do trabalho servir de base emprica para anlise posterior acerca da consistncia e da coerncia terica empregadas no direito brasileiro, no STF em especial, ao longo da sua histria, acerca dos princpios jurdicos em geral, tema que, repito, necessita de mais rigor analtico, e do alegado princpio da supremacia do interesse pblico em particular.

    10 O tema, como dito no texto, ser abordado em estudo futuro. Mas preciso adiantar que foi essa at hoje a razo da discrdia entre os que se batem por uma ou outra corrente acerca da existncia de um princpio jurdico da supremacia do interesse pblico. Nenhuma das correntes, contudo, parece consciente disso, o que causa problemas de compreenso sobre o que est sendo debatido. Sobram ideologias disfaradas no debate e falta rigor analtico. A consequncia bvia: no h debate.

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    3.2 Critrios de pesquisa

    Com o norte referido no subitem anterior, e considerando que o trabalho de ler todas as decises constantes de centenas de volumes de repositrios de jurisprudncia, embora sendo at possvel, era hercleo e por isso no realizado , optei por buscar no ndice dos peridicos um espectro amplo de palavras-chave, quando havia ndice a auxiliar; em no existindo ndice, foram lidas todas as ementas e da os acrdos; ausentes as ementas, foram lidos todos os acrdos do volume. Assim, na leitura dos ndices, foram buscadas as decises nas quais havia qualquer meno s expresses supremacia do interesse pblico e interesse pblico, ou qualquer outra expresso ou noo vizinha, como interesse geral, interesse comum, interesse nacional, utilidade pblica, necessidade pblica etc.,11 as quais pudessem indicar a presena do princpio jurdico estudado.

    A fim de diminuir a possibilidade de deixar de fora da anlise decises rele vantes,12 tambm foram buscadas palavras e expresses que de alguma forma pudessem indicar a presena de algum tema de interesse pblico even-tualmente revelador da presena do princpio, como soberania, concesso, desapropriao, domnio pblico, sade pblica e afins.13 Este ltimo proceder, ao mesmo tempo que diminuiu a possibilidade de deixar sem anlise eventuais acrdos que pudessem veicular o princpio investigado, aumentou sobremodo o tempo e a dificuldade da pesquisa, uma vez que vrias decises traziam palavras e expresses vizinhas, mas ou nada diziam sobre o princpio estudado,14 ou tratavam do assunto de forma indireta, como expli citado abaixo.

    11 Na Frana, recente tese de doutoramento investigou a noo de interesse geral na juris-prudncia do Conselho Constitucional e fez uso das mesmas expresses, que o autor chamou de vizinhas. Cf. MERLAND, Guillaume. Lintrt gnral dans la jurisprudence du Conseil Constitutionnel. Paris: L.G.D.J., 2004. passim, especialmente p. 4.12 Por serem, contudo, os prprios critrios discutveis, indiquei em rodap a fonte na qual podem ser encontradas as decises excludas, para possibilitar a conferncia.13 A busca obedece a critrios fluidos e um tanto arbitrrios, mas intuitivos. Alm das palavras e expresses j referidas no corpo do texto, menciono aqui as palavras e expresses de busca utilizadas, para que o leitor possa fazer sua prpria avaliao sobre a utilidade e/ou pertinncia do critrio utilizado: anarquia, apreenso, estrangeiro, fora, fronteiras, greve, guerra, higiene, interdito proibitrio, liberdade, mar, perigo iminente, poder arbitrrio, polcia, portos, segurana, unio aduaneira, vacinas.14 Por exemplo, a Apelao Cvel no 1.973, j. 25-5-1912, rel. min. Manoel Murtinho, na qual se discutia a responsabilidade civil da Unio por dano causado a particulares em razo de demo-lio, por motivos de sade pblica, de estabelecimento privado (Rev. STF, v. 2, 1a Parte, p. 232-235, ago./dez. 1914).

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    Da que foram descartados sem reservas acrdos notoriamente irrele-vantes, seja porque a expresso interesse pblico (ou vizinha) foi utilizada, mas a argumentao veiculava trusmos como o de que o Estado ou a administrao pblica devem buscar o bem comum ou o interesse geral,15 seja porque a expresso (ou vizinha) aparecia somente para veicular interesse processual,16 seja porque somente a ementa trazia a expresso, mas o acrdo nada falava, direta ou indiretamente, sobre o tema, como em vrios Habeas Corpus17 ou pedidos de homologao de sentena estrangeira,18 seja porque tratava de deciso que avaliava medida tomada durante regime de exceo.19

    Da mesma forma, no h dvida de que institutos como a desapropriao, presente em quaisquer latitudes, de alguma forma sobrepem o interesse cole-tivo ao interesse privado; assim, se a presena desse instituto no ordena mento jurdico por si s indicasse a existncia de um princpio jurdico de supre-macia do interesse pblico sobre o privado, ento a discusso sobre o assunto

    15 P. ex., a Apelao Cvel no 2.007, j. 18-6-1921, rel. Viveiros de Castro (afirmando que as con-cesses sobre bens de domnio pblico, como sobre os portos, so sempre feitas a ttulo precrio, subordinadas ao interesse geral a ser perseguido pelo Estado Rev. STF, v. 31, p. 223-225, ago. 1921); Apelao Cvel no 2.677, j. 17-5-1922, rel. Viveiros de Castro (Rev. STF, v. 42, p. 91-94, jul. 1922).16 P. ex., o Conflito de Jurisdio no 579, j. 25-9-1922 (mencionando as expresses segurana pblica e sade pblica, sem qualquer relao com o tema de fundo; Rev. STF, v. 49, p. 35-37, fev. 1923).17 Vrios habeas corpus nos quais constam as expresses interesse pblico, ordem pblica ou segurana pblica foram descartados. Assim, por exemplo, no HC no 15.406, publicado em abril de 1925, no qual simplesmente se deu aplicao ao art. 11 do Decreto no 15.934, de 1923, que permite a prorrogao do servio militar, em nome do interesse pblico, por no mximo 13 meses (Rev. STF, v. 85, p. 248, abr. 1925); HC no 16.025, publicado em agosto de 1925, no qual a expresso segurana pblica invocada na ementa da seguinte forma: legal a priso determinada em virtude do estado de stio por motivo de segurana pblica (grifo nosso) (Rev. STF, v. 92, p. 101, ago. 1925). O mesmo se deu no HC no 14.017, j. 29-11-1924 (expresso-chave ordem pblica, Rev. STF, v. 85, p. 27, abr. 1925), no HC no 15.406 (expresso-chave interesse pblico, Rev. STF, v. 85, p. 248, abr. 1925), e no HC 14.676 (expresso-chave segurana-pblica, Rev. STF, v. 85, p. 471, abr. 1925).18 P. ex., a Sentena Estrangeira no 792, j. 13-9-1922, na qual, mesmo no sendo aceito o divrcio no Brasil poca, foi por maioria homologada sentena portuguesa que declarava o divrcio de dois portugueses residentes em Portugal; o argumento utilizado foi o de que sentena estrangeira proferida por juiz competente no poderia ser reputada contrria ordem pblica em razo de previso legal (art. II P. V Dec. 3.084 de 1898) segundo a qual os efeitos imediatos de sentena estrangeira seriam determinados pela lei do pas onde foi proferida a deciso (Rev. STF, v. 63, p. 138-139, abr. 1924).19 P. ex., o Agravo de Petio no 2.549, j. 22-1-1919, rel. min. Leoni Ramos (dando poder ao Estado de desapropriar quaisquer bens e requisitar quaisquer gneros de primeira necessidade, mediante indenizao, em tempo de guerra Rev. STF, v. 19, p. 298-299, abr. 1919); Habeas Corpus no 4.440, j. 8-1-1913, rel. Pedro Mibielli (Rev. STF, v. 14, Fascculo 1, p. 465-477, jan. 1918); Habeas Corpus no 4.621, j. 31-8-1918, rel. Coelho e Campos (afirmando que a defesa nacional permite que, em estado de guerra, se restrinjam direitos individuais Rev. STF, v. 19, p. 533-534, jun. 1919).

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    parece estril. Registre-se, porm, que em 27 de maio de 1925, no Agravo de Instrumento no 3.995, o STF usou justamente a linguagem da supremacia do interesse pblico sobre o privado ao negar provimento ao recurso de particulares que haviam, sem sucesso, oposto interdito proibitrio contra o municpio de Curitiba, o qual havia expedido decreto de desapropriao, por utilidade pblica, de rea de propriedade dos recorrentes. O STF referiu expressamente que o poder pblico, na desapropriao, exerce simplesmente uma faculdade que a Constituio lhe outorga, por interesse pblico, que deve sempre primar sobre o particular.20 digno de nota, contudo, que o uso dessa linguagem expressa, como ficar claro no item 4 abaixo, no era comum nas decises do Supremo no perodo pesquisado. De toda forma, foram em princpio excludas decises que simplesmente ratificavam o poder de imprio do Estado de desapropriar ou discutiam o limite da indenizao cabvel.21

    Foram tambm excludas as decises que afirmavam ou discutiam o poder de organizar a prestao de servios pblicos, como decises que afirmavam o poder do Estado de decidir, por sua convenincia, sobre as formas possveis de execuo de obra pblica,22 ou de, em obedincia s exigncias do servio pblico, criar ou desmembrar novos ofcios de justia sem que fosse preciso indenizar o anterior serventurio por eventual diminuio de emolumentos que anteriormente auferira.23 O mesmo se deu com decises que discutiam direitos especficos de funcionrios pblicos, quando os acrdos se limitavam a exegeses de textos legais da poca, sem meno direta a qualquer princpio, embora a expresso interesse pblico (ou vizinha) por vezes viesse expressa.24 Da mesma forma, decises que discutiam a extenso e a parcela do poder de polcia dos estados-membros da federao brasileira foram descartadas,25

    20 Revista de Direito (Bento de Faria), v. 84, p. 70-72, abr. 1927. A citao da p. 71.21 Para um exemplo do sculo XIX, ver Recurso Extraordinrio no 56, j. 23-5-1896 (S.T.F. Jurisprudncia [acrdos proferidos em 1896] , p. 118-119, 1897); para exemplos das duas primeiras dcadas do sc. XX, ver Apelaes Cveis nos 1.446, 1.306 e 1.322, j. em 24-10-1908, 19-9-1908 e 18-11-1908 (O Direito, v. 107, p. 437-454, set./dez. 1908); Apelao Cvel no 2.082, j. 15-7-1914, rel. min. Canuto Saraiva, maioria (Rev. STF, v. 2, 1a Parte, p. 284-285, ago./dez. 1914); Apelao Cvel no 1.956, j. 6-6-1914, rel. min. Andr Cavalcanti, maioria (Rev. STF, v. 2, 1a Parte, p. 312-317, ago./dez. 1914).22 Apelao Cvel no 3.253, j. 14-5-1921, rel. Hermenegildo de Barros (Rev. STF, v. 35, p. 143-145, dez. 1921).23 Apelao Cvel no 3.683, j. 30-8-1922, rel. min. Viveiros de Castro (Rev. STF, v. 47, p. 125-126, dez. 1922).24 Apelaes Cveis no 1.066, j. 30-9-1905, e no 1.294, j. 8-7-1907 (discutindo se funcionrios de fazenda concursados e empregados das Alfndegas da Repblica poderiam ser demitidos ad nutum O Direito, v. 104, p. 184-204 e p. 368-373, set./dez. 1907, respectivamente).25 Apelao Cvel no 2.949, j. 29-12-1917, rel. ad hoc min. Pires e Albuquerque (Rev. STF, v. 16, fascculo 1, p. 513-527, jun. 1918).

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    bem como algumas no todas decises que meramente confirmavam o poder de polcia do Estado, em nome da coletividade, de manter, via ao forada, a higiene pblica, para isso danificando propriedade privada, com consequente dever de indenizao do prejuzo,26 ou decises que afirmavam a irresponsabilidade do Estado por seus atos de imprio, porque seriam um atributo da soberania, como o cerco, por foras federais, a estabelecimento em relao ao qual havia denncia feita por pas estrangeiro, depois improvada, de que o local servia como depsito ilegal de armas.27

    A hiptese referente ao poder de polcia permite um esclarecimento importante sobre o critrio de seleo das decises escolhidas. A pesquisa no quer primeiramente saber qual a interpretao dada pelo STF ao conceito indeterminado de interesse pblico (ou vizinhos), menos ainda qual o uso, mesmo ideolgico, emprestado pelo Tribunal ao conceito. Fosse assim, seria til e importante, por exemplo, analisar a deciso tomada, por unanimidade, em 12 de julho de 1916 no Habeas Corpus no 4.205, relator o ministro Coelho e Campos, que afirmou o poder de polcia do Estado de exercer a censura teatral fundando-se em consideraes do mais elevado interesse pblico,28 ou o Habeas Corpus no 8.960, decidido por maioria em 7 de maio de 1923, relator o ministro Alfredo Pinto,29 no qual o STF interpretou o conceito de ordem pblica, afirmando ser ele um conceito genrico, [que] abrange a ao policial de conformidade com as Leis e alcana as medidas reclamadas em geral pela incolumidade pblica, sendo esse um dos argumentos utili-zados para admitir que a polcia no permitisse o funcionamento de casas de diverso e espetculos pblicos.

    Por fim, anote-se que, sendo uma pesquisa referente ao direito pblico, no foram pesquisadas decises que eventualmente indicassem a presena do princpio em relao de direito privado.

    26 Apelao Cvel no 2.510, maioria, j. 12-1-1921, rel. min. Pedro dos Santos (afirmando o dever do poder pblico de indenizar o dano causado, com ou sem razo, causado ao particular em nome do interesse da coletividade Rev. STF, v. 30, p. 218-220, jul. 1921).27 Do cerco, ato que causou leso ao particular, no decorreria, para o STF, responsabilidade do Estado. Apelao Cvel julgada em 2-10-1912 (Revista de Direito (Bento de Faria), v. 28, p. 456-458, 1913).28 Rev. STF, v. 13, fascculo 1, p. 32-35, out. 1917.29 Rev. STF, v. 70, p. 7-9, set. 1924.

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    4. apresentao e anlise dos acrdos

    Dividirei a apresentao dos acrdos encontrados por temticas, agru-pando assim os temas: (1) servidores pblicos; (2) contratos adminis trativos; (3) outros. Dentro de cada grupo, apresento os acrdos de forma cronolgica, do mais antigo ao mais moderno, salvo quando, por convenincia da expli-cao, for aconselhvel quebrar essa regra.

    4.1 Servidores pblicos

    O tema em estudo aparecia com certa frequncia, explcita ou implici-tamente, nos casos envolvendo a relao entre o Estado e seus servidores, ento qualificados como empregados pblicos ou funcionrios. A distino entre ambos era pouco clara na legislao da poca, mas o esquema sugerido pelo conselheiro Antnio Joaquim Ribas, ainda ao tempo do Imprio, era por vezes invocado: os funcionrios exerceriam uma frao do poder social, envolvendo as ideias de autoridade e mando em relao aos interesses do Estado, enquanto os empregados exerceriam servios de carter comum da vida privada, e que em geral podem-se considerar como ramos de indstria.30

    Na Apelao Cvel no 240, julgada por maioria em 21 de outubro de 1899,31 o STF decidiu que o Estado poderia, por lei, como fizera na ocasio, colocar em disponibilidade professor vitalcio de extinta cadeira de biologia da Escola Militar, diminuindo-lhe vencimentos e gratificaes ou at extinguir estas.32 O argumento do STF baseou-se no texto do art. 34, no 25, da Constituio Federal de 1891, que dava ao Congresso Nacional o poder de privativamente criar e suprimir empregos pblicos federais, fixando atribuies e estipulando vencimentos.33 Para o STF, se o Congresso podia criar e suprimir empregos, poderia tambm reduzir os vencimentos dos professores vitalcios; a linguagem utilizada digna de registro esta: sendo os empregos pblicos estabelecidos

    30 RIBAS, Antnio Joaquim. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: F. L. Pinto & C. Livreiros, 1866, p. 102-103. de Ribas a referncia pouca clareza da legislao.31 Rev. STF [acrdos proferidos em 1899] , p. 277-278, 1901. (grifos nossos no texto)32 A supresso da gratificao de funcionrios vitalcios era, parece, matria corriqueira e pacfica no STF desde muito cedo. Ver, por exemplo, Recurso Extraordinrio no 333, j. 30-7-1904, O Direito, v. 95, p. 95-98, set./dez. 1904.33 Art. 34, no 25: Compete privativamente ao Congresso Nacional: [...] 25o) criar e suprimir empregos pblicos federais, fixar-lhes as atribuies, estipular-lhes os vencimentos.

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    para o bem da sociedade, e no para o bem dos empregados, disse o STF, nada obstava que inclusive os cargos fossem extintos, desde que se torn[assem] inteis ou no mais [pudesse] custe-los o Estado. A vitaliciedade no em-prego, completou o STF, s poderia ser entendida como asseguradora do exerccio do mesmo emprego, enquanto este existir. Raciocnio semelhante empre endeu o STF no Recurso Extraordinrio no 737, julgado por maioria em 14 de junho de 1911,34 quando, julgando recurso de professor pblico vitalcio e inamovvel, reafirmou que a irredutibilidade de vencimentos no condio inerente da vitaliciedade.

    E, at o final da Repblica velha, o STF, em casos envolvendo servidores pblicos, parece ter-se valido algumas vezes de linguagem semelhante referida no acrdo de 1899. Isso ocorreu, por exemplo, na Apelao Cvel no 2.889, julgada por maioria em 4 de novembro de 1927, relator o ministro Pedro dos Santos.35 O caso tratava do pedido de um procurador fiscal do Tesouro Nacional no estado do Amazonas para que a Unio Federal lhe pagasse venci mentos atrasados e dano moral por ter sido demitido. Segundo o STF, a nomeao para um cargo pblico de fato importa[va] em um contrato de natureza especial, mas que poderia sim ser desfeito por deliberao da auto ridade nomeante, se a vitaliciedade no figura[sse] entre as suas clusulas, como no caso discutido. Aqui a linguagem reveladora: Nos pases democraticamente organizados a demissibilidade a regra. A vitaliciedade e estabilidade constituem as excees, que s podem prevalecer quando o interesse pblico o exigir e o poder competente conceder.

    O que exatamente o interesse pblico ou sua prevalncia significava ou deter minava no era, porm, muito claro nalguns pontos. Por exemplo, na Apelao Cvel no 4.867, julgada em 18 de agosto de 1926,36 o Supremo decidiu que a vitaliciedade conferida por lei no poderia ser depois suprimida por outra lei. Mas, em 29 de outubro de 1924, o mesmo Tribunal decidira, em embargos em Apelao Cvel, que a lei poderia reduzir gratificao conferida pelo exerccio de determinado cargo.37 Dir-se- que vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos no so nem eram o mesmo instituto jurdico, o que correto. importante recordar, porm, que, do ponto de vista do direito positivo, nem a vitaliciedade nem a irredutibilidade de vencimentos de servidores pblicos

    34 O Direito, v. 118, 578-580, maio/ago. 1912.35 Revista de Direito (Bento de Faria), v. 88, p. 340-341, maio 1928. (grifos nossos)36 Revista de Direito (Bento de Faria), v. 86, p. 531-533, dez. 1927. Raciocnio a contrario sensu.37 Revista de Direito (Bento de Faria), v. 77, p. 340-341, ago. 1925 (nmero do acrdo no publicado).

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    eram matria constitucional (salvo para os magistrados, como se ver abaixo), mas deixada ao legislador ordinrio.38 S ao vitaliciamento conferido por lei, contudo, o Supremo reconhecia status de direito adquirido, no podendo ser depois suprimido por outra lei.

    Vale referir que os magistrados tinham, pela letra da Constituio de 1891, tratamento diferenciado. O caput do art. 57 e seu 1o consagravam, res-pectivamente, a vitaliciedade e a irredutibilidade de vencimentos dos juzes federais.39 Essa diferena de tratamento encontrava eco no STF, que parecia estender sem parcimnia o significado das bastante sucintas palavras do texto constitucional.40 Interpretao extensiva em grau mximo ao texto constitucional era feita, por exemplo, quando o STF afirmava que a irredu-tibilidade de vencimentos dos magistrados federais impedia qualquer tribu-tao sobre os vencimentos dos juzes federais e estaduais. O nmero de acrdos encontrados na pesquisa sobre o assunto ultrapassa duas dezenas;41 um histrico bastante completo da fundamentao e dos inmeros julgados em favor da tese da impossibilidade de tributao dos vencimentos dos juzes encontra-se na Apelao Cvel julgada pelo STF em 4 de janeiro de 1929, cuja publicao ocupa dezenas de pginas do fascculo II do volume 96 da Revista de Direito (Bento de Faria), de 1930.42 Em uma frase constante de obra doutrinria publicada em 1915 por Pedro Lessa, ministro do STF de 1907 a 1921 e professor titular de filosofia do direito da Faculdade de Direito de So Paulo de 1892 a 1921, encontramos o cerne do argumento utilizado pelo STF: estaria subentendido que a irredutibilidade dos vencimentos dos juzes obsta a criao de quaisquer impostos sobre esses vencimentos.43 Foi preciso

    38 Ver, por exemplo, Recurso Extraordinrio no 259, julgado por maioria em 26-10-1901, no qual o STF julgou ser possvel lei ordinria, federal ou estadual, conferir vitaliciedade a qualquer cargo pblico federal ou estadual. O caso tratava do cargo de diretor-geral da Instruo Pblica do Distrito Federal. (O Direito, v. 87, p. 635-644, jan./abr. 1902).39 Art. 57. Os Juzes federais so vitalcios e perdero o cargo unicamente por sentena judicial. 1o. Os seus vencimentos sero determinados por lei e no podero ser diminudos.40 Por exemplo, para conferir argumentao amide utilizada pelo STF, ver Apelao Cvel no 1.197, j. 10-11-1906 (O Direito, v. 102, p. 38-43, jan./abr. 1907. Dessa deciso do Supremo houve embargos, julgados improcedentes em 13 de abril de 1907; embargos publicados em O Direito, v. 103, p. 180-181, maio/set. 1907).41 Ver, por exemplo, Apelao Cvel no 804, j. 15-10-1902 (O Direito, v. 90, p. 271-274, jan./abr. 1903); Apelao Cvel no 1.034, j. 19-4-1905 (O Direito, v. 100, p. 343-349, maio/ago. 1906); Apelao Cvel j. 27-9-1911 e publicada em O Direito, v. 118, p. 430-431, maio/ago. 1912; Apelao Cvel no 3.510, j. 25-8-1926 (Revista de Direito (Bento de Faria), v. 81, p. 545-546, set. 1926).42 Revista de Direito (Bento de Faria), v. 96, p. 303-361, maio 1930. Dentre essas pginas constam tambm a petio inicial e a sentena apelada. No h publicao do nmero da Apelao. Segundo a inicial da ao, a primeira deciso do STF neste sentido foi tomada em 18-12-1897.43 LESSA, Pedro. Do Poder Judicirio. Rio de Janeiro: Liv. Francisco Alves, 1915. p. 31.

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    que a Emenda Constitucional no 3, de 26 de setembro de 1926, expressamente acrescentasse um pargrafo ao art. 72 da Constituio vigente. Eis o texto da EC no 3/1926, mantida a grafia original: 32. As disposies constitucionaes assecuratorias da irreductilidade de vencimentos civis ou militares no eximem da obrigao de pagar os impostos geraes creados em lei. Ainda assim, em ao menos uma oportunidade no perodo estudado, o STF manteve o entendimento anterior,44 baseando-se em doutrina dos prprios integrantes da Corte.45

    A Apelao Cvel no 1.297, com voto vencedor, em 9 de novembro de 1907, do ministro Epitcio Pessoa, vencidos os ministros Manuel Murtinho e Andr Cavalcanti em 4 de julho de 1908,46 discutia a possibilidade de uma Lei de 1905 alterar os critrios de promoo de um oficial militar, retardando-a. A tenso entre o interesse pblico representado pela necessidade de alterao do regime jurdico do servidor pblico versus o interesse privado do militar em manter o critrio de promoo existente anteriormente foi resolvida em favor do primeiro. Embora o tema de fundo em questo tenha sido o direito adquirido manuteno do regime jurdico, negado pela maioria dos mi-nistros,47 o argumento do ministro Epitcio Pessoa, alm de abordar o insti tuto do direito adquirido fazendo longas citaes doutrinrias de autores estran-geiros (Teodoriadas e Gabba), tambm esboou diferenciao entre contratos privados e contratos pblicos, pelo que a anlise do caso poderia ser dei xada para o item seguinte. Seja como for, a estratgia argumentativa, sutil, foi sus-tentar que, ao contrrio do que pretendia o militar, que intentava ver sua re-lao com o governo como contratual privada, em verdade se estava diante de outra espcie de contrato, o de direito pblico.

    44 Ver Agravo de Petio no 4.768, j. 17-4-1929, publicado na Revista de Direito (Bento de Faria), v. 94, p. 193-195, out./nov. 1929.45 Ver o longo artigo de doutrina do ministro Pedro dos Santos publicado em duas partes na Revista de Direito (Bento de Faria), v. 93: 1a parte, p. 18-40, jul./ago. 1929; 2a parte, p. 397-19, set. 1929. bastante provvel que razes de Poder e o interesse institucional do Poder Judicirio em fazer-se forte e independente no incio da Repblica conduzissem a interpretao dos ministros do STF sobre o tema, que perpassou toda a Repblica Velha com a mesma interpretao. A menos que se entenda o supremacia do interesse pblico como significando juzes esto isentos do pagamento de impostos, o que a CF no disse e poderia ter dito , a interpretao dada pelo STF poca sobrepe o interesse privado ao pblico. Dir-se- que a questo envolvia conflito entre poderes, o que parece correto. A discusso passaria, ento, para o mbito poltico, e no o da interpretao da CF 1891.46 Ver o voto vencedor em Noleto, Memria jurisprudencial, op. cit., p. 244-248, bem como os comentrios de Noleto nas p. 86-89.47 Ver ibid. Noleto observa corretamente que do voto de Epitcio Pessoa j se pode perceber com muita clareza a longevidade de certos tpicos da jurisprudncia do Supremo Tribunal, como a afir mao, hoje pacfica, de que no h direito adquirido manuteno de regime jurdico (p. 86).

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    (...) O que este pretende que, uma vez nomeado o alferes, as condies de acesso ento existentes no possam mais ser alteradas at que ele chegue a marechal, , em suma, paralisar a ao do Estado no tocante fora ar mada, isto , no que diz respeito segurana interna e externa da Repblica. (...) Amanh o interesse pblico exige que se modifique essa lei: j esta lei no atingir aos oficiais protegidos pelas duas leis anteriores, e assim por diante. Ao cabo de algum tempo, teremos vrias fornadas de di reitos adquiridos, e o poder pblico se ver a braos com um cipoal to emaranhado de direitos tais, que paralisar completamente a sua ao. Imagine-se agora que isso se estende a todas as reparties p blicas, e digam-me se possvel assim a existncia do Estado. (grifo nosso)Eis a o que o tal contrato de direito pblico.48 (grifo no original)

    Em suma, em linguagem de hoje, o principal argumento do militar pugnava pela aplicao da teoria dos contratos privados relao jurdica entre ele, servidor das Foras Armadas, e a Unio Federal. O ministro Epitcio Pessoa tratou a relao jurdica entre o militar e a Unio como estatutria, na qual, diriam os defensores do princpio, haveria uma supremacia do interesse pblico que justificaria a alterao da relao contratual.

    Em 12 de maio de 1915, o STF julgou a Apelao Cvel no 2.091,49 decidindo, por maioria, que os empregados pblicos que no houvessem sido declarados vitalcios por expressa disposio legal, ou cuja demisso no dependesse de formalidades tambm previstas expressamente em lei, poderiam ser livremente demitidos pela administrao pblica. Os fatos eram estes: em outubro de 1910, o ministro da Fazenda, com base no art. 33 do Decreto no 4.059, de 25 de junho de 1901, exonerou um cidado do cargo de coletor de Rendas Federais; descontente, o cidado ingressou em juzo buscando anular, por ilegalidade, o ato do ministro, alegando direito a permanecer no cargo enquanto no provada sua falta de exao no cumprimento de seus deveres ou ento sua incapacidade moral para permanecer no cargo, tendo obtido xito em primeira instncia. O STF, em grau de recurso, reverteu a deciso, utili zando argumentos em forma de consideranda; os aqui importantes so trs, analisados no pargrafo logo abaixo: (1) o direito administrativo brasileiro da poca teria sempre reconhecido ser lcito administrao

    48 Ibid., p. 247.49 Rev. STF, p. 211-215, jul./set. 1916.

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    demitir livremente os funcionrios pblicos que no fo[ss]em declarados vitalcios por expressa legislao da lei, ou cuja demisso no depende[sse] de formalidades tambm expressamente consagradas em preceitos legais; (2) na falta de lei, argumentou o STF, no tinha o funcionrio direito a permanecer no cargo; ao contrrio, uma vez que o art. 33 do Decreto no 4.059 no teria determinado que a verificao dos casos de demisso dependeria de qualquer processo, ento os casos de demisso, e a permanncia ou no do coletor no cargo, estavam subordinados ao critrio da administrao (...), de acordo com as convenincias do servio pblico. Mais que isso, o STF entendeu que a administrao no precisava motivar a demisso ou o ato, sendo muitas vezes conveniente ao prprio demitido que no se publiquem os motivos da demisso; (3) nenhuma lei havia sido editada conferindo direitos e deveres aos empregados pblicos, no sendo lcito ao Judicirio suprir a lacuna; por isso, deveria valer o ato administrativo.

    O art. 33 do Decreto no 4.059/1901, texto normativo (no transcrito no acrdo) com base no qual o ato atacado foi praticado, proibia a demisso de coletores federais, salvo por falta de exao no cumprimento de seus deveres, ou em consequncia de atos que moralmente os incompatibilizem para continuar no exerccio de seus cargos.50 O STF entendeu, em suma, que, na falta de lei especfica conferindo direitos e deveres aos servidores pblicos, a administrao pblica, a seu critrio e a bem do servio pblico, poderia demitir o funcionrio sem qualquer processo e inclusive sem motivar o ato. No sistema jurdico de hoje, e fosse estvel o servidor pblico, esses argumentos seriam dbeis e contrrios ao direito posto; ningum discutiria que o ato seria nulo por falta de motivao nem que estaria ferido o devido processo legal. Na poca do acrdo, contudo, diante da falta de lei prevendo direitos e deveres do servidor, pareceu ao STF que o sistema jurdico abrigava o ato da administrao pblica. importante ressaltar, contudo, que jamais o STF referiu expressamente o interesse pblico, ou sua supremacia sobre o interesse privado, para decidir o caso. Mas claro que se preferiu o interesse da administrao ao interesse do cidado privado o que no implica dizer que se preferiu o interesse pblico ao interesse privado, a menos que se equipare (como o STF fez no caso abaixo) o interesse pblico com o interesse da administrao.

    50 Art. 33: Os coletores federais e os escrives no podero ser demitidos depois de afianados seno por falta de exao no cumprimento de seus deveres, ou em consequncia de atos que moralmente os incompatibilizem para continuar no exerccio de seus cargos.

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    269JoS gUILHErmE gIaComUZZI | a supremacia do interesse pblico na jurisprudncia do Supremo tribunal...

    O ltimo caso encontrado digno de registro neste item a Apelao Cvel no 5.250, julgada por maioria em 23 de setembro de 1927, a qual revela, mentalidade do jurista de hoje, norma inslita: consideraes de interesse pblico poderiam fazer com que a administrao pudesse nomear candidato aprovado em concurso pblico independentemente da classificao.51 No caso, um mecnico naval de 1a classe se havia submetido a concurso pblico para oito vagas de subcomissrio da Armada, sendo aprovado em 37o lugar dos 43 habilitados. O Decreto que regulava a matria previa que o ministro da Marinha poderia escolher qualquer dos candidatos habilitados, indepen den-temente da ordem em que estive[ss]em classificados, bem como previa que os militares teriam preferncia para as nomeaes. Tendo sido nomeados dois militares aos postos, e sendo o recorrente um militar, pleiteou ele sua nomeao com base na preferncia determinada pela lei. O argumento do STF foi composto de raciocnio de trs estgios: (1) o concurso pblico no pode ser invocado como equivalente a um negcio jurdico; (2) ao Executivo foi dado escolher dentre os classificados, sem precisar respeitar a ordem de classificao; (3) a preferncia dos militares s poderia ser aplicada se eles obti vessem melhor ou igual classificao em relao aos civis; nesse caso ficaria anulada a faculdade da administrao de escolher o candidato que, aos olhos dela, administrao, melhor conviesse ao interesse pblico por ela, admi nistrao, representado.

    importante ressaltar que um decreto portanto, o direito posto dava ao Estado o poder de escolher quem lhe parecesse mais apto ao exerccio do cargo. O interesse pblico fora deixado, ento, ao juzo da administrao.

    4.2 Contratos administrativos

    Com a virada do sculo XIX ao XX, o tema dos contratos privados versus contratos pblicos, matria central ao tema aqui pesquisado,52 comea a se tornar cada vez mais frequente no STF. Das vrias decises encontradas, v-se que a linguagem utilizada pelo STF revela que o assunto da existncia de uma dicotomia entre duas categorias distintas de contratos ainda era incipiente

    51 Revista de Direito (Bento de Faria), v. 94, p. 149-154, out./nov. 1929. Este acrdo foi embargado e a deciso foi mantida em 12 de abril de 1929.52 Para estudo aprofundado do assunto, em perspectiva histrica e comparada, ver Giacomuzzi, Estado e contrato, op. cit.

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    na histria das ideias do direito administrativo. fcil descobrir a razo da titubeante e equvoca jurisprudncia: a doutrina na principal matriz de ideias do direito administrativo brasileiro do sculo XX, a Frana, ainda no tinha forma definida sobre o tema no perodo da Repblica Velha.

    Pelo menos cinco acrdos do sculo XIX parecem ainda equiparar contratos privados e pblicos. O primeiro caso digno de nota encontra-se no Recurso Extraordinrio no 6, julgado por maioria em 3 de agosto de 1895.53 Tratava-se de um contrato de concesso de explorao de via frrea celebrado entre o governo de Pernambuco e uma empresa privada, em 1875, no qual, por clusula contratual, se dava empresa, por 48 anos, privilgio exclusivo de explorao do transporte de passageiros; durante o perodo do contrato, a ningum poderia ser permitido, sob qualquer pretexto, sem prvio acordo com a contratada, transportar passageiros sobre trilhos ou carris de ferro ou de madeira, quer na cidade, quer nos subrbios. Em 1889, contudo, o Estado celebrou outro contrato com empresa diversa, permitindo a esta abrir uma estao de trem dentro da zona privilegiada. O STF foi claro ao referir que a concesso feita por um Estado a um particular e por este aceita um contrato, e no pode ser tirada por efeito de nova lei; que o contrato, constituindo um direito adquirido, no pode deixar de existir em consequncia de outro contrato celebrado entre outras partes.54 O direito de propriedade da empresa lesada deveria ser protegido, mantendo-se em toda a sua plenitude, salvo desapropriao por necessidade ou utilidade pblica, mediante indenizao prvia.55

    Raciocnio semelhante encontramos na Apelao Cvel no 269, julgada por maioria em 21 de julho de 1897.56 O caso era o seguinte: em 1890, o Governo Provisrio da Repblica concedeu a duas pessoas, ou empresa que essas organizassem, a construo, uso e gozo de uma estrada de ferro que percorreria localidades nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em 1891, os concessionrios, com a concordncia do governo, transferiram a concesso a uma empresa privada, qual outra sucedeu e passou a querer explorar a concesso. O governo, contudo, declarou, em 1893, a concesso via decreto. A empresa prejudicada, ento, buscou, via judicial, perdas e danos, entendendo-se sub-rogada no direito de explorar a concesso. O STF, nas

    53 S.T.F. Jurisprudncia [acrdos proferidos em 1895] , p. 123-125, 1897.54 Ibid., p. 124.55 Ibid., p. 125.56 S.T.F. Jurisprudncia [acrdos proferidos em 1897], p. 228-234, 1898.

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    271JoS gUILHErmE gIaComUZZI | a supremacia do interesse pblico na jurisprudncia do Supremo tribunal...

    razes de decidir, referiu que o Estado, em suas relaes contratuais com os particulares, age como simples parte contratante, em p de igualdade com a outra parte,57 sendo inteiramente contrrio a direito o decreto que declarou a caducidade da concesso [de estradas de ferro]; para o STF, com relao a essas obras, bem como outras

    de interesse geral que no podem ser empreendidas sem autorizao do Estado, o compromisso deste relativamente a tal autorizao constitui uma obrigao faciendi, negativa, consistente em no impedir a exe cuo da empresa e da mesma natureza so, no caso vertente, outras obrigaes assumidas pelo Estado, quais a do privilgio de zona e da iseno dos direitos de importao para o material destinado construo das linhas frreas.58

    Outros trs casos so os seguintes: na Apelao Cvel no 360, julgada por maioria em 11 de junho de 1898,59 foi afirmado expressamente que o Estado quando por qualquer de seus rgos contrata com um particular a este equiparado quanto aos direitos e obrigaes da decorrentes e sujeitos sano civil imposta infraco ou inexecuo dos contratos.60 O mesmo ocorreu na Apelao Cvel no 316, julgada por maioria em 25 de junho de 1898, na qual se entendeu que o Estado no poderia rescindir unilateralmente contrato de concesso, violando assim os direitos inerentes individualidade humana, ou individualidade social.61 Por fim, a Apelao Cvel no 308, julgada por maioria em 19 de dezembro de 1898, entendeu que o estado de Minas Gerais no poderia ter rescindido unilateralmente, sem fundamento legal, contratos de obras e servios pactuados com particulares, sob o fundamento de que, nos contratos bilaterais, a condio resolutria, pela lei civil, no pode[ria] ser imposta de prprio arbtrio contra uma das partes (...).62 interessante anotar que, desde o Decreto no 10.410, de 26 de outubro de 1889, o Estado deixaria positivada no art. 37 regra expressa no que toca aos contratos para fornecimento de bens Marinha: O Governo poder rescindir os contractos,

    57 Ibid., p. 230.58 Ibid., p. 231 para esta e a ltima citao.59 S.T.F. Jurisprudncia [acrdos proferidos em 1898], p. 200-205, 1899.60 Ibid., p. 203.61 S.T.F. Jurisprudncia [acrdos proferidos em 1898], p. 209-213, 1899; citao da p. 210.62 Ibid., p. 301-304; citao da p. 301.

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    sem direito a reclamao alguma por parte dos contractantes em caso de faltas commettidas por estes (sic). Essa mesma regra passaria a constar do art. 36 do Decreto no 3.258, de 11 de abril de 1899, que revogaria o anterior.

    J no sculo XX, o primeiro acrdo a referir a Apelao Cvel no 712, julgada por maioria em 17 de maio de 1902.63 Ali se decidiu, com base no Decreto no 2.922, de 1862, que a abertura de concorrncia pblica no obrigava o Estado a aceitar a proposta que porventura parecesse mais conveniente, podendo o Estado aceitar outra ou mesmo desprezar todas. A argumentao do STF bastante curiosa aos olhos do jurista de hoje. O STF deixou claro, em dicta, que a administrao, quando contrata, no funciona como poder pblico, no exerce ato de imprio, nem exige obedincia, obra como pessoa jurdica, pe-se em contato com a atividade livre dos particulares. Essa ativi-dade equiparada ao particular, contudo, ocorria, segundo o STF, depois de assinado o contrato de concesso. At a assinatura do contrato, a concorrncia somente daria ao particular que oferta a melhor proposta uma expectativa de direito; e o Estado, querendo, poderia inclusive, com base no art. 20 do Decreto no 2.922, de 1862, por qualquer motivo no achar conveniente [nem] aceitar nenhuma delas, [...] ordenar a execuo da obra por administrao.64

    A observao necessria aqui semelhante quela feita quando do comentrio ao ltimo acrdo do item anterior: o direito posto conferia admi nistrao poder de escolha. Ao que parece, era justamente esta, a existncia ou no de previso normativa expressa, que costumava guiar o raciocnio do STF e ser decisiva no deslinde do feito. isso que indicam os trs prximos casos, que so igualmente paradigmticos no que toca diferena de tratamento devido e crucial importncia da classificao jurdica entre contratos privados e contratos pblicos.

    O primeiro acrdo a mencionar a Apelao Cvel no 1.099, julgada por maioria em 25 de maio de 1907.65 Neste caso, dos argumentos das partes, e no do acrdo em si, muito sucinto, que se pode notar com mais clareza a tenso entre interesse pblico e interesse privado. Eis os fatos: em maro de

    63 O Direito, v. 89, p. 538-542, set./dez. 1902.64 O texto do art. 20 este, mantida a grafia original: Ainda no caso de apparecerem concurrentes arrematao de uma obra, se suas propostas se basearem sobre preos superiores ao do oramento da mesma obra, ou se, sendo iguaes, ou ainda inferiores, todavia o Governo por outro qualquer motivo no achar conveniente aceitar nenhuma dellas, poder ordenar a execuo da obra por administrao.65 O Direito, v. 103, p. 313-351, maio/set. 1907. A questo classificatria recebeu recente estudo exaustivo na Frana. Ver VAUTROT-SCHARZ, Charles. La qualification juridique en droit administratif. Paris: LGDJ, 2009.

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    1890, por proviso do ministro da Fazenda, foi concedido a um particular o alfandegamento de um trapiche na capital federal pelo prazo de 15 anos. Pelo contrato, o Estado, no tendo suficiente espao nos depsitos da Alfn-dega, dava ao particular, por tempo certo, a tarefa, de natureza pblica, de depositar mercadorias at seu desembarao fiscal. O concessionrio poderia, em contra partida, auferir renda com os depsitos, de acordo com tabela oficial. Entretanto, em agosto de 1896, o inspetor da alfndega interditou o referido trapiche, porque constatara irregularidades tributrias no despacho de toucinhos. Em razo deste ato, o concessionrio moveu ao judicial buscando reparao de danos. Vencido em primeira instncia, o concessio-nrio reverteu o julgamento no STF, contra o parecer do ministro procurador-geral da Repblica.

    A discusso travada no caso girou em torno da natureza do contrato de concesso entre as partes. Dentre outros argumentos, o concessionrio alegava que o contrato era sinalagmtico e regido pelo direito privado, no podendo uma das partes simplesmente rescindi-lo. O ministro procurador-geral sustentava que o contrato era pessoal e baseado na confiana entre as partes; rompida a confiana, a administrao, no exerccio do poder pblico e acautelando grandes interesses da Nao, poderia praticar um ato de imprio, decorrente da soberania do Estado e regulado pelo direito pblico, completamente fora da esfera do direito privado, como o ato de interromper a concesso. O STF, em fundamentao sucinta e atendendo ao apelo do concessionrio, classificou o contrato como bilateral, de natureza especial, de que se originaram para as partes (...) direitos e obrigaes recprocos e reverteu a deciso de primeira instncia.

    Esse raciocnio tambm valeu para a deciso unnime tomada na Ape-lao Cvel no 2.440, julgada em 9 de junho de 1917, relator o ministro Canuto Saraiva.66 O caso tratava de contrato de arrendamento do imposto de expor-tao e de consumo de sal de produo do estado do Piau, celebrado via escritura pblica e por autorizao legal, com empresa privada. O estado do Piau rescindiu unilateralmente o contrato e foi condenado a indenizar a empresa pelos lucros cessantes de 11 anos restantes do contrato ilegalmente findo. O argumento do STF foi bastante simples: no estando o poder de resciso pactuado, no poderia o estado do Piau rescindir o contrato. Mais uma vez, reforo que, para o STF, deveria valer o pactuado.

    66 Rev. STF, v. 15, p. 494-496, abr. 1918.

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    rda revista de direito administrativo, rio de Janeiro, v. 263, p. 251-290, maio/ago. 2013

    Na mesma trilha est a Apelao Cvel no 1.902, julgada em 24 de julho de 1920, relator o ministro Pedro dos Santos, deciso por maioria.67 No caso, a Unio Federal rescindiu unilateralmente contrato cujo objeto era o forneci-mento de vveres e forragens, por empresa privada, ao Exrcito Nacional. Segundo a empresa contratada, o comandante do Distrito discricionariamente rescin dira o contrato e passara a negociar com outros fornecedores. O STF entendeu que a Unio no tinha nenhuma responsabilidade na indenizao por danos, sob a alegao de que o prprio contrato autorizava a resciso uni-lateral pela Unio quando essa entendesse conveniente.68

    Embora eventual ideia de sobreposio do interesse geral possa ter jogado, silenciosamente, algum papel no caso, o argumento vencedor baseou-se simplesmente na aplicao do princpio pacta sunt servanda, como nos casos anteriores. No parece possvel saber ao certo qual deciso seria tomada acaso no houvesse preciso expressa no contrato. Mas pelo menos plausvel supor que, no houvesse a expressa previso contratual, a deciso poderia ter-se dado no sentido oposto.

    Essa suposio, porm, relativa. Isso porque, no mesmo perodo, foram encontradas decises nas quais, aos olhos do jurista de hoje, o interesse p-blico foi claramente priorizado, a contar da linguagem utilizada pelo STF. No Agravo Cvel no 1.073, julgado por maioria em 26 de agosto de 1908, relator ad hoc o ministro Amaro Cavalcanti, o STF usou linguagem inequvoca em favor do interesse pblico sobre o interesse do particular, no caso, um conces-sionrio de servio pblico.69 Esse o caso mais emblemtico dentre os encon-trados na pesquisa.

    O caso envolvia a singela questo de saber se o Estado poderia, num contrato de concesso, inspecionar os livros da concessionria, no estando

    67 Rev. STF, v. 29, p. 89, jun. 1921.68 A Apelao Cvel no 2.258, j. em 4-9-1920, rel. min. Edmundo Lins, deciso por maioria, pode ser citado como exemplo de deciso no mesmo sentido (ver Rev. STF, v. 29, p. 99-100, jun. 1921). No caso, a Unio Federal arrendara a um particular, a ttulo provisrio e precrio, a Estrada de Ferro de Minas e Rio, constando do pactuado clusula dando ao Estado poder de rescindir o contrato quando julgar conveniente, ficando pela mesma clusula assegurado ao contratante a preferncia, em igualdade de condies, para o arrendamento definitivo, caso o governo entenda faz-lo. Tendo a Unio optado por rescindir o arrendamento provisrio e arrendar definitivamente a terra com outro particular, o anterior contratado ingressou em juzo postulando lucros cessantes. O pedido no teve xito perante o STF, e no possvel saber exatamente as razes da maioria dos ministros, porque foram publicados somente os argumentos do voto vencido do ministro Hermenegildo de Barros, base da presente anlise. Da ter-se deixado o caso neste longo rodap.69 O Direito, v. 108, p. 369-390, jan./abr. 1909. Todos os itlicos das citaes do texto so do original.

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    isso expresso em clusulas contratuais. A nica clusula constante do contrato, celebrado em 1888 e que ratificava os termos da Lei no 1.746, de 1869, dizia: O governo far inspecionar a execuo e o custeio das obras, para assegurar o exato cumprimento dos contratos que houver estabelecido ( 11 do art. 1o). Assim, ante a recusa do particular, empresa concessionria de obras no Porto de Santos, de mostrar seus livros, a Unio Federal intentou ao de exibio de livros, com base no art. 18 do Cdigo Comercial de 1850.70 A ao foi julgada procedente em primeira instncia e a concessionria recorreu ao STF, que, segundo a prpria Corte diria em sede de embargos, julgava ento pela primeira vez essa matria especfica.

    Segundo a maioria dos ministros do STF, as longas razes de recurso apresentadas pelo concessionrio tinham como argumento principal o de que a concesso era um contrato e, como tal, obrigaria as partes somente no que as clusulas contratuais expressamente dispusessem; no estando expressa nas clusulas a obrigao do concessionrio de mostrar, nem o direito do Estado de inspecionar, os livros, no poderia o Estado querer faz-lo. Esse argumento constituiu o cerne dos vrios votos vencidos, para os quais o direito, constante do acima transcrito 11 do art. 1o do contrato, de fiscalizar as obras realizadas pela concessionria, no dava ao Estado a qualidade de interessado na comunho (comunho ou sociedade, diz o art. 18 do Cd.), sem ter nenhuma parte no capital da empresa e nos seus estabelecimentos.

    O argumento da maioria baseou-se na ento incipiente doutrina do poder pblico (puissance public) de Maurice Hauriou, expressamente citado. A concesso seria, antes de tudo, um ato administrativo ou de poder pblico (...) um contrato sui generis, pelo qual nenhuma propriedade era exercida pelo concessionrio, que agia, enquanto usufruturio dos direitos do Estado, sempre em nome deste, fosse quando exercesse o poder de desapropriar ou de cobrar impostos. As clusulas do contrato, continuou o STF, no poderiam ser exclusivamente reguladas pelos preceitos desse direito [privado] to somente; menos ainda poderia se pensar que as obrigaes do concessionrio findam com a letra expressa da concesso (...) porquanto clusulas pode haver, tais como as que envolvem a delegao de direitos de poder pblico, que escapam, no todo, esfera do direito privado. Por isso a contratada no pode pretender a posio

    70 Art. 18: A exibio judicial dos livros de escriturao comercial por inteiro, ou de balanos gerais de qualquer casa de comrcio, s pode ser ordenada a favor dos interessados em gesto de sucesso, comunho ou sociedade, administrao ou gesto mercantil por conta de outrem, e em caso de quebra.

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    jurdica de igual a igual, como sucede nos contratos particulares de direito civil; porque o poder pblico, sem embargo de entrar em relao contratual com a pessoa privada, no se despe, por isso, jamais dos direitos e faculdades que constituem a sua qualidade prpria de poder. Entre as qualidades,

    inerentes, inseparveis, do poder pblico, proeminente a de regular ou fiscalizar a coisa pblica, os servios desta natureza e, notadamente, o exerccio dos direitos ou funes de carter pblico pelos indivduos privados, sejam estes agentes, funcionrios da coisa pblica ou delegados.

    Mais que isso, referiu o STF que nenhuma clusula precisaria estar expressa no contrato para que o Estado pudesse inspecionar os livros da con-ces sio nria. Esse direito subsiste, nunc et semper, como qualidade, de que o mesmo poder no pode abrir mo. O raciocnio a ser feito era, para o STF, o con trrio do feito pela concessionria. A concessionria, sim, que nada pode pre ten der do poder pblico, concedente, ou opor ao poder concedente, sem mos trar a clu sula expressa, que lhe haja concedido o direito ou favor, ou que con tenha a deli mitao ou proibio, que o poder pblico concedente haja aceitado.

    Qual o fundamento desse raciocnio? Vale novamente a longa citao:

    (...) esta regra da jurisprudncia assenta, principalmente, no prprio fundamento da concesso pelo poder pblico, que outro no seno a realizao de um bem pblico, e jamais o benefcio dos interesses do concessionrio, e daqui, sempre que houver dvida sobre o alcance dos favores ou direitos do concessionrio, a interpretao deve ser contra este, e em favor do poder pblico ou dos interesses pblicos, que o mesmo representa.

    Os votos vencidos, tanto na apelao quanto nos embargos, referiram, em favor do argumento minoritrio, deciso anterior do STF, a Apelao Cvel no 139, julgada em 14 de setembro de 1895.71 O que foi ali decidido, porm, no atacava diretamente o problema da exibio de livros ou dos princpios da concesso. Este acrdo do sculo XIX decidiu que a empresa particular

    71 S.T.F. Jurisprudncia [acrdos proferidos em 1895], p. 179-180, 1897.

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    que, por concesso, construsse e explorasse via frrea era proprietria do bem, embora essa propriedade [fosse] limitada, atentas as limitaes que necessariamente resultam do uso pblico a que se destina. Essa propriedade era tambm resolvel, porquanto (...) devolvida ao Estado, findo o prazo do privilgio; mais que isso, o fato de um decreto de 1857 referir expressamente que as estradas de ferro fossem vias pblicas no significaria, para o STF, em 1895, que as estradas de ferro, construdas e exploradas por empresas particulares, faam parte do domnio do Estado. S o fariam depois de finda a concesso.

    Em sede de embargos ao Agravo Cvel no 1.073, julgados por maioria em 14 de novembro de 1908, relator o ministro Canuto Saraiva, o STF, aps asseverar o ineditismo da causa na Corte (a espcie sujeita a julgamento nova, jamais tendo sido submetida ao conhecimento do Tribunal espcie idntica), referiu que o princpio da inviolabilidade dos livros comerciais (...) sofre a limitao que lhe ope o interesse pblico, em cujo nome age o Estado quando contrata. Em voto vencido, o ministro Manoel Murtinho reconheceu o direito do Estado de exigir os livros do concessionrio, mas entendeu que essa medida, de suma gravidade, somente deve[ria] ser autorizada quando sua necessidade se imp[usesse], linguagem que, na metodologia jurdica de hoje, poderia ser entendida como propugnando uma proporcionalidade entre meio e fim. Seja como for, neste caso no havia nada pactuado entre as partes, tendo sido pressuposto pelo STF que, em nada sendo pactuado, deveria prevalecer o interesse pblico.

    A mesma linha de raciocnio foi aplicada em 25 de junho de 1913, quando o STF, julgando ao ordinria de preceito cominatrio, entendeu que o resgate ou encampao eram inerentes a qualquer contrato de concesso, no precisando vir expressos nas clusulas contratuais, porque no era encampao uma modalidade do direito do Estado de desapropriar por necessidade ou utilidade pblica (art. 72, 17, da Constituio Federal) direito inerente a seu domnio eminente, atributo de sua funo soberana.72

    O interesse pblico em detrimento do particular foi tambm mencio-nado de forma expressa na Apelao Cvel no 2.166, julgada por maioria em 28 de janeiro de 1914.73 O caso cuidava da concesso de estradas de ferro, e

    72 Revista de Direito (Bento de Faria), v. 30, p. 134-138, out. 1913.73 Rev. STF, v. 1, 1a parte, p. 338-341, ago./dez. 1914. Sobre o privilgio de zona ao concessionrio de estradas de ferro, ver parecer, no mesmo sentido do acrdo, de Joo M. de Carvalho Mouro em O Direito, v. 118, p. 332-344, maio/ago. 1912.

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    o ponto da questo era saber se a concesso do privilgio de explorao a um particular implicaria exclusividade dessa explorao. O STF entendeu que no, confirmando sentena de primeira instncia, datada de 30 de junho de 1911; essa sentena, tambm publicada pelo peridico consultado, que traz o raciocnio, de resto simples, confirmado pelo STF, segundo o qual a outorga de novas concesses de estradas de ferro no afeta o direito adquirido das concesses antigas, que por natureza no so exclusivas, representando um simples aperfeioamento do trfego com as vantagens para o pblico de mais frequncia, rapidez, barateza e comodidade, o que

    um recurso natural que o governo no podia (...) negar e devia at facilitar como qualquer outra empresa que a procure empregar em suas linhas, sob pena de sacrificar o interesse geral ao particular. E os privilgios exclusivos s so permitidos em direito quando conferidos, no como um favor especial ao concessionrio, mas com o fim de promover o bem geral. (grifo nosso)

    Por ltimo, foi encontrada a Apelao Cvel no 2.542, julgada por maioria em 19 de janeiro de 1921, relator designado o ministro Pedro dos Santos, o qual entendeu que o Estado, a fim de acautelar os interesses superiores da alta administrao, poderia anular concorrncia pblica, aps abertas as pro-pos tas, no sendo responsvel por perdas e danos, mas somente pela mesma multa a que seria responsvel o licitante vencedor se este no iniciasse o servio.74

    4.3 Outras temticas

    A pesquisa revelou que o tema em estudo aparecia tambm em assuntos que classifico aqui como outras temticas. Trs acrdos datam ainda do sculo XIX; os demais so todos do sculo XX.

    O primeiro acrdo que utiliza linguagem digna de nota o julgamento da Apelao Cvel no 193, em 23 de novembro de 1896.75 O STF deveria decidir se certa lei de 1894 poderia, sem ferir a disposio do 24 do art. 72

    74 Rev. STF, v. 36, p. 88-95, jan. 1922. O mesmo acrdo aparece na Revista de Direito (Bento de Faria), v. 88, p. 542-550, jun. 1928.75 S.T.F. Jurisprudncia [acrdos proferidos em 1896], p. 232-233, 1897. (grifos nossos)

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    da Constituio Federal de 1891,76 proibir o monoplio e o atravessamento de gneros de primeira necessidade, facultando aos municpios conceder excep-cionalmente privilgios necessrios utilidade pblica. Com base nessa lei, alguns municpios do Par firmaram contrato com particular visando venda de carne a preo determinado, no intuito de salvar seus muncipes de uma exagerada alta de preo com que os ameaaram os monopolizadores. Diante de ao judicial de uma empresa que se sentiu lesada e teve ganho de causa em primeira instncia para ver ressarcido seu prejuzo mais lucros cessantes, o STF reverteu a deciso afirmando que a liberdade profissional e industrial continha restries postas atividade humana pelo direito civil e comercial e pelas leis de polcia, sem as quais no h ordem nem liberdade, bem como sofria a exceo de privilgios constitudos a bem da utilidade pblica. A lei poderia, portanto, em nome do interesse da coletividade (os muncipes supostamente lesados por alta de preos), controlar os preos do mercado.

    O segundo acrdo do sculo XIX a mencionar a Apelao Cvel no 466, julgada por maioria em 20 de junho de 1900,77 a qual merece destaque tanto pela linguagem utilizada quanto por questes histricas. Neste julgado, o Estado havia proibido, em 1897, o despacho, na Alfndega de Santos, de armas e petrechos de guerra, medida da qual resultou prejuzo empresa privada. O STF reverteu deciso de primeira instncia e entendeu que o Estado no tinha responsabilidade pelo prejuzo causado, porque do ato estatal, ainda que tenha havido prejuzo, no teria resultado ofensa ou leso de um direito, porque, embora estivesse garantida na Constituio Federal, a liberdade de indstria no era ilimitada, dependendo, como os demais direitos assegurados pela Const. Federal, de leis especiais, que lhe regu lem o exerccio, estando igualmente sujeita a restries que lhe podem ser postas pelos poderes municipais, o que estava justamente sendo feito no caso por discricionariedade da administrao, conferida pelo artigo 445, 7o da Nova consolidao das leis das alfndegas. O valor histrico do julgamento est na lembrana de que, poca, o tema da responsabilidade civil do Estado decorrente de atos praticados pelo poder pblico era, como referido na de ciso, ainda duvidoso, no estando a jurisprudncia na Frana, bem como entre ns, ainda consolidada. O STF, citando LONN, Thse pour le doctorat, 1898, Pariz [sic], referiu que a tese da responsabilidade no era ento uma tese inconcussa, e alguns pases a repeliam (Inglaterra, Estados

    76 Art. 72, 24: garantido o livre exerccio de qualquer profisso moral, intelectual e industrial.77 S.T.F. Jurisprudncia [acrdos proferidos em 1900], p. 219-220, 1903.

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    Unidos, Blgica, Sucia, Grcia), enquanto alguns haviam expressamente previsto que essa responsabilidade escapava apreciao dos tribunais (Itlia e ustria), e mesmo que outros (Alemanha) haviam previsto expressamente a responsabilidade do Estado somente no que toca ao exerccio de funes de direito privado.

    O Agravo no 372, julgado por unanimidade em 13 de outubro de 1900,78 traz linguagem tambm digna de nota em caso que envolvia a sade pblica. O caso era simples: um particular pretendia impedir a iminente entrada da autoridade sanitria em sua propriedade para fins de fechar tubos de descarga de latrina que projetavam gases de esgoto nos domiclios de avenida localizada em nvel superior. O particular ingressou em juzo com interdito proibitrio, negado em primeira instncia. Em sede de recurso, o STF referiu que a interveno do Estado em matria de higiene se legitima, por estar a sade pblica intimamente ligada ao interesse social, lembrando que, mesmo os sectrios mais intransigentes do individualismo no podem tambm contestar esta interveno, desde que aceitam o princpio de que [a]o Estado compete velar pela segurana interna e externa da sociedade. A restrio ao direito de propriedade do particular, no caso, no violaria o 17 do art. 72 da Constituio Federal de 1891,79 por no ter a autoridade sanitria privado o agravante de sua propriedade, mas somente lhe restringido o uso, restrio essa que decorreria da vida em sociedade, que impe a cada um indivduo o dever de partilhar nos sacrifcios indispensveis defesa da comunho.

    Sobre o assunto, o presidente Rodrigues Alves editaria, em 5 de janeiro de 1904, o Decreto no 1.151, a fim de reorganiza[r] os servios da higiene administrativa da Unio; o 20 do art. 1o proibiria as autoridades judi-cirias de conceder interditos proibitrios contra atos da autoridade sanitria exercidos em razo do poder de imprio do Estado e praticados em prol da sade pblica, ressalvando ao particular pleitear eventuais perdas e danos.80 O decreto parece ter sido editado para diretamente facilitar a tarefa

    78 S.T.F. Jurisprudncia [acrdos proferidos em 1900], p. 116-117, 1903.79 Art. 72, 17. O direito de propriedade mantm-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriao por necessidade ou utilidade pblica, mediante indenizao prvia.80 O texto, mantida a grafia original, era este: 20. No podem a justia sanitaria, nem as autoridades judiciarias, quer federaes, quer locaes, conceder interdictos possessorios contra os actos da autoridade sanitaria exercidos ratione imperii, nem modificar ou revogar os actos administrativos ou medidas de hygiene e salubridade por ella determinadas nesta mesma qualidade. // Fica salvo pessa lesada o direito de reclamar judicialmente perante a justia federal, as perdas e damnos que lhe couberem si o acto ou medida da autoridade sanitaria tiver sido illegal, e promover a punio penal, si houver sido criminosa. // Em caso de desapropriao, essa se far segundo a Constituio Federal e as leis respectivas.

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    do poder pblico no cumprimento de seus deveres de zelo sade pblica; indiretamente, o enunciado tambm facilitaria a tarefa do STF na interpretao de casos envolvendo interditos possessrios contra atos administrativos que visavam preservar a sade pblica. Por exemplo, no Agravo no 1.192, julgado por maioria em 15 de outubro de 1909, o STF foi bastante sucinto em sua funda-mentao para, com base no referido texto do decreto acima citado, inde ferir interdito proibitrio contra ato administrativo protetivo da higiene pblica.81

    J no final da Repblica Velha, no Agravo de Petio no 4.870, julgado em 17 de julho de 1929, o STF repetiu o mesmo entendimento,82 tambm em caso de sade pblica. Uma empresa privada havia sido multada por ter-se oposto a exigncias feitas por delegado sanitrio no Rio de Janeiro, o qual determinara a retirada de tbuas do forro do pavimento trreo, a fim de evitar a propagao da peste bubnica, que, na ocasio, aparecera em outros pontos da cidade. A empresa alegou ofensa, dentre outros dispositivos infraconstitucionais, ao 1o do art. 72 da CF 1891.83 O STF entendeu que a empresa infringira vrias normas do Decreto no 16.300, de 31 de dezembro de 1923, que dispunha sobre Sade Pblica e dava amplos poderes ao agente pblico para exigir da empresa as obras referidas. Acima das convenincias individuais, conclui o STF, h de ficar sempre o interesse superior da Nao quando reflete o da coletividade que o constitui. interessante notar que o referido Decreto no 16.300, cuja expedio havia sido autorizada pelo no III do art. 3o da Lei no 4.632, de 6 de janeiro de 1923, continha 1.679 artigos. Alguns deles conferiam poderes discricionrios amplos s autoridades sanitrias, como o de prevenir vcios de construo dos prdios, no que diz respeito aos interesses da sade pblica, bem como o de prevenir e corrigir faltas de higiene provindas dos proprietrios, arrendatrios, locatrios e moradores (art. 1.080, letras a e b).

    No agravo no 1.352, julgado em 8 de abril de 1911, o STF precisava decidir se o poder pblico poderia constituir monoplio industrial para o

    81 O Direito, v. 111, p. 302-305, jan./abr. 1910. Na linguagem do STF, essa seria a j copiosa jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal (...) Acrdos, entre outros, de 1 de Agosto de 1903, 8 de Abril de 1905 e 18 de Janeiro de 1908 nos Agravos ns. 501 e 1.005. Entretanto, para o ministro Pedro Lessa, vencido, esse artigo violaria manifestamente o 17 do art. 72 da Constituio Federal vigente (acima citado), no se podendo aplic-lo.82 Revista de Direito (Bento de Faria), v. 95, p. 201-203, jan./fev. 1930. No mesmo sentido, mas sem utilizar a linguagem referida no texto acima, o mesmo volume da revista traz outro acrdo, o Agravo de Petio no 4.882, j. 28-6-1929 (p. 200-201).83 Texto: Ningum pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei.

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    servio de matana e fornecimento de carnes verdes, fato que ocorrera por ato administrativo do prefeito da cidade do Rio de Janeiro, prejudicando uma empresa particular, a qual se viu privada de poder abater seu gado no matadouro municipal.84 Estava em jogo interpretao do texto do 24 do art. 72 da CF 1891 ( garantido o livre exerccio de qualquer profisso moral, intelectual e industrial), e o STF, confirmando a sentena de primeira ins-tncia, referiu expressamente que a referida disposio constitucional exclui os pri vilgios de interesse inteiramente privado, no, os de interesse pblico, como os concernentes aos servios de iluminao, viao, gua, esgotos e outros.

    Por fim, so dignos de nota trs casos de habeas corpus. O primeiro e mais importante o unnime julgamento proferido no Recurso de Habeas Corpus no 4.313, julgado em 11 de julho de 1917, relator o ministro Viveiros de Castro.85 O caso emblemtico por trazer maior fundamentao e indicar expressamente a base terica dos argumentos. O caso versava sobre a liberdade de associao e o eventual abuso ou ilegalidade, luz do art. 72, 8o, da CF 1891,86 no ato do chefe de polcia que proibira a realizao de meetings de operrios. Diante dessa genrica clusula autorizativa conferindo poderes polcia para manter a ordem pblica, o STF, num dos raros julgamentos unnimes encontrados, tece longas consideraes, aqui parcialmente reproduzidas:

    considerando que a liberdade individual (