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2010.1/2 [CADERNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO] http://www.mackenzie.br/dhtm/seer/index.php/cpgau ISSN 1809-4120 217 MANHATTAN TRANSCRIPTS DESDOBRADO A ARQUITETURA PARAMETRIZADA PELOS EVENTOS SPERLING, David; Professor; Universidade de São Paulo; São Carlos; Brasil; [email protected]

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MANHATTAN TRANSCRIPTS DESDOBRADO – A ARQUITETURA

PARAMETRIZADA PELOS EVENTOS

SPERLING, David; Professor; Universidade de São Paulo; São Carlos; Brasil; [email protected]

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RESUMO

Conformam o objeto desta investigação aspectos da teoria de arquitetura de Bernard Tschumi que foram sistematizados pela primeira vez pelo arquiteto em Manhattan Transcripts (1977-1981). Em seguida, alguns de seus desdobramentos na arquitetura contemporânea são comentados.

Palavras-chave: Manhattan Transcrição; notação gráfica; evento.

ABSTRACT

The focus of this article is the investigation about some aspects of the architectural theory of Bernard Tschumi, as they were systematized for the first time in Manhattan Transcripts (1977-1981). After this discussion, some of Manhattan Transcripts unfoldings in the contemporary architecture will be pointed.

Key-words: Manhattan Transcripts; graphic notation; event.

RESUMEN

El objeto de esta investigación se compone de algunos aspectos de la teoría de la arquitectura de Bernard Tschumi, que fueron organizados por el arquitecto, por primera vez en Manhattan Transcripts (1977-81). A continuación, se discuten en este artículo algunos de sus desarrollos en la arquitectura contemporánea.

Palabras Clave: Manhattan Transcripts, notación gráfica, evento

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MANHATTAN TRANSCRIPTS DESDOBRADO – A ARQUITETURA

PARAMETRIZADA PELOS EVENTOS

INTRODUÇÃO

Tomamos como foco desta investigação aspectos da teoria de arquitetura de Bernard

Tschumi que foram sistematizados pela primeira vez pelo arquiteto em Manhattan

Transcripts (1977-1981), e alguns de seus desdobramentos na arquitetura contemporânea1.

Concebido paralelamente a alguns textos importantes escritos pelo arquiteto, como

Architecture and Transgression (Oppositions, 1976), The Pleasure of Architecture

(Architectural Design, 1977), Architecture and Limits I, II and III e Violence and

Architecture (Artforum, 1980-1981), Manhattan Transcripts foi composto por uma série de

quatro exposições contendo notações experimentais de situações arquiteturais. Abrigadas

inicialmente em páginas de revistas especializadas de arquitetura e de arte e em espaços

expositivos, as teses de Tschumi a respeito da arquitetura foram se desenvolvendo

1 Bernard Tschumi (1944) estudou em Zurich (Federal Institute of Technology - ETH), onde se diplomou em 1969. Desde então, tem se dedicado à pesquisa e ao ensino de arquitetura em escolas de referência internacional. Lecionou na Architectural Association, em Londres, entre 1970 e 1979, um período de efervescência da escola que – após declínio na década anterior e reestruturação – contava também, entre seus jovens professores, com Rem Koolhaas, Elia Zenghelis, Daniel Libeskind, Zaha Hadid, Nigel Coats, Charles Jencks, Leon Krier e Ron Herron. Tschumi lecionou, em seguida, no Institute for Architecture and Urban Studies, em Nova York (1976), na Princeton University School of Architecture, em Princeton (1976 e 1980), na Cooper Union, em Nova York (1981-1983), e na Graduate School of Architecture, Planning and Preservation at Columbia University, em Nova Iorque (1988 até o momento, e de 1988 a 2003 ocupou o cargo de diretor). Tschumi vem desenvolvendo, nesse período de quase quatro décadas, uma atividade que objetiva conexão íntima entre teoria e prática projetual, publicando-a em diversos livros, dentre os quais destacam-se: The Manhattan Transcripts: Theoretical Projects (1981), Architecture and Disjunction (1994), Event-Cities (1994), Event-Cities 2 (2000), The State of Architecture in the Beginning of the 21st Century (2003); Event-Cities 3: Concept vs. Context vs. Content (2005); Tschumi on Architecture. Conversations with Enrique Walker (2006).

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simultaneamente em dois tipos de escritura, a gráfica e a textual, e só posteriormente

foram publicadas: a primeira síntese gráfica, Manhattan Transcripts: Theoretical Projects,

em 1981 (com reedição em 1994), e a grande síntese textual, Architecture and

Disjunction, em 1994 (com textos escritos entre 1975 e 1991).

1. POR UMA ARQUITETURA DO EVENTO

Como caracterização mais geral das questões que enfrentou, Tschumi problematizou

ideologias e práticas presentes na disciplina desde o final dos anos 1960, as quais, com

nuanças distintas, ainda comparecem na prática, na crítica e no debate arquitetônico nos

anos que correm: a revisão crítica do legado moderno, a investigação de procedimentos

projetuais experimentais e a reflexão sobre a existência ou não de uma esfera autônoma

para as práticas disciplinares. Como fio articulador das práticas que mantinha naquele

período, havia o atrelamento entre prática experimental e reflexão teórica como ações

políticas.

Um atrelamento que se mostra patente nos dois excertos a seguir, um de Manhattan

Transcripts e outro de Architecture and Disjunction:

A arquitetura diz respeito tanto aos eventos que tomam lugar nos espaços quanto aos

espaços em si [...] as noções estáticas de forma e função favorecidas longamente pelo

discurso arquitetônico precisam ser substituídas pela atenção às ações que ocorrem

dentro e ao redor dos edifícios –- para o movimento dos corpos, para as atividades,

para as aspirações... (TSCHUMI,1994a, p. 13).

O confronto inerente à arquitetura entre espaço e uso e a inevitável disjunção dos dois

termos significa que a arquitetura é constantemente instável, está constantemente em

vias de transformação. (TSCHUMI, 1994b, p. 19)

O conceito de evento a que se refere Tschumi (1994a, p. xxi) em toda a sua obra remete

ao que “simplesmente acontece, uma ocorrência, um incidente”, ao que é imprevisível e

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não programável, seguindo muito de perto a filosofia de Jacques Derrida, uma de muitas

de suas referências-chave2.

O conceito de evento que emerge em suas reflexões sobre arquitetura é parte integrante

da resposta que ele dá a uma pergunta-chave para aquele período, entre os anos 1960 e

1970: “O que é arquitetura?”3 A intensificação de tal questionamento – que culminou em

debates acirrados como aquele entre Manfredo Tafuri e Peter Eisenman abrigado pela

revista norte-americana Oppositions4 –, pretendia construir um solo operativo e crítico a

uma disciplina que se ressentia do esvaziamento progressivo do arcabouço teórico que

norteou o Movimento Moderno hegemônico (tendo o último CIAM ocorrido no final da

década de 1950) e que ansiava por reencontrar uma relevância social e política para a sua

prática – seja pela compreensão de seus mecanismos internos, seja pela compreensão de

sua vinculação às estruturas mais gerais da sociedade.

Em sua afirmação, a arquitetura é a relação disjuntiva entre espaços e eventos ou, de

outro modo, a relação disjuntiva entre a concepção do espaço e a experiência do espaço –

que apareceu pela primeira vez em seu texto “Questions of Space: The Pyramid and the

Labyrinth” (Or the Architectural Paradox) publicado na revista londrina de arte Studio

International (no 977, set.-out. 1975) – encontram-se três vetores de direção: a

substituição do binômio forma-função por espaço-evento, a substituição da hierarquia

entre termos pela disjunção entre termos, e a intertextualidade (o entre) como o lugar a

ser explorado pelas táticas arquiteturais5.

2 Em entrevista que realizamos com Tschumi, ele afirmou: “No início do meu trabalho, eu utilizava indiferentemente os termos programa, uso e evento. E durante um debate público entre Derrida e eu em Paris, diante de muitas pessoas, falando justamente dessa questão, Derrida me corrigiu gentilmente e me disse „atenção, o evento não pode ser programado, o evento é tudo aquilo que por definição é imprevisível‟. Então, o evento é o que acontece repentinamente quando certas condições são reunidas e vem o imprevisto” (GROSSMAN et al., 2007).

3 Tschumi faz referência a essa pergunta que o movia na primeira entrevista que concede a Enrique Walker (WALKER; TSCHUMI, 2006, p. 16).

4 Os principais capítulos desse debate foram selecionados e discutidos por Hays (1999).

5 Para uma leitura mais extensa sobre essas posições teóricas de Tschumi, ver: Sperling (2008).

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2. EXPERIÊNCIAS ESPAÇO-TEMPORAIS EM TRANSCRIÇÃO

Uma vez deslocada da operação por meio do binômio forma-função, a ação projetual

passou a solicitar a investigação de um novo meio gráfico para colocar em relação os

espaços e os eventos. Como alternativa crítica à representação convencional de

arquitetura, como plantas, cortes e perspectivas, centradas na tradução gráfica dos

elementos físicos relacionados à delimitação e à permanência do objeto arquitetônico,

Tschumi (1994a, p. 9) passou a investigar notações que dessem conta de operar inter-

relações entre espaços, movimentos e eventos e de introduzir na prática arquitetural ''a

ordem da experiência, a ordem do tempo - momentos, intervalos, seqüências''.

O projeto teórico Manhattan Transcripts foi sua primeira investigação extensiva nessa

direção, e que acabou por informar muito sua obra subsequente. Sem Transcripts, segundo

Tschumi (1994a, p. xxx), não existiria seu projeto para o Parc de la Villette ou Le Fresnoy,

concepções espaciais decorrentes de superposições de sistemas distintos. Ou mesmo a

experiência que realizou sobre notações de eventos para a queima de fogos na inauguração

do Parc de la Villette, em que as ocorrências luminosas e sonoras foram espacializadas

geometricamente no tempo6.

Antes de tornar-se livro, Manhattan Transcripts foi desenvolvido durante quatro anos,

entre 1977 e 1981, período em que foram realizadas quatro exposições individuais de sua

obra: Artists Space (Nova York), Architectural Association (Londres), P.S.1 e Max Protetch

Gallery (ambas em Nova York)7. O projeto é composto por quatro episódios (um

6 Sobre essa experiência, Tschumi relata: “Eu trabalhei com produtores de fogos, que não tinham um modo de notação, então eu tentei inventar um modo de notação que introduziria questões específicas de tempo e movimento no espetáculo de fogos. Uma vantagem em usar notações de outros campos externos à arquitetura é que eles não foram solidificados em códigos, da maneira como plantas, cortes e elevações foram” (in DAMIANI, 2003, p. 22).

7 Em paralelo a Manhattan Transcripts, em 1978, Tschumi explorou algo similar com Rituais (A dança, A perseguição, A luta, A casa), a partir de discussões com o diretor de

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assassinato, um encontro amoroso, uma queda, um congestionamento de situações)

identificados por espaços onde acontecem as experiências arquiteturais (O Parque, A Rua,

A Torre, O Bloco). Os episódios tomam Manhattan como uma realidade específica à espera

por ser desconstruída e transformada pelos eventos.

Como desdobramento desse conceito geral, as exposições dos Transcripts realizadas em

espaços físicos de galerias receberam identificações relacionadas à ocupação do espaço

arquitetônico: A Sala, no Artist Space; A Mesa, na Architectural Association; O Vazio, na

P.S.1; A Parede, na Max Protetch. Segundo Tschumi (1994a, p. 63), o objetivo de realizar

as instalações era envolver o corpo do próprio observador dentro da definição do espaço

dos Transcripts.

O termo transcript escolhido por Tschumi para designar o conjunto de notações

arquiteturais que realiza parece condensar o sentido de transcrição (''Eles propõem

transcrever uma interpretação arquitetural da realidade'', TSCHUMI, 1994a, p.7) e o de

trans-script ou ''além-roteiro'' (''...consistem em descrições quadro-a-quadro de um

inquérito arquitetural. De maneira alguma eles se constituem como uma declaração

definitiva; eles são uma ferramenta-no-fazer, um trabalho-em-processo'', TSCHUMI, 1994a,

p.6). Ao mesmo tempo, algo que pode ser narrado, descrito, diagramado e algo que escapa

a qualquer tentativa de narração, descrição e diagramação, e que permanece em aberto

para outras ressignificações.

cinema Eric Rohmer e o ator Boris Karloff sobre os espaços arquiteturais presentes na obra Fausto de Murnau.

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Figura 1: Bernard Tschumi, Capa de Manhattan Transcripts. Fonte: www.tschumi.com

Figura 2: Trecho de The Park. Fonte: Tschumi (1994a).

Transformadas posteriormente em livro, as exposições ganham a dimensão de livro-objeto,

de caderno de (a)notações. Os Transcripts fazem uso de um dispositivo de notação

tripartite: quadros em linha apresentam espaços, eventos e movimentos de modo

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sincrônicos e que vão se sucedendo em uma narrativa hipertextual (ou hipergráfica). A

montagem temporal composta pela justaposição de diagramas e fotogramas apresenta

conscientemente similaridades com um roteiro de Eisenstein ou com algumas direções de

cena de Moholy-Nagy (TSCHUMI, 1994a, p. 7). Foi com os objetivos de contraposição às

narrativas lineares, de investigação de montagens experimentais e de notações de

movimentos que Tschumi estudou o trabalho e a teoria de cinema do russo Sergei

Eisenstein, como a de seu compatriota Dziga Vertov. Segundo a teoria do kinokismo de

Vertov, por exemplo, a única maneira de atingir o ritmo próprio da arte cinematográfica

seria por meio do “estudo preciso do movimento”. Em “Nós, Variação do Manifesto”, de

1922, Vertov apresenta sua formulação:

O kinokismo é a arte de organizar os movimentos necessários dos objetos no espaço,

graças à utilização de um conjunto artístico rítmico adequado às propriedades do

material e ao ritmo interior de cada objeto. Os intervalos (passagens de um movimento

para outro), e nunca os próprios movimentos, constituem o material (elementos da arte

do movimento). São eles (os intervalos) que conduzem a ação para o desdobramento

cinético. A organização do movimento é a organização de seus elementos, isto é, dos

intervalos na frase. Distingue-se, em cada frase, a ascensão, o ponto culminante e a

queda do movimento (que se manifesta nesse ou naquele nível). Uma obra é feita de

frases, tanto quanto estas últimas são feitas de intervalos de movimentos (VERTOV in

XAVIER, 1990).

Para Tschumi (1994a, p. 10), a incorporação da temporalidade nos Transcripts sugere,

portanto, inevitavelmente a analogia com um filme: a técnica quadro a quadro, o

isolamento de pedaços congelados de ação, e o espaço que passa a se desenvolver de

fotograma em fotograma.

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Figura 3: Trecho de The Street. Fonte: Tschumi (1994a).

Dois são, portanto, os elementos estruturais de seu sistema de notação: o quadro e a

sequência. O primeiro é composto pelo dispositivo de enquadramento e pelo assunto

enquadrado; cada quadro, simultaneamente completo e incompleto em seu sentido, tem a

peculiaridade de qualificar, reforçar ou alterar o sentido dos quadros que o precedem ou

sucedem na sequência, levando mais a uma trama de interpretações plurais

quedelimitação de um fato singular. A segunda implica ou inclui pelo menos três relações

sequenciais: a sequência transformacional ou o dispositivo e o processo de notação

arquitetural em si; a sequência espacial, com seus diversos precedentes tipológicos e

variações morfológicas; e a sequência programática, composta por considerações sociais e

de uso (TSCHUMI, 1994a, p. xxiv).

Não são relações hierárquicas ou de causa e efeito que conectam os três termos (espaço-

movimento-evento); a sua disposição em quadros simultaneamente disjuntivos, sincrônicos

e sequenciais solicita três camadas de inferências por parte do leitor, as quais devem ser

correlacionadas entre si para a configuração de sentidos. A primeira é formada pelas

significações que cada quadro-ambiente suscita individualmente – espaço, evento,

movimento. A segunda é formada por relações a serem inferidas entre os espaços, os

eventos e os movimentos, as quais podem ser de indiferença, reciprocidade ou conflito. E

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a terceira é formada pelo encadeamento sequencial próprio a cada um dos termos.

Figura 4: Trecho de The Tower. Fonte: Tschumi (1994a).

Parecendo ecoar o “texto de gozo” de Roland Barthes8, como também todo o contexto de

aposta política na inclusão das ações do público participador que moveu boa parte das

8 O livro O prazer do texto, de Barthes (1987), influenciou diretamente o texto The Pleasure of Architecture

(1977) de Tschumi. Barthes defende, em seu livro, a pluralidade de sentido da narrativa por meio da noção de

“texto de gozo” que, ao contrário do “texto de prazer”, é centrado em significantes, e rompe com as bases de

identificação cultural e psicológica do leitor. Ao seguir sua própria rota e organizar suas regras, o leitor passa a

extrair material daquilo que lhe é oferecido e reconfigurá-lo à sua maneira, transformando-se em um virtual

criador. Nesse momento, o texto deixa de transmitir ao leitor “ideias”, oferecendo-lhe “infralinguagens”, isto

é, formas que podem ser intercambiadas. A passagem do texto do escritor para o leitor não envolve assim algo

em particular a ser transmitido – pois o significado nunca é definitivo – mas a disponibilização de um

instrumento para a ação. Por meio desse ato de liberdade de criação, de contestação das estruturas

prescritivas, o texto, então, torna-se plural. Para Tschumi, simultaneamente sensível às linguagens e

interessado no questionamento da determinação política, social e cultural da arquitetura manifesta em

narrativas arquitetônicas lineares, a indeterminação encontrada nas múltiplas narrativas de Barthes se

mostrava como uma base teórica fundamental: “Como nós as percebemos ou experienciamos, as séries de

fragmentos que compõem a arquitetura são constantemente rearranjados em diferentes maneiras, assim não

há trajetória linear única, mesmo que um dos meios favoritos da organização arquitetural seja linear. A

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neovanguardas nas artes, na arquitetura e na literatura nos anos 1960 e 1970, a grande

margem de abertura dos Transcripts, pretendia transformar o ato de leitura em ato de

construção (TSCHUMI, 1994a, p. 9). E parecendo ressoar a defesa feita por Walter

Benjamin (1989, p. 111) do cinema como artifício para produção do “choque”, os

Transcripts pretendem se colocar como dispositivos de ativação crítica de um sujeito

alienado: “experienciar e seguir uma seqüência arquitetural é refletir sobre eventos no

sentido de colocá-los dentro de totalidades sucessivas” (Tschumi, 1994a, p. xxiv).

Figura 5: Trecho de The Block. Fonte: Tschumi (1994a).

3. DESDOBRAMENTOS E DIÁLOGOS

Um leitor que se aproxime de Manhattan Transcripts após tomar contato com a teoria e os

projetos realizados por Bernard Tschumi perceberá o quanto esse projeto de notação

estrutura da narrativa não é habitada por uma única estória, mas por várias estórias, ou melhor, por diferentes

estórias para diferentes pessoas. A arquitetura nunca transmite uma única estória” (in DAMIANI, 2003, p. 23).

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espacial realizada nos primeiros anos de sua trajetória profissional já abrigava as questões-

chave sobre as quais o arquiteto vem se debruçando desde então: as noções de disjunção,

intertextualidade e evento, a incorporação dos eventos como transformadores dos espaços,

as táticas de projeto por meio do reprojeto de programas (cross/dis/transprogramming).

A abrangência que tiveram os pontos de sua pauta no contexto temporal de sua

formulação, como a que têm no contexto atual da arquitetura, nos sugere a necessidade

de que sua obra seja revisitada. Pontuaremos apenas alguns aspectos mais relevantes,

conectados às questões-chave expostas anteriormente.

Com Manhattan Transcripts, Tschumi ao mesmo tempo se posiciona criticamente ante

aspectos que conformam as sínteses da Arquitetura Moderna e recoloca de outro modo a

questão da disjunção que já havia aparecido anos antes com Aldo Rossi (permanência da

forma, alteração da função) e Robert Venturi (disjunção entre forma e função),

pretendendo recuperar uma dimensão crítica para a arquitetura.

A intertextualidade dos Transcripts põe em evidência a defesa que fazia Tschumi de uma

arquitetura intertextual, em oposição à autonomia disciplinar defendida pelas Escolas de

Nova York (Peter Eisenman à frente) e de Veneza, pretendendo situar a arquitetura em

meio às outras formas de conhecimento e de linguagem (filosofia, cinema, artes plásticas,

literatura)9, em busca de diálogos e contaminações10.

Manhattan Transcripts desenha um dos muitos pontos de diálogo crítico entre as

trajetórias de Bernard Tschumi e Rem Koolhaas. Os arquitetos que já haviam sido, entre o

final dos anos 1960 e início dos 1970, professores da Architectural Association em Londres,

9 Entre as muitas referências de Tschumi, encontram-se: Jacques Derrida, o grupo Tel Quel, Georges Bataille, Roland Barthes, Michel Foucault, James Joyce, William Burroughs, Dziga Vertov, Sergei Eisenstein, Vito Acconci, Situacionistas, Archizoom, Superstudio, Cedric Price.

10Tschumi toma o livro como suporte para seu manifesto gráfico, algo que já havia sido explorado em linguagem pop pelo grupo Archigram anos antes. Também como forma de subversão de limites disciplinares, John Cage havia publicado em 1969 o livro Notations, que agrupa quase três centenas de notações musicais experimentais realizadas por músicos convidados.

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tomam a partir da metade dos anos 1970 Manhattan como paradigma de experiência

arquitetural e urbana para reflexão – Koolhaas publica em 1978 o livro Delirious New York:

A Retroactive Manifesto for Manhattan, Tschumi desenvolve Manhattan Transcripts entre

1977 e 1981. Em 1982, os dois arquitetos dividem o primeiro lugar do concurso para o Parc

de La Villette, com projetos que partem da reconfiguração tática dos programas, por meio

das folies, no caso de Tschumi, e por meio dos confetis, no caso de Koolhaas – projetos que

reverberavam as questões teóricas postas naqueles livros. Desde então, ambos passam a

conferir ênfase à investigação sobre os conteúdos (contents) da arquitetura – ou seja, os

programas –, assunto que aparece em livros como Content, de Koolhaas (2004) e Event-

Cities 3: Concept vs. Context vs. Content, de Tschumi (2005).

Pode-se, por fim, considerar que Manhattan Transcripts precede as investigações de

processos projetuais dinâmicos suportados por tecnologias digitais que parametrizam a

transformação espacial/formal em relação a algum outro termo: fluxos, eventos,

programas, dados. Os Transcripts operam um deslocamento-chave para a compreensão na

arquitetura, da relação entre os espaços arquitetônicos e os movimentos dos corpos no

espaço. De uma situação em que os espaços são concebidos previamente e serão habitados

pelos corpos a posteriori (como em uma relação continente-conteúdo), os Transcripts

situam os movimentos dos corpos e os eventos como termos engendradores de

transformações espaciais (como em uma parametrização que vincula os três termos em

situação de equivalência).

Uma gama considerável de proposições contemporâneas de “arquitetura líquidas” e de

“interfaces espaciais tangíveis” poderia ser colocada à luz desse deslocamento crítico: a

consideração da prática espacial como coprodutora dos espaços.

Em suspensão – para uma análise possível somente em perspectiva histórica – ficam ainda

as apostas nas reconfigurações sociais e políticas que tal deslocamento promovido por

Manhattan Transcripts, em incorporação crescente no imaginário e na produção

arquitetural, poderia engendrar.

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REFERÊNCIAS

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DAMIANI, Giovani. Bernard Tschumi. London: Thames & Hudson, 2003.

GROSSMAN, Vanessa et al. Entrevista com Bernard Tschumi. Paris, São Carlos, 2007. (Mimeo.)

HAYS, K. Michael. Oppositions Reader: Selected Essays 1973-1984. Princeton: Princeton Architectural Press, 1999.

SPERLING, David. Espaço e evento: considerações críticas sobre a arquitetura contemporânea. São Paulo: USP, 2008. Tese (Doutorado), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2008.

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XAVIER, Ismail (Org.) A experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, Embrafilme, 1990.