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Oficina do Historiador, Porto Alegre, EDIPUCRS, Suplemento especial - eISSN 21783738 I EPHIS/PUCRS - 27 a 29.05.2014, p.1557-1574. 1557 “AO SUL DO BISPADO DO RIO DE JANEIRO”: NOTAS SOBRE A EXPANSÃO DA IGREJA CATÓLICA NA AMÉRICA MERIDIONAL (RIO GRANDE DE SÃO PEDRO, SÉCULO XVIII) “SOUTH OF RIO DE JANEIRO BISHOPRIC ": NOTES ON THE EXPANSION OF THE CATHOLIC CHURCH IN SOUTH AMERICA (RIO GRANDE OF SAN PEDRO, XVIII CENTURY) Max Roberto Pereira Ribeiro Doutorando em História UNISINOS [email protected] RESUMO: Este artigo tem por finalidade apresentar a estruturação e expansão da Igreja Católica na América Meridional no que concerne aos domínios do Império Português na região conhecida como Sul do Bispado do Rio de Janeiro, futuro Rio Grande de São Pedro, no século XVIII. Esta expansão se dava a partir de um projeto reformador da Igreja Católica, levado a cabo pelo Bispado do Rio de Janeiro, o qual visava disciplinar os comportamentos de variados tipos humanos como índios, escravos e luso-brasileiros, distribuídos por um vasto território. Este projeto disciplinar era estipulado de acordo com as leis eclesiásticas previstas nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707, organizadas por Dom Sebastião Da Vide. Este conjunto de livros, em suma, firmou o Padroado Régio na América Portuguesa e, a partir dele, a Igreja se organizou de modo a acompanhar a vida social, do nascimento até a morte, nas diversas Freguesias e Capelas, fundadas ao longo de todo o século XVIII, no Rio Grande de São Pedro. Analisa, com base na documentação eclesiástica como livro de pastorais e livros de batismos, a forma pela qual a Igreja tentava construir um discurso jurídico, em seu contexto de expansão, capaz de ordenar socialmente as populações em estados de direito de acordo com as leis eclesiásticas, as leis do reino de Portugal e com o direito costumeiro. PALAVRAS CHAVE: Igreja Católica. Expansão. Disciplina. ABSTRACT: This article aims to discuss the structuring and expansion of the Catholic Church in South America with respect to the areas of the Portuguese Empire in the South known as the Bishop of Rio de Janeiro , Rio Grande future of St. Peter , in the eighteenth century the region . This expansion was given from a reform project of the Catholic Church , conducted by the Bishop of Rio de Janeiro , which aimed to discipline the behavior of various human types as Indians , slaves and Luso - Brazilian , spread over a vast territory of according to the ecclesiastical laws laid down in the Constitutions of the First Archbishop of Bahia , 1707 , organized by Dom Sebastião Monteiro Da Vide. This set of books , in short , signed the Regal Patronage in Portuguese America and , from it , the Church was organized in order to monitor the social life, from birth to death , in several parishes and chapels , founded throughout the eighteenth century , in Rio Grande de São Pedro . Analyzes , based on the book of ecclesiastical documents as pastoral and books of baptisms , the way in which the Church was trying to build a legal discourse , in its context of expansion, socially able to sort the populations in states of law according to the ecclesiastical laws the laws of the kingdom of Portugal and the customary law . KEYWORDS: Catholic Church. Expansion. Discipline.

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EPHIS/PUCRS - 27 a 29.05.2014,

p.1557-1574.

1557

“AO SUL DO BISPADO DO RIO DE JANEIRO”: NOTAS SOBRE A

EXPANSÃO DA IGREJA CATÓLICA NA AMÉRICA MERIDIONAL

(RIO GRANDE DE SÃO PEDRO, SÉCULO XVIII)

“SOUTH OF RIO DE JANEIRO BISHOPRIC ": NOTES ON THE

EXPANSION OF THE CATHOLIC CHURCH IN SOUTH AMERICA

(RIO GRANDE OF SAN PEDRO, XVIII CENTURY)

Max Roberto Pereira Ribeiro

Doutorando em História – UNISINOS

[email protected]

RESUMO: Este artigo tem por finalidade apresentar a estruturação e expansão da Igreja Católica na América

Meridional no que concerne aos domínios do Império Português na região conhecida como Sul do Bispado do

Rio de Janeiro, futuro Rio Grande de São Pedro, no século XVIII. Esta expansão se dava a partir de um projeto

reformador da Igreja Católica, levado a cabo pelo Bispado do Rio de Janeiro, o qual visava disciplinar os

comportamentos de variados tipos humanos como índios, escravos e luso-brasileiros, distribuídos por um vasto

território. Este projeto disciplinar era estipulado de acordo com as leis eclesiásticas previstas nas Constituições

Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707, organizadas por Dom Sebastião Da Vide. Este conjunto de livros,

em suma, firmou o Padroado Régio na América Portuguesa e, a partir dele, a Igreja se organizou de modo a

acompanhar a vida social, do nascimento até a morte, nas diversas Freguesias e Capelas, fundadas ao longo de

todo o século XVIII, no Rio Grande de São Pedro. Analisa, com base na documentação eclesiástica como livro

de pastorais e livros de batismos, a forma pela qual a Igreja tentava construir um discurso jurídico, em seu

contexto de expansão, capaz de ordenar socialmente as populações em estados de direito de acordo com as leis

eclesiásticas, as leis do reino de Portugal e com o direito costumeiro.

PALAVRAS CHAVE: Igreja Católica. Expansão. Disciplina.

ABSTRACT: This article aims to discuss the structuring and expansion of the Catholic Church in South

America with respect to the areas of the Portuguese Empire in the South known as the Bishop of Rio de Janeiro ,

Rio Grande future of St. Peter , in the eighteenth century the region . This expansion was given from a reform

project of the Catholic Church , conducted by the Bishop of Rio de Janeiro , which aimed to discipline the

behavior of various human types as Indians , slaves and Luso - Brazilian , spread over a vast territory of

according to the ecclesiastical laws laid down in the Constitutions of the First Archbishop of Bahia , 1707 ,

organized by Dom Sebastião Monteiro Da Vide. This set of books , in short , signed the Regal Patronage in

Portuguese America and , from it , the Church was organized in order to monitor the social life, from birth to

death , in several parishes and chapels , founded throughout the eighteenth century , in Rio Grande de São Pedro

. Analyzes , based on the book of ecclesiastical documents as pastoral and books of baptisms , the way in which

the Church was trying to build a legal discourse , in its context of expansion, socially able to sort the populations

in states of law according to the ecclesiastical laws the laws of the kingdom of Portugal and the customary law .

KEYWORDS: Catholic Church. Expansion. Discipline.

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Introdução

As terras que compreendiam a chamada América Meridional eram conhecidas dos

portugueses desde pelo menos o século XVII. A colonização lusa naqueles territórios teve

como estandarte a Colônia do Santíssimo Sacramento, fundada em 1680, às margens do rio da

Prata. Porém, a ocupação portuguesa foi se intensificar na região somente a partir de meados

do século XVIII.

Como se sabe, os territórios meridionais da América não estavam vazios, sendo

povoados por populações indígenas como guaranis e minuanos os quais participaram

ativamente do processo de povoamento de diversas localidades sob controle administrativo

lusitano. Isto se intensificou após o Tratado de Madrid (1750) quando Portugal e Espanha

negociaram territórios em suas fronteiras americanas. Assim, Portugal abriu mão da Colônia

do Sacramento, entregue ao domínio espanhol, para ficar com sete das 30 reduções de

guaranis pertencentes à Coroa Espanhola.

Após o tratado, a Coroa Portuguesa deu início a uma política mais acentuada de

povoamento dos territórios meridionais. Paulistas que saíram da Vila de São Vicente

desceram ao sul do continente para fundar novas freguesias, dando início a um movimento

migratório em direção à Laguna (SC) e depois Viamão (RS). Mais tarde, incentivados pela

política de ocupação, houve a migração de açorianos (KÜHN, 2006). A imigração açoriana

também ocorreu a territórios mais extremos como, por exemplo, a Vila de Rio Grande,

localizada mais ao sul, a qual teve início em 1737. Fundada a partir de um forte militar,

erigido sob o comando do Brigadeiro José da Silva Paes, a Vila também contou com

população indígena em sua origem (HAMEISTER, 2006).

Apesar da historiografia já ter se ocupado de compreender o processo de ocupação e

expansão dos domínios lusitanos na América Meridional, pouco se sabe sobre um dos

principais agentes responsáveis pelo acréscimo territorial lusitano na América do Sul. Neste

aspecto, a Igreja Católica ocupou papel importante na conquista e legitimação da

incorporação de novas faixas de terras aos domínios da Coroa Portuguesa. No entanto, sabe-

se muito pouco sobre a função desempenhada pela Igreja Católica durante a ocupação lusitana

nos territórios da fronteira meridional.

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Assim sendo, o objetivo deste artigo é apresentar algumas características em relação à

participação da Igreja no processo de povoamento dos domínios lusitanos da América

Meridional. A partir de fontes como os termos de abertura das localidades fundadas no Rio

Grande de São Pedro, durante o período colonial, e os livros das pastorais, identifica que a

Igreja Católica desempenhou papel fundamental tentando disciplinar comportamentos de uma

diversificada população a qual se distribuía genericamente em luso-brasileiros, índios,

escravos e libertos. As ações eclesiásticas que visavam enquadrar os sujeitos históricos em

torno da disciplina religiosa tinham por base as deliberações do sínodo baiano de 1707.

Sobre a direção do arcebispo da Bahia, Dom Sebastião Monteiro Da Vide, foram

organizadas as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, documento que dispunha

todo o conjunto de normas da Igreja no Brasil Colonial. Uma das disposições das

constituições baianas era a previsão da construção de Capelas para que se difundissem os

fundamentos do catolicismo nos mais remotos lugares da colonização lusitana.

Embora houvesse o incentivo da Igreja para esta expansão, como se verá no decorrer

deste artigo, a ramificação do poder eclesiástico na América Meridional, dependeu em boa

parte da ação dos moradores das distantes localidades que foram surgindo ao longo do

período colonial.

A estrutura da Igreja na fronteira meridional

Em relação à história da Igreja Católica na fronteira meridional, há uma interessante

obra intitulada Comentário Eclesiástico do Rio Grande de São Pedro desde 1737, organizado

pelo arcediago Vicente Zeferino Dias Lopes, datado de 1891. Segundo Arlindo Hubert

(1998), o arcediago era natural do Rio de Janeiro, nascido em 1818. Foi pároco de Viamão

entre 1843-1847 e vigário de Rio Pardo entre 1847-1851. Em um evidente esforço, digno de

um trabalho de fôlego, o arcediago assim se manifestou sobre sua obra:

Apesar das contrariedades que sofri, das dificuldades com que lutei, depois

de muitos anos e a custa de fadigas e perseverança felizmente terminei: estou

satisfeito. Sinto não poder completar este trabalho com os limites de cada

uma das paroquias. Com dificuldade imensa pude consegui-los, mas não me

animo a publicar pela irregularidade com que estão traçados. São tão

confusos, tão complicados que, por causa da frequente criação de novas

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paroquias sem necessidades, das continuadas anexações de territórios,

repetidas criações e supressões de distritos conforme sopra o vento do

partido dominante é difícil conhece-los e bem fixar (DIAS LOPES,

Vicente Zeferino, 1891, p. 6).

O desabafo do arcediago, embora apresentando pretenso tom hiperbólico, resume de

modo exemplar a expansão da Igreja ao chamado sul do bispado do Rio de Janeiro, atual Rio

Grande do Sul. Entre 1737, data da primeira Freguesia do Rio Grande de São Pedro, até 1822,

momento da independência do Brasil, foram criadas pelo menos 26 novas Freguesias e

Capelas em todo aquele território. Esta expansão aparentemente caótica se dava sob dois

aspectos principais; um militar e outro civil. Em boa medida, o avanço eclesiástico

acompanhou as campanhas militares luso-brasileiras pela fronteira meridional.

Dois bons exemplos, neste sentido, são as fundações das freguesias de Rio Grande, no

litoral sul, e Rio Pardo, localizada entre a serra geral e o litoral. Em Rio Grande, uma das

posições mais extremas do mundo atlântico português na América, a expansão ultramarina foi

acompanhada pela Igreja desde a fundação de uma fortaleza naquele lugar (1737), a qual

possuía uma capela que tinha por invocação Jesus Maria José. Tempos depois, seria fundada a

Paróquia de São Pedro, por decreto do bispo do Rio de Janeiro (DIAS LOPES, 1891).

Em Rio Pardo, de modo análogo à Rio Grande, também foi construído um forte o qual

servia de paiol às tropas portuguesas que faziam a demarcação da fronteira entre Portugal e

Espanha, estipulada pelo Tratado de Madrid (1750). Três anos depois, foi edificada uma

capela sob invocação de Jesus Maria José. No local, também houve a fundação de

aldeamentos indígenas compostos de população guarani, transladada das Missões Orientais

após a Guerra Guaranítica (1753-1756), distribuída em quatro aldeias.

Em 1769, os guaranis foram reunidos todos em um mesmo aldeamento, conhecido

como Aldeia de São Nicolau do Rio Pardo. Naquele aldeamento foi construída uma capela na

qual os índios realizavam todos os ritos católicos. Havia um capelão responsável pela

assistência espiritual dos guaranis até 1812. Depois disso, os índios ficaram aos cuidados

paroquiais do pároco da igreja matriz de Rio Pardo. Este aldeamento, fundado com base no

Diretório dos Índios de 1758, foi extinto por decreto provincial em 1860 (MELO, 2011).

A expansão luso-brasileira na fronteira meridional ainda acabaria por incidir

definitivamente sobre os povos missioneiros da ribeira do rio Uruguai em 1801, momento da

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anexação definitiva à Coroa Portuguesa. Depois disso, houve rápido avanço luso-brasileiro

sobre as terras indígenas. Muitos guaranis, por medo de represália dos espanhóis,

abandonaram os povos após 1801, principalmente os residentes nas estâncias, deixando-as

despovoadas, o que acabou favorecendo rapidamente a ocupação luso-brasileira (RIBEIRO,

2013).

No decorrer das primeiras décadas do século XIX, era possível se observar a formação

de diversas localidades, freguesias e capelas, das quais se estruturam muitos dos atuais

municípios da Campanha do Rio Grande do Sul, como foi o caso da cidade de Alegrete

(FARINATTI, 2010; MATHEUS, 2012). A expansão eclesiástica se apresentava

genericamente do seguinte modo: as terras recém-conquistadas eram distribuídas,

inicialmente, por sesmaria. Seus donatários, muitas vezes davam entrada a pedidos de

abertura de oratórios privados naqueles espaços.

Neles, havia sacramentos e outros ritos católicos, ministrados de modo esporádico por

algum reverendo que se deslocava até eles. Este foi o caso, por exemplo, do Oratório de Santa

Maria, criado num acampamento militar português o qual se encontrava na demarcação das

novas fronteiras entre Portugal e Espanha na América Meridional, definidas pelo Tratado de

Santo Ildefonso de 1777. O Acampamento de Santa Maria, local assim denominado à época,

recebia visitas anuais de um reverendo coadjutor entre 1797-1814, que partia da Freguesia de

São João da Cachoeira (atual município de Cachoeira do Sul) para ministrar os sacramentos

(RIBEIRO, 2013).

Aos arredores destes oratórios, muitas vezes se concentrava um pequeno núcleo

populacional onde os moradores decidiam requerer o direito de erigir capelas curadas. Em

1741, foi construída uma capela em uma estância dando origem à freguesia de Nossa Senhora

da Conceição de Viamão (atual município de Viamão). Anos depois, em 1757, outra capela

foi construída em um terreno doado por uma viúva. A capela teve por invocação Nosso

Senhor Bom Jesus do Triunfo (atual município de Triunfo).

Em outra fazenda, no ano de 1756, foi erigida outra capela em homenagem a Santo

Antonio dando início a um novo povoado o qual ficaria conhecido como Freguesia de Santo

Antonio da Patrulha (atual município de Santo Antônio da Patrulha). Mais ao sul, após a

invasão espanhola em Rio Grande (1763), moradores fugidos fixaram novo povoado na

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região chamada de Estreito. No local foi construída uma capela sob a invocação de Nossa

Senhora da Conceição do Estreito (hoje município de Estreito).

Em muitos casos, conforme demonstra Marcelo Matheus (2013), estes oratórios ou

capelas, ficavam a grandes distâncias das igrejas matriz o que culminava na divisão de

algumas freguesias. Em 1810, os moradores de Piratini exigiam, num requerimento, que a

localidade fosse elevada à categoria de Capela Curada. Para tanto, era preciso desmembrar-se

da sede que à época era a Freguesia de Rio Grande. Matheus mostra como foi complicado este

processo, pois dividir freguesias representava dividir fregueses, o que passava pela resistência

dos padres das igrejas sede.

O caso exemplificado por Matheus (2013), também ajuda a compreender a

importância que a presença dos padres adquiria nas terras da fronteira meridional. As capelas

eram providas de párocos os quais seriam os responsáveis pelo conforto espiritual de seus

fregueses. Esta política estava inscrita nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,

escritas com base no concílio tridentino (1545-1563), e previa que fossem construídas capelas

nos mais remotos lugares e cada uma delas deveria ter padres os quais seriam os responsáveis

pela expansão e manutenção do catolicismo.

Como demonstra Matheus, ter um padre próximo à comunidade era a grande

preocupação dos moradores de Piratini no início do século XIX. Os padres deveriam realizar

todos os sacramentos e registrar cada cerimônia em livros, como os de batismos, de crismas,

de matrimônios e de óbitos, conforme as orientações das Constituições baianas de 1707. O

que podemos observar, inicialmente, é que os padres cumpriam papel fundamental na

estruturação social destas localidades, através da atuação evangelizadora.

De modo geral, embora que esta importância não se reduza apenas ao quadro

espiritual, a presença da Igreja na fronteira meridional, além da ação dos padres, dependia de

algo muito mais elementar para se tornar possível. Fala-se, neste sentido, dos requerimentos

de moradores para construção de igrejas. Este procedimento foi característico da expansão

eclesiástica nos séculos XVIII, e princípios do XIX, como se pode notar pelo quadro abaixo:

Quadro “1”: Características da Expansão da Igreja no Rio Grande de São Pedro Nº Localidade Ano de criação Origem

1 Rio Grande 1737 Dentro de Fortificação

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2 Viamão 1747 Oratório em estância

3 Triunfo 1757 Oratório em estância

4 Rio Pardo 1759 Fortificação e aldeia indígena

5 Aldeia dos Anjos 1760 Aldeia indígena

6 Santo Antonio da Patrulha 1760 Capela numa guarda

7 Vacaria 1763 Construída pelos moradores

8 Estreito 1765 Construída por padres

9 Taquari 1765 Construída pelos moradores

10 Conceição do Arroio 1766 Capela em estância

11 Porto Alegre 1772 Capela em estância

12 Santo Amaro 1772 Capela num paiol

13 São Luiz de Mostardas 1773 Provisão eclesiástica

14 Piratini 1789 Construída pelos moradores

15 São José do Norte 1785 Dentro de Fortificação

16 Canguçu 1795 Construída pelos moradores

17 Jaguarão 1800 Construída pelos moradores

18 Santana do Rio dos Sinos 1804 Construída pelos moradores

19 Pelotas 1812 Construída pelos moradores

20 Herval 1812 Acampamento militar

21 Santa Maria 1814 Acampamento militar

22 São Gabriel 1815 Acampamento militar

23 Alegrete 1816 Acampamento militar

24 Camaquã 1817 Construída pelos moradores

25 São Borja 1816 Provisão eclesiástica

26 São José do Patrocínio 1821 Construída pelos moradores Fonte: Dados recolhidos de: DIAS LOPES, Vicente Zeferino. Comentário Eclesiástico do Rio Grande de São Pedro do Sul

desde 1737.

Como se vê, são múltiplos os exemplos sobre a fundação de capelas na conjuntura de

expansão do mundo atlântico português na América Meridional e a Igreja dependeu da ação

de moradores de diversas localidades para que isto acontecesse. Naquele contexto, a Igreja

teve que lidar com diversas realidades culturais impostas pela própria conjuntura da expansão

atlântica. Em muitas destas capelas, que depois se tornaram crescentes povoados e

municípios, o conjunto demográfico era formado por açorianos, índios missioneiros, escravos

africanos e crioulos, além de variada população de libertos. Era neste universo de expansão

territorial e demográfica que a Igreja tentava construir sua ação pedagógica sobre a vida social

dos moradores do sul do Bispado do Rio de Janeiro.

Conforme aponta Fabio Kühn (1996), a Igreja Católica tinha como base um projeto

reformador e disciplinar em sua agenda expansionista na fronteira meridional. Esta expansão,

no entanto, exigia a ampliação do aparato burocrático eclesiástico. Como se verá a seguir.

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As Varas Eclesiásticas: hierarquia e direito

As varas ou auditórios eclesiásticos eram uma espécie de foro onde se realizavam

deliberações acerca do direito canônico e eclesiástico. Em síntese, as questões referentes ao

direito canônico diziam respeito às atividades dos clérigos em relação a todas as suas

obrigações. O direito eclesiástico, por seu turno, orientava todas as obrigações da população

em geral em relação ao catolicismo. Questões como a obrigatoriedade do batismo e do

casamento dentro do matrimônio exemplificam tais deliberações.

A partir da segunda metade do século XVIII, foram criadas diversas varas eclesiásticas

como as de: Viamão, em 1756; Triunfo, em 1761; Vacaria, em 1766; Rio Pardo, em 1771;

Rio Grande, em 1779; Estreito, em 1783 e Porto Alegre, em 1785; Conceição do Arroio, em

1803; Cachoeira, em 1810; São Luiz Gonzaga, nas Missões, 1811; Piratini, em 1815; São

Borja, em 1819 e Alegrete, em 1822 (DIAS LOPEZ, 1891). Todas estas criadas, como se

pode notar, no período colonial. A lista seria mais extensa se listássemos aquelas criadas no

período imperial.

Através dos auditórios eclesiásticos, a Igreja tentava estabelecer seu poder

evangelizador por um vasto território com população diversa. Estas comarcas deliberavam

sobre a vida religiosa de todos os moradores do espaço fronteiriço a partir das Constituições

do Arcebispado da Bahia. Em cada comarca havia um vigário o qual deveria garantir que as

determinações baianas vigorassem no Rio Grande de São Pedro através da disseminação das

varas eclesiásticas e de suas diversas paroquias.

Os vigários recebiam orientações, chamadas pastorais, que ajudavam a regular o

exercício da fé católica. Estas pastorais, orientações escritas em forma de ofícios, vinham do

Bispado do Rio de Janeiro, contendo orientações de ordem diversa. Muitas delas referentes

aos impedimentos do matrimônio. Pelas Constituições da Bahia, por exemplo, os nubentes,

para casar sem impedimentos, deveriam ter 14 anos o homem e 12 anos a mulher, não

podendo eles obrigatoriamente ter parentesco até o quarto grau de consanguinidade (DA

VIDE, 1707, título LXIV, § 267).

Entretanto, estas determinações acabavam por ser frequentemente tencionadas por

comportamentos distantes da norma desejada. Em 1764, a freguesia de Rio Pardo recebeu

uma pastoral do Bispado do Rio de Janeiro, na qual havia a dispensa do impedimento ao

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matrimônio aos índios guaranis, “vindos das Missões e de outras partes”, para se casar com

“pardos e os naturais da terra”, a partir do segundo grau de parentesco.1 Anos mais tarde, em

1797, a vara eclesiástica de Porto Alegre recebeu 19 novas faculdades para gestar a doutrina

católica, expedidas pelo Bispo do Rio de Janeiro. Nelas, havia uma série de dispensas à

realização do matrimônio. Aqui, destaca-se o conteúdo da quarta faculdade a qual

recomendava:

Dispensar na mesma forma no 3º e 4º de consanguinidade ou afinidade

simples ou misto com os que tiverem casado com ignorância desse

impedimento com pessoas que se tiverem convertido da heresia, ou

infelicidade para a fé católica: como verdadeiramente índios poderá

também dispensar no segundo grau dos mesmos parentescos isto

somente havendo respeito somente para os matrimônios pretéritos, e nunca

para os futuros [...]2 (grifos nossos)

Fica evidente a dificuldade encontrada pela Igreja em sua ação disciplinar sobre o

matrimônio. Muito provavelmente os padres não conseguiam cumprir integralmente as

determinações baianas, de 1707, quando orientava “a cada um dos Párocos, ou Capelães, sob

pena de mil réis, a leiam ao povo á estação das Missas Conventuais duas vezes no ano” (DA

VIDE, 1707, título LXVII, § 284). Esta medida, muito provavelmente, tentava corrigir o

problema referente às uniões consensuais entre pessoas que desconheciam ou que ignoravam

os impedimentos do matrimônio, tarefa a qual ficava a cargo dos padres em esclarecer.

Cabe ressaltar que no Título LXII das Constituições, há informações a respeito dos

“fins para que foi instituído” o sacramento do matrimônio. Segundo as resoluções do sínodo

baiano:

Foi o Matrimonio ordenado principalmente para três fins, são três bens, que

nele se encenam. O primeiro é o da propagação humana, ordenada para o

culto, e honra de Deus. O segundo é a fé, e lealdade, que os casados devem

guardar mutuamente. O terceiro é o da inseparabilidade dos mesmos

casados, significativa da união de Christo Senhor nosso com a Igreja

Calholica. Além destes fins é também remédio da concupiscência [...]

(DA VIDE, 1707, título LXII, §206) Grifos nossos.

1 Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. Livro das Pastorais da Freguesia de Rio Pardo.

Livro II, p. 4v. 2 Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. Livro das Pastorais da Freguesia de Porto Alegre.

Livro II, p. 48.

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Provavelmente, a Igreja, naquele momento, estava combatendo as uniões consensuais

em toda a colônia; ou seja, a concupiscência era um problema bem conhecido e que exigia

combate frontal. Por outro lado, as uniões fora do matrimônio poderiam se dar em proporções

maiores do que poderíamos dimensionar atualmente. Este fato poderia ter direcionado as

ações eclesiásticas ao combate de outras formas de casamento que não fosse a matrimonial,

impondo, a partir disso, uma política de difusão deste sacramento.

Igualmente, podem ter ocorrido muitos matrimônios em situação de impedimento

referente à consanguinidade e a Igreja, na tentativa de difundir o sacramento e homogeneizar

os comportamentos maritais, acabou aceitando a modificação de suas próprias diretivas.

Conforme as dispensas enviadas a Porto Alegre, em 1797, elas diziam “respeito somente para

os matrimônios pretéritos, e nunca para os futuros”. A dispensa foi dada para que os padres

ignorassem as condições de impedimento; digam-se, casamentos entre parentes

consanguíneos. A ocorrência destas uniões impulsionou a política eclesiástica de ampliação

do matrimônio, mesmo que para isso fosse necessário infringir as próprias leis eclesiásticas.

Muito provavelmente, isso foi provocado pelo variado universo sócio-cultural ao qual

a Igreja tentava homogeneizar, disciplinar e ordenar. Estas dissonâncias entre normas e

práticas, para além de parecer incapacidade eclesiástica em executar seu projeto reformador,

revela o perfeito reconhecimento que os vigários tinham da complexa diversidade humana no

mundo atlântico de conquista portuguesa. Embora que tais medidas possam parecer

incoerência da Igreja em tentar ordenar comportamentos, desordenando suas próprias

diretrizes, foi a maneira encontrada para tentar disciplinar os comportamentos.

O relativo êxito do projeto reformador, neste sentido, passava também por uma

questão jurídica elementar. Isto fica latente no reconhecimento “desigual” dos impedimentos

em relação ao matrimônio. Para os índios, a liberação do impedimento ao matrimônio a partir

do segundo grau de parentesco os colocava em vantagem em relação aos demais. Esta

medida, de um modo ou de outro, alterou o direito eclesiástico, devido aos índios que,

possivelmente, realizavam casamentos entre parentes consanguíneos com mais frequência do

que os não índios. Tal prática poderia fazer parte do universo sócio-cultural indígena e, diante

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disso, a Igreja decidiu tencionar suas normas na tentativa de disseminar o casamento via

matrimônio entre eles.

Esta “deformação” das normas da Igreja à presença indígena acabou constituindo um

espaço de direito aos índios, qual seja: o de poder casar com seus parentes consanguíneos.

Esta tensão, evidentemente, surgiu da força com que os índios ainda mantinham seus

costumes “tradicionais” e da negociação da Igreja em tentar impor-lhes outra lógica. O espaço

de direito e negociação também partia do reconhecimento que a Igreja tinha sobre os hábitos e

costumes dos diferentes grupos humanos que habitavam os territórios de ocupação

portuguesa, entre os quais se encontravam os índios guaranis e outras parcialidades.

O complexo processo de alteridade também orientou a criação de um discurso

classificatório o qual tinha entre os seus muitos objetivos, estabelecer diferenças a partir de

critérios hierárquicos. Neste sentido, cabe destacar que, a série de pastorais que partia do

Bispado do Rio de Janeiro às terras do sul de sua jurisdição seguia as determinações do

Arcebispado da Bahia que, por sua vez, seguia as disposições do concílio tridentino e do

direito eclesiástico. Contudo, as constituições do Arcebispado baiano, não só seguiam os

ditames canônicos como também as ordenações e leis do reino de Portugal.

No livro das Constituições Primeiras, há uma série de licenças sem as quais o texto

canônico não teria validade. Entre as licenças há o protesto do procurador da Coroa

Portuguesa o qual pronunciava:

Estas constituições estão doutissimamente feitas, e contem proveitosas

regras, e preceitos para a disciplina eclesiástica, e se observarem, como é

razão que seja, pode aquele Arcebispado (da Bahia) escusar outros Cânones,

ou Direito Canônico quanto à disciplina. Mas sem embargo disto protesto,

que não consinto, nem aprovo nenhuma determinação que nessas

Constituições se ache ofensiva da Jurisdição do Reino, assim por direito

comum, ordenações e concordatas do Reino, e ainda por costume

legítimo, para que sempre fique salvo e ileso o direito da Coroa, assim

como era, e estava antes destas Constituições; e assim requeiro, que este

meu Protesto se mande juntamente imprimir com as Constituições, e se faça

dele menção na licença que se der.3 (grifos nossos)

Fica evidente que as Constituições do Arcebispado da Bahia e seu conjunto de

normas, estabelecidas a partir do direito canônico e eclesiástico, estavam obrigatoriamente

3 Da Vide, 1707, Dispensa do Procurador da Coroa, p. sem número.

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submetidas às leis da Coroa. O Procurador Real admitia o fato das leis canônicas poderem ser

tensionadas a favor da disciplina eclesiástica. Isto, contudo, poderia ser feito sem infligir as

leis do reino e o direito costumeiro. Ao garantir a dispensa ao matrimônio, em relação aos

índios, ficaria garantido o exercício do direito consuetudinário. Exemplo disso, a dispensa

geral ao matrimônio dos índios, a partir do segundo grau de parentesco e a partir do terceiro e

quarto grau aos demais fiéis. Em nome de um bem maior, ou seja, difundir o sacramento do

matrimônio, a Igreja no mundo atlântico aceitou flexibilizar suas normas.

Neste aspecto, nota-se que a relação do Estado Português com a Igreja Católica, nos

territórios em processo de conquista no mundo atlântico, tornava-se tênue ao passo de que, se

os clérigos seguissem por completo as determinações eclesiásticas, poderiam colocar em risco

o projeto expansionista lusitano. Podemos supor que, se a Igreja tivesse mantido as restrições

ao matrimônio, poderia acarretar inevitavelmente a perda de vassalos da Coroa como, por

exemplo, os índios guaranis.

A liberação do impedimento ao casamento a partir do segundo grau de parentesco aos

índios, de Rio Pardo e Porto Alegre, por exemplo, também favorece ao entendimento do

modo que a Igreja debatia as questões de alteridade. A percepção do “outro” estava

diretamente relacionada com a compreensão acerca dos diferentes estados jurídicos

estabelecidos em uma estrutura social equitativa, característica do Antigo Regime.

Se a população em geral podia casar somente a partir do terceiro e quarto grau, os

índios, por se turno, poderiam fazê-lo a partir do segundo. Observa-se com isso, que o estado

jurídico funcionava como um espaço social no qual o Estado e a Igreja inscreviam os sujeitos

de modo hierárquico. A hierarquia se estabelecia através do gradiente de ação permitida a

cada um destes estados pelas regras do direito comum, eclesiástico e das leis do reino.

A construção da alteridade a partir do “outro”, como se pode perceber, se

fundamentava em disciplinar juridicamente todos os sujeitos, tentando submetê-los a

restrições ou garantindo-lhes privilégios, distribuídos de modo equitativo em cada um dos

estados jurídicos. Estes estados, por sua vez, não eram meras abstrações da realidade social.

Era um conjunto de pertencimentos, reconhecimentos e indicações simbólicas que permitiam

localizar cada um em seu estado. Este seria, por exemplo, os sentidos do uso das cores como

destaca Manuel Hespanha (2010). O mundo social produzia sentidos, cores e experimentações

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diversas a ponto de ser representado de diferentes formas. A palavra escrita não deixa de ser

uma delas; aprender e representar graficamente o mundo social.

O uso de termos e expressões empregados para diferenciar cada sujeito era, antes de

tudo, um modo de representação gráfica na qual se expressava a experimentação do mundo

social e a forma com que era percebido. No mundo atlântico português – diga-se também

indígena e africano –, a forma mais elementar de se representar a realidade observada e

vivida, a partir da alteridade e da hierarquia social, era a se referir à posição jurídica inscrita a

cada sujeito. As classificações humanas utilizadas pela Igreja, portanto, seguiam esta

orientação a qual era compartilhada e consentida na amplitude das sociedades atlânticas.

A Igreja Católica, neste sentido, marcou papel de extrema importância na vida dos

homens e mulheres que viveram nas terras ao sul do Bispado do Rio de Janeiro, território

denominado Rio Grande de São Pedro. Por meio de seus clérigos, a Igreja esteve presente no

cotidiano da população tentando disciplinar os comportamentos individuais ao entorno do

receituário canônico o qual buscava expandir os sacramentos e homogeneizar a fé católica.

Este empreendimento obrigou a Igreja em se fazer presente de modo “constante” durante toda

a vida de um sujeito.

Desde o nascimento, o acompanhamento espiritual, que pode ser traduzido como

tentativa de exercer controle e disciplina, os clérigos se faziam presentes na vida social

através dos sacramentos como o batismo, a crisma, o matrimônio. Durante este

acompanhamento, os clérigos indicavam necessariamente o estado jurídico dos seus

fregueses. Inscrever cada um deles em posições jurídicas e hierárquicas correspondia dar

significado às representações gráficas, neste caso a palavra escrita (classificações),

empregadas para localizar socialmente cada sujeito.

Classificar significava reconhecer o estado jurídico, bem como o espaço de direitos e

deveres de cada estado. Dito de outro modo, classificar era o mesmo que representar por meio

de expressões escritas, qual era a margem de autonomia pertencente a cada estado jurídico.

Por isso, nos termos de abertura dos livros de batismo, casamento e óbito sempre encontramos

classificações como branco, livre e escravo. Assim, temos o quadro que segue em seguida:

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Quadro “2”: Natureza dos Livros de Batismos Segundo seus Termos de Abertura

(Rio Grande de São Pedro, 1738-1822)

Freguesia Ano Livro Assinado pelo Vigário Natureza do Livro

Rio Grande 1738 1738-1755 Manuel Francisco da Silva sem distinção

Viamão 1747 1747-? Ilegível livres e escravos

Rio Grande 1755 1755-1757 Manuel Francisco da Silva sem distinção

Rio Grande 1757 1757-1759 Manuel Francisco da Silva sem distinção

Triunfo 1757 1757-1882 Tomaz Marques Brancos

Triunfo 1757 1757-1772 Tomaz Marques índios, pardos e pretos

Rio Pardo 1758 1758-1761 Francisco Bernardes Índios

Rio Grande 1759 1759-1763 Manuel Francisco da Silva sem distinção

Viamão 1765 1765-1782 Tomaz Marques sem distinção

Porto Alegre 1772 1772-1797 Ilegível livres e escravos

Rio Pardo 1772 1772-1790 Manuel do Carmo Índios

Mostardas 1773 1773-1804 Manuel Francisco da Silva brancos, livres e escravos

Rio Pardo 1774 1774-1780 Manuel do Carmo sem distinção

Rio Grande 1776 1776-1879 Manuel Francisco da Silva sem distinção

Rio Grande 1776 1776-1806 Luiz de Medeiros Correia Escravos

Cachoeira 1779 1779-1790 Bento Cortes de Toledo brancos e libertos

Triunfo 1782 1782-1819 Vicente Jose da Gama Leal indios, pardos e pretos

Viamão 1782 1782-? Luiz de Medeiros Correia sem distinção

Rio Pardo 1783 1783-1789 Vicente Jose da Gama Leal Brancos

Triunfo 1786 1786-1798 Agostinho Jose Mendes dos Reis Brancos

Rio Pardo 1790 1790-1800 Agostinho Jose Mendes dos Reis brancos e libertos

Porto Alegre 1792 1792-1799 Jose Inácio dos Santos Livres

Rio Grande 1795 1795-1800 Agostinho Jose Mendes dos Reis brancos, livres e escravos

Porto Alegre 1797 1797-1820 Jose Inácio dos Santos Escravos

Triunfo 1798 1798-1801 João de Almeida Pereira sem distinção

Rio Pardo 1799 1800-1808 Bento Cortes de Toledo brancos e libertos

Viamão 1799 1799-? Bento Cortes de Toledo Brancos

Rio Pardo 1808 1808-1814 Fernando Jose Mascarenhas Castelo Branco todas as pessoas

Porto Alegre 1809 1809-1815 Jose Inácio dos Santos Livres

Rio Grande 1810 1810-1811 Francisco Inácio da Silveira brancos e libertos

Santa Maria 1814 1814-1822 Inácio Francisco dos Santos brancos , livres e cativos

Mostardas 1814 ? João de Sousa Escravos

Porto Alegre 1815 1815-1820 Antonio Francisco da Silveira Livres

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Rio Grande 1817 1817-1830 Francisco Inácio da Silveira brancos, livres e cativos

Mostardas 1818 1818-1840 Francisco Inácio da Silveira sem distinção

Mostardas 1818 1818-1872 Francisco Inácio da Silveira Escravos

Porto Alegre 1819 1820-1828 Antonio Francisco da Silveira Livres

Porto Alegre 1820 1820-1828 Antonio Francisco da Silveira Livres

Triunfo 1820 1820-1849 Antonio Pereira da Soledade escravos pretos ou pardos

Viamão 1820 1820-? Ilegível Livres

Rio Grande 1821 1821-1824 Francisco Inácio da Silveira Escravos

Santa Maria 1822 1822-1833 Inácio Francisco dos Santos brancos, livres e escravos

Fonte: Termos de Abertura. Livros de Batismos. Cachoeira, Mostardas, Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, Santa Maria,

Trunfo, Viamão.4

O quadro acima foi organizado em ordem cronológica para favorecer a compreensão

sobre o emprego das classificações ao longo do tempo. Ele nos fornece, pela repetição de

informações, uma imagem mais ou menos precisa sobre o exercício classificatório utilizado

pela Igreja Católica em territórios fronteiriços. Um território, em suma, ocupado por índios

guaranis derrotados na Guerra Guaranítica (1753-1756), transladados das Missões, que

acabaram se espalhando por diversas freguesias, além de portugueses e africanos, libertos ou

escravos. Esta geografia humana foi “topografada” pela Igreja como brancos, índios e

escravos.

É interessante notar que esta forma de classificar foi a mais genérica, sendo utilizada

por vigários distintos e presentes em lugares diferentes. A atividade classificatória, portanto,

não foi um mero desvio retórico de algum padre perdido em alguma tosca freguesia do Rio

Grande de São Pedro. Diferenciar tendo por princípio o estado jurídico foi a via de regra

estipulada para classificar e diferenciar as populações dos territórios ao sul do Bispado do Rio

de Janeiro. As reiteradas vezes com que se encontram classificações como brancos, livres e

cativos, empregadas por homens distintos, separados por léguas de distância, demonstra que o

reconhecimento destes estados estava previsto no direito canônico e no direito costumeiro.

A identificação da condição jurídica possuía tamanha importância que houve, até

mesmo, a separação dos batismos em livros específicos para cada estado jurídico (branco,

4 Com exceção de Santa Maria e Cachoeira, todos os termos de abertura foram consultados no website

https://familysearch.org/search/image/index#uri=https://familysearch.org/records/collection/2177295/waypoints

acessado em 12/12/2013. Os termos de abertura dos livros de batismos das duas primeiras localidades foram

fotografados em seus respectivos arquivos diocesanos.

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livre, escravo). Estas informações nos ajudam a compreender um dos possíveis sentidos da

expansionista e do projeto disciplinar da Igreja Católica no mundo atlântico que, neste caso,

residia em classificar e enquadrar os sujeitos históricos em categorias jurídicas reconhecidas.

Como demonstra o quadro esboçado acima, os assentos batismais eram organizados de

acordo com os estados jurídicos. Entretanto, algumas perguntas se fazem pertinentes como,

por exemplo: qual a importância em se discriminar o estado jurídico? Se nas Constituições

Primeiras do Arcebispado da Bahia não havia nenhuma disposição em relação a isso, que

diferença a posição jurídica fazia na hora de se realizar um batismo ou um casamento? As leis

canônicas obrigavam aos padres batizar a todos, independente de ser livre ou escravo. Logo,

em tese, não haveria o porquê de se assentar a condição jurídica nos livros de batizado.

Em suma, branco, livre e escravo eram expressões de formas de hierarquização

devidamente ordenadas em espaços de direito equitativo. Neste aspecto, os clérigos,

empregados na administração dos ritos católicos, espalhados pelo Rio Grande de São Pedro,

foram também agentes construtores e formadores de hierarquias sociais. Ao se utilizar de

categorias normativas como tais classificações, estavam concomitantemente, reproduzindo

um modelo de sociedade hierarquizada organizada em espaços equitativos de direito.

O batismo, para além de ser uma porta de entrada para cristandade, era igualmente a

porta de entrada para sociedade colonial, pois no momento do batismo os sujeitos históricos

recebiam sua primeira classificação jurídica a qual ajudava a posicioná-los de modo inicial na

sociedade.

Considerações Finais

A Igreja Católica esteve presente de forma atuante durante o processo de expansão

portuguesa na fronteira meridional. A incorporação de novos territórios representou, além de

domínio militar e do povoamento, também um projeto de “conquista espiritual” da fronteira,

inscrita num processo que se deu para além das expectativas da própria Igreja. Foram os

moradores dos mais remotos confins da fronteira os responsáveis por boa parte da ramificação

do clero pelo sul do Bispado do Rio de Janeiro, atual estado do Rio Grande do Sul.

O povoamento civil também levou consigo o catolicismo o que obrigou a Igreja a se

expandir na forma de Capelas, Freguesias e Auditórios Eclesiásticos. Embora havendo

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incentivo à expansão, previsto nas leis canônicas, estipuladas pelas Constituições Primeiras

do Arcebispado da Bahia, foram os requerimentos de moradores espalhados pelo território

sulino do Bispado do Rio, exigindo a presença de clérigos para o conforto espiritual, que

levou a Igreja a se fazer presente no Rio Grande de São Pedro.

Foi através desta situação que se tornou possível a Igreja construir seu projeto

disciplinar em relação aos comportamentos de uma população diversificada e heterogênea,

sobretudo no que diz respeito ao matrimônio. Evidentemente, no espaço deste artigo, não foi

demonstrado se a Igreja atingiu com êxito suas metas disciplinares. Entretanto, compreender

primeiramente o processo de construção do projeto reformador da Igreja parece ser o

exercício fundamental e, por sua vez, elementar para análise das políticas eclesiásticas para

fronteira meridional.

Um dos pilares desta política foi organizar seus livros de batismos a partir de

categorias jurídicas como branco, índio e escravo. Desta forma, era possível à Igreja

acompanhar a vida dos sujeitos históricos desde o nascimento, passando pelo sacramento do

batismo até a hora da morte. Batizar significava, além de inserir na vida cristã, hierarquizar a

partir do nascimento. O batizado também era o momento no qual se inscrevia a primeira

posição jurídica no mundo atlântico de conquista portuguesa ao passo que esta inscrição era

pautada por uma divisão jurídica e equitativa da sociedade colonial.

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