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19001-75518-1-PB
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Oficina do Historiador, Porto
Alegre, EDIPUCRS, Suplemento
especial - eISSN 21783738 – I
EPHIS/PUCRS - 27 a 29.05.2014,
p.1557-1574.
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“AO SUL DO BISPADO DO RIO DE JANEIRO”: NOTAS SOBRE A
EXPANSÃO DA IGREJA CATÓLICA NA AMÉRICA MERIDIONAL
(RIO GRANDE DE SÃO PEDRO, SÉCULO XVIII)
“SOUTH OF RIO DE JANEIRO BISHOPRIC ": NOTES ON THE
EXPANSION OF THE CATHOLIC CHURCH IN SOUTH AMERICA
(RIO GRANDE OF SAN PEDRO, XVIII CENTURY)
Max Roberto Pereira Ribeiro
Doutorando em História – UNISINOS
RESUMO: Este artigo tem por finalidade apresentar a estruturação e expansão da Igreja Católica na América
Meridional no que concerne aos domínios do Império Português na região conhecida como Sul do Bispado do
Rio de Janeiro, futuro Rio Grande de São Pedro, no século XVIII. Esta expansão se dava a partir de um projeto
reformador da Igreja Católica, levado a cabo pelo Bispado do Rio de Janeiro, o qual visava disciplinar os
comportamentos de variados tipos humanos como índios, escravos e luso-brasileiros, distribuídos por um vasto
território. Este projeto disciplinar era estipulado de acordo com as leis eclesiásticas previstas nas Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707, organizadas por Dom Sebastião Da Vide. Este conjunto de livros,
em suma, firmou o Padroado Régio na América Portuguesa e, a partir dele, a Igreja se organizou de modo a
acompanhar a vida social, do nascimento até a morte, nas diversas Freguesias e Capelas, fundadas ao longo de
todo o século XVIII, no Rio Grande de São Pedro. Analisa, com base na documentação eclesiástica como livro
de pastorais e livros de batismos, a forma pela qual a Igreja tentava construir um discurso jurídico, em seu
contexto de expansão, capaz de ordenar socialmente as populações em estados de direito de acordo com as leis
eclesiásticas, as leis do reino de Portugal e com o direito costumeiro.
PALAVRAS CHAVE: Igreja Católica. Expansão. Disciplina.
ABSTRACT: This article aims to discuss the structuring and expansion of the Catholic Church in South
America with respect to the areas of the Portuguese Empire in the South known as the Bishop of Rio de Janeiro ,
Rio Grande future of St. Peter , in the eighteenth century the region . This expansion was given from a reform
project of the Catholic Church , conducted by the Bishop of Rio de Janeiro , which aimed to discipline the
behavior of various human types as Indians , slaves and Luso - Brazilian , spread over a vast territory of
according to the ecclesiastical laws laid down in the Constitutions of the First Archbishop of Bahia , 1707 ,
organized by Dom Sebastião Monteiro Da Vide. This set of books , in short , signed the Regal Patronage in
Portuguese America and , from it , the Church was organized in order to monitor the social life, from birth to
death , in several parishes and chapels , founded throughout the eighteenth century , in Rio Grande de São Pedro
. Analyzes , based on the book of ecclesiastical documents as pastoral and books of baptisms , the way in which
the Church was trying to build a legal discourse , in its context of expansion, socially able to sort the populations
in states of law according to the ecclesiastical laws the laws of the kingdom of Portugal and the customary law .
KEYWORDS: Catholic Church. Expansion. Discipline.
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Introdução
As terras que compreendiam a chamada América Meridional eram conhecidas dos
portugueses desde pelo menos o século XVII. A colonização lusa naqueles territórios teve
como estandarte a Colônia do Santíssimo Sacramento, fundada em 1680, às margens do rio da
Prata. Porém, a ocupação portuguesa foi se intensificar na região somente a partir de meados
do século XVIII.
Como se sabe, os territórios meridionais da América não estavam vazios, sendo
povoados por populações indígenas como guaranis e minuanos os quais participaram
ativamente do processo de povoamento de diversas localidades sob controle administrativo
lusitano. Isto se intensificou após o Tratado de Madrid (1750) quando Portugal e Espanha
negociaram territórios em suas fronteiras americanas. Assim, Portugal abriu mão da Colônia
do Sacramento, entregue ao domínio espanhol, para ficar com sete das 30 reduções de
guaranis pertencentes à Coroa Espanhola.
Após o tratado, a Coroa Portuguesa deu início a uma política mais acentuada de
povoamento dos territórios meridionais. Paulistas que saíram da Vila de São Vicente
desceram ao sul do continente para fundar novas freguesias, dando início a um movimento
migratório em direção à Laguna (SC) e depois Viamão (RS). Mais tarde, incentivados pela
política de ocupação, houve a migração de açorianos (KÜHN, 2006). A imigração açoriana
também ocorreu a territórios mais extremos como, por exemplo, a Vila de Rio Grande,
localizada mais ao sul, a qual teve início em 1737. Fundada a partir de um forte militar,
erigido sob o comando do Brigadeiro José da Silva Paes, a Vila também contou com
população indígena em sua origem (HAMEISTER, 2006).
Apesar da historiografia já ter se ocupado de compreender o processo de ocupação e
expansão dos domínios lusitanos na América Meridional, pouco se sabe sobre um dos
principais agentes responsáveis pelo acréscimo territorial lusitano na América do Sul. Neste
aspecto, a Igreja Católica ocupou papel importante na conquista e legitimação da
incorporação de novas faixas de terras aos domínios da Coroa Portuguesa. No entanto, sabe-
se muito pouco sobre a função desempenhada pela Igreja Católica durante a ocupação lusitana
nos territórios da fronteira meridional.
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Assim sendo, o objetivo deste artigo é apresentar algumas características em relação à
participação da Igreja no processo de povoamento dos domínios lusitanos da América
Meridional. A partir de fontes como os termos de abertura das localidades fundadas no Rio
Grande de São Pedro, durante o período colonial, e os livros das pastorais, identifica que a
Igreja Católica desempenhou papel fundamental tentando disciplinar comportamentos de uma
diversificada população a qual se distribuía genericamente em luso-brasileiros, índios,
escravos e libertos. As ações eclesiásticas que visavam enquadrar os sujeitos históricos em
torno da disciplina religiosa tinham por base as deliberações do sínodo baiano de 1707.
Sobre a direção do arcebispo da Bahia, Dom Sebastião Monteiro Da Vide, foram
organizadas as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, documento que dispunha
todo o conjunto de normas da Igreja no Brasil Colonial. Uma das disposições das
constituições baianas era a previsão da construção de Capelas para que se difundissem os
fundamentos do catolicismo nos mais remotos lugares da colonização lusitana.
Embora houvesse o incentivo da Igreja para esta expansão, como se verá no decorrer
deste artigo, a ramificação do poder eclesiástico na América Meridional, dependeu em boa
parte da ação dos moradores das distantes localidades que foram surgindo ao longo do
período colonial.
A estrutura da Igreja na fronteira meridional
Em relação à história da Igreja Católica na fronteira meridional, há uma interessante
obra intitulada Comentário Eclesiástico do Rio Grande de São Pedro desde 1737, organizado
pelo arcediago Vicente Zeferino Dias Lopes, datado de 1891. Segundo Arlindo Hubert
(1998), o arcediago era natural do Rio de Janeiro, nascido em 1818. Foi pároco de Viamão
entre 1843-1847 e vigário de Rio Pardo entre 1847-1851. Em um evidente esforço, digno de
um trabalho de fôlego, o arcediago assim se manifestou sobre sua obra:
Apesar das contrariedades que sofri, das dificuldades com que lutei, depois
de muitos anos e a custa de fadigas e perseverança felizmente terminei: estou
satisfeito. Sinto não poder completar este trabalho com os limites de cada
uma das paroquias. Com dificuldade imensa pude consegui-los, mas não me
animo a publicar pela irregularidade com que estão traçados. São tão
confusos, tão complicados que, por causa da frequente criação de novas
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paroquias sem necessidades, das continuadas anexações de territórios,
repetidas criações e supressões de distritos conforme sopra o vento do
partido dominante é difícil conhece-los e bem fixar (DIAS LOPES,
Vicente Zeferino, 1891, p. 6).
O desabafo do arcediago, embora apresentando pretenso tom hiperbólico, resume de
modo exemplar a expansão da Igreja ao chamado sul do bispado do Rio de Janeiro, atual Rio
Grande do Sul. Entre 1737, data da primeira Freguesia do Rio Grande de São Pedro, até 1822,
momento da independência do Brasil, foram criadas pelo menos 26 novas Freguesias e
Capelas em todo aquele território. Esta expansão aparentemente caótica se dava sob dois
aspectos principais; um militar e outro civil. Em boa medida, o avanço eclesiástico
acompanhou as campanhas militares luso-brasileiras pela fronteira meridional.
Dois bons exemplos, neste sentido, são as fundações das freguesias de Rio Grande, no
litoral sul, e Rio Pardo, localizada entre a serra geral e o litoral. Em Rio Grande, uma das
posições mais extremas do mundo atlântico português na América, a expansão ultramarina foi
acompanhada pela Igreja desde a fundação de uma fortaleza naquele lugar (1737), a qual
possuía uma capela que tinha por invocação Jesus Maria José. Tempos depois, seria fundada a
Paróquia de São Pedro, por decreto do bispo do Rio de Janeiro (DIAS LOPES, 1891).
Em Rio Pardo, de modo análogo à Rio Grande, também foi construído um forte o qual
servia de paiol às tropas portuguesas que faziam a demarcação da fronteira entre Portugal e
Espanha, estipulada pelo Tratado de Madrid (1750). Três anos depois, foi edificada uma
capela sob invocação de Jesus Maria José. No local, também houve a fundação de
aldeamentos indígenas compostos de população guarani, transladada das Missões Orientais
após a Guerra Guaranítica (1753-1756), distribuída em quatro aldeias.
Em 1769, os guaranis foram reunidos todos em um mesmo aldeamento, conhecido
como Aldeia de São Nicolau do Rio Pardo. Naquele aldeamento foi construída uma capela na
qual os índios realizavam todos os ritos católicos. Havia um capelão responsável pela
assistência espiritual dos guaranis até 1812. Depois disso, os índios ficaram aos cuidados
paroquiais do pároco da igreja matriz de Rio Pardo. Este aldeamento, fundado com base no
Diretório dos Índios de 1758, foi extinto por decreto provincial em 1860 (MELO, 2011).
A expansão luso-brasileira na fronteira meridional ainda acabaria por incidir
definitivamente sobre os povos missioneiros da ribeira do rio Uruguai em 1801, momento da
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anexação definitiva à Coroa Portuguesa. Depois disso, houve rápido avanço luso-brasileiro
sobre as terras indígenas. Muitos guaranis, por medo de represália dos espanhóis,
abandonaram os povos após 1801, principalmente os residentes nas estâncias, deixando-as
despovoadas, o que acabou favorecendo rapidamente a ocupação luso-brasileira (RIBEIRO,
2013).
No decorrer das primeiras décadas do século XIX, era possível se observar a formação
de diversas localidades, freguesias e capelas, das quais se estruturam muitos dos atuais
municípios da Campanha do Rio Grande do Sul, como foi o caso da cidade de Alegrete
(FARINATTI, 2010; MATHEUS, 2012). A expansão eclesiástica se apresentava
genericamente do seguinte modo: as terras recém-conquistadas eram distribuídas,
inicialmente, por sesmaria. Seus donatários, muitas vezes davam entrada a pedidos de
abertura de oratórios privados naqueles espaços.
Neles, havia sacramentos e outros ritos católicos, ministrados de modo esporádico por
algum reverendo que se deslocava até eles. Este foi o caso, por exemplo, do Oratório de Santa
Maria, criado num acampamento militar português o qual se encontrava na demarcação das
novas fronteiras entre Portugal e Espanha na América Meridional, definidas pelo Tratado de
Santo Ildefonso de 1777. O Acampamento de Santa Maria, local assim denominado à época,
recebia visitas anuais de um reverendo coadjutor entre 1797-1814, que partia da Freguesia de
São João da Cachoeira (atual município de Cachoeira do Sul) para ministrar os sacramentos
(RIBEIRO, 2013).
Aos arredores destes oratórios, muitas vezes se concentrava um pequeno núcleo
populacional onde os moradores decidiam requerer o direito de erigir capelas curadas. Em
1741, foi construída uma capela em uma estância dando origem à freguesia de Nossa Senhora
da Conceição de Viamão (atual município de Viamão). Anos depois, em 1757, outra capela
foi construída em um terreno doado por uma viúva. A capela teve por invocação Nosso
Senhor Bom Jesus do Triunfo (atual município de Triunfo).
Em outra fazenda, no ano de 1756, foi erigida outra capela em homenagem a Santo
Antonio dando início a um novo povoado o qual ficaria conhecido como Freguesia de Santo
Antonio da Patrulha (atual município de Santo Antônio da Patrulha). Mais ao sul, após a
invasão espanhola em Rio Grande (1763), moradores fugidos fixaram novo povoado na
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região chamada de Estreito. No local foi construída uma capela sob a invocação de Nossa
Senhora da Conceição do Estreito (hoje município de Estreito).
Em muitos casos, conforme demonstra Marcelo Matheus (2013), estes oratórios ou
capelas, ficavam a grandes distâncias das igrejas matriz o que culminava na divisão de
algumas freguesias. Em 1810, os moradores de Piratini exigiam, num requerimento, que a
localidade fosse elevada à categoria de Capela Curada. Para tanto, era preciso desmembrar-se
da sede que à época era a Freguesia de Rio Grande. Matheus mostra como foi complicado este
processo, pois dividir freguesias representava dividir fregueses, o que passava pela resistência
dos padres das igrejas sede.
O caso exemplificado por Matheus (2013), também ajuda a compreender a
importância que a presença dos padres adquiria nas terras da fronteira meridional. As capelas
eram providas de párocos os quais seriam os responsáveis pelo conforto espiritual de seus
fregueses. Esta política estava inscrita nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,
escritas com base no concílio tridentino (1545-1563), e previa que fossem construídas capelas
nos mais remotos lugares e cada uma delas deveria ter padres os quais seriam os responsáveis
pela expansão e manutenção do catolicismo.
Como demonstra Matheus, ter um padre próximo à comunidade era a grande
preocupação dos moradores de Piratini no início do século XIX. Os padres deveriam realizar
todos os sacramentos e registrar cada cerimônia em livros, como os de batismos, de crismas,
de matrimônios e de óbitos, conforme as orientações das Constituições baianas de 1707. O
que podemos observar, inicialmente, é que os padres cumpriam papel fundamental na
estruturação social destas localidades, através da atuação evangelizadora.
De modo geral, embora que esta importância não se reduza apenas ao quadro
espiritual, a presença da Igreja na fronteira meridional, além da ação dos padres, dependia de
algo muito mais elementar para se tornar possível. Fala-se, neste sentido, dos requerimentos
de moradores para construção de igrejas. Este procedimento foi característico da expansão
eclesiástica nos séculos XVIII, e princípios do XIX, como se pode notar pelo quadro abaixo:
Quadro “1”: Características da Expansão da Igreja no Rio Grande de São Pedro Nº Localidade Ano de criação Origem
1 Rio Grande 1737 Dentro de Fortificação
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2 Viamão 1747 Oratório em estância
3 Triunfo 1757 Oratório em estância
4 Rio Pardo 1759 Fortificação e aldeia indígena
5 Aldeia dos Anjos 1760 Aldeia indígena
6 Santo Antonio da Patrulha 1760 Capela numa guarda
7 Vacaria 1763 Construída pelos moradores
8 Estreito 1765 Construída por padres
9 Taquari 1765 Construída pelos moradores
10 Conceição do Arroio 1766 Capela em estância
11 Porto Alegre 1772 Capela em estância
12 Santo Amaro 1772 Capela num paiol
13 São Luiz de Mostardas 1773 Provisão eclesiástica
14 Piratini 1789 Construída pelos moradores
15 São José do Norte 1785 Dentro de Fortificação
16 Canguçu 1795 Construída pelos moradores
17 Jaguarão 1800 Construída pelos moradores
18 Santana do Rio dos Sinos 1804 Construída pelos moradores
19 Pelotas 1812 Construída pelos moradores
20 Herval 1812 Acampamento militar
21 Santa Maria 1814 Acampamento militar
22 São Gabriel 1815 Acampamento militar
23 Alegrete 1816 Acampamento militar
24 Camaquã 1817 Construída pelos moradores
25 São Borja 1816 Provisão eclesiástica
26 São José do Patrocínio 1821 Construída pelos moradores Fonte: Dados recolhidos de: DIAS LOPES, Vicente Zeferino. Comentário Eclesiástico do Rio Grande de São Pedro do Sul
desde 1737.
Como se vê, são múltiplos os exemplos sobre a fundação de capelas na conjuntura de
expansão do mundo atlântico português na América Meridional e a Igreja dependeu da ação
de moradores de diversas localidades para que isto acontecesse. Naquele contexto, a Igreja
teve que lidar com diversas realidades culturais impostas pela própria conjuntura da expansão
atlântica. Em muitas destas capelas, que depois se tornaram crescentes povoados e
municípios, o conjunto demográfico era formado por açorianos, índios missioneiros, escravos
africanos e crioulos, além de variada população de libertos. Era neste universo de expansão
territorial e demográfica que a Igreja tentava construir sua ação pedagógica sobre a vida social
dos moradores do sul do Bispado do Rio de Janeiro.
Conforme aponta Fabio Kühn (1996), a Igreja Católica tinha como base um projeto
reformador e disciplinar em sua agenda expansionista na fronteira meridional. Esta expansão,
no entanto, exigia a ampliação do aparato burocrático eclesiástico. Como se verá a seguir.
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As Varas Eclesiásticas: hierarquia e direito
As varas ou auditórios eclesiásticos eram uma espécie de foro onde se realizavam
deliberações acerca do direito canônico e eclesiástico. Em síntese, as questões referentes ao
direito canônico diziam respeito às atividades dos clérigos em relação a todas as suas
obrigações. O direito eclesiástico, por seu turno, orientava todas as obrigações da população
em geral em relação ao catolicismo. Questões como a obrigatoriedade do batismo e do
casamento dentro do matrimônio exemplificam tais deliberações.
A partir da segunda metade do século XVIII, foram criadas diversas varas eclesiásticas
como as de: Viamão, em 1756; Triunfo, em 1761; Vacaria, em 1766; Rio Pardo, em 1771;
Rio Grande, em 1779; Estreito, em 1783 e Porto Alegre, em 1785; Conceição do Arroio, em
1803; Cachoeira, em 1810; São Luiz Gonzaga, nas Missões, 1811; Piratini, em 1815; São
Borja, em 1819 e Alegrete, em 1822 (DIAS LOPEZ, 1891). Todas estas criadas, como se
pode notar, no período colonial. A lista seria mais extensa se listássemos aquelas criadas no
período imperial.
Através dos auditórios eclesiásticos, a Igreja tentava estabelecer seu poder
evangelizador por um vasto território com população diversa. Estas comarcas deliberavam
sobre a vida religiosa de todos os moradores do espaço fronteiriço a partir das Constituições
do Arcebispado da Bahia. Em cada comarca havia um vigário o qual deveria garantir que as
determinações baianas vigorassem no Rio Grande de São Pedro através da disseminação das
varas eclesiásticas e de suas diversas paroquias.
Os vigários recebiam orientações, chamadas pastorais, que ajudavam a regular o
exercício da fé católica. Estas pastorais, orientações escritas em forma de ofícios, vinham do
Bispado do Rio de Janeiro, contendo orientações de ordem diversa. Muitas delas referentes
aos impedimentos do matrimônio. Pelas Constituições da Bahia, por exemplo, os nubentes,
para casar sem impedimentos, deveriam ter 14 anos o homem e 12 anos a mulher, não
podendo eles obrigatoriamente ter parentesco até o quarto grau de consanguinidade (DA
VIDE, 1707, título LXIV, § 267).
Entretanto, estas determinações acabavam por ser frequentemente tencionadas por
comportamentos distantes da norma desejada. Em 1764, a freguesia de Rio Pardo recebeu
uma pastoral do Bispado do Rio de Janeiro, na qual havia a dispensa do impedimento ao
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matrimônio aos índios guaranis, “vindos das Missões e de outras partes”, para se casar com
“pardos e os naturais da terra”, a partir do segundo grau de parentesco.1 Anos mais tarde, em
1797, a vara eclesiástica de Porto Alegre recebeu 19 novas faculdades para gestar a doutrina
católica, expedidas pelo Bispo do Rio de Janeiro. Nelas, havia uma série de dispensas à
realização do matrimônio. Aqui, destaca-se o conteúdo da quarta faculdade a qual
recomendava:
Dispensar na mesma forma no 3º e 4º de consanguinidade ou afinidade
simples ou misto com os que tiverem casado com ignorância desse
impedimento com pessoas que se tiverem convertido da heresia, ou
infelicidade para a fé católica: como verdadeiramente índios poderá
também dispensar no segundo grau dos mesmos parentescos isto
somente havendo respeito somente para os matrimônios pretéritos, e nunca
para os futuros [...]2 (grifos nossos)
Fica evidente a dificuldade encontrada pela Igreja em sua ação disciplinar sobre o
matrimônio. Muito provavelmente os padres não conseguiam cumprir integralmente as
determinações baianas, de 1707, quando orientava “a cada um dos Párocos, ou Capelães, sob
pena de mil réis, a leiam ao povo á estação das Missas Conventuais duas vezes no ano” (DA
VIDE, 1707, título LXVII, § 284). Esta medida, muito provavelmente, tentava corrigir o
problema referente às uniões consensuais entre pessoas que desconheciam ou que ignoravam
os impedimentos do matrimônio, tarefa a qual ficava a cargo dos padres em esclarecer.
Cabe ressaltar que no Título LXII das Constituições, há informações a respeito dos
“fins para que foi instituído” o sacramento do matrimônio. Segundo as resoluções do sínodo
baiano:
Foi o Matrimonio ordenado principalmente para três fins, são três bens, que
nele se encenam. O primeiro é o da propagação humana, ordenada para o
culto, e honra de Deus. O segundo é a fé, e lealdade, que os casados devem
guardar mutuamente. O terceiro é o da inseparabilidade dos mesmos
casados, significativa da união de Christo Senhor nosso com a Igreja
Calholica. Além destes fins é também remédio da concupiscência [...]
(DA VIDE, 1707, título LXII, §206) Grifos nossos.
1 Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. Livro das Pastorais da Freguesia de Rio Pardo.
Livro II, p. 4v. 2 Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. Livro das Pastorais da Freguesia de Porto Alegre.
Livro II, p. 48.
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Provavelmente, a Igreja, naquele momento, estava combatendo as uniões consensuais
em toda a colônia; ou seja, a concupiscência era um problema bem conhecido e que exigia
combate frontal. Por outro lado, as uniões fora do matrimônio poderiam se dar em proporções
maiores do que poderíamos dimensionar atualmente. Este fato poderia ter direcionado as
ações eclesiásticas ao combate de outras formas de casamento que não fosse a matrimonial,
impondo, a partir disso, uma política de difusão deste sacramento.
Igualmente, podem ter ocorrido muitos matrimônios em situação de impedimento
referente à consanguinidade e a Igreja, na tentativa de difundir o sacramento e homogeneizar
os comportamentos maritais, acabou aceitando a modificação de suas próprias diretivas.
Conforme as dispensas enviadas a Porto Alegre, em 1797, elas diziam “respeito somente para
os matrimônios pretéritos, e nunca para os futuros”. A dispensa foi dada para que os padres
ignorassem as condições de impedimento; digam-se, casamentos entre parentes
consanguíneos. A ocorrência destas uniões impulsionou a política eclesiástica de ampliação
do matrimônio, mesmo que para isso fosse necessário infringir as próprias leis eclesiásticas.
Muito provavelmente, isso foi provocado pelo variado universo sócio-cultural ao qual
a Igreja tentava homogeneizar, disciplinar e ordenar. Estas dissonâncias entre normas e
práticas, para além de parecer incapacidade eclesiástica em executar seu projeto reformador,
revela o perfeito reconhecimento que os vigários tinham da complexa diversidade humana no
mundo atlântico de conquista portuguesa. Embora que tais medidas possam parecer
incoerência da Igreja em tentar ordenar comportamentos, desordenando suas próprias
diretrizes, foi a maneira encontrada para tentar disciplinar os comportamentos.
O relativo êxito do projeto reformador, neste sentido, passava também por uma
questão jurídica elementar. Isto fica latente no reconhecimento “desigual” dos impedimentos
em relação ao matrimônio. Para os índios, a liberação do impedimento ao matrimônio a partir
do segundo grau de parentesco os colocava em vantagem em relação aos demais. Esta
medida, de um modo ou de outro, alterou o direito eclesiástico, devido aos índios que,
possivelmente, realizavam casamentos entre parentes consanguíneos com mais frequência do
que os não índios. Tal prática poderia fazer parte do universo sócio-cultural indígena e, diante
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disso, a Igreja decidiu tencionar suas normas na tentativa de disseminar o casamento via
matrimônio entre eles.
Esta “deformação” das normas da Igreja à presença indígena acabou constituindo um
espaço de direito aos índios, qual seja: o de poder casar com seus parentes consanguíneos.
Esta tensão, evidentemente, surgiu da força com que os índios ainda mantinham seus
costumes “tradicionais” e da negociação da Igreja em tentar impor-lhes outra lógica. O espaço
de direito e negociação também partia do reconhecimento que a Igreja tinha sobre os hábitos e
costumes dos diferentes grupos humanos que habitavam os territórios de ocupação
portuguesa, entre os quais se encontravam os índios guaranis e outras parcialidades.
O complexo processo de alteridade também orientou a criação de um discurso
classificatório o qual tinha entre os seus muitos objetivos, estabelecer diferenças a partir de
critérios hierárquicos. Neste sentido, cabe destacar que, a série de pastorais que partia do
Bispado do Rio de Janeiro às terras do sul de sua jurisdição seguia as determinações do
Arcebispado da Bahia que, por sua vez, seguia as disposições do concílio tridentino e do
direito eclesiástico. Contudo, as constituições do Arcebispado baiano, não só seguiam os
ditames canônicos como também as ordenações e leis do reino de Portugal.
No livro das Constituições Primeiras, há uma série de licenças sem as quais o texto
canônico não teria validade. Entre as licenças há o protesto do procurador da Coroa
Portuguesa o qual pronunciava:
Estas constituições estão doutissimamente feitas, e contem proveitosas
regras, e preceitos para a disciplina eclesiástica, e se observarem, como é
razão que seja, pode aquele Arcebispado (da Bahia) escusar outros Cânones,
ou Direito Canônico quanto à disciplina. Mas sem embargo disto protesto,
que não consinto, nem aprovo nenhuma determinação que nessas
Constituições se ache ofensiva da Jurisdição do Reino, assim por direito
comum, ordenações e concordatas do Reino, e ainda por costume
legítimo, para que sempre fique salvo e ileso o direito da Coroa, assim
como era, e estava antes destas Constituições; e assim requeiro, que este
meu Protesto se mande juntamente imprimir com as Constituições, e se faça
dele menção na licença que se der.3 (grifos nossos)
Fica evidente que as Constituições do Arcebispado da Bahia e seu conjunto de
normas, estabelecidas a partir do direito canônico e eclesiástico, estavam obrigatoriamente
3 Da Vide, 1707, Dispensa do Procurador da Coroa, p. sem número.
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submetidas às leis da Coroa. O Procurador Real admitia o fato das leis canônicas poderem ser
tensionadas a favor da disciplina eclesiástica. Isto, contudo, poderia ser feito sem infligir as
leis do reino e o direito costumeiro. Ao garantir a dispensa ao matrimônio, em relação aos
índios, ficaria garantido o exercício do direito consuetudinário. Exemplo disso, a dispensa
geral ao matrimônio dos índios, a partir do segundo grau de parentesco e a partir do terceiro e
quarto grau aos demais fiéis. Em nome de um bem maior, ou seja, difundir o sacramento do
matrimônio, a Igreja no mundo atlântico aceitou flexibilizar suas normas.
Neste aspecto, nota-se que a relação do Estado Português com a Igreja Católica, nos
territórios em processo de conquista no mundo atlântico, tornava-se tênue ao passo de que, se
os clérigos seguissem por completo as determinações eclesiásticas, poderiam colocar em risco
o projeto expansionista lusitano. Podemos supor que, se a Igreja tivesse mantido as restrições
ao matrimônio, poderia acarretar inevitavelmente a perda de vassalos da Coroa como, por
exemplo, os índios guaranis.
A liberação do impedimento ao casamento a partir do segundo grau de parentesco aos
índios, de Rio Pardo e Porto Alegre, por exemplo, também favorece ao entendimento do
modo que a Igreja debatia as questões de alteridade. A percepção do “outro” estava
diretamente relacionada com a compreensão acerca dos diferentes estados jurídicos
estabelecidos em uma estrutura social equitativa, característica do Antigo Regime.
Se a população em geral podia casar somente a partir do terceiro e quarto grau, os
índios, por se turno, poderiam fazê-lo a partir do segundo. Observa-se com isso, que o estado
jurídico funcionava como um espaço social no qual o Estado e a Igreja inscreviam os sujeitos
de modo hierárquico. A hierarquia se estabelecia através do gradiente de ação permitida a
cada um destes estados pelas regras do direito comum, eclesiástico e das leis do reino.
A construção da alteridade a partir do “outro”, como se pode perceber, se
fundamentava em disciplinar juridicamente todos os sujeitos, tentando submetê-los a
restrições ou garantindo-lhes privilégios, distribuídos de modo equitativo em cada um dos
estados jurídicos. Estes estados, por sua vez, não eram meras abstrações da realidade social.
Era um conjunto de pertencimentos, reconhecimentos e indicações simbólicas que permitiam
localizar cada um em seu estado. Este seria, por exemplo, os sentidos do uso das cores como
destaca Manuel Hespanha (2010). O mundo social produzia sentidos, cores e experimentações
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diversas a ponto de ser representado de diferentes formas. A palavra escrita não deixa de ser
uma delas; aprender e representar graficamente o mundo social.
O uso de termos e expressões empregados para diferenciar cada sujeito era, antes de
tudo, um modo de representação gráfica na qual se expressava a experimentação do mundo
social e a forma com que era percebido. No mundo atlântico português – diga-se também
indígena e africano –, a forma mais elementar de se representar a realidade observada e
vivida, a partir da alteridade e da hierarquia social, era a se referir à posição jurídica inscrita a
cada sujeito. As classificações humanas utilizadas pela Igreja, portanto, seguiam esta
orientação a qual era compartilhada e consentida na amplitude das sociedades atlânticas.
A Igreja Católica, neste sentido, marcou papel de extrema importância na vida dos
homens e mulheres que viveram nas terras ao sul do Bispado do Rio de Janeiro, território
denominado Rio Grande de São Pedro. Por meio de seus clérigos, a Igreja esteve presente no
cotidiano da população tentando disciplinar os comportamentos individuais ao entorno do
receituário canônico o qual buscava expandir os sacramentos e homogeneizar a fé católica.
Este empreendimento obrigou a Igreja em se fazer presente de modo “constante” durante toda
a vida de um sujeito.
Desde o nascimento, o acompanhamento espiritual, que pode ser traduzido como
tentativa de exercer controle e disciplina, os clérigos se faziam presentes na vida social
através dos sacramentos como o batismo, a crisma, o matrimônio. Durante este
acompanhamento, os clérigos indicavam necessariamente o estado jurídico dos seus
fregueses. Inscrever cada um deles em posições jurídicas e hierárquicas correspondia dar
significado às representações gráficas, neste caso a palavra escrita (classificações),
empregadas para localizar socialmente cada sujeito.
Classificar significava reconhecer o estado jurídico, bem como o espaço de direitos e
deveres de cada estado. Dito de outro modo, classificar era o mesmo que representar por meio
de expressões escritas, qual era a margem de autonomia pertencente a cada estado jurídico.
Por isso, nos termos de abertura dos livros de batismo, casamento e óbito sempre encontramos
classificações como branco, livre e escravo. Assim, temos o quadro que segue em seguida:
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Quadro “2”: Natureza dos Livros de Batismos Segundo seus Termos de Abertura
(Rio Grande de São Pedro, 1738-1822)
Freguesia Ano Livro Assinado pelo Vigário Natureza do Livro
Rio Grande 1738 1738-1755 Manuel Francisco da Silva sem distinção
Viamão 1747 1747-? Ilegível livres e escravos
Rio Grande 1755 1755-1757 Manuel Francisco da Silva sem distinção
Rio Grande 1757 1757-1759 Manuel Francisco da Silva sem distinção
Triunfo 1757 1757-1882 Tomaz Marques Brancos
Triunfo 1757 1757-1772 Tomaz Marques índios, pardos e pretos
Rio Pardo 1758 1758-1761 Francisco Bernardes Índios
Rio Grande 1759 1759-1763 Manuel Francisco da Silva sem distinção
Viamão 1765 1765-1782 Tomaz Marques sem distinção
Porto Alegre 1772 1772-1797 Ilegível livres e escravos
Rio Pardo 1772 1772-1790 Manuel do Carmo Índios
Mostardas 1773 1773-1804 Manuel Francisco da Silva brancos, livres e escravos
Rio Pardo 1774 1774-1780 Manuel do Carmo sem distinção
Rio Grande 1776 1776-1879 Manuel Francisco da Silva sem distinção
Rio Grande 1776 1776-1806 Luiz de Medeiros Correia Escravos
Cachoeira 1779 1779-1790 Bento Cortes de Toledo brancos e libertos
Triunfo 1782 1782-1819 Vicente Jose da Gama Leal indios, pardos e pretos
Viamão 1782 1782-? Luiz de Medeiros Correia sem distinção
Rio Pardo 1783 1783-1789 Vicente Jose da Gama Leal Brancos
Triunfo 1786 1786-1798 Agostinho Jose Mendes dos Reis Brancos
Rio Pardo 1790 1790-1800 Agostinho Jose Mendes dos Reis brancos e libertos
Porto Alegre 1792 1792-1799 Jose Inácio dos Santos Livres
Rio Grande 1795 1795-1800 Agostinho Jose Mendes dos Reis brancos, livres e escravos
Porto Alegre 1797 1797-1820 Jose Inácio dos Santos Escravos
Triunfo 1798 1798-1801 João de Almeida Pereira sem distinção
Rio Pardo 1799 1800-1808 Bento Cortes de Toledo brancos e libertos
Viamão 1799 1799-? Bento Cortes de Toledo Brancos
Rio Pardo 1808 1808-1814 Fernando Jose Mascarenhas Castelo Branco todas as pessoas
Porto Alegre 1809 1809-1815 Jose Inácio dos Santos Livres
Rio Grande 1810 1810-1811 Francisco Inácio da Silveira brancos e libertos
Santa Maria 1814 1814-1822 Inácio Francisco dos Santos brancos , livres e cativos
Mostardas 1814 ? João de Sousa Escravos
Porto Alegre 1815 1815-1820 Antonio Francisco da Silveira Livres
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Rio Grande 1817 1817-1830 Francisco Inácio da Silveira brancos, livres e cativos
Mostardas 1818 1818-1840 Francisco Inácio da Silveira sem distinção
Mostardas 1818 1818-1872 Francisco Inácio da Silveira Escravos
Porto Alegre 1819 1820-1828 Antonio Francisco da Silveira Livres
Porto Alegre 1820 1820-1828 Antonio Francisco da Silveira Livres
Triunfo 1820 1820-1849 Antonio Pereira da Soledade escravos pretos ou pardos
Viamão 1820 1820-? Ilegível Livres
Rio Grande 1821 1821-1824 Francisco Inácio da Silveira Escravos
Santa Maria 1822 1822-1833 Inácio Francisco dos Santos brancos, livres e escravos
Fonte: Termos de Abertura. Livros de Batismos. Cachoeira, Mostardas, Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, Santa Maria,
Trunfo, Viamão.4
O quadro acima foi organizado em ordem cronológica para favorecer a compreensão
sobre o emprego das classificações ao longo do tempo. Ele nos fornece, pela repetição de
informações, uma imagem mais ou menos precisa sobre o exercício classificatório utilizado
pela Igreja Católica em territórios fronteiriços. Um território, em suma, ocupado por índios
guaranis derrotados na Guerra Guaranítica (1753-1756), transladados das Missões, que
acabaram se espalhando por diversas freguesias, além de portugueses e africanos, libertos ou
escravos. Esta geografia humana foi “topografada” pela Igreja como brancos, índios e
escravos.
É interessante notar que esta forma de classificar foi a mais genérica, sendo utilizada
por vigários distintos e presentes em lugares diferentes. A atividade classificatória, portanto,
não foi um mero desvio retórico de algum padre perdido em alguma tosca freguesia do Rio
Grande de São Pedro. Diferenciar tendo por princípio o estado jurídico foi a via de regra
estipulada para classificar e diferenciar as populações dos territórios ao sul do Bispado do Rio
de Janeiro. As reiteradas vezes com que se encontram classificações como brancos, livres e
cativos, empregadas por homens distintos, separados por léguas de distância, demonstra que o
reconhecimento destes estados estava previsto no direito canônico e no direito costumeiro.
A identificação da condição jurídica possuía tamanha importância que houve, até
mesmo, a separação dos batismos em livros específicos para cada estado jurídico (branco,
4 Com exceção de Santa Maria e Cachoeira, todos os termos de abertura foram consultados no website
https://familysearch.org/search/image/index#uri=https://familysearch.org/records/collection/2177295/waypoints
acessado em 12/12/2013. Os termos de abertura dos livros de batismos das duas primeiras localidades foram
fotografados em seus respectivos arquivos diocesanos.
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livre, escravo). Estas informações nos ajudam a compreender um dos possíveis sentidos da
expansionista e do projeto disciplinar da Igreja Católica no mundo atlântico que, neste caso,
residia em classificar e enquadrar os sujeitos históricos em categorias jurídicas reconhecidas.
Como demonstra o quadro esboçado acima, os assentos batismais eram organizados de
acordo com os estados jurídicos. Entretanto, algumas perguntas se fazem pertinentes como,
por exemplo: qual a importância em se discriminar o estado jurídico? Se nas Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia não havia nenhuma disposição em relação a isso, que
diferença a posição jurídica fazia na hora de se realizar um batismo ou um casamento? As leis
canônicas obrigavam aos padres batizar a todos, independente de ser livre ou escravo. Logo,
em tese, não haveria o porquê de se assentar a condição jurídica nos livros de batizado.
Em suma, branco, livre e escravo eram expressões de formas de hierarquização
devidamente ordenadas em espaços de direito equitativo. Neste aspecto, os clérigos,
empregados na administração dos ritos católicos, espalhados pelo Rio Grande de São Pedro,
foram também agentes construtores e formadores de hierarquias sociais. Ao se utilizar de
categorias normativas como tais classificações, estavam concomitantemente, reproduzindo
um modelo de sociedade hierarquizada organizada em espaços equitativos de direito.
O batismo, para além de ser uma porta de entrada para cristandade, era igualmente a
porta de entrada para sociedade colonial, pois no momento do batismo os sujeitos históricos
recebiam sua primeira classificação jurídica a qual ajudava a posicioná-los de modo inicial na
sociedade.
Considerações Finais
A Igreja Católica esteve presente de forma atuante durante o processo de expansão
portuguesa na fronteira meridional. A incorporação de novos territórios representou, além de
domínio militar e do povoamento, também um projeto de “conquista espiritual” da fronteira,
inscrita num processo que se deu para além das expectativas da própria Igreja. Foram os
moradores dos mais remotos confins da fronteira os responsáveis por boa parte da ramificação
do clero pelo sul do Bispado do Rio de Janeiro, atual estado do Rio Grande do Sul.
O povoamento civil também levou consigo o catolicismo o que obrigou a Igreja a se
expandir na forma de Capelas, Freguesias e Auditórios Eclesiásticos. Embora havendo
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incentivo à expansão, previsto nas leis canônicas, estipuladas pelas Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia, foram os requerimentos de moradores espalhados pelo território
sulino do Bispado do Rio, exigindo a presença de clérigos para o conforto espiritual, que
levou a Igreja a se fazer presente no Rio Grande de São Pedro.
Foi através desta situação que se tornou possível a Igreja construir seu projeto
disciplinar em relação aos comportamentos de uma população diversificada e heterogênea,
sobretudo no que diz respeito ao matrimônio. Evidentemente, no espaço deste artigo, não foi
demonstrado se a Igreja atingiu com êxito suas metas disciplinares. Entretanto, compreender
primeiramente o processo de construção do projeto reformador da Igreja parece ser o
exercício fundamental e, por sua vez, elementar para análise das políticas eclesiásticas para
fronteira meridional.
Um dos pilares desta política foi organizar seus livros de batismos a partir de
categorias jurídicas como branco, índio e escravo. Desta forma, era possível à Igreja
acompanhar a vida dos sujeitos históricos desde o nascimento, passando pelo sacramento do
batismo até a hora da morte. Batizar significava, além de inserir na vida cristã, hierarquizar a
partir do nascimento. O batizado também era o momento no qual se inscrevia a primeira
posição jurídica no mundo atlântico de conquista portuguesa ao passo que esta inscrição era
pautada por uma divisão jurídica e equitativa da sociedade colonial.
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