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  IVAN CLÁUDIO PEREIRA SIQUEIRA  IVAN CLÁUDIO PEREIRA SIQUEIRA PAULINHO DA VIOLA: O caminho de volta (Um estudo poético-musical da canção popular brasileira) USP 1999

1999 Tese

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Ivan

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  • IVAN CLUDIO PEREIRA SIQUEIRA

    IVAN CLUDIO PEREIRA SIQUEIRA

    PAULINHO DA VIOLA: O caminho de volta

    (Um estudo potico-musical da cano popular brasileira)

    USP

    1999

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Teoria Literria e Literatura Comparada

    Mestrado em Letras

    Paulinho da Viola: O caminho de volta (Um estudo potico-musical da cano popular brasileira)

    Ivan Cludio Pereira Siqueira

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e

    Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a

    obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    rea de concentrao: Teoria Literria e Literatura Comparada.

    Orientador: Prof. Dr. Roberto Ventura

    So Paulo

    1999

  • memria de Romana, a Lia dos causos e das cantigas.

    Minha av era brasileira, nascida nas Minas Gerais do comeo

    deste sculo. Atravs do seu amor pela terra, conheci algo

    essencial: as lendas, cultura e cano brasileira: o samba

    sopro do esprito e da natureza africanos fecundados em solo

    tupi.

  • A G R A D E C I M E N T O S

    - A Roberto Ventura pela orientao e confiana em mim depositada.

    - Aos professores Joaquim Aguiar e Luiz Tatit pelas sugestes apresentadas.

    - Durante o desenvolvimento desta dissertao, contei com o apoio financeiro de

    Bolsa de Estudos concedida pela FAPESP, imprescindvel para a realizao deste

    trabalho, a quem agradeo em especial.

    - Aos funcionrios do Departamento de Teoria Literria da USP, em especial ao

    Lus, pelo apreo.

    - minha me, pelo esforo e dedicao incansveis.

  • SIQUEIRA, Ivan Cludio Pereira. Paulinho da Viola: O caminho de volta.

    (Um estudo potico-musical da cano popular brasileira). So Paulo,

    1999, p. 120. Dissertao de Mestrado em Letras. Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

    RESUMO

    As relaes entre melodia e letra so tomadas como ponto de partida para a

    interpretao das canes de Paulinho da Viola, um dos maiores sambistas de todos os

    tempos. Sua obra analisada nos aspectos esttico e sociolgico, sendo vista como

    parte da presena histrica da arte negra na cano popular brasileira.

    Palavras-chave: Melodia. Letra. Samba. Msica Popular Brasileira.

  • SIQUEIRA, Ivan Cludio Pereira. Paulinho da Viola: O caminho de volta.

    (Um estudo potico-musical da cano popular brasileira). So Paulo,

    1999, p. 120. Dissertao de Mestrado em Letras. Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

    ABSTRACT

    The relationships between melody and lyric are interpreted in Paulinho da Viola`s

    songs, one of the best composers of samba music. His musical work is studied on

    aesthetic and social aspects as part of black presence in the Brazilian popular song.

    Keywords: Melody. Lyric. Samba. Brazilian Popular Song.

  • SUMRIO

    Introduo.................................................................................................08

    1 A problemtica da cano popular: melodia e letra..............................10

    1.1 Cano potica.................................................................................10

    Audio da palavra

    1.2 Bossa nova e tropiclia.....................................................................10

    O canto da palavra e a palavra cantada

    1.3 Potica e cano: confluncias..........................................................18

    Os precursores da cano-poema

    2 Metodologia e anlise: as canes.........................................................20

    2.1 Outras leituras do cancionista...........................................................80

    3 Espao e configurao do samba...........................................................95

    3.1 O perodo de formao.....................................................................95

    3.2 As primeiras manifestaes da msica popular...............................97

    4 O Caminho de Volta............................................................................104

    Uma perspectiva temporal

    5 Concluso............................................................................................112

    Bibliografia.............................................................................................113

  • Introduo

    Esta dissertao resultado do convvio apaixonado com a cano popular brasileira e

    do olhar curioso que procura entreabrir a mnima fresta para alm das obviedades que certas

    canes evidenciam, atravs da abordagem de suas categorias estruturais nas canes de

    Paulinho da Viola. Partindo da constatao de que ainda existem poucos estudos sobre as

    relaes que se estabelecem entre msica e palavra - a cano frequentemente tratada

    apenas pela sua faceta lingustica -, o trabalho segue um modelo analtico que une essas duas

    particularidades da cano.

    A cano abordada como um objeto uno e multifacetado e as categorias estruturadas

    a partir da letra e da melodia so vistas como a sua prpria essncia. No que se refere

    metodologia, as canes so tomadas do ponto de vista lingustico e musical. A investigao

    dos caracteres musicais visa mostrar como a melodia apoia os limites da fala transformada em

    canto.

    Como referncia, utilizei O cancionista, de Luiz Tatit, que aborda as relaes entre

    fala e canto, oferecendo elementos para a anlise do componente meldico e lingustico.

    Segundo Tatit, na voz que canta h uma outra que fala e os principais conceitos que

    sistematizam essa ocorrncia so a figurativizao, a tematizao e a passionalizao.

    Figurativizao compreende a programao entoativa da melodia, isto , a voz que

    canta oculta uma outra falante. Esse processo pode ser averiguado de duas maneiras: pelos

    diticos, na esfera lingustica, atravs da presentificao de um eu que canta sempre aqui e

    agora; e na melodia, pela existncia dos tonemas (ascendentes, suspensivos e descendentes),

    que determinam o instante asseverativo do segmento (frase musical). Tematizao diz

    respeito ao processo de segmentao e de criao de clulas rtmicas pela acelerao do

    andamento e pela evidncia do pulso e dos ataques consonantais. Por passionalizao,

    entende-se a continuidade meldica no prolongamento das frequncias, fato que se d por

  • meio do espraiamento das vogais e do subsequente relevo das curvas meldicas. Assim,

    tematizao e passionalizao1 so processos ligados s leis musicais, enquanto a

    figurativizao remete s leis lingusticas.

    A dissertao contm trs ncleos: um metodolgico, outro analtico e o ltimo

    histrico. Inicia-se pelo primeiro, fazendo consideraes preliminares sobre o mtodo de

    anlise da cano a ser empregado e enfocando a bossa nova e a tropiclia, movimentos

    musicais que exerceram grande influncia na formao musical de Paulinho da Viola. A bossa

    nova foi responsvel pela revalorizao dos sambistas do morro e pelo acesso dos

    universitrios a esse tipo de msica. A tropiclia despertou o interesse acadmico pela cano

    popular especialmente por sua ligao com a poesia. O intuito estabelecer um dilogo entre

    a bossa nova, a tropiclia e o samba tradicional, para mostrar como essas influncias agiram

    na formao do estilo do cancionista.

    Na segunda parte so analisadas as canes de Paulinho da Viola e de outros

    compositores interpretadas por ele, procurando salientar como a sua obra pode ser entendida

    como o caminho de volta ao samba tradicional e, ao mesmo tempo, como uma obra que

    dialoga com o presente, tendo como trao bsico a urbanidade.

    Paulinho da Viola conhece a tradio musical do samba e tem conscincia de sua

    relevncia enquanto suporte para o dilogo contemporneo. Para ele, o samba um espao

    privilegiado de criao artstica e de socializao. Por isso, Paulinho da Viola uma espcie

    de mediador cultural que se nega ao saudosismo esttico e aos modismos, revelando na sua

    arte a tenso que explica a sua prpria condio de negro de classe mdia.

    Na ltima parte traado um panorama histrico da msica popular no Brasil,

    mostrando que Paulinho da Viola representa um elo de ligao entre o samba tradicional e as

    canes contemporneas, alm do resumo da sua discografia.

    1 Luiz Tatit. O cancionista: composio de canes no Brasil. So Paulo, Edusp, 1996.

  • 1 A problemtica da cano popular: melodia e letra

    1.1 Cano potica

    Audio da palavra

    A cano popular um dos campos mais fecundos da cultura brasileira e o interesse

    acadmico por ela cresceu de modo considervel a partir da dcada de 1980, decorrncia, em

    parte, das anlises pioneiras sobre a bossa nova. Esses estudos foram reunidos por Augusto de

    Campos em Balano da bossa2, coletnea que procurava compreender as singularidades

    tcnicas e culturais do estilo musical no final da dcada de 1960.

    Augusto de Campos abordava, em seu livro um marco para o estudo da cano , os

    aspectos poticos da cano-poema e sugeria que a melhor poesia brasileira estava nas letras

    das canes. Segundo ele, Caetano Veloso era o grande poeta do momento e o artista que

    melhor esboava uma continuidade formal da linha evolutiva introduzida pela bossa nova. No

    mesmo aspecto, Celso Favaretto apontava que Caetano Veloso e o tropicalismo tiveram a

    felicidade de efetuar, atravs da cano, a sntese entre poesia e msica3.

    1.2 Bossa nova e tropiclia

    O canto da palavra e a palavra cantada

    A tropiclia foi um caso singular da arte de vanguarda no Brasil contemporneo. Suas

    propostas extrapolavam o mbito da cano com o experimentalismo ligado s ideias

    concretistas, o exagero nas vestimentas, a elaborao do cenrio e a composio das capas dos

    discos, que no mais se prestavam apenas para guardar o vinil. Essas ideias faziam parte de

    um projeto artstico que queria atingir determinados efeitos no consumidor, atravs do design

    da capa e da sua integrao com a msica.

    A participao de intelectuais, poetas e artistas no movimento expandiu o raio de ao

    das ideias vanguardistas e das atitudes artsticas ligadas a concepes polticas da arte. Assim,

    2 Augusto de Campos et alii. Balano da bossa. 5ed. So Paulo, Perspectiva, 1993.

    3 Celso F. Favaretto. Tropiclia, Alegoria, Alegria. So Paulo, Kairs, 1979, p.18.

  • a tropiclia se inscreveu como movimento de vanguarda centrado na msica, mas cujo

    alcance se estendeu ao cinema, ao teatro e literatura.

    A bossa nova imprimiu uma nova funo ao intrprete, que passou a participar do

    processo de criao da composio, do arranjo e da concepo instrumental, deixando para

    trs a figura da estrela que utilizava a cano como mero suporte para a sua personalidade

    musical. Antes a ateno recaa sobre os cantores, depois da bossa nova, a cano que

    passou a assumir o papel central. Essas posturas representavam um importante avano em

    relao ao samba tradicional das dcadas de 1930 e 1940, que ainda dependia da genialidade

    de um ou outro sambista para ultrapassar a redundncia dos registros e temas musicais.

    A regravao de Chega de saudade por Joo Gilberto, em 1958, considerada o

    marco inicial da bossa nova. Com o tempo, o movimento intensificaria a sua vocao

    camerstica, tornando mais complexas as solues musicais, porm, ampliando a

    despreocupao com os aspectos sociais da cano. Esse excesso de lirismo culminou com a

    diviso do movimento em duas tendncias: uma voltada para as solues de carter musical e

    outra vinculada militncia poltico-social - a cano de protesto. A reelaborao do samba

    pelos bossanovistas no atraiu os ouvintes acostumados batida do samba tradicional e s

    mensagens ligadas ao cotidiano. Criticava-se, na bossa nova, o excesso de influncias do jazz

    americano, o que passou a ser visto como desapego s razes da msica brasileira. No centro

    dessa controvrsia estava o dado social do pblico mais instrudo da bossa nova, formado por

    moradores da zona sul carioca, enquanto o samba estava mais ligado populao

    predominantemente negra, pobre e marginalizada dos morros da zona norte.

    A bossa nova provocou um hiato na histria da cano popular brasileira. De acordo

    com Jos Miguel Wisnik, o refinamento da primeira fase da bossa nova gerou uma ciso

    irrecupervel e fecunda entre dois patamares da msica popular: o romantismo de massa que

    hoje chamamos brega e que tem em Roberto Carlos o seu grande rei e a msica

  • intelectualizada, marcada por influncias literrias e eruditas, de gosto universitrio ou

    estetizado4.

    Abordarei um trecho de um samba de Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro e de uma

    cano de Antonio Carlos Jobim, um dos fundadores da bossa nova, para salientar as

    exigncias de cada estilo e mostrar como a proposta de refinamento da bossa nova culminou

    com uma msica popular de estilo camerstico, cujas nuances sonoras se distanciavam do

    gosto do ouvinte mdio. O samba Sem compromisso, lanado no ano de 1944 e regravado

    por Chico Buarque em 1974 no disco Sinal fechado. A cano da bossa nova guas de

    maro, gravada por Elis Regina no LP Elis, de 1972.

    Sem compromisso (Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro)

    Voc s dana com ele E diz que sem compromisso

    bom acabar com isso

    No sou nenhum pai Joo

    Quem trouxe voc fui eu

    No faa papel de louca

    Pra no haver bate-boca

    Dentro do salo

    O samba de Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro uma narrativa linear sobre um baile

    em que o enunciador reclama a falta de ateno da mulher. Essa cano tem uma cadncia

    toda especial, mesmo na sua simplicidade. Ela flui aos poucos, de modo sorrateiro,

    imprimindo um sentido singular letra. No um samba rasgado, em que a percusso se

    sobrepe mensagem e nem propriamente um samba-cano, em que a percusso atenuada.

    Essas duas instncias so alcanadas: a cadncia somtica marcada pela tnica na percusso e

    a letra simples que fala por si.

    4 Jos Miguel Wisnik. Algumas questes sobre msica e poltica no Brasil in Cultura Brasileira - Temas e

    Situaes (Org. Alfredo Bosi - tica) apud Sandra Reimo. Roberto Carlos continua romntico e singelo. O Estado de So Paulo, 20 dez. 1997. Caderno de Cultura, p. D-10.

  • ---mi

    sso

    c---sdana ele E---diz---que------sem---compro

    Vo com

    Fm7 C/E F/D# F7

    Atravs do segmento5 acima se verifica que os dois versos se inscrevem praticamente

    na mesma altura. Ascendncia e descendncia significativas s ocorrem nas duas ltimas

    slabas do segundo verso. Essa linearidade meldica pe em primeiro plano a expresso

    lingustica desses versos. As inflexes intervalares de subida (quinta justa) e descida (tera

    menor) no final do segundo verso preparam as prximas articulaes meldicas, inserindo a

    letra no contexto mais musical.

    ----bom---acabar

    com --sou---nenhum---pai

    --- i-- Jo

    --o

    ---sso No

    --

    F7/9+ Bbm7 Eb7/9 Ab7+ Gm7/5- C7/G

    Embora as ascendncias e descendncias simulem uma nova proposta meldica, em

    que a valorizao das curvas pudesse indicar outro percurso, elas apenas equilibram o curso

    meldico ao programa entoativo, visto que a sequencia dos versos retoma a articulao

    meldica do primeiro segmento. Somente os dois ltimos versos apresentam diferenas de

    perfil cromtico, mas tendo como base as alturas j estabelecidas.

    5 Esse diagrama, elaborado a partir de Luiz Tatit, permite a espacializao da melodia. Cada linha representa um

    semitom e as extremidades indicam o ponto mais grave (abaixo) e o mais agudo (acima).

  • A dico do canto de Chico Buarque sublinha a equivalncia dos valores somticos e

    lingusticos dessa cano e a sua interpretao favorece os pormenores inerentes estrutura da

    composio, equilibrando tenso vocal, entoao e pronncia dos vocbulos. As cifras abaixo

    dos segmentos indicam as marcaes bsicas do acompanhamento musical na verso gravada

    por Chico Buarque e servem para demonstrar que os acordes, embora sofisticados por

    dissonncias, apenas preenchem o campo harmnico, oferecendo as bases tonais para o canto

    manter as precises de altura e durao, no exercendo as funes de direcionamento do fio

    meldico. Eles embelezam a harmonia mas no so decisivos para a construo meldica.

    guas de maro (Antonio Carlos Jobim)

    pau, pedra, o fim do caminho um resto de toco, um pouco sozinho

    um caco de vidro, a vida o sol

    a noite, a morte, o lao, o anzol

    peroba do campo, o n da madeira

    Caing candeia, o matitaper

    guas de maro uma completa estilizao do ritmo, deslocando os acentos

    rtmicos, suprimindo a cadncia rtmica linear e eliminando a percusso caracterstica do

    samba. Ao atenuar o esprito africano do gnero, promoveu um temperamento no estilo com

    vistas sofisticao.

    O contedo da letra no faz aluso social, mas trata de duas matrias essenciais

    pau, pedra tomadas como abstraes das sensaes do compositor. Pau e pedra

    correspondem clula geradora de todos os sintagmas da letra, assim como o motivo rtmico

    que se origina pela sua entoao a frase musical base para as demais. O que importa no

    s o sentido da palavra em si, mas o significado que decorre da relao sonora com as demais

    palavras combinadas em sequencia. A configurao essencialmente musical resultado da

    articulao entre o som das palavras e o som construdo pela harmonia sobre a melodia.

  • o fim o res um pou um ca a vi a noite

    do to co co da o a

    pau pedra caminho de toco sozinho de vidro sol morte

    A/G D7+/F# Dm7+/F A/E Eb7/5- D7+/9

    A repetio sistemtica acaba por criar clulas rtmicas do mesmo tema musical. Essa

    recorrncia se d por intervalos de tera maior (nas duas primeiras oraes) e de segunda

    maior (nas demais oraes). A percusso dos temas na melodia reforada pelos ataques

    sonoros das consoantes em todo o segmento, mas a percussividade atenuada pelas vogais

    abertas e fechadas que se distribuem pelas palavras e propiciam o equilbrio sonoro entre

    ataque e durao do som. A economia meldica talvez soasse cansativa no fosse o uso

    criativo dos acordes. Os encadeamentos contribuem para essa atmosfera sonora na medida em

    que os acordes dissonantes no apenas preenchem o campo harmnico, como no samba

    tradicional, mas direcionam a tenso e o caminho que a voz deve seguir. Na bossa nova, os

    acordes adquirem significado no conjunto, pois a passagem de um para outro que produz

    tenso harmnica, tornando desnecessria a incurso meldica por curvas acentuadas,

    ascendentes ou descendentes.

    campo

    ---deira

    peroba do

    o lao Cain- can- o mati

    o an ta

    zol o n da ma --ga --deia per

    A6 A7 D/F# Dm/F A/E

    G7/13

  • Quando os intervalos se alteram (para 4 justa), em relao aos do segmento anterior -

    peroba do campo e (sexta maior) o n da ma----deira -, ensejando possvel mudana da

    trajetria meldica, v-se que uma mera estratgia meldica para retornar aos intervalos de

    tera e de segunda, o que se fundamenta atravs do retorno ao acorde fundamental A/E. Ou

    seja, as curvas ascendentes e descendentes se alteram muito pouco. Cabe aos encadeamentos

    de acordes a funo de enriquecer a harmonia e valorizar a simplicidade da melodia.

    A interpretao de Elis Regina corrobora essa vocao econmica de guas de

    maro, pontuando a msica com uma dico impressionante e valorizando a sonoridade das

    palavras e a diviso dos compassos. A sua voz suave e pausada, acompanhada de violo,

    tamborim, bateria e piano, cria uma pea musical belssima que, apesar da regularidade do

    tema, no tem a pulsao rtmica em primeiro plano. uma cano para se ouvir atentamente.

    De outro modo, as combinaes sonoras das palavras e o trabalho harmnico passam

    despercebidos.

    O samba tinha como referentes o morro, a figura do malandro, a beleza da mulher

    negra e os atributos da raa, imagens que foram substitudas na bossa nova pelo mundo dos

    brancos. A concepo meldico-harmnica da bossa nova a aproximava mais da arte erudita

    do que da arte popular, pois pressupunha uma plateia intelectualizada. O piano de Antonio

    Carlos Jobim reforava o carter erudito das intenes bossanovistas, embora a originalidade

    do movimento tenha se cristalizado pela batida do violo de Joo Gilberto.

    Joo Gilberto foi um dos principais elos de ligao entre a bossa nova e a tropiclia,

    dolo que exerceu grande influncia principalmente em Caetano Veloso, um dos admiradores

    das conquistas musicais da bossa nova. Os tropicalistas perceberam a dissociao entre a

    elaborao daquela msica, as influncias de vanguarda e o gosto musical do brasileiro, e se

    propuseram a reinserir a cano na linha evolutiva iniciada pela bossa nova. Mas, absorvendo

    as novidades tecnolgicas responsveis por fenmenos como o grupo pop The Beatles ou a

  • jovem guarda no Brasil. No LP homnimo, de 1968, Caetano Veloso escreveu na contracapa:

    os acordes dissonantes j no bastam para cobrir nossas vergonhas, nossa nudez

    transatlntica.

    nesse mesmo cenrio que surgiram as primeiras canes de Paulinho da Viola, como

    Coisas do mundo, minha nega, de 1968, e Foi um rio que passou em minha vida, de 1969.

    A obra musical de Paulinho da Viola compartilha alguns conceitos com a bossa nova, como o

    resgate de compositores do passado, o deslocamento do acento rtmico da frase lingustica em

    prol da frase meldica, a economia de temas, favorecida pela riqueza harmnica dos

    encadeamentos de acordes, e o despojamento da linguagem. Ele tambm teve contato com o

    tropicalismo, de quem herdou o gosto pela poesia. A informao musical da bossa nova e a

    informao potica da tropiclia tm grande influncia na sua obra, alm do samba tradicional

    e do choro.

    Em seu primeiro disco solo, Paulinho da Viola, de 1968, interpretou sambas de

    Cartola e Casquinha, seguidos em lbuns posteriores de msicas de Nelson Cavaquinho e

    Guilherme de Brito, Orestes Barbosa e outros sambistas. Compusera, em 1969, Sinal

    fechado, um marco da cano popular, que mostra os requintes de forma e contedo em

    estrita relao com a ferramenta artstica. No s nela, mas tambm em outras, a expresso

    verbal est muito prxima da oralidade:

    Ol como vai? Eu vou indo e voc tudo bem?

    Tudo bem eu vou indo correndo

    Pegar meu lugar no futuro e voc?

  • 1.3 Potica e Cano: confluncias

    Os precursores da cano-poema

    A juno entre poesia e msica j era praticada muito antes da bossa nova. Domingos

    Caldas Barbosa (1738-1800), o famoso cantador de modinhas, j obtivera enorme sucesso na

    Corte Portuguesa musicando versos de poesia. Integrante da Nova Arcdia, em Lisboa,

    publicou o clebre Viola de Lereno. Toms Antonio Gonzaga (1744-1810?), autor de Marlia

    de Dirceu, tambm musicou alguns de seus poemas, como a modinha Regao da Ventura:

    No regao da ventura,/Marlia vive a brincar./Viva ela satisfeita,/Enquanto eu vivo a penar.

    Durante o romantismo, a maioria dos grandes poetas musicou ou teve seus poemas

    musicados, dentre eles: Gonalves Dias (1823-1864), lvares de Azevedo (1831-1852),

    Casemiro de Abreu (1839-1860), Fagundes Varela (1841-1875) e Castro Alves (1847-1871).

    Antes disso, h notcias do envolvimento do poeta barroco Gregrio de Matos (1623-1696)

    com o lundu.

    Apesar da longevidade, esse fenmeno s ganhou notoriedade para a crtica musical

    aps o engajamento de Vincius de Moraes (1913-1980) como letrista da bossa nova. Quando

    se ligou cano, ele j era um poeta destacado e suas letras musicadas receberam de

    imediato a ateno da crtica, acostumada a ver a cano popular como algo de pouca

    sofisticao. Formado em Letras (1929) e Direito (1933), exercia, na dcada de 1940, as

    funes de diplomata, crtico de cinema e cronista. Publicou, em 1955, sua Antologia Potica

    e, no ano seguinte, o poema Operrio em Construo, alm da pea de teatro Orfeu da

    Conceio, transformada por Marcel Camus no filme Orfeu negro, com msicas dele e de

    Antonio Carlos Jobim.

    Vincius de Moraes foi deixando o crculo literrio durante a dcada de 1950, para se

    dedicar integralmente cano, vindo a ser o maior poeta da bossa nova e tambm o seu

    letrista mais produtivo, escrevendo mais de duas centenas de letras. As canes-poema que

  • atraram o entusiasmo dos intelectuais, na dcada de 1960, so herdeiras da forma potico-

    musical por ele cultivada.

    Com Vincius de Moraes e depois com Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil,

    Milton Nascimento e Paulinho da Viola, as letras das canes se tornaram sofisticadas e

    abrigaram muito da melhor poesia que se produziu de 1960 at meados da dcada seguinte.

  • 2 Metodologia e anlise: as canes

    Paulinho da Viola nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 12 de setembro de 1942,

    num ambiente familiar densamente povoado pela msica dos sambistas e dos chores, do qual

    seu pai, Csar Farias, participava como violonista. Paulinho da Viola chegou a se diplomar

    como tcnico em contabilidade, mas o encontro com Chico Soares em 1959, o canhoto da

    Paraba, exmio violonista que tocava com as cordas invertidas, impressionou-o o bastante

    para que viesse a se dedicar com afinco ao instrumento. Nos primeiros idos de 1960,

    conheceu o poeta e letrista Hermnio Bello de Carvalho, que o levou ao Zicartola, restaurante

    de Cartola e de sua esposa Zica, famoso pelos frequentadores e pela boa comida. Ali Paulinho

    da Viola interpretou canes de sucesso e travou conhecimento com Cartola, a grande

    influncia da sua obra.

    Por volta de 1964, Paulinho da Viola j compunha com certa regularidade. Nessa

    poca, integrou o conjunto Os Cinco Crioulos, com lton Medeiros, Nlson Sargento,

    Anescarzinho e Jair do Cavaquinho. O grupo se celebrizou por acompanhar Clementina de

    Jesus e Aracy Cortes no show Rosa de Ouro, criado por Hermnio Bello de Carvalho. O passo

    seguinte foi o grupo A voz do Morro - unio dOs Cinco Crioulos, Z Kti e Oscar Bigode -,

    surgido atravs de K Kti, que queria juntar compositores de diversas escolas para gravar6.

    A Voz do Morro lanou dois discos em 1965, Roda de samba e Roda de samba, vol.

    II, em que surgiu Recado, composio de Paulinho da Viola, cuja segunda parte foi

    acrescida por Casquinha. Um terceiro disco ainda foi gravado pelo grupo no ano seguinte, o

    mesmo de Na madrugada, parceria de Paulinho da Viola e lton Medeiros. De Paulinho da

    Viola, entre outras, estavam: Arvoredo, Momento de fraqueza e Catorze anos.

    Catorze anos (Na madrugada, 1966) um marco na obra de Paulinho da Viola. Ela

    sintetiza a sua trajetria como cancionista e revela a sua conscincia frente s dificuldades da

    6 Nova Histria da MPB. 2 ed. So Paulo, Abril, 1976. Informa sobre o incio de carreira de Paulinho da Viola.

  • poca, j que o samba no desfrutava do prestgio de antigamente e a modernizao da cano

    brasileira depois da bossa nova o fez parecer ultrapassado.

    Tinha eu catorze anos de idade Quando meu pai me chamou

    Perguntou-me se eu queria

    Estudar filosofia, medicina ou engenharia

    Tinha eu que ser doutor

    Mas a minha aspirao

    Era ter um violo

    Para me tornar sambista

    Ele ento me aconselhou

    Sambista no tem valor

    Nesta terra de doutor

    E, seu doutor, o meu pai tinha razo

    Vejo um samba ser vendido

    E o sambista esquecido

    O seu verdadeiro autor

    Eu estou necessitado

    Mas meu samba encabulado

    Eu no vendo no senhor

    A percepo de que o samba vivia um perodo de desprestgio justificava o conselho

    paterno de prosseguir com os estudos e no se enveredar pelo ritmo, baseado em experincia

    prpria, pois no se via o sambista ser valorizado. Ao contrrio, ele constantemente era alvo

    de preconceitos da sociedade.

    Paulinho da Viola me disse que, para ele, essa cano tambm um emblema das

    limitaes tericas e tcnicas dos msicos da poca, que aprendiam o instrumento e a

    percepo meldica atravs do esforo prprio e solitrio, em situaes bastante precrias. O

    seu pai, por exemplo, Benedito Csar Ramos de Faria, violonista e acompanhador de choro,

    que tocou com Jacob do Bandolim (1918-1969) e outros grandes sambistas, aprendeu a tocar

    ouvindo discos na vitrola e tirando o som que apreendia. Essa carncia de uma formao

  • musical tradicional marcou todo o primeiro perodo da cano brasileira, at o surgimento da

    bossa nova.

    Catorze anos pode ser vista como a dualidade entre a academia e o samba, em que

    subjaz a escolha entre elementos do ocidente e elementos africanos; em termos simblicos,

    ser doutor significava a adeso aos valores ocidentais, e ser sambista implicava na volta s

    origens tnicas do samba como herdeiro cultural da histria dos negros no Brasil.

    Na ltima estrofe da letra, a concluso da desvalorizao do sambista Vejo um samba

    ser vendido/E o sambista esquecido remete comercializao do samba e ao seu uso pela

    indstria cultural. Catorze anos significativa como cano que trouxe as sementes

    musicais que floresceram na obra do compositor: a utilizao diferenciada dos intervalos

    musicais, a proximidade com o choro, a cadncia meldica irregular e o emprego relevante da

    instrumentao.

    tor Quan

    eu ca ze do--o

    nha a de idade

    Ti

    do-- o

    nos

    meu

    pai

    me mou

    cha

    At o ponto assinalado pela elipse, os intervalos de tom e semitom imprimem um

    motivo meldico que acentua o trao rtmico da composio, suspenso pelo trao passional da

    descendncia e ascendncia de 4 justa. No verso seguinte, a melodia irregular parte do ponto

  • mais elevado do verso anterior e faz um percurso de descendncia em intervalos de 2 maior e

    de 2 menor.

    se--eu lo

    tou-me que dar---fi so

    gun ri tu fi me

    Per a Es a di

    ci ou

    na

    Nesse segmento, a melodia acentua os valores passionais, abrangendo as regies mais

    elevadas da tessitura. A sua espacializao mostra como o fio meldico privilegia as

    ascendncias, sendo as descendncias (at o ponto da linha diagonal) ponto de finalizao do

    enunciado. Esse ponto de tenso meldica coincide com a proposio principal da cano: a

    seleo dos valores ocidentais e africanos.

    No segmento abaixo, o trmino da frase anterior ainda conserva a ascendncia, mas a

    finalizao do enunciado acontece prxima do limite da regio grave. Essa frase musical que

    acompanha o instante terminativo do enunciado produz uma melodia muito prxima da fala e

    marca a opo pela clareza do enunciado em vez da fluidez musical, alis, marca de toda essa

    cano. Tatit diz que as tenses de cada contorno ou de seu encadeamento peridico so

    configuraes locais mais importantes que as tenses harmnicas e que as tenses locais

    distinguem as canes7. Pois bem, as tenses resultam do encadeamento das frases

    meldicas e de sua relao com o texto. Catorze anos j mostrava qual o tipo de tenso 7 Luiz Tatit. O cancionista: composio de canes no Brasil. Op. cit., p. 9.

  • meldica que Paulinho da Viola viria a desenvolver, um modelo inspirado nas modulaes

    inesperadas e sentimentais do choro.

    Coisas do mundo, minha nega (Paulinho da Viola, 1968) a cano mais

    representativa do primeiro trabalho fonogrfico solo de Paulinho da Viola. Nela, encontra-se

    cristalizado o embrio criativo de Catorze anos, evidenciado pela leveza da apresentao,

    em que letra e msica convergem para assegurar o carter sbrio da representao esttica.

    Essa maneira contida de exprimir sentimentos se tornou um dos principais atributos da sua

    obra musical.

    Hoje eu vim minha nega Como venho quando posso

    Na boca as mesmas palavras

    No peito o mesmo remorso

    Nas mos a mesma viola

    Onde gravei o teu nome

    Venho do samba h tempo, nega

    Vim parando por a

    Primeiro achei Z Fuleiro

    Que me falou de doena

    Que a sorte nunca lhe chega

    Est sem amor e sem dinheiro

    Perguntou se eu no dispunha

    De algum que pudesse dar

    Puxei ento da viola

    Cantei um samba pra ele

    Foi um samba sincopado

    Que zombou do seu azar

    Hoje eu vim minha nega

    Andar contigo no espao

    Tentar fazer em teus braos

    Um samba puro de amor

    Sem melodia ou palavra

    Pra no perder o valor

    Depois encontrei seu Bento, nega

    Que bebeu noite inteira

    Estirou-se na calada

    Sem ter vontade qualquer

  • Esqueceu do compromisso

    Que assumiu com a mulher

    No chegar de madrugada

    E no beber mais cachaa

    Ela fez at promessa

    Pagou e se arrependeu

    Cantei um samba pra ele

    Que sorriu e adormeceu

    Hoje eu vim minha nega

    Querendo aquele sorriso

    Que tu entregas pro cu

    Quando eu te aperto em meus braos

    Guarda bem minha viola

    Meu amor e meu cansao

    Por fim eu achei um corpo, nega

    Iluminado ao redor

    Disseram que foi bobagem

    Um queria ser melhor

    No foi amor nem dinheiro

    A causa da discusso

    Foi apenas um pandeiro

    Que depois ficou no cho

    No tirei minha viola

    Parei, olhei, vim membora Ningum compreenderia

    Um samba naquela hora

    Hoje eu vim minha nega

    Sem saber nada da vida

    Querendo apreender contigo

    A forma de se viver

    As coisas esto no mundo

    S que eu preciso aprender

    Os enunciados so construdos atravs do uso de palavras e expresses comuns,

    encontradas na fala de populares em situaes corriqueiras, mas selecionadas de forma

    significativa. A simplicidade lingustica determinada pelo uso de uma gramtica usual, em

    que a sintaxe obedece geralmente ordem direta, ainda que elaborada. Essa leveza na

    construo lingustica, distante do prosaico e do vulgar, busca iluminar o dado essencial na

  • comunicao. O que faz com que essas palavras despojadas possam ser reconhecidas pelo

    ouvinte como algo especial o arranjo e o modo como elas se apresentam na melodia.

    No aspecto musical, verifica-se a preferncia pelo uso das frequncias mdias e

    graves. Os saltos sonoros no valorizam os picos de agudo enquanto exibio do esforo

    voclico pela busca de tenso nas tessituras elevadas, mas pelo paralelo que traam em

    relao s regies mais graves da tessitura. A valorizao dos saltos sonoros se d pela

    constante nuance entre a ascendncia e a descendncia das notas. Em Paulinho da Viola, as

    ascendncias e descendncias so elaboradas de modo sutil, sugerindo que as distncias quase

    inexistem, por isso o canto contorna as regies altas e baixas sem grande disparidade no

    relevo fnico das distncias sonoras.

    A melodia inscrita com moderao, tal qual a informao lingustica, sem

    sobressaltos, fluindo nota aps nota. Paulinho da Viola mestre na arte de burlar a acentuao

    meldica convencional, ora ascendendo quando se espera uma descendncia, ora mantendo a

    curva meldica quando o usual seria estabiliz-la na descendncia.

    A entonao perfeita faz tudo parecer simples e fcil. Porm, ao aguar-se o ouvido,

    v-se que a melodia toda cheia de pormenores e que a tessitura do seu canto se constri pela

    acentuao seletiva das palavras na melodia. o caso do primeiro verso meldico de Coisas

    do mundo, minha nega, em que substituda a nota previsvel (D) pela nota (C#), criando

    uma tenso meldica ao desfazer a previsibilidade inicial da frase:

    Ho- je eu vim mi- nha ne-ga F# A B C# B B-------(uma oitava abaixo)

    ascendente descendente

  • A empostao vocal e a interpretao de Paulinho da Viola corroboram ainda mais a

    configurao sbria dessa cano. Entretanto, sobriedade no deve ser confundida com inao

    ou ausncia de atribulaes na alma da cano. Os traumas existem e so indispensveis

    enquanto matria necessria razo de ser da cano. O enunciado existe a partir da ruptura

    ou disforia entre sujeito e objeto, em que a dimenso temporal passa a fazer sentido enquanto

    representao da busca pelo sujeito da unidade com o objeto. Os enunciados relatam a busca,

    a ruptura e o encontro que acontecem sucessivamente. O eu lrico, espcie de enunciador,

    v esse caminho segundo a sua perspectiva particular. o seu sentimento que transborda na

    cano, observando os acontecimentos e os descrevendo como coisas do mundo, dos homens

    e da vida.

    Nesse sentido, as canes tm um processo similar comum, que o da suspenso do

    tempo real pela sugesto de um tempo onrico. Atravs das modulaes lingustico-meldicas

    da cano, o cancionista intenta fazer com que o ouvinte se insira num tempo irreal, limitado

    e efmero, mas fantstico, porque as experincias ali expressas tm o poder de lhe parecerem

    familiares. Assim, o cancionista articula as suas experincias e as vicissitudes do cotidiano,

    seduzindo e emocionando pela capacidade sugestiva. essa qumica que torna possvel a

    transformao de acontecimentos comuns em cenas belssimas.

    Coisa nomeia em geral algo para o qual no se encontra uma denominao mais

    apropriada, que no tem nome ou que no se sabe precisar. Mundo, numa outra dimenso,

    reitera o carter vago reinante no ttulo. Coisas do mundo um caminho desconhecido,

    indeterminado. Coisa dialoga com fatos concretos em oposio a mundo, fincado no

    referencial abstrato. Mas essa singela oposio quase anulada pela reiterao dos traos de

    significado que a expresso evoca. Ambos os termos reforam um nico sentido: o do

    cotidiano, feito de alegrias e tristezas, sobretudo de incertezas e de definies indefinidas.

  • Por essa razo, Coisas do mundo contempla o que est fora do enunciador, no

    horizonte dos seus olhos e da sua imaginao. O dado que lhe intrnseco vem sugerido por

    minha nega, que est dentro do corao do enunciador, em oposio aos acontecimentos

    externos chamados de coisas do mundo. Minha nega, que tambm minha amada, aponta

    para o componente racial na anlise, embora no seja dos mais sugestivos. Quando

    proclamado com carinho, como o caso, nega indica carinho para com a mulher querida.

    Entretanto, minha nega, referindo-se percepo interna do enunciador, cria um

    paradoxo, uma vez que esse elemento interno existe em razo do externo. Minha nega est

    no mundo, faz parte das Coisas do mundo com as consequncias que essa realidade

    imprime. A sntese final, se que possvel e mesmo desejada, s se d aps a cano, ou

    melhor, talvez se inicie aps a sua audio.

    As sete estrofes que compem a cano esto dividas em dois tipos: as primeiras se

    agrupam em quatro estrofes e as demais em trs. Aquelas se destacam pela musicalidade,

    estas pela enunciao. A estrofe que inicia a cano est estruturada por um grupo de seis

    versos que funcionam como refro meldico em toda a cano:

    Hoje eu vim minha nega Como venho quando posso

    Na boca as mesmas palavras

    No peito o mesmo remorso

    Nas mos a mesma viola

    Onde gravei o teu nome

    So versos hexasslabos e heptasslabos, estes majoritrios. Devido sua estrutura

    meldica de fcil memorizao, a redondilha maior uma das mtricas mais simples e mais

    utilizadas na lngua portuguesa. Esse refro meldico entrecorta os instantes em que a

    enumerao dos acontecimentos justifica a ida do enunciador ao encontro da amada,

    funcionando como momento de repouso na cano.

  • H um equilbrio entre os sons consonantais e voclicos. A nica recorrncia

    significativa de um determinado fonema consonantal ocorre com o /s/, situado entre o fim do

    segundo e o incio do quinto versos, funcionando como mecanismo de acelerao em relao

    desacelerao meldica inicial da estrofe. Essa tenso, que pressupe a existncia de uma

    linha demarcatria entre acelerao e desacelerao, de grande valia para o estabelecimento

    de mltiplas relaes entre melodia e letra.8

    Se se comparar a sua pouca utilizao nos demais enunciados das outras estrofes-

    refro, a recorrncia da sibilante /s/ produz uma reverberao que evoca movimento. Quanto

    s vogais (tonas e tnicas), as mais expressivas so os fonemas /a/ e /o/, que fazem um

    movimento de abertura e fechamento da massa sonora.

    Hoje eu vim minha nega Como venho quando posso

    Na boca as mesmas palavras

    No peito o mesmo remorso

    Nas mos a mesma viola

    Onde gravei o teu nome

    Essa sobriedade na utilizao de consoantes e vogais, de som aberto e som fechado,

    reforada pela interpretao de Paulinho da Viola. A voz pausada, entoada de modo quase

    falante, assegura aos sintagmas um valor especial que ultrapassa o significado comum do

    cotidiano. O canto transforma a palavra, estende o seu som e a sua capacidade sugestiva,

    recria significaes a partir da reelaborao criativa entre emisso e pausa, acentuao e

    suavidade e, acima de tudo, reclama para si a ateno que numa situao casual se centraria

    no contedo carregado pelo significante.9

    8 Cf. Luiz Tatit. A construo do sentido na cano popular. In Musicando a semitica. So Paulo,

    Annablume, 1998, p. 87-98. 9 Cf. Paul Valry. Poesia e pensamento abstrato. In Variedades. So Paulo, Iluminuras, 1991, p. 201-18.

  • Isso s acontece em razo do entendimento profundo que o intrprete tem daquilo que

    canta, do som das palavras, do seu efeito na cano e tambm da qualidade do seu timbre de

    voz - um dado fundamental nas interpretaes de Paulinho da Viola. A voz, que transforma o

    simples em mgico, j se mostra depurada e praticamente pronta desde o seu primeiro

    trabalho solo.

    Os momentos de repouso nas estrofes-refro podem ser constatados pelo

    abrandamento da melodia, auxiliada pelo corpo harmnico da base orquestral. a

    continuidade sonora auxiliando a continuidade emotiva. As estrofes transcorrem quase sem

    interrupo, as unidades sonoras se aglutinam sem elementos entrecortantes que se

    sobressaiam e os acordes, encadeados harmonicamente sem dissonncias funcionais, no

    interferem pontualmente no tnue pulso meldico. Esses momentos traduzem o grau de

    proximidade entre o enunciador e a amada:

    Hoje eu vim minha nega Como venho quando posso

    Na boca as mesmas palavras

    No peito o mesmo remorso

    Nas mos a mesma viola

    Onde gravei o teu nome

    Hoje eu vim minha nega

    Andar contigo no espao

    Tentar fazer em teus braos

    Um samba puro de amor

    Sem melodia ou palavra

    Pra no perder o valor

    Hoje eu vim minha nega

    Querendo aquele sorriso

    Que tu entregas pro cu

    Quando eu te aperto em meus braos

    Guarda bem minha viola

    Meu amor e meu cansao

    Hoje eu vim minha nega

    Sem saber nada da vida

    Querendo aprender contigo

  • A forma de se viver

    As coisas esto no mundo

    S que eu preciso aprender

    Essas estrofes-refro so as partes mais meldicas em toda a cano, em que a melodia

    flui impondo s palavras o seu ritmo e compasso. Da a base harmnica estar estruturada em

    torno da variao dos graus da escala do acorde fundamental de (D): D, B7, Em7 e A7.

    Embora a harmonia transite por acordes de outras tonalidades, usados como passagem ou

    preparao, D#7, E7/9, F#7 e G#7, a trajetria meldica permanece na tonalidade de r maior.

    Esses acordes modulam o engate e desengate sonoro sem configurar uma nova tonalidade.

    mi

    vim nha

    po

    je eu

    Ho sso

    Como venho

    nega quan

    do

    D B5+/7 E7/9 A7 D

  • la

    mor

    vras

    Na boca as mes so

    mas No peito o mes

    pa mo

    re-

    B7 Em7 A7 D

    vio

    la On

    mos mes de

    Nas a ma gra teu no

    vei teu

    me O

    (2)

    O

    (1)

    nome

    B7 Em7 A7 D

    Avulta, nessas curvas meldicas, a musicalidade expressiva no uso das palavras. No

    primeiro quadro, o segundo verso o desenho invertido do primeiro. Nele, ocorre um salto de

    13 semitons entre a slaba quan(do) e a slaba (po)sso. Tem-se ali um ponto de tenso, face

  • modalizao da voz na alta frequncia, mas a tenso inicial que vinha progredindo desde o

    final da orao anterior se desfaz pelo repouso na regio mais grave da tessitura: quan(do).

    Essa ascendncia de mais de uma oitava de tom e as demais pequenas ascendncias

    valorizam a extenso voclica, fazendo perdurar a sensao de continuidade emotiva que o

    ouvinte capta. A continuidade voclica sensibiliza no ouvinte os valores emotivos, ainda mais

    que esses valores so suscitados pela peculiaridade das palavras cantadas.

    A audio inicial da cano faz prevalecer a sensao de que os saltos intervalares so

    menores e de que se trata de uma quantidade menor de notas utilizadas na melodia. Essa

    variao nos segmentos menores da melodia mais um fator de expressividade na cano. Por

    isso, os maiores saltos de intervalo ocorrem no trmino das frases e os instantes asseverativos

    se do na descendncia, tal qual na fala, dificultando a previsibilidade sonora inicial, por criar

    tenso em locais onde normalmente ela j se desfez.

    Os constantes saltos de semitom tm justamente a funo de evitar o contorno das

    clulas rtmicas que o ritmo sustenta, considerando que se trata de um samba, gnero que se

    caracteriza pela capacidade estilstica de formar motivos rtmicos, devido pulsao oriunda

    do emprego majoritrio de instrumentos de percusso.

    No terceiro e ltimo diagrama, o ltimo verso da estrofe, Nas mos a mesma

    viola/Onde gravei o teu nome, tem desenho meldico que difere da primeira entonao, o

    que prolonga a durao e o estado emotivo presente no sexteto, impedindo a velocidade

    exigida para a instaurao e repetio de motivos. Na primeira apresentao, o verso, aps

    algumas curvas, repousa no mesmo semitom em que o refro iniciado (F#), uma regio

    intermediria se se considerar os 18 semitons utilizados na tessitura meldica, mas com uma

    ascendncia de quatro semitons da tnica (D) do acorde a partir do qual a harmonia se baseia.

    Essa ascendncia se torna descendncia quando o verso repetido e finalizado na nota

    fundamental da tonalidade. A ascendncia da primeira entonao acompanhada de uma

  • breve tenso harmnico-meldica que se esvai na segunda vez em que o verso cantado,

    alm de finalizar a configurao meldica da estrofe, reafirmando, na esfera musical, o

    contedo lingustico da enunciao.

    Diferentemente das estrofes-refro, nas demais, que chamo enumerativas por

    descreverem o cotidiano, o prolongamento sonoro das vogais substitudo pela percusso das

    consoantes. O perfil meldico apresenta diferenas e algumas vezes acontece da mesma frase

    musical acomodar frases lingusticas de diferentes mtricas. como se a melodia corresse

    atrs das palavras, estendendo-se ou se encurtando para abarcar o lxico.

    As trs estrofes enumerativas representam a letra em oposio msica que as

    estrofes-refro representam. Essa dualidade, presente desde o ttulo da cano, muito

    instigante, j que as estrofes essencialmente meldicas so as mais intelectuais, fazendo

    convergir no interior da cano as contradies esparsas individualmente. Em contrapartida,

    nas estrofes-refro h um nvel maior de elaborao do discurso, quer pela seleo, quer pelo

    arranjo das palavras. por meio delas que se chega s mais belas imagens da cano:

    Hoje eu vim minha nega Andar contigo no espao

    Tentar fazer em teus braos

    Um samba puro de amor

    Sem melodia ou palavra

    Pra no perder o valor

    As trs estrofes enumerativas so formadas por doze versos cada. Enquanto nas

    estrofes-refro o esquema rtmico mais delineado devido marcao regular, nas

    enumerativas h maior variedade na pulsao meldica devido maior proximidade com a

    fala. O primeiro verso da estrofe, Venho do samba h tempo nega, insere alguns

    pormenores no percurso meldico e as inclinaes da voz beiram a narrativa oral.

  • Cada uma das estrofes enumerativas praticamente repete os mesmos procedimentos

    meldicos e lingusticos de estruturao. A primeira estrofe se repete na segunda e na terceira,

    mas com o acmulo de traos significativos. A primeira estrofe pinta uma cena do enfermo

    reclamo, a reiterao na segunda se d com o alcolatra inveterado, e na terceira pelo

    homicdio banal. So trs moribundos desesperanados que vivem uma realidade trgica,

    irremedivel e ao mesmo tempo tola, porque focada em um nico dos inmeros aspectos que

    compem as Coisas do mundo: doena, bebida e violncia.

    Mas, apesar do aparente descompromisso do enunciador para com essas realidades,

    no se trata meramente de descrio. Mesmo enquanto passante, o enunciador mantm o seu

    carter reflexivo. Sobre o primeiro moribundo - no nico trecho da cano que no finaliza na

    tnica (D) e sim em F#m7 - ele diz:

    Cantei um samba pra ele Foi um samba sincopado

    Que zombou do seu azar

    Na segunda estrofe, o procedimento mais ou menos repetido, mantendo-se a ironia

    como trao dominante:

    Cantei um samba pra ele Que sorriu e adormeceu

    Na terceira, frente ao moribundo morto, ele se cala e nada entoa. A morte silencia a

    ironia por ser a ironia suprema, superior a todas as demais. O silncio da morte traz tambm o

    silncio do enunciador, consciente da impotncia da msica frente inexorabilidade da morte:

  • No tirei minha viola Parei, olhei, vim membora Ningum compreenderia

    Um samba naquela hora

    Os versos finais da estrofe encerram um significado particular na cano. A mesma

    ideia reiterada nessas trs estrofes, sendo que os versos culminam com a morte. Esse fim

    simblico tambm o apndice para a retomada da linha meldica da cano. Fundamentais,

    esses versos retratam a morte mas trazem o enunciador vida e sua meditao:

    Hoje eu vim minha nega Sem saber nada da vida

    Querendo aprender contigo

    A forma de se viver

    As coisas esto no mundo

    S que eu preciso aprender

    Se, na primeira estrofe-refro, o enunciador falava de contradies e remorso com

    palavras presas boca, na segunda ele avana para um estado potico. Na terceira, repousa

    sobre uma realidade vista como benfica. Nesta ltima, ele ascende ao plano das ideias, pura

    reflexo sobre o viver, focalizando o amor pela mulher, sentimento que deve gui-lo nas

    descobertas do desconhecido, das Coisas do mundo. Isso comea a se desenhar sob a forma

    de uma familiaridade mediada pelas experincias vividas e sobretudo pelo sentimento

    amoroso que guia o enunciador, humilde e incerto, mas j no to frgil. Aspectos

    aparentemente antagnicos - msica/letra, emoo/pensamento, movimento/repouso - tm um

    tratamento to peculiar quanto coeso na atmosfera potica dessa cano.

    Abaixo, tm-se os diagramas dos segmentos meldicos da primeira das estrofes

    enumerativas.

  • sam

    Venho do por

    tem Vim parando

    ba h Primeiro achei Z

    po nega a leiro

    Fu

    B7 Em7 A7 D B7 Em7

    nunca

    Que a sorte

    chega Est sem a

    lhe mor sem dinheiro

    Que me falou de

    ena

    do e

    A7 F#m7 B7 Em7 F#7 Bm

  • Puxei ento da o

    no dispu vi

    nha pu dar la

    Perguntou se eu De algum que de

    sse

    E7 Em7 A7 Em7

    zar

    pa Que zombou do seu

    e Foi um samba sin a

    co do

    Cantei um samba

    pra le

    A7 F#m G#7 C#7 F#m7

    Exceto no primeiro verso, em que h inflexes ascendentes e descendentes por quase

    todo o segmento meldico, nos demais, as frases se acomodam num nico semitom, fazendo

    curvas nas notas finais. A finalizao do verso meldico na ascendente se deve sua

    continuao no verso seguinte, o que se repete mesmo no final do ltimo verso meldico,

    Que zombou do seu azar, em que a melodia ascende ao penltimo semitom (C#), ligando-se

  • melodicamente estrofe-refro. Esse verso e aquele que o antecede, Foi um samba

    sincopado, so os instantes de maior tenso harmnica na estrofe, em que a harmonia (G#7)

    delineia o sentido das palavras e deixa a melodia suspensa.

    A inscrio de versos meldicos em praticamente um nico semitom revela instantes

    de grande proximidade com a fala: Primeiro achei Z Fuleiro, Que me falou de doena, e

    Cantei um samba pra ele. Mas, em todos eles, Paulinho da Viola flexiona melodicamente as

    slabas finais, alternando entre a opo pelo enunciado e a opo pela msica - procedimento

    que burla a obviedade meldica, impedindo a sua identificao prvia, alm de permitir o

    escorrer comedido da emisso de cada slaba nas suas devidas notas. Esse equilbrio tambm

    se fundamenta por meio da durao da nota e do respectivo tempo de durao da slaba

    (palavra) no semitom.

    Como j foi dito, a elevao da zona de articulao para as frequncias elevadas cria

    uma tenso sonora, por ampliar a durao dos sons voclicos, em contraposio percusso

    dos sons consonantais. Ao utilizar esse procedimento, paralelo manuteno do semitom, a

    melodia termina por sublinhar pequenas clulas rtmicas face a essa constante repetio.

    Embora esse dado no se configure por completo, transformando-se em apelo somtico para o

    ouvinte, as estrofes enumerativas evidenciam na marcao rtmica uma acentuao que no se

    verifica nas estrofes-refro.

    Essa disposio harmnica configura um tema meldico, espcie de Leitmotiv, que

    cria expectativa e interesse no ouvinte. As irregularidades na notao meldica de Coisas do

    mundo, minha nega vm do choro, dos seus fundamentos de improvisao e do amplo

    desenho meldico das suas peas musicais. A revigorao desse topos meldico na msica de

    Paulinho da Viola permite falar no caminho de volta, ao retomar, pela arte musical, o

    percurso cultural da raa negra no Brasil.

  • Os versos meldicos efetuam um procedimento de descendncia e ascendncia

    anlogo ao que acontece no interior de cada verso. O primeiro verso meldico se inicia no

    semitom (A), o segundo desce um tom inteiro (G), mas o terceiro no prossegue nessa

    regularidade, descendo apenas um semitom (F#). O quarto verso desce um tom inteiro (E), j

    o quinto ascende cinco semitons (A) em relao ao incio do ltimo. No sexto verso, a

    descendncia de dois semitons (G), no stimo ela de cinco semitons (D); j o oitavo verso

    permanece no mesmo semitom anterior. No nono verso tem-se novamente uma ascendncia

    de cinco semitons (G) e no dcimo mantida a mesma altura. No dcimo primeiro verso, a

    ascendncia de dois semitons, a mesma distncia do dcimo segundo e ltimo verso.

    Esse ziguezague meldico convida o ouvinte a ouvir a cano repetidas vezes. O

    enunciado at pode ser apreendido na primeira audio, mas o percurso meldico no se fixa

    numa nica fruio, dificuldade que se assemelha ao desconhecimento das Coisas do

    mundo.

    Sinal fechado, cano vencedora do V Festival de MPB da TV Record em 1969 e

    que foi gravada no compacto duplo Paulinho da Viola junto com Foi um rio que passou em

    minha vida, alcanou grande projeo na crtica da poca, embora tenha sido vaiada durante

    as apresentaes do festival devido linguagem musical do dilogo. Da controvrsia, resultou

    uma entrevista do compositor ao Correio da Manh, do Rio de Janeiro, em 24 de janeiro de

    1970: Sinal fechado uma experincia nova que eu fiz. Mas a msica no tem nada de

    novo. No existe esse negcio que falam, de que ela abre caminhos (...). uma consequncia

    do contato que tive com msicos mais recentes - Caetano, Gil, Chico e Edu - e com as

    diversas correntes da msica brasileira, desde 1964(...). O que fiz de novo foi utilizar o que

    Villa-Lobos fez h muito tempo - a inverso de certos acordes, deixando a prima do violo

    solta. 10

    10

    Nova histria da MPB. Op. cit., contracapa.

  • Ol, como vai Eu vou indo e voc tudo bem

    Tudo bem eu vou indo

    Correndo pegar meu lugar 1 perodo

    No futuro e voc

    Tudo bem eu vou indo

    Em busca de um sono tranquilo

    Quem sabe

    Quanto tempo, pois quanto tempo

    Me perdoe a pressa

    a alma dos nossos negcios

    Pois no tem de que

    Eu tambm s ando a cem

    Quando que voc telefona 2 perodo

    Precisamos nos ver por a

    Pra semana talvez nos vejamos

    Quem sabe

    Quanto tempo pois

    Quanto tempo

    Tanta coisa que eu tinha a dizer

    Mas eu sumi na poeira das ruas

    Eu tambm tenho algo a dizer

    Mas me foge lembrana

    Por favor telefone eu preciso saber

    Alguma coisa rapidamente

    Pra semana o sinal

    Eu procuro a voc vai abrir

    Vai abrir

    Prometo no esqueo

    Por favor no esquea, no esquea, no esquea

    Adeus

    A letra pode ser entendida como um dilogo num encontro casual no trnsito de uma

    grande cidade, mas a melodia e a harmonia so complexas em termos de cano popular. O

    efeito de estranhamento na msica provocado pelos acordes com segunda menor e pelos

    constantes deslocamentos ascendentes, que imprimem uma configurao inusitada na cano.

    harmonia cabe glosar e distribuir a tenso entre os segmentos do canto e da melodia,

    realizao que um acompanhamento simples no alcanaria com a mesma intensidade.

    Sinal fechado tem uma letra equivalente a um belo poema, cujo ritmo das frases

    produz um paralelo interessante entre forma e contedo. Utilizando o verso livre, o ritmo

  • impulsionado pela melodia das palavras, pela vibrao das consoantes e pela harmonia sonora

    das vogais. A concatenao das oraes estabelece dois perodos, o primeiro compreende os

    nove versos iniciais que retratam o encontro dos dois personagens, e o segundo os versos

    restantes que narram a despedida. No primeiro perodo, os versos tm uma cadncia menos

    acelerada, motivada pelo encontro e pela possibilidade da troca de emoo ou pela tentativa

    de faz-lo. No segundo perodo, a fugacidade do encontro e a inevitvel partida fazem com

    que a cadncia seja acelerada, aumentando a tenso gerada no primeiro perodo, decorrncia

    da iminncia da abertura do sinal e do rompimento do dilogo.

    Em todo o poema, as palavras escolhidas so as mesmas usadas com regularidade no

    cotidiano, exceto algumas construes que, embora usando palavras comuns, so especficas

    no contexto: correndo pegar meu lugar no futuro, em busca de um sono tranquilo, mas

    eu sumi na poeira das ruas e eu preciso saber alguma coisa rapidamente, que se destacam

    enquanto smbolos no texto justamente por apontarem para algo que no ocorre na cano -

    velocidade. Por certo no se trata de algum querendo dar um cochilo, que mais parece aluso

    morte, nem faz sentido, no contexto do trnsito, correr para o futuro ou dizer que se esvaiu

    na poeira das ruas, muito menos querer saber alguma coisa rapidamente.

    Pode-se interpretar a cano como um dilogo entre dois motoristas parados no

    semforo de uma grande cidade, aludindo represso poltica e institucionalizao da

    violncia nos tempos da ditadura. Os versos seriam ento a mimetizao da impossibilidade

    do dilogo e do que ele representa numa sociedade democrtica. Mas como pensar, nessa

    leitura, no significado dos versos destacados, visto que eles se deslocam do tom coloquial da

    conversa? Em busca de um sono tranquilo e os demais versos destacados fazem-me crer na

    existncia de uma outra voz. esse outro personagem, espcie de alterego do compositor, o

    responsvel pelos deslocamentos de significado na conversa, a ele atribuo algumas das falas

  • que aparentemente so dos dois motoristas. essa apropriao arbitrria da fala que produz

    um sentido inteiramente novo na leitura dos versos:

    Interlocutor 1: - Ol, como vai?

    Interlocutor 2: - Eu vou indo.

    Alter-ego: e voc tudo bem? Interlocutor 1: Tudo bem eu vou indo!

    Alter-ego: Correndo pegar meu lugar no futuro e voc?

    Interlocutor 2: Tudo bem!

    Alter-ego: eu vou indo em busca de um sono tranquilo, quem sabe? Interlocutor 1: Quanto tempo!

    Alter-ego: pois quanto tempo... Interlocutor 2: Me perdoe a pressa.

    Alter-ego: a alma de...

    Interlocutor 1: Os nossos negcios, Alter-ego: Pois no tem de que.

    Interlocutor 1: Eu tambm s ando a cem. Quando que voc telefona?

    Alter-ego: Precisamos nos ver por a.

    Interlocutor 2: Pra semana, prometo...

    Alter-ego: talvez nos vejamos, quem sabe? Interlocutor 1: Quanto tempo?!

    Alter-ego: pois quanto tempo... Interlocutor 1: Tanta coisa...

    Alter-ego: que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas. Interlocutor 2: Eu tambm...

    Alter-ego: eu tenho algo a dizer mas me foge lembrana. Interlocutor 1: Por favor telefona...

    Alter-ego: eu preciso saber alguma coisa rapidamente. Interlocutor 2: Pra semana?!

    Alter-ego: o sinal. Interlocutor 1: Eu procuro a voc.

    Alter-ego: vai abrir, vai abrir. Interlocutor 2: Prometo.

    Alter-ego: no esqueo, por favor no esquea, no esquea, adeus.

  • Pela disposio das falas, percebe-se que os versos poderiam ser trocados

    indefinidamente entre os personagens. Qualquer um deles poderia estar dizendo o que

    atribudo fala do outro. A cano, nesse caso, seria uma profuso indistinta de vozes no

    poema.

    Sob esse prisma, os versos de Sinal fechado representariam no apenas um encontro

    no trnsito, mas apenas o relato de uma nica voz que se vale do expediente do dilogo para

    se ocultar. Nesse caso, a cano poderia ser tomada como uma sucesso de indagaes

    metafsicas, ligadas ao tempo e sua supresso: a morte. Essas impresses so reforadas

    com o auxlio da anlise musical.

    Ol--

    mo vai in

    co vou do e c bem

    Eu

    vo tudo

    A espacializao da melodia mostra a simulao das vozes, ainda identificveis; cada

    uma se estabelece a partir do mesmo intervalo de 3 menor na descendncia, o que projeta

    uma regularidade meldica. No fim do segmento, ao invs de uma descendncia finalizando a

    asseverao, ocorre uma ascendncia, compatvel com o carter de interrogao que se fixa

    como motivo meldico.

  • Essa ascendncia se repete nos prximos segmentos e demonstra, alm da

    presentificao do questionamento que se faz a todo instante - mesmo quando se finaliza o

    enunciado -, a estratgia meldica de misturar uma frase outra, dificultando a sua

    identificao ao mesmo tempo que faz desse procedimento a matria da cano.

    Como resultado, os encadeamentos e os graus de tenso aumentam medida que a

    harmonia avana. como se a melodia seguisse na horizontal e os pontos nevrlgicos

    surgissem do apontamento vertical da harmonia em locais especficos, de acordo com o

    sentido e importncia suscitados pela letra. Na parte harmnica, do primeiro verso at o final

    do sexto, ocorre a modulao dissonante de um nico acorde (Em9, Em5+/9 e Em5+, exceto

    D# ), em que a permanncia da tnica constri um tecido sonoro repetitivo e angustiante pelo

    acrscimo do intervalo de nona maior.

    indo rren gar gar

    bem do meu

    do vou Co pe lu

    Tu eu

  • bem indo

    No futu do vou

    ro e c Tu eu

    vo

    Violo e base de orquestra fixam o ambiente sonoro melanclico na introduo pela

    sonoridade cclica da repetio ininterrupta das notas no violo. Na maior parte da cano,

    somente o violo utilizado e quando a orquestra preenche o espao sonoro com uma gama

    maior de som, a cano atinge nveis ainda maiores de dramaticidade. Violo e orquestra

    funcionam como elementos de um cenrio influente, em que a voz de Paulinho de Viola se

    movimenta, traando, atravs do motivo meldico ascendente, indagaes existenciais.

    A singularidade da construo do espao sonoro, onde as dissonncias impregnam o

    tecido meldico, causa um constante deslocamento espacial e as ascendncias indicam a

    continuao do fluxo sonoro e o prolongamento no tempo e no espao, alm de aludir ao

    medo do homem na busca pelo seu destino, fato que designa a edificao do prprio espao-

    temporal.

    A harmonia em Sinal fechado se mostra em aberta, pois da interseco entre as

    linhas meldicas e a letra da cano tem-se a configurao de um espao que no se restringe

    ao cenrio urbano. Espao e tempo em sintonia com o espao e tempo da cano, eis a sua

    mola propulsora.

    Comprimido (Nervos de Ao, 1973) uma cano em que o equilbrio entre letra e

    melodia se traduz por uma perfeita fuso e intercmbio de significados. Aos versos da letra se

  • impe uma correspondncia meldica e harmnica muito sugestiva. O componente

    lingustico, um poema urbano, trata de um caso banal de desamor. uma cena realista que

    foge dos esteretipos ao tratar o tema com espontaneidade, mostrando instantes poticos

    atravs de uma descrio apoiada na fala oral. A cano cita Cotidiano (Chico Buarque,

    1972), que refora a caracterizao do espao e dos personagens narrados.

    Deixou a marca dos dentes dela no brao Pra depois mostrar pro delegado

    Se acaso ela for se queixar da surra que levou 1 modalizao

    Por causa de um cime incontrolvel

    Ele andava tristonho, guardando um segredo

    Chegava e saa, comer no comia

    E s bebia, cad a paz 2 modalizao

    Tanto que deu pra pensar que poderia

    Haver outro amor na vida do nego

    Pra desassossego e nada mais

    Seu delegado ouviu e dispensou

    Ningum pode julgar coisas de amor

    O povo ficou intrigado com o acontecido

    Cada um dando a sua opinio

    Ela acendeu muita vela pediu proteo

    O tempo passou

    E ningum descobriu

    Como foi que ele se transformou

    Uma noite

    Noite de samba

    Noite comum de novela

    Ele chegou pedindo um copo dgua Pra tomar um comprimido 3 modalizao

    Depois cambaleando foi pro quarto

    E se deitou

    Era tarde demais

    Quando ela percebeu

    Que ele se envenenou

    Seu delegado ouviu e mandou anotar

    Sabendo que h coisas que ele no pode julgar

    S ficou intrigado quando ela falou 2 modalizao

    Que ele tinha mania

    De ouvir sem parar um samba do Chico

    Falando de coisas do dia-a-dia

  • Chama ateno em Comprimido a sugestividade do arranjo instrumental e o modo

    como ele cria uma atmosfera musical propcia ao relato da histria. O arranjo funciona como

    uma segunda voz, ou como uma outra narrativa, em nvel musical, que dialoga com o texto

    lingustico.

    A linearidade meldica se apresenta por trs movimentos harmnicos distintos, que

    modalizam o grau de tenso dos versos assinalados. Na primeira modalizao, o

    acompanhamento instrumental simula um clima de suspense, intercalando a sonoridade da

    tnica (C) duas oitavas abaixo, cuja repetio alude rotina do cotidiano e gravidade do

    drama narrado.

    O efeito sonoro se amplia quando aparece um agog produzindo frases sonoras que,

    contrapondo-se fala do enunciador, aumentam a tenso dos versos e encaminham a

    sonoridade ao anticlmax. A dico cautelosa e a voz, quase falada, confere descrio a

    frieza tpica dos relatos policiais.

    Deixou--a--marca--dos- --bra-

    -- den-- ---o

    --tes--de- --no--

    --la--

  • --pois mos-- --gado

    --trar

    Pra de-- pro-----dele---

    --acasoela

    for --xar

    se- da que vou

    Se-- surra

    --quei- le

    Por deum

    cime

    causa in-- l

    vel

    --contro

  • Pela assimetria dos intervalos nesses segmentos, depreende-se a irregularidade

    meldica da cano. A disposio das notas surpreende e a cadncia meldica imprevisvel,

    acelerando ou retraindo a velocidade da emisso. Por detrs desse procedimento, encontra-se

    a particularidade do canto de Paulinho da Viola - a sncope.

    Na segunda modalizao, a sonoridade ganha volume com a percusso e a flauta, que

    reinserem a tenso interrompida nos versos finais da primeira modalizao. O alongamento

    das vogais alude ao momento passional, impulsionando a melodia e a harmonia para o clmax

    que acontece na terceira modalizao.

    se

    --dava- guardando um gre

    --tris

    Ele--an-- tonho

    do

    --bia ca-

    --mia E s be d

    a

    a comer no co

    paz

    Chegava e sa

  • As vogais se alongam e praticamente todo o enunciado cantado na mesma regio da

    tessitura, efeito da disforia dos personagens.

    O momento mais simblico da cano acontece na terceira modalizao, quando

    caracterizado o espao dos personagens com as palavras samba e novela. A tenso

    referida inicialmente pelo cotidiano (repetio da tnica C) encontra a a sua plenitude.

    Novela e samba so ndices do espao e da vida narrados, indicando, simultaneamente, o

    meio social e a estratgia de fuga realidade de pobreza.

    --noite Noite---de mum

    samba

    Uma

    Noite--co

    de novela

    --dindo um co

    Pra tomar um

    --gou pe--

    comprimido

    Ele che--

    ---po dgua

  • pois cambaleando foi

    pro quarto E se

    De deitou

    tarde de

    mais Quando ela perce

    Era beu Que ele se en

    venenou

    Nessa ltima modalizao, o arranjo da cano se vale apenas do tamborim,

    intercalado por notas de piano ao fundo. Na ltima frase, uma descendncia de sete semitons

    assevera o final do suplcio. Resta o silncio, epifnico, que antecipa o suicdio do

    protagonista e simboliza o vazio daquela condio.

    Nas canes at aqui analisadas, Paulinho da Viola reinventa e atualiza o samba com

    muita criatividade. Em outras, como Guardei minha viola (A dana da solido, 1972), No

    pagode do Vav (A dana da solido, 1972) e Argumento (Paulinho da Viola, 1975), ele

    faz da recriao do estilo tradicional o ponto de referncia para o dilogo com o presente.

    Essas canes mostram a preocupao do cancionista em resgatar a batida tradicional e em

  • manter o seu trao de espontaneidade, cujos destaques so a melodia e o refro, espcie de

    resumo do motivo meldico e da letra, que funciona em geral como crnica do cotidiano.

    assim em Guardei minha viola.

    Minha viola vai pro fundo do ba No haver mais iluso

    Quero esquecer ela no deixa

    Algum que s me fez ingratido

    Minha viola

    No carnaval

    Quero afastar

    As mgoas que meu samba no desfaz

    Pra facilitar o meu desejo

    Guardei meu violo

    No toco mais

    Minha viola

    Guardei minha viola mostra algum desiludido com o amor e que culpa o

    instrumento pela lembrana do ser amado, prometendo que com o carnaval a tristeza ir

    embora. A simpatia que a cano desperta e os impulsos somticos para a dana esto

    concentrados no desempenho da melodia e da harmonia. Pelo conjunto harmnico, as frases

    simples adquirem importncia, mas o que predomina o ritmo e no a mensagem lingustica.

    Harmonicamente, uma cano simples, que se vale da facilidade do refro para imprimir o

    sentido da melodia, sendo que a segunda parte da letra mero desdobramento meldico do

    refro. uma cano simples, cuja melodia bem marcada facilita a sua memorizao.

  • mas--i s

    lu o

    ver

    vai pro h

    No

    viola

    nha ---fundo

    Mi do ba

    quecer dei

    ro es e Al

    Que la no gum

    que

    xa --s me ti

    ingra do

    -