Upload
others
View
10
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
12
Valéria Mac Knight
Dissertação de Mestrado
2007
UFRJ
Ciência da Literatura
13
TEIA DE ENCANTOS: HORIZONTES NA POESIA
Valéria Mac Knight
Dissertação em Literatura Comparada, submetida ao Programa de Pós Graduação em
Ciência da Literatura do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Mestre em
Literatura Comparada, sob orientação do Professor Dr. Alberto Pucheu Neto.
UFRJ
Rio de Janeiro
2007
14
FOLHA DE APROVAÇÃO
Dissertação de mestrado: Teia de encantos: horizontes na poesia
Autor: Valéria Mac Knight
Orientador: Dr. Alberto Pucheu Neto
Data da defesa: 30 de Janeiro de 2007
Aprovada por:
Professor Alberto Pucheu Neto Instituto de Letras – Programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ
Orientador/Presidente da Banca Examinadora
Professor Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho (UFRJ)
Professora Doutora SONIA Regina Aguiar TORRES (UFF)
Rio de Janeiro
2007
15
Mac Knight, Valéria.
Teia de encantos, horizontes na poesia. / Valéria Mac Knight. - Rio de Janeiro,
2007.
Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) – Universidade Federal
do Rio de Janeiro – UFRJ, Instituto de Letras – Programa de Pós Gradua-
cão em Ciência da Literatura, 2007.
Orientador: Alberto Pucheu Neto
1. Herdeiros de Sócrates. 2. Contraponto a Hegel 3. Horizontes na poesia, uma
leitura em Michel Collot. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa
de Pós Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras.
16
Esta Dissertação de Mestrado foi desenvolvida na
Universidade Federal do Rio Janeiro, com apoio do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq).
17
Dedico este trabalho a todos os
que semeiam encantamento.
18
Quero registrar meu agradecimento especial a
Thereza Sita de Cars, minha tia querida,
que me proporcionou o essencial para
prosseguir com esta pesquisa, à memória
de meus pais e a meus filhos
Marina e Flavinho.
19
Poderíamos perguntar porque os pensamentos mais profundos se
encontram nos escritos dos poetas mais do que nos dos
filósofos. A razão está no fato de os poetas serem
movidos por entusiasmo e pela imaginação,
enquanto os os filósofos são atraídos pelo raciocínio.
Os poetas, pela força da imaginação,
fazem os pensamentos jorrar e melhor brilhar.
Descartes: Cogitaniones Privatae
20
RESUMO
Desenvolvem-se algumas reflexões acerca da poesia moderna e contemporânea tendo como
principal fundamentação teórica idéias desenvolvidas por Michel Collot. Os fundamentos da
arte lírica e as transformações do lirismo são desenvolvidos ao longo do trabalho, assim como
o tema central – a poesia lírica fora-de-si – que nos levou a buscar em Nietzsche um ponto de
partida, por entender que o filósofo alemão apresenta um olhar que encontra na arte uma
solução para o desencanto do homem no mundo. Nos debruçamos pelo caminho da poesia
lírica através dos séculos: a partir de um olhar anacrônico lançado a esse percurso, pudemos
constatar que a poesia lírica nem sempre foi subjetiva, o que confirma a proposição de Collot
em seu texto O sujeito lírico fora-de-si de que o lirismo não se encontra no subjetivo e que
talvez tenha sido este período subjetivo um estado de exceção e não de regra. A mudança do
conceito do eu lírico do poeta subjetivo para o eu lírico fora de si é trabalhada com alguma
insistência, a fim de apresentar o encadeamento de idéias que leve ao entendimento de que o
poeta, estando fora de si, pode relacionar-se com o mundo como outro, na linguagem. Não foi
escolhido um autor, mas vários, e o critério para escolha dos poemas foi entrelaçar teoria e
prática poética de poetas que conseguiram subverter a realidade e introduzir encanto na
trivialidade do cotidiano, possibilitando novos horizontes em suas escritas. O tema do
horizonte é trabalhado a partir da fundamentação teórica em Husserl e seu conceito de
estrutura de horizonte. Por analogia, o horizonte da escrita é o paradoxo da representação do
real pela linguagem, da estampa da ficção compartilhada por vários sujeitos anacronicamente,
a escrita atravessa os séculos e esfacela a lonjura e a distância, aproximando mundos,
afastando e nos aproximando também de nós mesmos; o ser humano pode enfim desdobrar
sua reflexão acerca de sua existência e sua relação com o mundo, em uma confirmação de que
literatura é vida.
21
ABSTRACT
Some thinking on modern and contemporaneous poetry is unfolded having as its main
theoretical foundation some ideas developed by Michel Collot. The fundaments of liric art
and its transformations are developed as well as its main theme – non subjective lyrical poetry
– which led us to find in Nietzsche a starting point, due to the fact that this philosopher finds
in art, a solution for the lack of enchantment associated with human existence. We focus on
the lyric poetry transformations throughout the centuries: from an anachronic point of view of
this process, we have searched, and were able to verify, that lyrical poetry was not always
subjective, what confirms Collot’s proposition in his text Le sujet lyrique hors-de-soi, where
he states that lyrism is not in the subjective, and that maybe this subjective period was the
exception and not the rule. The change from the subjective concept of lyrism to an objective
one is approached within some insistence, aiming at presenting the idea enchainment which
leads to the understanding that the poet, out of himself, may report himself to the world as
another, in language. Not one author was chosen but several, and the criteria for this choice
was to intertwine poetical theory and practice from those who were able to subvert reality and
introduce some enchantment in daily life, making new horizons possible in their writings. The
theme Horizon is developed according to Husserl’s point of view and his concept of Horizon
Structure. By analogy, the horizon of writing is the paradox of the representation of the real
by language, a fiction pattern shared by several subjects anachronically, writing crosses
centuries and breaks with distances, making worlds closer, pushing away, but also coming
closer to ourselves; the human being may at last, unfold his/her reflection on existence and
his/her report to the world, confirming that literature is life.
22
Sumário
Resumo
Introdução p.12
1 - Filósofos e lirismo
1.1 - Herdeiros de Sócrates p. 15
1.2 - A leitura de Sócrates por Nietzsche: crítica à metafísica e à ciência. p. 16
1.3 - A leitura de Nietzsche do cristianismo p. 26
1.4 - A superação da metafísica pela arte p. 32
2 - Contraponto a Hegel
2.1 - Lírica: da música à poesia moderna p. 44
2.2 - Hegel e os Primeiros Românticos Alemães p. 48
2.3 - A Poesia Lírica transmuta-se p. 51
2.4 - A desumanização do eu-lírico p. 61
2.5 - O lirismo de Hegel dissolve-se na poética moderna: emerge sujeito lírico fora-
de-si p. 64
2.6. - O Anti-Lirismo Moderno p. 74
3 - Horizonte e Poesia
3.1 - Uma leitura de Michel Collot p. 77
3.2 – Didi-Huberman e o conceito de aura em Walter Benjamin: aproximações com
Michel Collot p. 95
3.3 - O espanto na poesia p. 98
4 – Conclusão p. 106
5 – Bibliografia p. 113
23
INTRODUÇÃO:
O presente estudo busca desenvolver algumas reflexões acerca da poesia moderna e
contemporânea no Brasil, na França e nos Estados Unidos, entre outros, tendo como principal
fundamentação teórica algumas idéias desenvolvidas pelo intelectual Michel Collot, professor
da Sorbonne, Paris III. Nascido em 1952, Collot começou sua vida acadêmica em um
momento em que a cena poética era dominada pela tendência ao fechamento do texto e pelo
textualismo. A fim de elaborar uma alternativa teórica, ele se volta para a fenomenologia.
Pouco de sua obra foi traduzida para o português, até hoje, mas acreditamos na fertilidade de
suas pesquisas em livros como: L’Horizon fabuleux (Corti 1988), La poésie moderne et la
structure d’horizon (PUF 1989), La Matière-émotion (PUF, 1997), Paysage et poésie (Corti,
2005). Collot lidera seminários e colóquios sobre a poesia moderna e dirige o centro de
pesquisa écritures de la modernité. Sua produção intelectual é vasta e compreende muitos
ensaios teóricos e poesias.
O texto fundamental para a presente pesquisa: O sujeito lírico fora de si de Michel
Collot - nos levou a um percurso media-res. Primeiramente, fomos buscar em Nietzsche um
ponto de partida por entender que o filósofo alemão apresenta um olhar que vê na arte, e na
poesia uma solução para o que Sileno chamou de a maldição da existência humana; ou seja,
que o melhor para os humanos seria não ter nascido, não ser, nada ser.1 O prisma
nitzscheano nos auxiliou a apresentar o fenômeno de total desencanto que nossa civilização
vive, mas onde há também a busca de um elo perdido com o sagrado, o que daria uma
significação para essa existência. O filósofo alemão já percebera, então, a delicada trama de
vida encontrada na poesia e como esta pode insuflar a vida, com vida.
1 NIETZSCHE, Friedrich. . O Nascimento da Tragédia; ou Helenismo e Pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
24
A partir de um olhar retrospectivo lançado ao percurso da poesia lírica através do
tempo, desde os antigos gregos, especialmente o peso da influência de Sócrates na
conceituação da arte, e a posterior releitura de Nietzsche, constata-se que nem sempre a
poesia foi subjetiva, o que confirma a proposição de Collot de que o lirismo não se encontra
no subjetivo, e que talvez tenha sido o período subjetivo um estado de exceção e não de regra.
Procuramos conhecer o conceito de lirismo de Hegel e a contraposição dos primeiros
românticos alemães, e também acompanhamos algumas mudanças na produção poética do
século XX até a atualidade.
O tema “horizonte”, essencial neste estudo, foi trabalhado a partir de um olhar
fenomenológico que tem fundamentação em Husserl e seu conceito de estrutura de horizonte.
Em Didi-Huberman encontramos a contribuição de seu conceito de aura na obra de arte,
que mostra uma curiosa aproximação com o pensamento de Michel Collot. George Didi-
Huberman reelabora o conceito de aura de Walter Benjamin, despindo-a da dimensão
religiosa e conceituando a aura de um objeto de arte, ou imagem-aura, como aquilo que nos
induz, ao levantar os olhos, a ver algo além.
A obra de arte, na modernidade se dessacralizou, pelos processos de reprodução
tecnológica e pela temática, deixando de ser um simulacro de mundo superior. Ela passou a
associar-se a elementos do cotidiano, perdendo-se praticamente, ou assim parecendo ser, até
que surge uma nova forma de colocar a manifestação estética – a obra de arte crítica, que é
aquela que se impõe enquanto experiência, e o faz pela necessidade de elaboração de uma
linguagem crítica que reconfigura a banalidade do mundo cotidiano, ao mesmo tempo em que
nos reconstitui como sujeitos.
Por analogia, o horizonte da escrita é o paradoxo da representação do real pela linguagem,
da estampa da ficção compartilhada por vários sujeitos anacronicamente, a escrita atravessa os
séculos e esfacela a lonjura e a distância, aproximando mundos, afastando e nos aproximando
25
também de nós mesmos. Encontrar, pois, os fios da trama das relações entre e presença de
traços poéticos na filosofia e as formas poéticas do cotidiano, que desencadeiam nosso pensar
e nos impregnam de vida, é o que buscamos para aproximar as fronteiras entre poesia e
filosofia. O presente trabalho realiza uma reflexão acerca das possibilidades de resgate da
capacidade de se ver a beleza, a poesia nos gastos horizontes do mundo atual. Poesia e
encanto que acrescentam vida à vida, estimulando o ser humano a desdobrar sua reflexão
acerca de sua existência e relação com o mundo, em uma confirmação de que literatura é vida.
26
1. Filósofos e Lirismo
1.1 Herdeiros de Sócrates:
A modernidade implica a consciência de que não existe neutralidade possível no olhar
em relação ao passado. Todo olhar é interessado e informado pelo presente. O homem
moderno experiencia, assim, o luto por saber jamais ser possível ver o por do sol como os
gregos o viam.
A memória não reconstitui a experiência, porém, ela possibilita uma experiência em si.
A reconstituição do tempo se faz por exercício anacrônico que rompe com uma idéia linear
historicista. É no exercício do sentido histórico, como afirmou T.S. Eliot, que o intemporal
coexiste com o temporal, e em que a ordem da tradição é modificada pela introdução do novo.
Nesse refazer, atribui-se ao passado uma rede de significações e um sabor que não havia no
acontecimento original. Apesar de toda a complexidade, tal exercício do pensamento torna-se
valioso e válido à medida que a construção de uma rede de sentidos exercita novos enfoques
que, por sua vez, modificam o olhar lançado.
Ao debruçar seu olhar sobre Sócrates, Nietzsche o faz a partir do peso de todos os
séculos que os separam. Elabora uma imagem de Sócrates que subverte a idéia que
comumente se faz dele, atribuindo a sua influência o grande engano cometido ao inserir-se a
arte na ordem do metafísico. Rompendo com a dinâmica apolínea e dionisíaca, o socratismo
estético rompe os vínculos da arte com a vida, e os laços de encantamento entre elas fenecem,
pois a arte passa a trazer em si a própria reflexão, levando a perda da experiência de
comunhão com o uno original.
A fundação de um homem teórico cuja meta é compreender o mundo, a vida e a si
mesmo e a instauração da ciência dotada de uma crença petulante, de inabalável fé de que o
pensar por meio da causalidade é dotado do poder de não apenas conhecer o ser mas, também,
27
de corrigi-lo, supondo uma noção de verdade universal, são conceitos que encontram a
oposição de Nietzsche, quando ele privilegia a metafísica do artista e afirma ser a arte, e não a
ciência, que tem mais valor, pelo fato de a primeira viabilizar a vida.
1.2 A leitura de Socrátes por Nietzsche: crítica à metafísica e à ciência.
Somos herdeiros de Sócrates, de uma lógica metafísica segundo a qual os valores
racionais devem prevalecer, tornando-nos homens teóricos. Tal contexto de pensamento, em
que o conhecimento teórico tem mais valor do que o instinto estético e do que a criação em si,
faz com que Nietzsche rompa com o pensamento filosófico estabelecido e realize uma
releitura dos gregos.
Ao confessar a si mesmo que nada sabia, Sócrates buscou em Atenas várias pessoas
eminentes e reconheceu, com espanto, que a falta de conhecimento imperava; deparou-se com
a presunção do saber apenas por instinto. Por essa atitude, o socratismo passou a condenar a
arte vigente. O daimon de Sócrates condenou a arte trágica por esta não dizer a verdade.
A ausência de certezas, a falta de robustez das respostas o impulsionaram em direção a
uma busca sem fim na qual só fazia comprovar que quando mais sábio que os demais era
apenas por reconhecer em si a ignorância. Sócrates esperava que os poetas explicassem a
poesia que faziam, buscando conhecê-la. Ao julgar a poesia por um critério que havia sido
destinado pelo oráculo de Delfos, ou seja, busca o saber, Sócrates deu início a uma
peregrinação que seria o legado de toda a civilização ocidental.
A cada encontro com uma pessoa que julgava possuir algum saber, a profecia do
oráculo se cumpria: Sócrates se percebia mais sábio exatamente porque não julgava que sabia
de fato o que ignorava, na medida em que reconhecia que seu saber não existia. Estaria
Sócrates vivendo a serviço de um deus?
28
Por certo, arranjou inúmeros inimigos ao confrontá-los em seus interrogatórios. A
atuação de Sócrates incomodou a sociedade de sua época ao colocar homens eminentes e
sábios frente a frente com seus não-saberes. Entretanto, sua procura se resumiu na busca do
saber.
Através dos séculos, em um movimento universalizante, procura-se saber, persegue-se
o saber. O otimismo teórico que percebe no erro um mal em si mesmo, acrescido de um
mecanismo de busca de conhecimentos, formulações de conceitos, juízos e deduções, passou
a ser valorado como atividade superior a outras aptidões. O elemento otimista existente na
essência da dialética vive seu júbilo pelo saber.
A maldição de Sócrates fora proferida pelo oráculo: buscar o saber. Somos herdeiros
de Sócrates quando o vínculo que estabelecemos com a realidade é efetuado pelo cognoscível,
quando engendramos uma época metafísica onde só se constróem percepções de mundo pelo
conhecimento. A metafísica é a crença de existir alento, uma verdade, uma explicação, porque
nossa pequenez não comporta o nada saber. Queremos saber, precisamos achar que sabemos.
Nossa razão depende de assunções lógicas, constructos, chão. Nietzsche percebe isso como
vontade de verdade e não como a verdade propriamente dita. A vontade de verdade é uma
crença – crença na superioridade da verdade – e é nela que a ciência se funda.2
Nietzsche realiza uma reflexão acerca da visão antropocêntrica de mundo tecida pelo
homem, desde a presunção nascida com a invenção do conhecimento, que atua como um eixo
a partir do qual todo o universo parece existir, até a criação das convenções da língua. Ele
percebe que a palavra é apenas a representação sonora de um estímulo nervoso3, de modo
2 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2ª ed. Rio de Janeiro, Rocco, 1985. p.89.
3 NIETZSCHE, Friedrich. Acerca da Verdade e da Mentira no sentido extramoral. Tradução Helga Hoock Quadrado. Portugal, Printer Portuguesa, Relógio D’Água Editores, Junho de 1997. p. 216
29
que não existe coincidência entre a coisa em si e suas designações. Daí, a denúncia de que há
um uso indevido do princípio da razão desde a gênese da língua.
Em um esforço para melhor designar a sua relação com as coisas, o homem recorre a
palavras, estas, por sua vez, formam metáforas, pois existem sem uma correspondência
perfeita no plano real: uma estimulação nervosa traduzida numa imagem!4; imagem que é
transformada em som, e nessa operação dissonante, esboçamos nossas possibilidades de
representar o mundo pela linguagem.
Conseqüentemente, o conceito, expresso por palavras, já nasce carregando essa cisão
entre representação e coisa em si, acrescido do fato de emergir por uma generalização, por
desejo e necessidade de igualizar o que não é igual.
Por ter um instinto gregário, o indivíduo busca a paz que depende do impulso para a
verdade, convencionando uma designação comum para as coisas, com base na codificação da
língua. A diferença entre verdade e mentira estaria na utilização das convenções lingüísticas,
ou seja, o mau uso da língua em proveito próprio e em prejuízo do grupo seria designado
como mentira. Ao contrário, a verdade geraria conseqüências agradáveis.
Na busca da verdade, torna-se necessário aceitar a arbitrária convenção da língua,
onde as designações não representam a coisa em si.
A verdade é um exército móvel de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram poética e retoricamente intensificadas, transpostas e adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixas, canônicas e vinculativas.5
A verdade precisa das palavras, assim como da língua, entretanto, nas palavras nunca
é a verdade que importa nem a expressão adequada: caso contrário não existiriam tantas
línguas6. A verdade seria então nada mais que ilusões que foram esquecidas enquanto tais,
4 Idem. Ibidem. p. 219 5 Idem. Ibidem. p. 221 6 Idem. Ibidem. p.219
30
metáforas que foram gastas e que ficaram esvaziadas de sentido7. O impulso para a verdade
tem uma razão social, é uma imposição. Nietzsche descreve verdade como sendo um conceito
multifacetado do qual a designação de um dos seus lados é eleita para formar rubricas
corretas e nunca subverter a ordem convencionada8.
Nesse contexto, ser verdadeiro significa utilizar as mesmas metáforas que os outros,
ou mentir segundo uma convenção estabelecida de mentir de um modo gregário9. Esse
sentimento de verdade é encontrado no esquecimento, quando não mais se possui a
consciência de que a linguagem é uma mentira convencionada e compartilhada por todos. No
entanto, posto que ser verdadeiro significa lançar mão das metáforas usuais, que não
representam verdadeiramente a coisa em si. É possível afirmar que tais metáforas podem
mesmo ser consideradas como ficções poéticas. Esse uso se faz por meio de uma ausência de
consciência, de um esquecimento coletivo da impossibilidade dessa representação
verdadeiramente existir e dá-se a sensação de produzir a verdade. A ciência depende da
existência e permanência da verdade, ao passo que a arte é redentora - não há que se decifrar
enigmas, no universo da arte, é possível que o inexplicável permaneça assim enquanto tal,
sem que se peçam respostas.
As palavras não representam a coisa em si, afirma Nietzsche, e a realidade é algo
totalmente inapreensível. Em uma tentativa de tecer representações de mundo mais próximas
da verdade, o homem forma conceitos. Conceitos nascem pela igualização do não igual, o que
viabiliza a construção da racionalidade. O homem assume o controle de seu agir e não tolera
as abstrações, as impressões, as intuições. Somos ensinados desde cedo a descolorir o mundo
para nos igualizar, nos uniformizar, tornando-nos homens teóricos ao assumirmos a forma de
7 Idem. Ibidem. p. 221 8 Idem. Ibidem. p. 223
9 Idem. Ibidem. pp. 221-222
31
conceitos. O homem se torna um conceito, segundo Nietzsche, a existência se resume ao que
pode ser aprendido racionalmente pois a intuição, individual e única, é evitada por escapar do
esquema classificatório do exato e frio edifício dos conceitos. Ao dissolver a imagem em um
conceito, o homem adestra seu agir, enquanto racional, pois acredita poder dominar as
abstrações.
Desde Parmênides nosso mundo se resume ao que é e ao que não é. Ser ou não ser.
Muitas vezes, para comunicar seu pensamento por meio de palavras, Nietzsche cria uma
imagem que nenhuma palavra em si mesma pode equivaler, mas que no entanto decalca o que
ele deseja comunicar. Ao lançar mão de metáforas, Nietzsche se aproxima da poesia e
modela seu pensamento, apresentando sua idéia em vez de discorrer sobre um tema dialética e
metafisicamente, aproximando-se do universo poético onde é possível a desmobilização do
ser ou não ser.
A fixação de conceitos delimita a realidade para que esta se resuma ao que foi
estipulado. A dimensão humana se apequena em relação análoga a da mensuração de mundo
pelo homem, pois, ao mesmo tempo em que ele cria visões de mundo e constrói verdades a
partir de si, relaciona-se com o que percebe do mundo. A percepção está controlada pelo que
é considerado verdadeiro. Logo, se o homem se funda enquanto construtor, ele também se
aprisiona pelas convenções que fabrica, e pelos conceitos antropocêntricos
deste modo, uma verdade é trazida à luz, mas é de valor limitado, quero dizer que ela é do princípio ao fim antropomórfica e que não contém um único ponto que seja verdadeiro em si, real e universalmente válido, a não ser para o homem10 .
A presunção do conhecimento turva o valor da existência. A invenção do
conhecimento pelo ser humano reflete a metamorfose do mundo por meio de uma
compreensão de mundo como coisa antropomórfica, pois toma o homem como parâmetro de
todas as coisas. Essa existência antropocêntrica é o berço da ciência que constrói uma
32
delicada teia por meio da elaboração de conceitos, no esforço de controle e posse da
totalidade de um mundo empírico moldado a partir do prisma humano, de modo que o
exercício da razão se torna condição para que o homem não se perca de si próprio. Esse
homem racional realiza enorme esforço para arrumar e manter a rigidez desses conceitos,
como se defendesse a própria razão temendo perder a si mesmo. O intelecto é a faculdade por
meio da qual o homem defende a sua existência, e por meio de jogos de cena, o homem
representa, para si e para os outros, exercícios de dissimulação.
Condenado à limitação de sua visão humana de mundo, ao tentar fugir das
contradições do irracional, o homem cai em um absurdo do qual quer se apropriar como
verdade. Ao ver o mundo apenas por essa faceta, esquecendo que as metáforas não são a
realidade da própria coisa, o homem também esquece de si enquanto sujeito. Nesse caso, a
percepção correta significaria: a expressão adequada de um objeto no sujeito.11
O que Nietzsche parece estar denunciando é esse afunilamento em que a percepção do
real toma como prisma único o privilégio do conhecimento antropocêntrico, científico, de
uma verdade eterna. Pela racionalidade, por meio da lógica, o lógos apodeiktos caracteriza-se
(...) por ser a criação, pelo pensamento, de um discurso demonstrativo que se calca no oferecimento de provas para legitimar aquilo que se esforça em expor. Na lógica, está vinculado aos silogismos que, matematicamente, não podem ser refutados. Assim, o logos apodeiktos, é a fala exigida pelo ramo da filosofia tornado preponderante e que, em sua história, na modernidade, veio a se transformar em ciência. É ela que naufraga em seus limites: tornando-se impossível, passa a ser apresentada como inferior a outra que é poética por ser imagética e por nada precisar comprovar, já que mostra desde si mesma o que dispõe.12
A crítica nietzschiana à ciência se dá pelo fato desta se preocupar com a busca da
verdade. A metafísica nasceu pela vontade da verdade. E a verdade é vista como uma
10 Idem. Ibidem. p. 224 11 Idem. Ibidem. p. 225 12 PUCHEU, Alberto. Intervenções na relação entre poesia e filosofia: uma fronteira desguarnecida. Tese de Doutorado, UFRJ 1999. p. 108
33
construção moral a serviço de um poder, porque “a verdade”, ainda segundo Nietzsche, está
obrigada a não subverter a ordem social nem as hierarquias, assim como está condenada a
formar rubricas corretas. A denúncia dos fundamentos morais da ciência, por sua vez, não
pode recair em um arcaísmo científico, metafísico, lançando mão dos mesmos mecanismos de
crítica que estão sendo reavaliados, de modo que um estudo desta ordem incorreria apenas em
uma substituição do objeto. O que Nietzsche propõe é um afastamento do enfoque
proporcionado pelo modelo científico vigente para refletir sobre a ciência. Ele oferece uma
contra-estrutura de representação de mundo, esvaziando a filosofia da análise e da lógica e
propondo uma forma estética de apresentação do pensamento. Ao esvaziar a arena em que os
filósofos habitaram por tanto tempo, Nietzsche resgata a arte trágica como ambiência de vida
e propõe a discussão da ciência por meio de uma força alheia a ela: a arte. Tal proposição
rompe com as formas vigentes de representações ideárias, e a dinâmica contida na arte, cujo
espírito estético carrega a possibilidade de resgate do ser humano à vida, oferece-se como a
ordem mais adequada para tal reflexão, por não estar a serviço de uma moral, não buscar uma
verdade, nem se submeter a interesses e poderes morais.
Ao realizar esse mergulho nos helenos, ele não cai na repetição do modelo de
julgamento de sua época, o qual critica, sendo inovador ao propor a releitura dos gregos
despida do enfoque judaico-cristão que molda a capacidade de raciocinar e limita as
possibilidades do pensar. Exercita um resgate que transformaria todo o mundo. Oferece,
assim, sua leitura dos gregos e, mesmo não sendo um grego, exercita vigores com
flexibilidade inovadora. Nietzsche dialoga com Platão e não com quem interpretou Platão em
diversas épocas.
Ao deitar os olhos em Platão, Nietzsche dá a entender que vê nele um poeta. Poeta
paradoxal que, ao mesmo tempo em que traz a antiga arte no corpo de seus diálogos, tece a
34
linguagem por meio de uma nova estética na qual rompe com a unidade lingüística; e é
criador de
(...) uma forma de arte que tem parentesco interno justamente com as formas de arte vigentes e por ele repelidas. (...) Mas com isso o pensador Platão chegou por um desvio até lá onde, como poeta, sempre se sentira em casa (...) Se a tragédia havia absorvido em si todos os gêneros de arte anteriores, cabe dizer o mesmo, por sua vez, do diálogo platônico, o qual, nascido, por uma mistura de todos os estilos e formas precedentes, paira no meio, entre narrativa, lírica e drama, entre prosa e poesia, e com isso infringe igualmente a severa lei antiga da unidade da forma lingüística. O diálogo platônico foi, por assim dizer, o bote em que a velha poesia naufragante se salvou com todos os seus filhos.13
Nietzsche percebe em Platão a criação de uma nova estética em que a poesia vive com
a filosofia dialética. Entretanto, vê a pressão de Sócrates na esfera da arte como demoníaca,
afirma que esse pensamento filosófico apequena a arte, na ordem do dialético, e que as ações
racionais aniquilam os rompantes dionisíacos. Essa sublime ilusão metafísica é aditada como
instinto à ciência, conduzindo-a continuamente a seus limites, onde ela tem de transmutar-se
em arte14.
Ao problematizar a ciência em uma época em que esta ascendia a um status quase
divino, Nietzsche transgride os limites de seu tempo; ele não apenas entende a ciência como
questionável, mas propõe o terreno da arte para tal análise, pois o problema da ciência não
pode ser reconhecido no terreno da ciência.15 Pela primeira vez, um olhar moderno ousou
aproximar essas duas ordens: ver a ciência com a óptica do artista, mas a arte, com a da
vida16.
A filosofia trágica proposta pelo filósofo-poeta alemão pretende ajudar a relativizar o
conhecimento, além de recriar um espaço para a ilusão, para a ficção, para a arte. Nietzsche
13 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia; ou Helenismo e Pessimismo. Traduzido por J. Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. p. 88 14 Idem. Ibidem. p. 93 15 Idem. Ibidem. p. 15 16 Idem. Ibidem. p. 15
35
não propõe o aniquilamento da ciência mas afirma ser a filosofia e a arte que devem
estabelecer o seu valor, por estarem além da moral que a constitui. A força está em dominar
essa compulsão pelo conhecimento em nome de uma afirmação da vida.
Nietzsche pensa a ciência a partir da arte à medida que impõe o valor da ilusão como
um valor tão importante quanto a verdade. Reconhece que a vida tem necessidade de ilusão e
que os conhecimentos, sejam verdadeiros ou falsos, se estabeleceram pela força de prova. Em
suas inversões, o filósofo opõe o trágico ao lógico e enfoca o conhecimento com critérios
estéticos, para ele
não existe filosofia à parte, distinta da ciência: lá como aqui se pensa do mesmo modo. O fato é de que uma filosofia indemonstrável ainda tenha um valor e, na maior parte das vezes, mais do que uma proposição científica, provém do valor estético deste filosofar, isto é, de sua beleza e de sua sublimidade. O filosofar ainda está presente como obra de arte, mesmo que não possa demonstrar como construção filosófica17.
O próprio pensamento de Nietzsche externa-se por meio desse valor estético. O
enfeitiçamento de seus aforismos nos espanta e incita o pensamento pela força estética: em
um amálgama de luz e forma, seu filosofar cintila em vez de explicar, causando impacto e
encanto.
Segundo ele, a pretensão científica de valorização da verdade institui a perseguição ao
erro. Os horizontes do pensamento de Nietzsche estão além do bem e do mal, libertos de
conceitos de moral e da noção persecutória de erro, sendo por isso alcançado por poucos. Para
ser um espírito livre, há que se despir da visão de realidade da civilização metafísica socrática,
que se tornou constituinte de um padrão de certo e errado coletivo; há que se buscar outros
modos de apreensão de mundo que não se dêem apenas via conhecimento e análise, lógica e
razão; há que se relativizar verdades. Quando verdades e poderes deixam de ser eternos e
universais, e são relativizados, de modo que todo o sistema social baseado na ciência, em
determinado sistema de organização política e na religião passa a ser questionado. Se uma
36
nova visão de vida for exercitada, fora do esquema proposto, sem buscar conhecimento ou
uma verdade, toda uma ordem em que as pessoas se encaixam é desarrumada, e outras podem
ser imaginadas.
A dialética socrática do saber tornou a todos Sísifo pois, em um perseguir sem fim,
descobre-se, cada vez que e quanto mais avançamos, que nada sabemos.
A vida esvaziada de mitos, ou suprida apenas com o mito cristão em que a ela se
apresenta como algo que não é digno de ser vivido, torna-se vida esvaziada de encanto. Tal é
a herança de Sócrates: a formação de um olhar de mundo calcado na necessidade do saber.
Quão incompreensível haveria de parecer a um grego autêntico o em si compreensível
homem culto moderno que é FAUSTO18. O substrato de nossa contraditória cultura é o
otimismo da lógica que, por sua vez ampara-se em verdades eternas e no poder da decifração
dos enigmas. Porém, as conseqüências dessa serenojovialidade teórica começam a aparecer e
hoje já é possível delinear um mal que nos acomete: o desencantamento da vida. Porém, a
avidez do insaciável conhecimento otimista de Sócrates pode transmutar-se em fome de arte e
possibilitar o resgate do prazer de existir.
Nietzsche propõe um modelo de filósofo ligado aos pré-socráticos, entre os quais
existe uma unidade entre pensamento e vida. A ruptura feita por Nietzsche foi contra a
filosofia metafísica que pregava um pensamento puramente racional. Segundo ele, querer
reduzir a filosofia a uma teoria do conhecimento chega a ser cômico. O filósofo alemão nos
apresenta uma outra ordem do pensar, na qual a apreciação do valor do conhecimento deve
estar situada entre uma pluralidade de valores, sem gozar de privilégio especial, descortina,
ainda, o exercício da afirmação da vida, em vez de seu julgamento.
17 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2ª edição, Rio de Janeiro: Rocco. 1985, pp. 52-53 18 NIETZSCHE, Friedrich. . O Nascimento da Tragédia; ou Helenismo e Pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.109
37
Ele fez do aforismo uma obra de arte. A breve formulação lhe permite espressar seu
pensamento intuitivo por imagens mais do que por longas exposições abstratas, em que
conceitos são extenuamente encadeados, obtendo o efeito de inigualável sedução.
1.3 A leitura de Nietzsche do cristianismo
Em sua descoberta de novos vínculos com a vida, Nietzsche afirma haver na doutrina
cristã uma preocupação puramente moral que condena a arte à ordem da mentira. Conclui ser
esse enfoque não apenas adverso à arte, como também hostil à vida. Em prol da vida, em um
movimento de resgate, cria um saber que une a arte à vida, na ordem do dionisíaco.
O cristianismo, para Nietzsche, representa a figuração mais extravagante do tema moral
que a humanidade já conhecera então, sendo a maior contraposição à justificativa puramente
estética do mundo. E o fato de ser somente moral desterra toda arte ao reino da mentira –
negando-a, reprovando-a e condenando-a.
Tal modo de pensar e valorar, adverso à arte, é permeado de hostilidade à vida, pois
toda a vida repousa sobre a aparência, a arte, a ilusão, a óptica, a necessidade do
perspectivístico e do erro19. O cristianismo é essencialmente uma doutrina de asco e fastio da
vida na vida, sob a crença de uma outra vida melhor. Uma vontade incondicional de ver a
vida apenas sob valores morais; temendo a beleza e os afetos, a sensualidade revela-se como
uma severa vontade de declínio, em que a vida se empobrece. Tal esvaziamento doentio
ratifica a moral cristã de que a vida é essencialmente amoral, e por isso, deve ser desdenhada,
negada, sentida como indigna.
O cristianismo, em sua reflexão, travou uma guerra de morte com o homem forte. Por
meio de censuras, culpas e construções ideárias e morais, corrompeu a vitalidade no homem.
19 Idem. Ibidem. p. 19
38
A humanidade passou a desprezar características inerentes ao ser humano, negando-se a si
mesma, hostilizando paixões revigorantes.
Os teólogos e filósofos, ao moralizarem a existência, trouxeram uma condição vital
prejudicial à vida. Haverá por acaso algo que destrua alguém mais rapidamente do que
trabalhar, pensar, sentir, sem uma necessidade interior, sem uma escolha profundamente
pessoal, sem prazer, como autômato do dever? Eis precisamente a receita da décadence, da
própria imbecilidade... 20
Apesar de também ser o mais interessante, o homem é o animal mais desviado de seus
instintos, e a causa dessa negação de nós mesmos está no cristianismo, pois nem a moral, nem
a religião estão em contato com a realidade. Nietzsche demonstra ser possível ver a teologia
como um universo de pura ficção que, ao contrário de nos enlevar, falseia a realidade e
despreza a vida terrena: pois que todo esse mundo de ficções tem a sua origem no ódio contra
o natural, contra a realidade! É a expressão de um profundo mal-estar perante o real21.
O sentimento de pena prevalece sobre o sentimento de prazer e essa dinâmica é a
característica dessa moral e religião fictícias que contradizem a vida em vez de afirmá-la.
Nietzsche percebe que o cristianismo só pode ser compreendido no terreno em que se
desenvolveu e, contrariamente ao senso comum, não é um movimento de reação ao judaísmo,
mas sua própria conseqüência. Dos judeus, herdou a falsificação de toda a natureza e
realidade, fizeram a si próprios um antítese das condições naturais22. Foi nesse terreno falso
que o cristianismo se desenvolveu. Há uma diferença de como Nietzsche vê Cristo e como vê
o cristianismo. Percebe em Jesus um homem que se rebelou contra a ordem estabelecida.
Aquele que havia suprimido a idéia de pecado e aproximado o homem de Deus. Eis que a
doutrina o transforma no bode expiatório do mundo.
20 NIETZSCHE, O Anticristo. São Paulo, Martin Claret, 2004. p. 45 21 Idem. Ibidem. p. 49 22 Idem. Ibidem. p. 58
39
O discípulo Paulo apresenta a idéia de morte associada à vida eterna como se fosse
uma recompensa exterminando para sempre o esforço por um movimento em prol da
felicidade sobre a terra. Este, afirma Nietzsche, deslocou o centro de gravidade da existência
para colocá-lo além, na construção ilusória de ressurreição.
Quando se coloca o centro de gravidade da vida não na vida, mas no “além” – no nada – tira-se à vida o seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda a razão, toda a natureza do instinto – tudo o que há nos instintos, de benéfico, de vivificante, tudo o que promete o futuro, suscita agora a desconfiança. Viver de tal maneira que já não se tenha razão de viver, isto converte-se agora na razão da vida...23.
A religião cristã não toca a realidade em nenhum ponto e com isso nega a deus
enquanto Deus. A fé é vista como uma mentira – necessária – que reduz Deus a nada, e a
religião teme a ciência pelo fato desta tornar o homem igual a Deus. Com isto a ciência torna-
se coisa proibida. Para Nietzsche a felicidade, a ociosidade evocam os pensamentos, todos os
pensamentos são maus pensamentos... o homem não deve pensar24.
A fim de evitar que o homem descobrisse a ciência e progredisse no conhecimento foi
criada a idéia de pecado. A culpabilidade e o castigo foram inventados contra a ciência
colocando o homem em uma situação em que sua vida carece de redenção. Evitar o prazer –
como pecado – e buscar o sofrimento – expiação do pecado – e possibilidade de redenção são
alguns dos maiores males criados pelo cristianismo. Infelizmente, tal visão de mundo está de
tal forma arraigada no comportamento das pessoas há tantos séculos que uma intervenção
nesse modus operandi é algo muito delicado. É um sistema que se mantém por si em uma
dinâmica composta pelo evitar do prazer e o buscar e aceitar do sofrimento como expiação
dos pecados tornando o homem facilmente manipulável e destituído de vida. Ainda mais pelo
fato deste dever lealdade a um líder a quem deve devotar lealdade incontestavelmente. O
pecado (...) essa forma de poluição da humanidade por excelência, foi inventado para tornar
23 Idem. Ibidem. p. 78
40
impossível a ciência, a cultura, toda a elevação e toda a nobreza do homem; o sacerdote
reina pela invenção do pecado25.
O cristianismo se fortalece com sofrimento, e este é inventado de modo a criar a
necessidade da absolvição e do perdão. Nietzsche vê a liberdade no ceticismo e encara as
convicções como prisões; o cristianismo como uma grande compilação de mentiras; negação
da vida, desprezo do corpo, do sexo e do prazer, enfim, o cristianismo é vazio de fins
“sagrados”, mais parece um livro de regras de comportamento. Guia a conduta humana
insuflando a crença de que esta vida não é digna e há outra melhor, de que o homem é
pecador desde a origem. Um livro de códigos morais que supõe a autoridade de uma verdade,
do que seja correto, daí a construção da divindade e imperatividade dessas leis incontestáveis.
A mentira serve para conservar ou destruir algo. A legislação religiosa tem o intuito de
organizar a sociedade. O cristianismo tem como missão a manutenção do homem sob seu
domínio pelo medo e pela culpa. Criou a dicotomia do céu e do inferno. O sacrifício passou a
ser visto como nobre e necessário, tecendo em um texto subliminar a aversão à vida e
transmitindo a idéia de corrupção da alma.
Para Nietzsche, Paulo foi um déspota sem respeito pela verdade e pôs na boca do
“Salvador” idéias que fascinavam o povo e assim se impregnou a idéia de que havia a
necessidade da fé na imortalidade para desprezar a vida na terra, aniquilando-a.
Toda uma evolução e conhecimento que a humanidade já havia alcançado caíram por
terra e a humanidade mergulhou em um período de trevas que durou por séculos.
Lançar os olhos sobre o mundo antigo possibilita um resgate de muitas conquistas que
foram caladas, abandonadas e esquecidas. Já havia antes um olhar livre ante a realidade
assim como a arte e o bom gosto.
24 Idem. Ibidem. p. 86 25 Idem. Ibidem. p. 88
41
Nietzsche condena a igreja cristã por considerá-la corrupta, por viver de angústia
assim como por inventa-las para se eternizar, e propõe a transmutação de todos os valores.
Para ele, o cristianismo representa uma forma do que ele combate: o platonismo. Por inventar
um outro mundo ideal e depreciar o mundo real, o cristianismo envenenou a vida pela idéia de
pecado. O que mais instigou Nietzsche contra a ideologia cristã foi o fato desta representar
uma avaliação da metafísica, ou seja, conceber o mundo à luz das idéias, desde o sensível ao
terrestre. É pura designação platônica em uma vulgarização popular da metafísica.
Ao propor transmutar todos os valores, ele visa mais do que um anti-cristianismo ou
anti-platonismo; o filósofo alemão percebe a religião, a moral e a metafísica como instâncias
intimamente ligadas e não dimensões separadas. Além de propor uma transmutação de todos
os valores, propõe uma revolução nas concepções do que seja verdadeiro ou falso.
Ademais, a doutrina cristã traz a idéia de redenção como essencial que é contraditória
com a experiência de realidade posto que
“num mundo trágico não há redenção, entendida como salvação de um existente finito na sua finitude; ali há apenas a lei inexorável do declínio de tudo aquilo que surgiu do fundo do ser na existência individualizada, daquilo que se separou da corrente da vida universal. Na visão trágica do mundo encontram-se confundidas a vida e a morte, a ascensão e a decadência de tudo quanto é finito.”26
Ao contrário do que possa parecer, o sentimento trágico da vida é antes a aceitação da
vida, a jubilosa adesão também ao horrível e ao medonho, à morte e ao declínio (...) porque o
patético do trágico alimenta-se do saber que “tudo é uno”27.
Nietzsche rompe com a submissão em que toda uma época se encontra mergulhada,
repleta de conhecimentos que fazem com que o ser humano negue a si mesmo, traindo e
negando a própria vida. Escolhe ser um espírito livre. Protesta contra a servidão da moral do
sistema social, da lógica e do cristianismo. Nietzsche refuta as ilusões da metafísica e
26 FINK, Eugen. A filosofia de Nietzsche. Lisboa, Editorial Presença. p. 16
42
denuncia a ambigüidade e hipocrisia dos valores morais de seu tempo. As construções
teóricas e analíticas são denunciadas como mecanismos pelos quais a vida se esvai e se
esvazia de vigor. Nietzsche percebe que a possibilidade de pensar livremente, de pensar o
impossível, ainda está calcada à lógica de um pensamento possível. Afirma que a condição
do pensamento é a destruição da estrutura metafísica e denuncia a impossibilidade da filosofia
em prosseguir inserida nessa lógica, que funciona como estruturação de mundo e que foi por
séculos o pilar de nossa concepção de realidade. Nietzsche quebra os modelos vigentes ao
propor uma nova consciência. Ao refazer seus laços com a vida, com a sensualidade e o
prazer, denuncia a ideologia cristã, de cunho metafísico. Em sua afirmação enquanto tal, o
cristianismo se propõe essencialmente enquanto moral e negação da vida.
Por meio de uma pergunta feita na negativa, que não cala: a moral não seria uma
vontade de negação da vida, um instinto secreto de aniquilamento, um princípio de
decadência, apequenamento, difamação, um começo do fim? E, em conseqüência, o perigo
dos perigos?28
Nietzsche desassossega e denuncia: A moral é um princípio de decadência!29 Uma
vontade de negar a vida. Por isso, se volta contra a moral, para se afirmar a favor da vida. Ao
fazer essa reafirmação da vida, Nietzsche propõe uma nova ordem, além do bem e do mal,
contra a moral e em favor da vida. A essa ordem ele chama de uma contra-doutrina,
puramente artística e anti-cristã, a qual nomeou como dionisíaca30.
27 Idem. Ibidem. p. 18 28 NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. São Paulo, Martin Claret, 2004. p. 20 29 Idem. Ibidem. p.19
43
1.4 A superação da metafísica pela arte: arte e vida.
Na luta contra a metafísica, o cristianismo e a ciência Nietzsche propõe uma contra-
noção: a metafísica do artista. Esta concepção tem a arte como a atividade propriamente
metafísica do homem, pois trata da essência do ser. Do ser, e não do saber. Ao analisar as
relações entre arte e ciência, Nietzsche aponta Sócrates e Eurípedes como responsáveis pelo
assassinato da arte trágica, arte esta que representa o encontro com as questões fundamentais
da existência e uma alternativa contra a metafísica criadora da racionalidade. Ao opor o
instinto estético ao saber metafísico, o filósofo-poeta gera uma idéia central em seu fazer
filosófico: a valorização da arte e não da ciência pelo fato de a primeira ser a força capaz de
proporcionar a experiência apolínea e dionisíaca: a arte tem mais valor do que a ciência.31
Sabendo-se póstumo em relação ao seu tempo, Nietzsche vê a verdade como uma
convenção imposta para tornar a vida possível, que substitui a arte como uma ficção
necessária por um cunho moralizante e que nos desvia do encantamento da vida pelo
aniquilamento das ilusões. Nietzsche acredita ser o instinto de crença, e não o de
conhecimento, um valor fundamental para o homem. A revalorização da arte é o meio de
retorno à vida ou de encontro com ela, uma forma de proporcionar, uma vez mais, nosso
resgate pela vida de modo que esta volte a nos atravessar. Para este amigo da vida, é a arte – e
não a moral – a atividade propriamente metafísica do homem.
Desenvolvendo seu próprio filosofar, ele afirma que pelo instinto da ciência Sócrates
não apenas viveu mas, também, morreu. Ao morrer, no entanto, o mistagogo da ciência
deixou um legado à civilização ocidental: uma herança idearia que é a busca pelo saber e a
30 Idem. Ibidem. p. 20 31 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia; ou Helenismo e Pessimismo. Traduzido por J. Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. p. 44
44
extinção da arte trágica dionisíaca. Em sua exortação da força universal do saber, Sócrates
aniquila o mito, tornando a poesia apátrida ao expulsá-la de seu solo mítico ideal.
A serenojovialidade helênica e a serenojovialidade do homem teórico contrapõem-se.
Esta última exibe todas as qualidades do espírito não dionisíaco e acredita em uma correção
do mundo pelo saber, em uma vida guiada pela ciência, que é efetivamente capaz de desterrar
o ser humano individual em um círculo estreitíssimo de tarefas solucionáveis, dentro do qual
ele diz serenojovialmente para a vida: eu te quero: tu és digna de ser conhecida32.
Ao criar o homem teórico que se pensa, a arte também perde sua inocência e passa a
trazer um questionamento, em si, acerca de sua própria existência. Anteriormente, quando um
estar no mundo poético se bastava e se produzia enquanto real, havia Homero. Porém, uma
vez perdido esse encanto, o espanto se esvai para dar lugar à explicação teórica, cristã ou
científica.
No mundo teórico, o conhecimento científico vale mais do que a manifestação
artística. A existência, a partir da idade da razão, perde o saber mítico e torna-se esclarecida,
desencantada.
Eurípedes altera a tragédia e subordina, pela primeira vez, o poeta ao pensador
racional, introduzindo o pensamento na arte; a lógica e a crítica se deslocam para ser critério
de criação artística; ele próprio se gaba de que agora, por seu intermédio, o povo aprendeu a
observar, a discutir e a tirar conseqüências, segundo as regras da arte e com as mais
matreiras sofisticações.33 Sua produção artística se faz à luz desse socratismo estético, que
desvaloriza o irracional, exilando o dionisíaco da arte. Essa ruptura, realizada pela perspectiva
socrática adotada por Eurípedes, instaura um juízo de valor que subordina o belo à razão, ao
entendimento, destituindo a experiência estética de prazer, privilegiando o entendimento à
apreciação, tornando-se assim, poeta do racionalismo socrático contra o instinto, negando a
32 Idem. Ibidem. p. 108
45
possibilidade de outras formas de expressão que não sejam conscientes. Essa ilusão metafísica
que acredita ser o conhecimento a única maneira de penetrar na essência, na natureza, nas
coisas, revela o espírito científico socrático.
Eurípedes travou uma luta mortal com a tragédia. O coro da tragédia grega simboliza a
excitação dionisíaca, serve ao deus Dionísio, a própria expressão da natureza. O coro
dionisíaco entrelaça um mundo apolíneo de imagens e representa a unificação do indivíduo
com o Ser primordial, por meio de um enfeitiçamento coletivo, endêmico, que transporta,
transforma e transmite a vida. É através dele – trans - que o público tem o ânimo insuflado
até que se rasgue o limite da individualidade, ultrapassando o encanto da individuação,
transportando-se para a essência única do mundo. O processo do coro trágico implica a
possibilidade de ver-se a si próprio fora de si. Há a renúncia do individual que se rompe e
ocorre o ingresso em uma natureza estranha, única e primordial. Nesse êxtase, o público
entusiasmado vê não apenas o herói em cena, mas uma imagem nascida da excitação criada
no em si próprio. O coro ditirâmbico provoca entusiasmo e encanto e, permeando a todos,
incute-lhes sentenças do oráculo e enuncia verdades intuídas.
Até Eurípedes, o herói trágico, jamais deixara de ser Dionísio, nem outros notáveis
personagens das tragédias clássicas, máscaras desse mesmo deus, porque por trás das
máscaras pulsava uma divindade. Daí, a potência que os atravessava, posto que não
representavam apenas o individual. O herói trágico é Dionísio com sua aparência múltipla, o
deus despedaçado que carrega as dores da individuação, que é vista como a causa primeira do
mal enquanto que o êxtase alcançado é a esperança de se romper com tal feitiço.
As religiões morrem quando seus pressupostos míticos são sistematizados,
racionalizados, entendidos; quando deixam de ser vividas para serem racionalizadas. Tal foi o
processo realizado por Eurípedes ao aniquilar o mito e a música. Seu propósito foi o de trazer
33 Idem. Ibidem. p. 74
46
o homem da vida cotidiana aos palcos, o homem no qual o espectador via seu duplo; a
linguagem perdeu aí seu segredo e seu encanto. A tragédia desvinculou-se do sagrado, dos
Mistérios. Eurípedes levou o espectador ao palco e pela primeira vez foi fomentada a
elaboração de um juízo sobre o drama34.
Porque não compreendeu seus grandes predecessores, Eurípedes contemplou todos os
elementos trágicos pela ótica do entendimento e não do encantamento. Onde havia mistério,
ele trouxe o esclarecimento, onde havia falta de precisão, ou, ao contrário, onde havia algo
profundo e enigmático, ele se empenhou em priorizar o entendimento, que passou a ser a
fonte de prazer da arte trágica. E foi assim que Eurípedes matou a velha tragédia. Construiu
sua obra a partir de uma visão de mundo não-dionisíaca em que o efeito do trágico é
inalcançável, pois não há possibilidade de unir, de entrelaçar o poeta com suas imagens.
Antes, o coro, o rapsodo e o público viam-se unificados, existiam e pulsavam como um Ser.
Eurípedes aprisiona o homem em sua individualidade, não há mais a projeção, o fora de si e o
êxtase não mais se dão.
Nietzsche percebe que também Eurípedes fora apenas uma máscara. A divindade que
falava por sua boca se chamava Sócrates. Eis a nova contradição: o dionisíaco e o socrático, e
por causa dela a obra de arte da tragédia grega foi despojada de seu caráter fundamental.
Ao socratismo estético, associa-se o princípio que esvaziou a velha estética trágica: o
rompimento com o apolíneo e o dionisíaco, com a tensão geradora da arte trágica; pensamento
que teve início em Sócrates e que representou um corte no mundo originário ao se instaurar. A
máscara sob a qual Eurípedes criava falava de um modo diferente, sem o elemento dionisíaco
original: tinha a voz de Sócrates ecoando um novo modo de ver o mundo. A tragédia de
Eurípedes foi calcada sobre uma visão de mundo não dionisíaca, na qual a nova contradição,
que condenou a existência do efeito trágico, foi o dionisíaco dissolvido pelo socrático.
34 Idem. Ibidem. p. 75
47
Na visão de Nietzsche, cismador de idéias e amigo de enigmas, o pessimismo dos
gregos não era um signo de declínio ou ruína. Para essa gente, que mais seduziu para o
viver35, a tragédia morreu pelo socratismo da moral: a dialética. Dialética como instrumento
de busca da verdade por meio do lógos, do conhecimento, da análise, do racional. É esse
socratismo, que é visto como um signo de declínio, de crepúsculo.
Nem apolíneo, nem dionisíaco, o socratismo estético procura o belo no inteligível.
Requer que o espectador calcule os significados constituintes do drama, empregando recursos
que o tornavam inquieto e desejoso de solucionar uma estória em um processo que o impede
de sentir. Daí, a introdução do prólogo, uma das evidências mais marcantes da quebra do
sagrado e do dionisíaco, em que uma personagem merecedora de total confiança esclarecia,
explicava a estória, o mito: tudo deve ser consciente para ser belo36, preceito muito próximo
ao princípio socrático: tudo deve ser consciente para ser bom37. Muito mais sério do que
aparenta, este artifício metafísico instaura e reforça no povo uma credulidade na autoridade
política e religiosa. A moral penetra na arte e, com ela, todo um jogo de forças destituído de
vida. A proximidade dos fundamentos de Eurípedes e Sócrates é o motivo que possibilita
afirmar-se que Eurípedes foi o poeta do socratismo estético.
O prólogo euripídiano é o marco metafísico que quebra o elo da arte com a vida e o
indivíduo. Uma vez que se pensa e racionaliza, uma vez que se analisa e não mais se entrega,
a fusão com o uno primordial não mais ocorre e a arte passa fora do homem. Não mais o
resgata para a vida, tampouco o atravessa com ela. Há a formação de um grande vazio, um
retorno a um grande vácuo que é nossa existência. Sem vida na arte, cessam as possibilidades
do homem se encantar e alcançar o sublime. O ator, o poeta, o coro e o público se tornam
objetos e não mais sujeitos. Pela explicação, morre o sagrado e o encanto do mistério que
35 Idem. Ibidem. p. 14. 36 Idem. Ibidem. p. 83 37 Idem. Ibidem. p. 83
48
apenas a forma apolínea em um amálgama com o dionisíaco permite nos surpreender, em um
excesso ameaçador mas emocionante e vivificador.
Ao estudar o nascimento da tragédia, Nietzsche afirma que esta surgiu do coro trágico,
posto que a mesma era apenas coro. Daí a relevância que o coro adquire. Ele discorda do
pensamento de que o coro seja o espectador ideal, como afirmara Schlegel, ou mesmo que
deva representar o povo em face da região principesca da cena, como sugeriram Ésquilo e
Sófocles. O filósofo, entretanto, considera valiosa a contribuição de Schiller que vê o coro
como uma muralha viva que a tragédia estende a sua volta a fim de isolar-se do mundo real e
de salvaguardar para si o seu chão ideal e a sua liberdade poética38. Em uma leitura sem
precedentes, Nietzsche percebe no coro a liberdade da arte frente à realidade. Ao contrário de
Euripedes, diz que é do coro que a tragédia se forma, é da boca de um sátiro, coreuta
dionisíaco, que sai a fala de desconcertante sabedoria.
A tragédia oferece um antídoto ao metafísico, quando reconduz o indivíduo ao coração
da natureza e desguarnece as fronteiras entre um indivíduo e outro. A tragédia relembra que a
vida, apesar de tudo, é poderosa e que há encanto, ainda. Apesar de tantos sofrimentos e
desencontros entre os seres humanos, o coro trágico envolve a todos, possibilitando-lhes ser
um. Tal é o reconforto que a arte propicia, a arte que salva a vida de cada um e, de todos nós.
O êxtase propiciado pelo dionisíaco aniquila o individual, as separações. Mas é preciso o
apolíneo para que esse êxtase se torne sublime. O coro satírico na arte grega é o ato salvador,
considera Nietzsche. O coro satírico exprime em um símile a relação primordial entre coisa
em si e fenômeno (...) o grego dionisíaco, ele, quer a verdade e a natureza em sua máxima
força – ele vê a si mesmo encantado em sátiro39.
Pode-se perceber o contraste entre tentar compreender uma tragédia e ser transportado
para outro nível de existência, de realidade por meio de uma experiência trágica. O coro
38 Idem. Ibidem. p. 54
49
dionisíaco transforma os seus coreutas em sátiros – sem qualquer explicação, conhecimento
ou lógica. Não há o sujeito subjetivo, mas a unidade com o coração do mundo.
Por um mecanismo bem diverso da consciência, por meio de encantamentos
inexplicáveis, o público da tragédia ática reencontrava a si mesmo no coro da orquestra, e
que não havia distinção entre eles. Na verdade tudo era um grande e sublime coro de sátiros
bailando e cantando ou daqueles que se faziam representar através desses sátiros40.
Por tudo isso, Nietzsche conclui que na fase primitiva da prototragédia o coro pode ser
considerado como o auto-espelhamento do próprio homem dionisíaco, que propicia um
fenômeno dramático: ver-se a si próprio transformado diante de si mesmo e então atuar como
se na realidade a pessoa tivesse entrado em outro corpo, em outra personagem41. O drama só
se completa com o encantamento da metamorfose que se dá na alteridade, na outridade. Ser
possível ao entusiasta dionisíaco ver-se fora de si, ver-se a si mesmo, é aproximar-se do
sagrado, é beirar o limite do apolíneo, é atingir o máximo de aproximação com a quebra da
individualidade ; para ele é vivenciar o uno, com a possibilidade de resgate: o drama é a
encarnação apolínea de cognições e efeitos dionisíacos42.
O apolíneo não existe sem o dionisíaco, logo, uma vez cortados os laços entre o
apolíneo, o dionisíaco e a arte, ocorreu a extinção das duas forças que se interrelacionam em
um fenômeno de simultaneidade, e a arte se esvaziou de vida. Assim como os helenos haviam
sido resgatados para a vida por meio da arte, também o homem da modernidade, ainda
condenado por Sileno, e pela ilusão do saber metafísico, científico e religioso, espera por essa
possibilidade de reencantamento.
A existência do mundo só se justifica enquanto fenômeno estético. O artista, amoral,
que constrói e destrói, cria mundos sob óticas inovadoras: novas visões de mundo, dimensões
39 Idem. Ibidem. p. 58 40 Idem. Ibidem p. 58 41 Idem. Ibidem. p. 58
50
diversas dos mundos já vistos. O olhar do artista sobre o mundo, recria e transforma a
realidade, reinventando-a, deslocando significados, realocando sentidos. O essencial no
trabalho do artista criador de mundos é o fato de sua metafísica da arte poder ser
transgressora, fantástica, o que revela um espírito que pode se colocar contra a interpretação e
a significação morais da existência.
A doença da alienação, da culpa, da desvalorização desta vida é deixada para trás e a
criação é viabilizada. Entretanto, novas possibilidades, novos horizontes ameaçam os poderes.
A civilização prefere ignorar a ameaça de transformação, vira as costas para a arte e finge
não escutar os poetas. Mas estes não se calam. E cantam, cantam como cantaram durante os
séculos em que não foram ouvidos, e continuarão a cantar. A poesia é a voz do poeta que não
quer calar. A voz da poesia não se calou, mesmo com tanta metafísica, com tanta verdade. E a
denúncia que vem sem explicar, simplesmente por ser arte, pungente e vigorosa, pulsação
incessante de criação de vida, convida ao resgate do prazer de existir. É a voz do poeta que
oferece a ponte para o reencantamento da realidade. Oferece fluxo e processo estampados no
sublime, em vez da cegueira de respostas.
A chamada maldição da dolorosa existência humana, a maldição de Sileno, é a que a
humanidade evita encarar. É ela que leva civilizações a criarem complexas ficções que se
pretendem realidade. A maldição dos gregos é também a nossa: é saber que o bem supremo é
querer não ter nascido, é nada ser, não ser. Se a arte grega teve origem nesse drama e criou a
cosmogonia, Sócrates criou a metafísica e a explicação infinita e vazia pautada em uma
verdade que só existe a partir da moral. As correntes da lógica asfixiaram e mutilaram a arte
trágica, condenando o homem ao erro e à culpa. O instinto de ciência percorreu um caminho
inverso ao da cosmogonia poética pois, esta, ao divinizar a vida, a tornou bela e digna de ser
vivida.
42 Idem. Ibidem. p. 61
51
É a oposição do instinto de ciência ao instinto estético que Nietzsche condena. A arte
apolínea é a arte da aparência e esta é uma questão central no pensamento de Nietzsche
porque se a beleza é uma aparência, o é por haver uma verdade que é a essência: a beleza é
uma aparência, um fenômeno, uma representação que tem por objetivo mascarar, encobrir,
velar a verdade essencial do mundo43.
O belo oferece uma sensação de satisfação que intensifica as forças da vida e aumenta
o prazer de existir. Se na hipótese metafísica o que importa é ser verdadeiro, na metafísica da
arte o uno originário carece da aparência pura para libertar-se da dor de existir: a
individualidade, a consciência, é uma aparência, uma representação do uno originário;
através do principium individuationis se produz a arte: é isso que constitui o processo
artístico originário44.
Foi assim que os gregos conseguiram o resgate da vida após a revelação de Sileno, o
deus silvestre. A concepção apolínea da vida possibilitou a intensificação da vida. Por outro
lado, há a experiência dionisíaca que propõe uma ruptura da individuação e uma total
miscigenação com a natureza e com os outros, uma despersonalização, um enfeitiçamento que
proporciona a experiência da unidade original, rasgar o véu de Maia, encontro com o Uno-
primordial.
A idéia de Tales tudo é água, fundadora da filosofia grega, de que a origem de todas as
coisas é a água, contém, em estado de crisálida, a idéia de que tudo é um, e o faz sem o uso de
explicações, sem imagens ou fábulas. Ao expor a representação da unidade pela hipótese da
água, Tales é impelido pela força da imaginação: o pensamento de Tales, mesmo quando
reconhecido como indemonstrável, tem antes o seu valor precisamente em não ter querido ser
43 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2ª edição, Rio de Janeiro, Rocco. 1985, p. 22 44 Idem. Ibidem. p. 23
52
mito nem uma alegoria45. Com a mesma contemplação de um artista, o filósofo fixa seu
encantamento pelo sabor da experiência traduzida em linguagem.
A tese do Uno-primordial resgatada por Nietzsche insuflou novamente vida numa
potência adormecida. É pelo dionisíaco que se pode rasgar o véu de Maia, que oculta a
unidade de todos os seres, é a ilusão comum e corrente de que cada ente determinado é
portador de uma identidade própria que, atravessando incólume e inalterada o fluxo do
devir, o distingue, segundo sua essência, de todos os outros46.
O perigoso e desmesurado êxtase dionisíaco faz o homem compreender a ilusão que
vivia ao criar um mundo de beleza justamente por mascarar a verdade47, e esta experiência
labiríntica é devastadora.
Pela segunda vez, a vida salva o grego utilizando a arte como seu instrumento: ele é
salvo pela arte, e através da arte salva-se nele - a vida48. Esse novo tipo de arte redentora
integra o dionisíaco no apolíneo, o que transmuta o pessimismo pelo absurdo da existência em
viabilização da vida. A experiência do dionisíaco em estado puro é impossível, porque não
haveria saída do labirinto, e a experiência se perderia nela mesma. A arte possibilita uma
vivência de êxtase e embriaguez sem a perda da lucidez, pois ao integrar o apolíneo ao
dionisíaco, proporciona prazer assim como a noção e a consciência dele. Este estado estético
se produz na simultaneidade. O contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do
apolíneo e do dionisíaco - arte como um miraculoso ato metafísico da vontade.
O despertar gradual do espírito e da sabedoria dionisíaca oferece a possibilidade do
retorno da tensão trágica; o apolíneo, como um véu, envolve o dionisíaco que, por sua vez,
impele ao drama. Uma metafísica da arte justifica a existência e o mundo como fenômenos
45 NIETZSCHE, Friedrich. A Filosofia na Idade dos Gregos. Elfos Lisboa Edições 70, 1995. p. 29 46 BENCHIMOL,Márcio. Apolo e Dionisio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo, Annablume; FAPESP, 2003. p. 42 47 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2ª edição, Rio de Janeiro, Rocco, 1985. p.26
53
estéticos e a arte como superação da realidade, ao quebrar conceitos cristalizados, torna viável
a vida. Há espaço para o desconhecido; a surpresa, o espanto, o encantamento oferecem seu
frisson, dando-se o exercício de novas possibilidades que nos resgatam à vida.
Agora, sim, pode-se perceber a gravidade e prenunciar as conseqüências da morte da
tragédia pelo socratismo estético. Trazer a lógica e a análise para o campo da arte anulou as
possibilidades que esta antes oferecera. Porém, Nietzsche propõe uma reviravolta: uma vez
que a ciência adentrou-se a arte, ele propõe analisar a ciência com a ótica do artista, porque,
uma vez que arte é vida, apenas a experiência estética justifica a vida.
Nietzsche propõe uma relação estética para aproximar, por meio do poético e da
imaginação, essas distintas esferas que são sujeito e objeto. A imaginação, ao contrário da
ciência, não se paralisa com a não-realidade e é a contrapartida dessa rigidez e fixidez: a arte e
o mito, por estarem em uma busca constante de novas formas de configuração do mundo com
novas cores. O deslocamento dos velhos sentidos de verdades cristalizadas refresca, dá novo
ânimo e possibilita o exercício de novas representações.
É nesta seara que há espaço para a criação, para a proposição de novas metáforas. É
na arte que o desejo de reconfiguração constante do mundo permite um fluir caleidoscópico,
então a cada instante tudo é possível como no sonho49.
Em seu fazer filosófico-poético, Nietzsche engendra um exercício intempestivo,
instaurando um paradoxo entre o pensar e a dinâmica da criação pré-teórica. Ao estabelecer
tais relações, ele rompe com a história filosófica de sua época e põe em cena novos conceitos:
repele a análise, a explicação, e fala do Uno-primordial. Associa o filosófico ao poético,
privilegiando mesmo o impacto do poético ao comprovadamente lógico, tecendo novos
48 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia; ou Helenismo e Pessimismo. Traduzido por J. Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. p.55 49 Nietzsche, Friedrich. Acerca da Verdade e da Mentira no sentido extramoral. Tradução Helga Hoock Quadrado. Portugal, Printer Portuguesa, Relógio D’Água Editores, Junho de 1997. p. 220
54
vínculos entre a arte, a filosofia, a ciência e a vida: Ela devia cantar, essa nova alma – e não
falar50. É através do fenômeno da arte que se decifra o mundo e se vivencia o ser.
A leitura socrática de Nietzsche é a crítica da presunção da ciência. É a afirmação da
arte como superior à metafísica, ao cristianismo e à ciência pelo fato de a primeira reafirmar a
vida enquanto as outras perseguem uma ilusão de verdade com arrogância cega. A leitura
socrática de Nietzsche é também a crítica ao espírito metafísico, ao homem teórico nascido
com a metafísica. É ainda a negação da possibilidade de uma verdade integral e a denúncia da
ruptura do homem com sua possibilidade de vida: uma vez mais é a arte trágica proposta
como alternativa de solução para resgatar o homem para a vida.
Enquanto Schopenhauer descreve o terror que se apodera do ser humano quando o
princípio da razão parece sofrer uma exceção, Nietzsche acrescenta a esse terror o êxtase,
delicioso, de se romper o princípio de individuação, apolíneo, pela mistura e embriaguez do
dionisíaco.
Sair de si permite ver o outro sob um novo prisma, ver tudo novo, ver várias
possibilidades – menos egocêntricas – ; sair de si permite ser outro, ser outros, ser o outro; e,
rompendo com a individualidade apolínea, o êxtase dionisíaco da comunhão original pode ser
vivenciado. A questão que propomos estudar a seguir, abordará a alteridade e a possibilidade
da arte voltar a atravessar o homem com vida. Será a poesia que exercita a alteridade numa
possibilidade do retorno do dionisíaco por romper com a individualidade apolínea?
A obra teórica de Michel Collot aborda o tópico da poesia da alteridade, na qual o
sujeito lírico é lançado para fora de si. Neste traço estilístico há mais do que a criação de uma
nova estética, há a possibilidade da quebra do princípio da razão. Por meio do estranhamento
que o deslocamento do sujeito lançado para fora de si causa, e a conseqüente religação com o
todo, podemos voltar a nos sentir parte do todo. Religados pela arte saboreamos ser outros.
50 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia; ou Helenismo e Pessimismo. Traduzido por J.
55
Somos o todo. Somos um. Atravessados de vida, pela vida – nos tornamos também centelha
de vida, reencantados.
Essa poesia objetiva parece oferecer estados de exceção à lógica reinante, permitindo
ao sujeito uma experiência dionisíaca por meio de novas criações. A partir de formas e
aparências apolíneas, o novo se oferece, sendo sublime, religando por meio do prazer o
homem a sua realidade, a sua vida. Revive-o, vivifica-o, entusiasma-o, insufla-lhe novo sopro
divino, atravessa-o pela dianóia.
Sob a magia do dionisíaco rompem-se as limitações entre os homens e o Uno-
primordial: de seus gestos fala o encantamento o homem não é mais o artista, tornou-se obra
de arte.51
2. Contraponto a Hegel
2.1. Lírica: da música à poesia moderna
A palavra lírico, no grego lyricós, e no latim lyricu, é um termo que designa o que é
relativo à lira; instrumento musical usado para acompanhar as canções dos poetas da Grécia
antiga, e retomado na Idade Média pelos trovadores. A denominação de lírico atravessou a
fronteira da música para a literatura. A poesia nascera da oralidade, de ritmos e sons, sendo no
princípio também uma forma de música, pois a poesia lírica era recitada ao som da lira. Entre
aedos e rapsodos, a poesia grega clássica difere profundamente da poesia moderna em seu
conteúdo, forma e métodos de apresentação. A poesia grega consistia numa arte
essencialmente prática, intimamente ligada às realidades da vida social, política e religiosa, ou
Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. p.17 51 Idem. Ibidem. p. 31
56
seja, com o comportamento dos indivíduos dentro da comunidade. Espelhava a própria
experiência do poeta, e a de terceiros sobre a existência humana, mas não pode ser
considerada uma poesia da ordem do privado, no sentido moderno, pois a coletividade
compartilhava a unidade, especialmente seus temas que eram regularmente extraídos de
mitos, matéria principal da poesia narrativa e dramática, além de ser ela um ponto constante
de referência paradigmática do gênero lírico.
Além de entreter, a poesia existia para informar e instruir, mais explicitamente quando
composta com vista a necessidades de grupos e ocasiões específicas, como os ritos iniciáticos
pré-maritais celebrados em Alcman e Sapho; e continuou a ser assim quando tomou os palcos
e adotou modos e formas de representação dramáticos. O que mais radicalmente a distancia da
poesia moderna é o seu meio de comunicação: não um texto escrito, mas uma apresentação
oral solo ou acompanhada de um coro, ou ao som de um instrumento musical, diante de uma
audiência. A palavra grega mousiké englobava poesia, e designava arte em sua totalidade, a
união de palavras e sons tecendo música; e a palavra usada para nomear o poeta era, no
período arcaico, aoidós, cantor ou, mais tarde, no começo do século V a.C. melopoiós,
compositor de canções ou poietés.52
A apresentação oral era ou de composição já existente, memorizada, recitada ou
cantada, ou uma composição improvisada, que podia ser preservada por meio de
memorização. A atividade do rapsodo, como descrita por Platão em seu diálogo Íon, consistia
na apresentação, incluindo linguagem gestual, de passagens memorizadas dos poemas de
Homero. O rapsodo não apenas decorava seus versos mas aquilo que os vivificava. A
profissão do poeta oral requeria uma habilidade natural – ou, como os gregos diriam, da
phýsis. Igualmente verdadeiro, era o fato de que a junção desses talentos individuais seria
52 GENTILI, Bruno. Oral Poetry and its Public in Ancient Greece. From Homer to the Fifth Century. Translated by Thomas Cole. London, The John Hopkins University Press, 1990.
57
impossível sem a posse de refinada técnica mnemônica e de composição, de grande
complexidade.
A evolução no significado do termo rapsoidós parte da designação: aoidós, palavra que
era aplicada originalmente aos poetas-apresentadores. A apresentação do rapsodo poderia ou
não envolver o uso de canções. Ele poderia cantar seu texto com o acompanhamento de uma
lira, como Demodocus e Phemius, ou declamar segurando o cajado do rapsodo, rhábdos,
como Hesíodo, que em um trecho da Teogonia é retratado com um cajado53 na mão, um
presente simbólico das Musas na ocasião de sua investidura como poeta. Entretanto, em
ambos os casos a poesia era transmitida oralmente.
Euterpe, musa da poesia lírica, atravessou os séculos trazendo pelas mãos a poesia, que
passou por transformações que foram do advento da escrita à invenção da imprensa - uma
grande revolução no modo de transmissão e de elaboração e apresentação da produção
poética. Antes da constituição do livro como suporte de escrita, a arte poética contava
somente com um meio que lhe garantia divulgação e fruição coletivas que era a voz humana.
Dos poemas épicos e heróicos da Antigüidade greco-romana à tradição trovadoresca, a
apresentação de um poema constituía um exercício criativo e interpretativo intimamente
ligado à vocalização e à música. A própria atividade do “poeta”, aeidos ou rapsodo, não
comportava uma distinção nítida entre a criação e a interpretação, ou entre interpretação
cantada ou falada. A história da relação entre a poesia e a música na Grécia confunde-se com
a própria gênese das duas artes.
O lirismo ganhou espaço nas pastorais, madrigais, baladas e outros tantos cantos dos
trovadores, na Idade Média, sendo o amor cortês o tema dominante das obras mais
conhecidas. O lirismo chegou à Renascença com novas formas de inspiração e expressão, sob
53 NT Wand – que em inglês significa a vara mágica dos feiticeiros.
58
a influência da releitura dos poetas clássicos e da literatura italiana, acrescido do entusiasmo
pela possibilidade de inventar uma nova imagem de homem e de mundo. A produção poética
da época é farta, período em que a ode e o soneto são os espaços formais mais adequados à
criação lírica. Porém, tal efusão criadora é ceifada pelo classicismo, que valoriza a figura do
homem honesto e simples, privilegiando a hierarquia e a ordem, atando a expressão lírica a
exigências formais.
No classicismo a arte se apresentava mecânica, por não estar provida de consciência
crítica, e mediava o homem e seu mundo via da representação do real, de seu conhecimento e
controle, a produção artística da época se caracterizado-se por essa tentativa de apropriação da
realidade que se modifica cada vez mais rápido em uma reconfiguração caleidoscópica. A arte
se transforma com a vida, e a poesia é o ponto de encontro entre elas.
Com o iluminismo, no século XVIII, o sujeito autônomo moderno começou a se firmar. O
advento da explosão de heterogeneidades, que houve na época, atuou na descentralização do
pensamento pelo abalo ao regime absolutista, aos poderes público e religioso, que deixaram
de controlar a consciência de uma parte considerável dos indivíduos. Em meio a essa crise de
fundamentos filosóficos, espirituais e existenciais, o homem buscou sistematizar o
conhecimento em uma tentativa de restabelecimento de ordem, em um esforço para assimilar
a infinita heterogeneidade de um mundo que parecia sem fim.
Contudo, entre as profundas transformações ocorridas no século XVIII, principalmente na
França, Inglaterra e Alemanha, o lirismo renasce, com o primeiro romantismo alemão. Após
quase um século da rígida estética clássica e da vigência de convenções de expressão
limitadoras, o poeta experimenta a possibilidade da expressão individual subjetiva: O poeta é
59
literalmente insensato – em contrapartida, tudo se passa nele54. Ele é, literalmente, sujeito e
objeto ao mesmo tempo, alma e universo. Novalis, representante da estética romântica do
sonho, expressa a identificação do sujeito com o objeto assim como identifica a poesia com a
magia, por meio das quais o poeta reinventa a realidade. Pela tessitura da poesia, o mundo
transforma-se em sonho, e o sonho transforma-se em mundo.
2.2. Hegel e os Primeiros Românticos Alemães
O gênero lírico, na concepção de Hegel, diz respeito à expressão do sentimento
pessoal do poeta: É a maneira como a alma, com seus juízos subjetivos, alegrias e
admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no âmago deste conteúdo.55 A
referência de lírico de Hegel era o poeta que cantava a perda da amada à imagem de Orfeu :
uma criatura solitária e chorosa que se mantém pelo seu canto. Em seu trabalho, Estética,
Hegel opõe a subjetividade da criação lírica à objetividade da poesia épica : e a dicotomia
entre o mundo interior, dos sentimentos, e o mundo objetivo, das ações, se instala : as artes
plásticas representam objetos concretos do mundo exterior, e na fantasia poética predominaria
a subjetividade, a emoção e a intuição. A poesia épica representaria o mundo objetivo e o
poeta desapareceria diante da objetividade das criações, enquanto que na representação lírica
de mundo, para que a expressão poética se dê, é necessário haver um despertar através do qual
o poeta envolve suas idéias e impressões, transpondo, por meio de palavras, o modo como
percebe a realidade e despertando esse estado em outras pessoas : a poesia lírica não é a que
fala do sentimento mas no sentimento.56
54 NOVALIS. Pólen. Fragmentos, diálogos, monólogo, introdução, tradução e comentários R.R.Torres Filho, São Paulo, Iluminuras. 1988. 55 HEGEL, G. W. F. Esthétique, Paris, Flammarion, 1958. 56 HEGEL, G. W. F. Sistema das Artes. São Paulo, Martins Fontes, 1977.
60
O filósofo também acreditava que o poeta lírico fosse um indivíduo isolado,
interessado somente pelos estados da alma, aquele que se ocupava das próprias sensações,
voltado para si mesmo. O universo exterior só era considerado significativo quando existia
uma identificação, ou fosse passível de ser interiorizado, pelo poeta. Em seu conceito de
lírica, a objetividade do mundo exterior não era válida por si, pois só se tornava um elemento
de criação lírica quando absorvida e externada com as marcas de subjetividade do poeta,
como numa revelação íntima. Na reflexão de Hegel, a poesia liberta a alma do domínio que a
paixão exerce sobre ela. Mais que isso, a poesia liberta o indivíduo de sua fusão com o
conteúdo, realizando o que se denomina: objetivação poética. O conteúdo da poesia lírica
não pode ser a reprodução verbal de uma ação objetiva onde todo mundo possa se refletir ou
simbolizar (...); o conteúdo da poesia lírica é a maneira como a alma (...) toma consciência
de si mesma no âmago desse conteúdo.57
Hegel compara constantemente a poesia lírica à épica, mas, para distinguí-las atribui à
primeira um caráter de pura subjetividade. Até mesmo em poesias construídas em forma
descritiva, a descrição não era vista como neutra, uma vez que o elemento descritivo pode não
ser objetivo, mas funcionar como um símbolo que revela as emoções do eu-lírico do poeta.
Esse entendimento de lírica como uma expressão de subjetividades não representaria o mundo
exterior e objetivo, tampouco a interação do homem e das coisas do mundo mas,
decisivamente, era o traço de subjetividade que identificava e distinguia a lírica dos outros
gêneros como a narrativa e o drama.
Já no início do século XIX, um movimento contra a idéia de racionalidade tal qual era
defendida por Hegel estava se formando, e o ponto de discussão central era a possibilidade de
apreensão racional do absoluto ou da realização de um saber absoluto. Os primeiros
57 HEGEL, G. W. F. Sistema das Artes. São Paulo, Martins Fontes, 1977.
61
românticos buscavam o infinito, o que era impossível de se realizar, daí os sentimentos de
nostalgia.
Portanto, a questão opositora entre o pensamento de Hegel e dos primeiros românticos
alemães vai além da oposição entre racionalismo e irracionalismo. O que está em discussão é
a possibilidade da apreensão total da realidade pelo racional ou da apreensão não racional e
intuitiva dessa realidade. Hegel rejeita representações artísticas fundadas em modelo abstrato
e fragmentário do sujeito.
A tendência moderna para representar a cisão e a dissonância, num tempo em que não
se ousa mais falar de absoluto nem tentar apreender a totalidade, ainda é o fragmento. E o
sujeito lírico, que também se apresenta fragmentado, pluralizado, impessoal ou cantando
outras vozes, também poderá evoluir para a desapego total da individualidade ou até mesmo a
reconquista da unidade, não pela racionalidade absoluta, mas pela integração do homem com
a natureza.
A subjetividade como abstração e fuga de um mundo prosaico em direção à própria
interioridade origina uma forma de incomunicabilidade. Tal idéia é representada na teoria
estética de Schlegel quando conclui que a verdadeira beleza estética é algo “indizível” e
portanto, só pode ser representada por nuances, aproximações indiretas, que transformam a
impossibilidade de apreensão do todo em uma apresentação simbólica que permite o
conhecimento parcial do objeto: Aquilo que pode ser resumido em um conceito, deixa-se
talvez apresentar através de uma imagem: e assim então, a necessidade do conhecimento
conduz à apresentação; a filosofia conduz à poesia.58
Os românticos alemães se voltaram para a importância atribuída à linguagem,
consolidando a vinculação da poesia com o pensamento: O poeta conclui, assim que começa o
58 SCHLEGEL, F. Kritische Freidrich Schlegel – Ausgabe, Editado por Ernst Behler und Hans Eichner – Paderborn. Munchen; Wien, 1979 ss, vol XI, p. 9
62
traço. Se o filósofo apenas ordena tudo, coloca tudo, então o poeta dissolveria todos os elos.
Suas palavras não são signos universais – são sons – palavras mágicas, que movem belos
grupos em torno de si.59 Novalis, como um notável representante do primeiro romantismo
alemão, que tantas influências originou, que até hoje repercutem na poesia e filosofia,
apresenta, em seus fragmentos, uma série de reflexões sobre o fazer poético e a relação entre
palavras e seus significados. Tais pensamentos deram início a revisões e invenções no uso das
palavras, que possibilitaram o exercício de retirá-las de seus sentidos desgastados para melhor
expressarem as acepções desejadas pelo poeta. A repercussão dessas idéias podem ser vistas
na lírica moderna.
2.3. A Poesia Lírica transmuta-se
Ao longo da história, a poesia lírica adotou formas tão diversas que não é possível
estabelecer uma versificação única. Ela se caracterizou pela variedade de suas formas, desde
seus primórdios. Naturalmente voltado para a amplitude, o lirismo ultrapassou o limite dos
versos e se derramou na prosa. Baudelaire demonstrou ser possível a escritura de uma prosa
poética, musical.
A prosa poética quebra algumas das regras normais da prosa, para atingir uma imagética
mais sofisticada ou um maior efeito emocional. Como forma poética específica, a prosa
poética originou-se no século XIX, na França. Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud e
Stephane Mallarmé estiveram entre os fundadores desta forma.60 Para Baudelaire a poesia
pode exprimir-se através da prosa sem qualquer artifício ou marca exterior. Segundo ele, tanto
59 NOVALIS. Pólen. 2ª edição, São Paulo, Iluminuras, 2001. 60 http://pt.wikipedia.org/wiki/Prosa_po%C3%A9tica - visitado em 21 de fevereiro, 2006
63
o poema como a obra de arte em geral não se definem por uma forma específica, mas o efeito
produzido é que constitui o essencial.61 E o efeito é a surpresa obtida por uma nova atitude do
escritor
O ESTRANGEIRO – Diz, homem enigmático, de quem gostas mais ? Do teu pai, da tua mãe, da tua irmã ou do teu irmão? – Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão. – Utiliza uma palavra cujo sentido desconheço até agora. Da pátria? – Ignoro em que latitude se situa. – Da beleza? – Amá-la-ia de bom grado, deusa e imortal. – Do ouro? – Odeio-o como odeia Deus. – Ah! De que gostas tu então, estrangeiro extraordinário? – Gosto das nuvens … das nuvens que passam …lá longe …das maravilhosas nuvens!62
A literatura estabelece uma relação entre leitor e autor, apesar da ausência do corpo
físico deste último, o que acarreta o fato de não haver alguém para explicitar o que o autor
quis dizer. Entretanto, tal “explicação” teve lugar por muito tempo na literatura, mas as novas
abordagens teóricas, que surgiram em função da nova produção literária que se fazia então,
compartilhavam a hostilidade contra o enfoque de Lanson e Saint-Beuve que privilegiavam a
biografia do autor ao analisar sua obra. A partir do meio do século XIX, o poeta se torna, mais
do que nunca antes, crítico de seu mundo, de si mesmo e sua própria produção. Desde Poe e
Baudelaire os líricos desenvolvem uma reflexão poético-teórica que avança paralelamente á
sua obra. E não o fazem por razões didáticas. Deriva, muito mais, da convicção moderna que
o ato poético é uma aventura do espírito operante e, ao mesmo tempo, observador de si
61 http://babilonia.ulusofona.pt/traducoes_introducao.pdf - visitado em 6 de março, 2006. 62 Tradução de Ana Cristina Tavares, professora e Investigadora na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 2005, Portugal. Essa tradução está disponível em http://babilonia.ulusofona.pt/traducoes_introducao.pdf
64
mesmo, e que este, com a reflexão sobre seu ato, até reforça a alta tensão poética.63 Os
valores da criação tendem a substituir os valores da expressão. Nesse contexto muitos são os
artistas que questionam a possibilidade de se representar, pelo vocabulário já cristalizado da
cultura, a experiência subjetiva que é deflagrada pela experiência estética.
Deu-se início a uma farta produção de textos críticos elaborados por poetas como Poe,
Mallarmé, Baudelaire, Rimbaud, Paul Valéry que, assim como esse poeta, são também
críticos, quanto à elaboração de sua arte. Apesar da arte produzida por tal poeta crítico
fomentar a reflexão, isso não o torna um homem teórico, no sentido socrático. O poeta-crítico
elabora sua crítica também como um ato criador, sendo ela um espaço onde a dúvida pode
existir, não ambicionando explicar a obra de arte com seu pensamento, nem oferecer respostas
mas questioná-la, fazê-la ecoar, desenvolver outros olhares sobre um poema, num exercício
que amplia o poema, desdobrando camadas de leituras, tecendo talvez uma ponte entre a obra
de arte e o mundo, transformando o mundo com sua obra crítica, assim como o faz com seus
poemas. Tais poetas da modernidade, que se fizeram críticos, dissociaram poesia de emoção,
no sentido de que a produção poética não se dá por uma necessidade pessoal de extravasar
emoções subjetivas em um momento mágico de criação. Críticos-poetas e poetas-críticos
produzem poesia com técnica e recriam a emoção. Emoção esta que se encontra, na busca da
forma, na escolha de palavras e de seus silêncios, que comporão uma imagem nova, a língua
pura, a flor que falta em todos os buquês, como dizia Mallarmé.
O poeta-crítico demanda um leitor também crítico. A produção desse novo poeta se
liberta de um certo número de convenções, e ele se arrisca numa escrita desobrigada da
composição de alexandrinos ou da rígida divisão de gêneros. Seu vocabulário ousa palavras
que antes poderiam ser tachadas de ferir o bom gosto, cunha palavras e esculpe frases que
resgatam vitalidade para decalcar imagens inéditas. São as formas livres, que conduzem seu
63 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1978. p. 147
65
pensamento de poeta, encharcado de idéias inovadoras, assim como são originais as maneiras
de apresentá-las, todos procuram uma espécie de transcendência da linguagem:64
Não me importo com as rimas. Raras vezes Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra. Penso e escrevo como as flores têm cor Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me Porque me falta a simplicidade divina De ser todo só o meu exterior. Olho e comovo-me, Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado, E a minha poesia é natural como o levantar-se o vento...
Alberto Caeiro65
Depurar a linguagem e reinventá-la é algo que faz parte deste novo poetar. Mallarmé, um
ícone dessa transformação poética, cuja poesia busca uma forma de desvincular a linguagem
da função informativa e aproximá-la da música trabalhando com a própria forma do poema,
reflete sobre o desejo de separar os estados das palavras em seu texto Divagações, em 1897: o
estado bruto ou imediato e o essencial. Observa que, para muitas pessoas, o valor de troca da
palavra basta, o emprego do discurso com funções informativas está presente na maioria de
interações entre os seres humanos. É na literatura que a linguagem se liberta de suas funções
informativas; apesar das palavras não traduzirem o real, a composição por meio de palavras
caracteriza também um jogo que se revela demasiadamente humano e re-apresenta o mundo.
A história pode ser vista como um tecido de imagens que são formadas por discursos, por
linguagem. E todo discurso serve a um poder, o poder é ligado à história inteira do homem, e
64 Idem. Ibidem. p. 151 65 http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v074.txt - visitado em 3 de maio de 2006.
66
o objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem – ou,
para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua.66
A consciência histórica da modernidade vem acompanhada pela consciência do homem
moderno de saber ser ele mesmo responsável pelas mudanças que transformam a
temporalidade em história, dotado que é de uma linguagem marcada social e historicamente.
É apenas na literatura que se abre a possibilidade de libertação da ditadura que é a linguagem:
só nos resta, por assim dizer, trapacear com a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva,
esse sopro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma
revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura.67
É no espaço poético que o poema rompe os limites da própria linguagem ultrapassando-
a,(...) o poema é histórico e ultrapassa a história. Ao ser ultrapassado, o tempo histórico
transfigura-se em arquétipo, em tempo da origem, tempo anterior a qualquer história, a
literatura expressa a sociedade; ao expressá-la, ela a muda, contradiz ou nega. Ao retratá-la,
inventa-a, ao inventá-la, revela-a.68
Há na poesia finissecular norte-americana, um brevíssimo poema de Emily Dickinson, no
qual escreve que a poesia não habita os livros, mas é fugaz e livre, e pode ser reconhecida ao
se olhar para o céu de verão - - os verdadeiros poemas voam - -
To see the Summer Sky
Is Poetry, though never in a Book it lie --
True Poems flee - -69
66 BARTHES, Roland. A Aula. São Paulo, Editora Cultrix. 1978. p. 14 67 Idem. Ibidem. pág. 16 68 PAZ, Octavio. El Arco Y La Lira. 1a. ed. México, D. F. : Fondo de Cultura Económica, 1946. p. 165. in CRIPA, Ival de Assis. A historia da poesia e a poesia da história: crítica literária e história intelectual nos ensaios de Octavio Paz. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISPANISTAS, 2., 2002, São Paulo. Anais eletrônicos... Associação Brasileira de Hispanistas, Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php
69 http://www.americanpoems.com/poets/emilydickinson/ - visitado em junho de 2006
67
Ver o Céu de Verão
é Poesia, apesar de em um livro ele nunca estar- -
Verdadeiros Poemas voam - -70
Uma idéia próxima à apresentada no poema de Dickinson pode ser encontrada em
Fernando Pessoa, pela voz de Alberto Caeiro: Porque me falta a simplicidade divina / De ser
todo só o meu exterior. A linguagem não apenas representa a subjetividade do poeta, fatos da
natureza, mas por sua vez, ela também é um fora, um exterior, um local onde o poeta cria e
apresenta realidades. Através da linguagem, a força da natureza pode ser condensada;
apresentada com novas cores, com imaginação, em um exercício que resgata o espanto do
homem frente à vida. O que antes jazia inerte é colhido pelo poeta e insuflado de vida pelo
modo como ele desembaraça as filigranas da linguagem sobre o branco do papel, tecendo uma
construção que produz efeitos inesgotáveis, uma vez que a poesia vela sentidos, enquanto
revela outros, num desdobramento sem fim.
Mallarmé cria a figura da flor ausente de todos os buquês para representar sua relação de
busca e escolha de palavras. Porque o poeta é aquele que quer esquecer o sentido já exaurido,
para que sua voz possa trazer um novo contorno às construções ficcionais, onde a língua
possa reencontrar seu poder encantatório sobre as palavras. Mallarmé, em Lance de Dados,
Coup-de-Dés71, busca aproximar a poesia da música, deslocando para tanto, a poesia do
domínio da descrição, libertando-a dos sentimentos, de uma paisagem manchada pelas
emoções do eu-lírico, e dispondo das palavras tridimensionalmente, como se fossem notas em
frases musicais, remetendo à pauta e à combinação de várias vozes. As palavras, que antes
poderiam aparentar imobilidade, como que se acendem em reflexos recíprocos, dando vida a
70 Tradução Livre por Valéria Mac Knight
68
uma escrita que permite a desaparição elocutória do poeta, que cede a elas sua iniciativa. O
efeito resultante é um texto que não se desgasta ao ser lido, pois oferece várias camadas,
leituras diversas nas várias vozes que as palavras assumem, distribuídas de tal modo que até o
branco da página compõe plasticamente o quadro poético. O próprio Mallarmé compara seu
poema a um céu estrelado ou a fogos de artifício. Tal poema é tão único em sua forma de
composição que julgamos não ser possível sua reprodução no presente estudo, pelo fato de
sua diagramação ser essencial para sua apresentação.
A poesia moderna denuncia a ambigüidade do discurso humano, distanciando a linguagem
poética da linguagem usual, a poesia rompe com a idéia de comunicação assertiva onde há um
apelo para uma ação prática. O poeta francês busca o verso no qual vários vocábulos refazem
uma palavra total, nova, estranha à língua, e que se torna como que encantada ao adquirir um
isolamento da linguagem cotidiana. O acaso na combinação entre sonoridade e sentidos que
nos causa surpresa por jamais ter ouvido um dado fragmento composto de palavras tão
comuns, mas que se tornam tão frescas, revigoradas que chegam a voltar a afetar o objeto
poetado com uma nova atmosfera.72 As alterações nas funções das preposições, adjetivos e
dos advérbios, das formas verbais, do emprego de substantivos, tudo isso resulta em um
procedimento estilístico que rompe com a função informacional, apresentando não apenas
sons, mas seus signos e silêncios que possibilitam a intensificação do efeito poético;73 a não-
palavra / que repousa / entre palavra e palavra.74
71 http://poetes.com/mallarme/coup_de.htm - visitado em junho de 2006 72 le vers qui de plusieurs vocables refait um mot total, neuf, étrager à la langue et comme incantatoire, achève ce isolement de la parole : niant d’un trait souverain, le hasard demeuré aux termes malgré l’artifice de leur retrempe alternée en le sens et la sonorité, et vous cause cetter surprise de n’avoir ouï jamais tel fragment ordinaire d’élocution, en même temps que la reminiscence de l’object nommé baigne dans une neuve atmosphère.72 Mallarmé – Divagations.
73 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1978. p. 159. 74 DOMIN,Hilde. In FRIEDRICH, Hugo. p. 159.
69
A poesia é intraduzível além de ser indizível em prosa comum, assim como as palavras
não traduzem o real. A criação poética do final do século XVIII e início do XIX se depara
com a consciência dessa impossibilidade. Baudelaire, cujo foco foi a beleza da forma e seus
efeitos, é um marco na história literária, precursor desta nova poesia que não pode mais ser
separada da filosofia, o movimento do lirismo romântico conduz o poeta a transbordar sua
própria identidade para colocar outros elementos em seu canto, como a natureza ou o outro.
O ESPELHO Um homem medonho entra e olha-se ao espelho. "– Por que razão se olha ao espelho, uma vez que só se poderá aí ver com desagrado?" O homem medonho responde-me: "– Caro senhor, segundo os imortais princípios de 89, todos os homens são iguais perante a lei; portanto tenho o direito de me mirar; com agrado ou desagrado, isso só á minha consciência poderá apreciar." Em nome do bom senso, eu tinha sem dúvida razão; mas, de acordo com a lei, ele não deixava de estar certo.75
Baudelaire tomou parte importante no início desse processo de despersonalização na
poesia moderna no qual a unidade entre a poesia e a emoção individual do poeta se desfaz.76
Edgar Allan Poe também é um dos exemplos de poeta que estabeleceu uma rigorosa
distinção entre poesia e sentimento. Ele foi uma influência para Baudelaire e Mallarmé, visto
que ambos o traduziram para o francês. O poder da imaginação como faculdade governada
75 http://babilonia.ulusofona.pt/traducoes_introducao.pdf
XL. Le Miroir – visitado em fevereiro 2006 – traduzido por Ana Cristina Tavares.
Un homme épouvantable entre et se regarde dans la glace.
"- Pourquoi vous regardez-vous au miroir, puisque vous ne pouvez vous y voir qu'avec déplaisir?" L'homme épouvantable me répond: "- Monsieur, d'après les immortels principes de 89, tous les hommes sont égaux en droits; donc je possède le droit de me mirer; avec plaisir ou déplaisir, cela ne regarde que ma conscience."
Au nom du bon sens, j'avais sans doute raison; mais, au point de vue de la loi, il n'avait pas tort. 75
76 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1978.
70
pela inteligência era bem-vindo, mas não a sensibilidade do coração ou o sentimentalismo
pessoal. Também em Eliot e Fernando Pessoa pode-se observar tais traços:
Isto
Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto
Com a imaginação. Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda, É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está de pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê! 77
Sem dúvida o poeta português é imbatível ao sintetizar em seus versos idéias tão
complexas. Estampa, com linguagem poética uma reflexão metalingüística sobre o fazer
poético.
Octávio Paz, escritor mexicano nascido em 1914, faz uma reflexão sobre a literatura
através do tempo, e percebe, na modernidade, um movimento de contínuo desencanto do
poeta, dividido entre a moderna concepção do mundo e a presença, às vezes irrefreável, da
inspiração. Paz observa que os primeiros a padecerem desse conflito foram os românticos
alemães. Mesmo assim, foram os únicos que enfrentaram com plenitude e lucidez o problema
e os únicos – até o movimento surrealista – que não se limitaram a sofrê-lo mas tentaram
77 Fernando Pessoa. Disponível em http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v066.txt visitado em 16 de abril de 2006
71
transcendê-lo.78 Paz cunhou o termo outridade, que designa a heterogeneidade do ser em sua
dimensão essencial.
A idéia de outridade, parece comportar os heterônimos de Fernando Pessoa, e os
pseudônimos que usava para assinar sua escrita que variavam em identidade e estilo, e eram
dramatis personae assumindo o papel de personagens diversos do “eu” do poeta. No ato da
criação o autor se ausenta do conhecido a fim de se aventurar no desconhecido, deixando que
a imaginação atue no fazer das coisas.
Também Emily Dickinson, em seus poemas, adota uma variedade de “personas”,
podendo ser uma menininha, uma rainha, uma noiva, uma esposa, uma mulher a beira da
morte, um menino ou mesmo uma abelha. Porém, cerca de 150 de seus poemas iniciam-se
com eu , e a poeta afirma que seu trabalho não deve ser visto dissociado de sua vida pessoal:
Quando eu me afirmo, a mim mesma, como Representante do Verso, não significa que esse –
eu – seja uma suposta pessoa.79
I'm Nobody! Who are you? Are you -- Nobody -- Too?80 Eu sou Ninguém! Quem é você? Você é - - Ninguém - - também?
Novalis e T.S. Eliot também falavam de despersonalização do “eu-escritor”; a poesia
moderna exclui não apenas a pessoa privada mas até mesmo os aspectos humanos mais
78 PAZ, Octavio. El Arco Y La Lira. 1a. ed. México, D. F. : Fondo de Cultura Económica, 1946. p. 165. in CRIPA, Ival de Assis. A historia da poesia e a poesia da história: crítica literária e história intelectual nos ensaios de Octavio Paz. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISPANISTAS, 2., 2002, São Paulo. Anais eletrônicos... Associação Brasileira de Hispanistas, Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php 79 Tradução livre por Valéria Mac Knight: When I state myself, as the Representative of the Verse, it does not mean--me--but a supposed person 80 http://www.americanpoems.com/poets/emilydickinson/10240 - visitado em 16 de abril, 2006
72
básicos. Rimbaud, mais radical, rejeita a poesia subjetiva e a chama de insípida: Votre
subjective sera toujours horriblement fadasse.81
Em 1871 Rimbaud escreveu duas cartas, intituladas Cartas do Vidente82, nas quais
esboçou um projeto para uma poesia futura, inaugurando a segunda fase de sua própria
poesia, o que confirma a idéia de que para Rimbaud a produção é inseparável da reflexão
sobre o fazer poético. Nascia o poeta crítico, vidente. A busca do desconhecido, adentrando o
invisível e ouvindo o inaudível em um processo transcendente, faz parte do caminho de
criação desse poeta francês. O desconhecido é atingido quando o poeta se transforma em
outro e assiste à eclosão de seu próprio pensamento.
Rimbaud nos apresenta o drama gnosiológico do poeta moderno transcendental onde o
“eu” passa a ser um outro. O “eu” não mais se identifica nem com o sujeito nem com o objeto
e, dessa forma, rompe com tudo, desguarnece a estranha estruturação que designa a
singularidade do eu-ocidental. Por mais que crie heterônimos, o poeta continua anônimo de si-
mesmo. Rimbaud é a denúncia do pensamento que se esvazia de identidade própria: pensa-se
em mim.
2.4. A Desumanização do eu-lírico
Em 1925 foi publicado um ensaio de Ortega y Gasset sobre a desumanização na arte,
La Deshumanización del Arte, cuja idéia central tem raízes nas teorias estéticas de Kant e
Schiller, em particular sobre a beleza gratuita, e reside na idéia de que o sentimento de
humanidade suscitado por uma obra de arte depende de suas qualidades estéticas. A
deformação do real, ou sua estilização implicam em desumanização. Tais idéias se refletiram
na arte moderna – Ungaretti 1935 – sentimento do tempo.
81 ROBERT, Paul. Dictionnaire alphabétique et analogique de la langue Française. SNL, Paris, 1976.
73
Ao refletir sobre a popularização da arte no século XIX e a possibilidade de uma arte
realmente “pura”, Ortega y Gasset conclui que, ainda que a arte “pura” seja impossível, há
uma tendência de purificação da arte, e que esta busca a eliminação progressiva de elementos
demasiadamente humanos, que dominavam a produção romântica e naturalista. Mas, neste
processo, se chegará a um ponto em que o conteúdo humano da obra seja tão escasso que
quase não seja visível.83
O poema de Federico Garcia Lorca: El Grito pode ser tomado como exemplo dessa
poesia desumanizada; sem “eu”. A elipse é o sujeito poético que lhe dá origem e os elementos
do poema se constituem a partir dessa ausência. O poema representa o anonimato em forma
de língua:
A elipse de um grito vai de monte em monte.
Visto do olival
será um arco-íris negro sobre a noite azul.
Ai!
Como um arco de viola, o grito faz vibrar longas cordas do vento.
Ai!
(A gente das grutas assoma seus candeeiros)
Ai! 84
82 Les Lettres du Voyant, Rimbaud, Arthur. 83 ORTEGA Y GASSET, José. La Deshumanizacion Del Arte y otros ensayos de estética. Espanha, Alianza Editorial 1991, p. 19. 84 In FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. Tradução de Dora F. da Silva São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1978. p. 237
74
O próprio García Lorca ao comentar o estilo poético do poeta barroco Luís de
Góngora, do século XVII, observa que a poesia deste último reflete a crença de que seu valor
pode ser aumentado na medida em que sua escrita se afaste da normalidade, seja do mundo
exterior como do interior. Isto é apresenta a evidência de que tal traço estilístico da
despersonalização não começou no modernismo. Góngora preferia os reinos que só existem
poeticamente, construindo, com uma linguagem onde as palavras gozavam de autonomia, um
edifício que resiste ao tempo.85
Toda poesia que escolhe como sujeito o mundo das coisas é uma variante da literatura
da desumanização. Ponge é um dos melhores exemplos de poeta que escolhe como temática
de sua poesia objetos como a concha, a vela, o cigarro. O “eu” que veicula é fictício e um
mero condutor da língua, e ele não deforma as coisas sobre as quais escreve, mas as imobiliza
e exclui o elemento humano de suas construções poéticas:
Mais abaixo que eu, sempre mais abaixo que eu se encontra a água. É sempre com os olhos baixos que a vejo. Como o solo, como uma parte do solo, como uma modificação do solo.
É branca e brilhante, informe e fresca, passiva e obstinada em seu único vício: a gravidade, dispondo de meios excepcionais para satisfazer esse vício: contornando, transpassando, erodindo, filtrando(...)86
Tal poesia aparentemente objetiva chama a atenção para o fato de que na poesia moderna
o homem ainda se encontra presente, mas de uma outra forma, produtor de uma língua
criativa/criadora, como imaginário. A desvalorização das formas orgânicas realça a força
intrínseca da própria estilística utilizada. O traço essencial dessa força estilística deformadora
se traduz na inversão da ordem hierárquica, uma representação do homem em que este parece
esfacelar sua identidade, transferindo o foco da escrita para o objeto. A desumanização dos
conteúdos e a imparcialidade garantem um novo exercício do jogo com a linguagem, em uma
85 Idem. Ibidem. p. 149.
75
busca de liberdade no estranho paradoxo da desumanização, como em Ungaretti: Hoje estou
bêbado / de universo87. O poeta italiano busca despojar seus versos de previsibilidade. A
concisão potencializa o efeito poético e fomenta o espanto. Sua produção ilustra o princípio
poético, descrito por Edgar Allan Poe, em que o efeito da criação poética depende da extensão
do texto, e que este deve ser breve para alcançar o resultado desejado. 88
Entretanto, apesar da exacerbação dessa crise do lirismo que preconiza a desaparição
elocutória do eu lírico do poeta, o lirismo foi, paradoxalmente, reforçado. A poesia afirma sua
autonomia ao se libertar da expressão subjetiva individual e do didatismo, e se transforma em
uma aventura em si mesma, na busca do que ainda não foi dito.
2.5. O lirismo de Hegel dissolve-se na poética moderna: emerge o sujeito lírico fora de si
A crise do lirismo se instaurou com a dificuldade de expressar-se a subjetividade do
poeta no mundo moderno. A efusão do eu lírico se dissolveu ao tropeçar naquela pedra que
havia no meio do caminho.89
Objeto de críticas várias, desde o início do século XIX, o lirismo, enquanto expressão
da emoção pessoal do poeta, perdeu lugar para uma poesia despersonalizada. Na verdade, ele
não perdeu lugar, não foi substituído mas transfigurado. O lirismo, assim como o sujeito
poético, renovou-se; o lirismo, tal qual concebido por Hegel se opõe à “poética da matéria”
que redireciona e reconfigura o conceito primeiro de lírico. Ele ainda existe e apresenta traços
86 PONGE, Francis. O partido das Coisas. São Paulo, Iluminuras, 2000, pág. 103. 87 Giuseppe Ungaretti. In A Alegria. Tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti. Rio de Janeiro, Editora Record, 2003. disponível em http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet143.htm - visitado em 20 de abril de 2006
88 http://www.bartleby.com/28/14.html - visitado em 16 de abril de 2006 89 SEIXAS, Cid. www.jornaldepoesia.com - visitado em 1 de maio de 2006.
76
interessantes, desde que sua releitura seja feita de modo a não recair em defesa, nem em
negação total, mas que ofereça mudanças no conceito original de sujeito-lírico. As acirradas
críticas, que foram levantadas pelos movimentos chamados de vanguarda, contra o lirismo
podem deflagrar uma dinâmica reducionista em que oposições se digladiam estérilmente.
Não se deve reduzir uma crítica a uma negação simplória, a uma mera inversão que se
resumiria na oposição de pares conceituais como: objeto contra sujeito, a letra contra a
significação, corpo contra espírito. O poema lírico é um artefato verbal, e sua escrita encarna
palavras e o mundo. Existe a proposta de uma outra dimensão que seria a interação existente
na criação poética em que o processo pode ser visto como relacional entre sujeito e objeto,
atravessando a materialidade do corpo, da linguagem e do mundo. Michel Collot90 apresenta à
poesia e à crítica modernas uma alternativa pela qual a redução dicotômica pode ser
ultrapassada.
A essência da lírica, para Hegel, está na revelação e aprofundamento do próprio eu, no
ritmo desse eu. Toda a realidade é afunilada pelas dimensões e tons do eu do poeta lírico. Ao
lírico é impossível exilar-se de si mesmo, alhear-se da sua interioridade a fim de se outrar,
como diria Fernando Pessoa, a fim de criar seres e coisas que alcancem um subido grau de
distanciamento em relação ao sujeito individual. 91 Collot afirma que é sim possível a poesia
lírica se outrar e é exatamente este fora de si o lócus onde o sujeito lírico pode realizar a
poesia enquanto poiésis92, ou seja, ao fazer surgir algo que antes não existia, reencantar-se ao
90 Michel Collot é Professor da Sorbonne Paris III e dirige um seminário de poesia contenporânea Poeta e teórico, ele tenta definir um novo enfoque da poesia moderna devolvendo a obra a seu próprio horizonte. http://www.hpaysage.levillage.org/collot.htm - Membro da redação da revista Génésis, é co-fundador da Associação Horizon paysage que visa questionar por meio de diferentes encontros e publicações os enquandramentos da paisagem no mundo contemporâneo.
91 AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria da Literatura. Coimbra, Livraria Almedina, 1969.
92 Poiesis: palavra de origem grega que significou inicialmente criação, ação, confecção, fabricação e depois
terminou por significar arte da poesia e faculdade poética.
77
mesmo tempo em que reinventa a linguagem da poesia, reconfigurando-se atravessado pelo
vigor do novo, por vida. Também Paul Valéry empregava a palavra “poesia” em seu sentido
etimológico grego, que é o de “fazer” aproximando a criação poética do ato de produzir.
Enquanto para Hegel a poesia lírica não nasce do anseio de descrever o real, nem do
desejo de criar sujeitos independentes do eu-lírico do poeta, a leitura de Collot oferece uma
hipótese de que na modernidade o poeta compõe fora dessa subjetividade lírica hegeliana,
desalojado dessa interioridade.
A experiência de pertencimento ao outro é acrescida do pertencimento ao tempo, ao
mundo e à linguagem e fazem com que o sujeito criador se torne sujeito ao que o inspira e à
linguagem. O poeta é sujeito ao mundo, pertencido do tempo, da linguagem e das coisas. Mas
esse mundo e essa linguagem se encontram desencantados, não há mais um Deus, um Sagrado
e suas criações para serem cantadas, apenas um mundo descolorido e cindido, percebido em
partes por um sujeito fragmentado. A reinterpretação feita por Collot do lirismo aponta a
transcendência como uma ilusão lírica, e denuncia a necessidade de alteridade para a
verdadeira constituição do sujeito. Assim transformado, o lirismo ressurge como uma
possibilidade legítima de expressão do sujeito contemporâneo. Collot conclui que o sujeito só
poderá encontrar sua “verdade mais íntima” não em sua interioridade mas, paradoxalmente,
fora de si. Existir é algo que remete para fora, como sugere o prefixo grego “ex” que significa
para fora: é apenas saindo de si que ele coincide consigo mesmo, não como uma identidade,
mas como uma ipseidade que, ao invés de excluir, inclui a alteridade93.
Tal enfoque, entretanto, não recai na simples negação da subjetividade, mas antes,
transforma a atribuição de peso e importância entre sujeito e objeto. Através dos objetos que
convoca e constrói, o sujeito não expressa mais um foro íntimo e anterior: ele se inventa
93 RICOEUR, Paul. in COLLOT, Michel. Le sujet lyrique hors de soi. In Figures du sujet lyrique. Dominique Rabaté (dir). Paris: PUF, 1996. p. 113-125.
78
desde fora e do futuro no movimento de uma emoção que o faz sair de si para se reencontrar
e se reunir com os outros no horizonte do poema.94
Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. (...)95
A partir da primeira metade do século XX, o lirismo deixou de representar a expressão
de uma individualidade privilegiada para explorar o território do outro, conforme a produção
moderna de após a revolução estética do século XIX. Na leitura de Hegel, na velha Grécia a
lírica era sinônimo da manifestação de subjetividade, porém, o conceito de despersonalização
destruiu a limpidez das fronteiras entre o lírico, o épico e o dramático. Nietzsche observa a
identidade da música com a lírica e vê o poeta lírico como artista dionisíaco: totalmente
unificado com o Uno-Primordial e afirma ser sua música, a réplica dessa unidade. Queremos
nos aproximar de Nietzsche e observar que o poeta que renunciou a sua subjetividade no
processo dionisíaco se derrama sobre as coisas do mundo, tornando-se outro por meio das
palavras, estranhando-se. A lírica moderna não é mais a expressão do sujeito, mas um lugar
de encontro com o outro, um espaço de alteridade.
No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a Criança diz: eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona Para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio.96
94 Idem. Ibidem. p. 118 95 http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v034.txt -Alberto Caeiro - visitado em 12 de maio de 2006. 96 BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro, Ed. Record 11°edição. 1993. p. 15
79
Rimbaud destituiu, em sua poesia, a soberania do lirismo romântico como uma exaltação
do eu, rejeitando a poesia subjetiva em um exercício poético que colocou o sujeito lírico na
fronteira entre o interior e o exterior, entre o mundo e a linguagem, pondo em crise a questão
da identidade do sujeito romântico. Rimbaud chega mesmo a verbalizar, limpidamente como
um cristal, em Cartas de Vidente: je est um autre. Rimbaud verbaliza que é pelo
desregramento de todos os sentidos que se chega ao desconhecido.
Foi também Rimbaud que lançou o projeto de uma poesia objetiva, onde o eu se tornou
um elemento que viabilizou o contraste com o lirismo subjetivo, exatamente por não mais
carregar os significados de antes, por funcionar como um elemento poético que viabiliza o
estranhamento, causador de aporia e facilitador de uma reorganização dos sujeitos: tanto de
quem lê quanto de quem produz o texto poético. Deslocando o eu como quem desloca um
termo desgastado pelo uso comum, o poeta da modernidade exercita a linguagem e os corpos
inusitadamente, gerando o espanto. Por meio do desregramento de todos os sentidos, chega-se
ao desconhecido. O poeta cria o inusitado, o novo, o estranhamento. É perdendo o controle da
língua e do corpo que ele se encontra. Num horizonte de confluência entre o Apolíneo e o
Dionisíaco, onde o êxtase ganha forma, o poeta cria o inimaginável e dá forma ao incógnito,
reinventando-se. É fora de si, nas palavras e imagens do poema, que o poeta transborda e
alcança um pensamento que, introspectivamente, seria irrealizável.
I am the escaped one, After I was born They locked me up inside me But I left. My soul seeks me, Through hills and valleys, I hope my soul Never finds me. Eu sou aquele que fugiu Depois que nasci
80
Eles me trancaram dentro de mim Mas eu saí Minha alma me busca Através de colinas e vales, Espero que minha alma Nunca me encontre.97 Fernando Pessoa98
O sujeito que se escreve através de objetos, buscando-se fora de si, encontra-se na
linguagem, que é também um outro corpo, que é um Outro. Tal experiência possibilita escapar
de modelos que reificam o comportamento por um discurso social estereotipado e midiático.
Graças a esse exercício libertador da linguagem, o sujeito pode se transformar a si e ao Outro.
As experiências possíveis se tornaram limitadas, e o antídoto é criar, inventar outras formas
de dizer o mundo, de expor como se sente neste mundo: é poiésis, é a poesia.
Há milhões de sentimentos ainda não experienciados, esperando para serem traduzidos
por uma linguagem cuja combinação também ainda não foi escrita, segundo Ponge, poeta que
tomou parte no movimento do anti-lirismo moderno, e sentiu na carne a impossibilidade de
expressar seus sentimentos mais íntimos por meio da linguagem tradicional, precisou fazer as
coisas falarem: falar as coisas99, para representar o que sentia: Por muito tempo eu me fiz as
perguntas mais difíceis. Aplico-me atualmente às coisas mais simples. Trata-se para mim de
fazer falar as coisas, pois eu mesmo não consegui falar.100 O uso comum das palavras se
apresentou como um obstáculo aos seus intentos, propôs então falar contra as palavras já
faladas a fim de libertá-las de seus estereótipos. Explora seus significantes e nos revela que se
torna mais prazeroso jogar com as palavras como se fossem matéria. Essa é a saída apontada
por ele: tornar as palavras objetos que servem para nomear elementos da realidade em poesia;
97 Tradução livre por Valéria Mac Knight 98 http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v341.txt - visitado em 2 de junho de 2006 99 PONGE, Francis. O partido das Coisas. Iluminuras, São Paulo, 2000, pág. 39.
81
as qualidades que se descobrem nas coisas tornam-se rapidamente argumentos a favor dos
sentimentos do homem. Ora, numerosos são os sentimentos que não existem (socialmente)
por falta de argumentos. Por isso raciocino que poderíamos fazer uma revolução nos
sentimentos do homem simplesmente aplicando-o às coisas, que logo diriam muito mais do
que aquilo que os homens costumam fazê-las significar. Isso seria a fonte de muitos
sentimentos desconhecidos ainda.101 O lirismo de Ponge nasce da emoção que o contato com
as coisas exteriores propiciam: a descoberta de sentimentos desconhecidos. Seu fazer poético
redefine o sujeito segundo o pensamento moderno, em que a subjetividade humana não é
apenas interioridade mas algo material e relacional e o sub-jetivo é visto como estando por
fora e não por dentro. Em vez de buscar destacar os sentimentos do interior do homem, Ponge
privilegia a harmonia entre o homem novo, a natureza e o fora, o fora de si, em uma produção
que ilustra as idéias desenvolvidas por Collot em seu ensaio O sujeito Lírico fora de si.
A proposta de Ponge é a de transferir-se às coisas102 num processo em que há a
descoberta de infinitas qualidades inéditas que estão prontas a ser formuladas. Pelas palavras
e coisas do senso comum, o lirismo na terceira pessoa do singular transgride para a primeira
pessoa do plural “nós”, porque o sujeito se coloca fora de si, atua em um lirismo que é
contrário a toda uma tradição que teve por origens a teoria hegeliana de lirismo.
Como já foi observado, o sujeito que se escreve por meio de objetos, buscando-se fora,
encontra-se na linguagem que é outro corpo. Tal experiência possibilita a criação, no sentido
primeiro de poesia, daquilo que não havia sido concebido, nunca pensado, representado. A
sensorialidade da materialidade das palavras permite que o eu ceda seu lugar a elementos
vários do mundo
100 Idem. Ibidem. p. 39. 101 Idem. Ibidem. p. 43. 102 Idem. Ibidem.
82
FOOD
ROASTBEEF; MUTTON; BREAKFAST; SUGAR; CRANBERRIES; MILK; EGGS; APPLE; TAILS; LUNCH; CUPS; RHUBARB; SINGLE; FISH; CAKE; CUSTARD; POTATOES; ASPARAGUS; BUTTER; END OF SUMMER; SAUSAGES; CELERY; VEAL; VEGETABLE; COOKING; CHICKEN; PASTRY; CREAM; CUCUMBER; DINNER; DINING; EATING; SALAD; SAUCE; SALMON; ORANGE; COCOA; AND CLEAR SOUP AND ORANGES AND OAT-MEAL; SALAD DRESSING AND AN ARTICHOKE; A CENTRE IN A TABLE. 103
Nesse poema, Gertrude Stein mescla substantivos comuns com abstratos, provocando
a surpresa ao se encontrar, em uma lista de elementos do cotidiano, uma enumeração que
sugere uma seqüência homogênea. Mas a expectativa é quebrada pela inserção de elementos
abstratos, despretensiosamente, sem qualquer indicação prévia. Hugo Friedrich observa que a
lírica moderna cultua uma hostilidade à frase, e a tendência a eliminar o verbo, imobilizando
os conteúdos nominais em si mesmos; a exclusão dos verbos intensifica o fragmentarismo da
poesia não só no plano formal e sintático, mas reforça ademais o isolamento daquilo que é
mostrado com o substantivo, aumentando assim a tensão.104 Não há sequer um pronome, não
há sujeito de qualquer ação mas sim a ausência do elemento humano. Os traços que
demarcam o lirismo se dão pela criatividade com a qual a poeta brinca com os elementos da
língua, com a criatividade e o efeito que sua criação produz. Há o fim do verão entre as
palavras manteiga e salsichas, criação que decalca uma imagem nova em uma estética que
parte dos elementos da realidade, tão comuns, mas que pela tessitura da poeta, são despidos
da função de informar e passam a ser objetos de arte.
103 STEIN, Gertrude. Disponível em http://www.bartleby.com/140/2.html - acessado em 23 de abril de 2006. – grifo nosso 104 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1978. p. 155
83
Lamentando que os nomes sejam infelizmente, tão infelizmente, apenas o nome das
coisas105, Gertrude Stein busca, em sua poesia, suspender o movimento estabelecido pela
referência e agarra-se à gravidade dada pelo sentido. Ela resiste ao fato de que as palavras, ao
mesmo tempo em que coagulam em torno de si significados cristalizados, conduzem o
espírito inevitavelmente às coisas e ao mundo. Entretanto, sua escrita transforma a linguagem
em um tipo de jogo, e obtém o fabuloso efeito de quebrar a temporalidade, podendo-se inferir
que rompe com o tempo do mundo e o da consciência de existir uma vez que abdica, no
poema em questão, do uso de verbos e qualquer outro marcador temporal.
Por meio da repetição, uma toada se inicia, tal como em seu célebre verso: a rose is a
rose is a rose, com um efeito circular hipnotizante que nos induz a deixarmos de ser nós
mesmos e, assim como a poeta se torna linguagem, podemos esquecer de tudo e sermos
apenas poesia.
A poesia tem a potencialidade de produzir idéias e sentimentos nos outros, produz
efeito fora de si, não é algo que só surte efeito dentro do sentimento do poeta. O processo de
produção de sentidos que a poesia deslinda percorre a contrapelos a imagem de mundo criada
pelas instituições de poder: os sistemas político e religioso, criadores da mídia e de dogmas
constitutivos do que se denomina real em nossa cultura. A poesia lança o sujeito também para
fora de si e atua como verdadeiro antídoto contra as formas de reificação da vida humana que
tiram do indivíduo as possibilidades de realizar sua própria leitura de mundo. A poesia
possibilita uma vivência de alteridade e resistência em relação ao que é imposto, ao que
querem que seja pensado: para desenvolver um olhar crítico, é preciso antes de mais nada
abrir-se à alteridade, à pluralidade, ser vário.106 No exercício da percepção vária, a emoção e
105 PINSON, Jean-Claude. De la pluralité des poésies ‘pensantes’. In Poésie et Philosophie. CipM fárrago, 2000. p. 17 106 JACQUES, Marcelo. in Terceira margem: Literatura e outras artes, ano VII, n/8, UFRJ
84
o sentimento mesclados ao pensamento intuem novas formas de ser, abrindo e percorrendo
novos horizontes, exercitam novas possibilidades de existir.
O novo precisa também de uma linguagem nova, reconfigurada, carregada de novos
significados. São as coisas e suas infinitas diversidades que ofertam ao homem essa chave. A
simples projeção dos estados de alma humanos nas coisas, impondo ao mundo valores e
significados já conhecidos e gastos, nos impedem de avançar pela diferença. É preciso se
perder, despreender-se desse estreito viés que é nossa identidade para descobrir algo que não é
“eu”. O novo é desconhecido, logo não pode caber no que já somos: se falo de mim, não é por
engano: já me perdi.107 O novo está no que podemos vir a ser, se soubermos nos perder para
nos reencontrar e, caleidoscópicamente, mudar. A viagem ao interior das coisas proposta por
Ponge permite a ultrapassagem dos limites da personalidade do sujeito para que este se
reestruture de maneira diferente. A poesia objetiva tem por finalidade principal a regeneração
do sujeito e a renovação do lirismo. Abdicando todo significado e representação pré-
estabelecida, aceitando estar fora de si na abstração lírica do gesto de escrever, projetando-
se na matéria das palavras e das coisas, o poeta se revela a si mesmo e aos outros. 108
Collot relativiza o “lirismo pessoal” ao questionar se este não é antes exceção à regra
posto que seu surgimento, ao fim da Idade Média, se deu ao preço da perda do canto que
acompanhava a lírica anterior, transpessoal. Sugere que talvez o “lirismo pessoal” é que
tenha sido uma fase de expressão de exceção, a do sujeito que canta apenas a sua própria
pessoa. Collot apresenta a sugestão de outro caminho pelo qual, ao sair de si, o sujeito
moderno se abre à alteridade do mundo, das palavras e dos seres e se reconfigura nesse
desapossamento. Encontro que renova as possibilidades de expressão lírica, ao permitir que o
107 PUCHEU, Alberto. Escritos da Admiração. In Poesia (e) Filosofia. Org. Alberto Pucheu, Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. 108 Idem. Ibidem. p. 172
85
novo reestruture o sujeito reconfigurando-o e o mundo, por meio de uma linguagem despida
de todas as palavras tal qual já foram faladas.
2.6 Anti-lirismo Moderno
Em oposição à tradição crítica e aderindo à avant-garde literária de então, deu-se
início ao movimento que preconizava a morte do autor, movimento esse que se caracterizava
por ser transgressor. A noção de autor continuou a se diluir pela pós-modernidade. No
enfoque dessa nova crítica, o autor não passa de uma encarnação da ideologia capitalista.109 A
busca de um sentido, de uma verdade, de uma explicação da obra pressupunha um fim ao
questionamento, que era encarado como negativo, como o foi a crítica contra a metafísica,
que tinha por essência a apreensão do mundo pelo conhecimento racional e a crença na
existência de respostas verdadeiras. A verdade se tornou verdades, multifacetou-se em
interesses e realidades diversas, em pontos anacrônicos de visões particularizadas de mundo
que não podem querer ser únicos e totalizadores.
Nos primórdios do modernismo brasileiro, os padrões já desenvolvidos pela lírica
moderna, desde o final do século anterior, começavam a diluir o sujeito. Mário de Andrade
ilustra tal tendência quando escreve
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, As sensações renascem de si mesmas sem repouso, Oh espelhos, oh Pirineus! Oh caiçaras! Si um deus morrer, irei ao Piauí buscar outro!(...) Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, Mas um dia afinal eu toparei comigo... Tenhamos paciência, andorinhas curtas, Só o esquecimento é que condensa, E então minha alma servirá de abrigo.110
109 COMPAGNON, André. www.fabula.org - acessado em 14 de Fevereiro de 2006. 110 ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Editora Itatiaia Ltda. da Universidade de São Paulo, 1987. pág. 211.
86
O poeta é vários, é pessoas, o numeral representa sua pluralidade e fragmentação. O
poeta não é dono do que produz nem produtor de suas próprias sensações, ele olha a si mesmo
bem de acordo com a reflexão rimbaultiana de ver o próprio pensamento fora de si, como algo
que lhe é independente. Esses versos trazem a despersonalização, e a parte humana se
manifesta pelo criativo jogo com a linguagem.
A partir dos anos 70, uma nova força da teoria da literatura se instaurou com o famoso
artigo de Michel Foucault O que é um autor?, juntamente com o não menos importante artigo
de Barthes A morte do autor. A essa nova visão da literatura deu-se o nome de pós-
estruturalismo ou mesmo desconstrução. O artigo de Barthes intitulado A morte do Autor tem
como objetivo apresentar o estruturalismo como o instrumento de ligação entre a literatura e a
ciência, afirmando ser o estruturalismo quem pode reabrir a questão do estatuto lingüístico da
ciência; tendo por objeto a linguagem, ele se tornou rapidamente - como veio a se definir, - a
metalinguagem da cultura atual.
A questão da existência de um autor é revista e é trazido à luz o fato de que a idéia de
autor é fruto de uma sociedade mais recente, e que não foi sempre assim. A existência de um
autor é diretamente ligada à valorização do indivíduo ou da pessoa do ser humano, constructo
de uma lógica de propriedade, capitalista. A proposta do pensamento poético moderno é
oferecer fragmentos de experiência de pensamento.
Em A Morte do Autor Barthes inaugura uma ótica que observa que quando um fato é
contado, com finalidades intransitivas, e não mais para atuar no real, fora de qualquer função
que não seja o exercício do símbolo, a voz se perde de sua origem, e o autor encontra sua
própria morte. E é aí que a literatura começa: a escrita começa quando o autor começa a
morrer. É a linguagem quem fala e não o autor. E a linguagem é um sistema e seus códigos
não podem ser destruídos, mas podem ser subvertidos se forem “jogados”, se brincarmos com
a linguagem para fazer poiésis.
87
Escrever não é mais uma operação de registro de uma constatação ou representação do
mundo; após a filosofia de Oxford a escrita se torna uma performance, uma forma verbal rara,
na qual a enunciação não possui outro conteúdo que o ato pelo qual se realiza. A questão da
morte do autor traz em si um desdobramento muito mais profundo; ao se dar um texto a um
autor, há uma atmosfera de clausura deste texto, como se o texto se explicasse por sua autoria,
o que foi feito por muito tempo na história da literatura. A escrita literária, ao recusar ao texto
– pensando também o mundo como um texto – um segredo, em outras palavras, um sentido
último e único, liberta uma atividade transgressora, anti-teológica, revolucionária, uma vez
que a recusa em se apropriar de um sentido é a recusa de deus, da razão, da ciência e da lei.
É a leitura que interfere e atribui significados ao texto. Barthes exemplifica com a
natureza ambígua da tragédia grega: o texto é um tecido de palavras de duplo sentido, onde
cada personagem compreende unilateralmente sua porção da estória. Esse eterno mal-
entendido é o que se chama “trágico”. O leitor, entretanto, lê a pluralidade de cada palavra e
percebe os personagens diante de si como que em uma audiência. A unidade do texto não se
encontra em sua origem mas em seu destino: O nascimento do leitor se dá pela morte do
autor.
A crise das chamadas vanguardas seria a expressão de um processo mais generalizado
da crise da Modernidade ou da tão propalada pós-modernidade: crise de nossa concepção
linear do tempo e da história; crise da noção do progresso; consciência do desastre ecológico;
crise do conceito clássico de Revolução; ressurgimento das ideologias nacionalistas111.
A cada nova escola que produzia literatura após cada revolução estética, mais a
criação lírica deixava de representar a subjetividade do poeta para ampliar-se e lançar-se em
novos caminhos. Caminhos que foram desde as injunções do inconsciente, no surrealismo de
111 STANTON, A. et. allii. OCTAVIO PAZ en sus 'Cbras Completas'. México, D. F. : Fondo de Cultura Económica, 1994. p. 79
88
André Breton, à oposição ao pessoal e subjetivo, com o exílio do « eu » em Rimbaud, até a
poesia das coisas em Ponge.
3. Horizonte e Poesia
3.1. Uma leitura de Michel Collot
Dentre as obras críticas publicadas nas duas últimas décadas do século XX,
caracteriza-se uma separação entre a pesquisa teórica e a crítica literária. Nesse contexto, o
trabalho de Michel Collot se destacou por enunciar um apelo ao resgate do debate teórico,
sem retroceder ao formalismo dos anos 70, que pregava uma leitura estrita do texto.
Apropriando-se do conceito de horizonte de expectativa, da teoria da recepção, e o de
estrutura de horizonte, da fenomenologia de Husserl e Merleau-Ponty, Collot os submete a
uma reflexão da experiência poética em que o sujeito, o mundo e a linguagem se entrelaçam.
Esses três elementos interagem de tal modo que estão sempre em relação solidária. A partir
dessa dinâmica, o esboço de um novo espaço teórico se dá pelo resgate e pela nova
combinação de três linhas de pensamento já existentes: a fenomenologia, a psicanálise e a
poética. Michel Collot oferece uma maneira diferente de abordar e pensar a poesia moderna e
contemporânea.
O conceito de horizonte de expectativa foi traduzido para o português, do alemão
Erwartungshorizont, uma expressão cunhada dentro da teoria fenomenológica de Husserl e da
hermenêutica de Gadamer. Nessa perspectiva, o horizonte é, basicamente, o modo como nos
situamos e apreendemos o mundo a partir de um ponto de vista subjetivo. O horizonte de
expectativas é, assim, uma característica fundamental de todas as situações
89
interpretativas112, pois ocorre uma reorganização de nossas leituras anteriores face a cada
nova leitura - esse horizonte é determinado pela recepção da obra pelo leitor.
Nas últimas duas décadas do século XX, o teórico francês Michel Collot publica uma
série de trabalhos nos quais elabora uma releitura da poesia e conclui ser necessário lançar um
novo olhar sobre ela. No livro intitulado La poésie moderne et la strucuture d’horizon, ainda
não traduzido para o português, Collot apresenta idéias que estabelecem um diálogo com a
crítica e a tradição. Para ele, o formalismo e o estruturalismo encaram a poesia como uma
linguagem debruçada sobre si mesma, indicando fechamento do texto que, se por um lado,
pode ser positivo para a questão metodológica ; por outro, pode também levar a interpretação
errônea em que se exclui do poema toda e qualquer referência a um sujeito ou objeto. Ao
longo da história literária, o estruturalismo e o formalismo pregaram que o foco da análise
literária deveria estar no texto, e apenas no texto.
Nessa hipótese de trabalho o texto só se reportaria a si mesmo. A definição de
Jakobson, de função poética como auto-referência da mensagem lingüística, tira do poema
qualquer referência ao sujeito ou ao objeto. Trata-se de uma teoria redutora à qual a prática e
a reflexão dos poetas se opõem, por ligarem suas escritas a experiências pessoais e a uma
descoberta de mundo. A essa hipótese redutora e imanente de fechamento do texto, opõe-se a
produção dos poetas modernos. A frequência com que o tema do horizonte apareceu em
inúmeros poemas chamou a atenção do teórico francês que pôde estabelecer um elo entre o
sujeito, o mundo e a linguagem, posto que esse horizonte se refere não apenas ao espaço
externo, mas também ao espaço interior da consciência poética onde o horizonte, muito mais
do que um assunto, mostra-se como estrutura que norteia a relação com o mundo, a própria
constituição do sujeito e o funcionamento da linguagem. A escrita poética apresenta uma
relação de abertura com o mundo, em oposição à visão da escrita poética debruçada sobre si
112 www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/H/horizonte_expectativas.htm visitado em 21/11/2006
90
mesma. O jogo metafórico, pelo espaço interior da consciência poética e do espaço do próprio
texto, remete-nos, com freqüência, a um horizonte. Essa capacidade de metaforizar os três
faces da experiência poética nos faz crer que o horizonte não pode ser considerado como um
mero tema, mas como uma estrutura que delimita a constituição do sujeito e sua relação com
o mundo, por meio do exercício da linguagem.
A partir dessa conclusão, nascida da leitura das poesias modernas e contemporâneas,
Michel Collot buscou respaldo teórico na noção de estrutura de horizonte de Husserl e
Merleau-Ponty, noção que permite compreender melhor a solidariedade que, na poesia, une o
sujeito e o objeto, o visível e o invisível, o imaginário e o real, para a elaboração de uma
estrutura determinada com abertura de uma margem de indeterminação infinita. A partir dos
ensinamentos da fenomenologia, da psicanálise e da poética, no cruzamento dessas
abordagens diversas, pode-se vislumbrar o novo espaço teórico que Collot propõe para pensar
a poesia hoje. Nesse contexto e nesta perspectiva, se insere a tentativa de Michel Collot de
repensar a experiência e a linguagem poéticas modernas com o auxílio da noção de horizonte.
Husserl e Merleau-Ponty trabalharam com a noção de estrutura de horizonte. Recorrer
a uma noção filosófica justificar-se por um parentesco inegável que une a fenomenologia ao
projeto poético moderno: a palavra de ordem de Husserl é o retorno às coisas percebidas e foi
seguida por grandes poetas contemporâneos. Collot propõe o retorno do uso dessa noção de
horizonte na poética, ampliando seu campo de aplicação, por sua provável capacidade de
esclarecer não apenas a recepção da obra mas também facultar sua produção e suas relações
com as realidades exterior e interior.
A realidade só pode dar-se como horizonte pois ela acontece a partir do ponto de vista
de um sujeito e uma articulação entre o que é ou não percebido. Paradoxos sobre os quais
91
repousa a percepção do mundo são o centro da produção poética contemporânea; afirmo ter
estado nas paisagens do armário que sonhei ou são.113
A noção de horizonte é em si mesma um paradoxo. Ao mesmo tempo que modela uma
paisagem em um todo coerente, torna possível uma infinidade de outras configurações,
constituindo não só um princípio de organização, mas também de abertura. O que é
aparentemente contraditório pode ser visto como complementar.
A noção husserliana de horizonte reúne essas duas funções paradoxais. O homem, que
se constitui pela linguagem, busca sempre organizar-se por meio de coerência, porém, a
linguagem está longe de se deixar aprisionar pelos sistemas da língua. A linguagem poética
transborda o sentido convencional em direção a um horizonte repleto de significados a serem
inventados, um horizonte de múltiplas significações.
Foi Husserl o primeiro filósofo a desenvolver a noção de estrutura de horizonte. A
fenomenologia não reduz o horizonte a um conceito, mas lida com ele como uma imagem,
graças ao amplo uso das metáforas – mais uma evidência de que o pensamento moderno se
apóia no fenômeno; não apenas em seu objeto mas em seu processo e linguagem, o que
aproxima a filosofia da poesia.
O horizonte faz parte da estrutura da experiência114 e não é apenas um objeto entre
outros que compõem nossa experiência, afirma Husserl. O horizonte que forma a estrutura
passa a ser chamado estrutura de horizonte, organizando a percepção do espaço além da
consciência do tempo e da intersubjetividade.
Husserl estabelece dois tipos de horizontes na percepção da coisa: o horizonte interno
é o lado visível de um objeto que sempre traz consigo um outro lado, escondido, mas que nos
possibilita delinear sua estrutura. Pelo horizonte interno da coisa, pode-se transcender o que
113 FRÓES, Leonardo. Siblitz. Rio de Janeiro, Editorial Alhambra, 1981. p. 21 114 COLLOT, Michel. La poésie moderne et la structure d’horizon, Presses universitaires de France, 1989.
92
nos é simplesmente dado pela percepção; por mais que haja explicações sobre o percebido,
formam-se constantemente novas implicações em um desdobrar infinito de novos horizontes,
que, por isso são vistos como processo. Ao se aproximar do horizonte, percebe-se que há
além, um novo horizonte, e esse aparente mover-se traduz a poética da infinitude das coisas,
num eterno desdobrar. O outro horizonte da coisa é o horizonte externo, que diz respeito às
relações entre a coisa e os objetos que a cercam : os objetos contêm o infinito.115
Quando se fala de um horizonte físico, quando se trabalha com o conceito de
percepção, ao refletir sobre esse debruçar-se no mundo de fora, vão-se abrindo, ao mesmo
tempo, mil portas no exercício de pensar. Analogamente ao horizonte externo, os
pensamentos se metamorfoseiam como um veloz caleidoscópio, e as possibilidades de
pensamento também se desdobram de modo veloz e fugaz. Ver a coisa poeticamente afeta
todo o modus operandi do sujeito, que se constitui pela linguagem. Em uma proposta pouco
convencional, a poesia objetiva nos convida a sair de nós mesmos, o que se torna uma
vivência que viabiliza experiências no campo perceptivo, trazendo conseqüências não só no
pensar mas também no modo de ser e viver. É preciso pensar de modo diferente, renovar,
insuflar de beleza e criatividade o viver, o fazer poético, a criação gerando a possibilidade de
se colocar outro sujeito em aporia. O poeta cria a possibilidade da experiência do não-lugar.
O mundo não é visível a não ser por seus horizontes116. O mundo só se torna mundo
através de nosso olhar. O horizonte de todos os horizontes é o que nos leva sempre ao que
ainda pode ser percebido, num infindar eterno, onde não há resposta mas caminhar, processo,
transmutação. O horizonte é paradoxal, fixo e mutável. Nunca é o que é, mas existe. É a
existência incontestável de uma enorme fenda, um antídoto para o pensamento lógico, o
desassossego da ausência de verdades. O horizonte existe, mas nunca o alcançamos. Ao irmos
em sua direção, ele transmuta-se feiticeiramente, embriagando-nos pelo constantemente novo.
115 Idem. Ibidem. p.18
93
Os poetas modernos são os poucos que sabem criar a partir da incerteza. Enquanto a
ciência se sustenta em noções como verdade, lógica e estrutura, os poetas se amalgamam ao
horizonte. Só as aves entendem / o que estou olhando ao longe / sem pensar mas sentindo /
minha insignificância perfeita.117
A esta proposição paradoxal, inscrita na estrutura do horizonte, Merleau-Ponty
responde, estabelecendo uma relação entre o ser e a encarnação. Merleau-Ponty reformulou
suas propostas da fenomenologia da percepção em termos de uma ontologia, acentuando a
idéia do invisível que o visível comporta, ou seja, de que toda percepção é incompleta. Os
objetos são percebidos a partir de perspectivas. Eles formam um sistema no qual algo só
mostra mesmo que outras coisas ou algumas das facetas do mesmo objeto estejam escondidas.
Em um jogo de desvendar e encobrir, o fenômeno da perspectiva traduz a seqüência
sem fim entre o aparecer e o ocultar que rege o fenômeno. O que não é percebido não deixa,
de fato, de existir, em um fluxo constante. A estrutura de horizonte é, ao mesmo tempo, um
fator de síntese e um princípio de abertura. Cada horizonte remete a outras perspectivas,
indefinida e infindavelmente.
Tais possibilidades, sempre mutantes, de perceber o mundo, o tornam infinito. É
essencial à coisa e ao mundo que se apresentem abertos, que nos remetam além de suas
manifestações determinadas, que nos prometam sempre outras coisas para serem vistas.118
Assim se diz que o mundo e as coisas são misteriosos. As coisas comportam a
dimensão de estarem sempre além do horizonte, o campo perceptivo se reestrutura
constantemente e detrás de um horizonte somente novos horizontes. Esse espetáculo de
enfeitiçamento é, também, lírico e faz nascer no poeta o sentimento da profundidade da vida,
do qual o horizonte se torna símbolo. Entretanto, se os horizontes ampliam a percepção do
116 Idem. Ibidem. p. 21 117 FRÓES, Leonardo. P. 21
94
todo, eles também a limitam. Limite irreal que uma vez desafiado, só faz multiplicar-se,
desdobrando-se em outros horizontes, cada vez mais paradoxais: estruturadores e
intocáveis.119
Nosso habitar no mundo pressupõe uma noção de espaço. Um lugar que nos insere e
no qual nos inserimos também, que nos abre uma perspectiva, - um a partir de, - um
horizonte. Símbolo da união do visível e do não-visível, o horizonte nos compõe e torna
possível uma estruturação do sujeito face ao real. Não importa qual seja, estamos em algum
lugar, a partir do qual o sentido emerge, transformando um lugar qualquer em paisagem,
posição que nos possibilita ter um ponto de vista próprio acerca desse todo no qual estamos
inseridos. Do mesmo modo, a ausência de horizonte retira a estrutura essencial de estar-no-
mundo120.
Uma paisagem, um mesmo dado da realidade se faceta em muitas realidades
divergentes quando é vista de pontos de vista distintos, e onde cada um é autêntico, ou seja,
está relacionada com a estrutura de horizonte do sujeito que, tal qual o poeta que une a
paisagem do real a sua representação do mundo, também percebe o mundo em movimento,
através da experiência onde sujeito e objeto são inseparáveis.
Os geógrafos definem paisagem como o que a visão abarca com o olhar ou uma
porção do espaço analisada visualmente121. Mas uma paisagem não é vista/observada apenas,
ela é habitada122 e é vivida. O horizonte perfaz o papel de fronteira que permite nos apropriar
dessa paisagem, proporcionando uma experiência que põe em cena a necessidade de
transbordamento:
118 Il est essentiel à la chose et au monde de se présenter comme “ouverts”, de nous renvoyer au-delá de leur manifestations determinées, de nous promettre toujours “autre chose a voir”. In COLLOT, Michel. La poésie Moderne et la structure d’horizon . PUF, 1989, p. 24
120 Idem. Ibidem. p. 168 121 COHEN, Sylvie. Points de vue sur les paysages. Hérodote 1987. v. 44, p 38-44. 122 COLLOT, Michel. La poésie Moderne et la structure d’horizon . PUF, 1989, p. 25
95
Futaie Palabre de mésanges Erotisant l’angélus. Le ciel ébauche um rouge peuplier. Je suis au beau millieu du couchant J´assiste mes couleurs. Décidément Ma vie ne suffit plus à mes débordements.123
Floresta Conversa de passarinho Erotizando as preces do dia O céu esboça um álamo carmim Estou dentro do pôr-do-sol Assisto minhas cores. Decididamente Minha vida não mais comporta meus transbordamentos.124
Mescladas ao poente, as cores da poeta podem ser visualizadas e, por meio da
linguagem, ela cria uma imagem que mistura palavras e cores além da estrutura do indivíduo.
Da mesma forma, o poema se torna um lugar, um cenário onde a poeta habita e transborda
seus limites. O horizonte exterior e as fronteiras internas se tornam um só na poesia,
remetendo à idéia desenvolvida por Collot de sujeito lírico fora de si.125 Ao mesmo tempo
em que é o sujeito que faz com que o horizonte adquira consistência, este mesmo sujeito
precisa derramar-se fora de si para afirmar sua própria identidade. A consciência só pode
definir-se em relação a seu horizonte, ao outro, a um outro, mostrando-se inseparável do que a
cerca. Há o espelhamento de nosso olhar, e de todo nosso corpo, na paisagem, refletindo uma
relação de equivalência entre o que está fora e o que está dentro, que remete à existência de
123 BRETON, Jean. Une anthologie de la Nouvelle poésie Contemporaine. Le cherche Midi Éditeur, Collection Espaces. 1985 p. 94. poésie par Marie-Jose Hamy 124 Tradução livre por Valéria Mac Knight 125
COLLOT, Michel. Le sujet lyrique hors de soi. In Figures du sujet lyrique. Dominique Rabaté (dir). Paris: PUF, 1996. p. 113-125.
96
uma interrelação entre a busca da identidade e a necessidade de uma paisagem, de algo que
delimite o infinito. É o espaço entre o sujeito e o horizonte que permite àquele que espalhe a
si mesmo, derramando-se, descobrindo-se e encontrando-se fora de si.
Assim, o poema pode ser considerado uma paisagem externa que possibilita o
transbordamento não apenas do poeta, mas também do leitor. A poesia se torna um lugar para
ser habitado, um cenário para a estruturação dos sujeitos por meio da linguagem, do
desconcerto provocativo de discurso, instaurador de sentidos vários através de uma
linguagem revitalizada de seus desgastados usos e atributos cotidianos. É fora de si, sendo
outro, que se resgata o exercício de encantamento. A poesia permite uma nova experiência do
mundo e da vida.
PEG-AÇÃO DO OUTRO
PEGUEI O OUTRO PELA GOLA e não deu nenhum resultado. Peguei o Outro por meus olhos e não deu pra ver. Peguei o Outro pela mão e o destruí sem querer, coitado, ele
ainda não se agüenta sozinho, que pena, como ele sofre inutilmente mancando e não consegue como nós escapulir do seu útero.
Minhas convicções sobre o Outro foram porém se gastando. Um dia eu caminhei para ele sem pensar muito em mim. Notei que era possível agir sem premeditar. O nariz do Outro, a boca do Outro, a raiva do Outro perderam
nesse ponto a consistência de apenas me irritar por analogia. Entrei no Outro por acaso, como alguém que se desossou e não
chora. Nesse dia eu estava muito bonito. O Outro era a janela sem grades e também a opinião sem cortinas sobre a qual eu debrucei como uma lesma amorosa. Eu estava bonito, por contato, e apenas emprestando meus olhos para servir de reflexo.
Quando o Outro quis me abocanhar de repente eu já tinha voltado à consciência de mim.
Eu era, ou era eu que não gostava quando o Outro pareceu me ofender.126
Nesta narrativa poética, Leonardo Fróes experiencia com a linguagem, criando um
efeito psicodélico que confunde e intriga, mas que, essencialmente, cria uma imagem nova,
diferente, que incita ao pensamento sensível, que não explica mas que fomenta o pensar. Há,
126 FRÓES, Leonardo. Siblitz. Rio de Janeiro, Editorial Alhambra, , 1981
97
literalmente, um Outro no texto, que está ligado ao eu do poeta, que é e não é ele. Essa nova
poesia resgata uma possibilidade enunciada por Parmênides : a possibilidade de ser e de não
ser. É o fim da divisão cartesiana de ser ou não ser, a ditadura cai por terra e o poeta
revoluciona as formas de fazer poesia. A partir daí, é possível perceber a razão de tantos
filósofos, como Nietzsche, Wittgenstein e Heidegger, afirmarem ser a linguagem poética a
melhor forma de fazer filosofia. Uma filosofia antídoto de tanta metafísica e de tanta
explicação, como se retomássemos um caminho, que perdemos há muito tempo atrás.
Na página ao lado do texto a seguir, apresentado no livro Siblitz, há um poema com
título análogo. Na verdade, há o espelhamento do título:
ORTUO OD OÃÇA-GEP
A malícia do Outro devia ser minha ambição de esmagá-lo. Houve um momento perigoso em que eu desejei possuir. Houve uma pausa refrescante em que eu pretendi me matar. Não houve propriamente o Outro, mas apenas a fricção dos
meus dedos na ansiedade de estar que me roía de novo. Nessa hora eu fiquei feio como um bandido medroso. Diminuí provavelmente de tamanho e aspecto, voltando à carga das analogias que me sufoca e impede.
Minha pureza favorável não enraíza no Outro nem é a glória da espécia, mas eu posso muito bem abafar o som dos tambores. Posso amar as cicatrizes da guerra ou esse porte de boneco gaiato, condutor e conduzido, que às vezes sente como eu sinto uma vontade insondável de vomitar pelas calçadas um planeta sem fios – perfeito e único.
Um planeta sem fios me permitiria dançar – descer – deitar no Outro calmamente sem o despojar e humilhar. Mas são os fios da cabeça que enrolam com frequência meus gestos, ligando-os a um passado atrapalhado e inexistente que me faz colocar o pé atrás.
Meu ingresso puro e luminoso no Outro ocorre quando as luzes apagam e eu sou apenas um pedaço de barro que se desarticula e sorri. Na hora do milagre existo e não existo127 com uma segurança total.128
Totalmente paradoxal, tanto em sua idéia central quanto a tudo que o cerca, o
horizonte carrega traços antagônicos que, tal qual duas retas paralelas, jamais irão convergir.
127 grifo nosso 128 FRÓES, Leonardo. Siblitz. Rio de Janeiro, Editorial Alhambra, 1981
98
Ele nos segue como uma sombra. Por possuirmos um corpo e existirmos temporal e
espacialmente, tanto o corpo como o horizonte viabilizam o nosso existir, ao mesmo tempo
em que nos limitam e definem, delineiam nossa dimensão existencial e fornecem amplitude
de vida. O fato de o sujeito fazer parte da paisagem está diretamente associado à questão de
não lhe ser possível ver mais do que uma parte dessa paisagem.
A possibilidade de existir está relacionada à existência de um corpo físico, à existência
de linguagem, à carne da linguagem, e de um horizonte que abre o território perceptivo para o
fora de si e delimita, ao mesmo tempo, enquanto ente distinto dessa paisagem que compõe o
sujeito, mas que não é ele. É a partir desse corpo que uma perspectiva panorâmica é adquirida,
permitindo ver, e o faz por carregar pontos que escapam à capacidade de percepção na
dialética do visível e do não-visível. Há sempre o não-visto em tudo que se vê. A
incompletude da paisagem funciona como um chamado, um apelo à interação, assim como a
arte que não oferece respostas nem um sentido
Le poète cherche le vers magique – celui dont le sens lui soit à lui-même mysterieux et donc tel que le vers se conserve et se répète. Si un vers produit un sens exact – cést-à-dire qui puisse être traduit soit par une représentation unique – ce vers est aboli par ce sens.129 O poeta busca o verso mágico – aquele cujo sentido seja misterioso para ele próprio e no qual o verso se conserva e se repete. Se um verso produz um sentido – que possa ser traduzido por uma representação única – este verso é abolido por esse sentido.130
No poema anteriormente citado, cada palavra escolhida pela poeta Marie-Jose Hamy
representa uma imagem váriada e rica, parecendo conter todo um mundo dentro dela : Futaie
– significa a parte da floresta com as árvores mais altas, ou floresta de árvores altas, não há
outra palavra que comporte em si mesma todo o sentido do vocábulo escolhido, de modo que
ela não se esgota, oferecendo um prisma de significações.
129 1936, Sans titre, XVIII, 782 in VALÉRY, Paul. Ego scriptor et... p. 135 130 Tradução livre por Valéria Mac Knight. In COLLOT, M. La poésie Moderne et la structure d’horizon . PUF, 1989
99
Também o vocábulo Palabre parece não caber em apenas uma palavra, parece ser o
condensamento dos sons de uma discussão, a palavra ressoa além dela, extravaza, vaza além
das letras que contém, decalcando a imagem única e diversa colhida pela poeta. Quando
chegamos ao verso Érotisant l’angélus, o som do poema se transmuta dos ruidosos
passarinhos para o badalar de sinos, em um contraste com o sagrado e o erótico. Angélus traz
em seu seio mais do que uma prece: são três preces repetidas ao longo do dia, acompanhadas
do badalar de sinos. A prece católica que comemora a anunciação, é constituída de três textos
que remetem ao mistério da concepção por Maria, finalizando com uma saudação à virgem.
Tais considerações não passam de possibilidades de leituras que não se exaurem em si. O
poema incita ao exercício da significação vária que confirma a reflexão de Paul Valéry: a
poesia não se extingue, quando a linguagem não é informacional, os versos são recarregados
de significado a cada leitura, provocando ressignificações; são invioláveis em seus mistérios.
Quando há entendimento, há algo semelhante com o que Collot define como
panorama : ao contrário da paisagem – que, como a poesia e como nós, ao revelar algo
esconde, sempre uma outra nuance, possuindo partes sombrias que poderão ser infinitamente
desnudadas e serão sempre outras - a perspectiva aérea, panorama, oferece uma visão do
espaço em sua totalidade que não é, nem pode ser, habitado. São essas ausências da paisagem
que não vemos, mas que nos fazem produzir um discurso, uma fala que preencha um vazio,
que justificam a afirmação de Collot, quando diz ; o horizonte é poético porque ele é um
convite eterno à criação de paisagens, porque ele abre em si uma dimensão para a
alteridade.131
Uma paisagem guarda em si mesma uma sucessão de outras paisagens a serem
descobertas em um contínuo reconfigurar, que nos proporciona estranhamento mas que
também nos reorganiza internamente. A profundidade do infinito só cabe em mim se
131 COLLOT, M. L´Horizon fabuleux vol I. p. 16
100
fracionada por minha própria capacidade de perceber. A percepção, tal qual está sendo
desenvolvida no presente trabalho, apresenta-se entremeada pela alteridade que aproxima o
que está no mundo de fora ao que trazemos em nós. A paisagem é simultaneamente formada
por uma equivalência de olhares, e por comportar toda uma gama de pontos de vista
singulares acerca dela. É pelo limite que nos apropriamos da paisagem e sabemos que somos
nós e não ela, mas precisamos existir nela; as linhas e cores que delineam o horizonte nos
inserem e transmutam em linguagem poética, - a paisagem é poesia, e podemos habitá-la.
Escrevo diante da janela aberta. Minha caneta é cor das venezianas: Verde!... E que leves, lindas filigranas Desenha o sol na página deserta! Não sei que paisagista doidivanas Mistura os tons... acerta... desacerta... Sempre em busca de nova descoberta, Vai colorindo as horas quotidianas... Jogos da luz dançando na folhagem! Do que eu ia escrever até me esqueço... Pra que pensar? Também sou da paisagem... Vago, solúvel no ar, fico sonhando... E me transmuto... iriso-me... estremeço... Nos leves dedos que me vão pintando!
Mário Quintana132
Quintana inicia o poema como sujeito, escrevendo diante de uma paisagem. Eis que,
pouco a pouco, deixa-se ser colorido pelo sol sobre a folha de papel, transmutando-se em
objeto do próprio poema, tornando-se ele mesmo paisagem.
Habitar a linguagem em seus limites é fazer a experiência do que, nela, além de um indizível e aquém de um suposto dizível para além dos nomes, é sua matéria, desassentada num vazio que os poetas e os filósofos teimam em fazer aparecer. Dizer, portanto, os nomes, na caravana da sintaxe que cruza a solidão desértica do mundo com a vã esperança de lhe dar um sentido. Ou, sobretudo, dizer sem a esperança de dar um sentido último ao mundo, dizer, desesperada e inesperadamente, o vazio robusto da matéria da linguagem. Aqui, a poesia, a filosofia e suas fronteiras desguarnecidas se realizam quando
132 QUINTANA, Mário. A Rua dos Cataventos. Porto Alegre, Globo, 1986.
101
elas não têm mais nada a contar, senão a força do narrar – a pura potência da linguagem a cada vez presentificada.133
Se o horizonte define a paisagem como território perceptivo, ou seja, se existe do
modo como o percebo, em relação a um ponto de vista que me define enquanto indivíduo, ele
também articula esse espaço com uma alteridade incontestável: paradoxalmente, encontramos
na paisagem uma área de interseção com os outros e suas visões de mundo, sendo unicamente,
nós mesmos. O desejo de horizonte134 pode nascer por ser o lugar do outro, tornando-se, pois,
objeto do desejo que só se satisfaz na transcendência. Na verdade, o horizonte não é um lugar.
A fenomenologia pode nos ajudar a compreender a que se liga essa profunda
identidade da relação do sujeito com o horizonte e da relação com o outro. Segundo ela, uma
mesma estrutura, batizada por Husserl de Horizontstruktur organiza nossa percepção do
objeto e nossa relação com o outro. Em certo momento, o objeto que consideramos dado, nos
revela um de seus aspectos, desnudando outros simultaneamente, que constituem seu lado
oculto. Nessa concepção, reconstruímos em nossa mente a estrutura oculta a partir de traços
isolados que somos capazes de perceber. Adivinhamos a estrutura do que não nos é revelado,
graças ao que nos é mostrado. Entretanto, tal composição não passa de uma conjectura que
constitui o horizonte de nossa percepção. Ato divinatório que se comprova ou não por nosso
deslocamento no tempo e no espaço.
O outro comporta o desconhecido absoluto, um horizonte inviolável, uma
subjetividade cujos segredos são inacessíveis até para o próprio sujeito e só é revelada por
traços de sua paisagem, tornando possível o vislumbrar de facetas de realidade escondidas
além desse horizonte, mediadas por manifestações de seu corpo sensível. O signo e a
linguagem são o corpo sensível do poeta que nos permitem lançar uma vista de olhos nessa
133 PUCHEU, Alberto. O BRILHO DOS DESTROÇOS DE UM NAUFRÁGIO ESQUECIDOS DO MAR (Giorgio Agamben e Machado de Assis: da linguagem da experiência à experiência da linguagem)
102
subjetividade oculta. O signo e sua escolha sugerem e, ao mesmo tempo, ocultam
pensamentos que poderiam se guardar em segredo na consciência do poeta ou exteriorizar-se
revelando o horizonte da percepção dele, tecendo um corpo, um corpo de linguagem.
Escrevo. E pronto. Escrevo porque preciso, Preciso porque estou tonto. Ninguém tem nada com isso. Escrevo porque amanhece, E as estrelas lá no céu Lembram letras no papel, Quando o poema me anoitece. A aranha tece teias. O peixe beija e morde o que vê. Eu escrevo apenas. Tem que ter por quê?135
É diante da amplitude do horizonte que podemos perceber nossa pequenez. Nesse
sentido, o horizonte pode ser visto como um símbolo da estreiteza de nossa situação humana.
Uma representação de nossa incapacidade de alcançar o todo, de perceber o mundo, a nós
mesmos e ao outro com totalidade. Somos condenados a perceber e relacionar-nos com
facetas da realidade. Fragmentos. Não podemos perceber o outro como ele mesmo se percebe.
Somos condenados a perceber o mundo a partir de nós mesmos. A imagem do horizonte de
cada um pode definir o mal-entendido essencial que separa os homens136 e, paradoxalmente,
também os une. Imagens, conceitos, que tanto servem para discernir como para unir o
individual e o que pertence ao outro. O horizonte é estrangeiro, sendo constantemente outro.
A idéia de natureza enquanto paisagem natural é indissociável do próprio conceito de
paisagem. Entretanto, a modernidade trouxe novas paisagens, a paisagem urbana, a paisagem
humana. A paisagem da linguagem:
Não é o poeta que cria a poesia. E sim, a poesia que condiciona o poeta. Poeta é a sensibilidade acima do vulgar.
134 COLLOT, M. L’Horizon Fabuleaux vol I. p. 17 135 LEMINSKI, Paulo. Razão de ser. in http://cristalpoesia.net/pleminski.htm - visitado em 3 de Junho de 2006. 136 COLLOT, M. Horizon de Reverdy, 1981, p. 103
103
Poeta é o operário, o artífice da palavra. E com ela compõe a ourivesaria de um verso. Poeta é ambicioso, insatisfeito, Procurando no jogo das palavras, No imprevisto texto, atingir a perfeição Inalcançável.137
O espaço do sentido no horizonte da linguagem está sempre vinculado às relações que
podem ser estabelecidas. A proposta de Collot ultrapassa a visão estrutural e lingüística e se
aproxima da idéia de uma rede de relações intralingüísticas, mas uma rede aberta de
atribuições de sentidos. Totalmente avesso à idéia de fechamento, Collot se aproxima da
definição de palavra de Gustave Guillaume: a palavra é uma unidade de poder, não de
efeito.138 De acordo com esse ponto de vista, a significação não se deixa aprisionar em uma
definição, mas admite uma quantidade enorme de possibilidades, e constitui um horizonte de
sentido que pode se revelar de maneira diferente em cada contexto. Sendo que a palavra estará
sempre passível de estabelecer uma nova relação de significado com outras palavras, da
mesma forma como o objeto que não se cansa de ser outro em função dos diversos horizontes
nos quais se inscreve, a infinitude relacional dos vocábulos se reporta à infinitude relacional
dos objetos.
Se eu falei repetidamente sobre o horizonte, eu o fiz porque ele carrega toda a ambigüidade da paisagem, marcando o alcance da realidade visível e organizada assim como um portal de um espaço que é invisível e inapreensível. Ao ligar o poema com o horizonte, busca-se estabelecer com o mundo uma relação que não será imitativa, porque o relacionamento integra a distância que separa os dois, assim mantém-se proximidade com o inacessível.139
Na verdade, as relações associativas entre as palavras e as coisas trazem um efeito
intrigante, obtido por poetas, em que o sentido não repousa em uma significação ideal mas
137 CORALINA, Cora. O poeta e a poesia www.lunaeamigos.com.br/fragrancia/coracoralina.htm - acessado em 4 de junho de 2006 138 COLLOT, Michel. Horizon de Reverdy, 1981, p. 219 139 http://www.geocities.com/LyricRecovery/collotenglish.htm - acessado em 9 de dezembro de 2006
104
comporta uma carga de não significação, dando opacidade às palavras: antes de tudo estou
atriste com a memória inchada, calendário de pernas, presença de muitos braços, o rio e um
bote que vai fundo na gente, carregando os sonhos.140
A carne da poesia é lugar de encontro. Linguagem, chão de subjetividades. Solo de
questionamentos, onde a admiração pode ser gravada e revivida. Poesia como o local do
espanto e instância geradora de pensamento. Os poetas pensam o mundo e intervêm no real,
atravessando-os. O corpo do poeta e sua linguagem acolhem o mundo e o transformam.
Impregnado pelo universo, o poeta trava árdua luta com uma linguagem desfalecida, marcada
pela representação informacional, e a depura num desejo de insuflá-la com vida e gerar o
espanto, de modo a criar uma nova realidade pela imaginação. A imaginação é um modo de
pensamento, o próprio da poesia (...)141
Octavio Paz fala da poesia como uma outra voz, como antídoto da técnica e do
mercado, que nasce da imaginação e percebe o outro lado da realidade142. A poesia é a
contravoz que delineia uma nova paisagem, até então não pensada e que estende a linha do
horizonte à escrita. O horizonte traz em si a questão paradoxal da visibilidade: o desejo pelo
inacessível, pelo desconhecido, onde o invisível se apresenta como uma certa ausência.143 O
horizonte oferece elementos a serem vistos e ocultando, ao mesmo tempo, uma infinidade de
possibilidades, e traduzindo o invisível. A poesia também traz esse desejo: abrir horizontes,
reconfigurar representações calcificadas, num embate com a impossibilidade de novas
representações: a experiência poética se torna saída de si, reencontro da mais última
alteridade.144
140 FRÓES, Leonardo. Passagem para uma paisagem de caras. In Siblitz. Rio de Janeiro, editorial Alhambra, 1981. 141 LINS, Vera. Poesia e crítica: uns e outros. Rio de Janeiro, Ed. 7 letras, 2005. 142 LINS, Vera. Poesia e crítica: uns e outros. Rio de Janeiro, Ed. 7 letras, 2005. p. 12 143 Idem. Ibidem. p. 12 144 Idem. Ibidem. p. 13
105
A outra voz é a voz da poesia que enuncia uma crítica, que apresenta pelo avesso
representações habituais, modelando o impensado, tal qual o delinear de um novo horizonte;
horizonte visto como inscrição de uma alteridade no espaço. Lugar que é também não-lugar; o
espaço onde o poeta derrama sua própria poesia, margem secreta onde se inserem signos da
presença de um outro - o horizonte da poesia - como possibilidade de interseções de várias
vidas, transbordamentos de horizontes que se encontram na poesia.
A organização do espaço depende da presença de um horizonte: toda conduta crítica
impõe um limite ao sentido: é a leitura a responsável por renovar as significações definidas
como tais no movimento de uma infinita produção de sentido. No horizonte de toda leitura,
há uma reserva inesgotável de novas significações a serem descobertas.145
O poeta tenta estabelecer uma relação com o horizonte por meio de ferramentas que se
encontram ao seu alcance: os signos. Seu horizonte imaginário torna-se lugar da alteridade
inerente a ele mesmo. Como palco de projeção de fantasias pessoais, a angústia da existência
humana sobre o que há após a morte é ligada à curiosidade sobre o que existe por detrás do
horizonte. Ambos remetem à idéia de um outro mundo. O horizonte é o lugar do outro, da
alteridade. Uma difusa fronteira entre lugar e não-lugar, ausência de definição e verdade; é
onde ocorre o desguarnecimento das linhas que demarcam o fim e o início do céu e da terra.
A representação de um horizonte na poesia revela a busca de algo desesperadamente
inacessível, que se desfaz com nossa proximidade. Pura representação da alteridade, é um
lugar que é um não-lugar, é a extremidade de uma paisagem, fronteira entre o conhecido e o
desconhecido, lugar de transição, marco, limite onde o mundo é interrompido, lugar do qual
não há atrás. O horizonte reproduz a curvatura da Terra, seu movimento é relacional ao nosso.
Existe a partir de nós, único e vário; nos separa, mas também nos une. Ponto de interseção
entre céu e terra. Ele, que se desfaz na escuridão, que só existe na diferença, é uma marca da
145 COLLOT, M. Horizon de Reverdy, 1981. p.143
106
alteridade. O dia é apolíneo, salienta as formas e contrasta com o escuro dionisíaco, amálgama
amorfo das individualidades, e nos lança na dimensão do informe, da falta de limites; é
difuso, rompe com as delimitações, transborda. O espaço noturno perde a medida da forma,
inunda de desconhecido, transborda sombra; nele, o horizonte não existe. Este é diurno,
apolíneo.
3.2. Didi-Huberman e o conceito de Aura em Walter Benjamin: aproximações com
Michel Collot
Em um mundo dominado pela mídia, torna-se necessário perguntar-se o que é obra de
arte atualmente. Como nosso estudo se volta para a poesia, em meio a tantos escritos, tantos
livros, o que pode ser considerado poesia hoje? Para desdobrar esta questão, mais do que
respondê-la, encontramos em Didi-Huberman uma reflexão sobre a obra crítica, que parece
apresentar filigranas de concordância com a idéia de horizonte de Michel Collot.
George Didi-Huberman opera um resgate no conceito de aura de Benjamim,
desinvestido da dimensão religiosa. A aura de um objeto de arte, ou imagem-aura, é aquilo
que nos confere o poder de levantar os olhos e olhar para outro lugar. Se a obra de arte na
modernidade se dessacralizou pelos processos de reprodutibilidade técnica, ela deixou de ser
um simulacro de um mundo superior e passou a associar-se a elementos do cotidiano,
praticamente se perdendo, ou assim parecendo ser, até o surgimento de uma nova forma de
colocar a experiência estética: a obra de arte crítica, é aquela que se impõe enquanto
experiência, e o faz produzindo uma linguagem crítica que reconstitui a banalidade do mundo
cotidiano ao mesmo tempo em que nos reconstitui enquanto sujeitos, ou seja, tal processo de
interação com a obra de arte se dá por meio da linguagem.
107
A diferença da percepção no que se chama mundo do “familiar” é que neste o sujeito não
vê nada; este mundo nos é dado, simplesmente. Porém, quando o familiar se torna estranho,
algo aparece. A questão da distância se coloca e uma nova relação é instaurada. Quando isso
acontece – o familiar ficar estranho –, a angústia da inquietante estranheza é maior. É possível
experimentar um sentimento ambivalente de atração e angústia, e a linguagem entra como
forma de suprir o desamparo.
Tal linguagem se põe a serviço da construção de uma lógica que acaba por revelar um
sintoma desse sujeito. Em sua ambição de construção de um sentido, que lhe permita
relacionar-se com esse sintoma, o sujeito faz dele um operador e não apenas uma repetição
enigmática, de modo a não ser paralisado por eles. A linguagem é algo que põe em cena a
ausência, mediando o mundo e o sujeito: uma imagem (...) que ao nos olhar, ela nos obriga a
olhá-la verdadeiramente. E nos obriga a escrever esse olhar, não para “transcrevê-lo”, mas
para constituí-lo”.146 E é por meio da linguagem que isso pode ser feito.
A arte põe em cena mecanismos de estruturação do sujeito; a construção do discurso que
preenche o lugar entre o discurso e o seu sentido, constrói também, simultaneamente, a
distância crítica e é nessa relação dialética, nesse entre-lugar, instaura-se a aura, na concepção
de Didi-Huberman. Não mais a aura do sagrado, mas a aura que na modernidade é oriunda da
aporia frente ao real, assim como da consciência da perda da tradição e da aceleração do
tempo, da modernidade como consciência do tempo presente. Algo que confere ao sujeito o
poder de levantar o olhar. Este é o ponto em que encontramos proximidade com a idéia de
horizonte em Collot. Uma relação paradoxal e dialética, em que a necessidade da estruturação
se dá em um entre-lugar, com uma construção da linguagem, onde o sujeito se volta para fora
de si, em um constante desdobrar de alteridades. É especificamente o paradoxo da
146 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, Editora 34 , 1998. p. 172
108
proximidade distante que aproxima as duas construções: tanto a de Collot quanto a de Didi-
Huberman.
Em Collot, o tema horizonte se torna central e ele percebe que o corpo é o ponto de
partida e de passagem entre o próximo e o longínquo. Da mesma forma, o entrelaçamento
entre o si mesmo e o outro, num jogo de movimento em que jamais ocorre a total
coincidência, encontra na fenomenologia, - fonte teórica que também valeu-se Didi-
Huberman, - a duplicidade, a dialeticidade. Collot trabalha com a idéia de horizonte interno e
externo. Huberman trabalha com a idéia de que o objeto nos olha assim como nós o olhamos,
e que a imagem se funda nesse entre-lugar. Curiosamente é fora de si, em ambas as
construções teóricas, que o sujeito tem sua experiência poética, ou seja, é no exercício da
linguagem.
Na verdade, tanto a obra poética quanto o sujeito precisam da linguagem para existir.
A obra de arte como que nos remete a outra coisa que não é ela mesma, visto que, excluindo a
moderna dimensão tautológica, a verdadeira obra de arte obriga à elaboração de novos
discursos que implicam no reconhecimento dela enquanto obra crítica. Nesta experiência de
percepção do visível, cria-se nova forma de organizar o espaço, em um processo dialético que
modifica o sujeito que percebe assim como reconfigura a origem. Tais imagens dialéticas
seriam as únicas que poderiam ser consideradas autênticas, por lançarem uma ponte entre a
dupla distância dos 5 sentidos da percepção e a dos mecanismos da compreensão. Huberman
nos fala, ainda, que é a relação entre essas duas distâncias assim como a relação entre suas
obscuridades, que constituem, na imagem, o que se pode chamar de aura. Portanto, a dupla
distância é aqui originária, e a imagem é originariamente dialética, crítica.147
A pós-modernidade manipula complexidades, opera com temporalidades complexas
que induzem a conscientização anacrônica. O olhar para um objeto de arte investe-o de uma
147 DIDI-HUBERMAN, p. 173, 1998
109
temporalidade, na verdade, investe-o de múltiplas temporalidades necessárias para nortear
aquele que vê o objeto.
3.3. O espanto na poesia
Os filósofos, assim como os poetas, realizam seu pensamento a partir da perplexidade,
da admiração, do espanto, provocados pela pregnância daquilo que é originário. Os
formalistas, em estudos de obras literárias, também apontaram artifícios de linguagem como
sons, imagens, ritmo, sintaxe, métrica, rima etc.., que tinham como traço similar o efeito de
estranhamento ou desfamiliarização, uma deformação da linguagem comum de alguma
maneira,
sob a pressão dos artifícios literários, a linguagem comum era intensificada, condensada, torcida, reduzida, ampliada, invertida. Era uma linguagem que se “tornara estranha”, e graças a este estranhamento, todo o mundo cotidiano transformava-se, subitamente, em algo não familiar. Na rotina da fala cotidiana, nossas percepções e reações à realidade se tornaram embotadas, apagadas, ou (...) automatizadas. A literatura, impondo-nos uma consciência dramática da linguagem, renova essas reações habituais.148
Terry Eagleton afirma que pensar a literatura como os formalistas o fazem seria
considerá-la poesia. Por isso, tecemos algumas relações entre a admiração, a estranheza
inquietante e a imagem crítica face à poesia.
Ao fazer uma analogia entre imagem crítica e poesia, podemos desenvolver a idéia de
que, se a imagem crítica é aquela que nos olha e, ao mesmo tempo, furta-se ao sentido que se
tende a ter ver nela, afirmamos ser a poesia um elemento fomentador de discurso crítico. A
verdadeira literatura corresponderia à imagem crítica, ao passo que os produtos da indústria
148 EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo, Martins Fontes, 1997. p. 5
110
cultural seriam imagens que se entregam sem provocar qualquer necessidade de elaboração de
discurso crítico.
O original é algo que nos olha e convoca uma escrita, incita à reflexão, ao alargamento
da memória. A linguagem poética é o modo de conhecimento crítico do real a partir da
memória, e não passa pela dimensão de uma racionalidade discursiva. A provocação de
estranhamento é cultural, embora aquilo que gera a estranheza não seja, necessariamente,
produzido por um sujeito que habita o mesmo espaço e a mesma temporalidade que nós. O
estranhamento pode, assim, ser considerado um objeto anacrônico: é uma perspectiva
relativista que obriga a rever as grades de leitura e que coloca em cena as tensões temporais
de um objeto. Tal idéia é representada pela expressão de Baudelaire: a infinitude de um
instante, em que a espessura de sua criação torna possível sua infinita interpretação tardia. As
imagens – incluam-se também as poéticas -, são atravessadas por temporalidades complexas.
Didi Huberman insiste na idéia de que aura é algo que impõe distância mas também
proximidade pois permite a construção de alguma familiaridade. Aí está o segredo de uma
aura secularizada que não é da ordem do sagrado, mas da memória que não se tem de si
mesmo. O registro do estético seria a construção de uma alteridade que constitui o sujeito e
não é o sujeito e, contudo é o sujeito porque o constitui. Como disse Rimbaud; Je est un autre.
Nesse processo de alteração, de outramento, pode-se encontrar uma saúde crítica, há
movimento, processo dialógico pois a poesia: procura dos outros, descoberta da
outridade.149
Reconhecer a distância é reconhecer ao mesmo tempo uma perda. Onde há uma
distância, há uma perda, a mediação implica perda. Na experiência autêntica há o
reconhecimento daquilo que não se sabia, o retorno do recalcado. Aquilo que não foi
percebido vai retornar de fora, do real, sob uma nova forma. Para Didi-Huberman, a
149 PAZ, Octavio. O Arco e a lira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1982.
111
experiência nos funda enquanto sujeitos mas nos retorna pela distância. A experiência crítica
põe em cena a dimensão do testemunho subjetivo do próprio sujeito. A experiência estética
se dá com a distância. O trabalho do crítico é um trabalho intelectual sobre essa distância
com sua dimensão subjetiva anacrônica. Tanto a criação como a crítica são reconstituíveis;
não é qualquer artista que faz aura para todo mundo. O objeto estético, às vezes, não nos
olha. 150
Eliot é um autor moderno que trabalha com um olhar anacrônico, levando em
consideração a consciência do olhar presente sobre o passado. Na ordem da memória, essa
consciência torna o passado presente, mas o faz ampliando-o com o processo da escrita,
atribuindo-lhe uma rede de significações que não havia originalmente. Em consonância com
Bergson - the end is the beginning, e Benjamim, Eliot constrói, a partir de um ponto focal do
presente uma montagem que revela relações de causa e efeito amplificadas pela memória. A
memória está sempre ligada a um pertencimento. A memória não é, jamais, a coisa, não
reconstitui a experiência, por si mesma ela é uma outra experiência.
Eliot apresenta em seus poemas, uma multiplicidade descontínua de matrizes
composicionais, ou seja, ele interage com obras de arte do passado. Os exemplos são muitos,
mas, cito apenas dois deles de seu livro publicado em 1917 The Love Song of Alfred J.
Prufrock: o primeiro verso No! I am not Prince Hamlet, nor was meant to be; (...) que traz
uma referência à famosa abertura do solilóquio de Hamlet: “to be or not to be”. Esta oposição
apresentada na fala do personagem shakespeariano prenuncia o agônico do homem frente ao
novo, simbolizado pela modernidade. É uma cisão epocal revelando em nova visão de mundo;
150 JACQUES, Marcelo. O outro que se lê: “O espelho” de G. Rosa. In Revista do CESP-v.22, n. 30 – jan-jul. 2002.
112
o que antes fora dito por Parmênides151: “to be and not to be”152. A referência realizada por
Eliot ganha assim maior significação. Pois, neste caso, não seria apenas uma renovação da
linguagem estabelecida por meio de uma tessitura intertextual, mas haveria também a
confluência semântica de dois momentos ansiogênicos frente à modernidades diferentes,
traduzindo-se em sintomas de época.
O segundo exemplo seria uma resposta ao poeta John Donne em seu poema “Song”:
Teach me to heare mermaids singing. Eliot, ao finalizar o seu belo poema responde, como que
ecoando ao longo dos anos : I have heard the mermaids singing, each to each.
É interessante salientar que a tensão criada por uma frase que é, ao mesmo tempo,
original e originada, a destaca do corpo poemático maior, ganhando riqueza por sua carga de
memória, na medida em que houver um leitor/sujeito com capacidade para apreender os
vários níveis de leitura que a obra oferece. Pois não há forma pura, a construção de formas é
como a construção do olhar, que se dá via pluralidade de tempos que constitui um leitor.
Para Baudelaire, o instante tem uma espessura que lhe permite ser tardiamente
interpretado. Cito outro verso de Eliot para cotejá-lo com a idéia da infinitude de um instante
de Baudelaire: In a minute there is time for decisions and revisions which a minute will
reverse. Como há sempre recalque em nível individual e coletivo, haverá sempre alguém a
propor posteriormente uma discussão eucrônica. Na poesia crítica a que queremos chamar de
verdadeira obra de arte, há a possibilidade de desvelar muitas camadas, numa infinitude de
horizontes, numa infinitude de leituras; como se sua leitura fosse inesgotável. A poesia não se
dá - não se expõe - a obra de arte crítica remete o sujeito para fora de si.
151 Para Parmênides, ao contrário de Heráclito, “ O Ser é, o não-ser não é” criou uma série de argumentos chamados “Paradoxos de Zenão” para defender a tese de que o “não-ser” é a mudança, pois mudar é justamente não mais ser aquilo que era e tornar-se aquilo que não é ainda. 152 PUCHEU, Alberto. Intervenções na relação entre poesia e filosofia: uma fronteira desguarnecida. Tese de Doutorado, UFRJ, 1999. p. 33
113
Para Benjamin, somente as imagens dialéticas são imagens autênticas, porque estas se
apresentam como imagens críticas, ou seja, imagens em crise, capazes de gerar um efeito em
quem as olha, pois o obriga a escrever esse olhar, não para transcrevê-lo, mas para constituí-
lo.153
Poesia e filosofia não principiam pela indagação nem pela dúvida, mas pelo espanto. A
sua origem é o espanto, assim como é o espanto, o estranhamento produzido em quem as olha,
que propicia um novo momento de criação, à medida em que o sujeito precisa elaborar um
discurso para se constituir frente à obra, como se ele se desorganizasse e carecesse da
linguagem para se reconstituir. Pode-se estender tal observação à criação artística, em geral.
Mas que seja
pela exclamação das palavras que insistem em transbordar com o admirável, a ponto de não se distinguirem dele. Os escritos não são instrumentos de comunicação do que lhes é exterior. Eles mesmos, já espantosos, realizam seu limite, chegando ao que, desde sempre, são: palavras, criações de novos destinos.154
No poema de e. e. cummings que vem a seguir, é possível observar como ele utiliza
recursos como a fonte das letras, sua disposição no papel, como se fosse uma tela, e a idéia,
que se torna velada, solicitando a interação do leitor para desvelar-se. Não é a informação que
importa, mas a maneira como ela é apresentada; intraduzível, os traços das letras compõem a
idéia de que uma folha apenas é solidão; idéia reforçada pela diagramação dos últimos versos,
em que a impressão da letra L pode ser interpretada como o algarismo (1- um). O poeta cunha
ainda palavras, por sugestão, pelo efeito visual que afasta e aproxima o olhar do leitor que
busca compor algo inteligível, interagindo nessa busca. Além do algarismo um, temos a
palavra one, apenas uma, ela é toda um verso, em uma apresentação em que o significante
está em total coerência com o significado. O sentimento de isolamento é reforçado pela última
153 Idem. Ibidem. p. 172 154 PUCHEU, Alberto. Escritos da Admiração. In Poesia (e) Filosofia. Org. Alberto Pucheu, Rio de Janeiro, Sette Letras, 1998
114
linha, que tal como a base de uma árvore é a mais larga e contém a raiz que sugere o início de
tudo: iness. Sufixo que compõe substantivos em inglês, aqui possibilita o efeito de que a
palavra se constrói em um entre-lugar, entre o texto e os olhos do leitor. O poeta não dá a
palavra, ele sugere, deixa em aberto e, no desenho semântico que foi pintado, a primeira
remissão seria no sentido de loneliness, que está de certo modo escrita, mas não está
explícita. Esse é o jogo da poesia, aí está o lirismo transmutado, fora de nós, que fomenta
nosso exercício de linguagem, que se abre em novo horizonte, que nos chama e nos remete a
esse entre-lugar que é a linguagem. A idéia não é informada, mas apresentada esteticamente; a
disposição dos tipos no papel sugere o movimento de rodopio de uma folha solitária caindo no
chão e sugerem apenas, não explicam nada:
l (a
le
af
ll
s)
one
l
iness
A construção poética de e. e. cummings ilustra como o poeta recorta a realidade e torna
eterna a paisagem que construiu com sua linguagem. A admiração, possibilitada pela vivência
de quem tem o verbo como aquilo que o transpassa, o fundamenta e o envolve, em todo o seu
vigor, fazendo com que a pessoa, quando alheia a ela, fique anestesiada para o real que
passa a se projetar menos do que poderia.155
155 Idem. Ibidem.
115
Os poetas aqui comentados resgatam, por meio de fragmentos, o espanto, a admiração,
criam uma imagem crítica por meio de seus corpos poéticos e possibilitam ao homem
moderno espantar-se com seu cotidiano, realizando assim um recorte dessa realidade que se
põe lançada à certa distância que possibilita, até mesmo obriga, a criação de um discurso
crítico estruturador. Deste modo, via poesia, via estética, realiza-se um deslocamento de
significados que instauram no sujeito um novo olhar, ou mesmo, um novo sujeito e,
certamente, novos horizontes.
No corpus escolhido para o presente trabalho, os poetas são atravessados pela
característica comum de recorrerem à linguagem do cotidiano de um mundo desencantado, a
fim de potencializar este desencanto. Acontece que, ao recortar o real e construir esta
distância, instaura-se a aura. Não é qualquer artista que faz aura. Há que haver na obra de arte
algo que nos olhe e que nos faça olhar com espanto pela tensão de memórias suscitadas no
interagir de olhares entre objeto e sujeito. A partir desse olhar recíproco será possível, na aura,
reconhecer o que não sabia - retorno do recalcado.
Um pensamento surgiu em minha mente hoje Um que eu já havia tido antes, Mas não concluira, -- algum modo no passado Eu não pude saber o ano, A thought went up my mind to-day That I have had before, But did not finish, -- some way back, I could not fix the year, Nem onde ele foi, nem porque veio Pela segunda vez para mim, Nem exatamente o que era, Tenho eu a habilidade para dizer Nor where it went, nor why it came The second time to me, Nor definitely what it was, Have I the art to say.
116
Mas em algum lugar da minha alma, eu sei Que eu já encontrei com aquilo antes Ele apenas me lembrou – era tudo – E não voltou mais para mim.156 But somewhere in my soul, I know I 've met the thing before; It just reminded me -- 't was all -- And came my way no more.157
O poema, que se constitui enquanto imagem crítica, permite ver-se o mundo não mais
como antes, pois ao construir distâncias, mesmo quando trabalha com a banalidade, a poesia
está, de alguma forma, restituindo uma distância de algo que está muito próximo mas que não
se vê, por ter se tornado familiar. Analogamente, a imagem crítica é o meio de restituir ao
mundo a complexidade de sua trama, a estranheza, que pode até ter a aparência de uma
imagem banal, porém não o é a diferença estaria no fato de que a imagem crítica nos olha, ou
seja, nos força a produzir um discurso crítico em relação a ela.
A obra de arte exige, então, daquele que a olha uma participação ativa, construindo
sentidos que a experiência com a imagem crítica obriga a fazer, o que o remete a sua própria
singularidade enquanto sujeito. A literatura, assim como a psicanálise, não pode propor outra
coisa ao sujeito que com ela se depara senão uma interminável travessia para a alteridade,158
porque, por detrás do sintoma, há uma experiência vivida que não alcançou a expressão pela
linguagem e, por isso, controla a existência do sujeito a sua revelia. Haveria uma espera
latente de desvelamento. Talvez seja isto que o texto de gozo proporciona, ao despertar uma
sensação de estranhamento que implica em uma postura crítica em relação ao estado das
coisas, o que é feito via o retorno do recalcado.
As palavras que emprego, São as palavras de todos os dias, e mesmo assim não são as mesmas !
156 Tradução livre por Valéria Mac Knight 157 DICKINSON, Emily. The Complete Poems of Emily Dickinson. Edited by JOHNSON, Thomas J. Little, Brown and Company, Boston-Toronto, 1982. p. 701 158 JACQUES, Marcelo. in Terceira margem: Literatura e outras artes, ano VII, n/8, UFRJ. 2002 , p. 155
117
Não se encontrarão rimas em meus versos nem qualquer enfeitiçamento. nenhuma frase sua há que eu não possa empregar ! Estas flores são suas flores e vocês dizem que não as reconhecem. Les mots que j’emploie, Ce sont les mots de tous les jours, et ce ne sont point les mêmes ! Vous ne trouverez point de rimes dans mes vers ni aucun sortilège. Pas aucune de vos phrases que je ne sache reprendre ! Ces fleurs sont vos fleurs et vous dites que vous ne les reconnaissez pas.159
E, uma vez que é fora de si que a experiência poética é vivida, e a linguagem se
apresenta como o apoio necessário para que ela se dê, confirma então a idéia inicial deste
capítulo, quando falamos de uma crítica que também traz em seu corpo uma certa poeticidade.
Afinal, a elaboração desta linguagem, deste discurso crítico, teve uma experiência com
a arte como fonte, origem da necessidade de tessitura de todo um discurso para realocar
sujeito e mundo.
4. Conclusão:
Wittgenstein afirma que a filosofia deveria ser escrita como uma forma de poesia160.
Alguns filósofos assim o fizeram. Entretanto, o que este trabalho teve por objetivo foi realizar
uma leitura da poética de Fernando Pessoa, Baudelaire, Manuel de Barros, Leonardo Fróes,
Paulo Lemisky, Cora Coralina, Mário Quintana, Emily Dickinson, Francis Ponge, Rimbaud e
Gertrude Stein, entre outros não menos importantes. Todos eles apresentam como recurso
poético a projeção do sujeito lírico para fora de si, criando um efeito de aporia que, por sua
vez, causa o espanto, ponto em que filósofos e poetas se encontram. O espanto fomenta o
159 CLAUDEL, Paul. Quatrième Ode, in Cinq grandes Odes, in COLLOT, Michel. L’Autre dans le Même – tradução livre por Valéria Mac Knight 160 WITTGENSTEIN, Ludwig, 1987, Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosóficas, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
118
pensamento crítico e criativo na tentativa de criação de sentido para a existência humana pela
trama da linguagem.
É, pois, este trabalho apenas o resultado da busca de algumas possibilidades de estudo de
poesias que resgatam o cotidiano por um viés poético, em que as coisas frugais são
entremeadas com centelhas poéticas, mesclando mundo e poesia no olhar derramado. Não
mais um Orfeu que chora sua Eurídice; é o mundo do dia a dia que fica decalcado no papel
de uma maneira tal que oferta um lugar entre a poesia e a filosofia, um entre-lugar entre a
realidade e o pensar. Para tanto, buscamos definições do que era a lírica e exemplos de poesia
objetiva – em oposição à subjetiva - a fim de obter um corpus para trabalhar os conceitos
teóricos em questão.
Na leitura realizada, levanta-se a idéia de que, enquanto possibilidade de pensamento,
a fenomenologia não está ultrapassada; ela permanece, sempre renovada e transformada, não
como um movimento ou corrente filosófica que estuda a essência das coisas, em busca de
algo puro, mas, ao contrário, ela entende que a compreensão do homem e do mundo apenas
pode se dar em termos fatuais, porque o mundo já existia antes de qualquer reflexão acerca
dele e, para estabelecer uma relação filosófica com esse mundo, há que se buscar reencontrar,
recriar e reinventar o contato naïf com esse mundo.
Em contraposição à instituição da fenomenologia como ciência exata tal qual foi
primeiramente idealizada por Husserl, Heidegger propõe a fenomenologia como possibilidade
de pensamento. Martin Heidegger percebe que o ser humano é constituído pela história, por
sua relação com o tempo. Foi por reconhecer que o significado é histórico que Heidegger
rompeu com o sistema de pensamento proposto por Husserl. O tempo é visto por Heidegger
como constituinte essencial na existência do ser humano, tempo como estrutura da vida
humana: O entendimento é radicalmente histórico; ele está sempre relacionado com a
119
situação concreta em que me encontro, e que tento transcender.161 E é a partir desse
entendimento que Collot trabalha seus conceitos teóricos. A unidade e o verdadeiro sentido da
fenomenologia são encontrados em nós mesmos. Trata-se de descrever, apresentar e não
deslindar, já que a semântica da própria palavra deslindar nos remete à quebra pela análise,
que despedaça o que possui a beleza em sua unidade. A compreensão e o entendimento não
são as únicas faculdades por meio das quais o ser humano se relaciona com a vida; na busca
de alcançar a coisa em si, a poesia apresenta e não explica, revela sem exaurir, mostra
ocultando, sedutora e paradoxalmente.
Em Sócrates, Descartes e Kant, a existência foi associada ao saber, ao conhecimento
apresentando a consciência como uma certeza absoluta do ser, e o ato de conhecer ligado ao
de existir. Certamente, não podemos pensar o mundo sem ser a partir de nós mesmos, mas
podemos admitir a possibilidade de infinitas outras coisas existirem sem que tivessem sido
conhecidas ou mesmo pensadas por nós. A metafísica apresenta uma estrutura que tem como
base o pensamento hipotético-dedutivo que se opõe à imaginação. Mas é a imaginação a fonte
transcendental da estruturação. Na estrutura reflexiva da lírica moderna, é possível perceber a
reconciliação da filosofia com a poesia; a barreira imposta pelo divórcio metafísico se esgarça
quando se verifica que a racionalidade pode coexistir com a imaginação e que esta última é
também fonte de conhecimento e de força poética; a poesia cria e apresenta pensamento, por
suas próprias formas, apresenta beleza.
A ciência, por mais saber que acumule, não é o mundo. O universo científico é
construído sobre um mundo de hipóteses que por si só não dizem muito. Sua delimitação e
explicação nos afastam da experiência mais pura da percepção. O ser humano não se reduz ao
seu psiquismo, a suas raízes históricas, ou a qualquer outro saber que se tenha desenvolvido
161 EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo, Martins Fontes, , 1997. pág. 87
120
acerca da espécie humana. O homem traz em si o próprio horizonte, e é a partir de
aproximações e afastamentos que decide relacionar-se com sua existência.
Assim como o tempo, também a linguagem é constituinte da existência humana. A
linguagem é trama que proporciona a experiência da sensação. Seu tecido é constituinte da
experiência do real e do seu constante processo de reconfiguração. A informação precisa de
um corpo de linguagem para se disseminar e, ao fazê-lo, forma opiniões e compõe a doxa. A
linguagem na arte dissemina linhas de fuga da doxa,162 atuando como contra-informação,
contra-linguagem, ou seria uma linguagem do contra? Talvez atue de todas essas maneiras,
mas, acima de tudo a linguagem na literatura é: antídoto. É a linguagem que oferece a
possibilidade de cura, pois apenas na literatura a linguagem se livra da ditadura do sistema
lingüístico como afirmou Barthes. Especialmente na poesia, encontra-se a liberdade para
deslocar sentidos, quebrar regras, reviver palavras anêmicas. A linguagem na poesia se
entrega para ser fonte de novas experiências, deixando entrever a possibilidade de criação de
novos sentidos e imagens para fixar o impensado, o invisível, o inapreensível. Um corpo
translúcido de possibilidades que se permite registrar por combinações poéticas da língua.
Elaboração de trama com os fios da vida, o poeta tece o corpo da linguagem que é entranhada
no homem pelos olhos e ouvidos, realimentando-o com o espanto que lhe permite lembrar que
está vivo, e que tudo pode ser diferente.
Nas últimas décadas, a poesia vem como que tentando se afastar da vontade consciente
do poeta. Ela parece não pertencer mais ao autor, mas à realidade a qual está ligada e que a
atravessa. O instinto de apropriação não combina com a atividade poética, por isso o tom de
individualidade, o “eu” pessoal vem sendo substituído por formas menos definidas e também
menos pessoais. A atividade maior da poesia contemporânea se faz no reviver das palavras.
Esse resgate requer atitudes novas, que criem opções ainda desconhecidas para as palavras de
162 JACQUES, Marcelo. in Terceira margem: Literatura e outras artes, ano VII, n/8, UFRJ
121
modo que estas percam seu sentido usual e informativo e ganhem novamente a força poética;
a sintaxe passa também a ser linguagem, assim como o vazio do papel, os sons e as formas
dos significantes. Muitos são os instrumentos da experimentação poética moderna e
contemporânea.
O mundo rotulado, onde noções e objetos se encontram delimitados, jaz escasso de
vida. As individualidades encerradas em si mesmas se debruçam sobre o desconhecido, sobre
a realidade opaca que se deixa desmanchar quando velhos usos são abandonados para dar
lugar a sentimentos ainda não saboreados. O chão onde moram as certezas se desfaz e abre-se
o espaço para o desconhecido, as palavras despem aí seus velhos significados, cria-se um
momento em que uma comunicação mais próxima e mais profunda pode acontecer, fundada
em buscas e não em respostas fechadas em si mesmas. Essa tessitura, no poeta da
modernidade, se dá a partir do transbordamento do sujeito criador para o fora de si, para o
outro. O processo de aderir às coisas do mundo possibilita um encontro consigo mesmo, pois,
na arte, a linguagem pode se libertar da mera função de comunicar e informar para produzir
novos sentidos, agindo como antídoto contra a fixidez.
Em seu ensaio, O poeta lírico fora de si, Michel Collot, propõe uma releitura do lírico.
Ele traz uma colaboração surpreendente ao propor um resgate do lirismo na poesia objetiva,
opondo-se às idéias apresentadas por Hegel em sua Estética. Collot declara que a poesia lírica
é naturalmente ligada ao mundo e que é possível, sim, a poesia lírica se outrar e é fora de si o
lócus poético onde o sujeito lírico pode realizar a poiésis, ou seja, criar vida, encantamento ao
mesmo tempo em que reinventa a linguagem da poesia, reconfigurando-se, atravessado pelo
novo.
O teórico francês aponta ainda o lirismo como uma importante possibilidade de
expressão legítima do sujeito contemporâneo. É importante ressaltar que a leitura do conceito
de sujeito lírico, já bastante cristalizada, merece e deve ser refeita. Percebe-se, de fato, que
122
embora em nuances inovadoras, o lirismo ainda pode ser encontrado na produção poética
contemporânea; seja na distribuição das palavras no branco do papel com a
tridimensionalidade de uma partitura musical, como faz Mallarmé em Lance de Dados, ou
pelo exercício lúdico-poético com a sonoridade das mesmas em um exercício de ligar
significantes a significados, como em Francis Ponge ou Gertrude Stein, onde os poetas tentam
esvaziá-las da função informativa dispondo-as como ecos de cristal, compondo, assim, um
corpo poético sonoramente estético, ou ainda outras composições que atingem o efeito lírico
apenas pelo encanto criado ao deslocar vocábulos do senso comum. Buscamos provar ser
poesia ainda vigorosa e atuante no resgate do ser humano à vida.
Infere-se, pois, que ao recortar da realidade a fala do cotidiano e inseri-la em um vazio
de página, que marca essa fala como poesia, o poeta contemporâneo traz a lírica emoldurada
pelo olhar que lança às coisas. Estas coisas, por sua vez, mudam de status uma vez poetadas.
A fragmentação do homem moderno exposta poeticamente faz com que ele, depois da
experiência de ver seu mundo assim emoldurado, veja, também, sua realidade com olhos de
criador, com olhos de poeta. A poesia pode, assim, mudar a realidade à medida que
transforma o indivíduo e estimula novas leituras de mundo. A realidade continua realidade,
mas não é mais a mesma. E novas realidades podem ser criadas por poetas, que serão sempre
novos, se estiverem engendrando uma relação poética com o mundo.
O vínculo entre literatura e vida é o meio para revivificar o homem moderno, de modo
a que ele atinja o que já não é mais vivenciado no cotidiano, ou seja, a vida possibilitadora de
exercício lírico e criador de pensamento. Criando no nosso outros corpos, a literatura torna
possível vivenciar a vida e, tornando vida vivível, a literatura torna vida real.163
Talvez esta não seja a conclusão, mas apenas uma possível, já que ao longo desta
interação pudemos sentir que a caminhada é perene e que sempre haverá novos horizontes. A
123
tarefa árdua do poeta é talhar a palavra nova, a palavra mágica que, segundo Carlos
Drummond de Andrade, não é encontro mas procura e, como todos nós, busca,
incansavelmente, o encantamento:
Certa palavra dorme na sombra De um livro raro. Como desencanta-la É a senha da vida, A senha do mundo. Vou procurá-la Vou procurá-la a vida inteira, No mundo todo. Se tarda um encontro, Se não a encontro, Não desanimo, Procuro sempre. Procuro sempre E minha procura Ficará sendo A minha palavra.164
Fazendo nossas, as palavras do poeta, concluímos a presente pesquisa entrelaçando,
uma vez mais, verso e prosa, pois foi possível concluir que; literatura, filosofia, poesia e vida
estão intimamente relacionadas. Mutantes, mutáveis; são e somos processo.
163 PUCHEU, Alberto. Literatura, para que serve? In A Construção Poética do Real, organizado por Manuel Antônio de Castro. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2004. p. 225
124
5 - BIBLIOGRAFIA
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria da Literatura. Coimbra: Livraria Almedina, 1969.
ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Editora
Itatiaia Ltda. da Universidade de São Paulo, 1987.
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Ed. Record 11°edição. 1993.
BARTHES, Roland. A Aula. Editora Cultrix, São Paulo. 1978.
BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro
Nietzsche. São Paulo, Annablume: FAPESP, 2002.
BRETON, Jean. Une anthologie de la Nouvelle poésie Contemporaine. Le cherche Midi
Éditeur, Collection Espaces. 1985 p. 94. poésie par Marie-Jose Hamy
COHEN, Sylvie. Points de vue sur les paysages. Hérodote 1987. v. 44.
COLLOT, Michel. Le sujet lyrique hors de soi. In: Figures du sujet lyrique. Dominique
Rabaté (dir). Paris: PUF, 1996. p. 113-125. (traduzido para o curso por Alberto Pucheu)
___________________ La poésie Moderne et la structure d’horizon . PUF, 1989, p. 24
___________________ L´Horizon Fabuleux. Corti. vol I.
___________________ Horizon de Reverdy, Presses de l’École normale supérieure. 1981
DELHOMME, Jean. Nietzsche. Paris, Éditions Seghers, 1969.
DICKINSON, Emily. The Complete Poems of Emily Dickinson. Edited by JOHNSON,
Thomas J. Little, Brown and Company, Boston-Toronto, 1982.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma introdução. Tradução Waltensir Dutra.
Martins Fontes, 1997, São Paulo.
FINK, Eugen. A filosofia de Nietzsche. Lisboa, Editorial Presença.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1978.
164 http://www.casadobruxo.com.br/poesia/c/palavra.htm acessado em 20 de janeiro de 2007.
125
FRÓES, Leonardo. Siblitz. Editorial Alhambra, Rio de Janeiro, 1981.
GENTILI, Bruno. Oral Poetry and its Public in Ancient Greece. From Homer to the Fifth
Century. Translated by Thomas Cole. The John Hopkins University Press, London, 1990.
GEORGES, Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha. Editora 34 – São Paulo, 1998.
HEGEL, G. W. F. Esthétique, Paris, Flammarion, 1958.
___________1 HEGEL, G. W. F. Sistema das Artes. Martins Fontes, São Paulo, 1977.
HEIDDEGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos; tradução Ernildo Stein – 2ª edição,
SP, Abril Cultural, 1983
HIRT, André. Versus – Hegel et le philosophie à l’épreuve de la poésie. Éditions Kimé; 2
Impasse des Peintres; 1999, Paris.
JACQUES, Marcelo. in Terceira margem: Literatura e outras artes, ano VII, n/8, UFRJ
_____________________ O outro que se lê: “O espelho” de G. Rosa. In Revista do CESP-
v.22, n. 30 – jan-jul. 2002.
JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de
Janeiro, 3ª ed. Zahar, 1999.
KREMER-MARIETTI, Angèle. L´Homme et ses labyrinthes. Union Générale d´Éditions,
1972.
LINS, Vera. Poesia e crítica: uns e outros. Ed. 7 letras, Rio de Janeiro, 2005.
LLOMME, Alain. Le fils d’Hermès. In textes réunis par F. Conssutta et M. Narcy : La forme
dialogue chez Platon – Évolution et réceptions – édition Jérôme Millon, 2001, Grenoble.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2ª ed. Rio de Janeiro, Rocco, 1985.
MESCHONNIC, Henri. Je n’ai pas tout entendu. Dumerchez, France, 2000.
___________________ Célebration de la Poésie. Verdier, 2001 – www.editions – verdier.fr
___________________ Modernité, Modernité. Éditions Vérdier. 1988
___________________ Pour la Poétique V. Poésie sans réponse. Gallimard, 1978.
126
NIETZSCHE, Friedrich. Acerca de Verdade e da Mentira no sentido extramoral. Tradução de
Helga Hoock Quadrado. Portugal, Printer Portuguesa – Relógio D’Água Editores, Junho de
1997.
___________________ O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo,
Companhia das Letras, 1996.
___________________ A Filosofia na idade trágica dos gregos. Elfos Ed: Lisboa Edições
70, 1995.
___________________ O Anticristo. São Paulo, Martin Claret, 2004.
NOVALIS. Pólen. Fragmentos, diálogos, monólogo, introdução, tradução e comentários
R.R.Torres Filho, São Paulo: Iluminuras. 1988.
ORTEGA Y GASSET, José. La Deshumanizacion Del Arte y otros ensayos de estética.
Espanha, Alianza Editorial 1991
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. Editora Perspectiva, São Paulo, 2003. 3a edição.
_________________ O Arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1982.
____________ El Arco Y La Lira. 1a. ed. México, D. F. : Fondo de Cultura Económica, 1946.
p. 165. in CRIPA, Ival de Assis. A historia da poesia e a poesia da história: crítica literária e
história intelectual nos ensaios de Octavio Paz. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
HISPANISTAS, 2., 2002, São Paulo. Anais eletrônicos... Associação Brasileira de
Hispanistas
PINSON, Jean-Claude. De la pluralité des poésies ‘pensantes’. In Poésie et Philosophie.
CipM fárrago, 2000.
PLATÃO. Diálogos : Teeteto
PLATÃO. Diálogos : Íon
POÉSIE et PHILOSOPHIE, textes réunis par Jean-Claude Pinson et Pierre Thibaud. Farrago.
1997. France
127
PONGE, Francis. O partido das Coisas. Iluminuras, São Paulo, 2000..
PUCHEU, Alberto. Literatura, para que serve? in A Construção poética do real - organizado
por Manuel Antônio de castro. Rio de Janeiro; 7 Letras, 2004.
___________________ Intervenções na relação entre poesia e filosofia: uma fronteira
desguarnecida. Tese de doutorado, UFRJ, 1999.
___________________________Escritos da Admiração. In Poesia (e) Filosofia. Org.
Alberto Pucheu, Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998
________________________ O BRILHO DOS DESTROÇOS DE UM NAUFRÁGIO
ESQUECIDOS DO MAR (Giorgio Agamben e Machado de Assis: da linguagem da
experiência à experiência da linguagem)
ROBERT, Paul. Dictionnaire alphabétique et analogique de la langue Française. SNL, Paris,
1976.
SCHLEGEL, F. Kritische Freidrich Schlegel – Ausgabe, Editado por Ernst Behler und Hans
Eichner – Paderborn. Munchen; Wien, 1979 ss, vol XI.
SHELLEY, Percy Bysshe; SIDNEY, Sir Philip. Defesas da Poesia. Ensaio, tradução e notas
de Enid Abreu Dobránzsky. FAPESP, Iluminuras, São Paulo, 2002.
UNGARETTI, Giuseppe. In A Alegria. Tradução e notas de Geraldo Holanda Cavalcanti.
Editora Record, Rio de Janeiro, 2003.
1936, Sans titre, XVIII, 782 in VALÉRY, Paul. Ego scriptor et...
128
Sites acessados:
http://www.spectrumgothic.com.br/literatura/generos.htm
http://www.jornaldosamigos.com.br/cultura2.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Prosa_po%C3%A9tica - visitado em 21 de fevereiro, 2006
http://babilonia.ulusofona.pt/traducoes_introducao.pdf - visitado em 6 de março, 2006.
http://babilonia.ulusofona.pt/traducoes_introducao.pdf
http://www.americanpoems.com/poets/emilydickinson/ - visitado em junho de 2006
http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v074.txt - visitado em 3 de maio de 2006.
http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php
http://poetes.com/mallarme/coup_de.htm - visitado em junho de 2006
Fernando Pessoa. Disponível em http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v066.txt visitado em 16
de abril de 2006
Giuseppi Ungaretti disponível em
http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet143.htm -
visitado em 20 de abril de 2006
http://www.bartleby.com/28/14.html - visitado em 16 de abril de 2006
SEIXAS, Cid. www.jornaldepoesia.com - visitado em 1 de maio de 2006.
STEIN, Gertrude. Disponível em http://www.bartleby.com/140/2.html - acessado em 23 de
abril de 2006.
LEMINSKI, Paulo. Razão de ser. in http://cristalpoesia.net/pleminski.htm - visitado em 3 de
Junho de 2006.
http://www.hpaysage.levillage.org/collot.htm
COMPAGNON, André. www.fabula.org - acessado em 14 de Fevereiro de 2006.
129
www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/H/horizonte_expectativas.htm visitado em 21/11/2006
CORALINA, Cora. O poeta e a poesia www.lunaeamigos.com.br/fragrancia/coracoralina.htm - acessado em 4 de junho de 2006 http://poezibao.typepad.com/poezibao/2006/10/michel_collot.html - acessado em 7 de
dezembro de 2006.
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/c/palavra.htm - acessado em 20 de janeiro de 2007.
Obras publicadas por Michel Collot, uma seleção :
Poesias:
Issu de L’oubli, Le Cormier, 1997.
Chaosmos, Belin, 1997.
Arborescences. Gravures de Sho Asakawa Tarabuste, 2002.
Immuable móbile, La Lettre colée, 2002.
Ensaios:
Horizon de Reverdy, Presses de l’École normale cupérieure, 1981.
L’Horizon Fabuleaux, Corti, 1988.
La Poesie moderne et la structure d’horizon, PUF, 1989. (nova edição em 2005.)
Francis Ponge entre mots et choses, Champ Vallon, 1991.
Gérard de Nerval ou la dévotion à l’imaginaire, 1002.
La Matière-émotion, PUF, 1997.
Paysage et Poésie, Corti, 2005.
http://www.geocities.com/LyricRecovery/collotenglish.htm - entrevista com Michel
Collot. Acessado em 8 de dezembro de 2006.
130