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    ROSE, Nikolas. (1988) Governando a alma: a formao do eu privado. In: Silva, Tomas Tadeu da (org.).Liberdades reguladas. Petrpolis: Vozes, p.30-45.

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    Governando a alma: a formao do eu privadoNikolas Rose

    No creio que se deva considerar o "Estado moderno" como uma entidade que se desenvolveu parte dos indivduos, ignorando o que eles so e at mesmo sua existncia, mas, ao contrrio, comouma estrutura muito elaborada, qual os indivduos podem ser integrados, sob uma condio: quese d sua individualidade uma nova forma e que se a submeta a um conjunto de mecanismosespecficos (Michel Foucault, 1982).

    ossas vidas ntimas, nossos sentimentos, desejos e aspiraes, parecemquintessencialmente pessoais. Vivendo num tempo em que somos rodeados por

    mensagens sobre problemas pblicos que parecem avassaladores (guerra, fome, injustiapobreza, doena, terrorismo), nossos estados mentais, nossas experincias subjetivas enossas relaes ntimas aparecem como, talvez, o nico lugar onde podemos localizarnossos verdadeiros eus privados. Essa crena parece, sem dvida, muito confortvel. Masela profundamente enganadora.

    Nossas personalidades, subjetividades e "relacionamentos" no so questesprivadas, se isso significa dizer que elas no so objeto de poder. Ao contrrio, elas sointensivamente governadas. Talvez elas sempre o tenham sido. Convenes sociais,vigilncia comunitria, normas legais, obrigaes familiares e religiosas exerceram umintenso poder sobre a alma humana em pocas passadas e em outras culturas. A conduta, afala e a emoo tm sido examinadas e avaliadas em termos dos estados interiores [p.31que elas expressam. Tambm tm-se feito tentativas para alterar a pessoa visvel atravs deuma ao exercida sobre esse invisvel mundo interior. Pode parecer que pensamentos,

    sentimentos e aes constituem o prprio tecido e constituio do mais ntimo eu, mas elesso socialmente organizados e administrados nos mnimos detalhes.

    A administrao do eu contemporneo diferente, entretanto, ao menos sob trsaspectos. Em primeiro lugar, as capacidades pessoais e subjetivas dos cidados tm sidoincorporadas aos objetivos e aspiraes dos poderes pblicos. Isso no constitui apenas um

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    nexo ao nvel de uma abstrata especulao poltica. Constitui tambm um nexo ao nvel deestratgias sociais e polticas e de instituies e tcnicas de administrao e regulao.Embora seja exagerado argumentar que aqueles que nos governam constroem agora suasaes totalmente ou em grande parte em termos das vidas interiores dos cidados, asubjetividade faz parte dos clculos das foras polticas no que diz respeito ao estado danao, s possibilidades e aos problemas enfrentados pelo pas, s prioridades e s polticasOs governos e os partidos de todos os matizes polticos tm formulado polticas,movimentado toda uma maquinaria, estabelecido burocracias e promovido iniciativas pararegular a conduta dos cidados atravs de uma ao sobre suas capacidades e propensesmentais.

    As manifestaes mais bvias tm sido o complexo dirigido criana: o sistema debem-estar infantil, a escola, o sistema jurdico juvenil e a educao e vigilncia dos paisMas a regulao das capacidades subjetivas tem-se infiltrado de forma ampla e profundaem nossa existncia social. Quando ministros, altos funcionrios e relatrios oficiais sepreocupam com a eficincia militar e pensam em ajustar o homem ao posto de trabalhoquando constroem a produtividade industrial em termos da motivao e satisfaes dotrabalhador, ou quando definem como um problema o crescimento do divrcio,formulando-o em termos das tenses psicolgicas do casamento, significa que a "alma" do

    cidado entrou de forma direta no discurso poltico e na prtica do governo.

    [p.32] Em segundo lugar, a administrao da subjetividade tem-se tornado umatarefa central da organizao moderna. As organizaes vieram preencher o espao entre avidas "privadas" dos cidados e as preocupaes "pblicas" dos governantes. Escritriosfbricas, companhias areas, faculdades, hospitais, prises, exrcitos e escolas, todosenvolvem a administrao calculada das foras e potncias humanas, em busca dosobjetivos da instituio. Muitos ingredientes entram claramente na administrao da vida

    organizacional. Mas, numa maior ou menor medida, chefes, comandantes militares,educadores, etc., so agora obrigados a cuidar da subjetividade do empregado, do soldadoou do aluno, ao tentar alcanar seus objetivos. Quando, por exemplo, o exrcito buscaminimizar a indisciplina e a tenso das tropas e aumentar sua eficcia guerreira, atravs dadistribuio racional dos indivduos pelas diferentes atividades, luz de um conhecimento

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    de sua inteligncia, personalidade ou capacidade, porque a subjetividade humana tornouse um elemento-chave do poder militar. Quando os empresrios buscam aumentar aprodutividade e a harmonia, ao adaptar prticas de trabalho luz de consideraes sobredinmica de grupo, porque a intersubjetividade se tornou central para a autoridadegerencial. Isto , a vida organizacional adquiriu um matiz psicolgico.

    Em terceiro lugar, temos presenciado o nascimento de uma nova forma de expertise,uma expertise da subjetividade. Tem surgido e se multiplicado uma famlia inteira de novosgrupos profissionais, cada um afirmando seu virtuosismo no que diz respeito ao eu, aoclassificar e medir a psique, ao predizer suas vicissitudes, ao diagnosticar as causas de seusproblemas e ao prescrever remdios. No apenas psiclogos - psiclogos clnicos,ocupacionais, educacionais - mas tambm trabalhadores do servio social, gerenciadorespessoais, pessoas encarregadas de acompanhar condenados em liberdade condicionalconselheiros e terapeutas de diferentes escolas e orientaes tm baseado sua reivindicaodo direito autoridade e legitimidade social na sua capacidade de compreender os aspectopsicolgicos da pessoa e de agir sobre eles, ou de aconselhar outros sobre o que fazer.[p.33] Os poderes multiplicadores desses "engenheiros da alma humana" parecem expressaalgo profundamente novo nas relaes de autoridade sobre o eu.

    Essas novas formas de pensar e agir no dizem respeito apenas s autoridades. Elasafetam cada um/a de ns, nossas crenas pessoais, desejos e aspiraes: em outras palavrasnossa tica. As novas linguagens empregadas na construo, compreenso e avaliao dens mesmos e dos outros tm transformado as formas pelas quais interagimos com nossoschefes, empregadores, colegas de trabalho, maridos, esposas, amantes, mes, pais, filhos/ae amigos/as. Nossos mundos mentais tm sido reconstrudos: nossas formas de pensar efalar sobre nossos sentimentos pessoais, nossas esperanas secretas, nossas ambies edecepes. Nossas tcnicas para administrar nossas emoes tm sido remoldadas. A

    prpria idia que temos de ns mesmos tem sido revolucionada. Ns nos tomamos seresintensamente subjetivos.

    Os estudos contidos no livro (Governing the soul, Routledge) do qual este ensaioconstitui a introduo tentam descrever algumas das formas pelas quais veio a se atribuirum papel central, nas sociedades modernas, a esses aspectos subjetivos das vidas dos

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    indivduos, medida que eles conduzem suas trocas com o mundo, com outros e consigomesmos. As investigaes que fiz tentam descrever as condies no interior das quais redede poder tomaram forma, as esperanas e os medos que esto por detrs delas, as novasformas de pensar e agir que elas introduziram em nossa realidade. Minha abordagem diferdaquelas que se tm tornado mais influentes na literatura sociolgica recente.1 Essaliteratura caracteriza-se por seu uso de um conjunto limitado de tropos interpretativos ecrticos: o empreendimento moral de grupos profissionais; a medicalizao dos problemasociais; a ampliao do controle social; a natureza ideolgica das asseresepistemolgicas; os interesses sociais dos cientistas; as cincias psicolgicas comolegitimadoras da dominao. Este paradigma da "sociocrtica", se me perdoam o termoassinala algo importante sobre o surgimento desse novo conhecimento e dessas novas

    tcnicas. Mas considero limitada, sob diversos e importantes aspectos, [p.34] essaperspectiva sobre as relaes entre as cincias psicolgicas, as profisses psicolgicas e aorganizao do poder poltico.

    A sociocrtica d a entender que esse conhecimento da vida subjetiva , numimportante sentido, falso ou deficiente; talvez, precisamente por ser falso que pode ter umpapel em sistemas de dominao. Isto , o conhecimento avaliado em termosepistemolgicos. Minha preocupao diferente. No com a verdade em algum sentido

    filosfico, mas com as formas pelas quais sistemas de verdade so estabelecidos, as formaspelas quais enunciados verdadeiros so produzidos e avaliados, com o "aparato" de verdad- os conceitos, regras, autoridades, procedimentos, mtodos e tcnicas atravs dos quais asverdades so efetivadas. Minha preocupao com os novos regimes de verdade instaladopelo conhecimento da subjetividade, as novas formas de dizer coisas plausveis sobreoutros seres humanos e sobre ns mesmos, o novo licenciamento daqueles que podem falaa verdade e daqueles que esto sujeitos a ela, as novas formas de pensar o que pode ser

    feito a eles e a ns.A sociocrtica implica que as cincias psicolgicas e seus praticantes so

    socialmente eficazes na medida em que participam do processo de dominao dasubjetividade dos indivduos. A subjetividade, aqui, aparece como um datum essencial; asociedades devem ser avaliadas de acordo com a medida na qual a reprimem ou a

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    respeitam. Gostaria de colocar a questo de forma inversa. Como a prpria subjetividade setornou, sob seus diferentes disfarces e concepes, a medida dos sistemas polticos e dasrelaes de poder? As relaes entre o poder e a subjetividade no esto, nessa perspectivaconfinadas s relaes de constrangimento ou de represso da liberdade do indivduo. Naverdade, as caractersticas distintivas do conhecimento e da expertise modernas da psiquetm a ver com seu papel na estimulao da subjetividade, promovendo a auto-inspeo e aautoconscincia, moldando desejos, buscando maximizar as capacidades intelectuais. Elaso fundamentais para a produo de indivduos que estejam "livres para escolher", cujasvidas se [p.35] tornam vlidas na medida em que esto imbudos com sentimentossubjetivos de significativo prazer (Meyer, 1986).2

    A sociocrtica v o conhecimento e as tcnicas psicolgicas como sustentandorelaes de poder. Talvez eles o faam, mas seu papel mais fundamental do que aqueleimplicado por essa afirmao. Pois essa forma de pensar deixa de capturar os novos efeitoque eles produzem, o ineditismo das conexes que estabelecem entre as aspiraes dasautoridades e os projetos das vidas individuais. Eles forjam novos alinhamentos entre ossistemas de justificao e as tcnicas de poder e os valores e a tica das sociedadesdemocrticas.

    A sociocrtica tende a sugerir que as origens e os xitos desse conhecimento edessas tcnicas podem ser explicados em termos da funo que exercem para o estado. Euvejo as coisas de forma diferente. Em vez de falar em termos de estado, preferiria falar emtermos de "governo". Governo, no sentido no qual eu utilizo o termo, no se refere nem aes de um sujeito poltico calculador, nem s operaes dos mecanismos burocrticos ede administrao de pessoal. O termo descreve, em vez disso, uma certa forma de buscar arealizao de fins sociais e polticos atravs da ao, de uma maneira calculada, sobre asforas, atividades e relaes dos indivduos que constituem uma populao.3 Durante os

    sculos XIX e XX, os territrios nacionais da Europa e da Amrica do Norte se tornaramcruzados por programas para a administrao e reconstruo da vida social a fim deproduzir segurana para a propriedade e para a riqueza, rentabilidade e eficincia daproduo, virtude pblica, tranquilidade e at mesmo felicidade. E a subjetividade se tornoum recurso na administrao dos problemas da nao.

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    A governamentalidade, como a chamou Michel Foucault, se tornou o terrenocomum de todas as nossas formas modernas de racionalidade poltica, na medida em queelas constroem as tarefas dos governantes em termos de superviso e maximizaocalculadas das foras da sociedade. A governamentalidade o "conjunto formado pelasinstituies, procedimentos, anlises e [p.36] reflexes, os clculos e as tticas, quepermitem o exerccio dessa forma muito especfica, embora complexa, de poder e que temcomo seu alvo a populao" (Foucault, 1979a, p. 20). Para todos os sistemas de domnio noOcidente desde, aproximadamente, o sculo XVIII, a populao aparece como o terreno dogoverno par excellence. No o exerccio da soberania - embora ela ainda exera seu papelNem a administrao da vida de uma nao como se ela fosse uma famlia, embora aprpria famlia seja um instrumento vital de domnio, mas a regulao dos processos

    prprios da populao, as leis que modulam sua riqueza, longevidade e sua capacidade pariniciar guerras e se engajar no trabalho, e assim por diante. Em vez de ver o estado comoestendendo seu domnio por toda a sociedade por meio de uma ampliao de seu aparato dcontrole, precisamos, pois, pensar em termos da "governamentalizao do estado" - umatransformao das racionalidades e das tecnologias para o exerccio do domnio poltico.

    Com a entrada da populao no pensamento poltico, o governo toma como seuobjeto fenmenos tais como nmero de sujeitos, suas idades, sua longevidade, seu estado

    de sade e tipos de morte, seus hbitos e vcios, suas taxas de reproduo. As aes eclculos das autoridades so dirigidas para novas tarefas: como maximizar as foras dapopulao e de cada indivduo no seu interior, como minimizar seus problemas, comoorganiz-los da forma mais eficaz. O nascimento e a histria dos saberes sobre asubjetividade e a intersubjetividade esto intrinsecamente ligados a programas que, a fim dgovernar os sujeitos, descobriram que precisam conhec-los. As questes colocadas pelagovernamentalidade delimitam o territrio sobre o qual as cincias psicolgicas, seus

    sistemas conceituais, suas invenes tcnicas, modos de explicao e formas de expertiseviriam a exercer um papel-chave.

    Duas caractersticas do governo so de importncia particular para se compreendero papel que essas cincias tm exercido no processo de vinculao entre, de um lado, a vidasubjetiva e intersubjetiva e, de outro, os sistemas de poder poltico. Em primeiro lugar, o

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    governo depende do conhecimento. Para se governar [p.37] uma populao necessrioisol-la como um setor da realidade, identificar certas caractersticas e processos prpriosdela, fazer com que seus traos se tornem observveis, dizveis, escrevveis, explic-los deacordo com certos esquemas explicativos. O governo depende, pois, de verdades queencarnam aquilo que deve ser governado, que o tornam pensvel, calculvel e praticvel.

    Em segundo lugar, governar uma populao exige conhecimento de um tipodiferente. Para se fazer clculos sobre uma populao necessrio enfatizar certos traodaquela populao como o material bruto do clculo, e exige informao sobre eles. Oconhecimento aqui adquire uma forma bem fsica; exige a transformao de certosfenmenos - tais como um nascimento, uma morte, um casamento, uma doena, o nmerode pessoas que vivem nesta ou naquela casa, seus tipos de trabalho, sua dieta, riqueza oupobreza - em materiais sobre os quais o clculo poltico possa trabalhar. Isto , o clculodepende de processos de "inscrio", que traduzem o mundo em traos materiais: relatrioescritos, mapas, grficos e, de forma proeminente, nmeros.4

    A inveno de programas de governo dependia de - e exigia uma "avalanche denmeros impressos", que tornavam a populao calculvel, ao transform-la em inscrieque eram durveis e transportveis, que podiam ser acumuladas nos escritrios dosfuncionrios, que podiam ser somadas, subtradas, comparadas e contrastadas. O termodado a essas prticas de inscrio era "estatstica". Do sculo XVII em diante, passandopelos sculos XVIII e XIX, a estatstica - a cincia do estado - comeou a transcrever osatributos da populao de uma forma tal que se tornava possvel que eles entrassem nosclculos dos governantes. As pessoas na terra, suas idades, seus locais e formas dehabitao, seu emprego, seus nascimentos, doenas e mortes - tudo isso era anotado etranscrito. Essas informaes eram transformadas em nmeros e reunidas em pontoscentrais; uma populao ingovernvel adquiria uma forma que podia ser utilizada em

    argumentos polticos e em decises administrativas.

    [p.38] A transformao da populao em nmeros que podiam ser utilizados nosdebates e clculos polticos e administrativos se estenderia, no sculo XIX, para novoscampos. As sociedades estatsticas, na Gr-Bretanha, iriam compilar grficos e tabelas dearranjos domsticos, tipos de emprego, dieta e graus de pobreza e necessidade.5 Seriam

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    construdas topografias morais da populao, mapeando o pauperismo, a delinqncia, ocrime e a insanidade, ao longo do espao e do tempo, e extraindo todo o tipo de conclusesobre as cambiantes taxas de patologia, suas causas e as medidas necessrias para remedilas. As capacidades dos sujeitos estavam, sob uma nova forma, se tornando pertinentes edisponveis para o governo.

    A situao de dependncia do governo relativamente ao conhecimento, nesses doissentidos, possibilita-nos apreciar o papel que a Psicologia, a Psiquiatria e as cincias "psitm exercido no interior de sistemas de poder nos quais os sujeitos humanos tm-se tomadoenredados. Os sistemas conceituais criados nas cincias "humanas", as linguagens deanlise e explicao que elas constituram, forneceram os meios pelos quais a subjetividadee a intersubjetividade humanas puderam comear a fazer parte dos clculos das autoridadesPor um lado, as caractersticas subjetivas da vida humana podem se tomar elementos nointerior de compreenses da economia, da organizao, da priso, da escola, da fbrica e dmercado de trabalho. Por outro, a prpria psique humana se tomou um domnio possvepara o governo sistemtico, em busca de fins scio-polticos. Educar, curar, reformar, punir- so, sem dvida, velhos imperativos. Mas os novos vocabulrios fornecidos pelas cinciada psique possibilitaram que as aspiraes do governo fossem articuladas em termos deuma administrao das profundezas da alma humana que estivesse baseada em seu

    conhecimento.

    As cincias psicolgicas exerceram outro papel-chave, pois elas forneceram osmeios para a inscrio das propriedades, energias e capacidades da alma humana. Elaspossibilitaram que as foras humanas fossem transformadas em materiais que podiamfornecer a base para o clculo. O exame formou o modelo para [p.39] todos os dispositivopsicolgicos de inscrio (Foucault, 1977, pp. 184-92). O exame combinou o exerccio dvigilncia, a aplicao do julgamento normalizador e a tcnica da inscrio material, a fim

    de produzir traos calculveis de individualidade. Os mecanismos examinadores dascincias psicolgicas - dos quais o diagnstico psiquitrico e o teste de inteligncia so doiparadigmas - forneceram, cada um deles, um mecanismo para transformar a subjetividadenum pensamento que tivesse uma fora calculadora. O exame no apenas torna aindividualidade humana visvel, ele a localiza numa rede de escrita, transcrevendo os

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    atributos e suas variaes em formas codificadas, possibilitando que eles sejamacumulados, somados, normalizados, que se tire sua mdia e que sejam normalizados - emsuma, documentados. Essa documentao da psique humana possibilitou que os elementode qualquer vida individual que fossem pertinentes para as autoridades fossem reunidosnum dossi, guardados num arquivo ou transmitidos para um lugar central, onde os traodos indivduos pudessem ser comparados, avaliados e julgados. Os traos podem seramalgamados num conhecimento das caractersticas psicolgicas da populao como umtodo, o qual pode, por sua vez, ser utilizado para calibrar o indivduo relativamente quelapopulao. As inscries psicolgicas da individualidade permitem que o governo operesobre a subjetividade. A avaliao psicolgica no meramente um momento de umprojeto epistemolgico, um episdio na histria do conhecimento: ao tornar a subjetividad

    calculvel, elas tornam as pessoas sujeitas a que se faam coisas com elas - e que faamcoisas a elas prprias - em nome de suas capacidades subjetivas.

    As inovaes no conhecimento tm, pois, sido fundamentais para os processos pelosquais o sujeito humano tem sido introduzido em redes de governo. Novas linguagens tmsido inventadas para falar sobre a subjetividade humana e sua pertinncia poltica, novosistemas conceituais tm sido formulados para calcular as capacidades e a conduta humanae novos dispositivos tm sido construdos para inscrever e calibrar a psique humana e

    identificar suas patologias e normalidades. Essas formas de conhecer [p.40] tm tornadopossvel reunir "tecnologias humanas": conjuntos de foras, mecanismos e relaes quepossibilitam a ao a partir de um centro de clculo - um departamento governamental, umescritrio gerencial, um centro de operao do exrcito - sobre as vidas subjetivas dehomens, mulheres e crianas.6

    As tecnologias humanas envolvem a organizao calculada de foras e capacidadeshumanas, juntamente com outras foras (naturais, biolgicas, mecnicas) e artefatos

    (mquinas, armas) em redes operacionais de poder. Numa tal composio, renem-seelementos que podem parecer, primeira vista, pertencer a diferentes ordens de realidadeplanejamentos arquitetnicos, equipamentos e dispositivos tcnicos, profissionais,burocracias, mtodos de clculo, inscries, procedimentos de recuperao, etc. Assim, oconhecimento terico torna a alma pensvel em termos de uma Psicologia, uma

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    inteligncia, uma personalidade e, portanto, possibilita que certos tipos de ao sejamvinculados a certos tipos de efeito. As tcnicas, do layout de edifcios estrutura decronogramas, organizam os humanos no espao e no tempo a fim de alcanar certosresultados. Relaes de hierarquia, desde a idade at certificados e diplomas educacionaislocalizam os indivduos em cadeias de lealdade e dependncia, capacitando alguns paradirigir outros e obrigando outros a obedecer. Procedimentos de motivao, desdeobrigaes morais at sistemas de pagamento, dirigem a conduta das crianas,trabalhadores e soldados para certos fins. Mecanismos de recuperao e terapia fornecemos meios pelos quais as tcnicas auto-regulatrias podem ser remoldadas de acordo com oprincpios da teoria psicolgica. medida que as redes se formam, que os mecanismos detransmisso, as tradues e as conexes conectam as aspiraes polticas com modos de

    ao sobre as pessoas, estabelecem-se tecnologias da subjetividade que permitem que aestratgias do poder se infiltrem nos interstcios da alma humana.

    Essas tecnologias ramificantes da subjetividade tm tido conseqncias radicais para a vidaeconmica, para a existncia social e para a cultura poltica. Mas isto no exige que nslocalizemos sua origem ou princpios de explicao no estado ou que [p.41] vejamos esseeventos como implementao de um programa coerente e racionalmente inventado paraassegurar a dominao de classe. Como sugeriu Michel Foucault, precisamos instalar o

    acaso em seu lugar correto na histria. Tm-se, freqentemente, feito inovaes para lidano com grandes ameaas ordem poltica, mas com problemas que so locais, "menoresou at mesmo marginais. Programas para reforar ou mudar as formas pelas quais asautoridades devem pensar sobre (ou lidar com) este ou aquele problema tm s vezespartido do aparato poltico central, mas, mais caracteristicamente, eles tm sido formuladopor outras foras e alianas: membros do clero, filantropos, mdicos, policiais, advogados juzes, psiquiatras, criminologistas, feministas, servidores sociais, acadmicos,

    pesquisadores, chefes, trabalhadores, pais. A efetivao desses programas tem envolvidos vezes, legislao e tem, algumas vezes, implicado a instalao de novos ramos doaparato poltico, mas tem sido tambm o trabalho de instituies de caridade, fundaesfundos, organizaes de empregadores, sindicatos, igrejas e associaes profissionais. Asinovaes feitas tm surgido, s vezes, de invenes radicalmente novas, mas, outras vezestm envolvido a utilizao ad hoc, a combinao e a ampliao de quadros explicatrios e

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    de tcnicas existentes. Inovaes espordicas como essas tm, com freqncia, dado emnada, tm fracassado ou tm sido abandonadas ou superadas por outras. Outras tmflorescido, tm-se espalhado para outros locais e problemas e se estabelecido como redesdurveis e estveis de pensamento e ao. E a partir dessas pequenas histrias adquiriuforma um padro mais amplo em cuja rede ns todos, homens e mulheres modernos, nostornamos enredados.

    Assim, as cincias psicolgicas esto intimamente envolvidas com programas,clculos e tcnicas para o governo da alma. O desenvolvimento, no sculo XX, das cinciapsicolgicas abriu novas dimenses para nosso pensamento. Simultaneamente, ele tornoupossvel novas tcnicas de estruturar nossa realidade, para produzir os fenmenos e osefeitos que podem agora ser imaginados. A traduo da psique humana esfera doconhecimento [p.41] e ao mbito da tecnologia torna possvel governar a subjetividade deacordo com normas e critrios que baseiam sua autoridade num conhecimento esotricomas objetivo.

    Os conhecimentos psicolgicos certamente atacaram problemas que surgiram emcircunstncias sociais especficas, mas essas circunstncias no predestinam oudeterminam, sozinhas, os tipos de soluo que propem. Sistemas conceituais, filosofiasexplicatrias e convenes sobre prova e evidncia exerceram seus prprios efeitos,interagindo com (e transformando) os problemas e questes iniciais, alimentando o debatesocial, com suas linguagens de classificao, discusso e avaliao. Obviamente, comomuitos analistas tm reconhecido, a disciplina da Psicologia est longe de ser homogneaela est dividida por escolas rivais e alimentada por conflitos entre modelos explicatriosincompatveis, tcita ou explicitamente assentados em bases filosficas opostas. Essadiversidade e heterogeneidade da Psicologia tm sido uma das chaves para sua contnuainventividade conceitual e sua aplicabilidade social generalizada. Longe de solapar suas

    asseres de verdade, ela tem permitido uma frutfera diferenciao em seus pontos deaplicao, possibilitando que ela opere com uma diversidade de contextos e de estratgiaspara o governo da subjetividade - diferentes formas de articular o poder social com a almahumana.

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    A expertise da subjetividade tem-se tornado fundamental para nossas formascontemporneas de sermos governados e de governarmos a ns prprios. Mas no porqueos experts conspiram com o estado para iludir, controlar e condicionar os sujeitos. Apoltica democrtica liberal coloca limites s intervenes coercivas diretas sobre as vidasindividuais atravs do poder do estado; o governo da subjetividade exige, pois, que asautoridades ajam sobre as escolhas, os desejos e a conduta dos indivduos de uma formaindireta. A expertise fornece essa distncia essencial entre o aparato formal da lei, dascortes e da polcia e a moldagem das atividades dos cidados. Ela obtm seu efeito noatravs da ameaa da violncia ou do constrangimento fsico, mas atravs da persuasoinerente s suas verdades, das ansiedades estimuladas [p.43] por suas normas e das atraeexercidas pelas imagens da vida e do eu que ela nos oferece.

    Os cidados de uma democracia liberal devem se regular a si prprios; osmecanismos de governo constrem-nos como participantes ativos em suas vidas. No sepensa mais que o sujeito poltico seja motivado meramente por um clculo de prazeres e dedores. O indivduo no mais, naquilo que concerne s autoridades, meramente o possuidode capacidades fsicas a serem organizadas e dominadas atravs da inculcao de padresmorais e hbitos comportamentais. Seja na casa, no exrcito, ou na fbrica, o cidado estativamente pensando, desejando, sentindo e fazendo, relacionando-se com outros em

    termos dessas foras psicolgicas e afetado pelas relaes que os outros tm com ele. Essesujeito cidado no deve ser dominado no interesse do poder, mas deve ser educado epersuadido a entrar numa espcie de aliana entre objetivos e ambies pessoais e objetivoou atividades institucionalmente ou socialmente valorizadas. Os cidados moldam suasvidas atravs das escolhas que fazem sobre a vida familiar, o trabalho, o lazer, o estilo devida, bem como sobre a personalidade e sua expresso. O governo age atravs de uma"ao distncia" sobre essas escolhas, forjando uma simetria entre as tentativas dos

    indivduos para fazer com que a vida valha a pena para eles e os valores polticos deconsumo, rentabilidade, eficincia e ordem social. Isto , o governo contemporneo operainfiltrando, sutil e minuciosamente, as ambies do processo de regulao no interiormesmo de nossa existncia e experincia como sujeitos.

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    As tecnologias da subjetividade existem, pois, numa espcie de relao simbiticacom aquilo que poderamos chamar de "tcnicas do eu": as formas pelas quais ns somoscapacitados, atravs das linguagens, dos critrios e tcnicas que nos so oferecidos, paraagir sobre nossos corpos, almas, pensamentos e conduta a fim de obter felicidade,sabedoria, riqueza e realizao.7 Atravs da auto-inspeo, da autoproblematizao, doautomonitoramento e da confisso, avaliamos a ns mesmos de acordo com critrios quenos so fornecidos por outros. Atravs da auto-recuperao, [p.44] da terapia, de tcnicade alterao do corpo e da remoldagem calculada da fala e da emoo, ajustamo-nos pomeio das tcnicas propostas pelos experts da alma. O governo da alma depende de nosreconhecermos como, ideal e potencialmente, certo tipo de pessoa, do desconforto geradopor um julgamento normativo sobre a distncia entre aquilo que somos e aquilo que

    podemos nos tornar e do incitamento oferecido para superar essa discrepncia, desde quesigamos o conselho dos experts na administrao do eu.

    A ironia que ns acreditamos, ao transformar nossa subjetividade no princpio denossas vidas pessoais, de nossos sistemas ticos e de nossas avaliaes polticas, queestamos, livremente, escolhendo nossa liberdade. Um possvel objetivo subjacente a umaanlise dessas tecnologias da subjetividade o de contribuir para escrever a genealogiadessa liberdade.

    Notas

    1. Como argumentei em outro local: Rose, 1988. Utilizo argumentos desse trabalho naquilo que sesegue.2. Baseei-me nas idias de Meyer naquilo que se segue.3. Michel Foucault nos deu as idias mais iluminadoras a respeito dessa questo. Veja, emparticular, Foucault, 1979, especialmente Parte 5; tambm seus ensaios "On governmentality"(1979) e "Omnes et singulatim: towards a criticism of political reason" (1981). Para uma discussoda noo relacionada de "polcia", ver Schumpeter, 1954, e Pasquino, 1978.4. Sobre estatstica, veja Pasquino (1978) e Hacking (1982). Sobre inscrio e clculo, veja Latour1987.5. Sobre a histria das sociedades estatsticas na Gr-Bretanha, veja Abrams, 1968 e Cullen, 1975.6. Minha discusso de "tecnologias" baseia-se no trabalho de Bruno Latour, Michael Callon, e JohnLaw. Veja suas contribuies em Law, 1986.7. Veja, especialmente, Foucault, 1988; 1982.

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    Referncias bibliogrficas

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    Este ensaio constitui o captulo introdutrio do livro de Nikolas Rose, Governing the soul. The

    shaping of the private self. Londres: Routledge, 1989: pp. 1-11. Traduo de Tomaz Tadeu da Silva

    Nikolas Rose professor de Sociologia do Goldsmiths College, Universidade de Londres.