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CONSIDERAÇÕES SOBRE A ESCOLA PÚBLICA BRASILEIRA: DA CONSTRUÇÃO HOMOGÊNEA AO RECONHECIMENTO DA DIVERSIDADE
Mirtes Aparecida Almeida Sousa – PPGEd/UFCGDr. Dorivaldo Alves Salustiano – PPGEd/UFCG
1. Introdução
O objetivo específico deste texto é apresentar, sob uma perspectiva histórica, o
surgimento de preocupações com a diversidade no contexto da criação e expansão da escola
pública brasileira. Para tanto, levamos em consideração a periodização adotada por Saviani
(2004), que toma como referência a construção e a expansão dos grupos escolares no final do
século XIX como marco de surgimento da escola pública em nosso país. Trata-se de um
estudo bibliográfico baseado na análise de obras sobre a escola pública brasileira: Saviani
(2004, 2007), Alves (2005), Nagle (2001), Arroyo (2012), Libânio (2012) entre outros. Ao
longo do texto, demonstramos como a escola pública brasileira foi construída inicialmente sob
uma ótica homogeneizante e como, ao longo dos anos, as questões da diversidade foram
surgindo, levando-se mais em conta os sujeitos que estão inseridos no processo educativo.
Primeiro, apresentamos um breve histórico da origem da escola pública, propriamente
dita, com o surgimento dos grupos escolares. Em seguida, analisamos como aspectos centrais
na discussão atual sobre diversidade foram omitidos ou mencionados ao longo dos anos e
como passaram a fazer parte das reivindicações contemporâneas que dizem respeito à defesa
da diversidade com aspecto central da escola pública atual. Salientamos que não trataremos da
origem da instrução e das práticas de ensino que aconteceram ao longo dos séculos em nosso
país, mas da instituição escolar que começou a aparecer, de acordo com a periodização de
Saviani (2004), no final do século XIX, com o surgimento dos grupos escolares, em 1890, e
que teve um maior dimensionamento com o avanço das políticas educacionais republicanas.
Também contemplaremos os principais momentos históricos que motivaram o surgimento e a
expansão da escola pública, bem como as políticas que procuram promover a acessibilidade
educacional a toda a população brasileira nos últimos anos.
2. Os grupos escolares e a educação pública
Os grupos escolares surgiram, no Brasil, como uma necessidade de organizar a
escolarização pública e configuraram, segundo Saviani (2004, p. 28), “um fenômeno
tipicamente urbano.” Anteriormente, em muitas situações, a casa dos professores era o
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principal ambiente de estudo, assim como as próprias residências das crianças. Não havia
infraestrutura que proporcionasse as condições básicas de ensino e aprendizagem aos alunos.
Os grupos reuniam várias salas de aulas e apresentavam a vantagem de serem organizados de
forma seriada, o que poderia melhorar a qualidade do ensino, pois essa forma de organização
das turmas proporcionaria melhor condição para a realização do trabalho pedagógico.
Como diz Saviani (2004, p. 30), “... a graduação do ensino levava a uma mais eficiente
divisão do trabalho escolar, ao formar classes com alunos de mesmo nível de aprendizagem. E
essa homogeneização do ensino possibilitava um melhor rendimento escolar.” No contexto
territorial brasileiro, os grupos escolares surgiram primeiro no Estado de São Paulo, na zona
urbana, e, aos poucos, foram se expandindo para a zona rural e para os outros estados.
Mesmo com o surgimento dos grupos escolares, a expansão do acesso à escola pública
se deu a passos lentos e, de acordo com Alves (2005), se baseava em critérios de clientelismo.
Era controlada por chefes políticos locais que recrutavam professores leigos, principalmente
nas escolas rurais do ensino primário. Sendo assim, logo percebemos a relação de
subalternidade presente na organização da escola, relacionada ao fato de que os chefes
políticos mais atuantes no início da nossa república eram os coronéis, representantes das
oligarquias rurais. Eles eram altamente poderosos e influentes em suas localidades e tinham
amplos poderes de decisão, enquanto ao povo restava assistir ao que acontecia na sociedade.
Assim, para merecer trabalhar nos grupos escolares, era fundamental ser indicado pelo
coronel que chefiava a região.
A docência não era reconhecida como uma profissão importante, de modo que, para
ser professor, bastava saber um pouco mais do que os seus alunos para ensinar a ler, a
escrever e a “contar”. É importante lembrar que a carência de professores com a mínima
condição de ensinar era maior na zona rural do que na zona urbana.
De toda forma, os grupos escolares foram um avanço para a educação pública pela
tentativa de racionalizar o trabalho pedagógico, indicando a necessidade de melhorar a oferta
educacional. Seu surgimento também propiciou discussões sobre a importância do ambiente
físico das escolas e sobre a necessidade de profissionalização do professor. Merece destaque,
ainda, o fato de que os grupos escolares eram construídos, inicialmente, em locais de
destaque, nas ruas ou avenidas mais movimentadas das maiores cidades, não importando se
ficavam distantes das casas das crianças, pois o critério que prevalecia para a escolha de sua
localização era a visibilidade. Dessa forma, aparentemente, os políticos da época mostravam-
se preocupados com a educação por meio da construção de obras.
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Veiga (1999), chama atenção para dois outros aspectos que evidenciaram a
“perspectiva racionalizadora” que orientou a implementação dos grupos escolares:
O primeiro, na reestruturação dos currículos, na indicação de novos livros didáticos e na ênfase dada a métodos e técnicas de ensino e, principalmente, à centralidade na formação dos professores. O segundo, na forma como a concepção individualizante de sociedade é imprimida ao tratamento dos problemas da educação, ao responsabilizar pais, professores e alunos pela ineficácia do ensino. (VEIGA, 1999, p. 145-146).
Neste sentido, a dimensão pedagógica, a necessidade de implementação de um
currículo, de materiais didáticos e a formação de profissionais específicos para atuarem na
escolarização pública passam a ser considerados aspectos importantes, passando a fazer parte
do debate entre alguns intelectuais brasileiros sobre as formas de ensinar, impulsionando a
ampliação das Escolas Normais, para dar suporte aos profissionais que trabalhariam nos
grupos escolares.
A educação, como política pública, ainda era incipiente e o pensamento da elite social
era marcado pelo individualismo e pela crença na meritocracia. Assim, a responsabilidade
pela aprendizagem era atribuída ao indivíduo, ou seja, a obtenção de sucesso na escola
dependia dos esforços dos alunos, dos pais e dos professores. Assim, o Estado procurava se
eximir do seu dever de educar, já que cada um devia cuidar de si. As abordagens coletivas e a
concepção de educação para todos não cabiam neste contexto. Sendo assim, o sucesso ou o
fracasso, eram mérito ou a culpa era do aluno.
Tratava-se de uma concepção de escolarização excludente, sem perspectivas para o
aluno que tinha dificuldades de adequar-se à escola concebida para classes dominantes. A
aprendizagem da leitura, da escrita e da matemática eram os principais objetivos do ensino e
pouco se falava sobre adequação curricular. Frequentar uma sala de aula representava o
desafio de enfrentar um ensino enciclopédico, que não tinha relações com as vivências dos
educandos. A lógica racionalista do ensino em implantação nos grupos escolares visava a
homogeneizar as práticas de escolarização para que os indivíduos se tornassem cada vez mais
iguais do ponto de vista cognitivo.
3. A escola pública e os primeiros anos da República
No fim do século XIX e início do século XX, o Brasil passava por profundas e
marcantes transformações nos aspectos político, social, econômico e histórico que marcaram
o surgimento da República, o fim da escravidão e a inserção da sociedade no modo capitalista
de produção. O país vivenciava pressões internacionais para que fosse criado um mercado
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consumidor de acordo com as exigências do capitalismo, o exigia, cada vez mais, a adequação
dos trabalhadores a uma economia baseada no desenvolvimento da vida urbana e industrial,
que se contrapunha à antiga vida rural e agrária que predominou por anos, desde o período
colonial, e que se estendeu por todo o período imperial.
Mesmo com a resistência da burguesia agrária e das oligarquias rurais, simbolizadas
especialmente pelos coronéis, que queriam que o Brasil continuasse rural, não era possível
deter as transformações que estavam em curso na sociedade brasileira. Dessa forma, a escola
pública se fazia necessária para apoiar o plano desenvolvimentista urbano imposto pelo
capitalismo.Com a crescente industrialização e urbanização, aumentavam as exigências por
escolarização, pois o poder público precisava preparar os indivíduos para a vida em uma
sociedade que estava se transformando a cada dia.
Segundo Frigotto (2005, p. 228): “Ao longo da década de 1920 abre-se, no plano
contraditório das lutas da burguesia industrial emergente e da burguesia agrária, um espaço
favorável para a ampliação do acesso à escola pública.” Os indivíduos precisavam estudar
para trabalhar na zona urbana e executar algumas funções típicas do capitalismo industrial.
Neste sentido, a escola era fundamental para atender as necessidades da sociedade e dos
indivíduos, pois as elites dirigentes do país acreditavam que a escolarização ideal era a que
preparava para a inserção no mundo do trabalho.
Enquanto que no contexto internacional outros países já estavam adiantados em
relação ao processo de escolarização pública e à modernização da economia, tudo no Brasil
ainda era incipiente. De fato, não existia uma real preocupação com a educação de todas as
classes sociais. Desde o início da nossa história a educação sempre foi pensada para as elites e
com objetivos de respaldar as demandas vindas das classes sociais mais favorecidas. A
educação não era vista como uma necessidade de todos os cidadãos, sendo este um dos fatores
que podem justificar a demora na instalação e expansão dos grupos escolares em algumas
localidades.
Nos anos de 1920, o Brasil foi tomado por um entusiasmo pedagógico, inspirado nas
concepções do positivismo, que via a escola pública como importante alternativa para
promover e respaldar o desenvolvimento que a sociedade almejava. Os ideais positivistas
apostavam na educação como forma de produzir progresso e ordem no país. Além disso, a
escola pública era vista como um espaço propício para criar nos indivíduos a paixão pela
nação. Nagle (2001) observa que os símbolos nacionais eram prestigiados, os desfiles cívicos,
as datas comemorativas e as aulas de moral e cívica eram expressões do nacionalismo
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existentes na escola. A educação estava à serviço do “amor à nação”, os alunos tinham que ter
orgulho de ser brasileiros. O país e seus dirigentes, por serem autoridades, deveriam ser
exaltados e respeitados. O modelo de escola desta época não admitia espaços para
questionamentos; as regras existiam para serem cumpridas. Para frequentar a escola se fazia
necessário se adequar às suas exigências, o que não estava ao alcance de todos.
Segundo Teixeira (1977, p. 29): “A escola era para a chamada elite. O seu programa, o
seu currículo, mesmo na escola pública, era um programa e um currículo para “privilegiados”.
Toda a democracia da escola pública consistiu em permitir ao “pobre” uma educação pela
qual pudesse ele participar da elite” (grifos do autor). No entanto, o próprio Anísio Teixeira já
criticava a escola existente e apontava a necessidade de uma escola que fosse efetivamente
voltada para a formação do brasileiro, levando em consideração as dimensões do país:
Está claro que essa escola, nacional, por excelência, a escola da formação do brasileiro, não pode ser uma escola imposta pelo centro, mas o produto das condições locais e regionais, planejada, feita e realizada sob medida para a cultura da região, diversificada, assim, nos seus meios e recursos, embora una nos objetivos e aspirações comuns. (TEIXEIRA, 1977, p. 37).
Ressaltamos que, nas palavras de Anísio Teixeira, a preocupação com a diversidade já
aparece sob alguns aspectos, embora não fosse concebida como atualmente. Este renomado
intelectual percebia que um país como o nosso não podia se limitar a visões homogêneas no
que se refere à educação.
No Brasil dos primeiros anos da República o acesso à educação era limitado. Não
havia legislação específica para o sistema educacional e também não havia a obrigatoriedade
de estudar por parte da população. A sobrevivência era a principal preocupação do povo e
para isso se fazia necessário trabalhar. O estudo ainda não era reconhecido como necessidade
por parte das camadas populares. A escola era pensada para atender as demandas da sociedade
e não dos indivíduos.
Além disso, no início da República brasileira, existiam muitos negros libertados após a
escravidão que não contavam com as mínimas condições de uma vida digna, como acesso à
moradia. Então, como pensar em acesso à escola? Em muitos momentos, a sociedade
brasileira foi palco de conflitos e disputas pelo poder que apenas favorecia uma minoria e
negava os direitos aos outros. Como as poucas escolas/grupos escolares estavam inseridos
dentro deste contexto, a escolarização pode ser caracterizada como excludente, pois era
comum que apenas alguns participassem das oportunidades de ensino e aprendizagem.
Severino (2005, p. 36) nos diz que “A experiência histórica da sociedade brasileira foi
e continua sendo marcada pela realidade brutal da violência, do autoritarismo, da dominação,
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da injustiça, da discriminação, da exclusão, enfim, da falta do direito.” Com tantos direitos
negados e com os problemas estruturais, era difícil o país conceber uma educação na forma da
escolarização pública com características de inclusão e transformação social.
As mulheres, neste contexto, vítimas de uma sociedade machista, também
desconheciam o caminho da escola, pois deviam cumprir o arraigado ideal de casar e cuidar
da casa, do marido e dos filhos. Como o estudo poderia ser atrativo e apresentar perspectivas
de mudanças de vida dessas pessoas? Para as mulheres que tinham oportunidade, o
surgimento da Escola Normal representava uma possibilidade de ampliar os horizontes
femininos no que diz respeito à inserção no mundo do trabalho. Entretanto, mesmo com a
oportunidade de profissionalização por meio das Escolas Normais, no imaginário da
sociedade “havia uma certa ideia de cuidado, de afetividade, que as mulheres fizeram penetrar
no ensino primário” (SOUZA, 1999, p. 84). A mulher professora era a mais indicada para
cuidar e educar as crianças por suas características inatas e maternais. Acreditava-se que a
afeição que a criança desenvolvia por sua professora tornava a aprendizagem mais viável.
Contudo, as mulheres não se contentaram apenas com a concessão da sociedade para
exercer o papel de professora e, aos poucos, começaram a se organizar e lutar por melhores
condições de vida e espaço no seu meio social. Como nos lembra Almeida (2004, p.79): “O
século XX também viu surgir as primeiras manifestações femininas no plano político e
ideológico, reivindicando educação, instrução e privilégios sociais, como trabalho e profissão,
além do direito ao voto.” Sendo assim, constatamos que as mulheres não foram omissas;
tentaram alcançar novas oportunidades e batalharam para ter seus direitos reconhecidos.
4. Outros marcos da escola pública no Brasil republicano
No Brasil republicano, a escola pública ganhou grande destaque nos debates
acadêmicos, políticos e sociais com a publicação do Manifesto dos Pioneiros, em 1932.
Segundo Saviani (2013), a luta era por uma educação pública, gratuita e laica. A principal
reivindicação era a existência de um sistema educacional nacional que atendesse as demandas
do povo brasileiro. Apoiando-se nos pressupostos da Escola Nova, buscou-se transformar as
práticas educativas, entendendo que o aluno deveria ser o centro do processo educacional. Tal
argumentação era inovadora para a época, por colocar o aluno como sujeito mais ativo, se
comparado às práticas existentes até então.
De acordo com Sander (2007, p. 28) “A renovação educacional no início da Segunda
República estava alicerçada nas teorias psicológicas de Lourenço Filho, na contribuição
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sociológica de Fernando de Azevedo e no pensamento filosófico e político de Anísio
Teixeira.” Podemos considerar que estes três grandes intelectuais brasileiros impulsionaram o
movimento dos pioneiros e tiveram grande influência no cenário educacional do país.
Algumas transformações ocorreram em dimensão menor do que estes educadores desejavam,
mas, tendo em vista a realidade brasileira, consideramos que houve significativos avanços nas
décadas de 30, 40 e 50 do século XX em relação às práticas de ensino na escola pública.
Outro momento importante que podemos destacar em nossa República foi o período
da Ditadura Militar (1964-1985), que promoveu grandes transformações sociais de caráter
antidemocrático e de exclusão das massas populares. A máxima do período era conseguir um
grande desenvolvimento econômico; o país precisava crescer a todo custo. Assim, a
escolarização era necessária para que o Brasil ganhasse prestígio internacional.
A Ditadura Militar foi a solução que a classe dominante encontrou para conter
determinados movimentos populares. O governo autoritário se aliou à burguesia empresarial
nacional, que estava alinhada com os interesses internacionais. A ditadura foi reacionária e
conservadora, com características totalitárias. A efervescência das manifestações populares
eram controladas com violência. O povo era apenas um “público” para assistir e aceitar as
imposições da estrutura política militar.É evidente que no contexto da ditadura militar – em que os trabalhadores e os setores mais progressistas da sociedade civil estavam desarticulados pela repressão – privilegiaram-se as áreas diretamente ligadas à reprodução do capital (investimento em infraestrutura, incentivos fiscais, subsídios, etc.), ao aparelho burocrático central e à “Segurança Nacional”. As denominadas políticas sociais foram relegadas a um plano secundário do ponto de vista do financiamento. Isso denota que a exclusão econômica e política da imensa maioria do povo brasileiro se projeta também no campo dos direitos sociais (acesso à escola, direito à saúde, à habitação, à previdência etc.). (GERMANO, 2005, p. 200)
Face a esta afirmação compreendemos que a ditadura privilegiava o desenvolvimento
econômico em detrimento dos direitos sociais. Neste sentido, a escola tinha a função de evitar
problematizações a respeito do regimento político vigente. A prioridade era promover uma
educação para a conformação do povo, em vez de contribuir para a formação do pensamento
crítico nos diversos níveis de escolaridade. Os currículos, as metodologias de ensino e os
materiais didáticos tinham que estar de acordo com o que o regime ditatorial acreditava ser o
melhor para a população.
Entretanto, nesse contexto de ditadura podemos ressaltar que houve uma mudança
positiva: de acordo com Germano (2005), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(Lei n. 5.692, de 1971) ampliou a escolarização obrigatória, passando de quatro para oito anos
e obrigou os poderes públicos a oferecer ensino de primeiro grau, o que representava a
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possibilidade de ter acesso a mais anos de escolaridade. Além disso, havia a alternativa de dar
continuidade aos estudos realizando um curso profissionalizante, que na época da ditadura era
muito valorizado e era considerado a melhor maneira de inserção das camadas populares no
mercado de trabalho. Os cursos técnicos eram vistos como ideais para os pobres porque lhes
preparavam para o trabalho e era interessante para a classe industrial, mediante a inserção da
mão de obra que atendia aos interesses do capitalismo.
De acordo com o que foi exposto até o momento, podemos perceber que a escola era
entendida como fundamental na formação de “pessoas iguais” para atender as características e
necessidades da sociedade existente. Os alunos tinham que se enquadrar nos modelos pré-
existentes, não havia espaço para críticas. Os professores e alunos tinham que seguir as
determinações do governo autoritário, o qual se negava a enxergar a diversidade do povo
brasileiro. A escola era um local de reprodução do conhecimento e dos paradigmas sociais.
Algumas questões referentes aos direitos sociais da população só ganharam espaço
após o processo de redemocratização do Brasil, que ocorreu de forma lenta e gradual. A partir
de 1980, a Ditadura Militar já estava desgastada e muitas ações da sociedade civil
contribuíram para a conquista de direitos para a população brasileira. Outras conquistas
importantes do período de redemocratização foram a promulgação da Constituição Federal,
em 1988, e do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, que significaram grandes
avanços do ponto de vista da legislação nacional, pois tratavam o cidadão brasileiro enquanto
sujeito de direitos. Em 1996, a promulgação de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, Lei nº 9394/96, incorporou várias demandas dos movimentos sociais
organizados. Ela foi fundamental para regulamentar o funcionamento e a oferta do ensino nas
instituições e também para incluir diferentes sujeitos que não tinham direito à educação.
A existência dessas leis passou a fundamentar as reivindicações dos movimentos
sociais, dos educadores e da sociedade civil de forma geral pela efetivação dos direitos
assegurados legalmente, pois a existência da legislação não é suficiente para que, na prática,
os direitos sejam assegurados. Numa sociedade democrática, mas também desigual, como a
nossa, formada por sujeitos sociais diversos, as conquistas legais representam importante
instrumento de reconhecimento e inserção social.
5. A escola pública e a diversidade contemporânea
Atualmente, ao tratar da educação, muitas de nossas inquietações recaem na escola
pública, que é o principal ambiente educacional formal das massas populares. Como educar a
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todos? Eis o desafio de universalizar a educação. Hoje, o acesso à escola é um direito legítimo
da população brasileira em seus mais diversos coletivos sociais. Por meio de várias
reivindicações sociais chegamos ao século XXI com a perspectiva de escolarizar toda a
população. Conforme Diniz-Pereira e Leão (2008), este desafio começa pela formação dos
professores para receber e efetivamente incluir os “outros”:
Trazidos para as escolas por meio de mudanças conjunturais e mobilizações sociais que forçaram as políticas educacionais a permitirem o acesso desses sujeitos “outros” à Educação Básica, os profissionais da educação, que também já não são os mesmos, se viram diante de uma realidade que aquela formação generalista e homogeneizada não responderia mais (será que em alguma vez chegou a responder?). (DINIZ-PEREIRA e LEÃO, 2008, p. 9).
Estes autores nos convidam a pensar sobre quem são estes “outros” que chegaram à
Educação Básica. Certamente são sujeitos plurais, com diferentes histórias de vida e que serão
educados por profissionais que receberam a formação homogeneizadora que discutimos
acima. Onde encontrar referências para a nova formação que os sujeitos plurais exigem? Qual
o real lugar da diversidade? Estas questões não são simples de responder. O fato é que, na
contemporaneidade, tudo está em constante transformação: alunos, professores e sociedade;
por isso, a escola é intimada a também mudar para que realize o seu papel de educar.
Por muito tempo a escola ignorou a existência de sujeitos diversos. No entanto,
práticas homogêneas não correspondem às expectativas de uma sociedade plural, na qual as
singularidades reivindicam espaço. O fato de estarmos inseridos em uma sociedade
democrática e marcada por profunda desigualdade econômica e social nos impele a
reivindicar espaços e não aceitar passivamente as determinações das classes dominantes.
Sendo assim, os sistemas educacionais precisam pensar em novas propostas pedagógicas que
reconheçam as reais relações estabelecidas entre os diferentes sujeitos sociais.Como pensar currículos, conteúdos e metodologias, formular políticas e planejar programas educativos sem incorporar os estreitos vínculos entre as condições em que os educandos reproduzem suas existências e seus aprendizados humanos? Questões inquietantes (...) que vêm instigando outras práticas educativas, outros conhecimentos e outras relações entre mestres e educandos. (ARROYO, 2012, p. 83).
A escola contemporânea precisa dialogar com os diversos sujeitos sociais e buscar
planejar ações pedagógicas que contemplem os anseios dos seus alunos. A sala de aula, em
particular, deve ser um espaço para a discussão de questões polêmicas que permeiam as
relações sociais contemporâneas. Por isso, os educadores precisam estar atentos à forma como
que o currículo é construído, principalmente para não cair na armadilha de, na intenção de
reconhecer a diversidade, ofuscar as desigualdades. Os temas que envolvem a diversidade e a
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diferença são complexos e nem sempre podem ser tratados de forma harmônica sem falsear a
realidade, pois muitas questões são inquietantes e, na escola, não são tratadas como deveriam.
Podemos mencionar, como exemplo, a abordagem de algumas escolas à Lei nº
11645/2008, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Observamos que, às vezes, há um tratamento
“caricato” deste tema, destacando apenas a capoeira e as danças indígenas, esquecendo-se de
trabalhar com fatores mais amplos que implicam na construção de um conhecimento mais
profundo. Portanto, é preciso analisar e repensar as metodologias aplicadas para que não haja
um mascaramento do campo cultural e negação da contribuição dos povos negros e indígenas
na formação do povo e da sociedade brasileira.
Diante das necessidades educacionais brasileiras também podemos pensar sobre o que
Nunes (2008), disse a respeito da escola pública:
A escola popular que se democratizou é uma escola deteriorada, do ponto de vista da limpeza, da higiene, dos conteúdos culturais e da organização pedagógica. É uma escola que assistiu aos cortes de pessoal de apoio (inspetores, porteiros, guardas, merendeiras, auxiliares diversos, e dos técnicos pedagógicos: supervisores e orientadores). É uma escola mergulhada na violência das grandes cidades e onde se reflete a heterogeneidade socioeconômica-cultural da população. (NUNES, 2000, p. 108)
Esta realidade nos mostra que não é suficiente garantir o direito legal à escola; é
preciso superar a condição de uma instituição marcada por carências, que englobam desde os
aspectos físicos até os pedagógicos. Logo, percebemos que as condições de trabalho para os
profissionais da educação não são muito favoráveis, fator que dificulta, embora não impeça,
novos olhares sobre o fazer educativo. Além disso, a escola retrata a sociedade com suas
contradições e heterogeneidades, típicas da diversificada população brasileira.
Em relação à universalização do ensino, Libâneo (2012, p. 23) observa que “enquanto
se apregoam índices de acesso à escola, agravam-se as desigualdades sociais do acesso ao
saber, inclusive dentro da escola, devido ao impacto dos fatores intraescolares na
aprendizagem.” Chama atenção, portanto, para o fato de que mesmo com as políticas de
acesso ao ambiente escolar, há problemas que reforçam a ausência de uma efetiva inclusão
social, pois o acesso ao conhecimento é negado às camadas populares em função da baixa
qualidade da educação pública oferecida aos alunos. Assim, os movimentos sociais e a
sociedade civil organizada questionam, cada vez mais, as formas de escolarização e exigem
do poder público espaço de participação. Suas conquistas legais representam a força das lutas
das mulheres, dos negros, dos índios, dos pobres, das pessoas com deficiência, entre outros,
por seu lugar na escola.
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6. Considerações finais
O percurso delineado neste texto indica a relevância de uma perspectiva história na
tentativa de compreender os principais aspectos da história de constituição da educação
pública em nosso país, desde a implantação do regime republicano até os dias atuais. Desta
leitura, destacamos os seguintes aspectos:
1) A criação dos grupos escolares representou a principal forma de implementação da escola
pública no início da República, voltada prioritariamente para a formação das elites
dominantes e da mão de obra de que necessitava, especialmente com a emergência do
capitalismo. A escolarização tinha como objetivo homogeneizar uma população
constituída por sujeitos diversos em sua origem, mediante a adoção de uma concepção de
educação individualista e meritocrática e de um currículo enciclopédico indiferente à
diversidade dos sujeitos, das regiões, das culturas.
2) Apesar deste contexto, o acesso à educação possibilitou o surgimento de lutas por inserção
social e participação política, a exemplo da batalha das mulheres por acesso ao trabalho e
direito ao voto.
3) A partir da redemocratização do país, com a participação de variados sujeitos e
movimentos, a diversidade passou a ser defendida como direito legalmente constituído,
assegurado na Constituição Federal de 1988, em leis de grande impacto social, a exemplo
da LDB, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei nº 11645/2008.
4) A presença dos diversos sujeitos na sala de aula impõe o desafio de reconhecê-los nas suas
diferenças e desigualdades e produzir práticas educativas baseadas na diversidade de
culturas, modos de aprendizagem e formas de participação social.
7. Referências
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