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Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 249 – 256, jul./dez. 2010 SOBRE MASCULINIDADES, ATIVISMO E ESTUDOS PÓS-COLONIAIS: entrevista com o antropólogo Miguel Vale de Almeida Carmen Silvia de Moraes Rial * Giovanna Maria Poeta Grazziotin ** Juliana Bez Kroeger *** Rochelle Cristina dos Santos **** Cintia Lima Crescêncio ***** O antropólogo social, Miguel Vale de Almeida, é professor no Instituto Universitário de Lisboa (ex-Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), e pesquisador do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), onde já dirigiu a linha de investigação “Identidades Sociais e Diferenciações”, bem como a revista “Etnográfica”. O antropólogo realizou estudos em Portugal, Brasil e Espanha sobre os seguintes temas: masculinidades, movimento negro, pós-colonialismo lusófono e casamento entre pessoas do mesmo sexo. Entre as suas publicações acadêmicas, destaca-se a obra ‘Senhores de Si: uma interpretação antropológica da masculinidade’, livro que se tornou uma referência nos estudos de gênero sobre masculinidades. Miguel Vale de Almeida tem-se destacado também como um * Doutora em Antropologie et Sociologie pela Université de Paris V. Professora do Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected] ** Mestranda em História pele Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected] *** Mestranda em História Cultural na Universidade Federal de Santa Catarina. **** Mestranda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected] ***** Mestranda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Entrevista

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  • Florianpolis, v. 2, n. 2, p. 249 256, jul./dez. 2010

    SOBRE MASCULINIDADES, ATIVISMO E ESTUDOS PS-COLONIAIS:

    entrevista com o antroplogo Miguel Vale de Almeida

    Carmen Silvia de Moraes Rial*

    Giovanna Maria Poeta Grazziotin**

    Juliana Bez Kroeger***

    Rochelle Cristina dos Santos****

    Cintia Lima Crescncio*****

    O antroplogo social, Miguel Vale de Almeida, professor no Instituto Universitrio

    de Lisboa (ex-Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa), e pesquisador do

    Centro em Rede de Investigao em Antropologia (CRIA), onde j dirigiu a linha de

    investigao Identidades Sociais e Diferenciaes, bem como a revista Etnogrfica. O

    antroplogo realizou estudos em Portugal, Brasil e Espanha sobre os seguintes temas:

    masculinidades, movimento negro, ps-colonialismo lusfono e casamento entre pessoas do

    mesmo sexo. Entre as suas publicaes acadmicas, destaca-se a obra Senhores de Si: uma

    interpretao antropolgica da masculinidade, livro que se tornou uma referncia nos estudos

    de gnero sobre masculinidades. Miguel Vale de Almeida tem-se destacado tambm como um

    * Doutora em Antropologie et Sociologie pela Universit de Paris V. Professora do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected] ** Mestranda em Histria pele Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected] *** Mestranda em Histria Cultural na Universidade Federal de Santa Catarina. **** Mestranda em Histria pela Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected] ***** Mestranda em Histria pela Universidade Federal de Santa Catarina.

    Entrevista

  • Entrevista SOBRE MASCULINIDADES, ATIVISMO E ESTUDOS PS-COLONIAIS: entrevista com o antroplogo Miguel Vale de Almeida

    Carmen Silvia de Moraes Rial - Giovanna Maria Poeta Grazziotin - Juliana Bez Kroeger - Rochelle Cristina dos Santos - Cintia Lima Crescncio

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    dos principais intelectuais portugueses que atuam no movimento social LGBT (lsbicas, gays,

    bissexuais, transexuais, travestis e transgneros). Em 2009, foi eleito deputado da Assemblia

    da Repblica, o parlamento de Portugal.

    Tempo e Argumento: Qual foi a sua trajetria no campo dos estudos de gnero at a

    construo da obra Senhores de si?

    Miguel Vale de Almeida: At o livro Senhores de si, a trajetria foi pequena, porque este foi

    o meu primeiro livro.1

    Ele foi o resultado da tese de doutorado, no havendo grande percurso

    intelectual anterior. O que houve, sim, foi o curso de graduao em Antropologia, em Lisboa.

    O referido curso difere do sistema brasileiro porque ns tnhamos uma graduao em

    Antropologia de quatro anos. Fiz uma graduao de Antropologia durante quatro anos e,

    portanto, era um ensino muito aprofundado. Aprendi Antropologia e, depois, fui para os

    Estados Unidos fazer mestrado durante dois anos. Naquele pas, sim, tive um momento de

    encontro com as questes de gnero, que em Portugal estavam subdesenvolvidas. Era 1984 e,

    praticamente, no existia nada sobre gnero ou sexualidade na universidade portuguesa. Eu

    fui para a Universidade Estadual de Nova York estudar Antropologia do Desenvolvimento e

    Antropologia Econmica, com articulao tambm com o Centro Fernando Braudel, do

    Immanuel Wallerstein. L, tive uma professora que foi fundamental, a antroploga Catherine

    Lutz, que, hoje, professora na Brown University. Ela era uma pessoa que trabalhava

    questes relativas s emoes - a Antropologia cognitiva -, etc. Naquele momento, produzi

    um trabalho sobre homossexualidade para uma disciplina dela. Ela achou o trabalho

    fantstico. A partir de ento, comecei a me interessar por questes de gnero. Quando voltei

    para Portugal, em 1986, decidi trabalhar no doutorado sobre o tema das masculinidades. Na

    poca, eu achava que aquela rea ainda era desenvolvida dentro dos estudos de gnero.

    Realizei o trabalho de campo entre 1990 e 1991 e, em 1994, defendi a tese de doutorado. O

    livro Senhores de si estreou em 1995. O percurso, nessa poca, esse: de estudante.

    1VALE DE ALMEIDA, Miguel. Senhores de Si. Uma Interpretao Antropolgica da Masculinidade. Lisboa: Fim de Sculo, 1995.

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    Tempo e Argumento: A repercusso do seu trabalho sobre masculinidades na obra

    Senhores de si foi grande no campo dos estudos de gnero. O professor pode comentar

    sobre esse processo em Portugal e no Brasil?

    Miguel Vale de Almeida: A repercusso inicial foi no Brasil. Isso muito curioso. Em

    Portugal tambm teve repercusso, porm no tanto, porque a preocupao com a rea de

    gnero no estava to desenvolvida. Eu fiz depois uma edio inglesa do livro, que foi

    publicada na Inglaterra e nos Estados Unidos, simultaneamente. A obra teve algum sucesso,

    mas se confrontou com aquele establishment americano e ingls de alguns autores que

    dominavam a rea da masculinidade e nunca dialogaram comigo. Eu creio que uma questo

    dos processos de hegemonia acadmica. Antroplogos (provenientes) de Portugal ou do

    Brasil no valem nada, pois nunca houve dilogo com o meu trabalho. Em Portugal, o livro

    teve bastante repercusso tambm pelo fato de eu ser homem e estar trabalhando sobre

    gnero, uma rea que, at ento, era relacionada aos estudos de mulheres. Isso ajudou a abrir

    o campo dos estudos de gnero no pas. A partir da, o campo do gnero, em Portugal, passou

    a ser no mais especificamente feminino, mas feminino e masculino.

    Tempo e Argumento: Quinze anos aps a emergncia da obra Senhores de si, como o

    professor v o cenrio dos estudos de gnero no campo das masculinidades?

    Miguel Vale de Almeida: Atualmente, eu deixei de trabalhar especificamente sobre

    masculinidades. Eu trabalhei sobre masculinidade hegemnica, pois o meu propsito era

    explicar o processo atravs do qual um homem se torna heterossexual, patriarcal, etc. um

    processo construdo, ou seja, que no era natural. Mas, na realidade, o que eu fiz foi pegar um

    objeto que para mim era extico, uma vez que sou um homem homossexual e tenho uma

    perspectiva crtica sobre o gnero e a sexualidade. A heterossexualidade masculina era

    estranha para mim, e, portanto, necessitava ser explicada. Esse exerccio gerou algum efeito.

    Grande parte dos estudos sobre masculinidades deixou de ser apenas sobre os homens

    heterossexuais enquanto parceiros de mulheres heterossexuais e passou a considerar tambm

    a heterossexualidade como uma coisa que necessita ser explicada. Hoje em dia eu deixei de

    estudar a questo da masculinidade hegemnica e passei a trabalhar sobre outros assuntos:

    orientao sexual e, bastante, sobre questes homossexuais; estas ltimas, no enquanto

    antroplogo, mas enquanto ativista. uma histria bem complexa, pois, enquanto

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    antroplogo, eu trabalhei sobre masculinidade heterossexual; enquanto ativista, sobre

    homossexualidade.

    Tempo e Argumento: No Tempo Presente a relao entre a mdia e o saber acadmico

    modificou-se profundamente. Qual a sua experincia em relao a esse fenmeno?

    Miguel Vale de Almeida: uma experincia muito m e muito parecida com a relao da

    mdia com a poltica. A mdia sofreu transformaes muito fortes, deixando de ter a figura do

    jornalista intelectual, pelo menos na Europa. um mundo muito complicado. Os jornais e as

    empresas de televiso so grandes empresas, que funcionam para fazer lucro, inclusive certas

    televises do Estado. Os jornalistas deixaram de ser profissionais full time, passando a ser

    estagirios pagos de forma irregular e sem contrato de trabalho fixo. O que eles fazem

    buscar a notcia muito rpida ou telefonar para o acadmico para fazer uma pergunta idiota,

    sobre um assunto idiota e sem fazer o trabalho de casa, de tentar compreender os assuntos.

    Portanto, a relao entre a mdia e as Cincias Sociais muito complicada, porque nunca se

    pode dar uma resposta direta e concreta a um fenmeno, pois o jornalista no tem nem tempo,

    nem espao para contextualizar a complexidade dos fenmenos sociais. s vezes,

    interessante apenas no sentido de que ns podemos ajudar a legitimar certas coisas, uma vez

    que ainda h certo respeito estatutrio pelos acadmicos. possvel legitimar um determinado

    assunto, sobretudo com aqueles jornalistas mais antigos, que, por sua vez, assumem a defesa

    de certas causas. Eles falam com os acadmicos e tentam transformar o seu trabalho-

    reportagem em uma coisa capaz de influenciar a sociedade, isto , pegam aquilo que a

    academia faz e traduzem para uma linguagem jornalstica. Mas so muito poucos os

    jornalistas que fazem isso. A maior parte almeja apenas uma resposta para os eventos do

    cotidiano, normalmente com respostas j dadas quando a pergunta feita, ou seja, deseja uma

    confirmao das suas prprias expectativas enviesadas. Portanto, a relao entre mdia e o

    saber acadmico muito complicada.

    Tempo e Argumento: O senhor foi eleito deputado num pas de maioria catlica para

    defender bandeiras que contrariam preceitos, muitas vezes fundamentais desse iderio. O

    senhor poderia comentar sobre essa experincia no campo da cultura poltica?

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    Miguel Vale de Almeida: A primeira coisa que eu creio ser importante neste debate a

    questo do catolicismo, que precisa ser relativizada. Todos os jornais anglo-saxnicos e norte-

    americanos, quando foi aprovado o casamento gay, em Espanha ou, agora, quando foi em

    Portugal, vinham com a parania de sempre: pas catlico aceita casamento gay. Eu escrevi

    um artigo sobre este tema, que apresentei na Associao Americana de Estudos Portugueses.

    Os nossos pases possuem uma vivncia da religio diferente. Portugal, Espanha, ou mesmo a

    Itlia, so aquilo que alguns socilogos chamam de pases ps-catlicos, isto , o catolicismo

    a religio que a maior parte das pessoas afirma ter de ponto de vista descritivo-identitrio.

    a religio em que eu fui educado; aquela em que eu fui batizado, mas isso no tem nenhuma

    relao necessria com a prtica e a crena no catolicismo. Eu, normalmente, costumo afirmar

    aos meus colegas anglo-saxnicos que um indicador muito importante a taxa de frequncia

    dominical da igreja. Este um indicador utilizado para medir a forma como as pessoas se

    relacionam com uma religio, tal como a catlica. Em Portugal, no chega aos vinte por

    cento, ou seja, ningum vai igreja. Quando h inquritos sociolgicos sobre a autoridade do

    Papa e da Igreja numa srie de questes, voc indaga uma maioria esmagadora de

    autodenominados catlicos que, por exemplo, usam a plula anticoncepcional, a camisinha e

    que aceitam relaes sexuais pr-matrimoniais. Esta maioria que aceitou a legalizao do

    aborto. Ns tivemos um referendo em Portugal no qual foi aprovada a despenalizao do

    aborto, com setenta por cento dos votos. Ento os catlicos votaram a favor do aborto.

    Portanto, a forma sociolgica de entender a religio no pode ser automtica. O fato de as

    pessoas se descreverem como catlicas no significa que sejam praticantes, obedientes, etc.

    H uma tradio poltica muito forte em Portugal, que maior que a do Brasil, relativa

    tradio republicana laica, sobretudo depois do fim da ditadura em 1974. A ditadura estava

    associada Igreja Catlica. Com o fim da ditadura e o processo de democratizao, foi muito

    importante a separao do Estado e da Igreja. Tivemos o reforo da tradio laica republicana

    da Primeira Repblica de 1910, que tinha sido terminada pela ditadura de Salazar. Em

    Portugal, h uma tradio popular anti-clerical muito forte, mesmo no campo. As pessoas

    dizem-se catlicas, mas desobedecem Igreja. H uma separao muito forte entre o

    catolicismo, como uma prtica privada e da comunidade e a obedincia Igreja. As pessoas

    autonomamente organizavam as festas, as romarias, as peregrinaes etc., e desobedeciam ao

    padre sistematicamente se este no correspondesse vontade coletiva. Uma religio dividida

    no sentido de uma tradio anticlerical contra os padres e contra a gide da Igreja. A grande

    batalha de gnero e sexualidade em Portugal foi o aborto. Ns tivemos uma revoluo em

    1974, que constituiu uma ditadura e tivemos um processo revolucionrio de esquerda muito

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    forte, que depois terminou, transformando-se num processo de democracia liberal, seguido da

    entrada na Unio Europeia. Aquilo que ns chamamos normalizao, ou seja, uma

    democracia liberal, em que todos os direitos praticamente foram garantidos: a lei do divrcio,

    a igualdade plena entre homens e mulheres, leis contra a violncia de gnero, etc. S que

    faltava a questo do aborto. Essa no se conseguia resolver, pois a hierarquia da Igreja

    Catlica pressionava os governos no sentido de no permitir isso. Houve um primeiro

    referendo, que surgiu na seqncia de um problema. As coisas em Portugal no se decidiam

    atravs de referendo, mas houve uma lei no parlamento para liberalizar o aborto. Esta lei

    estava praticamente aprovada porque havia uma maioria de esquerda no parlamento. Todavia,

    na ltima hora, o Primeiro Ministro, socialista poca, que era catlico praticante, fez um

    acordo com o lder da oposio, que era antiaborto, decidindo convocar um referendo. Estes

    afirmavam que era um assunto muito importante e no podia ser decidido no parlamento. Esse

    referendo ns perdemos, porque no foi vinculativo, isto , pouca gente foi votar. Portanto, o

    referendo no teve efeito de lei; mesmo assim, ganharam os adversrios da despenalizao do

    aborto. Para ser feito outro referendo, foi necessrio esperar um perodo de anos. Houve uma

    luta muito grande do movimento feminista e da esquerda em geral no sentido de fazer um

    novo referendo. Finalmente, fizemos o referendo em 2008. Ns mudamos completamente o

    tom da campanha. Este fato talvez seja importante para as brasileiras e os brasileiros em

    termos de estratgia. Tivemos de deixar de utilizar um discurso feminista mais radica,l

    relacionado com o direito da mulher ao corpo. Por outro lado, utilizamos o discurso da

    igualdade de direitos e da autonomia das pessoas. Ganhamos o referendo com uma maioria

    esmagadora de votos. Foi uma derrota histrica para a Igreja. Quando teve incio o debate da

    questo do casamento gay (em Portugal), a Igreja no se manifestou, ao contrrio da Espanha

    ou da Argentina. Porque que ns escolhemos o casamento gay? E quem o ns? H vrios

    ns estou falando em movimento social, lsbicas, gays, bissexuais e transgneros (LGBT),

    que muito diverso em Portugal. H um ncleo central que mais moderado, do ponto de

    vista das posies polticas, e que, a partir de 2003, escolheu a questo do casamento gay

    como a questo central. Ns verificamos o casamento, que o casamento era de fato, como eu

    chamo no meu livro, a chave do armrio. Era aquela mudana legal que permitia todas as

    outras. Por qu? Por vrias razes, que tm a ver com a idia de reconhecimento. Quando uma

    sociedade, a lei e o Estado afirmam que duas mulheres ou dois homens podem casar, isto ,

    podem ascender ao smbolo mximo de reconhecimento da sexualidade e conjugalidade,

    significa que so iguais aos outros. Portanto, esse lado simblico do casamento que nos

    interessava. Interessava-nos menos a questo dos direitos civis, porque isso j tnhamos. Em

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    Portugal, havia uma lei que regulamentava a unio civil desde 2001. Eu vivia de acordo com

    ela e tinha praticamente todos os direitos de um casamento. Ento, concentramos a estratgia

    toda nessa reivindicao: Casamento! Casamento! Casamento! E tanto fizemos que

    convencemos a sociedade portuguesa, aos poucos, atravs da mdia. Neste caso, a mdia

    televisiva foi importante, com grandes programas de debate sobre o assunto. Mas tnhamos

    um problema poltico. No espectro poltico-partidrio s a extrema esquerda apoiava a nossa

    causa. Ns percebemos cedo que no conseguiramos nunca aprovar o casamento gay apenas

    com o apoio da extrema esquerda. Precisvamos do apoio do setor central da poltica, que em

    Portugal o Partido Socialista, equivalente ao Partido dos Trabalhadores, no Brasil.

    Conseguimos faz-lo atravs de muito lobby. Finalmente, com esse primeiro ministro do

    Partido Socialista, eles colocaram a questo do casamento gay no programa eleitoral. O

    Partido Socialista ganhou as eleies, sendo depois relativamente fcil no parlamento

    conseguir uma maioria de esquerda que aprovou a lei.

    Tempo e Argumento: A emergncia dos estudos culturais colocou em cena sob outro

    paradigma: a relao entre os pases europeus e os que foram colnias, entre os sculos 16 e

    19. O professor pode comentar sobre este processo histrico, tendo em vista o caso Portugal,

    Brasil e os pases africano?

    Miguel Vale de Almeida: Eu pesquisei muito sobre este tema em termos da chamada teoria

    ps-colonial, mas sempre em relao ao caso portugus, brasileiro e dos pases africanos de

    lngua portuguesa. Colegas brasileiros, portugueses e eu temos trabalhado muito em conjunto;

    produzimos um livro chamado Trnsitos Coloniais, que trata sobre essa questo.2

    2 FELDEMAN-BIANCO, Bela; BASTOS, Cristina; VALE DE ALMEIDA, Miguel (Org.). Trnsitos Coloniais: dilogos crticos luso-brasileiros. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.

    Nossos

    estudos dialogam, mas tambm fazem oposio denominada teoria ps-colonial produzida

    pela academia norte-americana e inglesa. Por qu? Porque achamos que o processo colonial

    em Portugal foi um processo diferente do ingls e do francs, uma vez que foi constitudo a

    partir de um Estado muito fraco e pobre. Ao mesmo tempo que afirmamos que foi um

    processo colonial diferente, no procuramos subscrever as idias do luso-tropicalismo, que

    so ideologicamente falsas. O grupo tem realizado estudos no sentido de perceber o que

    especfico no colonialismo portugus e no ps-colonialismo em lngua portuguesa, sem

    necessariamente aceitar as premissas do luso-tropicalismo, com o qual, como afirmei, no

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    concordamos. Uma das questes fundamentais na situao ps-colonial em relao lngua

    portuguesa perceber que o Brasil no exatamente uma ps-colnia. legtimo afirmar que

    o Brasil ficou independente de Portugal em 1822. Por outro lado, legtimo afirmar que

    Portugal ficou independente do Brasil, porque no existia uma relao de poder colonial e de

    colnia no sentido de um grande pas forte, com uma grande economia e um exrcito forte e

    uma pequena colnia de povos indgenas colonizados. O que existia era um mundo luso-

    brasileiro nico, em que o Brasil, inclusive, tinha uma fora econmica e demogrfica

    enorme. Muitas vezes, era a partir do Rio de Janeiro que a sociedade colonial era gerida.

    Angola era administrada pelo Brasil e por Portugal, contexto, alis, historicamente nico. Eu

    acho que ns temos que lev-lo a srio porque eles continuam visveis hoje em dia. O tipo de

    relao entre Portugal e Brasil, ou entre Portugal e frica, ou, ainda, entre Brasil e a frica de

    lngua portuguesa no o mesmo tipo de relao que a Inglaterra possui com as suas ex-

    colnias. No porque seja boa, simptica, cordial, luso-tropical, no, porque diferente do

    ponto de vista do contexto histrico, econmico e social que criou o mundo colonial. Esta

    uma pesquisa que historiadores e antroplogos esto fazendo continuadamente, ao longo dos

    anos, no Brasil e em Portugal.

    Recebido: Outubro/2010 Aprovado: Novembro/2010

    Florianpolis, v. 2, n. 2, p. 249 256, jul./dez. 2010