29203260 Engenheiros Do Hawaii Da em a Mandala Versao Preliminar

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marcos carvalho lopes

Engenheiros do Hawaii:da engrenagem mandala-verso preliminar-

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Engenheiros do Hawaii:da engrenagem mandala -verso preliminar-

foguetinho

produes

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Introduo : vertigens como horizonte A filosofia e o desafio da realidade A utopia socialista e a resposta ctica: o anarquismo Somos quem podemos ser, sonhos que podemos ter Tdio, TV e democracia Despotismo Esclarecido na Hora do Mergulho Freud Flintstone e os deuses da propriedade privada Novos Horizontes dos Engenheiros do Hawaii Dar sentido p'ra existncia: um esporte (extremamente) radical Luz, onde esto teus olhos

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T legal, eu t ligado! O Paradoxo de Marta e outras interrogaes 48 Quando as armas qumicas no esto l... quando os poemas nos enganam Faz de conta que o mundo no est ficando Cinza Da engrenagem mandala Discografia dos Engenheiros do Hawaii Sites Enghaw Comunidades Enghaw no Orkut Cruzando linhas: perfeita simetria e absurdo 51 57 68 72 83 84 85

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Sei que este trabalho bem cambaleante e talvez no merea ter uma dedicatria ou coisa assim, mas cada um oferece o que tem... vale lembrar que estes textos no seriam concebidos se no partissem de minha vontade de tentar olhar para as letras dos Engenheiros do Hawaii com o cuidado e ateno que meu irmo (verdadeiro engenheiro) me ensinou. Entram outros estrangeiros nessa busca por ilhas desconhecidas: o jornalista Paulo Galvez, o fsico tricolor-carioca Renato Borges Pontes, a jornalista Karen Terossi, a amiga Glucia Qunia Pires, minhas ex-alunas(os)... Talvez violo, conversas existencialistas, silncios compartilhados, pisca a janela do MSN, cereais fermentados de manh, absurdas nuseas e rompantes: amizade, nostalgia infantil de juntar tudo numa coisa s. Os livros que a gente leu, as msicas que a gente ouviu e a vida que a gente inventa. No meio de tudo, tem Engenheiros do Hawaii (no MP4).

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Introduo: vertigens como horizonteO que este trabalho? Para que e para quem ele til? Qual a sua pretenso? Nesta introduo tentarei dar alguma resposta para essas perguntas, mas, de modo rpido posso dizer que esse trabalho pretende aboradar temticas filosficas tomando por referncias algumas letras de canes da banda Engenheiros do Hawaii (letras de Humberto Gesinger). Considero que ele til como material didtico, para quem quer se aproximar de algumas temticas filosficas a partir dos signos de nosso tempo e para quem f dessa banda. No incio do curso de filosofia, fiz um trabalho sobre Ortega y Gasset em que relacionei o pensamento sociolgico desse autor em O hcom um conto de Rubem Fonseca. Nele falei de uma cano dos Engenheiros do Hawaii que citava o filsofo espanhol e, para mim, trazia uma boa imagem de seu pensamento sociolgico. Para Ortega y Gasset o homem sempre vive em determinadas circunstncias, contudo, essas no determinam totalmente sua identidade e nem retiram sua responsabilidade. A frase mais famosa de Ortega y Gasset diz: eu sou eu e minhas circunstncias, se no me salvo a elas, no me salvo a mim mesmo. Quem se deixa simplesmente levar pela correnteza, abandona seu eu e se torna circunstncia: essa indiferena para o filsofo espanhol a porta de entrada

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do fascismo. Na letra de Humano Demais, Humberto Gessinger dizia a certa altura: agora somos s nos dois: eu e minhas circunstncias/ sempre foi s nos dois: eu e minhas circunstncias/ eu e eu e eu e eu e eu.... O que Ortega y Gasset queria era no dissolver a responsabilidade individual em justificaes coletivas (falava em liberalismo no individualista ). Uma cano dos Engenheiros do Hawaii me ajudou a pensar sobre esse assunto. Outra coisa que acho importante falar sobre Ortega y Gasset que sua frase apareceu num livro estranho chamado Meditaes sobre o Quixote. como se nessa obra, passeando pelas ruas de Madrid o jovem Ortega y Gasset procurasse caminhos para fazer filosofia: as circunstncias espanholas, a ausncia de uma tradio anterior, no seriam pesar desculpas suas para ele deixar de pensar as filosoficamente. Era necessrio salvar as aparncias, circunstncias. Considerando semelhanas entre o contexto de Ortega y Gasset na Espanha do incio do sculo XX e o Brasil atual, cheguei a considerar a possibilidade de escrever algoO filsofo espanhol Jose Ortega y Gasset

como Meditaes sobre o Casmurro, mas s o ttulo veio... a idia era falar do ressentimento e dos ataques ad hominen que impedem um maior

desenvolvimento da filosofia em nosso pas. Quem tenta pensar a partir de suas circunstncias e considerado frvolo e recriminado por suas idiossincrasia. Essa experincia de tentar juntar linguagens e mixar cultura continuou me fascinando, mas dentro da universidade no tive espao para exercitar esse tipo de perspectiva. Quando comecei a dar aulas, sete anos atrs, percebi o quanto o discurso filosfico carecia de conexes com a realidade dos alunos.

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Considerei at mesmo que, se era para cair no vazio de um discurso estril, talvez fosse melhor continuar com a velha Educao Moral e Cvica... Bobagem: se nada faz sentido, o melhor arregaar as mangas. No caso de quem saiu da faculdade com pouco preparo e encontra condies de subemprego, bom tentar se inventar como professor e continuar estudando. Para se inventar como professor preciso se arriscar, assumir a primeira pessoa que traz junto a responsabilidade: se na faculdade nunca te deram voz, na sala de aula voc quem deve promover o dilogo... ou repetir o padro de desconversao que o mais comum. Quando falo em promover o dilogo, no estou dizendo que no devem existir contedos que norteiem o trabalho; dilogo sem direo no produz resultados (e os prprios alunos so os primeiros a perceberem isso). Empolgam-se com a possibilidade de ter voz e exercem a retrica do quem fala mais alto vence. O professor nesses casos pode usar culos escuros e sentar-se no fundo da sala. No fim do ano os alunos diro que tiveram aulas legais, mas que no aprenderam nada.... E no aprenderam mesmo. No sei se possvel equilibrar bem a questo do dilogo com a importncia dos contedos. Acho que na faculdade os alunos devem ser orientados e desenvolver sua posio individual (para serem bons professores, profissionais dinmicos, pesquisadores etc.) e, no ensino mdio, o professor deve oferecer os contedos bsicos para que o aluno possa seguir os seus objetivos (que podem incluir entrar em uma universidade). Se esses contedos puderem ser contextualizados e assim integrados na vida dos alunos, muito melhor.1Na prova de vestibular da Universidade Federal de Uberlndia, como contedo programtico da prova de filosofia, exige-se que o aluno conhea as cinco vias parar provar a existncia de Deus, desenvolvidas por Santo Anselmo. Infelizmente no consigo contextualizar esse contedo e no entendo sua relevncia na formao dos alunos... mas, se meu aluno quiser prestar vestibular na UFU? minha responsabilidade tentar ensinar essas cinco vias para provar a existncia do sagrado. Acho que seria melhor que os contedos no fossem esses... mas no vivo em um mundo ideal. Posso criticar essa necessidade1

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Nos textos que coloquei aqui, tento abordar contedos de filosofia e histria atravs de canes. Alguns so antigos planos de aula, outros so reflexes sobre a prpria filosofia e este mesmo trabalho de pens-la por meio de signos do nosso tempo. Todos fazem referncia a alguma letra da banda gacha Engenheiros do Hawaii. Na verdade, melhor dizer que todos fazem referncia a letras de canes escritas por Humberto Gessinger. Esses textos no tm a pretenso de determinar os que as letras dizem na realidade, nem pretendem seguir a inteno do autor, mas sim, utilizar as canes para multiplicar referncias e pensar alguns temas. Na verdade, acho que, nos textos mais antigos eu pensava mesmo que estava desvendando algo pro-fundo (li muito Martin Heidegger na faculdade), mas, aos poucos, deixei de lado esse fetiche: deveria deixar claro que fazia uma leitura e no poria fim ao dilogo. Queria era comear um com meus alunos. A repercusso s vezes demorava, mas era engraada: numa das primeiras vezes que utilizei msicas em aulas de histria, a cano Freud Flintstone, a princpio os alunos me pareceram passivos... Na semana seguinte, indo para sala de aula, encontrei um grupo perfilado, que me vendo comeou a cantar faa uma prece pra Freud Flintstone.... Ainda bem que na parte onde a cano fala em queim-lo vivo j estava longe... A letra de Freud Flinstone fala de algum/algo que venerado, colocado em um altar, para, a seguir, ser execrado e destruido. O caminho de identificao fcil que a msica pode produzir potencializa riscos que esto presentes em qualquer processo de ensino: de que uma identificao inicial se torne averso. necessrio que o professor esteja alerta para n~so se deixar seduzir por este canto de sereia, caso contrrio, tanto ele como seus alunos sero vtimas. As canes so um estmulo, mas no existe aprendizado sem esforo e dedicao. Podem servir para comear um

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dilogo e conseguir uma abertura para a aprendizagem, mas no so o seu fim. O texto que serviu de nome para essa maaroca, Da Engrenagem mandala uma tentativa de construir uma espcie de panorama da trajetria dos Engenheiros do Hawaii.2 Acredito que essa tentativa acabou se mostrando falha e me fez sentir a necessidade de desenvolver um trabalho mais extenso, em que colocaria a prova e esclareceria o que nesse texto aparece como vaga intuio. No entanto,isso demora algum tempo, pesquisa3 , leitura, caf e insnia... O filsofo alemo Karl Jaspers dizia que filosofar estar-caminho... o horizonte final o que menos importa, existe alegria em caminhar e errar. Esta highway nos trouxe at este ponto, mas sempre ser preciso seguir... Por enquanto, esto estes textos aqui; se servirem para um professor desenvolver uma aula, ou algum se interessar por novas perguntas, estaro plenamente justificados. Int.

Marcos Carvalho Lopes ([email protected] ) Jata, 16 de Agosto de 2007PS: No mexi quase nada nos textos (mesmo quando pensei que eles no correspondiam mais ao que escreveria hoje). Esto como uma coleo de instantneos e espero depois ampli-la... Como sempre, obra em progresso... j me alertaram sobre minha tendncia academicista de empilhar citaes, o que faz com que os leitores tenham dificuldades em saber exatamente o que estou querendo dizer. Isso realmente2

Escrevi na vspera do show que a banda fez aqui em Jata: foi o primeiro e nico show deles que assisti. Para fazer um relato bem parcial e exageradamente exagerado: foi aqui que comeou o projeto Novos Horizontes. que, conversando com outros fs, fiquei sabendo que o empresrio da banda tinha proposto para o show inovaes tcnicas: Gessinger subiria no piano e esse seria elevado. Uma engenhoca o faria rodar. Parece que Herr Gessinger no gostou deste negcio e no ensaio renegou a idia: nesse troo eu no subo. O show no trouxe surpresas, foi o do script literalmente. No me decepcionei, mas... depois de uma pequena pausa, de frias, a banda voltou com arranjos reformulados, novos instrumentos e outras canes. Novos Horizontes. 3 Estou atrs de entrevistas dos Engenheiros do hawaii. Quem tiver algum material desse tipo e puder me disponibilizar, agradeo...

10 um problema quando no estou na sala de aula p'ra tentar com o dilogo ser mais claro ou descobrir falhas... ento se tiverem crticas me avisem: p'ra tentar melhorar.Vale lembrar que existem muitos textos para serem feitos: diversas outras msicas dos Engenheiros podem ser usadas para desenvolver planos de aula: como Muros & Grades para falar de Foucault, Infinita Highway para falar da gerao beat, existencialismo etc...

Os Engenheiros do Hawaii hoje:Pedro Augusto(piano, orgo), Humberto Gessinger(voz, violo, viola caipira, gaita etc), Glucio Ayala (bateria e vocais); sentados esto Bernardo Fonseca (baixo) e Fernando Aranha (violo).

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A filosofia e o desafio da realidade

Qual seria a medida para o desafio de ensinar filosofia no ensino mdio noturno, num colgio em que voc v um aluno que, por ter comprado livros didticos (de portugus e de matemtica ) criticado pelos colegas de sala por ter gasto dinheiro toa? Criticas essas que no advm de nenhuma ignorncia, mas do instinto de sobrevivncia de quem recebe salrio-mnimo; de quem trabalha o dia todo e noite vai escola sem a iluso de encontrar ali um instrumento de emancipao. Some-se a isso, um contexto educacional em que, para fazer jus as estatsticas, confunde-se quantidade com qualidade: as escolas devem atender a maior quantidade possvel de alunos, oferecendo para eles ensino, o que, do ponto de vista da administrao (a que as escolas esto submetidas, dentro da lgica capitalista de buscar sempre o lucro ), significa aprovao. O quadro fica completo com a incluso de alguns alunos que so analfabetos funcionais, vitimas (ou frutos) de programas de acelerao de ensino falhos. A filosofia, que nasce do cio, deve perder nesse contexto todo o seu rano aristocrtico-platnico e abrir-se para o dilogo. O mximo que podemos pedir da filosofia isso: abertura para a realidade, ou seja, para falar sobre os problemas enfrentados pelos alunos, para incluir temas que os toquem. Se hoje vivemos governados por imagens, pela mdia e seus dolos, acho que esse o caminho que devemos tomar para comear a filosofar com nossos alunos. Por isso, escolhi como um grande aliado para esse trabalho a msica, partindo de letras que incluem temticas filosficas. A tentativa surpreender os alunos, mostrando que naquilo que lhes toca esteticamente existem reflexes que, na maioria das vezes passa despercebida.

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Por exemplo: a cantora baiana Pitty, h pouco tempo, lanou uma msica chamada Lobo, que no refro repete a frase de Thomas Hobbes o homem o lobo do homem. Por que Pitty diz isso? Que relao tem a msica com a teoria de Hobbes? Que sentido a teoria de Hobbes pode ter no mundo atual? Podemos partir da msica para apresentar uma teoria poltica complexa (e, mesmo, para mostrar at que ponto o artista se afasta do autor que usa ). No se trata de um exemplo isolado. Capa do primeiro lbum da cantora baiana Pitty. Seu nome, admirvel chip novo, faz aluso ao livro de Aldous Huxley (18941963) Admirvel mundo novo. A tentativa de pensar o lugar do homem em sua relao com o universo tecnolgico marcou este seu primeiro trabalho.

uma caracterstica de diversas bandas do chamado rock nacional, tentar articular um discurso coerente partindo de referncias filosficas. claro, no se trata de filosofia pura, mas de citaes filosficas que podem servir de instrumento para aguar a curiosidade dos alunos para a filosofia. No devemos ter medo de ferir a sacralidade da filosofia partindo de msicas, cinema, novela, etc. Se a filosofia nasce do cio, esse o caminho para pensar nossa realidade. Ou teremos que nos render as palavras de Caetano Veloso, que nos anos 80 provocava os pensadores tupiniquins dizendo que, se voc tem uma idia incrvel, melhor fazer uma cano/ j est provado que s possvel filosofar em alemo. Nesse caminho, devo lembrar de dois riscos que devemos estar dispostos a enfrentar. O primeiro, pode ser ilustrado por uma msica dos Engenheiros do Hawaii chamada Fuso a Frio que diz: ningum sabe como sero os filhos desse casamento/ indstria da informao + indstria do entretenimento, / Promessas de fuso a frio, diverso e conhecimento, / a nica escolha que temos a forma de pagamento. Ou seja, o risco transformar a filosofia em mais um produto, em mais uma imagem: no

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podemos esquecer que estamos tentando usar a msica para filosofar, e no o contrrio. Precisamos ento ter claro qual o nosso objetivo e, se pudermos alcan-lo combinando diverso e conhecimento, tanto melhor. O segundo risco o de fracassar. Podemos preparar uma aula que consideramos muito boa e, no entanto, fracassar. Como na filosofia no temos contedos fechados, o professor est sempre em jogo, e, por isto mesmo, no deve ter medo de errar. Em certo sentido errar essencial: estar caminho, arriscar-se e estar aberto para tambm acertar. A filosofia exige que se assuma esse risco, que se torna menor na medida em que cada professor consegue aperfeioar seu prprio mtodo. O Brasil comea a se acostumar com a democracia e tambm desperta para a idia de que precisa se reinventar enquanto sociedade tambm democrtica: a Ditadura no veio de Marte, nem a corrupo, nem a desigualdade social etc. A cultura deve ser questionada caso se queira criar alternativas e caminhos de transformao. No acredito que a filosofia, tomada como produto de erudio ou como questionamento escapista, possa contribuir para a democracia. O desafio do dilogo com a realidade algo de que a filosofia no pode se furtar

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A Utopia socialista e a resposta ctica: o AnarquismoEste texto foi preparado para uma aula no ensino mdio como principio de debate. Tinha alguns alunos punks e o smbolo do anarquismo vivia aparecendo no quadro, nos cadernos, em suas roupas, nos murros etc. Achei que essa cano dos Engenheiros do Hawaii seria um bom princpio para dialogar. toda forma de poder (Humberto Gessinger) Eu presto ateno no que eles dizem Mas eles no dizem nada Fidel e Pinochet tiram sarro de voc Que no faz nada E eu comeo a achar normal que algum boal Atire bombas na embaixada Se tudo passa, talvez voc passe por aqui E me faa esquecer tudo que eu vi Se tudo passa, talvez voc passe por aqui E me faa esquecer Toda forma de poder E uma forma de morrer por nada Toda forma de conduta Se transforma numa luta armada A histria se repete Mas a fora deixa a estria mal contada Se tudo passa, talvez voc passe por aqui E me faa esquecer tudo que eu vi Se tudo passa, talvez voc passe por aqui E me faa esquecer O fascismo e fascinante Deixa a gente ignorante fascinada E to fcil ir adiante E esquecer que a coisa toda est errada Eu presto ateno no que eles dizem Mas eles no dizem nada Se tudo passa, talvez voc passe por aqui E me faa esquecer tudo que eu vi Se tudo passa, talvez voc passe por aqui E me faa esquecer...

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Qualquer pessoa que tenha lido a histria da humanidade aprendeu que a desobedincia a virtude original do homem. Oscar Wilde

Hoje em dia comum que, de vez em quando, a gente encontre por a, pichado nos muros, ou em cadernos e mochilas, o smbolo do anarquismo. Porm, de se duvidar de que as pessoas que os ostentam se preocupem, ou mesmo, saibam o que significa, em termos de proposta poltica, o anarquismo. Isto se deve, em grande parte, ao fato do anarquismo no ser algo sistemtico, que possa ser descrito de maneira rgida. Mesmo o seu principal terico, Bakunin (1814-1865), no deixava as coisas claras, j que dificilmente conclua as obras que comeava. Nem por isso devemos cair no erro fundamental de confundir anarquismo com baguna. O anarquismo surgiu historicamente como uma espcie de dissidncia do marxismo. Karl Marx achava que os trabalhadores deveriam tomar o poder e manter uma espcie de ditadura ( a ditadura do proletariado) a fim de evitar que a burguesia retornasse (com uma contra-revoluo). O estgio em que o Estado estaria nas mos dos trabalhadores seriaKarl Marx

o socialismo, que, aos poucos seria substitudo pelo Bakunin considerava Marx otimista e ingnuo: o poder corrompe

comunismo, onde no haveria mais espao para Estado ou luta de classes. as pessoas e quem quer que o tome, acaba por quer-lo para si. Qualquer classe, ao chegar ao poder, dele se apossaria. A ditadura do proletariado acabaria construindo uma hierarquia de funcionrios pblicos e tecnocratas que haveria de querer perpetuar-se como dominante. A soluo estaria em

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tentar o salto direto para o comunismo, que seria uma espcie de governo sem governantes: o anarquismo (anarquismo significa sem governante). O anarquismo no constituiria partido ou teses dogmticas, evitando toda forma de poder, ele seria um movimento vivo, como um organismo, fundado na cooperao e no na organizao burocrtica. Os anarquistas no acreditam na representao poltica e procuram limitar o espao para esse tipo de prtica ao mnimo possvel: quando necessrio se elegeriam delegados com o tempo de mandato limitado e sujeito a revogao. O anarquismo previa a supresso da propriedade privada dos meios de produo, que daria lugar a cooperativas, onde as decises seriam comuns. D mesma forma os anarquistas negam a Igreja: para afirmar o homem, preciso negar Deus. Em certa medida, podem-se comparar as idias anarquistas com a democracia radical de Jean-Jacques Rousseau. Pode ser considerada herana anarquista a idia de oramento participativo: o importante manter a consulta direta as pessoas envolvidas.4 O anarquismo em poucos momentos teve uma verdadeira fora poltica: ganhou espao no sindicalismo (que desembarcou no Brasil juntamente com os italianos) entre o fim do sculo XIX e incio do sculo XX, e teve seu momento de maior fora durante a Guerra Civil Espanhola.

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Janos Biro, filsofo que muito me incentivou com sues comentrios e participao no blog filosofia pop, quanto a esse texto ponderou: A idia do anarquismo para mim que no existe uma forma correta de reger a humanidade, logo o prprio anarquismo no poderia ser isso. Ele no uma proposta, um questionamento somente. As pessoas que o transformam em proposta para mim deixam de ser anarquistas. A anarquia no faz parte da histria. A histria de colocar coisas como oramento participativo como cristalizaes do anarquismo um erro ento: quem participa do oramento participativo? O problema que o anarquismo ento ficaria como promessa: um substituto secular para as religies? No, o anarquismo estaria fora da histria porque assim consideramos a pr-histria, como me explicou Janos, mas se considerarmos a histria do ser humano, ela foi a maior parte da histria, pois no havia a idia de que existe uma forma correta para os seres humanos se organizarem.

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A desobedincia civil de Mahatma Gandhi, na luta pela independncia da ndia pode ser considerada um exemplo de prtica anarquista. Aps a Segunda Guerra Mundial o anarquismo foi trivializado ressurgindo em diversos movimentos que parecem muito mais expressar o individualismo da burguesia capitalista: como no caso do movimento hippie, do maio de 1968, ou mesmo do movimento punk. Rejeitar o poder poltico uma coisa, recusar-se a participar dele, mas tentar fazer o pentgono levitar j algo muito desgovernado, mas que, ainda assim, gerou resultados: Em Outubro [de 1967, contra a Guerra do Vietn], em Washington, 50 mil pessoas marcharam sobre o Departamento de Defesa. Vestidos como vagabundos, risonhos como palhaos, carregavam flores, sugeriam que se fizesse amor e no guerra. Nessa manifestao que o professor americano Allen Matusow chama de um dos mais significativos acontecimentos da histria dos Estados Unidos, um grupo de hippies tentou fazer levitar o Pentgono. A imensa construo, que abriga os maiores corredores do mundo, no levitou, mas hoje se sabe que por conta daqueles hippies ela sem dvida saiu do lugar5.

Evangelina Carrozzo protesta contra a construo de uma fbrica de celulose na fronteira da ArgentinaUruguai(em 2006). Todos prestaram ateno em sua causa.5

Gaspari, Elio. A roda de Aquarius In: A Ditadura Envergonhada So Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.234

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Somos quem podemos ser, sonhos que podemos terPara Wallace Stevens a imaginao a mente reagindo presso da realidade. No entanto, o que chamamos hoje de realidade seria simplesmente a imaginao dos mortos: desta forma, ser realista outro nome para o conservadorismo. Precisamos da imaginao para inventar novos caminhos, seja para a nossa vida pessoal, seja para a sociedade como um todo. O grafite de Maio de 1968 a imaginao no poder surgiu como uma metfora que no parecia fazer sentido: apontando para uma utopia romntica que no trazia consigo a bandeira vermelha do socialismo, ou melhor, que no se deixava dobrar por nenhuma formula pronta. O existencialismo vai ser o que fizermos dele, dizia Sartre. Dizia tambm que o homem no tinha uma essncia e seria resultado de suas aes. Para John Lennon o rock seria o que fizermos dele. Para os jovens de ento a poltica deveria ter essa mesma abertura para o novo. O que seria esse novo? O que nossa imaginao permitir. O grande inconsciente da sociedade atual est implantado justamente na incapacidade de pensar em alternativas: as coisas so como esto e no existem alternativas. Essa para Slavoj Zizek a grande ideologia ps-moderna. Se antes a ideologia se dava no nvel do saber, ou seja, promovendo certo ocultamento; hoje ela se d no nvel do fazer: todos sabem, mas continuam cinicamente fazendo o que sempre fizeram. Como um nazi-fascista que justificasse seus crimes falando em premissas sociolgicas e culturais, mas continuasse com seu comportamento violento e preconceituoso, tomando-o como natural. Vemos o aquecimento global, a destruio das reservas naturais, o colapso de nosso sistema energtico etc.,

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e no consideramos a possibilidade real de pensar em alternativas: mais cmodo imaginar o fim-do-mundo! Essa situao representada bem pelas palavras de jovem Theo, protagonista do romance Sbado de Ian MacEwan, que com seus 18 anos renega qualquer utopia poltica:Quando pensamos nas coisas grandes a situao poltica, o aquecimento global, a pobreza mundial , tudo parece realmente terrvel, nada est melhorando, no h nada a esperar. Mas, quando penso pequeno, mais perto voc sabe, numa garota que acabei de conhecer ou na cano que estou compondo com Chas ou em fazer "snowboard" no ms que vem, tudo parece timo. Por isso, este ser meu lema: Pense pequeno"6. H pouco tempo, atrs Humberto Gessinger soltou uma nota no site dos Engenheiros do Hawaii sobre a msica Somos quem podemos ser, dizia: Uma questo especfica de um cara que est estudando a cena musical recente talvez interesse a mais algum: ele pergunta sobre Somos Quem podemos Ser. Me lembro que esta msica provocava duas crticas. A primeira delas de que soava muito brasileiro, clube da esquina. 7 Eu tomava isso como elogio e agradeo ao acorde com stima aumentada. A segunda crtica se referia a uma possvel passividade da letra. Acho uma leitura apressada. No estou dizendo que s podemos ser o que j somos... estou dizendo que somos tudo que pudermos sonhar... eu acho... na verdade s parei pra pensar nessa msica por que o menino perguntou... e s pensei no refro... pensar em msica pra mim parecido com fazer exame de sangue.... O sangue mesmo burro: corre nas veias sem saber. S na hora de fazer exame sabemos que ele existe. Se Gessinger no sabe bem o que

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Citado por Richard Rorty em Nusea em Londres. Folha 05/02/2006

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0502200616.htm7

O Clube da Esquina, movimento musical que surgiu em Minas Geraes em meados da dcada de sessenta e renovou a msica popular brasileira. Contou com nomes como Milton Nascimento, L Borges, Beto Guedes, Toninho Horta etc. Confira em http://www.museuclubedaesquina.org.br/

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queria dizer, tem certeza do que no queria... No sei para onde vou, s sei que no vou por a, como no poema de Jos Rgio.8 Essa cano comea com os versos: um dia me disseram que as nuvens no eram de algodo um dia me disseram que os ventos s vezes erram a direo e tudo ficou to claro um intervalo na escurido (uma estrela de brilho raro um disparo pra um corao) O que se descobre, o grande segredo que aqui se desvenda, parece ser justamente o grande sintoma da ideologia: no se trata de encontrar um rosto atrs da mscara, mas do fato de que sempre existe uma mscara. Ao se descrever o sintoma a repetio se desfaz. No a toa que, para Lacan, foi Karl Marx quem descobriu o sintoma ao analisar a transio do feudalismo para o capitalismo: se na ordem feudal existiam relaes formais de subordinao, nas categorias de suserania e vassalagem, na ordem capitalista essa situao foi camuflada pela liberdade de cada qual para vender sua fora de trabalho. Existira a dominao, mas no existiria mais aparentemente o dominador. Perspectivas tomadas como naturais de repente aparecem como construtos sociais: exatamente isso que Marx desvendou ao analisar o fetichismo da mercadoria na sociedade capitalista. O que era raro torna-se comum ao ganhar valor de mercado. Todas as coisas devem se adequar a esse padro. Como numa propaganda recente de carto de crdito, que dizia o preo de vrios itens de consumo e a seguir apontava para uma determinada satisfao emocional do consumidor, concluindo: certas coisas no tem preo, para as outras voc tem o carto de crdito x. Justamente ao pontuar que certas coisas no8

Leia este poema em: http://www.astormentas.com/regio.htm

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tem preo a propaganda quer vender carto de crdito, colocando tudo (at os sentimentos) nesse jogo de valorao mercadolgico. Normalizam-se as diferenas, aparam-se as arestas e tudo se torna igual.

Charge de Andrews & Bola

Exemplo paradigmtico, o slogan ser diferente normal, que utiliza uma qualificao psiquitrica o discutvel padro de normalidade e a ele subordina todas as diferenas. Em verdade, melhor que inverter o dito, num normal ser diferente, seria rejeitar esse padro de normalidade de pressupostos nefastos. Ao se desvelar algo como ideolgico no temos por si s uma soluo: a contradio explode como aparncia: devemos lidar com ela,

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tentar novos caminhos, ou empurr-las para baixo do tapete. A letra continua: a vida imita o vdeo garotos inventam um novo ingls vivendo num pas sedento um momento de embriaguez A gravao de Somos quem podemos ser de 1988. Nessa data no existia ainda Big Brother, mas a vida j imitava o vdeo e no ao contrrio. Num pas cheio de sede, teramos um momento de embriaguez: a abertura poltica nos dava amplas possibilidades de escolher novos caminhos, mas deveramos assumir que: "somos quem podemos ser sonhos que podemos ter" Somos romanticamente responsveis pela nossa auto-criao: se no tivermos sonhos, se no tivermos esperana, estaremos condenados a aceitar as coisas como esto. E de quem seria a culpa nesse caso: "quem ocupa o trono tem culpa quem oculta o crime tambm quem dvida da vida tem culpa quem evita a dvida tambm tem" A culpa seria de todos aqueles que se deixam dominar pela iluso. Que apesar de saberem dos problemas preferem agir como se no soubessem e se negam a pensar em alternativas, em algo diferente. Karl Marx lembrava a dialtica hegeliana entre senhor e escravo nO Capital dizendo que um rei s rei porque outros homens colocam-se numa relao de sditos com ele. E eles, ao contrrio, imaginam ser sditos por

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ele ser rei. Lacan, foi mais longe, ao afirmar que, um louco que acredita que rei no mais louco que um rei que acredita que rei! Se no pudermos imaginar alternativas, estaremos desde j condenados cinicamente a viver nossa autodestruio.

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Tdio, TV, Democracia

Esse foi o texto da minha primeira aula... quer dizer: minha primeira aula de verdade. Estava fazendo estgio e as coisas no iam muito bem: os alunos detestavam quando os estagirios comeavam a falar em filsofos antigos e empoeirados: eles queriam algo atual... As aulas de filosofia eram um desastre. No tnhamos material didtico e no foi possvel esconder a falta de direo. Fiquei chateado, mas: o que fazer? Resolvi preparar o meu material, tentar trazer alguma coisa que os alunos gostassem... Por isso, a partir de trs msicas do rock nacional tentei incentivar uma discusso sobre Democracia, Meios de Comunicao etc. Na verdade, por conta da minha falta de experincia, no consegui explorar o material como deveria... mas foi o primeiro passo: tanto na minha inveno como professor (comecei a gostar daquilo), quanto do meu projeto de pensar a partir do rock nacional (mais especificamente, o trabalho da Legio Urbana ).

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(Um exemplo das coisas que no consegui: coloquei como ilustrao desse texto um desenho dos Pokemons... Tinha um sorriso quando fiz isso, mas no expliquei para a turma o motivo; que hoje a inverso entre pblico e privado to grande, que mesmo as crianas no acreditam mais serem os heris... os heris so virtuais, comandados pelos humanos: estamos na era dos videogames e essa uma situao grave: quando nem as crianas podem se imaginar como heris, nem elas fantasiam mudar o mundo, mas encarregam isso a outros... virtualizamos a esperana da democracia. por a.) Teatro dos Vampiros (trecho)Sempre precisei de um pouco de ateno Acho que no sei quem sou s sei do que no gosto Esses dias to estranhos Fica a poeira se escondendo pelos cantos Esse o nosso mundo: o que demais nunca o bastante, A primeira vez sempre a ltima chance

(Legio Urbana) Essa msica, segundo o autor (Renato Russo), tem por tema a televiso. Surpreendemosnos de no perceber nenhuma referncia direta ao aparelho, ou a rede globo, porm, ainda assim o tema se esclarece. preciso olhar mais de perto o dito, pensar o pensado, atitude que no comum na cotidianidade. Todos precisam de ateno. Essa parece ser uma afirmao evidente. O autor segueNosferatu (1932), o vampiro do filme de Murnau

dizendo no saber o que , porm conhecer o que no quer. Essa uma afirmao negativa. O indivduo se afirma negando: dizendo no. Para o que ele diz no?

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A reposta parece apresentar-se de forma indireta: esses dias to estranhos/ fica a poeira se escondendo pelos cantos. Dias em que a poeira toma conta, dias de indiferena para com o mundo a sua volta: dias de tdio. Tdio e indiferena que deixam o mundo como est: onde o que demais nunca o bastante/ a primeira vez sempre a ltima chance/ ningum v aonde chegamos/ os assassinos esto livres, nos no estamos. Essa uma descrio do mundo a ser negado, mundo que pede tudo agora, na urgncia do consumismo; que promove a disputa e a indiferena, e que, nessa disputa, nos cerca com uma violncia que, em verdade, no vem de baixo para cima, mas de cima para baixo. Muros e Grades (trecho)Nas grandes cidades Num pequeno dia-a-dia O medo nos leva tudo Sobretudo a fantasia Ento erguemos muros Que nos do a garantia De que morreremos cheios de uma vida to vazia

(Engenheiros do Hawaii ) A violncia no um acaso numa sociedade em que a distribuio de renda se mostra to desigual como no Brasil. A violncia no se justifica, porm acaba por justificar a desigualdade. A disputa silenciosa se acirra, assim como o medo. Nas grandes cidades essa angstia se intensifica por estarmos, na maioria das vezes, cercados por tudo aquilo que a sociedade consumista prega como certo, e tudo aquilo que ela fomenta indiretamente (a partir e seus erros). A indiferena cerca, e nesse cercar-se todos so iguais: ningum se importa com nada a no ser consigo mesmo. E depois surge a pergunta: por que vivemos uma vida to vazia?. Questo que no ouvimos (1) por

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estarmos indiferentes para com a resposta, ou (2) por estarmos indiferentes para com ns mesmos. TelevisoA televiso me deixou burro, muito burro demais E agora todas as coisas que eu vejo me parecem iguais.

(Tits) Os meios de comunicao se movem de acordo com a publicidade. A publicidade se caracteriza por tentar tornar pblico o que privado, tentar tornar o particular, geral. Ela quer todos iguais, s que essa igualdade, mais e mais se direciona a indiferena. O pblico quer mais e mais essa inverso: tornar o privado pblico e o pblico privado. Querem decidir e saber sobre a vida dos outros, na mesma medida em que se esquecem da prpria vida e da vida em comunidade. A comunidade comum-unidade, a unio de todos pelo bem comum. Dificilmente poderamos dizer, hoje, que vivemos em comunidade. Dificilmente nos unimos tendo em vista o bem comum. A Democracia pede, prope a participao de cada um (at mesmo para se legitimar), porm, numa poca em que a indiferena tornada pblica ameaa prpria publicidade; que cada um que apenas o seu, caminhamos contra a democracia. Como podemos querer a Democracia conquanto afirmamos e vivemos na indiferena?

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Despotismo Esclarecido na Hora do Mergulho

Hora do Mergulho(Humberto Gessinger) Feche a porta, esquea o barulho Feche os olhos tome ar: hora do mergulho Eu sou moo, seu moo, e o poo no to fundo Super-homem no supera superfcie Ns mortais viemos do fundo Eu sou velho, meu velho, to velho quanto o mundo Eu quero paz: Uma trgua do lils-non-Las Vegas Profundidade: 20.000 lguas "Se queres paz, te prepara para a guerra" "Se no queres nada, descansa em paz" "Luz" - pediu o poeta ltimas palavras lucidez completa Depois: silncio Esquea a luz... respire o fundo Eu sou um dspota esclarecido Nessa escura e profunda mediocracia O filsofo Friendrich Nietzsche

Hora do mergulho a primeira faixa do disco Simples de Corao dos Engenheiros do Hawaii. Esse o primeiro disco sem a formao clssica da banda: Humberto Gessinger (baixo), Augusto Licks (guitarra (que havia deixado banda) e Carlos Maltz (bateria). Nessa msica Gessinger chama quem ouve para a hora do mergulho. Mergulhar aonde? Quem sabe um mergulho interior: cita de passagem o super-homem que no supera a superfcie (o alm do homem de Nietzsche). Pede paz, trgua do non-Las Vegas. Trgua das luzes da mdia, da propaganda que brilha, como que contendo luz prpria e anunciando os cassinos do jogo de cartas marcadas do mercado: eles ganham a corrida antes mesmo da largada. O caminho, a direo, a

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profundidade de 20 000 lguas (submarinas). Uma referncia ao fantstico de Jlio Verne, que no sculo XIX previa coisas como a viagem do homem lua (arremessado dentro de um projtil de um imenso canho). Gessinger cita um ditado romano: se queres paz te prepara para a guerra, se no queres nada descansa em paz. preciso sempre querer. Como o poeta Goethe que, segundo a lenda, na hora da morte pedia Luz, mais luz. Goethe se inscrevia dentro da tradio romntica, iluminista, que se propunha a espalhar/procurar a luz natural da razoO poeta Goethe

(separando-a das trevas). A morte do poeta traz o silncio.

A msica se aproxima do desfecho: Gessinger pede para que esqueamos a luz, a idia iluminista da razo, da ordenao, do mtodo... respirar o fundo, de onde vm os mortais, aponta para a valorizao dos sentimentos. Nesse contexto, Gessinger se auto-proclama um dspota esclarecido, no meio de uma escura e profunda mediocracia. Algum que tenta manter o poder sobre o seu destino em meio aos que querem ser apenas iguais. uma inverso da posio dos dspotas esclarecidos do sculo XVIII, que, para manterem seu poder centralizado, adotaram medidas liberais/iluministas. Agora, ao contrrio, Gessinger para manter o seu poder de deciso individual foge das idias iluministas (que quer todos iguais). Os do sculo XVIII eram dspotas, porm esclarecidos, agora o ideal ser esclarecido (j que no h como fugir da luz non), porm dspota (tentar lutar por alguma diferena, alguma paz ). O coro que entoa um "l-l-l" indeciso no comeo da msica e em seu fim mostra os ecos da mediocracia, da padronizao: no toa que Gessinger f do Pink Floid...

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Freud Flintstone e os deuses da propriedade privadaA msica Freud Flintstone dos Engenheiros do Hawaii traz referncias s primeiras formaes patriarcais, que deram origem a propriedade privada do solo. Essa estrutura era comum na Antiguidade Clssica (Grcia e Roma). No entanto, a msica pode ser interpretada como uma narrativa que descreve a criao do deus da propriedade privada. Na sociedade atual os dolos no permanecem nos altares: para o capitalismo sempre necessrio criar novos, e, para isso, esquecer/destruir os antigos. Isso acontece na moda, na informtica, na msica, na televiso, no cinema etc. dolos so criados e consumidos com avidez. Os artistas so colocados no altar. Uma vez l, as pessoas passam a querer saber tudo sobre suas vidas: o que pensam, o que vestem, o que sentem, o que os faz sofrer, o que acham da poltica, do buraco na camada de oznio... Querem consumir seu dolo. Esse consumir tem um sentido pesado: muitas vezes os artistas so privados de suas prprias vidas e se tornam refns da fama. Contudo, a dor deles vende: as revistas de fofoca no so toa as mais vendidas. As pessoas acham emocionantes as corridas na TV quando ocorrem acidentes. Vo para o rodeio ( na maioria das vezes ) pra ver os tombos... querem a morte de seus dolos... quando eles morrem vo novamente para o altar... os dolos so literalmente consumidos. . . Transcrevo a letra e depois um comentrio sobre como, na Antiguidade Clssica, a existncia de deuses familiares se liga inveno da propriedade privada do solo.

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Freud Flinstone (Humberto Gessinger) Querem sangue, querem lama, Querem fora o beijo na lona E querem ao vivo Querem lgrima doida Do dolo caindo Em cmera lenta Querem lutar pelo que amam Conquistar e destruir O que amavam tanto Faa uma prece pra Freud Flintstone Acenda uma vela pra Freud Flintstone Sacrifique o bom senso no seu altar Na areia da arena Sa de cena por decreto A flor do deserto Gran finale, ultima cena. No ar pelas antenas A morte do toureiro Faa uma prece pra Freud Flintstone Acenda uma vela pra Freud Flintstone Que o satlite lhe seja leve Esquea a prece pra Freud Flintstone Acenda a fogueira pra Freud Flintstone Vamos queim-lo vivo, enterr-lo vivo, O preo uma prece, pague pra ver, Compre ingresso, adeus Pink Floid Flintstone, Fama, fogo, fria, f no clube Freud Flintstone Que o satlite lhe seja leve

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Famlia, Religio Domstica e Propriedade Privada O surgimento da propriedade

privada do solo na Antigidade clssica se liga a existncia de uma religio domstica que fundamentava a unidade das famlias e a unidade do territrio. Havia uma verdadeira religio da morte9 baseada na crena de que com a morte no havia uma separao total entre corpo e alma (no se concebia tal distino), ocorria, em verdade, uma mudana de vida: os mortos continuariam a viver na terra junto dos vivos como demnios poderosos. Os gregos chamavam as almas humanas divinizadas pela morte de demnios, ou heris. Os latinos as denominavam de manes, lares ou gnios.Saturno devorando o seu filho, Francisco Goya (1744-1828)

Para garantir a paz na vida cotidiana (tendo em vista o poder dos lares ) era necessrio seguir os preceitos de uma religio familiar centrada na figura do patriarca fundador. A presena desse demnio era marcada pela existncia de um fogo sagrado na casa de cada famlia. O fogo s deixava de brilhar quando toda famlia estivesse extinta; lar extinto, famlia extinta. No infortnio, o homem chorava suas mazelas para o fogo, dirigindo-lhe repreenses; na felicidade rendia-lhe graas. O soldado ao voltar ileso da guerra, agradecia por ter-lhe preservado dos perigos. S o pai, nico interprete e nico pontfice de sua religio, tinha o poder de9

Tenho dvidas se todas as religies no so tambm da morte.

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ensinar tal religio e s o podia fazer a seu filho. Ningum mais podia ser instrudo nas regras da sua religio caseira. Os limites das terras da famlia marcavam tambm os limites do domnio desse deus patriarcal. Os membros da famlia deviam sempre ser enterrados nesse limite, geralmente em tmulos coletivos. Assim a propriedade da terra tinha, inicialmente, uma fundamentao religiosa. Mais tarde, quando se tornou comum a venda de territrios, era necessrio garantir que os membros da famlia continuariam sendo enterrados no domnio do seu deus e seguindo as atividades dessa religio. Assim, havia uma constante troca de servios entre vivos e mortos. Abandonar um corpo sem tmulo era condenar a alma a errncia, sobre forma de larva ou fantasma, sem receber as oferendas de que necessitava, essa alma se tornaria perversa, provocando doenas, devastando plantaes. A cerimnia fnebre tinha, ento, um grande significado. Era comum chamar por trs vezes a alma do morto pelo nome que havia usado em vida, dizer-lhe por trs vezes passe bem e acrescentar que a terra lhe seja leve. Palavra(s) do autor: Esses so trechos de alguns chats que Humberto Gessinger participou: Questo: Os romanos escreviam no tmulo, "que a terra lhe seja leve" quando enterravam algum que prezavam. isso em Freud Flintstone? HG: isso, antonio. Humberto o que voc quer dizer na msica Freud Flintstone com, "que o satlite lhe seja leve"? HG: "que a terra lhe seja leve" a expresso clssica: a terra que fica sobre o caixo, a morte, o julgamento... usei satlite pois hoje o que nos

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julga...temos uma existncia virtual, atravs dele, principalmente ns, teimosos de comunicar.

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Novos Horizontes dos Engenheiros do HawaiiA cano Novos Horizontes apareceu no lbum ao vivo dos Engenheiros do Hawaii 10.000 destinos de 2000. Neste texto tento entende-la e mostrar como ela antecipa a temtica do trabalho seguinte da banda.

Novos horizontes (Humberto Gessinger) corpos em movimento universo em expanso o apartamento que era to pequeno no acaba mais Uma epifania: da exploso inicial de um big bang principia o universo, que continua sempre em expanso. Esse o seu movimento. Um apartamento pequeno que tambm se expande. Ele agora est crescendo: existe uma falta dentro dele, um vazio que cresce da mesma forma que o universo. vamos dar um tempo no sei quem deu a sugesto aquele sentimento que era passageiro no acaba mais Vamos dar um tempo. Vamos nos separar: com o tempo os corpos se afastam, vamos nos distanciar como o universo que se expande. No sei quem deu a sugesto: mas faria diferena se soubesse? O que importa que

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o sentimento que deveria ser passageiro tambm vai se ampliando. Qual sentimento? quero explodir as grades e voar no tenho pra onde ir no quero ficar

Tambm quero essa expanso, quero me libertar desses limites e ser livre: no sei bem para onde ou porque, mas sei que no quero ficar aqui. Quero coisas novas, novas experincias... novos horizontes ?se no for isso, o que ser? quem constri a ponte no conhece o lado de l

Para viver algo diferente, para agir necessrio se arriscar. preciso estar pronto para tambm mudar, para se reconstruir. S quem enfrenta a angstia de saltar o abismo pode alcanar o outro lado e desvendar novos horizontes...encontrar novamente o cho e no deixar-se cair

suspender a queda livre libertar Na hora de agir no existem pressupostos que possam nos proteger do vazio e da expanso do universo. Os que no querem se acomodar numa situao que lhes desagradvel, devem estar prontos para enfrentar a

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angstia de agir. Todo ato que merece esse nome implica numa transformao de quem age. Impe a necessidade de se reinventar... arriscar... querer o novo... j que

o que no tem fim sempre acaba assim A cano termina... sobra voc e o universo: em expanso?...falta um sentido para isso... o lbum seguinte dos Engenheiros do Hawaii se chama Surfando Karmas e DNA e ira repetir e aprofundar esse tema. Na cano de abertura e que d nome ao lbum, se lembra que, muitas vezes, temos de enfrentar situaes nas quais as lembranas esto no espelho e a esperana na outra margem: a ao, desafiar o que posto como destino e considerado natural (karma ou DNA ) ter coragem para inventar a prpria liberdade...

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Dar sentido pra existncia: um esporte (extremamente) radical

Neste trabalho tento olhar mais de perto a cano Esportes Radicais do lbum Surfando Karmas e DNA. uma continuao do texto acerca de Novos Horizontes (feito no mesmo dia). Um detalhe que me chamou ateno no encarte foi a forma de diagramao da letra. Parece-me que ajuda a compreender o que est em questo. Ento, citarei a letra com seus negritos e itlicos originais seguindo e comentando pargrafo por pargrafo. Trata-se de uma interpretao. Seu objetivo: um experimento de pensar... A letra comea: preso no trnsito de astros imveis fao as contas na ponta do lpis e nada faz sentido Pode-se pensar de incio que esses versos no fazem sentido: trnsito de astros imveis? Seriam esses astros imveis elementos do star system de nossa sociedade de espetculo? No sei. Sigo em outro caminho com esprito de Parsifal: Kant, o grande iluminista alemo em sua crena imperturbvel na razo, afirmava que nada lhe causava mais admirao do que o sol estrelado sobre mim e a lei moral em mim. Kant tendo como pressuposto a fsica de Newton, tentou pensar um conjunto de

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regras ticas que deveriam conduzir o homem em sua existncia. A idia era conseguir a mesma necessidade da fsica de Newton: assim com a lei da gravidade vale para todos os corpos, a lei moral deveria se impor a todos os seres dotados de razo. O grande problema estaria em como submeter vontade humana a essas leis da razo. Se Kant tivesse chance de ver o dano causado pelo fascismo/nazismo provavelmente seria mais ctico quanto ao poder e sentido da racionalidade humana...Kant

De qualquer forma, hoje no faz mais sentido pensar numa ordenao csmica de valores imutveis e eternos que possa orientar a vontade do homem. Como sabemos por Novos Horizontes o universo segue em movimento, em expanso. A analogia entre o universo ordenado da fsica newtoniana e o formalismo da tica kantiana, fazendo as contas na ponta do lpis, no faz mais sentido. Provavelmente as referncias do compositor so diferentes, mas acredito que essa primeira estrofe aponta para a ausncia de uma racionalidade universal hoje... a letra segue

adrenalina uma menina dormindo danando em silncio imaginando um reggae cansei de alimentar os motores agora quero freios e airbag pois nada faz sentido Essa segunda estrofe trataria das emoes. O tema introduzido com a palavra adrenalina. Por um lado no faz sentido manter uma

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postura passiva, aptica... por outro, no faz sentido entrar no jogo dos esportes radicais buscando na promessa de aventura e velocidade sua dimenso mais destrutiva: cansei de alimentar os motores/ agora quero freios e air bag. No entanto, nada aqui faz sentido.

se capricrnio fosse cncer, se Califrnia fosse Frana a rampa que lana o skate ao cu seria nosso cho 180, 360, 540 graus, girando, esquentando s pra ver at quando o motor agenta o caos Se: entramos no universo da suposio. Poderia ser o mundo diferente?! Qual diferena a letra postula: a adrenalina do esporte radical estaria em nossa vida cotidiana como intensidade e no como desperdcio e auto-destrutividade. Por isso o refro anuncia:

no vou ficar parado, no vou passar batido se nada faz sentido, h muito que fazer No deveramos nos entregar a apatia e ao comodismo, nem nos deixar dominar pelas emoes (por vezes destrutivas ): se o mundo parece no ter sentido, devemos construir um sentido: existe muita coisa para fazer. Isso posto na cano como uma necessidade: no h alternativa, a nica opo unir otimismo da vontade e o pessimismo da razo contra toda expectativa, contra qualquer previso

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h um ponto de partida, h um ponto de unio: sentir com inteligncia, pensar com emoo A nica opo que temos estaria em seguir o exemplo de determinao dado pelo filsofo italiano Antonio fascistas Gramsci que, preso com pelos e padecendo diversas

doenas nunca se curvou diante da situao totalmente desfavorvel, pelo contrrio: no crcere por dez anos, produziu de maneira incessante (o que resultou em mais de 4 mil pginas de um trabalho de filosofia poltica, profundo e original ). Tentando descrever o estado deAntonio Gramsci

animo que o crcere lhe proporcionou Gramsci utilizou uma frase do escritor francs Romain Rollain, mostrando que traziam juntos o pessimismo da razo e o otimismo da vontade. O trabalho de Gramsci levou o marxismo a superar o determinismo econmico, o direcionando para uma transformao intelectual e moral da sociedade. Seria necessrio lutar para construir uma nova cultura, um novo humanismo com base na crtica dos costumes, dos sentimentos, das concepes de mundo, da esttica e da arte. no sentido dessa transformao que Gessinger repete: no vou ficar parado, no vou passar batido se nada faz sentido, h muito que fazer Sobre essa cano Humberto Gessinger disse que lhe parecia uma continuao de Infinita Higway: se naquela cano temos o

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existencialismo-beat afirmando que a estrada a vida, Esportes Radicais esclarece a direo a ser seguida. 13/06/2006 Sobre Gramsci:http://www.acessa.com/gramsci/

Um texto legal que consultei: Antonio Gramsci e a subida ao sto da filosofia da prxisMarco Mondaini: http://gladiator.historia.uff.br/nec//textos/text12.pdf

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Luz, onde esto teus olhos

Imagen do filme de Buuel e Salvador Dal Co Andaluz

Ultimamente depois de Nietzsche comum que se critique as perspectivas platnicas que permeiam a filosofia. que as perguntas por essncias atemporais levaram a filosofia para um caminho que parece hoje ter se tornado improdutivo: como lembra o filsofo norte-americano Hilary Putnam, ningum pode alcanar a perspectiva de um olho de Deus. Mas, deve ficar a dvida: Plato no era Platnico! que hoje alguns identificam Plato com a figura do rei-filsofo, aquele personagem que no Mito da Caverna consegue contemplar a luz da verdade e volta para tentar libertar os que esto acorrentados em meio s sombras. Essa idia de que o filsofo teria um acesso especial Verdade tem uma dimenso mais religiosa do que algo que se possa justificar quando se mantm um dilogo aberto. Mas o Mito da Caverna, como bem mostrou Heidegger, funda a autoridade da teoria, quando Plato, ao falar do caminho de ascenso do filsofo utiliza o termo verdade (aletheia), mas, quando se refere volta dele para a caverna passa a falar em orttes, a idia de correo do olhar: o sbio deveria corrigir o olhar dos acorrentados de modo a lev-los a

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direcionar-se para a luz do saber. No um dilogo: o filsofo tem autoridade porque sabe onde est a Verdade! Teoria seria contemplar o que , olhos humanos deveriam se voltar para as essncias ao invs se acorrentar s aparncias. Ficar preso s aparncias seria ficar preso s coisas fugidias, a vida prtica: a vida do filsofo deveria ser contemplativa, ou seja, sua funo seria olhar o mundo. Pense num professor que faz seu mestrado/doutorado no exterior e volta para o Brasil para dirigir o olhar de seus alunos para as verdades mais reluzentes. Pense na necessidade que existe de justificar qualquer trabalho recorrendo-se a certo cnone que, nos garantiria acesso verdade: o negcio nesse jogo de cio no debater idias, mas citar gente que concorda com a gente. Como diz o professor Valdir Heitor Barzotto a frmula parece ser citar trs estrangeiros, um brasileiro que se alinha a um estrangeiro, outro que discorda e pronto. No existe debate, no se discutem idias: elas brilham como essncias platnicas sendo confirmadas por pesquisas diversas. Na verdade, o que se faz aplicar o mtodo ao objeto: o importante dominar este mtodo. No existe risco de erro. Mestrado e Doutorado garantidos por ter dado prova de poder olhar para a luz que advm do exterior. Nossa cordial desconversao10! Um exotismo inventado... Fazer teoria dirigir o olhar para algum lugar. Ento deveramos parar de tentar fazer teoria, parar de tentar atingir essncias absolutas e passar a conversar, a aceitar o debate e o dilogo. Assim como, a imperfeio do inacabado, o acaso que sempre pode acenar. Assumiramos, assim, nossa finitude e, com ela, a finitude de tudo o que humano. Os que nos pedem para tentar esse outro caminho, de dialogo, pedem que abandonemos as metforas visuais: ver, contemplar etc.; j que no existeVale a pena ler o texto do filsofo Paulo Margutti O filsofo cordial como educador e autor, disponvel em: http://www.fafich.ufmg.br/~margutti/Fil_sofo_cordial.pdf10

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nenhuma Realidade pura e imaculada para ser desvendada. A marca da serpente humana est em toda parte... Se a idia dialogar, podemos partir de qualquer elemento de nossa cultura. Ao invs de tentar falar todas as lnguas vivas e mortas, poderamos dialogar a partir de diversas linguagens. o caso desse texto: decidi faz-lo depois de ouvir uma cano dos Engenheiros do Hawaii leia-se Humberto Gessinger. A letra de Luz pe em cena essa necessidade do olhar que permeia nossa cultura:

Onde esto teus olhos agora que 't bem na foto agora que achei o foco onde esto teus olhos sem eles no existo fico cego invisvel queimo o filme rasgo a foto onde esto teus olhos agora que domei a fera agora que a dor j era onde esto teus olhos sem eles no existo fico cego invisvel s enxergo o silncio juntos para sempre objeto e observador fsica moderna velhas canes de amor onde esto teus olhos(2x) longe deles nada existe (solo de gaita)

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onde esto teus olhos(2x) longe deles nada existe

Luz uma metfora recorrente na tradio filosfica para se falar em razo. Trazer luz algo para que possa ser visto: teorizar tudo e dominar qualquer acaso! Somos os observadores que querem objetificar tudo, reificar tudo a nossa volta. isso que a modernidade quis; matematizar a realidade, partindo do Plano Cartesiano, da fsica moderna de Newton etc., inspiraram-se em buscar a funo que descrevesse toda a Realidade. Mesmo a relao amorosa na modernidade passa a ser crivada desse ideal; o romantismo amoroso em sua contradio fundamental denunciada por Jurandir Freire Costa: ao tentar combinar amor eterno e prazer constante. Sem esse olhar de autoridade poderamos sobreviver? Quando pensamos na prtica, as teorias que buscas princpios eternos acabam, mais cedo ou mais tarde, sendo refutadas pela realidade ou mostramdo-se incompletas. Deveramos ento ser mais flexveis e abandonar essas questes platnicas por essncias. Saber e querer no bastam: o difcil agir e a, nenhuma teoria pode nos salvar de nossa prpria contingncia. Humanitas tem fome, diria Quincas Borba. Melhor dos mundos: impossvel... Por outro lado, acho que esse ataque s metforas visuais um tanto vazio. No podemos deixar de ter este sentido, tais metforas correspondem mais a nossa condio fsica do que a qualquer teoria. Deveramos arrancar os olhos, como dipo, para viver sem complexos? O olhar tambm uma forma de identificar-se com o outro. Olhar nos olhos, olhar para o cho, os olhares das personagens de Machado de Assis... o olhar pode tanto transformar em pedra quanto dar vida. Precisamos ouvir o

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silncio, sentir as diferenas, farejar novidades? Sim... Mas no vejo nada intrinsecamente negativo nas metforas visuais se tomamos alguns cuidados para no repetir antigos erros. Lembro de um poema de Cames, nosso poeta que perdeu um olho, que diz algo que me interessou: MOTE Pus o corao nos olhos e os olhos pus no cho por vingar o corao. VOLTA O corao envejoso como dos olhos andava, sempre remoques me dava que no era o meu mimoso. Venho eu, de piadoso do senhor meu corao, boto os meus olhos no cho. Os olhos podem, nesse caminho de identificao, levar uma pessoa para habitar nosso corao. O que trazemos dentro do peito. o que temos respeito. Olhemos ento os problemas que nos comicham todos os dias: no faltam motivos pra se respeitar nossas vidas finitas e humanas.

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Ta legal, eu t ligado! O Paradoxo de Marta e outras interrogaes11Uma questo que tem me instigado ultimamente advm de uma personagem de novela: o que chamo de paradoxo de Marta. Llia Cabral interpretava a vil da novela Pginas da vida, Marta, que rejeitava criar uma neta ao saber que essa era portadora da sndrome de Down. Marta encarnava o ressentimento numa personagem complexa construda por Manuel Carlos. Por exemplo, trabalhava organizando festas infantis, mas odiava crianas. O ressentimento de Marta explode quando sua filha engravida e os sonhos que projetava nela so demolidos. A trajetria de Marta ento vai caminhando em direo a loucura e a indiferena. Em algumas cenas da novela, Marta assistia filmes com uma amiga. Durante essas sesses de cinema, se emocionava e chegava sempre s lgrimas... no entanto, os filmes s serviam de mecanismo para que ela descarregasse suas emoes e continuasse sendo incapaz de se identificar e agir de forma solidria com as pessoas que esto ao seu lado.12 Vi uma dessas cenas e fiquei impressionado. Isso me levou a questionar sobre at que ponto livros, filmes, novelas etc., podem ajudar na educao moral. Ser que essa perspectiva estetizante, em que buscamos nos recriarEscrito originalmente para o blog filosofia pop no Overmundo, publicado em 21/01/200.7 (http://www.overmundo.com.br/blogs/ta-legal-eu-to-ligado-o-paradoxo-de-marta-e-outras11

interrogacoes )

Pra quem se interessar, possvel encontrar no youtube (1) a apresentao da personagem de Marta (Llia Cabral) na novela Pginas da Vida de Manoel Carlos (http://www.youtube.com/watch?v=wAEIRHPs8O4 ) e (2) uma cena em que ela demonstra seu apreo por cinema, comentando um sonho em que se via como uma personagem do filme Casablanca... o ressentimento fica evidente e mais a posio do cinema em sua vida...outro dado interessante que a cena se fecha com um depoimento real: a relao realidade/fico, cotidiano/novela pode ser destacada( http://www.youtube.com/watch?v=HWQbj4lrxew ).12

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constantemente mais do que manter constante uma identidade, pode se combinar com uma idia de moralidade pblica? Ser que o discurso que espera que a arte, os esportes etc., mudem nossa realidade, no serve mais de mecanismo de catarse13, por meio do qual descarregamos nossas emoes e deixemos as coisas como esto? Que outro caminho teramos para a educao moral? Voc pode dizer: t legal, eu 't ligado, e celebrar da distncia de quem assiste os problemas que nos cercam. a posio de espectador que faz crescer as teorias. As teorias nos dizem sobre o possvel e o impossvel, mas na hora da ao, o que valem so as crenas que conseguem gerar prtica. Na perspectiva pragmatista crenas so hbitos de ao. Porm, devemos observar que nem toda crena gera ao imediata: podemos esperar hora certa para agir, ou mesmo nunca agir. Acho que assim na maioria das vezes quando se abordam questes ecolgicas: todo mundo sabe da urgncia dos problemas, mas... no sente que hora de traduzir isso em ao. Explicando a obra do fundador do pragmatismo, Charles S. Peirce, John R. Shook afirma que a linguagem no o melhor guia para conhecer as crenas reais de uma pessoa. Apenas observando o que uma pessoa faz que podemos compreender em que ela realmente acredita. s vezes as pessoas no dizem a verdade sobre suas crenas. E s vezes, quando elas tentam descrever com sinceridade aquilo em que acreditam, suas palavras no so suficientes para elas se expressarem com clareza14.13

O que diz "catarse"? Explica o Aurlio (1) Purgao, purificao, limpeza; (2)Med. Evacuao, natural ou provocada, por qualquer via; (3) Psicol. Efeito salutar provocado pela conscientizao de uma lembrana fortemente emocional e/ou traumatizante, at ento reprimida; (4.) Teatr. O efeito moral e purificador da tragdia clssica, conceituado por Aristteles (v. aristotelismo), cujas situaes dramticas, de extrema intensidade e violncia, trazem tona os sentimentos de terror e piedade dos espectadores, proporcionando-lhes o alvio, ou purgao, desses sentimentos. nessse ltimo sentido, tomado em uma acepo arristtelica, que a idia de catarse se torna problemtica para a educao moral: o limite entre o que nos comove e o que nos leva a indiferena se mostra tnue.

SHOOOK, J. Os pioneiros do pragmatismo americano. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 5414

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T legal, eu t ligado: saber todo mundo sabe/ querer todo mundo quer/ mais fcil falar do que fazer. Na hora de agir, no existe plano B, no existe uma teoria que sirva para todos os contextos e, mesmo para sobreviver preciso que modifiquemos constantemente nossas crenas, descartando as que no funcionam. Na hora mais radical, na prtica e em seus efeitos que podemos entender a importncia de uma crena. Voc pode dizer, t legal, e na hora de agir posicionar-se como espectador de corao blindado. Com a coragem que a distncia d, comentar em tom diferente: t legal, eu t ligado! Tanto faz agir como os racionalistas, que tentam buscar uma viso superior, ideal, acima dos sentimentos humanos, ou, como os romnticos, mergulhar nas profundezas do corao do homem, tentando desvendar a essncia do humano: nos dois casos a direo vertical, a procura por um lugar privilegiado para ver o que acontece. Contemplar e dizer o que . Fica mais fcil! Ainda no sei como sair do Paradoxo de Marta, nem sei se possvel sair dele. Mas acho que importante levantar a questo. Por enquanto continuo no mesmo caminho: esse texto foi construdo em dilogo com trs canes dos Engenheiros do Hawaii (que dforam gravadas no lbum Novos Horizontesm, mas j podem ser ouvidas em verses demo em seu): Vertical, Plano B15 e Corao Blindado. Ta legal: o mesmo caminho estetizante... mas por hoje s tenho as questes e a dvida radical: estamos caminho.A cano Melhor assim.

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A cano Plano B s apareceu como uma demo no site da banda.

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Quando as armas qumicas no esto l... Quando os poemas nos enganam...16

H poucos dias, assisti o documentrio The Pervert's Guide to Cinema (de Sophie Fiennes, Gr-Bretanha/Astria/ Holanda, 2006), apresentado pelo filsofo e psicanalista Slavoj Zizek (l-se Slavi Chichec). Zizek um pensador que tem se tornado popular por oferecer uma releitura da tradio marxista a partir de uma perspectiva que cria uma sntese entre Hegel e Lacan. Sua posio tinha tudo para ser excessivamente hermtica, gerando um discurso difcil e assustador para a maioria das pessoas. Ocorre o contrrio. Zizek conecta seu pensamento aos signos de nosso tempo, falando sobre eventos atuais; de jogos de videogame (como o Second Life), canes e, principalmente, de filmes. Uma noo central para as anlises de Zizek a idia de paixo pelo Real, que estaria presente tanto nos atos revolucionrios quanto no terrorismo. Zizek aponta aqui para um antagonismo: existiria uma m paixo que defenderia a idia de que a nica experincia potente a experincia de transgresso, seja na figura da violncia poltica, da sexualidade sadomasoquista etc. Esta dimenso malfica da paixo pelo Real estaria presente no terrorismo e, por exemplo, na fascinao do revolucionrio que, para defender a causa, no teme ir at o fim e fazer o trabalho sujo que vai contra os seus princpios morais privados. J o lado bom desta paixo pelo real estaria na valorizao do espetculo, do virtual, do cinema etc. O paradoxo que o lado ruim e o lado bom da paixo pelo real esto interligados hoje. Um exemplo dessa juno o terrorismo: por um lado, ele resultado de uma paixo pelo real, paixoEscrito originalmente para o blog filosofia pop no Overmundo. Publicado em 04/07/2007. (http://www.overmundo.com.br/blogs/quando-as-armas-quimicas-nao-estao-la)16

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daqueles que afirmam: vamos agir brutalmente, mas seu efeito de um grande espetculo explosivo que nos fascina. O documentrio pode servir de introduo para a leitura da obra de Zizek, at mesmo porque, grande parte de seus espectadores sentir-se-o em dvida: ser que este psicanalista descobriu a real inteno dos cineastas (David Lynch, Charles Chaplin, Alfred Hitchcock etc.) ou ele est inventando tudo isso para encaixar sua teoria? Ser que este espetculo mais real do que os outros? O autor, a partir de sua confortvel posio de psicanalista poderia rir e afirmar que essas questes so mais uma manifestao de paixo pelo real. O espectador poderia rebater: o mais apaixonado voc, assim como o diabo quem mais ama Deus. Este impasse no deve ter soluo e sim servir como inspirao para que se leia a obra deste autor. A leitura de Zizek pode servir para que, com maior distanciamento, possamos compreender o que ele est querendo fazer com seu discurso. Fica a dica. No documentrio, uma das cenas que me instigaram, foi a da anlise de Zizek da parcialidade das opes oferecidas a Neo em uma famosa cena de Matrix. Nela, o heri tem que escolher entre a plula vermelha, que traria como efeito a revelao da Verdadeira Natureza da Realidade, e a plula azul, com a qual permaneceria iludido pelas aparncias, o espetculo de vida virtual oferecido pelo gnio maligno da Matrix. A idia de que existe um Real esperando por ser desvendado estando sobreposto a uma grande fico, um mundo de aparncias, um dos fetiches mais caros da modernidade.17 Zizek prefere pensar numaSobre esta questo vale a pena ler o texto do filsofo norte-americano Richard Rorty Fora da Matrix (http://www.filosofia.pro.br/modules.php?name=News&file=article&sid=87), em que ele, a partir da anlise do filme, faz uma introduo ao pensamento de Donald Davidson.17

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terceira plula, que fosse capaz de nos mostrar o quanto de iluso e fico so necessrias para cimentar a percepo de realidade. esta intuio que vou tentar desenvolver a partir da cano Armas qumicas e poemas, dos Engenheiros do Hawaii. Armas qumicas e poemas foi lanada em 2004, no lbum Acstico MTV Engenheiros do Hawaii. Ela apresenta, j em seu ttulo, um elemento de denncia: a existncia no Iraque de armas qumicas, armas de destruio em massa, foi a desculpa utilizada pelos EUA para justificar, como ao preventiva, a invaso daquele pas. A fico fundou a realidade do conflito atual. Parece ser um nonsense a idia de unir no ttulo da cano armas qumicas e poemas. Este tipo de aparente contradio algo recorrente nas letras de Humberto Gessinger, servindo para apontar e provocar espanto com as coisas que no se encaixam muito bem: clichs inditos, exrcito de um homem s, esquerda light etc. esse tipo de jogo que parece surgir nos primeiros versos da cano: eu me lembro muito bem, como se fosse amanh o sol nascendo sem saber o que iria iluminar(...) Parece estranho a cano comear com esse nascer do sol que tambm promessa: recordamos algo que ainda no ocorreu. O poema usa do artifcio do como se fosse, da imaginao que cria analogias que no tem sustentao na realidade. So metforas para tentar dizer algo ou fazer algo que no comum. O poeta, como j sabia Plato (o maior de todos os poetas), institui a realidade. medida que metforas se tornam moedas correntes, perdem o poder de espanto e tornam-se triavilidade: palavras gastas do sentido ao literal.18 O poder do como se fosse nos faz olharInterroga-se Nietzsche: O que verdade portanto? Um batalho mvel de metforas, metonmias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relaes humanas, que foram enfatizadas potica e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, aps longo uso, parecem a um povo slidas, cannicas e obrigatrias: as verdades so iluses, das quais se esqueceu que o so, metforas que se tornaram gastas e sem fora sensvel, moedas que perderam sua efgie e agora s entram em considerao como18

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de modo diferente para o que (ou est). Recordar algo que ainda no ocorreu? Saudade do futuro? Nossa sensibilidade romntica se manifesta na recusa de nos limitarmos ao aqui e agora. O horizonte s surge como esperana. Preenchemos o futuro com expectativas. Somos quem podemos ser, sonhos que podemos ter.... O fato de nos relacionarmos com nosso prprio futuro, nos direciona para algo que consideramos como bom e nos levam a atuar. Se perguntam Como voc est?19, a resposta mais comum fala de um estado de nimo, apontando uma perspectiva de julgamento em relao existncia como um todo, aos projetos e esperanas. A vida ganha sentido a partir desses sonhos de futuro, dessas promessas do que ainda no . A letra continua: eu abri meu corao como se fosse um motor e na hora de voltar sobravam peas pelo cho mesmo assim eu fui luta... eu quis pagar pra ver(...) O como se fosse reaparece na comparao do corao (do sentimento), com um motor (um mecanismo): no confronto entre o ideal e o real sobram peas pelo cho. Entre os sonhos e sua realizao, existe uma distncia, uma falha. Entre a satisfao oferecida pela propaganda e a realidade do consumo, entre as promessas de amor eterno e a busca de prazer constante, entre o como se fosse da poesia e o que : sobram peas pelo cho. Ainda assim, o que nos resta seguir em frente: pagar pra ver. A letra segue: aonde leva essa loucura qual a lgica do sistema onde estavam as armas qumicasmetal, no mais como moedas. (NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. In. Os Pensadores. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. So Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 48). 19 Fiquei intrigado com a diferena deste Como voc est? em relao ao j mais desinteressado Tudo bem [com voc]?. A segunda pergunta j pressupe de modo forte uma resposta, j aponta para o que seria a resposta standard.

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o que diziam os poemas(...) Qual a lgica do sistema que une a vontade de mudana e aquisio com a economia de consumo? A felicidade paradoxal do consumismo; a sede do herosmo romntico, a busca pelo real. Filmes de guerra continuam lado a lado com canes de amor. Quando descobrimos que no existiam armas qumicas, que os poemas no descreviam exatamente a realidade, o que nos resta a fazer? Criamos tantas expectativas em relao a um sonho e somos desmentidos pelo mundo. Quando se descobre que os drages so moinhos de vento, quando Dom Quixote se torna tambm um mito... segue combatendo: o que sabe fazer. afinal de contas ?o que nos trouxe at aqui, medo ou coragem? talvez nenhum dos dois sopra o vento um carro passa pela praa e j foi... j foi por acaso eu fui luta... eu quis pagar pra ver Atrs das armas qumicas existia o interesse pelo petrleo (o carro passa pela praa e j foi...). O que sustentam os poemas? Existiria amor atrs das promessas da poesia? Na insatisfao com o mundo que a est, precisamos imaginar outro, mais real para nossos sonhos, para o sol de amanh. Precisamos dessa dimenso utpica para remar contra a corrente (ou acreditar nisso). Precisamos alimentar a f em nossas causas perdidas, sonhos sinceros... o tempo nos faz esquecer o que nos trouxe at aqui mas eu lembro muito bem como se fosse amanh ?quem prometeu descanso em paz depois dos comerciais? ?quem ficou pedindo mais armas qumicas e poemas?

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Como diferenciar armas qumicas e poemas? Existe diferena entre armas qumicas e poemas? Fico e realidade se cruzam, as guas se tornam turvas e a certeza s uma: o mundo no tem legenda.

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Faz de conta que o mundo no est ficando Cinza

O filsofo norte-americano Richard Rorty, depois dos atentados de onze de setembro, passou a temer que o Ocidente renegasse o ideal democrtico e desse espao para atitudes totalitrias na busca pela manuteno da hegemonia econmica. Pior ainda do que essa mudana na vida poltica, seria o fato de que as pessoas, diante da ameaa eminente e fantasmagrica, perdessem qualquer interesse em arregaar as mangas para buscar reformar a sociedade. Rorty capta bem esse perigo quando cita as palavras do jovem Theo, protagonista do romance Sbado de Ian MacEwan, que com seus 18 anos renega qualquer utopia poltica: Quando pensamos nas coisas grandes a situao poltica, o aquecimento global, a pobreza mundial-, tudo parece realmente terrvel, nada est melhorando, no h nada a esperar. Mas, quando penso pequeno, mais perto - voc sabe, numa garota que acabei de conhecer ou na cano que estou compondo com Chas ou em fazer "snowboard" no ms que vem, tudo parece timo. Por isso, este ser meu lema: Pense pequeno.20 Nesse pensar pequeno, a separao entre vida privada e vida pblica se torna to grande que qualquer idia de responsabilidade no mais se sustenta. O cimento que traria fora aos vnculos e manteria os laos sociais estaria ausente, e, com isso, qualquer discurso que tenta transcender os interesses individuais imediatos parece cair no vazio da indiferena. Richard Rorty tentou com sua filosofia colocar a imaginao no lugar antes ocupado pela razo: s assim poderamos construir umaMacEwan, Ian. Sbado Citado por RORTY, Richard. Nusea em Londres. Folha 05/02/2006 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0502200616.htm20

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sociedade democrtica em que autoridade de quem corrige o olhar do espectador seria substituda pelo dilogo constante. difcil no considerar que Rorty tenha sido influenciado pelas pequenas utopias dos anos sessenta e pela idia de imaginao no poder. O filsofo americano lembrava que o mundo no tem legenda, ele no fala: com nossa linguagem que o descrevemos. Assim, as metforas trariam consigo a possibilidade de criao de novas vises de mundo. Rorty queria abrir espao para novas formas de pensar e para a esperana de uma vaga utopia de um mundo diferente. Para ele a imagens teriam maior poder de convencimento do que as narrativas: por esta razo que o romance, o filme e o programa de televiso vieram a substituir, de forma gradual, mas constante, o sermo e o tratado, enquanto veculos principais de mudana e progresso no plano moral. 21

Joan Baez e Bob Dylan, na Marcha pelos direitos civis em Washington (1963)

Quando Bob Dylan cantava, no incio dos anos sessenta, que havia uma resposta sendo soprada pelo vento ou anunciava as mudanas dos tempos, no era possvel entender claramente o que isso poderia21

RORTY, Richard. Contingncia, Ironia e solidariedade. p.19

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significar, contudo, naquele momento a frase ganhou um sentido social na luta pelos direitos civis. Em verdade, as canes de Dylan tiveram maior impacto do que qualquer discurso poderia conseguir, justamente porque com a msica sua mensagem pedia de quem ouvia certa participao afetiva, completando seu sentido. Somente na medida em passamos a ver os outros como um de ns e no como eles podemos, tocados inicialmente pelos sentimentos, alargar nosso horizonte de identificao moral. S ento o velho imperativo de no fazer com o outros, o que voc no quer que seja feito com voc pode ganhar vida em nossas aes como uma crena. Essa perspectiva de Bob Dylan quanto cano repercutiu no mundo todo. Com o desenvolvimento dos meios de comunicao: em vrios pases, o poder da msica popular em relao s possibilidades de transformao poltica, ganhou vida. A banda de Chico Buarque queria contagiar a cidade e faz-la em conjunto cantar o amor. No ano seguinte, em Alegria, Alegria, Caetano Veloso encarnou a banda em sua atitude de flanar pela cidade sem leno, nem documento. Com o golpe militar e o pequeno desenvolvimento de nossa indstria cultural, as possibilidades de questionamento poltico foram cerceadas. Por isso nos anos oitenta o rock nacional tratou de retomar a perspectiva de Bob Dylan, como mostram as palavras de Renato Russo: O que a Legio Urbana tenta fazer provar que os anos 80, no Brasil, voc ainda pode tentar seguir o caminho que eu aprendi com o Dylan e os Stones e quem quer que seja. Que a gente possa ser a trilha sonora verdadeira, factual, para quando tiver o programa sobre ecologia eu no precise ir l debater ecologia. Basta colocar as crianas cantando a nossa msica, eu acho que se a gente conseguiu fazer isso j uma coisa muito importante.22

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Conversaes com Renato Russo. Campo Grande (MS): Letra Livre. Pg.73.

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O filsofo Renato Janine Ribeiro, ao analisar a obra de Chico Buarque de Hollanda, fala em Utopia Lrica: a idia de que o cantor poderia contagiar pelos sentimentos as pessoas em direo a uma perspectiva de transformao social utpica. Acredito que as esperanas em torno da democracia continuaram sendo o norte da dimenso utpica da cano brasileira, at mesmo porque, o fantasma da ditadura deu para nossa sociedade um inimigo bem real para combater. Contudo, depois do desastre que foi a Era Collor, a tendncia de nossa cano foi em geral, deixar de falar da poltica de forma utpica e abandonar a perspectiva lrica: passamos ao domnio da prosa e a uma separao mais ntida entre pblico e privado. Quando se trata de falar de questes sociais elas so colocadas do lado de fora, como um objeto exterior: por isso mesmo o rap mais e mais se coloca como o formato musical mais utilizado para o questionamento social e poltico. A dimenso lrica da cano popular alienou-se na vida privada.23 Uma das poucas anomalias nesse discurso sobre a msica popular brasileira me parece ser a posio dos Engenheiros do Hawaii, que ainda hoje tentam manter as lies de Dylan. Essa posio transparece no lbum Danando em Campo Minado de, onde nas canes Segunda-feira Blues, se faz um balano das esperanas perdidas desde a dcada de sessenta e lana questes como:? onde esto os caras que lutavam dia-a-dia sem perder a ternura jamais ? ? onde esto os caras que desmaterializavam moedas de dez mil reais ? ? onde esto os caras que desconheciam limites ... universal e singular ? ? onde esto os caras que desenhavam novas cidades em guardanapos na mesa de um bar?

Nos meus Ensaios Legionrios, que esto prontos e na gaveta, tento explicar melhor estas questes. Por hora o melhor afirm-las de modo dogmtico sem cuidar de nuances e detalhes.23

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Apesar de acordar em uma segunda-feira melanclica (blues), a banda confirma sua posio utpica na cano Dom Quixote, que reafirma a esperana romntica de transformao da realidade, em detrimento do senso prtico sanchesco de aceitao das coisas como esto:tudo bem...at pode ser que os drages sejam moinhos de vento tudo bem...seja o que for seja por amor s causas perdidas por amor s causas perdidas

Dom Quixote, Honor Daumier(1808-1979)

Na cano seguinte deste lbum, a banda lembra a posio de resistncia de Cuba e reafirma que seguira At o fim na busca por alguma transformao:a ilha no se curva noite a dentro vida afora toda a vida, o dia inteiro no seria exagero se depender de mim eu vou at o fim cada clula, todo fio de cabelo falando assim parece exagero mas se depender de mim eu vou at o fim

A ltima cano do lbum, Outono em Porto Alegre, fala de uma transformao do olhar individual: a pessoa olha ao redor e percebe que amadureceu e que apesar de tudo feliz. Podemos caminhar pela cidade e reconstru-la com um olhar otimistao mundo fica para outro dia andar por a era tudo que eu queria

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No novo lbum, Novos Horizontes, a cano Cinza busca falar do aquecimento global tomando uma perspectiva lrica, como explica Gessinger: Em vez das grandes corporaes, o foco a maneira infantilizada como vivemos, querendo tudo e querendo agora. O mergulho alienado na vida privada, que o jovem Theo considera ser a soluo para sua felicidade, o alvo da crtica dos Engenheiros do Hawaii:o mundo teu, teu umbigo chapado e aquecido deve ser o fogo amigo queimando tudo, joio e trigo corre mundo um aviso: corre risco teu umbigo se correr o bicho pega se ficar corre perigo bruxas danam na fogueira inimigos na trincheira um calor infernal congela teu sorriso e o paraso tropical (nada mal)

Nesse mergulho alienado na vida privada, as pessoas colocam qualquer questo social numa posio muito distante (separadas, por muros e grades). A idia do aquecimento global aponta para os limites da terra em relao ao desejo do homem. Parece que hoje, idias universais no tm o mesmo apelo que h tempos lhes eram conferidas. preciso considerar as diferenas e o contexto para que se justifique umaUma boa dica assistir ao vdeo Mudanas de Clima, Mudanas de Vida, produzido pelo Greenpeace e que pretende mostrar como as transformaes climticas afetam j o Brasil. O vdeo esta disponvel em

afirmao. A fsica clssica foi tomada como modelo tanto na tica (como vimos na anlise de Esportes Radicais), quanto na economia. Como explica o economista Hugo Penteado:

todas24 as vertentes da economia assumem http://www.greenpeace.org.br/clima/filme/home/ bom tomar cuidado com a radicalidade da afirmao de Penteado: afinal ele mesmo no economista? Ento no so todas as teorias econmicas etc.24

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ainda hoje, corajosamente, que o sistema econmico neutro para o meio ambiente e que este inesgotvel. Robert Solow, o pai da teoria do crescimento, diz que as economias podem se ver livres dos recursos naturais, dado que o capital um perfeito substituto da natureza. E foi alm: afirmou que o ser humano ser capaz de produzir outros fatores materiais que no os da natureza. Para Penteado fcil perceber que esse discurso no se sustenta: a natureza continua sendo a fonte de qualquer recurso. Sentencia ento: a economia est em xeque com a realidade. Propor crescimento sem avaliar as condies necessrias e sem mensurar os resultados scio-ambientais no se justifica mais, tanto pelas descobertas ambientais quanto pelas questes sociais, como a concentrao de riqueza forte dentro e fora das naes. Podemos nos aproximar dessa necessidade de cuidado com as conseqncias e a responsabilidade tomando com mais seriedade a noo de irreversibilidade. A cano Faz de conta ilustra essa questo na perspectiva de uma relao afetiva: assim como uma pedra ao cair ngua produz ondas, nossas aes repercutem tanto no meio ambiente quanto em nossas vidas pessoais. Quando uma atitude nos faz perder o encanto, no adianta pedir algo como, faz de conta que eu fui mais legal.... A irreversibilidade o preo que pagamos por no vivermos em um universo em que todas as aes correspondem a uma ordem pr-estabelecida (como o universo descrito naFaz de conta (gessinger/melissa mattos)era claro, espelho d'gua perfeio que a pedra destruiu uma onda, mais uma onda outras ondas e j no tem fim agora centro do movimento a qualquer momento pode transbordar quando a pedra caiu na gua quando o espelho foi ao cho quem estava ao teu lado? quem estava com a razo? a pedra afundou a onda inundou faz de conta que eu fui mais legal faz de conta que eu fui mais legal... malas prontas de hoje em diante, mais distante talvez menos mal desencanto na garganta faz de conta que eu fui mais legal quando a pedra caiu na gua quando o espelho foi ao cho quem estava ao teu lado? quem estava com a razo? faz de conta que eu fui mais legal...

cano A Fbula). Para o fsico Marcelo Gleiser o preo do novo o

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declnio da ordem, e a idia de irreversibilidade ilustraria nossa relao com o tempo. Exemplifica-o: um cubo de acar dissolve-se espontaneamente numa xcara de caf, mas jamais observamos os gros de acar se reorganizarem espontaneamente voltando forma de cubo. Uma omelete no se transforma espontaneamente em ovos crus. Molculas de perfume escapando de um vidro aberto no retornam ao seu interior. gua morna no se divide em gua fria e gua quente.25

a fbula (the logical song - roger hodgson. verso: humberto gessinger)era uma vez um planeta mecnico, lgico, onde ningum tinha dvidas havia nome pra tudo e para tudo uma explicao at o pr-do-sol sobre o mar era um grfico adivinhar o futuro no era coisa de mgico era um hbito burocrtico, sempre igual explicar emoes no era coisa ridcula havia crticos e mtodos prticos c pra ns, tudo era muito chato era tudo to sensato, difcil de agentar todos ns sabamos de cor como tudo comeou e como iria terminar mas de uma hora pra outra, tudo o que era to slido desabou, no final de um sculo raios de sol na madrugada de um sbado radical foi a p de cal, to legal no sei mais de onde foi que eu vim por que que estou aqui, para onde eu irei c pra ns, bem melhor assim desconhecer o incio e ignorar o fim da fbula

Aplicando essa idia em termos ecolgicos: do que adianta desmatar uma floresta e depois plantar o equivalente em eucalipto? Mais radicalmente: por mais que tentssemos, a floresta original se perdeu para sempre. irreversibilidade.

Quanto mais complexo o sistema, mais pertinncia ganha o conceito de A aplicao do conceito de irreversibilidade em termos de relaes interpessoais deve ser considerada com cautela. Para o filsofo alemo Jrgen Habermas (pensando no contexto dos atentados de 11 de setembro): O que antes de mais nada na verdade nos intranqiliza a irreversibilidade do sofrimento passado, a injustia em relao aos

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GLEISER, Marcelo. A dana do universo: dos mitos de Criao ao Big Bang So Paulo : Companhia das Letras, 1997. p.219.

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inocentemente maltratados, desonrados e assassinados, injustia que ultrapassa toda escala de reparao humana possvel.26 Acho que aqui entra em cena novamente nosso horizonte de identificao afetiva. No meio da barbrie, dos problemas que parecem nos tragar para o universo da indiferena, a existncia de uma pessoa com a qual nos identificamos sentimentalmente surge como uma mgica que nos salva do ceticismo, como aparece na cano No meio de tudo voc:selva a gente se acostuma a muito pouco a gente fica achando que demais quando chega em casa do trabalho quase vivo selva a gente se acostuma a muito pouco a gente fica achando que o mximo liberdade pra escolher a cor da embalagem nessa selva a gente se acostuma a muito pouco a gente fica achando que o normal entrar na fila, pagar ingresso pra levar porrada no meio de tudo, voc me salva da selva selva a gente se acostuma a muito pouco a gente fica achando que demais um pouco de silncio um copo de gua pura selva a gente se acostuma a muito pouco a gente fica achando que o mximo se o cara mente mas tem cara de honesto nessa selva a gente se acostuma a muito pouco HABERMAS, J. F e conhecimento. Folha de So Paulo 06/01/2002. Disponvel em: http://www1folha.uol.com.br/fsp/mais/fso601200206.htm. Consultado no dia 11/08/2007.26

66 a gente fica achando que o normal finge que no v, diz que no foi nada e leva mais porrada no meio de tudo, voc me salva da selva no meio de tudo, voc acima de tudo no meio de tudo voc

O que era impessoal se torna importante na medida em que existe identificao. Para Habermas, por conta desse tipo de relao pessoal, podemos diferenciar o plano da descrio (em termos de causa e efeito, perspectiva observadora) e o da justificao (perspectiva participante). S quando tratamos de justificar nossas aes para um voc, podemos encarar de forma direta a questo da responsabilidade e desenvolver conscincia em relao aos efeitos de nossas aes. O filsofo alemo apela pra um tom emotivo quando afirma que o amor no pode existir sem o reconhecimento em um outro, a liberdade no pode existir sem admisso mtua.27 A razo no tem lugar quando no existe dilogo. Para Rorty o que podemos fazer contar histrias que atentem para os pormenores do sofrimento de outras pessoas, para os problemas de nossa forma de agir: s assim, pelo sentimento, teramos uma identificao moral que levaria a mudana na forma de agir. No existe para Rorty lugar para o papel ideal da conscincia, nem para a diviso entre descrio e justificao: o que muda o pblico, o contexto. De qualquer forma ambos apontam na mesma direo democrtic