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 Revista do Centro Interdisciplinar de Desenvolviment o e Gestão Social - CIAGS & Rede de Pesquisadores em Gestão Social - RGS 103 © Cadernos Gestão Social, v.4, n.1, p.103-115, jan./jun. 2013 | www.cgs.ufa.br v.3, n.2, jul./ dez. 2012 ISSN: 1982-5447 www.cgs.ufa.br DESIGN E ARTESANATO: FRAGILIDADES DE UMA APROXIMAÇÃO Design and Handicra: Fragilies of an Approach Diseño y Artesanía: Debilidades de una Aproximación Maíra Fontenele Santana (SEBRAE)* *Graduada em Desenho Industrial com habilitação em Projeto de Produto e Programação Visual pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Gestão Pública e Sociedade pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Trabalha no SEBRAE Nacional na car- teira de artesanato. Tem experiência na área de incubação de em- preendiment os econômicos solidários, com ênfase em artesanato e atua na coordenação de projetos voltados para o setor artesanal. Endereço: QNA 39 bloco A Ed. Debea apt 302. Brasília/DF. Email: [email protected] om Resumo O campo do design, desde seu surgimento, negou a existência do artesanato e evitou qualquer contato possível entre os dois. Porém, a parr da década de 1980, o Brasil inicia uma aproximação que quebra paradigmas de conceito e da história de ambos. O artesanato passou a fazer parte de discussões no âmbito do poder público, privado e da academia. O avanço para ambos foi extraordinário, mas os resultados dessa iniciava nem sempre são posivos. A história desse distanciamento ainda apresenta resquícios nos dias de hoje. Este argo pretende: discorrer sobre essa história de distanciamento e aproximação, expondo os caminhos seguidos durante essa trajetória e os conceitos estabelecidos para denir design e artesanato; apresentar dois exemplos de intervenções de designers em empreendimentos de artesanato, relacionando os pontos de tensão caracterizados por benecios unilaterais e, algumas vezes, vercais que espelham problemas históricos dessa relação; bem como promover reexão no sendo de encontrar caminhos de uma relação colaborava e harmoniosa. Palavras-chave Artesanato. Design. Idendade. Abstract Since its emergence, the design denied the existence of the handicra and avoided any possible contact between the two of them. However, since the 80’s, Brazil has started to approximate these subjects, leading to a paradigm shi in the concepts and history of both. Thus, the handcra became part of several discussions in the public and private sector, as well as the academy. The progress of both areas was outstanding, though, the results of this iniave are not always posive; the legacy

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  • Revista do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gesto Social - CIAGS & Rede de Pesquisadores em

    Gesto Social - RGS

    103 Cadernos Gesto Social, v.4, n.1, p.103-115, jan./jun. 2013 | www.cgs.ufba.br

    v.3, n.2, jul./ dez. 2012ISSN: 1982-5447www.cgs.ufba.br

    DESIGN E ARTESANATO:FRAGILIDADES DE UMA APROXIMAO

    Design and Handicraft:Fragilities of an Approach

    Diseo y Artesana:Debilidades de una Aproximacin

    Mara Fontenele Santana (SEBRAE)*

    *Graduada em Desenho Industrial com habilitao em Projeto de Produto e Programao Visual pela Universidade de Braslia (UnB). Especialista em Gesto Pblica e Sociedade pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Trabalha no SEBRAE Nacional na car-teira de artesanato. Tem experincia na rea de incubao de em-preendimentos econmicos solidrios, com nfase em artesanato e atua na coordenao de projetos voltados para o setor artesanal.Endereo: QNA 39 bloco A Ed. Debea apt 302. Braslia/DF. Email: [email protected]

    Resumo

    O campo do design, desde seu surgimento, negou a existncia do artesanato e evitou qualquer contato possvel entre os dois. Porm, a partir da dcada de 1980, o Brasil inicia uma aproximao que quebra paradigmas de conceito e da histria de ambos. O artesanato passou a fazer parte de discusses no mbito do poder pblico, privado e da academia. O avano para ambos foi extraordinrio, mas os resultados dessa iniciativa nem sempre so positivos. A histria desse distanciamento ainda apresenta resqucios nos dias de hoje. Este artigo pretende: discorrer sobre essa histria de distanciamento e aproximao, expondo os caminhos seguidos durante essa trajetria e os conceitos estabelecidos para definir design e artesanato; apresentar dois exemplos de intervenes de designers em empreendimentos de artesanato, relacionando os pontos de tenso caracterizados por benefcios unilaterais e, algumas vezes, verticais que espelham problemas

    histricos dessa relao; bem como promover reflexo no sentido de encontrar caminhos de uma relao colaborativa e harmoniosa.

    Palavras-chave

    Artesanato. Design. Identidade.

    Abstract

    Since its emergence, the design denied the existence of the handicraft and avoided any possible contact between the two of them. However, since the 80s, Brazil has started to approximate these subjects, leading to a paradigm shift in the concepts and history of both. Thus, the handcraft became part of several discussions in the public and private sector, as well as the academy. The progress of both areas was outstanding, though, the results of this initiative are not always positive; the legacy

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    CADERNOS GESTO SOCIAL

    of this gap still remains nowadays. This article intends to expatiate on this history of detachment and approach, showing the paths taken along the way, and also presenting two examples of designers interventions in handicraft ventures, connecting the strain points featured by unilateral benefits and even vertical that mirrors historical problems of this relationship; and promoting the reflection to find new ways to a collaborative and harmonious relationship.

    Keywords

    Handicraft. Design. Identity

    Resumen

    El diseo, desde su creacin, ha negado la existencia de la artesana y evitado cualquier posibilidad de contacto entre los dos, pero desde la dcada de 1980 Brasil comenz un enfoque que rompe los paradigmas del concepto y la historia de ambos. La artesana pas a formar parte de las discusiones del gobierno, del sector privado y de la academia. El avance para ambos fue extraordinario, pero los resultados de esta iniciativa no siempre son positivos, la historia de este distanciamiento todava muestra restos de esta distancia hoy. En este artculo se propone discutir la historia de distanciamiento y aproximacin, exponiendo los caminos seguidos durante la trayectoria y los conceptos establecidos para definir el diseo y la artesana; presenta tambin dos ejemplos de intervenciones de diseadores en emprendimientos de artesana en relacin con puntos de tensin caracterizados por beneficios unilaterales y algunas veces verticales que espejan problemas histricos de esta relacin; y promueve reflexin para encontrar caminos de una relacin colaborativa y harmoniosa.

    Palabras clave

    Artesana. Diseo. Identidad

    Introduo

    Desde seu surgimento, na Revoluo Industrial, o campo do design traou seu caminho distante do artesanato e foi ator na separao do trabalho intelectual para o trabalho mecnico. A histria das origens do design no Brasil, tambm, segue similar trajeto de distanciamento e, em alguns momentos, at de negao. A aproximao comeou na dcada de 1980 e partiu dos prprios designers. At ento, o artesanato no Brasil vivia da prpria sorte e, somente na dcada de 1990, surgem as primeiras instituies de apoio ao artesanato, que ratificaram a reaproximao.

    O artesanato seguiu sendo estudado por tcnicos, acadmicos e por representantes dos poderes pblico e privado. As instituies apoiadoras promoveram discusses com gestores de programas de artesanato, tcnicos e estudiosos do assunto para organizar e classificar o artesanato brasileiro. Esses conceitos balizaram as aes dos gestores e devem servir como orientao para elaborao de polticas pblicas e polticas de acesso a mercado. Dentre os conceitos, est o artesanato de referncia cultural, que define o artesanato como aquele que sofre alguma interveno de designers, o que legitima a aproximao. O Brasil j possui vrios casos e resultados que conseguiram mudar a realidade de artesos e designers. No entanto, ainda h interaes com benefcios unilaterais, principalmente para o designer ou para o mercado, que espelha problemas histricos da relao entre os dois campos.

    Os motivos do insucesso so comuns, mas fceis de serem percebidos apenas por quem acompanha o desenvolvimento do artesanato. H projetos de visibilidade nacional ou internacional com conflitos nos resultados, que no ficam aparentes apenas na apresentao do produto artesanal. Dessa forma, sero abordados, aqui, dois casos de interao entre designer e arteso que no tiveram bons resultados, pelo menos no que se espera para o desenvolvimento do artesanato e do arteso. Esses pontos de conflito ou de tenso,

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    que surgem no momento ps-interao, sero apresentados para abrir possibilidade de reflexo e, assim, encontrar alguns caminhos que acenem para o desenvolvimento de uma metodologia mais adequada para essa aproximao entre designers e artesos.

    1. O que design?

    Design um termo, frequentemente, utilizado de forma indiscriminada. Ele associado, principalmente, forma e inovao, sobretudo quando se pretende relacionar uma forma diferente Olha o design desse produto! ou quando se quer fazer ligao s tendncias ou imagem pessoal design de sobrancelha, hair design. Essas utilizaes do termo abordam a perspectiva esttica que apenas um aspecto de seu conceito.

    O International Council of Societies of Industrial Design ICSID, conselho internacional que protege e promove os interesses do profissional de Desenho Industrial, define design como

    uma atividade criativa cuja finalidade estabelecer as qualidades multifacetadas de objetos, processos, servios e seus sistemas em ciclos de vida inteiro. Portanto, design o fator central da humanizao inovadora de tecnologias e o fator crucial de intercmbio cultural e econmico. (ICSID, 2012)

    O conceito do ICSID o mais representativo no mbito internacional e apresenta o design como uma atividade que deve criar produtos pensando em todas as suas interfaces, seu ciclo de vida e a relao do objeto com usurio e sociedade, sem apresentar o aspecto esttico como foco principal do designer.

    A expanso do design suscitou diferentes pontos de vista e, consequentemente, diferentes conceitos. Lbach (2001) salienta que, para falar sobre design, necessrio levar em considerao alguns pontos. Primeiro, a postura do usurio sobre o que vem a ser design, aquele que se

    importa com os objetos e no com a discusso sobre design, ou o que questiona a sua participao nos processos de planejamento ou de design. Segundo, a viso do fabricante industrial para produo em srie, em que o design o emprego de meios estticos para atrair os clientes. Terceiro, a critica marxista que coloca o design como uma droga milagrosa que encobre o baixo valor utilitrio da mercadoria a fim de aumentar as vendas, ou seja, o seu valor de troca. E, por ltimo, a viso do designer que se coloca como solucionador dos problemas dos usurios e fabricantes.

    Em 2007, o designer Philippe Starck, em uma palestra intitulada Por que design? (Why Design?), abordou os diferentes conceitos e, de maneira pouco acadmica, categorizou trs tipos de designer:

    Um deles, podemos chamar de Design Cnico, que o design inventado por Raymond Loewy nos anos 50, que diz, o que feio uma venda ruim, La Laideur se vend mal, o que terrvel. Quer dizer que o design deveria ser apenas uma arma para marketing, para o fabricante fazer produtos mais sexy, e, assim, vender mais, isso besteira, obsoleto, ridculo. Eu chamo isso de Design Cnico. Depois existe o Design Narcisista. um designer fantstico que projeta apenas para outro fantstico designer. Depois h pessoas como eu, que tentam merecer existir, e que esto to envergonhadas de fazer esse trabalho intil, que tentam fazer de outra maneira, e elas tentam e tentam. Eu tento no fazer o objeto para o objeto, mas para o resultado, para o lucro do ser humano, para pessoas que iro us-lo. Se ns pegarmos a escova de dente... Eu no penso sobre a escova de dente. Eu penso qual ser o efeito da escova de dentes dentro da boca? E para entender qual ser o efeito da escova de dentes na boca, eu preciso imaginar: quem o dono da boca? Qual a vida do dono dessa boca? Em que tipo de sociedade esse cara vive? Que civilizao criou essa sociedade? (STARCK, 2007).

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    Essa a problematizao que vive o sinuoso conceito de design. Seu entendimento importante, principalmente, quando o designer se prope a interferir no trabalho artesanal.

    Devem-se considerar, como na definio do ICSID (2012), as multifacetas do objeto e a sua relao com o usurio, a qual se expressa por suas funes. Como Lbach (2001) prope, essas funes se tornam perceptveis no processo de uso e possibilitam a satisfao de certas necessidades. Elas podem ser separadas em trs categorias: funo prtica, funo esttica e funo simblica. A funo prtica refere-se aos aspectos fisiolgicos de uso, em que cumpre um papel relacionado sobrevivncia do ser humano e sua sade fsica. Essa funo se preocupa com texturas, dimenses, formas. A funo esttica est relacionada aos aspectos multissensoriais que iro atuar no sistema nervoso e psicolgico do ser humano. As caractersticas de materiais, texturas, cores, som esto envolvidos nessa funo do objeto. A funo simblica est ligada s experincias e sentimentos do usurio e engloba os aspectos espirituais, psquicos e sociais do uso, os quais envolvem as relaes sensoriais que possam remeter s experincias positivas ou negativas do usurio.

    Se o papel do design est voltado para a humanizao inovadora de tecnologias e fator crucial de intercmbio cultural e econmico (ICSID, 2012), deve ser tanto na interao do usurio com o objeto, quanto na interao do produtor com o objeto produzido e na aproximao do produtor com o usurio e a sociedade, tendo a responsabilidade e o compromisso de diminuir a lacuna que provoca a alienao do trabalho e alienao do consumo.

    2. O que artesanato?

    O artesanato no quer durar milnios nem est possudo da pressa de morrer prontamente. Transcorre com os dias, flui conosco, se gasta pouco a pouco, no busca a morte ou tampouco a

    nega: apenas aceita este destino. Entre o tempo sem tempo de um museu e o tempo acelerado da tecnologia, o artesanato tem o ritmo do tempo humano. um objeto til que tambm belo; um objeto que dura, mas que um dia, porm, se acaba e resigna-se a isto; um objeto que no nico como uma obra de arte e que pode ser substitudo por outro objeto parecido, mas no idntico. O artesanato nos ensina a morrer e, fazendo isso, nos ensina a viver. (OCTAVIO PAZ apud SEBRAE, 2010, p.17).

    O artesanato, apesar de estar presente desde os primrdios da produo de objetos, tem seu conceito amplamente discutido e categorizado no mbito do poder pblico, privado ou acadmico, principalmente a partir da dcada de 80 (NETO, 2007, p.02). Mesmo essas discusses tendo pouca relevncia para os artesos, estas so necessrias para que acadmicos, tcnicos e gestores compreendam melhor uma prtica da qual esto distantes. Tais discusses tero importncia para o arteso a partir do momento que forem elaboradas polticas pblicas, estratgias de acesso a mercado e mapeamento de cenrios mais especficos.

    A Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura UNESCO, com sua atuao tambm no artesanato, em vrios pases em desenvolvimento, conseguiu uma definio consistente sobre produtos artesanais:

    Produtos artesanais so aqueles confeccionados por artesos, seja totalmente a mo, com uso de ferramentas ou at mesmo por meios mecnicos, desde que a contribuio direta manual do arteso permanea como o componente mais substancial do produto acabado. Essas peas so produzidas sem restrio em termos de quantidade com o uso de matrias-primas de recursos sustentveis. A natureza especial dos produtos artesanais deriva de suas caractersticas distintas, que podem ser utilitrias, estticas, artsticas, criativas, de carter cultural e simblicas e significativas do

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    ponto de vista social. (UNESCO, 1997 apud, BORGES, 2011, p.21).

    Para alm da definio do que vem a ser artesanato ou produtos artesanais, houve uma ampla discusso promovida pelo Programa do Artesanato Brasileiro do Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior PAB/MDIC e pelo Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas SEBRAE que gerou uma classificao das vrias categorias de artesanato. Essa discusso resultou na Base Conceitual do Artesanato Brasileiro, publicado pela portaria no 29, em outubro de 2010, pelo MDIC (BRASIL, 2010), e na publicao do Termo de referncia do Programa SEBRAE de Artesanato em 2004, atualizado em 2010 (SEBRAE, 2010). Existem pequenas diferenas entre as duas publicaes, mas, no geral, as categorias do artesanato so divididas em arte popular, artesanato tradicional, artesanato indgena, artesanato de referncia cultural, artesanato conceitual e trabalho manual.

    Arte popular o conjunto de atividades poticas, musicais, plsticas, dentre outras expressivas que configuram o modo de ser e de viver do povo de um lugar (BRASIL, 2010, p. 12). So os conhecidos mestres artesos que produzem peas nicas, frutos da criao individual, com profundo compromisso com a originalidade, e que revela a identidade cultural regional.

    O artesanato tradicional o conjunto de artefatos mais expressivos da cultura de um determinado grupo, representativo de suas tradies, porm incorporados sua vida cotidiana (SEBRAE, 2010, p. 14). Em geral, o artesanato tradicional feito em famlia ou caracterstico de pequenas comunidades, em que o conhecimento transmitido de gerao em gerao. Suas peas possuem grande valor por representarem a memria cultural de uma comunidade.

    O artesanato indgena o resultado do trabalho produzido no seio de comunidades e etnias indgenas, onde se identifica o valor de

    uso, a relao social e cultural da comunidade (BRASIL, 2010, p. 28). O trabalho coletivo e utilizado no cotidiano da vida tribal.

    Artesanato de referncia cultural so produtos cuja caracterstica a incorporao de elementos culturais tradicionais da regio onde so produzidos (SEBRAE, 2010, p. 14). So produtos que sofreram alguma interveno, seja de designers, arquitetos e artistas, para diversificar os produtos, dinamizar a produo, agregar valor, adequando s exigncias do mercado.

    Artesanato conceitual so objetos produzidos a partir de um projeto deliberado de afirmao de um estilo de vida ou afinidade cultural. A inovao o elemento principal que distingue este artesanato das demais categorias (SEBRAE, 2010, p.14). Diferentemente do artesanato de referncia cultural, em que o artista interfere na produo, neste caso, ele o produtor, e utiliza o produto como afirmao de valores e estilo de vida.

    O trabalho manual, apesar de exigir destreza e habilidade, a matria-prima no passa por transformao. Em geral, so utilizados moldes pr-definidos e materiais industrializados. As tcnicas so aprendidas em cursos rpidos (BRASIL, 2010, p. 14). Trata-se de ocupao secundria, sendo, muitas vezes, uma terapia ocupacional. As peas no possuem valor cultural e no h uma produo contnua.

    Alm dessas categorias, o Programa do Artesanato Brasileiro (BRASIL, 2010) considera, ainda, o artesanato de reciclagem, e o SEBRAE e o Programa do Artesanato Brasileiro discutem sobre produtos tpicos e industrianato.

    H pontos convergentes entre as categorias apresentadas, j que todos os produtos passam por transformao da matria-prima, tm predominncia de produo manual e possuem identidade cultural e local. Dentre as funes de produto apresentadas, a funo simblica do produto artesanal a mais importante, pois vai alm da sua forma, da sua funcionalidade e da sua matria-prima. Esse artesanato revela uma histria, seja de uma regio, de uma famlia,

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    do cotidiano ou do prprio arteso. Cada pea recebeu uma ateno e um cuidado ao ser produzido, o que no pode ser dito de nenhum produto industrial, por mais que tentem vend-lo como exclusivo. Este o grande diferencial do artesanato.

    3. Histria do design e do artesanato

    O termo design surge depois da Revoluo Industrial, marco das transformaes dos modos de produo e de organizao do trabalho. De acordo com Hobsbawn (apud CARDOSO, 2004), tal Revoluo se refere, essencialmente, criao de um sistema de fabricao que produz quantidades to grandes e a um custo que vai diminuindo to rapidamente que passa a no depender mais da demanda existente, mas gera o seu prprio mercado. A Revoluo Industrial se caracteriza por quatro mudanas fundamentais na esfera da produo de mercadorias: aumento do tamanho das oficinas e fbricas, ampliao da escala de produo, expanso da produo seriada com moldes e mecanizao e crescimento da diviso de tarefas com uma especializao cada vez maior da produo.

    Em contraposio, a produo manufaturada acontecia em pequenas oficinas, nas quais havia o mestre arteso e os aprendizes, em que todos eram responsveis por todo o processo produtivo e era possvel desenvolver produtos personalizados. Com a Revoluo Industrial, essas pequenas oficinas foram substitudas, como os atelis de alfaiates que foram trocados pelas fbricas de tecidos e de vesturio, padronizando as escalas de tamanho das vestimentas. Essas pequenas oficinas no se extinguiram, mas, apesar de numerosas, representavam a minoria do volume produzido nos pases industrializados.

    O design surge como uma estratgia de ampliao dos lucros das indstrias:

    Em vez de contratar muitos artesos

    habilitados, bastava um bom designer para gerar o projeto, um bom gerente para supervisionar a produo e um grande nmero de operrios sem qualificao nenhuma para executar as etapas, de preferncia como meros operadores de mquinas. A remunerao alta dos dois primeiros era mais do que compensada pelos salrios aviltantes pagos aos ltimos, com a vantagem adicional de que estes podiam ser demitidos sem risco em pocas de demanda baixa. Assim, a produo em srie a partir de um projeto representava para o fabricante uma economia no somente de tempo mas tambm de dinheiro. (CARDOSO, 2004, p. 26).

    O design era voltado para a eficincia da produo e ampliao do lucro. A produo era empurrada, ou seja, o designer projetava sem saber a real demanda do mercado, cabendo empresa convencer o consumidor da necessidade e importncia daquele produto.

    O incio dos estudos sobre design data da dcada de 1920, perodo modernista e, de acordo com Cardoso (2004), estes tendem a impor uma srie de normas e restries ao leitor, como isto design e aquilo no, este designer e aquele no, estabelecendo sua identidade a partir da incluso de uns e excluso de outros. Esses estudos concebem o design no isolamento entre o processo de concepo da ideia do produto e seu processo de execuo e produo, o que alicera a separao entre a fabricao artesanal e a mecanizada, e entre arteso e designer.

    No Brasil, o design teve seu impulso na dcada de 1950, com o desenvolvimentismo e a rpida expanso da base industrial. Porm, o momento inicial popular do design marcado pela criao da Escola Superior de Desenho Industrial - ESDI, no Rio de Janeiro, em 1963. A ESDI adotava a linguagem da Escola Superior de Design de Ulm, Alemanha, que seguia padres estticos modernista da Bauhaus, primeira escola de design do mundo que funcionou na Alemanha entre 1919 e 1933 O fenmeno de difuso das empresas multinacionais no ps-guerra cria o

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    chamado Estilo Internacional, que se difunde, tambm, no Brasil, em que se acreditava que todo objeto teria sua forma ideal e simplificada numa lgica funcionalista, padronizando e uniformizando os produtos, independente das questes culturais envolvidas. Seguindo essa tendncia, a institucionalizao do design no Brasil rompeu com o saber ancestral manifesto em nossa cultura (BORGES, 2011, p. 31), o que levou desconsiderao e desvalorizao dos artefatos j produzidos e das tcnicas difundidas pela cultura indgena, colonizao de portugueses ou fluxos migratrios,

    A forte expresso internacional da escola vanguardista Bauhaus e a internacionalizao dos funcionalistas contriburam para reforar o antagonismo dos designers em relao ao artesanato. No entanto, o design comea a mudar sua perspectiva pelo mundo na dcada de 1960, sendo marcado, no Brasil, pelo Tropicalismo, quando os designers, de acordo com Cardoso (2004), abrem os olhos para o conhecimento tradicional e cultural brasileiro, combinando nacionalismo e internacionalismo, tradio artesanal e progresso industrial. Inicia-se, contudo, outra lgica de produo, ou seja, a produo puxada, em que o consumo do cliente que determina a quantidade produzida, e o designer projeta a partir das necessidades e desejos do consumidor. H preocupao em expandir a diversidade dos produtos e entender a lgica de consumo para ampliar o mercado. O design passa a desenvolver metodologias que busquem a resposta sobre as necessidades humanas e como estimular o desejo de consumo. Nessa poca, surge, tambm, a formao de outro grupo que discute questes como tecnologias alternativas, design social, design participativo, conceitos que buscam a insero do aspecto humano na produo, tecnologia e produto, tirando o econmico do foco direto.

    No Brasil, apenas em meados da dcada de 1980, inicia-se um movimento de aproximao do designer e do arteso em busca da revitalizao do artesanato, que se daria por

    meio da preservao das tcnicas produtivas que haviam sido passadas atravs de geraes e da incorporao de novos elementos, formais e/ou tcnicos, aos objetos (BORGES, 2011, p. 45). Essas iniciativas comearam apenas pelo interesse individual dos designers, ainda sem instituies que promovessem essa interao ou que ao menos respondessem pelos anseios dos artesos.

    Apenas na dcada de 1990 que surgem as primeiras instituies que deram suporte e promoveram o artesanato no Brasil. Em 1995, surge o PAB/MDIC, com atribuio de elaborar polticas pblicas para o artesanato e atuar nos eixos principais: promoo comercial por meio de feiras e eventos nacionais e internacionais; mapeamento do setor artesanal pelo Sistema de Informao do Artesanato SICAB; promoo de capacitao para artesos e multiplicadores com foco em empreendedorismo; e estruturao de ncleos de produo artesanal pelos PABs estaduais. Logo depois, em 1998, implementado o Programa SEBRAE de Artesanato, com alcance nacional, objetivando levantar informaes sobre o cenrio do artesanato brasileiro e atuar na formao dos artesos, em diversas reas vinculadas ao empreendedorismo, e no acesso ao mercado, para o fortalecimento do negcio do artesanato. Outra instituio implementada no mesmo ano foi o programa Artesanato Solidrio ArteSol, no mbito do Conselho da Comunidade Solidria, em Braslia e, em 2002, transformado em Oscip (Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico), quando teve sua atuao ampliada. O foco da ArteSol no artesanato tradicional, buscando sua revitalizao e valorizao, promovendo formao e capacitao tcnica em polticas emancipadoras que levem ao protagonismo do arteso, bem como desenvolvendo aes de apoio comercializao. Com o foco na tradio, o ArteSol no incentiva a interao e a atuao do designer com o artesanato.

    As instituies e programas citados foram, e ainda so, os mais relevantes para o cenrio do artesanato brasileiro, apesar de terem surgido

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    outras tantas com foco em comercializao ou capacitao que, tambm, tm o seu valor. Essas iniciativas inserem o artesanato na pauta de polticas pblicas, alm de evidenciar a importncia do setor para o cenrio econmico brasileiro. Assim, o artesanato comea a contar com estratgias que visam sua qualificao e profissionalizao diante de um mercado consumidor global.

    4. Diviso do trabalho e alienao

    O mais antigo princpio inovador do modo capitalista de produo foi a diviso manufatureira do trabalho, e, de uma forma ou de outra, a diviso do trabalho permanece o princpio fundamental da organizao industrial, afirma Braverman (1987, p. 70). Essa diviso caracterizada tanto pelo distanciamento entre o trabalho intelectual e o trabalho mecnico, quanto dentro do prprio trabalho mecnico, no qual as etapas do processo produtivo se segmentam a tal ponto que o operrio no tem mais viso do todo e, como consequncia, se aliena.

    (...) o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal, a objetivao do trabalho. A efetivao a sua objetivao. Esta efetivao do trabalho aparece ao estado nacional-econmico como desefetivao do trabalhador, a objetivao como perda do objeto e servido ao objeto, a apropriao como estranhamento, como alienao. (MARX, 2010, p. 80).

    O objeto se distancia do homem enquanto trabalhador, consumidor e usurio. Enquanto trabalhador, porque o trabalho externo ao trabalhador, isto , no pertence ao seu ser, que ele no se afirma (MARX, 2010. p. 82). Enquanto consumidor, porque seu poder de compra determinado pela questo econmica, que a

    varivel responsvel por regular o mercado e o consumo (NASCIMENTO; TOBIAS, 2008). Na atual estrutura, o indivduo definido pelo seu poder de compra e quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob domnio do seu produto (MARX, 2010. p. 81), formando ciclos contnuos de alienao.

    H, ainda, o distanciamento pelo seu uso. Todo objeto tem uma interao com o ambiente, com o usurio e com a ao a qual se destina realizar. A trade formada por esses elementos, usurio-objeto-ao, chamada de affordance, termo criado por Gibson (apud BROCH, 2010) que pode ser entendido como as caractersticas de um objeto ou ambiente que intuitivamente provocam uma ao. Por exemplo, a forma de uma cadeira nos intui a sentar ou a subir, um lpis nos leva a escrever, ou marcar um livro, prender o cabelo ou matar algum, mesmo que no seja o melhor objeto para executar a ao. No h forma incorreta de imaginar essa interao; o que acontece com muitos objetos que estes no so projetados prevendo os affordances e tornam a ao muito mais difcil de ser executada.

    De acordo com Broch (2010), um adulto tem condies de inferir muito mais affordances do que uma criana, pela sua capacidade de abstrao e percepo, mas tambm pelo seu conhecimento adquirido, podendo variar com objetos em diferentes ambientes, materiais e disposio espacial. No h como ter um objeto com todos affordances universais, pois, alm das caractersticas do objeto, as caractersticas culturais tambm so relevantes.

    As tecnologias convencionais, produzidas e utilizadas pelos trabalhadores, de acordo com Dias (2009), alm de serem orientadas pelos mercados dos pases desenvolvidos, de alta renda, so irradiadas pelas empresas desses pases e absorvidas de forma acrtica pelas empresas de pases subdesenvolvidos.Para estes, as tecnologias convencionais que, a princpio, aparentam progresso, so consideradas avanadas tecnologicamente, s que geram maior esforo e despesa, pois no condizem com

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    os conhecimentos adquiridos e com a realidade cultural, tornando a ao muito mais difcil de ser executada. Utilizar uma tecnologia convencional, para o local o qual no foi concebida, aumenta o custo de qualquer atividade.

    Diferente da Tecnologia Convencional, a Tecnologia Social, segundo Rafael Dias (2009, p. 02), deveria ser adaptada pequena escala, tanto no sentido fsico quanto financeiro, o que favoreceria os trabalhadores e pequenos proprietrios em geral, alm de (...) permitir a plena utilizao do potencial criativo do produtor direto. Produzir para a realidade local, tendo como base os problemas reais e as referncias culturais, amplia a quantidade de affordances comuns e gera mais eficincia e eficcia nos resultados, os quais no visam to somente ao aumento da produtividade e do lucro, mas ao favorecimento do trabalhador.

    Com a tecnologia social, a alienao do trabalho quebrada. O trabalhador protagonista no desenvolvimento da tecnologia social e se reaproxima do objeto enquanto trabalhador, consumidor e usurio. O objeto no produzido para o lucro, to pouco refora o trabalho alienado, mas tambm reaproxima o trabalhador enquanto consumidor, pois adquire poder de compra para obter produtos que representem suas necessidades e/ou desejos. E, ainda, se reaproxima enquanto usurio, pois esses produtos apresentaro e cumpriro funes representativas para si.

    5. Crticas atuao dos designers: o que h de

    errado?

    cada vez mais comum a atuao de designers em empreendimentos artesanais, com o objetivo de interferir na produo e ampliar seu acesso ao mercado. O Brasil possui vrios exemplos de sucesso na interao do designer com o arteso. importante que o artesanato consiga transpor a barreira do acesso informao e entre em contato com as discusses

    que acontecem sobre sua atividade, com o usurio de seu produto, com os novos canais de comunicao, e transforme-se em sujeito da sua prpria histria, mesmo que seu trabalho seja uma atividade muito tradicional.

    Os artesos no esto numa redoma, imunes a qualquer influncia exterior. Em interao com o mundo sua volta, esto se transformando continuamente e, muitas vezes, transformando o seu prprio trabalho. Decidir, desde uma viso de fora, preservar algo a qualquer custo pode ser considerado uma espcie de condecorao imobilidade e, portanto, morte. (BORGES, 2011, p. 138).

    O contato com o designer pode ser a ligao com essas novas experincias, possibilitando uma abertura para conquista da sustentabilidade do arteso, afastando-o da vulnerabilidade social, desde que a abordagem seja por meio de uma viso sistmica. A relao deve se estabelecer a partir da troca de experincias, pautada na cultura e no trabalho, na formao para a cidadania, de forma que ajude o arteso a entender o mundo em que vive. Esse processo deve contribuir para a articulao de todos os campos dos saberes locais, regionais e globais, garantindo livre trnsito entre um campo e outro para a aplicao prtica na vida diria. Abbonizio e Fontoura (2008, p. 2621) observam que a aproximao dessa atuao do designer com o arteso

    com os princpios pedaggicos de Paulo Freire, se deve, primeiramente, pela semelhana inicial entre alguns de seus conceitos e idias com aqueles anunciados e praticados intuitivamente por alguns designers em intervenes no artesanato. Destacam-se, como: abordagem participativa, seguir os desejos e aspiraes dos envolvidos, respeito ao contexto social, identidade cultural e outros. (ABBONIZIO; FONTOURA, 2008, p. 2621).

    As atuaes dos designers podem vir por

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    interesse individual, por meio de instituies pblicas, empresas, trabalhos acadmicos. A instituio contratante ou solicitante tem responsabilidade pela forma de atuao do designer. As exigncias impostas no contrato e as expectativas de resultados do projeto podem interferir nas suas escolhas de metodologia de atuao.

    Com o intuito de apresentar os problemas comuns na atuao do designer em empreendimentos artesanais, sero apresentadas duas simulaes de atuao baseadas em fatos conhecidos.

    Imagine uma empresa brasileira que tem como eixo principal o comrcio justo e solidrio e o objetivo de apoiar pequenos produtores e artesos no acesso a mercados internacionais. Para tal, a empresa atua na sensibilizao sobre os conceitos do comrcio justo, consultoria em logstica e exportao, anlise de mercado, aumento da produtividade e no desenvolvimento de produtos que atendam as exigncias do mercado, mas no emite selo de certificao. Essa empresa possui parceiros internacionais que comercializam, em pases da Europa, produtos brasileiros de comrcio justo, e apresentam uma pesquisa das tendncias do mercado internacional, como preferncias de cores, tipos de objetos, dimenso e preo.

    Com o acesso a essas informaes, a empresa seleciona empreendimentos artesanais pelo pas e desenvolve produtos baseados na pesquisa j elaborada. Dos empreendimentos selecionados, grande parte recebe, alm de consultoria no desenvolvimento do produto, uma marca que parece cpia uma das outras ou a cara do designer que as desenvolveu. Alm disso, os empreendimentos que receberam consultoria em desenvolvimento de produto, apesar de ficarem em cidades e estados diferentes, desenvolvem os mesmos tipos de produtos, em geral, brindes e pequenos acessrios.

    No possvel identificar pelos produtos apresentados, observando tcnicas produtivas, formas, cores e grafismo, a regio em que esses

    produtos foram desenvolvidos ou, at mesmo, dizer que o produto brasileiro, quanto mais perceber a identidade do arteso. Dessa forma, o produto artesanal que perdeu sua identidade cultural no pode mais ser considerado um produto artesanal. A empresa de comrcio justo e solidrio que busca, pelos seus princpios, oferecer uma vida digna atravs do trabalho para que o arteso alcance sua sustentabilidade, no alcana sua misso, pois descaracterizou e ignorou o produtor do processo. A comercializao acontece, a renda das comunidades aumentou, pois conseguiram espao de comercializao para os empreendimentos, mas isto no pode ser caracterizado como artesanato ou como trabalho que emancipa o trabalhador, j que este atua como fornecedor para uma empresa internacional, sem autonomia na criao do seu trabalho.

    A atuao em prol do crescimento do artesanato no pode ser apenas no discurso, o crescimento do setor envolve aes alm da comercializao. Adlia Borges (2011) salienta que antes da atuao das instituies em prol do artesanato,

    o principal agente indutor de mudanas nos produtos era o comprador que ia at as comunidades e esse, muitas vezes, no tem escrpulo, podendo encomendar rplicas de Mickey no meio do serto. E o prprio fato de um item de uma produo vender e outro no j leva, naturalmente, a um redirecionamento da produo posterior. (BORGES, 2011, p. 139).

    Alguns designers podem se apresentar como anjos que iro salvar o arteso de um purgatrio que nem os artesos sabem que esto. A salvao vir por meio de um produto, definitivamente no ser um Mickey, mas ser um belo produto com alto apelo esttico. Mas, o que fazer com o produto, qual ser o preo, onde comercializar, o que ele representa, h capacidade produtiva para atender as demandas? Que salvao essa?

    Agora imagine outro caso, um escritrio de

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    design com profissional renomado que defende a transformao pelo design e est atuando com empreendimentos artesanais em municpios com alta vulnerabilidade social h alguns anos. Toda a equipe do escritrio vai ao municpio, conhece a realidade e estabelece uma relao com a cultura local. H um cuidado com o produto que est sendo desenvolvido e, tambm, com o que o mercado externo exige, pois a misso gerar novas oportunidades econmicas e melhorar a qualidade de vida das pessoas.

    Suponha que esse escritrio atue durante 15 dias junto a uma pequena comunidade rural, no interior do pas, e com baixo ndice de desenvolvimento humano IDH. Esse projeto possui equipe multidisciplinar, contando com designers, assistentes sociais, engenheiros, fotgrafos, arquitetos que realizam oficinas para melhoria e desenvolvimento de novos produtos. As oficinas promovem integrao da equipe do projeto com os agentes locais, e os produtos desenvolvidos so, em sua maioria, objetos de decorao e apresentam esttica contempornea. Muitas promessas so feitas comunidade, que fica mobilizada, cheia de esperana e com muita expectativa acerca do produto, uma vez que a soluo, vendida pelo escritrio, para os problemas do IDH baixo, principalmente relacionados a saneamento bsico, vir de seu produto, agora comercial e de alto valor agregado.

    Romantizar o trabalho social no deve ser requisito para que a comunidade possa aderir ao projeto. O tempo para qualquer mudana longo, e os problemas de baixo IDH so estruturais e muito mais complexos de serem resolvidas do que apenas com a comercializao de artesanato.

    O projeto, que dura em mdia 15 dias, mostra resultados, muitos resultados para o designer renomado. Ele abre espaos na mdia para divulgao do trabalho, participa de exposies, de eventos sobre design, no pas e no exterior, aparece em diversas revistas, sem contar na visibilidade por meio das mdias digitais. O projeto possui alto apelo social e os objetos desenvolvidos so inovadores pela sua forma.

    Poucas mudanas ocorreram na comunidade atendida, e nenhuma ampliao de renda, mas a carreira profissional do designer j conquistou muita visibilidade.

    O produto em si no muita coisa. Todo produto faz parte de um sistema que tambm precisa ser estudado, tanto o ambiente de seu uso quanto o ambiente de mercado, em que necessrio avaliar os custos envolvidos com a logstica para comercializao dos produtos, as demandas de mercado, o preo, a capacidade produtiva e em quanto isso ir reverter para a comunidade, tanto economicamente quanto humanamente.

    Um perodo curto de atuao ou desenvolver trabalhos pontuais apenas com os requisitos de mercado so fatores que no contribuem para capacitar os artesos tcnica ou politicamente. O caminho mais fcil, mais rpido e mais barato ter o mnimo de contato com o arteso, o que pode ser feito na sala de um escritrio. Os resultados sero belos produtos bem fotografados e bem apresentados em catlogos, mas que raramente sairo da folha de papel e da fotografia. O arteso no se apropriar da ideia e no haver mudana positiva em sua realidade.

    6. Consideraes Finais

    A aproximao do design com o artesanato precisa sempre ser ponderada, mesmo que em muitos casos tenha resultados positivos para os artesos. preciso cuidar para que a estrutura da alienao do trabalho no se repita, na qual a remunerao alta do designer justificada por gerar uma baixa remunerao para o arteso e belos produtos para serem apresentados mundo a fora. O designer que atua com essa perspectiva contratado/financiado por alguma instituio (exceto quando a atuao pela universidade, nos casos de trabalho acadmico sem projeto vinculado) e tem como objetivo dar subsdio para ampliao de renda dos artesos. No entanto,

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    nesse caso, mantm-se a diviso das tarefas, em que o designer cria e o arteso produz, sendo que o primeiro, em muitos casos, tem uma remunerao muito maior do que o arteso.

    necessrio emancipar o arteso. O trabalho do designer deve ser independente do processo de criao do arteso. As instituies de ensino superior de design precisam ver e se aproximar do trabalho fora do cho de fbrica e de grandes produes em srie. As possibilidades de insero no mercado do designer so diversas e a atuao em empreendimentos artesanais um caminho cada vez mais real. O designer precisa ter subsdios para cumprir seu papel em qualquer caminho que escolher ou cenrio que encontrar, caso contrrio, ainda haver muitos Designers Cnicos e Designers Narcisistas, como nos casos em questo.

    Esses casos hipotticos citados no artigo representam apenas dois modelos com fragilidades em sua atuao e, consequentemente, em seus resultados, mas existem outros exemplos de menor/maior proporo que tambm geram resultados negativos. No difcil encontrar empreendimentos artesanais que tenham resistncia em receber um designer, pois j se frustraram com experincias que no deram certo. E arriscar novamente quase inconcebvel, cabendo ao prximo designer convencer que far um trabalho diferente. No raro artesos afirmarem que promessa no enche barriga, haja vista tantas tentativas que no geraram mudana para eles, mesmo que o trabalho tenha sido divulgado e diversas pessoas tenham interesse em adquirir os produtos.

    A aproximao do designer e do arteso importante para as duas partes, e deve ser entendida assim. A unilateralidade do trabalho inviabiliza a integrao e a descoberta mtua, j que o designer faz seu trabalho sem conhecer a rotina e cultura do arteso, e este no percebe o que diferencia sua criao da criao daquele.

    Segundo Adlia Borges (2011), o pressuposto bsico da aproximao entre designer e artesos deveria ser o respeito, que

    conquistado pela troca de conhecimento. O designer precisa se abrir para as virtudes do objeto, observ-lo com ateno, procurar compreend-lo, perceber a riqueza e a criatividade embutidas no trabalho que j foi realizado. Da mesma forma, o arteso precisa se abrir para conhecer e aprender sobre as variveis de um objeto e do usurio e como fazer para que isso mude sua realidade. importante planejar a atuao e ter metodologia especfica. O trabalho emprico comum, mas no pode ser assistemtico; desenvolver uma metodologia tambm aprender a descobrir.

    A atividade artesanal criativa. Ela no sofreu rompimento do trabalho intelectual, do trabalho mecanizado ou manual. O arteso figura central no processo de criao, caso contrrio, interrompe a produo dos novos produtos, visto que no h identificao com eles, pois teve sua capacidade de criar, imaginar e produzir tolhida. Por ser uma atividade criativa, o arteso no consegue se apropriar facilmente da ideia de terceiros, o que pode descaracterizar o artesanato e desconstruir a relao cultural dele com o produto. preciso distanciar a produo artesanal dessa lgica de mercado de consumo, mas absorvendo para si os conhecimentos adquiridos pelos designers, relacionando as funcionalidades ao bem estar fsico dos usurios.

    O artesanato no pode ser avaliado apenas pelo objeto, pois esse produto possui alto valor simblico quando est relacionado histria do arteso, da tcnica, da matria-prima, da comunidade e do produto, mesmo quando artesanato de referncia cultural. O produto que projetado longe dos olhares do arteso, tornando-o mero fornecedor, no consegue alcanar o mesmo nvel simblico, apesar de conquistar valor simblico maior que muitos produtos industriais.

    Adlia Borges (2011, p.145) afirma, sabiamente, que a interveno adequada consiste, muitas vezes, em apenas ajud-lo [o arteso] a ver, a aperfeioar aquilo que faz, mas sempre respeitando a sua essncia. O designer no deve se revestir de o detentor

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    do conhecimento, com o poder transformar a realidade, mas, apenas, como um agente com olhar externo, de preferncia com uma equipe multidisciplinar, que ir aprender e apoiar no que for possvel.

    Referncias

    ABBONIZIO, M.; FONTOURA, A. M. Reflexes sobre as intervenes de design no artesanato sob a tica dos Crculos de Cultura de Paulo Freire. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E DESENVOLVIMENTO EM DESIGN, 8., 2008, So Paulo. Anais... So Paulo;Associao de Ensino e Pesquisa de Nvel Superior de Design do Brasil AEND/Brasil, 2008. p. 2617-2626.

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