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Otium et Negotium As Antíteses na Antiguidade Actas de Colóquio Adriana Freire Nogueira coordenadora Otium et Negotim Vega 2007 Adriana Freire Nogueira coordenadora Vega

48043848 Otium Et Negotium as Antiteses Na Antiguidade

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  • Otium etNegotiumAs Antteses na Antiguidade

    Actas de Colquio

    Adriana Freire Nogueira coordenadora

    Otium

    et Negotim

    Vega

    2007

    Adriana Freire Nogueira

    coordenadora

    Vega

  • otium et negotium

  • otium et negotium

    Actas do IV Colquio da APEC(Associao Portuguesa de Estudos Clssicos)

    As Antteses na Antiguidade

    Faculdade de Cincias Humanas e SociaisUniversidade do Algarve

    Faro

    Adriana Freire Nogueira

    Coordenadora

    LisboaVega2007

    z

  • Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    Actas do IV Colquio da APEC

    coordenaoAdriana Freire Nogueira

    concepo grficaFernando Bastos

    execuo grficaVega Editora, Ltda

    Alto dos Moinhos, 6-A1500-459 LISBOA

    DEPSITO LEGAL268413/07

    Obra publicada com o apoio de:Fundao para a Cincia e Tecnologia

    Governo Civil de LisboaUniversidade do Algarve

    2007, UNIVErSIDADE DO ALGArVE Faculdade de Cincias Humanas e Sociais

    FArO

  • Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade I

    ApresentAO

    Otium et Negotium As Antteses nA AntiguidAde

    O ttulo deste Colquio da Associao Portuguesa de Estudos Clssicos (APEC) foi sugerido pela localizao do encontro: a Universidade do Algarve (UAlg). Zona conhecida essencialmente pelo lazer, o Algarve no comummente asso-ciado a estudo e investigao. Contudo, com o tempo, a UAlg foi impondo a sua presena na comunidade e foi sendo reconhecida como entidade prestigiada em diversos domnios, alguns mais evidentemente relacionados com o mar, outros menos evidentes, como os estudos em literatura oral e tradicional e os estudos teatrais.

    Mas existe esta nossa rea do saber, tambm aqui desenvolvida. Ainda que o grupo de pessoas seja pequeno, no deixa de ter significado, visto estar enquadrado num contexto maior que o do trabalho realizado dos Centros de Investigao alocados nas diversas universidades portuguesas e da aco da prpria APEC. O encontro facultou a compreenso interna e externa de que a actividade desenvolvida por poucos no , ipso facto, uma actividade individual(ista) e descontextualizada.

    A dicotomia Otium et Negotium pretendeu ser mote para outras dicotomias, todas elas to bem expostas nas comunicaes apresentadas pelos participantes, ul-trapassando a esfera estrita deste conceito da cultura romana. por isso que temos, neste volume, textos que reflectem dualidades na cultura grega, na cultura latina, em pocas como a medieval ou a renascentista, em abordagem de gnero e compa-ratistas, em temas como a religio, desde a popular egpcia, em poetas e escritores contemporneos.

    A internacionalidade do encontro permitiu aos participantes confirmarem que os seus saberes no esto isolados nem esto a ser desenvolvidos fora das linhas de investigao que se seguem em outros centros de saber. Participantes de institui-es de todo o pas, de universidades da Alemanha, Espanha, Estados Unidos da Amrica, Grcia, Itlia e reino Unido, falaram todos a mesma linguagem, mesmo quando no usavam a mesma lngua.

    O Colquio mobilizou tambm docentes de Escolas Secundrias da regio. Alguns de Lnguas e Literaturas Clssicas, que puderam reencontrar a sua rea de estudos principal, muitos de Lnguas e Literaturas Modernas, que ensinam Latim e que tinham falta destas actividades para os levarem a aproximarem-se mais do que se faz por este pas fora. O encontro foi creditado no CCPFC, proporcionando crditos nas suas reas cientficas, o que se veio a revelar uma vantagem adicional, nomeadamente nos concursos para titulares.

    A comunidade no acadmica tambm no ficou indiferente a este simpsio

  • Apresentao

    II Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    (ao qual no faltou um banquete num restaurante grego). A ACTA (A Companhia de Teatro do Algarve) fez uma ante-estreia da pea que estava a encenar (Antgona, num texto adaptado da tragdia de Sfocles e de A Tumba de Antgona, de Maria Zambrano), no Grande Auditrio da Universidade do Algarve, numa das noites do Colquio, e o Cineclube de Faro disponibilizou-se para apresentar na sua sala, no espao do IPJ da cidade de Faro, a Phaedra, de Jules Dassin, dando estas duas instituies culturais visibilidade ao que os classicistas do pas podem fazer.

    A leitura dos textos dir tudo o resto.Quero deixar aqui o nosso apreo e respeito pelo malogrado colega Fernando

    Patrcio Lemos, da Universidade de Lisboa, com quem pudemos conviver mais de perto naqueles dias.

    A todos os participantes, com e sem apresentao de comunicao, devo graas pela presena no IV Colquio da APEC e pela pacincia em esperar pela sada des-tas Actas. No me alongando, quero destacar e agradecer especialmente:

    - o apoio constante que nos deu o ento Departamento de Letras Clssicas e Modernas da Faculdade de Cincias Humanas e Sociais da Universidade do Al-garve (hoje Departamento de Lnguas, Comunicao e Artes), que quis, por muito tempo, que o seu nome reflectisse esta rea de conhecimento;

    - ao Mestre Lus Miguel Pereira, que foi o brao direito da execuo da activi-dade;

    - Professora Doutora Maria de Ftima Sousa e Silva, pelo amparo que deu a este projecto, desde o embrio.

    Adriana Freire NogueiraPresidente da Comisso Executiva

    Faro, Setembro de 2007

  • Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade III

    suMRiO

    Conferncia de Abertura - roma: a Vencedora Vencida 001Maria Helena Urea Prieto

    Igualdade na Diferena 009Manuel Alexandre Jnior

    Palavras Longas e Palavras Curtas em Latim 019Antnio rodrigues de Almeida

    Nostos and Oblivion in Greek Tragedy 031Marigo Alexopoulou

    To Contrrio a Si o Amor 037Carlos Ascenso Andr

    A Indelvel Busca da Luz na Obra de Hugo Santos 049Adriano Cordeiro

    O Idlio 2 de Tecrito 061Cludia Cravo

    Deuses Pagos e Demnios no Cristianismo 067Paula Barata Dias

    Justice and Injustice in the Iliad 079Katerina Dimopoulou

    O de Aquiles e de Heitor: Unidade versus Dissemelhana 093Pedro Braga Falco

    Odi et Amo: Amor e dio em Catulo 101Jos ribeiro Ferreira

    Tragdia e Desnudez Extrema na Fedra de Miguel de Unamuno 113Isilda Leito

    Causdico, Patrono ou Advogado nos Epigramas de Marcial 127Fernando Lemos

    In eo quod Amatur aut non laboratur aut et labor Amatur 139Alexandra de Brito Mariano

    Lo justo frente a lo legal 149Mara Jos Martn Velasco

    Desporto e solidariedade: um testemunho escolar quinhentista 157Antnio Melo

  • indice

    IV Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    O Otium e o labor nas Gergicas de Vrgilio e n A Criao do Mundo de Torga 171Antnio Moniz

    Ambiguidades no Eutidemo de Plato 187Adriana Freire Nogueira

    Inverso do Papel da Mulher nAs Bacantes de Eurpedes 195Natlia Maria Lopes Nunes

    Hlia Correia, o rancor. Exerccio sobre Helena 203Alessandra Oliveira

    Otivm e Negotivm no Tratado da repblica de Ccero 213Francisco de Oliveira

    A ritual without the Time of Exception 232Giovanni Panno

    Thesis and Antithesis in the Ancient Greek and roman Theatre 241Ioanna Papadopoulou

    real vs Virtual: a Aprendizagem das Declinaes atravs do Jogo Lingua Latina 253Lus Pereira

    A Perenidade de roma: Luzes e Sombras 269Virgnia Pereira

    Lo Sagrado y lo Profano en la Novela Griega Antigua 287Enrique Prez Benito

    representaes do Outro: Masculino/Feminino nos romances Gregos de Amor 301Marlia P. Futre Pinheiro

    Clitemnestra, Mulher de Mscula Vontade 319Nuno Simes rodrigues

    Contradicciones Trgicas 327Luca romero Mariscal

    representao retrica da Mulher na Tragdia Grega 337Vtor ruas

    Veleyo: Nuevo Sistema de Valores del Principado de Tiberio 351Antonio ruiz Castellanos

    Gregos versus Egpcios na Alexandria Ptolomaica 367Jos das Candeias Sales

    Grandeza e Pequenez nas representaes de Eros na Literatura e na Arte 383Maria Leonor Santa Brbara

  • SUMRIO

    Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade V

    Figuras de Antgona : do texto encenao 395Ana Clara Santos

    Falcias, Antteses e Paradoxos em Torno de Ser e Existir 407Jos Trindade Santos

    Antinomias nas Odes Corais Senequianas 413ndrea Seia

    Vida e Morte na Helena de Eurpides 421Maria de Ftima Silva

    A Construo de Modelos Educativos na Antiguidade 431Carmen Soares

    reminiscncias de ritos Agrrios romanos em Festividades Cclicas no Algarve 439Lina Soares

    Da Antiguidade ao renascimento 451Maria Lusa de Castro Soares

    Otium e Negotium no quinhentismo portugus 473Nair Castro Soares

    Between Earth and Underworld: The Case of Aristophanes Frogs 493John Thorburn

  • Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade 1

    COnFeRnCiA de ABeRtuRA

    ROMA: A VenCedORA VenCidAMaria Helena Urea Prieto

    U. Lisboa

    Por volta do ano 14 a. C., Horcio escreveu a Epstola I do Livro II, dirigida ao Imperador Augusto. Nela gravou para a posteridade uma anttese que define, resumida e lapidarmente, tudo aquilo que se costuma designar como Civilizao e Cultura Ocidental. Nos versos 156 e 157, escreveu:

    Graecia capta ferum uictorem cepit et artesintulit agresti latio ()

    fcil traduzir literalmente estes dois versos:

    A Grcia vencida venceu o seu feroz vencedore no Lcio agreste as artes introduziu ().

    To poucas e simples palavras resumem milnios de histria. No possvel, numa breve comunicao, pormenorizar o contedo riqussimo de seduo exercida sobre os romanos pela lngua e cultura gregas e, atravs delas, em toda a civilizao europeia e na dos pases que, noutros continentes, receberam da Europa os funda-mentos da sua actual vivncia civilizacional e cultural.

    Limitar-me-ei a evocar brevemente alguns marcos histricos da influncia grega em roma.

    Antes de mais, no posso deixar de assinalar o alfabeto grego que chegou a Itlia por volta de 600 a. C., atravs dos Etruscos. A famosa inscrio da fbula de Preneste (to falada e to contestada no sc. XX) foi durante muito tempo o docu-mento citado para comprovar essa transmisso.

    Surpreendentemente, a literatura latina comeou com uma traduo da Odis-seia, escrita no verso latino satrnio, por Lvio Andronico, Grego originrio de Tarento. Como prisioneiro de guerra, chegou a roma por volta de 272 a. C. Foi tambm tradutor para latim de uma tragdia e uma comdia gregas. Escreveu ain-da, maneira grega, um canto coral.

    Os autores latinos dos fins do sc. III a. C. e do sc. II a. C., Nvio, nio e cio, tentaram romanizar os temas, sem deixar de dever muito insprao grega nas suas

  • Maria Helena Urea Prieto

    2 Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    obras teatrais e picas. Quanto a Plauto e a Terncio, sabemos que as suas peas so, na maioria, inspiradas na Comdia Nova grega.

    Cato-o-Antigo, conhecido como adversrio do helenismo, frequentava, no en-tanto, no dizer de Plutarco, palestras e teatros gregos na Siclia. Consta at que, na velhice, se teria aplicado a estudar grego

    E que dizer do chamado crculo dos Cipies? A Grcia s foi definitivamente conquistada por roma em 146 a. C., mas, antes disso, Pblio Cornlio Cipio (filho de Cipio-o-Africano) escrevera Histria em grego, prova de que a cultura romana, nessa poca, j era bilingue. Em 168 a. C., depois da batalha de Pidna, foi deportado para roma, entre os refns gregos, o notvel estratego da Liga da Arcdia, Polbio, que, como preceptor de Cipio Emiliano, escreveu em grego uma das mais notveis Histrias de roma. Junto desta famlia actuou o filsofo grego Pancio. Mais tarde, Possidnio havia de consolidar o estoicismo em roma. E, pos-teriormente, Lucrcio cantar o epicurismo, que no teve grande sucesso entre os latinos, embora tambm Horcio fosse em certa medida epicurista.

    Entretanto, como disse, a Grcia foi militarmente vencida em 146 a. C. e com essa derrota consumou paradoxalmente a sua vitria.

    No sc. I a.C., os poetas lricos latinos imitavam os Gregos alexandrinos. Ccero chamava a este grupo inovador (em que Catulo foi um dos principais figurantes) os poetas novos (neoteroi: Cartas a tico, VII, 2, 1: poetae noui: De Oratore, 48, 161), que detestavam o velho nio. Apodava-os Ccero tambm de cantores Euphorionis (Tusculanas, 3, 45), como imitadores fanticos do alexandrino Eufrion.

    Mas eis que falei de Ccero! Vrias bibliotecas seriam necessrias (e no apenas vrios livros) para falar pormenorizadamente da actuao de Ccero como trans-missor da cultura grega para latim e, atravs deste, para toda a cultura ocidental. Em breves palavras lembrarei apenas os aspectos fundamentais que todos conhe-cem. Atravs das obras filosficas de Ccero, a principais doutrinas filosficas gregas entraram no patrimnio cultural europeu. Ele no falou apenas da histria da filo-sofia grega: adaptou a linguagem filosfica lngua latina e, atravs dela, a todas as lnguas europeias. As obras ciceronianas em que se nota sobretudo a influncia da filosofia grega so: De Officiis, De Republica (I e II), De legibus (I). Mas Ccero no se ficou apenas pela filosofia. Encareceu tambm o valor da Histria (De Oratore, II, 15, 62-63), lio igualmente recebida dos Gregos. Dissertou ainda sobre a me-lhor forma de Constituio Poltica (como j fizera Polbio e vrios outros autores gregos, de Herdoto a Plutarco1).

    As manifestaes de apreo pela Grcia no escasseiam em muitos autores lati-nos. Seria impossvel, nesta breve comunicao, alongar-me em muitas citaes so-bre o assunto. Limitar-me-ei a lembrar um passo significativo de Plnio o Moo

    1 Dissertei brevemente sobre a histria das teorias respeitantes s vrias formas de Constituies polticas em Grcia e roma no meu estudo intitulado: Democracia a palavra e o contedo de Herdoto a Plutarco (Actas do Congresso Plutarco Educador da Europa, de 11 e 12 de Novembro de 1999, Instituto de Estudos Clssicos e Humansticos da Faculdade de Letras de Coimbra. Edio da Fundao Engenheiro Antnio de Almeida, Porto, 2002).

  • Roma: a Vencedora Vencida

    Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade 3

    (autor da segunda metade do sc. I d. C.). Numa das suas Cartas, dirigida ao amigo Mximo, nomeado procnsul da Acaia (designao da Grcia no Imprio romano) escreve (Cartas, 24, 1-4):

    A afeio que tenho por ti obriga-me, no a ensinar-te (pois no tens neces-sidade de mestre), mas a lembrar-te que tenhas presente e ponhas em prtica o que sabes, sem o que melhor seria no saber nada. Pensa que foste enviado para a provncia da Acaia, para o seio e o corao dessa Grcia em que, como reza a tradio, foram descobertas a civilizao, as letras e a prpria cultura de terra; que foste enviado para pr em ordem as Constituies das cidades livres; que foste enviado a homens que so homens por excelncia, a cidados livres, livres entre todos, que depois de terem recebido esse privilgio da na-tureza, o conservam pela coragem, pelo mrito, pelas alianas, pelos tratados e pela religio. respeita os seus deuses fundadores e os nomes que os deuses usam na sua lngua; respeita a sua antiga glria e at a velhice que venervel no homem e sagrada nas cidades. Que junto de ti seja honrada a antiguida-de, os grandes feitos e at as lendas. No amesquinhes a dignidade de quem quer que seja, nem mesmo a vaidade de algum. Conserva diante dos olhos a noo que dessa terra que nos veio o Direito; que ela que nos deu as nos-sas leis, no depois de nos ter vencido, mas a nosso pedido; que em Atenas que vais entrar, que Lacedemnia que vais governar e que arrancar--lhes a ltima sombra e o nome que lhes resta seria cruel, selvagem, brbaro.2

    Alm deste passo significativo, lembrarei apenas o que todos sabem: o grande poema pico de Virglio faz de Eneias, um sobrevivente da guerra de Tria, o fun-dador do Imprio romano. A epopeia latina est repleta de Homero.

    Mas isto no quer dizer que os autores latinos no afirmassem os valores roma-nos e no defendessem a originalidade romana em diversos sectores da vida pblica e privada. As obras mais notveis a este respeito so o De Republica e o De Officiis desse mesmo Ccero que tanto helenizou a cultura romana. Deste ltimo tratado citarei um passo referente ao conceito de guerra justa praticada pelos romanos (I, 11, 34-36):

    Pelo que toca ao Estado, devem observar-se acima de tudo as leis da guer-ra. Pois havendo duas formas de contender, uma pela discusso, outra pela fora, e sendo aquela prpria do homem, e esta das feras, tem de se recorrer segunda, se no for possvel utilizar a primeira. Por este motivo, pode-se entrar em guerra devido a essa razo, a fim de se poder viver em paz sem injustia; porm, uma vez alcanada a vitria, devem deixar-se viver os que no foram cruis ou desumanos na guerra, assim como os nossos antepas-

    2 Pline-le-Jeune, lettres, Tomos I-IV, Paris, Les Belles Lettres.

  • Maria Helena Urea Prieto

    4 Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    sados deram o direito de cidade a Tusculanos, Volscos, Sabinos, Hrnicos, mas destruram radicalmente Cartago e Numncia: quereria eu que no o tivessem feito a Corinto, mas creio que tinham outro fim em vista, sobre-tudo a vantagem da localizao, no fosse um dia a prpria configurao topogrfica incitar a fazer guerra. Em minha opinio deve sempre pensar-se numa paz que no venha a tornar-se insidiosa. Se nesse ponto me tivessem obedecido, teramos agora, se no a melhor das repblicas, pelo menos algo dela, que coisa que j no existe. E, com aqueles que se subjugarem pela fora, preciso cuidar deles, e aqueles que tenham deposto as armas e se refugiem na lealdade dos generais, devem acolher-se, ainda que o arete haja batido nas muralhas. Neste ponto, de tal modo a justia teve culto entre ns que os vares que recebiam em seu poder cidades ou naes vencidas na guerra ficavam tradicionalmente a ser seus protectores. A verdade que as condies da guerra justa esto prescritas de uma maneira mais sagrada no direito fecial do povo romano. De onde se pode deduzir que no h guerra justa se no se fizer, ou depois de se ter protestado, ou de a ter previamente proclamado e declarado.3

    No mesmo tratado ciceroniano so recordados sucintamente (I, 33. 121) os va-lores dos mos maiorum (isto , a tradio dos antepassados): justia, lealdade, libera-lidade, modstia, temperana, amor da glria e da virtude (iustitia, fides, liberalitas, modestia, temperantia, gloria, virtus).

    Para concluir as aluses a Ccero, acrescentarei apenas umas curtas linhas do De Officiis (II, 8, 26-27):

    gosto mais de lembrar factos de outros povos que os nossos. No entanto, en-quanto era a generosidade que sustinha o imprio romano, e no a injustia, enquanto se fazia a guerra para defender os aliados ou para preservar o poder, o fim das guerras era suave e a severidade s entrava em cena quando era necessria; o Senado era o porto de abrigo de reis, povos e naes, e os nossos magistrados e generais ambicionavam obter um nico ttulo de glria, o de terem defendido as provncias e os aliados com justia e lealdade. Assim po-dia chamar-se com mais exactido proteco do mundo do que imprio.

    Quanto tolerncia do povo romano para com os vencidos, h testemunhos dos prprios autores gregos. Por exemplo, Don de Prusa, escritor do sc. I d. C., evoca no Discurso VII (o Discurso Euboico, como tradicionalmente se designa), o funcionamento de uma assembleia da ilha de Eubeia, que testemunha o respeito

    3 A traduo transcrita de Maria Helena da rocha Pereira, em Romana Antologia de Cultura latina, 4. edio, Uni-versidade de Coimbra, 2000. Ser proveitoso consultar tambm, da mesma autora, Estudos de Histria da Cultura Clssi-ca, II volume. Cultura romana, 3. edio, Fundao Calouste Gulbenkian, 2002. Nesta obra, alm de um estudo sobre a helenizao da cultura romana, h o registo de abundante bibliografia actual, em vrias lnguas, sobre o assunto.

  • Roma: a Vencedora Vencida

    Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade 5

    que o Imprio romano mantinha pelas liberdades locais, s intervindo quando os conflitos se tornavam insanveis ou quando estavam em jogo questes internacio-nais. Nessa assembleia funcionavam as regras da democracia directa, como na velha Atenas, a tal ponto que se regista tambm a interveno de demagogos (palavra e realidade poltica bem gregas e ainda actuais)4.

    Constantino (em 312 e 321) publicou os decretos de Milo, que autorizaram o livre culto do cristianismo e de outras religies, convertendo-se ele prprio ao cris-tianismo. Em 330 estabeleceu a capital do Imprio romano em Bizncio, dando-lhe um nome derivado do seu (Constantinopla) e reunindo sob a mesma autoridade a totalidade do imprio.

    Pela converso ao cristianismo e pela adopo da antiga Bizncio helnica como capital, deu uma demonstrao exemplar da capacidade romana para acolher e res-peitar mensagens de outras culturas.

    Mas, ao falarmos de cristianismo, no podemos esquecer que, embora a religio crist no seja uma herana grega, a lngua grega desempenhou um papel primacial na sua difuso. J antes do cristianismo, no sc. III a. C., Ptolomeu Filadelfo, sobe-rano do Egipto, desejando para a famosa biblioteca de Alexandria uma verso grega da Sagrada Escritura dos Judeus, encarregou setenta e dois tradutores judeus, vin-dos de Jerusalm, da execuo do trabalho. Com o nome de Setenta (Septuaginta em latim) ficou designada esta mais conhecida traduo grega do Antigo Testamento.5

    No Novo Testamento cita-se o Antigo Testamento geralmente segundo o texto dos Setenta, embora tambm haja passos em que se segue um texto hebreu. Os Padres da Igreja seguiam quase sempre o texto dos Setenta e do mesmo modo procederam os primeiros tradutores da Bblia para latim. So Jernimo (347-420) foi o primeiro que se serviu do original hebreu.

    Este predomnio do grego como lngua dos primeiros sculos do cristianismo deve-se principalmente ao facto de ser o grego a lngua mais falada no Mediterr-neo Oriental, sobretudo pelas comunidades judaicas de Alexandria, e tambm em vastas zonas do Imprio romano e at em comunidades no-latinas estabelecidas na prpria roma.6

    Sabemos que, dos quatro Evangelhos (escritos no I sc.), trs foram escritos em grego (de S. Marcos, S. Lucas e S. Joo) e s o de S. Mateus teria sido escrito em aramaico. As Epstolas de S. Paulo foram igualmente escritas em grego, assim como

    4 Sobre este Discurso de Don de Prusa publiquei um artigo intitulado Uma novela Ecologista na Grcia Antiga (re-vista gora, Universidade de Aveiro, n. 2, 2000, pp. 33-44).5 Sobre os Setenta ver a entrada correspondente no meu Dicionrio de literatura Grega, Lisboa, Verbo, 2001.6 Sobre o uso do grego pelas comunidades judaicas no Imprio romano, ver: Nuno Simes rodrigues, Iudaei in Urbe. Os Judeus em Roma de Pompeio aos Flvios. Tese de Doutoramento em Histria da Antiguidade Clssica apresentada Faculdade de Letras de Lisboa, Departamento de Histria, 2004, 918 pp. Informao: Esta tese encontra-se leitura nas seguintes bibliotecas: Biblioteca Nacional de Lisboa, Biblioteca Central da Faculdade de Leras de Lisboa, Biblioteca do Instituto Clssico Andr de resende da Faculdade de Letras de Lisboa, Biblioteca do Instituto de Estudos Clssicos e Humansticos da Faculdade de Letras de Coimbra.

  • Maria Helena Urea Prieto

    6 Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    os Actos dos Apstolos e o Apocalipse.Sem pretender um registo exaustivo das reminiscncias da lngua grega no cris-

    tianismo, lembrarei, contudo, que j na verso grega do Antigo Testamento, aparece o adjectivo christs com o significado de ungido (o que recebeu a santa uno), e que no Novo Testamento surgiu Christs, como substantivo, para designar o Ungido do Senhor, por excelncia, o Filho de Deus feito homem (em S. Lucas, 2, 26, encontra-se a mais antiga abonao do vocbulo grego). A acentuao em portugus no a mesma, como todos sabemos. E sabemos tambm que de Cristo so derivados cristianismo, cristo, cristandade, etc. De no esquecer tambm que evangelho uma palavra grega que significa Boa nova. A linguagem diria de todos os povos ocidentais no conhece outros vocbulos para designar as mesmas realidades hist-ricas. Esses factos so de tal relevncia para histria da civilizao que no poderia omiti-los, nem numa breve sntese.

    Mas continuemos a acompanhar resumidamente a actuao dos imperadores romanos depois de Constantino.

    Os chamados imperadores filelenos apoiaram a cultura grega, poltica e econo-micamente, para alm de tudo o que seria de esperar. Marco Aurlio, por exemplo, reorganizou, em 376, as instituies culturais atenienses, onde iam completar a sua formao intelectual os jovens romanos. Esse mesmo Marco Aurlio escreveu em grego os Pensamentos para Si prprio ou Meditaes (como costumam traduzir o ttulo). um autor latino que, por ter escrito em grego, figura nos Dicionrios de literatura Grega e no nos de literatura latina

    A civilizao e a cultura greco-latinas permaneceram atravs de todas as vi-cissitudes e mudanas polticas milenrias. Em 395, aps a morte do Imperador Teodsio, o Imprio romano dividiu-se em duas partes: o Imprio do Ocidente e o Imprio do Oriente.

    Entretanto, vieram atravs dos sculos dias sombrios. O Imprio romano do Ocidente caiu nas mos dos brbaros do Norte em 475. Em contrapartida, nos princpios do sc. VI, o Imperador bizantino Justiniano mandou proceder com-pilao de tudo o que restava do Direito romano, permitindo a sua perenidade at aos nossos dias. Devemos tambm lembrar que a missionao bizantina actuava, introduzindo, no sc. IX, a cultura bizantina e a religio crist na rssia, na penn-sula balcnica e na Europa Central. O alfabeto cirlico (criado por S. Metdio e S. Cirilo), o alfabeto greco-bizantino adaptado, usado na traduo eslava da Bblia e dura at hoje.

    Em 1204, porm, Constantinopla foi invadida pelos Cruzados que fundaram o Imprio Latino do Oriente. O Imprio Bizantino ganhou de novo algumas foras, no meio de lutas difceis, a partir de 1261, ma foi dominado em 1453 pelos Turcos. E s no incio do sc. XIX, com a interveno de grandes potncias europeias (In-glaterra, Frana e rssia) que a Grcia recuperou a sua independncia, atacada e fragilizada ainda mesmo no sc. XX. bom no esquecer que a seduo da cultura grega levou romnticos europeus, entre os quais Lord Byron, a lutar pela indepen-

  • Roma: a Vencedora Vencida

    Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade 7

    dncia da Grcia.E eis que no sc. XXI, a cultura e a lngua gregas permanecem em quase todos

    os domnios da vida ocidental. No vocabulrio da religio crist, como j lembr-mos. Nas cincias tradicionais quase todo o vocabulrio grego (na Medicina, na Filosofia, na Teorizao Literria, na Gramtica, etc.). Na poltica, o termo demo-cracia repete-se todos os dias. No desporto, fala-se com frequncia em autdromos, hipdromos e em maratonas. A designao de Jogos Olmpicos consagra os maiores eventos desportivos mundiais, evocao da velha Olmpia grega, onde se disputa-vam os exerccios do pentatlo (salto, corrida, lanamento do disco, lanamento do dardo, luta) e as corridas de carros, cujos vencedores o poeta Pndaro (no sc. V a. C.) imortalizou nas suas Odes Olmpicas.

    Na vida quotidiana, no podemos descer rua sem encontrar txis, e semforos. Se vamos ao correio, possvel expedir telegramas. Ao virar da esquina, podemos entrar num fotgrafo ou numa biblioteca. E, na vida domstica, diria, alm do telefone fixo, dispomos de objectos designados com termos greco-latinos, como o telemvel e a televiso. No podemos esquecer tambm que a grande manifestao de arte e de tcnica, que se afirmou no sc. XX, assumiu o termo grego de cinema. No acabaramos to cedo se quisssemos prolongar estas reminiscncias

    E eis que aqui estamos no Algarve (que j foi rabe) a celebrar antteses greco-latinas, carregadas de significado para o nosso pensamento e para a nossa activida-de.

    Horcio tinha razo: roma, a vencedora vencida deu, e espero que dar ain-da, durante milnios, a lio de respeito pelos vencidos, a capacidade de assimilao de culturas alheias, contrariando a xenofobia (que tambm palavra grega).

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    iguAldAde nA diFeRenA:Homem e Mulher na Antiguidade e em glatas 3:28

    Manuel Alexandre JniorU. Lisboa

    [email protected]

    Far sentido este tema num colquio sobre as Antteses na Antiguidade? Amor e dio, paz e guerra, justia e injustia, palavra e aco, seriam, por certo, op-es bem mais bvias e simples de tratar. Mas, um duplo fenmeno ainda hoje me intriga: o da condio feminina na antiguidade, e o do fracasso do Cristianismo em fazer vingar na prtica o que se v acontecer no evangelho e a doutrina apost-lica ensina. No existe, de facto, uma anttese na relao homem/mulher. Mas, na prtica de muitos povos, e no s os menos cultos e civilizados, tal suposta antte-se molda conscincias e mentalidades, impe-se no mbito dos relacionamentos, descrimina e abala profundamente essa rea to sensvel da pessoa e da dignidade humana.

    Tendemos a olhar para a Atenas clssica como o paradigma do progresso scio-poltico e cultural: o bero da democracia, da tolerncia, da liberdade de pensamen-to e expresso. Mas o facto que a igualdade, como a entendemos hoje, no existia. S um nmero restrito de cidados com pergaminhos de ascendncia democrtica ou uma situao econmica invejvel se podia gloriar de exercer os direitos cvicos em plenitude. E as mulheres, mesmo as oriundas das famlias mais nobres, bem poucos direitos tinham. A julgar por uma afirmao de Menandro, elas nem sequer tinham direito educao. Ensinar uma mulher a ler e escrever? Interroga-se e acrescenta: Que coisa terrvel! como instilar mais veneno numa cobra.

    Como justamente observa Cheryl Glenn, citando Stallybrass, nos ltimos dois mil e quinhentos anos da cultura ocidental, a mulher ideal tem sido disciplinada por cdigos de cultura que requerem boca fechada (silncio), corpo coberto (casti-dade), e vida enclausurada (circunscrio domstica)1. Mas houve sempre nobres excepes que culminam com o ensino de Cristo e a prtica do evangelho: mulhe-res que ao longo da histria da cultura fizeram a diferena na filosofia, na retrica, na literatura, na religio, na sociedade e na educao.

    1. Condio da Mulher na Antiguidade Greco-romanaNa antiguidade, o homem e a mulher estavam separados por um mundo de

    diferenas. A oposio entre o masculino e o feminino era abismal. Os homens detinham a cidadania, faziam as leis, determinavam a verdade filosfica, os valores ticos, os cnones literrios, a teoria e a prtica na arte da comunicao. As mulhe-

    1 Cheryl Glenn, Rhetoric Retold: Regendering the Tradition from Antiquity Through the renaissance, Carbondalle: Sou-thern Illinois University Press, 1984, p. 1. Cf. Peter Stallybrass, Patriarchal Territories: The Body Enclosed, in Marga-ret W. Ferguson et al. (eds.), Rewriting the Renaissance, Chicago: University of Chicago Press, 1986, pp. 123-144.

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    res, por seu turno, eram praticamente destitudas de direitos e viam a rea da sua aco social circunscrita ao domnio das relaes familiares e de amizade entre os seus mais prximos. Excludas da actividade social, econmica e poltica, as mu-lheres destinavam-se apenas ao casamento, vida domstica e criao dos filhos2. Quando Aristteles afirma que o homem por natureza superior mulher3, e que so mais nobres e belas as suas virtudes e aces4, est simplesmente a representar um estado generalizado de conscincia; estado que se perpetuou por mais de dois milnios e induziu o homem a ver na mulher um ser naturalmente inferior e dele dependente. Foi sacrificada por esta ideologia dominante que a mulher se viu des-tituda de todos os seus direitos fundamentais. Sem espao algum na vida pblica, e sem a mnima hiptese de acesso ao poder, ela se viu abafada e silenciada5. No tinha nome, no tinha estatuto, no tinha sequer direito cultura e s em ca-sos muito especiais cidadania. E essas diferenas de tratamento no se baseavam primariamente no sexo. Segundo a tese defendida por Fiorenza, os antigos no precisavam de se escudar em factos de diferena sexual para sustentar a tese de que as mulheres eram inferiores aos homens e a eles sujeitas6. O que determinava a diferena entre o homem e a mulher, acrescenta, era o estatuto social e o lugar que cada um ocupava na sociedade, e no o que organicamente os distinguia. Ento, era o gnero como categoria cultural que determinava a diferena de tratamento. Mas, com o iluminismo, radicalizou-se a noo de dois sexos opostos, e passou a susten-tar-se que nessa oposio biolgica incomensurvel que se baseiam as diferentes funes que homens e mulheres desempenham com suas vidas no plano da vida econmica, poltica, cultural, social e relacional. A mulher no mais vista como um ser humano inferior, mas como uma pessoa totalmente diferente do homem; diferente, mas, mesmo assim, ideologicamente descriminada.

    Esta foi a regra, mas houve, felizmente, bem nobres excepes; mulheres que desafiaram a ideologia do silncio feminino e romperam as amarras de uma menori-dade desajustada e cruel, fazendo com que a sua voz isoladamente soasse na poesia, na filosofia, na palavra proftica e no deslumbramento da experincia religiosa. Safo, Teano, Aspsia, Hiparquia e Diotima entre os gregos, Hortnsia, Flvia, Amsia e Semprnia, entre os romanos, so apenas nove das muitas figuras femininas que estoicamente resistiram contra a corrente dos tempos pela afirmao do valor e dig-nidade da sua condio real.

    Entre as primeiras, Safo de Lesbos foi a nica mulher da antiguidade que pro-2 Ibid., pp. 23-24. A Greek marriage was a transaction whereby a womans father lent her out to the head of another oikos, perhaps meeting her husband for the first time at their marriage, so that she might perform for the latter the functions of wife and mother (p. 24).3 Aristteles escreve que, entre os sexos, o macho por natureza superior e a fmea inferior; o macho manda e a fmea obedece (Poltica 1.2.12).4 Aristteles, Retrica 1.9.15 (1367a).5 Citando Sfocles, Aristteles escreveu que, ao contrrio do homem, o silncio d graa mulher (Poltica 1.5.9).6 Elizabeth Schssler Fiorenza, Rhetoric and Ethic: The Politics of Biblical Studies, Minneapolis: Fortress Press, 1999, p. 151.

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    duziu uma obra literria em nada inferior mais bela obra potica dos melhores escritores do sexo masculino. Plato invocou-a como a dcima musa, Aristteles honrou-a como o expoente mximo de sabedoria, e Estrabo reconheceu nela uma maravilha entre as mulheres. No nmero dos discpulos de Pitgoras que se dedi-caram filosofia e ao bem da educao e da cultura, contavam-se tambm muitas mulheres. Pela sua escola, que dois sculos antes de Plato fora imortalizada por visar a educao do homem total e se fundar no princpio de igual oportunidade para ambos os sexos, passou uma mulher excepcionalmente culta chamada Teano. referida elogiosamente por Digenes Larcio e Porfrio7, Teano contribuiu extraor-dinariamente com suas cartas para a formao moral e espiritual de outras mulhe-res, embora defendendo uma postura de moderao e ordem social, respeitando as leis naturais de hierarquia no mbito da famlia e do matrimnio. Diotima, mulher pitagrica exaltada pela sua virtude, eloquncia e sabedoria no Simpsio de Plato, foi mais uma nobre excepo s mulheres excludas da vida social e intelectual na antiguidade helnica. Fosse ela uma figura histrica ou literria, o facto que repre-sentou a influncia de uma mulher no pensamento filosfico, retrico e metafsico de Scrates e Plato8. Hiparquia nasceu na Trcia, no seio de uma famlia aristo-crtica ateniense em 346 a.C. Conforme Digenes Larcio a retrata, lutou desde muito cedo por se inserir em crculos intelectuais masculinos, e conseguiu-o em resultado do seu convvio e aprendizagem com Crates, filsofo cnico brilhante que se empenhara na disseminao dos ideais de justia e igualdade. Desta sua relao com o mestre resultou uma paixo to forte que, vencendo todas as barreiras e re-nunciando a todas as vantagens da sua nobre estirpe, acabou por unir a sua vida dele crescendo em conhecimento e sabedoria. Na sua luta constante pelos ideais da equidade, da justia e dos direitos humanos, Hiparquia passou a sua vida a enco-rajar a unio das mulheres contra todos os tipos de tirania e injustia, reclamando os seus direitos de cidadania em reas to diversas como a poltica, a administrao pblica, o comrcio, as artes e as humanidades9. Uma outra mulher que na Grcia clssica tambm no ficou circunscrita esfera da vida domstica, antes sobremo-do se distinguiu na vida pblica, foi Aspsia10. A sua reputao na filosofia e na retrica foi testemunhada tanto por Plato e Xenofonte como por Ccero, Plutarco e Ateneu. Plutarco, por exemplo, diz que a sua sensibilidade poltica foi altamente apreciada por Pricles, que no s se apaixonou por ela e a tomou por companhei-

    7 Este ltimo, na sua Vida de Pitgoras.8 Cf. Plato, Banquete 207 c.9 Cf. Maria Jamil Fasolo, Hiparchia The Worlds First Liberated Woman, http://ancienthistory.about.com /library/bl/uc_fasolo1b.htm, 2002. Apaixonada pelo filsofo e pela sua doutrina, Hiparquia arriscou tudo. Contrariando as presses da famlia, disse: Eu honro-vos como uma filha deve fazer, mas porei termo vida se no consentirem o meu casamento com Crates. E, respondendo ao noivo que a pediu em casamento dizendo que nada lhe podia dar como marido a no ser a filosofia e toda a satisfao que ela proporciona, respondeu: Tens por mim um amor to grande e profundo como o que no ntimo eu sinto por ti? Se sim... ento serei tua para sempre... Pois o que eu busco no riqueza material, mas as riquezas do esprito que s tu me podes ensinar.10 Cheryl Glenn, op. cit., p. 36-37.

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    ra11, como tambm se deixou seduzir pela sua arte na composio dos discursos que mais o notabilizaram, nomeadamente a orao fnebre12. O reconhecimento da sua sabedoria e eloquncia foi to generalizado na antiguidade, que Filstrato diz haver sido ela quem afinou a lngua de Pricles na imitao de Grgias o mesmo Pricles que Scrates havia proclamado como o mais respeitado e perfeito orador do seu tempo13. A formao retrica, filosfica e sofstica de Aspsia, a sua sensibilidade e competncia poltica, e a influncia poderosa que exerceu a estes vrios nveis sobre Pricles consagraram-na como membro activo e eficaz do mais distinto crculo in-telectual de Atenas14.

    A mulher romana, como a grega, foi vtima das mesmas vicissitudes. Poder tal-vez dizer-se que a condio da mulher melhorou um pouco sob o imprio romano15, mas porque ela no tinha poder nem estava inserida na vida pblica, a sua auto-nomia era pouco mais do que ilusria16. De acordo com a lei romana, as mulheres transitavam da autoridade dos pais para a dos maridos, e at uma viva idosa e rica precisava de um homem para lhe administrar os bens. A nica vantagem de trata-mento que elas poderiam ter devia-se a um mais elevado conceito do casamento, do lar e da famlia na sociedade romana. A matrona romana de elevada estirpe chegou, talvez por isso, a ver alargadas as reas da sua competncia, sobretudo na educao dos filhos e nas decises relativas ao seu casamento. As mais cultas vieram mesmo a distinguir-se na vida pblica; sempre, porm, em reas definidas e contornadas pelo poder masculino17. Bruce Winter argumenta que no sculo I a.C., um novo tipo de mulher comeou a surgir na cena social. Mulheres promscuas, apaixonadas e aculturadas imitavam a conduta vanguardista da elite feminina de roma, especial-mente as mulheres da casa imperial; mulheres que desafiavam a prtica tradicional, forando a sua participao na vida pblica, libertas de constrangimentos morais, e sendo muito ousadas na maneira de se vestirem e apresentarem em pblico. As que mais se distinguiram, transpondo as elementares fronteiras da sua condio, vieram a sofrer na carne os efeitos da tal ousadia, acabando por ceder ou se mostrar extre-mamente vulnerveis perante os assaltos desferidos contra a sua honra, a sua sexua-

    11 Plutarco, Vidas dos Nobres Gregos e Romanos, 200.1.12 Plato, Menexeno, 236 b.13 Fedro 269e 270a.14 Cf. Sheryl Glenn, op. cit., p. 43.15 Gillian Clark (Women in late Antiquity: Pagan and Christian life-Styles, Oxford: Clarendon Press, 1993, p. 71), observa, por exemplo, que, em contraste com o Corpus Hipocrtico, os textos mdicos da antiguidade tardia, seme-lhana dos do sculo I e II [d.C.], tendem a enfatizar a semelhana entre o homem e a mulher. Cf. David Constan, Women, Ethnicity and Power in the roman Empire, Proceedings of the Second Conference on Feminism and the Classics, publicadas em Diotima: Materials for the Study of Women and Gender in the Ancient World, 2000. http://www.stoa.org/cgi-bin/text?doc=Stoa:text:2002.16 Cf. Jmblico, Babylonica (Helmar Habrich (ed.), Iamblichi Babyloniacorum Reliquiae, Leipzig: Teubner, 1960, pp. 27-29. Plutarco, em Virtudes das Mulheres 242 F, afirma que a virtude da mulher e do homem uma e a mesma; mas, vejam-se casos de virtude feminina em As Mulheres Etruscas 247 A-C, onde parece fazer-se a distino entre virtude activa e passiva para justificar a das mulheres.17 Sheryl Glenn, op. cit., p. 73.

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    lidade e as suas margens de influncia. Foi a presena desta nova classe de mulheres na sociedade que provocou, no s o surgimento de leis relativas ao casamento e forma de apresentao da mulher em pblico, mas tambm uma nova nfase entre os filsofos sobre a necessidade de se regressar prtica das virtudes cardeais, em especial a swfrosu /nh18. Mas ter tambm provocado atitudes perversas como a inveja, a calnia, a injria e a infmia, sentimentos que injustamente acabavam por denegrir at mesmo a imagem de mulheres cujo valor as distinguia na sociedade e cultura do seu tempo19.

    2. Condio de Igualdade reconhecida e Afirmada no evangelhoTambm no era muito diferente a condio da mulher na sociedade judaica do

    tempo de Cristo. Mas os evangelhos reflectem uma mudana radical de mentalida-de que sugere a instaurao de uma nova ordem fundada no princpio da igualdade em termos totalmente inesperados para a poca. Atenta aos vrios ncleos narrati-vos do Evangelho Segundo Marcos, Marie Sabin verifica a forma como as mulheres so tratadas na sua relao com os discpulos de Jesus20. No incio do seu ministrio (1-7), so descritos trs milagres de cura um endemoninhado, a sogra de Pedro e um leproso. Num tempo em que, semelhana dos leprosos, as mulheres se viam confinadas s reas mais exteriores do templo e s eram socialmente reconhecidas pela sua relao com os homens os pais ou os maridos Jesus cura uma mulher, situada no meio, entre um endemoninhado e um leproso, pegando-lhe ritualmente na mo e erguendo-a. Numa sequncia vocabular impregnada de significado teo-lgico, a sogra de Pedro curada e o efeito da sua cura duplo: ela libertada da sua enfermidade e comea a agir como um dos seguidores e imitadores de Jesus exercendo a funo de uma verdadeira diaconia21.

    Tambm no captulo 5, igualmente organizado em torno da cura de trs pesso-as consideradas impuras um gentio possudo por espritos imundos, uma mulher

    18 Bruce W. Winter, Roman Wives, Roman Widows: The Appearance of New Women and the Pauline Communities, Grand rapids: Eerdmans, 2003, captulos 2-4: The Appearance of New Wives, New Wives and New Legislation, e New Wives and Philosophical responses. 19 Jennifer W. Knust, na recenso que faz da obra de Bruce Winter (ibid.), observa que ele e outros autores consultem-se Averil Cameron e Kate Cooper (The Virgin and the Bride: Idealized Woman in late Antiquity, Cambridge: Harvard University Press, 1996), Catharine Edwards (The Politics of Immorality in Ancient Rome, Cambridge: Cambridge Uni-versity Press, 1996), e Amy richlin (The Garden of Priapus: Sexuality and Aggression in Roman Humor, New Haven: Yale University Press, 1983) demonstraram que representations of women, including those found in roman legal sources, the writings of Greco-roman moralists, popular narrative, historiography, encomia, and memorials, were designed to communicate information about the men, families, and communities with which these women were associatedThe-refore, though there may well have been changes in womens lives and expectations during the first-century C.E., it is difficult to determine how much of the discourse involving new women can be attributed to their actual avant-garde behaviour (to adopt a term frequently employed by Professor Winter) and how much to the competitive machinations between rival groups within the empire, all of which were vying for status and legitimacy, in part, by advertising their commitment to the chastity of their women (recenso publicada na Review of Biblical literature, pela Society of Bi-blical Literature 6, August 2004, p.3).20 Marie Sabin, Women Transformed: The Ending of Mark in the Beginning of Wisdom, Cross Currents, 48:2, 1998. http://www.crosscurrents.org/sabin.htm, pp. 1-15.21 Passou imediatamente a servi-lo (diakoneu /w).

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    com um fluxo menstrual por mais de doze anos, e uma criana defunta a aco libertadora de Jesus tem implicaes que ultrapassam o milagre. Tambm aqui a histria central a de uma mulher considerada impura22. Em vez de condenao e excluso, ela objecto de especial cuidado. At porque, se a mulher do primeiro ca-ptulo recipiente passiva da cura, esta mulher toma a iniciativa: aproxima-se, pensa no que vai fazer (se eu ao menos tocar nas suas vestes, serei curada), e responde com temor e f, em adorao, s palavras de Jesus. Esta mulher, embora no fosse uma discpula, agiu como tal, crendo nele e passando a segui-lo.

    Mais adiante, no captulo 7, estamos na presena de uma mulher que, a par de ser mulher, gentlica ou pag, e tem uma filha possessa do demnio. Embora combinando trs formas distintas de impureza, tambm viu a sua petio atendida na libertao da filha. Contrariamente tradio dos judeus, a postura de Jesus em todos estes casos no de excluso mas incluso, e a sua abordagem no de condenao mas transformao e libertao. Independentemente das fronteiras que as separavam e dos respectivos graus de impureza, todas estas mulheres receberam a dignidade da f e do ministrio23.

    Na narrativa da paixo (14-16), verificamos que as mulheres se tornam ainda mais visveis no ncleo dos discpulos de Jesus, por contraste com os apstolos entre os quais se conta um que o trai, outro que o nega, outros ainda que adormecem e dele se afastam no auge da sua agonia. O nico gesto de f e de honra em toda a narrativa foi a uno de Jesus por uma mulher, e este gesto sugere o cumprimento simblico de uma real funo apostlica ligada sua paixo e morte24. Alm disso, Marcos observa, no final da cena da crucificao, que enquanto os apstolos se afastaram do quadro das operaes em que se deu a morte e sepultamento de Jesus, as mulheres mantiveram-se em cena e permaneceram vigilantes sendo tambm as primeiras testemunhas da ressurreio25. Nas palavras de Sabin, o que notvel nestas mulheres simples no quem elas eram, mas o que fizeram. E, nas palavras da narrativa marcana, o que elas fizeram foi agir como seguidoras fiis (i.e., discpulos), como servas (i.e., ministros), e como as testemunhas discipulares que ungiram seu corpo (i.e., apstolos)26. De marginais e excludas, no ministrio de Jesus as mu-lheres transformaram-se em discpulas, diaconisas e modelos de f perfeitamente integradas no testemunho do reino de Deus. Os apstolos foram chamados a seguir Jesus (Marcos 1), a tomar a sua cruz (Marcos 8), a seguir o seu exemplo como servos de todos (Marcos 11), a preparar-se para a sua morte e vigiar com ele na sua agonia

    22 No judasmo antigo, a mulher era considerada impura durante o tempo da sua menstruao, e os profetas usavam essa imagem como metfora do povo de Israel em estado de impureza pela sua idolatria.23 Marie Sabin, op. cit., p.7.24 Marie Sabin comenta o significado teolgico deste acto referindo-se ao leo trazido num vaso de alabastro, ao seu alto valor, e ao seu perfume, representando as especiarias que as mulheres mais tarde iriam levar ao tmulo de Jesus e simbo-lizando a sua morte: o corpo de Jesus quebrantado na cruz do calvrio e o seu sangue derramado (op. cit., pp. 5.7).25 As mulheres referidas so Maria Madalena, Maria me de Tiago, e Salom.26 Marie Sabin, op. cit., p. 8.

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    (Marcos 13-14), a dar testemunho do reino de Deus e tambm a curar os enfermos ungindo-os com leo (Marcos 6): falharam, porm, em todas estas coisas, ao passo que as mulheres que se envolveram no ministrio de Jesus as cumpriram27.

    semelhana de Marcos, tambm os demais evangelistas pem em evidncia o papel dinmico e igualitrio das mulheres na comunicao da mensagem crist. Na maior parte dos casos em que uma aco, uma cura, uma expresso de f ou um exemplo em parbola atribudo a um homem, Lucas, por exemplo, avana tambm o testemunho de uma mulher, deixando perceber de forma mais ou menos explcita a igual dignidade de ambos28. Segundo Jane Kopas, este fenmeno veri-ficado numa srie de episdios e de curas em que homens e mulheres se referem aos pares com referncia explcita ao seu igual valor29. Mas o que mais nos toca nesta permanente demonstrao de igualdade, o facto de um grupo de mulheres acom-panhar Jesus e os doze apstolos, sustentando financeiramente o seu ministrio de pregao e ensino (8:1-3).30 Tambm, na grande viagem de Jesus para Jerusalm31, as mulheres so mencionadas numa srie de episdios altamente significativos. O primeiro a histria de Marta e Maria32, tantas vezes referida como evidncia da superioridade da vida contemplativa sobre a activa, tem sido ultimamente enten-dida como uma indicao clara de que Jesus encoraja e recomenda a educao das mulheres ou, no mnimo, a sua clara admisso no ncleo dos seus discpulos33. O segundo a resposta de Jesus mulher que se destacou da multido e exclamou: Bem-aventurada aquela que te concebeu e os seios que te amamentaram! (11:27-28); resposta em que Jesus parece corrigir duas ideias erradas: que a mera relao familiar transmite alguma bno especial, seja ela por descendncia fsica, seja por vinculao discipular a Jesus; e que a condio ou dignidade da mulher deriva da sua relao com o marido ou os filhos. O terceiro episdio a cura de uma mulher enferma na sinagoga, no dia do sbado, perante o espanto e a indignao do prprio oficial, e a afirmao de que tambm ela uma filha de Abrao ultrapassa em digni-dade o imaginvel (13:10-17). E o ltimo retrata as mulheres que foram as primeiras

    27 Ibid., p. 11.28 Cf. Jane Kopas, Jesus and Women: Lukes Gospel, Theology Today 43:2, 1986, p. 192.29 Nas promessas feitas a Zacarias e Maria, o primeiro pe em causa a promessa do anjo e fica mudo, a segunda cr, interroga-se como pode ser isso, uma vez que virgem, e altamente favorecida e abenoada. No cntico, o Magnificat (Evluc.1:46-56), Maria celebra a solidariedade de todos os que buscam a justia, em especial as mulheres que partilham da sua esperana. A viva de Naim, classe das mulheres mais oprimidas e negligenciadas da sociedade, recebeu de volta a vida do seu filho, graas a um acto singular de compaixo (Evluc. 7:11-17). A mulher pecadora, numa atitude humilde de arrependimento, ungiu os ps de Jesus e lhos enxugou com os seus cabelos, em claro contraste com a atitude arrogan-te do fariseu que convidara Jesus para jantar (Evluc.7:36-50). Por isso os seus pecados lhe foram perdoados.30 Mulheres que haviam sido curadas de espritos malignos, e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saram sete demnios, e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, Susana e muitas outras, as quais lhe prestavam assistncia com os seus bens (Evluc. 8:1-3).31 Viagem que, segundo Kopas, nos d a estrutura da apresentao do compromisso de Jesus com a sua misso (op. cit., p.198).32 Apenas registada neste evangelho (Evluc. 10:38-42).33 loc. cit.

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    a receber a mensagem da ressurreio e a cumprir a funo discipular de transmitir a boa nova aos outros; como que a sugerir que foram elas tambm, por fora da sua sensibilidade e integridade espiritual, os primeiros e mais fiis discpulos da nova dispensao.

    3. Igualdade na Diferena em Glatas 3:28Uma definio de igualdade que no admite a diferena acaba por legitimar

    a desigualdade em nome da uniformidade34, pois toma por modelo o mais forte e se presta a servir as suas causas. Mas possvel haver igualdade na diferena, pelo facto de a diferena se poder tambm compreender como variedade, multiplicidade e complementaridade. Dos trs modelos de sexualidade sugeridos pela experincia humana35 o modelo de explorao, em que o homem domina a mulher, dela tira proveito e a explora; o modelo de androginia ou unissexo, em que a sexualidade uma conveno arbitrria, a noo do masculino e feminino so mais ou menos permutveis acabando por se explorar mtua e reciprocamente, e qualquer forma de prazer sexual aceitvel justificando-se toda a sorte de experincias sejam elas homo ou heterossexuais, masoquistas ou sado-masoquistas, pedofilacas ou zoofilacas; e o modelo de complementaridade, em que o masculino e o feminino mutuamente se satisfazem e completam como base inesgotvel de apoio e cooperao s este ltimo nos parece responder com justia e equidade verdadeira natureza da alma humana, e s este lapidarmente interpreta o sentido ltimo de Glatas 3:28.

    esta mensagem de igualdade na diferena justificada pela diversidade e com-plementaridade que Paulo proclama em Glatas 3:28. Inserida nos trs pares de an-tteses judeu/gentio, escravo/livre, homem/mulher esta ltima oposio reveste--se de um significado especial por aparentemente se inserir no concerto abramico da (Gn. 17:9-14) circunciso, em que s o homem tem a possibilidade de se tornar um verdadeiro israelita. O Cristianismo, porm, fez novas todas as coisas ao desva-lorizar a circunciso na carne e colocar homem e mulher sob a mesma necessidade de uma real circunciso da alma, a ponto de no haver mais distino entre eles. Em Cristo, a igualdade ontolgica, to posta em causa tanto no mundo greco-romano como no judaico, foi restaurada pelo novo concerto da graa36. Quando Paulo diz que, No h mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem e mulher, pois todos sois um em Cristo Jesus, est a mostrar que as diferenas de raa, condio social

    34 O conceito clssico de igualdade remonta a Aristteles, que exige que iguais se tratem como iguais e os desiguais de forma diferente... Esta definio aristotlica de igualdade produziu desigualdades considerveis cujo padro e tertium comparationis para o ser humano tem sido e ainda o homem culto de elite abastada, o senhor, o mestre, o pai de famlia. Ele a medida para o que significa ser humano; ele que define quem e o que igual e quem portanto pode esperar direitos iguais, e quem e o que desigual e deve por conseguinte ser tratado diferentemente (Elizabeth Schssler Fiorenza, op. cit., p. 158).35 Paul C. Vitz, The Father Almighty, Maker of Male & Female, http:/www.paulvitz.com/fatherhood2. html, pp. 3-5.36 Cf. Don Garlington, [Corpus-Paul] Martin on Galatians, http://lists.ibiblio.org/pipermail/ corpuspaul/20030709/..., pp. 1-2.

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    Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade 17

    ou gnero de modo algum comprometem semelhantes direitos de oportunidade poltica, social, vocacional e espiritual, antes se cumprem na perfeita igualdade de dignidade e valor. Diferena no gnero e no sexo, mas igualdade de capacidade, competncia e dignidade no exerccio dos mesmos direitos, liberdades e garantias. E, uma vez que este ltimo par constitui uma aluso histria da criao no livro de Gnesis37, ele serve tambm de paradigma para a interpretao dos outros dois. Ao invs de negar a realidade ou importncia de diferenciao sexual, Paulo est aqui a mostrar como diferentes tipos de pessoas se podem identificar e formar uma unidade, a ponto de constiturem famlia e se tornarem os dois uma s carne38. Embora diferentes, o homem e a mulher so interdependentes; pois se, como diz em I Cor. 11:11, a mulher foi feita a partir do homem, tambm agora o homem nascido da mulher.

    Como acabmos de ver, a viso que Cristo e o ministrio apostlico nos do da mulher muito diferente da que ainda hoje algumas franjas do Cristianismo nos transmitem. Nas suas cartas, Paulo sada e trata respeitosamente as mulheres. Preza-se de as ter como cooperadoras39, referindo inclusivamente uma como diaco-nisa40 e outra como apstola41. O papel da mulher nas igrejas que se reuniam em casas foi muito importante, pois em muitos casos eram elas que abriam as suas por-tas igreja e participavam nos actos de culto no s pela orao, mas tambm com a palavra proftica e os seus bens42. A par dos muitos exemplos que temos em Actos e nas epstolas paulinas, paradigmtico o caso de Tecla uma jovem aristocrata de existncia histrica ou criao literria que assistiu ao ensino de Paulo, aderiu f e optou por uma vida de renncia total para se dedicar obra missionria43. Trocando o otium da vida passada pelo negotium do reino de Deus, Tecla veio com

    37 Atente-se em Gnesis 1:26-27 para a relao singular/plural e homem/mulher na descrio do ser humano como imagem de Deus: Ento disse Deus: Faamos o homem (singular) nossa imagem, conforme a nossa semelhana; e tenham eles (plural) domnio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos cus, sobre os animais domsticos, sobre toda a terra e sobre todos os rpteis que rastejam sobre a terra. Assim criou Deus o homem (singular) sua imagem, imagem de Deus o criou (singular); homem e mulher os (plural) criou.38 Pamela Eisenbaum, Is Paul the Father of Misogyny and Antisemitism? http://www.crosscurrents.org/ eisenbaum.htm, p. 11.39 Sada Priscila, Jnia, Jlia, Maria, Prside e a irm de Nereu, que trabalharam e viajaram como missionrias, jun-tamente com seus maridos ou irmos (Romanos 16:3,6,7,12,15). Evdia e Sntique so chamadas suas colaboradoras no evangelho (Filipenses 4:2-3). 40 A irm Febe, que exerce a diaconia na igreja de Cencreia (romanos 16:1).41 Louva Jnia que, sendo notvel entre os apstolos, fora presa por amor da obra que abraara juntamente com o seu marido (Romanos 16:7).42 As comunidades crists primitivas no tinham templos, antes se reuniam em casas no s pelo facto de o Cristianismo no ser legalmente reconhecido pelo imprio, mas tambm porque como igreja perseguida no tinham recursos. Paulo refere-se a mulheres que eram lderes em algumas dessas igrejas: Afia em Filmon 2, e Priscila em I Corntios 16:19. Outras, que ministravam a igrejas reunidas em suas casas, foram Ldia de Tiatira (Actos 16:15), e Ninfa de Laodiceia (Colossenses 4:15).43 Depois de receber o ensino apostlico da parte de Paulo e ouvir o apelo da sua pregao, Tecla deixou o seu noivo, resistiu aos apelos da famlia que inclusivamente a ameaou com a priso e a morte, renunciou a todos os seus bens e, no obstante as ameaas de violao, prostituio e martrio, no s preservou a sua f e a sua castidade, como tambm se transformou numa missionria inteiramente dedicada causa do evangelho de Cristo.

  • Manuel Alexandre Jnior

    18 Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    a sua vida a inspirar muitas outras mulheres a servir em vrias frentes a causa do evangelho.

    O mundo poderia ser hoje bem diferente e o equilbrio relacional entre o ho-mem e a mulher mais nobre e justo se, na prtica crist, se tivesse seguido a doutrina de Cristo com todas as suas consequncias sociais e humanas. Mas, medida que o Cristianismo se foi instalando e o ministrio pastoral evoluiu da sua simplicidade original para uma hierarquia episcopal masculina, a misso da mulher foi-se apa-gando e a conscincia da sua dignidade diminuindo. S assim se compreende que figuras to distintas da Igreja como Santo Agostinho e Toms de Aquino se tives-sem identificado teologicamente mais com a teoria filosfica de Aristteles sobre a mulher do que com os ensinamentos de Jesus Cristo, o Senhor da Igreja.

  • Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade 19

    PAlAVRAs lOngAs e PAlAVRAs CuRtAs eM lAtiMAntnio Rodrigues de Almeida

    U. [email protected]

    A dimenso das palavras latinas muito diversificada. Se a medirmos em n-mero de letras, ela vai de 1 a 23 (Gradenwitz) ou 27 letras (Busa). Na pre-sente comunicao, estabelecido o contraste entre as palavras muito pequenas e as palavras muito grandes, tendo em conta o nmero de entradas no lxico (O. GrADENWITZ, laterculi uocum latinarum e r. BUSA, Totius latinitatis lem-mata), o significado, o valor estilstico, o uso nos autores (Plauto, Cato, Ccero e Verglio), a cronologia, a sua provenincia indo-europeia (J. POKOrNY, Indoger-manisches etymologisches Wrterbuch) e a sua permanncia nas lnguas romnicas (W. MEYEr-LBKE, Romanisches etymologisches Wrterbuch). Sero indicadas as caractersticas bsicas (formais, semnticas e de uso) de cada um dos dois grupos considerados isoladamente e, no seu conjunto, em oposio ao grupo das palavras de extenso mdia.

    Nesta comunicao, comearemos por definir o corpus lexical e procuraremos, depois, responder sucintamente s seguintes questes:

    O que se entende por dimenso das palavras?Qual a dimenso das palavras latinas?O que se deve entender por palavras muito curtas e por palavras muito longas?O que se deve entender por palavras de dimenso mdia?Qual a relao entre a dimenso das palavras e a sua cronologia?Qual a relao entre a dimenso das palavras e a sua estrutura formal?Qual a relao entre a dimenso das palavras e o seu significado?Qual a relao entre a dimenso das palavras e a sua frequncia no lxico?Qual a relao entre a dimenso das palavras e a sua frequncia de uso?Qual a relao entre a dimenso das palavras e o seu uso literrio, exemplificado

    em Plauto, Cato, Ccero e Virglio?

    Corpus consideradoLxico latino (LL) desde os primeiros documentos at ao fim da Antiguidade

    (52309): em Gradenwitz.Lxico latino vindo directamente do indo-europeu (IE/L) (4321): em Pokorny.Lxico latino transmitido s lnguas romnicas (L/Lr) (6481): em Meyer-

    Lbke.Lxico de Plauto (8303): em Maniet.Lxico de Cato (3287): em Purnelle.Lxico de Ccero (10014): em Laurand.Lxico de Virglio (5831): em Wetmore.

  • Antnio Rodrigues de Almeida

    20 Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    O estabelecimento da lista de palavras latinas desde os primeiros documentos at ao fim da Antiguidade, a partir de dicionrios como os de Forcellini, Lewis and Short, Gaffiot, Georges, uma tarefa longa e fastidiosa. Hoje dispomos da lista correspondente ao de Forcellini e a correspondente ao de Georges, elaboradas respectivamente por Busa e por Gradenwitz, ambas apresentando as entradas orga-nizadas alfabeticamente do princpio para o fim e do fim para o princpio. Estas so obras essenciais para o estudo formal do lxico latino. Servimo-nos delas aqui como ponto de partida, embora nos tivssemos fixado depois apenas na de Gradenwitz, por se concentrar no lxico comum, o que aqui nos interessa, e por termos vindo a trabalhar com ela desde h muito e a considerarmos, na forma em que a usamos, definitivamante corrigida. Aparentemente estas listas so exaustivas e totalmente seguras. Mas s aparentemente. De facto, nenhuma das obras em que nos baseamos utilizvel sem um grande trabalho prvio de harmonizao, por seguirem critrios diferentes e por no baterem certo umas com as outras. A considerao do lxico latino no mbito do indo-europeu e das lnguas romnicas e o uso dele feito por Plauto, Cato, Ccero e Virglio, s possvel depois de transformar todo o respec-tivo instrumental num conjunto coerente e concertado. neste conjunto tornado coerente e concertado que nos baseamos.

    O que entendemos por dimenso das palavras?A dimenso das palavras medida em nmero de letras.Qual a dimenso das palavras latinas?A dimenso das palavras latinas muito diversificada. Se partirmos das listas

    de Gradenwitz e de Busa e a medirmos em nmero de letras ela vai de 1 a 23 (Gra-denwitz) ou 27 (Busa). Como o nmero de palavras em Busa maior do que em Gradenwitz, poderamos ser levados a atribuir a este facto a incluso em Busa de palavras com 24 a 27 letras. Mas esta explicao no confirmada pela comparao das listas de palavras mais extensas nas duas obras, pois so muitas as palavras que ocorrem em Gradenwitz e no em Busa e vice-versa (Quadro 1).

    BUsA letras GrADenWItZanthropomorphiticusarchitricliniarchusconcupiscentialiterduodequinquagesimusduoetquadragensimusirreprehensibiliternumorumexpalponidessesquisextusdecimussuperparticularitassuperquadripartiens

    19

    concupiscentialiterdecemetducentesimusduodequinquagesimusinapprehensibiliterirreprehensibilitasirreprehensibilitersesquisextusdecimussupereminentissimussuperparticularitassuperquadripartiens

  • Palavras longas e Palavras Curtas em latim

    Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade 21

    BUsA letras GrADenWItZ

    incircumscriptibilisincomprehensibiliterpolymachaeroplacidespolymachaeroplagidespyrrhichioanapaestussesquioctavusdecimussubsuperparticularistessarescaedecatitae

    20

    incircumscriptibilisincomprehensibilitas inexsistentiabiliter

    argentiexterebronidesnumquampostcaeripidessesquiseptimusdecimussesquivicesimusprimus

    21

    sesquiseptimusdecimus

    argentumextenebronidescluninstaridysarchidesscytalosagittipelliger

    22

    clutomistaridysarchidessesquivicesimusseptimus 23

    honorificabilitudinitas

    supersesquisextusdecimus 24

    25

    subductisupercilicarptores 26

    thesaurochrysonicochrysidesthesaurochrysonicochrysides 27

    Quadro 1 - Palavras com 19 ou mais letras em Busca & Gradenwitz (obs: As palavras de Busa no includas em Gradenwitz e as de Gradenwitz no includas em Busa esto em itlico).

    Vejamos, em primeiro lugar, o que se passa com a dimenso das palavras e a sua distribuio nos totais de Busa e de Gradenwitz (Quadro 2). A grande maioria delas situa-se na dimenso de 5 a 12 letras, sobretudo na de 8 e 9. As dimenses de 1 a 3 letras e de 16 ou mais englobam um nmero relativamente muito reduzido de pala-vras (Quadro 3). Uma vez que o nmero total de palavras das duas listas diferente, til examinar e comparar estes mesmos dados em percentagens (Quadro 4), o que faremos geralmente daqui em diante pela mesma razo.

    As palavras de origem indo-europeia de transmisso ininterrupta (Pokorny), tm uma dimenso que varia entre 1 e 15 letras, e a maioria situa-se entre as 4 e as 8 letras, sobretudo na dimenso de 5 e 6 letras (Quadro 5).

    As palavras transmitidas directamente s lnguas romnicas (Meyer-Lbke), tm uma dimenso que varia entre 1 e 14 letras, e a maioria situa-se entre as 4 e as 8 letras, sobretudo na dimenso de 6 e 7 letras (Quadro 5).

    A mdia geral em Pokorny de 6,0650, em Gradenwitz de 8,7654, em Meyer-Lbke 6,8263, em Plauto de 7,6112, em Cato de 6,8013, em Ccero de 7,7676 e

  • Antnio Rodrigues de Almeida

    22 Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    em Virglio 6,7098 (Quadro 6).O que se deve entender por palavras muito curtas e por palavras muito

    longas?Consideramos como palavras muito curtas as palavras de 1 a 3 letras e muito

    longas as palavras de 16 ou mais letras (Gradenwitz).O que se deve entender por palavras de dimenso mdia?As palavras de dimenso mdia so as de 7 a 11 letras, que correspondem a cerca

    de 70% do total (Gradenwitz).

    relao entre a dimenso das palavras e a sua cronologia.Em geral, as palavras maiores so relativamente mais recentes que as palavras

    pequenas, sendo as palavras muito pequenas em geral de provenincia IE (Pokorny) e as muito grandes em geral de formao latina tardia.

    Considerando os trs conjuntos de palavras LL, IE/L e L/Lr -, a dimenso mais reduzida das palavras IE/L entende-se, dada a estrutura triliteral da raiz IE e a frequncia dos nomes-raiz e dos verbos-raiz mantidos; j, porm, a dimenso re-lativamente reduzida das palavras L/Lr, em confronto com as palavras LL, parece privilegiar as palavras de pequena ou mdia dimenso, revelando o lxico LL, a meio do trajecto entre o IE e as Lr, um sobredimensionamento particular (Qua-dro 7). Assim, as palavras pequenas ou de mdia dimenso revelam a tendncia para se manterem ao longo dos vrios milnios de evoluo. Pelo contrrio, as mui-to longas so introduzidas em poca relativamente tardia e so pouco duradoiras (Quadro 8).

    relao entre a dimenso das palavras e a sua estrutura formalEm geral, as palavras muito pequenas so constitudas por um s elemento

    lexical e as palavras grandes por vrios elementos situados em torno de uma base lexical, segundo a frmula PrEFIXO(s) + BASE + SUFIXO(s) (ex.: sto / in-con-sub-sta-nt-ia-li-tas). Em consequncia, quanto maior a palavra, maior o nmero de elementos lexicais que a constituem. As palavras muito longas revelam, alm disso, uma certa tendncia para conterem duas ou mais bases lexicais (34,5 % do total), ao contrrio das palavras pequenas e mdias.

    relao entre a dimenso das palavras e o seu significado.As palavras muito pequenas significam relaes espaciais, temporais, numricas

    e processuais de carcter muito geral (ex.: a, in, ex, per, duo, sex, ut, si), o corpo, as suas partes, manifestaes e funcionamento (ex.: os, cor, pes, sum, fio, edo), e ob-jectos essenciais da envolvncia humana (ex.: sol, lux, nox, rus, bos, sus, ius, fas); as palavras muito grandes apresentam significados restritos, tanto mais restritos em geral quanto maior o nmero dos elementos lexicais que o constituem.

  • Palavras longas e Palavras Curtas em latim

    Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade 23

    relao entre a dimenso das palavras e a sua frequncia no lxicoAs palavras curtas so em nmero relativamente reduzido, crescendo este me-

    dida que aumenta a dimenso; as palavras muito grandes so tambm em nmero muito reduzido, mas dimuindo este medida que aumenta a dimenso. O pequeno nmero das palavras curtas depende basicamente do nmero de letras que cons-tituem o alfabeto usado para as representar: consequentemente, se descontarmos os casos de homografia, o nmero das palavras de uma s letra ser no mximo o das letras, o de duas letras ser no mximo o das combinaes possveis em grupos de duas letras e assim sucessivamente. De qualquer modo, as palavras de pequena dimenso apresentam nmeros relativamente estveis em L/IE, em LL e L/Lr, e tendem a utilizar as vrias possibilidades combinatrias, na dependncia das restri-es fonticas.

    relao entre a dimenso das palavras e a sua frequncia de usoEm geral, as palavras muito curtas so de uso frequente (ex.: a, in, eo, ago) e

    as muito longas so de uso raro. Verifica-se que muitas das palavras com mais de 16 letras so usadas uma nica vez (ex.: carrocarpentarius, honorificabilitudinitas), algumas no ocorrem no Thesaurus linguae latinae, no dicionrio de Forcellini e no de Lewis and Short, e, aparecendo embora desde o sculo III a.C., so poucas as introduzidas at ao sculo IV d.C. (Quadro 8).

    relao entre a dimenso das palavras e o seu uso literrio: plauto, Cato, Ccero e Virglio

    Os tericos latinos da potica e da retrica (Ccero, Horcio, Quintiliano), re-ferindo-se dimenso das palavras, recomendam que se faa um uso harmonioso delas, combinando alternadamente umas e outras, e que se evite o uso de palavras muito longas. bvio que o uso oral ou escrito da lngua latina implica necessa-riamente o recurso s palavras muito pequenas e s palavras de dimenso mdia, as primeiras porque so indispensveis na interligao das palavras, as segundas porque constituem a maior parte do lxico. No uso oral, se nos ativermos ao trajecto do IE para as lnguas romnicas, revela-se em geral uma tendncia constante para privilegiar a dimenso pequena ou mdia baixa. No uso literrio, verifica-se at ao sculo IV d. C., um escrpulo muito grande no uso de palavras muito longas: as raras ocorrncias devem-se fundamentalmente ao contexto da comdia, em inova-es, ao modo grego ou com elementos gregos, com duas bases lexicais (Plauto e Te-rncio), ao uso de numerais complexos (Ccero, Tito Lvio, Valrio Mximo) e aos contextos tecnico-cientfico (Columela, Celso, Plnio-o-Velho, Sneca) e religioso (Arnbio, Tertuliano). Com o sculo IV, embora no se possa falar de um grande nmero de palavras muito longas, elas ocorrem com maior liberdade nos autores cristos, mormente em Santo Agostinho, e nos contextos das artes (especialmente gramtica, retrica e msica).

    Uso de Plauto, Cato, Ccero e Virglio (Quadros 9-13). A dimenso mais fre-

  • Antnio Rodrigues de Almeida

    24 Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    quente a de 6 letras em Cato e Virglio, de 7 letras em Plauto e de 8 letras em Ccero. Alm disso, a maior frequncia das palavras de 1 a 4 letras e a menor fre-quncia das palavras com mais de 9 letras caracterstica de Cato e Virglio, em oposio a Plauto e Ccero, que apresentam uma linha de distribuio muito prxi-ma a no ser nas dimenses de 6 a 9 letras. Estas coincidncias e divergncias no so, obviamente, devidas a razes de cronologia (arcaico/clssico) ou ao facto de o texto ser em verso ou em prosa. Pensamos que elas so devidas, em primeiro lugar, diferena de extenso do corpus lexical de cada um dos autores, relativamente grande em Ccero (10.014) e em Plauto (8.803) e pequeno em Cato (3.287) e em Virglio (5.831); em segundo lugar, ao carcter arcaico ou arcaizante de Cato e Virglio; e em terceiro lugar, ao carcter criativo de Plauto e Ccero, visando um a expressividade e o outro a preciso tcnica.

    ConclusoAs palavras muito curtas so em pequeno nmero, relativamente antigas, tm

    um significado geral, so de uso comum e muito frequente, e constitudas por um nico elemento lexical.

    As palavras muito longas so igualmente em pequeno nmero, mas so relati-vamente recentes, tm um significado restrito, tendencialmente tcnico, so de uso pouco frequente ou mesmo singular, so constitudas por uma base (75,5%) ou mais (34,5%) acompanhada de um ou mais prefixos e/ou sufixos.

    As palavras de dimenso mdia so em grande nmero, so de uso frequente mas em dependncia do contexto, e so na sua maioria criaes tipicamente latinas constitudas segundo a frmula PrEFIXO(s) + BASE + SUFIXO(s), em poca nem muito antiga nem muito tardia.

  • Palavras longas e Palavras Curtas em latim

    Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade 25

    Quadro 2

    Lxico L em Gradenwitz e Busa

    02000400060008000

    1000012000140001600018000

    1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23 25 27

    N de letras

    N d

    e pa

    lavra

    s

    GradenwitzBusa

    Quadro 3

    Palavras longas e curtas (Gradenwitz)

    0

    50

    100

    150

    200

    250

    300

    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23

    N de letras

    N d

    e pala

    vras

  • Antnio Rodrigues de Almeida

    26 Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    Quadro 4

    Lxico em Gradenwitz e Busa

    02468

    1012141618

    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 111213 14151617 181920 21222324 252627

    N de letras

    Perc

    enta

    gem

    GradenwitzBusa

    Quadro 5Lxico latino vindo do IE (Pokorny) e passado s LR (Meyer-Lbke)

    0

    5

    10

    15

    20

    25

    30

    1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15

    N de letras

    Perc

    enta

    gem

    Pokorny

    Meyer-Lbke

  • Palavras longas e Palavras Curtas em latim

    Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade 27

    Quadro 6

    Indo-europeu - Latim - Lnguas romnicas

    6,06

    8,76

    6,827,61

    6,87,76

    6,71

    0123456789

    10Po

    korn

    y

    Gra

    denw

    itz

    Mey

    er-

    Lbk

    e

    Plau

    to

    Cat

    o

    Cce

    ro

    Virg

    lo

    Md

    ia g

    eral

    Quadro 7

    Lxico L (Gradenwitz), IE (Pokorny) e LR (Meyer-Lbke)

    0

    5

    10

    15

    20

    25

    30

    1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23

    N de letras

    Perc

    enta

    gem Gradenwitz

    PokornyMeyer-Lbke

  • Antnio Rodrigues de Almeida

    28 Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    Quadro 8

    Palavras muito longas

    4,76 7,14 5,95 7,14

    75

    0

    20

    40

    60

    80

    III-II a.C. I a.C. I d.C. II-III d.C. IV e post.

    Sculos

    Perc

    enta

    gem

  • Palavras longas e Palavras Curtas em latim

    Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade 29

    BIBlIOGrAfIA

    GrADenWItZ, Otto, laterculi uocum latinarum, voces latinas et a fronte et a tergo ordinandas curavit, Leipzig, Verlags S. Hirzel, 1904.

    BUsA, robertus, Totius latinitatis lemmata, quae ex Aeg. Forcellinii Patavina editione 1940 a fronte, a tergo atque morphologice opera IBM automati ordinaverat, Milano, Istituto Lombardo - Accademia di Scienze e Lettere, 1988.

    pOKOrnY, Julius, Indogermanisches etymologisches Wrterbuch, Bern und Mnchen, Francke Verlag, 1959-1969.

    MeYer-lBKe, Wilhelm, Romanisches etymologisches Wrterbuch, Heidelberg, Carl Winter, 19353.

    MAnIet, Albert, Plaute. lexique inverse. listes grammaticales. Relevs divers, Hildesheim, Georg Olms, 1969.

    pUrnelle, Grald, Cato. De agricultura. Fragmenta omnia servata. Index verbo-rum. liste de frquence. Relvs grammaticaux, Lige, C.I.P.L.E., 1988.

    lAUrAnD, Louis, tudes sur le style des discours de Cicron. Avec une esquisse de l histoire du cursus. III, Paris, Socit ddition Les Belles Lettres, 19404 (Ap-pendice II. Vocabulaire complet de Cicron compar au vocabulaire de ses discours).

    WetMOre, Monroe. N., Index verborum Vergilianus, New Haven, Yale Univer-sity Press, 19302.

  • Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade 31

    Nostos And OBliViOn in gReek tRAgedy 1*

    Marigo AlexopoulouU. Glasgow

    [email protected]

    This paper is the result of an investigation of two concepts which are regularly found as opposites in Greek literature: nostos and lethe. You are probably fa-miliar with this opposition in the Odyssey. But there has been little attention paid to this constant opposition as it developed on the tragic stage. Yet, I believe that such an antithesis is, in fact, an equally dynamic force in many Classical tragedies. My ongoing research extends to the comprehensive study of nostos in drama in general. However, in the interest of short-term feasibility, I wish to discuss a single illustrative case, namely the tragic nostos of Agamemnon as it is approached by Aeschylus. By considering this example I believe that one may reach a better un-derstanding of the nature of nostos in Greek drama, generally speaking.

    So far I have continuously employed the term nostos, but in many ways this is not a self-explanatory notion. What then do we mean by this term? Etymo-logically, nostos is a nominal derivative of the verb (I return home). Nostos, the homecoming of someone who has been away, occurs with varying elaboration throughout much of ancient Greek literary culture and imagination. The earlier Greek tradition included several variants of the nostos story, in both epic and in lyric versions, among which the Odyssey is a major example. However, other examples of this theme were also well-known in antiquity, such as the Nostoi ascribed by Proclus to one Agias of Trozen; the three fragments of the Hesiodic catalogue that deal with various features of the story of Agamemnons fatal return; and also the fact that Stesichorus wrote a poem called Nostoi and a poem called Oresteia.2

    In the Odyssey, the direct antithesis of (return) and (oblivion) is pervasive: it forms the decisive tension of many episodes. Thus, for instance, in the episode with the Lotus-eaters, the opposition of nostos and lethe is explicit: anyone who eats their fruit becomes oblivious of all but immediate pleasure, and forgets his desire to return home. So, indeed, those of Odysseus companions who consume the lotus forget their homecoming (9. 95-7). The same effect is intended by Circes

    1 * The first version of this paper was written when I was invited to contribute to the exploration of the variety of antith-esis in antiquity at the conference of Otium et Negotium at the University of Algarve, October 2004. I thank those who invited me, and those who discussed the paper with me, on that and on subsequent occasions; and especially Professor D.L. Cairns and Kieran Hendrick. 2 See Books three and four of the Odyssey; cf. the Nostoi ascribed by Proclus to one Agias of Trozen, see Bernab PEG I (1987) 94ff., Davies EFG (1988) 66f.; the three fragments of the Hesiodic catalogue treat various features of the story of Agamemnons fatal return, see esp. Hesiod: 23(a) MW). Stesichorus wrote a poem called Nostoi, (Page PMGF 208, 209) and a poem called Oresteia (PMGF 210-19); cf. E. Tro. 78-83; A. Ag. 627, 635, 650-57; E. Hel. 407-10.

  • Marigo Alexopoulou

    32 Otium et Negotium - As Antteses na Antiguidade

    magic potion (10.236). In Book 12 the Sirens with their song appear as another temptation to Odysseus desire to return home. The hypnotic power of their song ( 12.40,44) makes the listener forget his thoughts about homecoming. These examples suggest that in the Odyssey there is in a constant opposition of nostos and oblivion.

    Thus is established the crux of the heros choice: Odysseus could either return home, or remain unseen from his fellows and family in Ithaca. One who chooses not to return sinks into oblivion (e.g. Od. 1.95, 3.77-78).3 Odysseus comes back from darkness. This association is especially supported by the name of that derives from the verb (to cover) and suggests darkness. Living with Calypso would mean Odysseus cutting himself off from society, whereas Penelope is part of his family, kin and friends. Circe functions in a similar way in Odysseus nostos-story. Even innocent Nausicaa stands for Odysseus as a temptation.

    His homecoming, as for any voyager, is a reclaiming of his entire life in Ithaca. He rediscovers those left behind amid the feeling of change, ageing and death (e.g. the parents of Odysseus: Laertes (Od. 11.187-196) in his old age isolates himself out of longing for his son, and Anticleia (Od. 11.197) dies out of longing for her sons homecoming). It is obvious that the search for an unchanged world of his remem-brance is in vain. He has to re-establish himself and reinvent his identity as the king and the head of the household. The joy of rediscovery is mixed with the sadness of irreparable loss.

    As in the Odyssey, so also in Greek tragedy the treatment of nostos becomes a great metaphor for the concept of change and illustrates that our native land can-not remain a place of fixity. Obviously the Odyssey must have been an influential example for the Attic dramatists in shaping stories with a homecoming theme pre-sented in tragedies. Already in the Odyssey Homer uses the problematic return of Agamemnon as a counterpoint to Odysseus return. So what I want to consider now briefly is how the dualistic perspective of nostos and oblivion shows itself in Ae-schylus play. We have seen that the nostos-theme in Homers narrative is in explicit contrast to the concept of lethe. This opposition in Aeschylus play is more subtle but, as I will show, it is effective in creating strong ironical effects and manipulating audience response.

    Aeschylus Agamemnon is a nostos-play since it is about Agamemnons home-coming.4 As I have already suggested nostos was a theme related to heroes return-

    3 In Greek society the individual was also driven away from home in search for both in athletic contests and in war. Achilles immortal glory signifies the heroic ideal of a (glorious death). He did not return home, like Odysseus, but by dying young in Troy he obtained immortal glory (Il. 9.413 , ).4 Nostos, the absence of a hero and his return, is one of the characteristic plot-elements of Greek tragedy. Among the surviving tragedies Aeschylus Persae, Aeschylus Agamemnon and Sophocles Trachiniae may properly be called nostos-plays, since nostos is enacted as a basic element of their plot. The formal similarity of the nostos-plays has been acknowledged, but has not been discussed explicitly. Taplin first traced the use of the nostos-pattern in Greek tragedy and discussed briefly which of the surviving tragedies should be called nostos-plays. He defines the nostos-plays as follows (1977) 124: First Pers is an example of a form or pattern of plot which is recurrent in Greek drama: it is what might

  • Nostos and Oblivion in Greek Tragedy

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    ing from the Trojan War and the poetic repertoire included several variants of the nostos-story. Now, in the case of Odysseus, while he is away from home, he is offered other alternatives than returning. But for Agamemnon, what would be his alternative? He thinks he can only return home and assumes that things will be the same. However, his homecoming means oblivion. The fusion of nostos and oblivion exposes the fundamentally problematic manner of his return. Can his homecoming reconcile the past memories with the present situation? It is exactly these dynam-ics of oblivion that Aeschylus exploits in order to bring about Agamemnons fatal return.

    The existence of the opposition between nostos and lethe is proved by the treat-ment of Agamemnons homecoming in Aeschylus text. I wish now to make some comments on some illustrative passages from Aeschylus Agamemnon that bring about this antithesis. The antithesis of nostos and oblivion is established at the very beginning of the play. The anxiety of the Watchman employed by Klytaimestra to give warning of the arrival of Agamemnon sets up the mood of foreboding. And his celebration when the beacon appears signalling the fall of Troy is cut short by fear. His worries about Klytaimestra remain, but they are too dangerous to mention openly. Thus, he would rather keep silent (35) and most importantly he will have no recollection ( 39) of hinting at anything at all.

    So, while the opening lines of the play introduce the nostos-theme, we are made to feel that there is danger impending for Agamemnon when he returns. On the homecoming of Agamemnon the Chorus admits that they disapproved of his de-cision to get involved in a war for the sake of Helen. The returning hero is con-demned on his arrival (799-802). Can the past be forgotten? (eg. Agamemnons decision to slaughter his daughter: 205-17). So Agamemnon is held responsible for a number of crimes: Iphigeneia, a war for the sake of Helen, the heavy loss of life at Troy, the sacrilege. The returning hero is not the same man as he was before. Most significantly, he returns with Cassandra. She remains at first a silent and enigmatic figure on stage and thus becomes yet one more element wrong in the homecoming.5 She is the visual evidence of change on the returning hero.6 His absence has also affected the status of the members of the household who were left behind (see the clear hints that the Chorus gives at Aegisthus: 808-9 cf. 1225, 1625).

    The fatal return of Agamemnon was familiar to Aeschylus audience. But Ae-schylus creative response to the tragic return of Agamemnon is evident in his treat-ment of it. Agamemnon greets the gods who gave him a safe homecoming and helped him win against Priam (810-13) but his entry to the palace is pre-empted by Klytaimestras appearance. Her arrival is a sudden transformation of the situa-

    be called a nostos play. In such plays a hero returns from some mission or expedition; he may return safely to some catastrophe at home, or may (as here, i.e. in A. Pers.) return from a catastrophe5 See Taplin (1977) 304.6 Cassandra, like Iole in Sophocles Trachiniae, threatens the symmetry of the marriage of Agamemnon and Klytaimestra.

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    tion. Agamemnon was about to enter the palace and erase the crimes of the past. Klytaimestra controls the palace door and she will be victorious in the debate over the manner of his entry. The tapestry scene represents the transition of a victor to a victim. Victory, in Pindar, brings the achiever to heroic heights and the divine resentment is a possibility. Divine is a prize of achievement. However, Ag-amemnon is not treated as a victor who resumes his relations with society. While the returning hero is ready to take up his activities as king and lord of his household he remains segregated from the community. Klytaimestra receives him in a way that does not secure his return. This is well illustrated in the sinister associations of this valuable textile. She proposes he should walk on tapestries when he enters. The tapestries are dyed crimson/purple which was very expensi