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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES:
A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS
CURITIBA 2004
JULIANA GISI MARTINS DE ALMEIDA
UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES:
A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Teologia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Orientadora: Profª. Drª Sonia Cristina Soares Dias Vermelho
CURITIBA 2004
Dedico este trabalho às pessoas que estiveram ao meu lado ao longo deste percurso, que me incentivaram, e principalmente, que acreditaram em minha capacidade para realizá-lo: meus pais, minhas irmãs e Fábio.
Agradecer às pessoas que me cercaram durante esta trajetória é um pouco difícil, pois o sentimento de gratidão não pode ser traduzido em palavras. Mas mesmo que insuficientes, as palavras são necessárias, e assim, agradeço a todas pessoas que estiveram comigo e que de alguma forma possibilitaram a realização deste trabalho. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha Orientadora, Cristina Vermelho, em quem me espelhei com muita admiração e que embarcou comigo nesta viagem, me acolhendo de forma tão carinhosa. Guiando-me pelo caminho da Teoria Crítica, com muita certeza e desenvoltura, me indicando sempre as leituras certas na hora certa. Quero agradecer aos professores do Mestrado, que possibilitaram que eu entrasse no mundo da educação e da pesquisa com muita competência. Em especial à professora Mariulda que, além de trazer muitas contribuições na banca de qualificação, foi muito importante em todo o processo do Mestrado. A toda equipe do Mestrado que com muita paciência e eficiência resolveram problemas e esclareceram dúvidas, tornando-se um porto-seguro em meio a este mar de incertezas que é a realização de uma dissertação de mestrado. À professora Maria Lucia Batezat que, com suas contribuições, trouxe fôlego novo para a continuidade do trabalho. À Fabiana, colega do mestrado, que se tornou uma amiga querida aliviando um pouco da solidão deste processo. À escola, que abriu suas portas para me receber e possibilitar a realização da pesquisa empírica, à disponibilidade das professoras em passar comigo tardes realizando as atividades e compartilhando suas opiniões e pensamentos. Gostaria de agradecer muito ao Fábio, à minha mãe e à minha irmã Bruna que, com paciência, estiveram sempre prontos à me incentivar, auxiliar e discutir idéias, dando apoio nos momentos mais difíceis.
RESUMO
Este trabalho discute a relação da educação com a linguagem visual, a inserção desta última na
sociedade contemporânea, bem como as implicações para o sujeito. Com base na Teoria Crítica
da Sociedade, especificamente com os autores Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin;
enfocando seus pensamentos sobre Indústria Cultural, Reprodutibilidade Técnica, e a discussão
sobre Cultura. O objetivo principal deste estudo foi o de compreender como os(as)
professores(as) da educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental lêem, compreendem e
utilizam a linguagem visual na sua prática docente e vida pessoal, tendo em vista a possibilidade
de ampliação desta capacidade através de uma formação adequada. Para realizar a investigação, a
metodologia escolhida foi a pesquisa qualitativa com grupo focal, em forma de uma vivência que
englobou atividades práticas, discussões e aplicação de questionário. Buscou-se investigar,
mediante pesquisa empírica, a capacidade destes(as) professores(as) de realizar uma leitura
crítica da linguagem visual. A partir deste estudo, foi possível perceber que existe uma grande
dificuldade na leitura dos códigos visuais em função, entre outras coisas, da falta de um espaço
nos cursos de formação no qual se possa realizar esta aprendizagem; mas, verificou-se também,
que uma formação adequada, que possibilite uma compreensão crítica da linguagem visual, pode
reverter este quadro, ampliando a compreensão dos professores e assim, as possibilidades de
trabalho com esta linguagem nas escolas.
Palavras-chave: formação de professores; linguagem visual; teoria crítica da sociedade.
ABSTRACT
This writting dicusses the conection between education and visual language, the insertion of the
last one in the society ands its relation with the contemporary subject. The teoretical basis was
built after the Teory of the Critical Studies of Society, mainly with the writers Adorno,
Horkheimer, Marcuse and Benjamin; with focuss on their thoughts about the Cultural Industry,
Technical Reprodutibility, and the dscussion over the Culture. So, it was the intent to analise,
with empiric research, the capability of the teachers of the kinder and earlier years of the
fundamental education to accomplish a critical reading of the visual language. The main goal of
this investigation was to understand, beginning with the insertion of the visual language in the
contemporary society, how these teachers read, comprehend and utilise the visual language in
their teaching practise and private lifes, thinking about the possibility of enlargement of this
capability through the adequate education. To realise the investigation, the chosen method was
the qualitative research with focal group, in the shape of a thre days experience, witch was
formed of practical activities, conversations and a questionary. With this research was possible to
realise that there is, among the teachers, a great dificulty in reading the visual codes, that is
caused by the lac of a space in witch this learning is possible; but, it was possible to realise as
wel, that the adequade education for a critical understanding of the visual language can change
this situation, amplifying the teachers understanding, as wel as the possibility of their work with
this language in the schools.
Keuwords:
SUMÁRIO CAPÍTULO I INTRODUÇÃO.................................................................................. 1
1.1 Problema................................................................................................................. 5
1.2 Metodologia............................................................................................................ 6
CAPÍTULO II SOCIEDADE E IMAGENS............................................................. 21
2.1 Cultura e Civilização.............................................................................................. 22
2.2 Outros Veículos de Adaptação................................................................................ 38
2.3 Diversão.................................................................................................................. 44
2.4 A Reprodutibilidade Técnica e a Mudança de Percepção...................................... 47
2.5 O Cinema e as Massas............................................................................................ 69
2.6 Televisão................................................................................................................. 79
2.7 Imagem Informática................................................................................................ 87
CAPÍTULO III EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE DAS IMAGENS....................... 94
3.1 Formação de Professores....................................................................................... 102
3.2 As Concepções do Ensino da Arte.......................................................................... 113
3.3 PCNs e o Ensino da Arte....................................................................................… 119
3.4 Letramento como o Princípio da Leitura do Mundo............................................... 124
3.5 Letramento e Linguagem Visual para a Leitura do Mundo na Sociedade das Imagens.........................................................................................................................
132
CAPÍTULO IV A COMPREENSÃO QUE AS PROFESSORAS TÊM DA LINGUAGEM VISUAL.............................................................................................
139
4.1 O Processo da investigação Empírica..................................................................... 139
4.2 Resultado e Análise da Pesquisa............................................................................. 145
CAPÍTULO V CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................... 224
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 235
APÊNDICE A – Questionário...................................................................................... 240
APÊNDICE B – Relato................................................................................................. 243
APÊNDICE C – Relatório............................................................................................ 245
APÊNDICE D – Temas................................................................................................ 247
APÊNDICE E – Ensaio fotográfico.............................................................................. 249
CAPÍTULO I INTRODUÇÃO
Pensamento mal-humorado. – Aos homens sucede o mesmo que aos montes de
carvão na floresta. Apenas depois de terem queimado e se carbonizado, como
estes, os homens jovens se tornam úteis. Enquanto ardem e fumegam, são talvez
mais interessantes, mas inúteis e freqüentemente incômodos. – De modo
implacável, a humanidade emprega todo indivíduo como material para aquecer
suas grandes máquinas: mas para que então as máquinas, se todos os indivíduos
(ou seja, a humanidade) servem apenas para mantê-las? Máquinas que são um fim
em si mesmas – será esta a umana commedia [comédia humana]?1
O aforismo de Nietzsche, que abre este trabalho, nos revela uma cruel comédia humana
que só fez piorar desde 1878 – data em que foi publicado, pela primeira vez, no livro Humano
demasiado humano –, uma comédia que se torna mais trágica com o passar do tempo e nos deixa
mais perplexos com o movimento imanente rumo a supremacia da máquina sobre o ser humano.
Percebemos na hierarquia das prioridades que a vida humana é “empurrada” cada vez
mais para baixo e, o progredir da humanidade se torna o progredir da técnica. Este processo se dá
em um movimento contrário ao proposto pelos Movimentos do Esclarecimento, que deram início
ao pensamento sobre o progresso da humanidade pela sua autodeterminação: pelo uso da Razão,
a humanidade atingiria o esclarecimento e a autonomia, e assim, a bem-aventurança. Assim, o
que vemos com Nietzsche, e nossa vivência confirma, é que atualmente a vida humana é um
meio para se atingir a evolução da tecnologia, é a lenha que esquenta as caldeiras.
A tecnologia avança e acelera o ritmo da vida nas cidades, exige nossa rápida adaptação
aos novos meios para tornar nossa vida mais fácil, agradável, eficiente e produtiva. As formas de
1 NIETZSCHE, Friedrich. Humana, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 283.
adaptação se tornam formas de controle, e o bem-estar, uma identificação com a heteronomia
resultante.
Percebemos as formas de adaptação permeando e invadindo a vida das pessoas pelo
controle das necessidades individuais, tornando-as mais eficientes por partirem do próprio
indivíduo. A adaptação impõe que as pessoas não saiam do sistema de produção por um instante
se quer: durante o trabalho, alimentam o sistema produtivo com sua força, e fora dele, consomem
o que foi produzido por outros; o movimento nunca é interrompido e as máquinas continuam em
funcionamento.
Dentre os vários mecanismos que hoje organizam e controlam a vida em nossa sociedade
temos a indústria cultural, que agencia e controla os momentos de lazer das pessoas que estão em
horário de não-trabalho. Muitas vezes este consumo é puramente visual: por um lado, porque se
realiza desde o desejo de consumo despertado pela propaganda e pela “embalagem” à
transformação deste consumo em símbolo de status; e, por outro, porque grande parte destas
produções é construída com a linguagem visual.
A linguagem visual é largamente utilizada pela indústria cultural em suas produções, o
que pode ser percebido pelo fato de a grande maioria dos meios de comunicação ser visual em
sua essência: o cinema, a televisão, as revistas, os cartazes, outdoors, etc.. Disto podemos
concluir que as informações que estes meios trazem são formadas por dois discursos nem sempre
unívocos: a tradição do discurso da linguagem escrita e falada e o discurso da linguagem visual.
Se a maioria das informações que recebemos sobre o mundo, são transmitidas por estes meios de
comunicação, podemos perceber que a compreensão e decodificação da linguagem visual se
tornam essenciais para o entendimento do mundo que nos é mostrado.
Assim, a nomeação Sociedade das Imagens, além de indicar que atualmente a aparência
das coisas assume o lugar das coisas mesmas em vários sentidos, fala também da crescente
presença e importância da linguagem visual em nossas vidas. Desta percepção, que se deu ao
término de minha Monografia de Especialização em História da Arte do Século XX2, surgiu a
necessidade desta pesquisa, na qual a intenção foi investigar e questionar a relação entre os
indivíduos de nossa sociedade e estas imagens. Neste sentido, temos como ponto de partida para
a discussão sobre a linguagem visual, o espaço das artes plásticas, compreendido como o campo
do conhecimento no qual a linguagem visual é pensada e discutida.
Aprofundando estes questionamentos, ao conectá-los com a necessidade da formação para
a leitura crítica dos códigos visuais que hoje nos cercam, tornou-se imperativo encaminhar esta
pesquisa para a área da educação, dentro da qual foi possível investigar como a linguagem visual
é compreendida pelos professores(as) da educação infantil e séries iniciais do ensino
fundamental. A compreensão de como estes professores(as) se relacionam com a linguagem
visual, nos permite deduzir a forma como é trabalhada dentro das escolas. Destarte, a relação
entre arte, cultura, educação e sociedade se coloca como o eixo em torno do qual o trabalho se
desenvolve.
Para abordar estas questões foram utilizados os escritos de alguns dos teóricos da Escola
de Frankfurt, especificamente Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Walter
Benjamin. A Teoria Crítica da Sociedade, por ser de orientação freudo-marxista se mostra muito
interessante neste contexto, pois articula o pensamento sobre o indivíduo e a sociedade de forma
crítica, levantando o problema da reprodutibilidade técnica – discutido por Walter Benjamin em
A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade técnica3 –, das falsas necessidades e da cultura –
2 ALMEIDA, Juliana Gisi Martins. O auto-retrato fotográfico contemporâneo e a situação do sujeito. Curitiba: EMBAP, 2002. 3 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas- volume I. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987b. (p. 165 –196).
como discutido por Herbert Marcuse em Novas Formas de Controle4 e Comentários para uma
redefinição de Cultura5 – e da indústria cultural – termo cunhado por Adorno e Horkheimer no
livro Dialética do Esclarecimento6, que se refere ao mercado das produções culturais e ao
agenciamento do seu contato com o público. A indústria cultural pode ser considerada como o
ponto de ligação entre o indivíduo contemporâneo e a cultura, possibilitada pela reprodutibilidade
técnica e disseminadora das falsas necessidades, afeta diretamente a cultura e a educação.
Segundo Marcuse, a cultura se coloca na sociedade contemporânea como veículo de
adaptação7; resumindo-se, dentro da indústria cultural, à diversão: um meio de aliviar a tensão
causada pela repressão e opressão sofridas pelas pessoas na luta pela sobrevivência. Um dos
motivos para esta situação, é que a sociedade administrada8 vem, há algum tempo, bloqueando os
domínios espirituais e intelectuais – como propostos pelos teóricos da Escola de Frankfurt –
dentro dos quais a cultura poderia ser compreendida em seus conteúdos originais, oposicionais à
estrutura social; o que torna a compreensão das formas pelas quais se dá este processo importante
para entendermos a educação hoje.
Nesse sentido, faz-se urgente uma educação que disponibilize os meios necessários para
que nós possamos ver criticamente as imagens; para ler o mundo hoje, é necessário saber decifrar
os códigos visuais e seus sistemas simbólicos, saber selecionar as imagens dentro do turbilhão de
informações que nos atingem e, usá-las para ler a realidade que nos cerca. Assim, uma educação
4 MARCUSE, Herbert. As novas formas de controle. In: Ideologia da sociedade industrial. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969. 5 MARCUSE, Herbert. Comentários para uma redefinição de cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. Cultura e Sociedade, volume II. 6 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 7 MARCUSE, op. cit., p. 159. 8 O conceito de Sociedade Administrada se refere, em última instância, à situação atual, na qual a estrutura social realiza um controle cada vez mais amplo de toda vida, administrando todos os setores sociais com o objetivo de sua própria reprodução. Esta situação é resultado de um processo longo que tem suas origens no início do processo de industrialização e no controle realizado pela racionalidade tecnológica, como veremos no decorrer do Capítulo Sociedade e Imagens.
que possibilite a ampliação destas capacidades, é fundamental para entendermos quem somos e
projetarmos quem queremos ser.
Tendo o espaço das artes visuais como o campo do conhecimento no qual se realiza o
pensamento crítico sobre a linguagem visual, percebemos que não basta incluir conteúdos de
Artes nos currículos das escolas; para que este ensino possa vislumbrar a autonomia do sujeito, os
professores(as) precisam de uma formação que possibilite a compreensão crítica destes
conteúdos. A decodificação da linguagem visual não se refere somente ao contato com as obras
de arte, mas principalmente à sua utilização como mais uma forma de leitura do mundo.
Para que a linguagem visual auxilie na compreensão da cultura visual, como proposta por
Fernando Hernándes9, é necessário proporcionar aos professores a vivência da linguagem visual,
para que possam trabalhar com as crianças, intercalando os conhecimentos das produções
artísticas da humanidade e, as produções visuais da indústria cultural.
1.1 Problema de Pesquisa
Assim, temos como problema de pesquisa: Qual é a compreensão, elaboração e
capacidade de leitura crítica da linguagem visual dos professores(as) que atuam na educação
infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. A partir desse problema, delimitamos como
objetivos: Analisar a inserção/influência da imagem visual na sociedade contemporânea e a
9 HERNÁNDES, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre, RS: Editora Artes Médicas Sul, 2000.
capacidade de leitura crítica da linguagem visual de professores(as) da educação infantil e séries
iniciais do ensino fundamental.
Mais especificamente, analisar a influência das imagens na formação do indivíduo na
sociedade contemporânea; investigar a importância da formação dos professores(as) da educação
infantil e séries iniciais do ensino fundamental para a leitura crítica das imagens; identificar como
os(as) professores(as) lêem, interpretam e utilizam as imagens visuais nas suas práticas docentes
e vidas particulares; investigar possibilidades de intervir na leitura crítica dos(as) professores(as),
em relação às imagens, através de vivências dialógicas e analíticas, com o intuito de melhorar a
compreensão da linguagem visual; apresentar subsídios para o desenvolvimento da leitura crítica
das imagens visuais na formação de professores(as).
1.2 Metodologia
Ao tomar como objeto de investigação a compreensão das diferentes formas da linguagem
visual que têm os(as) professores(as) da educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental,
definimos como opção metodológica a pesquisa qualitativa. Dentro do universo da pesquisa
qualitativa, a modalidade aplicada foi a entrevista com grupo focal natural, aliada ao uso de
recursos visuais e audiovisuais como estímulo para discussões e obtenção de dados.
Uma opção metodológica está intimamente ligada à especificidade do objeto de
investigação e à visão de mundo do investigador. A própria determinação do objeto a ser
investigado já é produto de uma ação intencional.
A opção pela pesquisa qualitativa baseou-se na concepção de que este método “[...]
fornece uma compreensão profunda de certos fenômenos sociais apoiados no pressuposto da
maior relevância do aspecto subjetivo da ação social face à configuração das estruturas
societais.”10
Neste estudo a pesquisa qualitativa torna-se fundamental, levando-se em conta que o
mesmo tem seu foco na compreensão das diferentes formas da linguagem visual dos sujeitos.
Este método possibilita, de acordo com Richardson,
[...] analisar a interação de certas variáveis, compreender e classificar processos
dinâmicos vividos por grupos sociais, contribuir no processo de mudança de
determinado grupo e possibilitar, em maior nível de profundidade, o
entendimento das particularidades do comportamento dos indivíduos.11
A presente investigação foi realizada com os(as) professores(as) da educação infantil e
séries iniciais do ensino fundamental, por serem estes que intermediam o primeiro contato das
crianças com as diversas linguagens, período de significativa importância para a compreensão da
linguagem visual.
A escolha dos sujeitos deve-se ao fato de ser importante que a educação visual aconteça
desde os primeiros anos do período escolar, pois o contato com a gramática visual e a
compreensão da linguagem visual, deve ocorrer simultaneamente à alfabetização.
A seleção dos sujeitos da pesquisa se deu através dos seguintes requisitos: um grupo de 4
professores(as) de uma mesma escola, com disponibilidade para se reunir em três encontros com
duração de 2 horas cada um. Em relação a este critério, segundo Gakell:
10 HAGUETTE, Tereza Maria Frota. Metodologias qualitativas na sociologia. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 63. 11 RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas, 1999, p. 80.
Na pesquisa qualitativa, a seleção dos entrevistados não pode seguir os
procedimentos da pesquisa quantitativa por um bom número de razões.
Primeiramente, numa improvável situação de selecionar uma amostra aleatória
de, digamos 30 pessoas, para um estudo qualitativo, a margem de erro ligada a
uma divisão de 50/50 com qualquer indicador seria na região de mais ou menos
20 por cento.12
O que nos levou a usar outro método para a seleção dos sujeitos da pesquisa qualitativa
com grupo focal, os grupos naturais. O grupo focal tradicional é composto por pessoas que não se
conhecem, mas isto não é um pré-requisito; sendo a familiaridade anterior considerada uma
vantagem em alguns casos13, como no presente. O trabalho com grupo focal se constitui em uma
alternativa aos grupos estatísticos ou taxonômicos, como afirma Gakell:
Nos grupos naturais, as pessoas interagem conjuntamente; elas podem partilhar
um passado comum, ou ter um projeto futuro comum. Elas podem também ler os
mesmos veículos de comunicação e ter interesses e valores mais ou menos
semelhantes. Neste sentido, grupos naturais formam um meio social.14
Neste caso, o critério utilizado foi o da convivência profissional, pois os sujeitos
escolhidos atuam na mesma escola pública de Curitiba, com as primeiras séries do ensino
fundamental.
O grupo focal natural apresenta uma interação social mais autêntica que a entrevista
qualitativa em profundidade, pois como uma unidade social mínima em operação, faz com que as
12 GASKELL, George. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, M. W., GASKELL, G.. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Tradução: Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 64-89, p. 67-68. 13 Ibid., p. 82. 14 Ibid., p. 69.
representações que surjam no decorrer das atividades e encontros sejam mais influenciadas pela
natureza social da interação do grupo.15
Os “[...] membros dos grupos focais não foram escolhidos para representar a sociedade
como um todo; eles foram escolhidos para constituir grupos que pudessem ter algo a dizer em
relação às questões teóricas trabalhadas.”16 Pois o objetivo não é abarcar uma fatia da população
e sim investigar com maior profundidade um grupo reduzido que pudesse trazer informações
sobre a compreensão do meio visual; para tanto foram selecionados como sujeitos da pesquisa
um grupo de 4 professoras de uma escola Municipal da região de Curitiba.
A “[...] finalidade real da pesquisa qualitativa não é contar opiniões ou pessoas, mas ao
contrário, explorar o espectro de opiniões, as diferentes representações sobre o assunto em
questão.”17 Neste sentido, a escolha pela entrevista com grupo focal natural oferece a
possibilidade de apreensão destas opiniões e representações em um ambiente no qual os sujeitos
já têm um vínculo social natural, possibilitando a convivência dos diversos pontos de vista,
instituída anteriormente à reunião para a pesquisa, mas que se afirma enquanto grupo isolado dos
outros membros da comunidade escolar de onde provêem, o grupo se constitui em uma unidade.
A entrevista qualitativa, pois, fornece os dados básicos para o desenvolvimento e
a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação. O objetivo é
uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações, em
relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos.18
15 GASKELL, 2002, p. 75. 16 MYERS, Greg. Análise da conversação e da fala. In: BAUER, M. W., GASKELL, G.. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Tradução: Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 271-292, p. 286. 17 GASKELL, 2002, p. 68. 18 Ibid., p.65.
O grupo se torna uma entidade em si mesma, mais que a soma das partes, pois pode-se
observar que a convivência entre os componentes do grupo possibilitou uma aproximação à
interação social, através da qual foram trazidas à luz, questões presentes no cotidiano escolar do
grupo pesquisado, o que foi possível por se tratar de um grupo natural. Como observa Gaskell:
A interação do grupo pode gerar emoção, humor, espontaneidade e intuições
criativas. As pessoas nos grupos estão mais propensas a acolher novas idéias e a
explorar suas implicações. Descobriu-se que os grupos assumem riscos maiores e
mostram uma polarização de atitudes – um movimento para posições mais
extremadas.19
A obtenção dos dados junto às professoras foi desenvolvida mediante uma vivência, que
englobava conversas e atividades práticas, o preenchimento de um questionário (apêndice A), a
realização de uma entrevista coletiva, além da produção de um relato (apêndice B) em forma de
texto no final da vivência. A opção por determinadas técnicas deve ter estreita relação com o tipo
de esclarecimento que se busca do objeto da investigação; neste caso, a reunião de diversas
atividades que exploravam diferentes aspectos da relação dos sujeitos com a linguagem visual.
As atividades práticas possibilitaram aprofundar a compreensão do problema, pois foi
possível entrar em contato com valores muitas vezes não explicitados oralmente ou por escrito,
quando o sujeito tem a possibilidade de selecionar racionalmente os conteúdos que irá expor; o
que pudemos perceber pelas diferenças entre os conteúdos que apareceram no questionário e
durante as atividades práticas.
A vivência foi proposta nestes termos, levando-se em conta a total inexperiência dos
sujeitos com a arte da dramatização, mas a sua experiência direta com os produtos desta arte por
19 GASKELL, 2002, p.76.
meio do contato com o teatro, a televisão e o cinema. Este contato se mostra como uma
experiência constante com a linguagem dramática e visual, mesmo que somente do produto final,
não sendo esperado, portanto, qualquer qualidade dramática nas representações. O que se buscou
foi perceber como esta experiência de assistir a filmes, teatro ou televisão se constitui em
experiência para a construção de um roteiro e uma dramatização, comportamento em cena, idéias
de construção das imagens e das falas. Pois se não existiram aulas de dramatização, os modelos
de referência foram buscados em outras experiências: as de espectadores(as). Esta produção
informal de uma dramatização teve como objetivo captar as reações espontâneas que os sujeitos
pudessem trazer de suas experiências cotidianas. Como afirma Bauer:
A comunicação informal possui algumas poucas regras explícitas: as pessoas
podem falar, desenhar ou cantar do modo que queiram. O fato de haver poucas
regras explícitas não significa que não existam regras, e pode acontecer que o
foco central da pesquisa social seja desvelar a ordem oculta do mundo informal
da vida cotidiana. Na pesquisa social, estamos interessados na maneira como as
pessoas espontaneamente se expressam e falam sobre o que é importante para elas
e como elas pensam sobre suas ações e as dos outros. Dados informais são
gerados menos conforme as regras de competências, tais como capacidade de
escrever um texto, pintar ou compor uma música, e mais do impulso do momento,
ou sob a influência do pesquisador.20
Portanto, a vivência não tinha o intuito de julgar a qualidade estética da dramatização ou
do roteiro realizados pelos sujeitos, mas de, a partir desta atividade, detectar as representações
sociais que pudessem aparecer e utilizar as atividades como estímulo para conversas e
depoimentos dos sujeitos.
20 BAUER, Martin W.; GASKELL, George; ALLUM, Nicholas C.. Qualidade, quantidade e interesses do conhecimento: evitando confusões. In: BAUER, M. W., GASKELL, G.. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Tradução: Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p.17-36, p.21.
Todos os encontros foram registrados em fita de vídeo e, após cada encontro, foi
produzido um relatório (apêndice C) com as impressões e idéias que pudessem ser sugeridas
durante o encontro. A escolha por este método de registro se deve à especificidade das atividades,
que tendo como ponto central a construção e dramatização de um roteiro para uma cena, exigia o
registro do comportamento dos sujeitos além de suas falas. E como se pretendia captar todo o
ambiente onde se desenvolveram as atividades e principalmente porque se trabalhou com a
linguagem visual e corporal, a filmagem em fita de vídeo se mostrou a melhor opção para o
registro. O que significa que a presença da filmadora deve ser levada em consideração na análise
dos dados, pois é de nosso conhecimento que a filmagem se apresenta como muito mais invasiva
que a gravação em fita k7, embora as professoras tenham sido consultadas sobre o uso deste
procedimento e tenham concordado, pois foi garantida a anonimidade das participantes.
O objetivo desta vivência foi perceber como estas professoras lêem os conteúdos e as
imagens da mídia, como se apropriam deste conteúdo e como o trabalham em sala de aula.
Portanto, todas as atividades e conversas foram direcionadas para a relação que estas professoras
estabelecem com os meios de comunicação visuais. Foram realizadas atividades e conversas que
possibilitassem uma maior aproximação com o objeto de estudo desta dissertação, não somente
por meios verbais, o que possibilitou uma compreensão aprofundada da relação dos sujeitos com
os conteúdos e forma dos meios de comunicação.
A realização da vivência seguiu os seguintes passos:
Primeiro dia:
1. Questionário: preenchimento de um questionário semi-aberto, que inquiria sobre as
preferências, hábitos e disponibilidade dos sujeitos ao assistir televisão.
2. Entrevista coletiva: com base no questionário foi realizada uma entrevista coletiva na
qual as professoras expuseram suas opiniões.
3. Cena de novela: as professoras assistiram a uma cena de novela, gravada no dia 18 de
Setembro, da novela de maior audiência no horário nobre, na Rede Globo de
Televisão: Mulheres Apaixonadas.
4. Roteiro: foi solicitado às professoras que construíssem um roteiro para posterior
dramatização, em duplas, com base em um tema proposto entre quatro possibilidades
(apêndice D).
Segundo dia:
5. Dramatização: as professoras encenaram o roteiro por elas construído, que foi
registrado em uma fita de vídeo para ser assistido no encontro seguinte.
6. Conceitos: foi solicitado que cada dupla definisse dois ou três conceitos que
resumissem o seu roteiro.
7. Ensaio fotográfico: as professoras construíram um ensaio fotográfico, buscando
imagens para fotografar na própria escola, que traduzissem os conceitos definidos por
elas (apêndice E).
Terceiro dia:
8. Observação do material produzido: a dramatização realizada pelas professoras foi
editada em uma fita de vídeo, e as fotografias reveladas e ampliadas, para que no
encontro as professoras pudessem observar e comentar o material produzido por elas.
9. Cena de novela: a cena de novela descrita no 3º passo do primeiro dia da vivência foi
assistida novamente pelas professoras no último dia da vivência.
10. Relato: foi solicitado às professoras que produzissem em forma de texto um relato
sobre todo o processo vivido por elas nos três dias da vivência.
Todas as atividades foram seguidas de conversas, que pretendiam registrar as impressões
imediatas dos sujeitos com relação à atividade proposta.
A primeira pesquisa piloto se mostrou fundamental para reorganização das atividades.
Percebeu-se nesta atividade que o total comprometimento das participantes é essencial para a
continuidade e sentido da vivência. O formato inicial da vivência que comportava, dos pontos
citados acima, apenas os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 8, 9 e 10, foi modificado com a inclusão dos pontos
6 e 7. O motivo da inclusão foi o de entrelaçar a produção da dramatização com a produção de
um ensaio fotográfico como desdobramento da atividade, apreendendo assim, duas formas da
linguagem visual, em movimento e fixa. Outro motivo que levou à inclusão destas atividades foi
o de permitir a produção de imagens em um meio mais familiar e do qual as professoras se
apropriaram mais facilmente; além de aumentar o material de análise e discussão, com a
construção, pelos sujeitos, de imagens que pudessem se colocar em paralelo à dramatização para
aprofundar a compreensão da linguagem visual e ampliar o âmbito de ligações entre os conteúdos
da mídia, as imagens da mídia e os modelos de dramatização efetuados. Percebeu-se também,
com a primeira pesquisa, que só a dramatização se mostrou insuficiente para o fechamento da
vivência, pois, a produção de um roteiro e sua dramatização, são duas atividades muito distantes
do dia a dia dos sujeitos, o que, de certa forma, dificulta a formalização, pela falta de vocabulário
e intimidade com o meio.
A primeira pesquisa piloto foi realizada com uma turma de um Curso de Formação de
Professores, com total de 8 alunas. Foi dada toda a orientação para a diretora do curso, por
escrito, dizendo que se tratava de uma pesquisa e, que as alunas deveriam decidir se queriam
participar ou não. Quando a diretora orientou as alunas, apenas se referiu à pesquisa como mais
uma das atividades optativas ofertadas para as alunas durante aquela semana. Iniciei as atividades
modificando no decorrer do tempo as orientações por perceber que a pesquisa não poderia ser
realizada da forma como estava ocorrendo. Mesmo não sendo dito que se tratava de uma
pesquisa, as alunas sabiam que se tratava de uma atividade optativa, do que se pode concluir que
participaram espontaneamente; mas mesmo assim assumi internamente que esta atividade não
seria usada na pesquisa, ficando como uma experiência piloto, já que de qualquer forma os dados
não seriam divulgados. Pude perceber nos dois encontros realizados com as alunas do referido
curso, que para a realização da pesquisa deveria incluir algumas atividades a mais, para que a
obtenção dos dados se realizasse de forma mais completa, assim optei por incluir a produção de
um ensaio fotográfico relacionado com a dramatização. Constatei também que o total
comprometimento com a pesquisa, por parte dos sujeitos, se mostrou fundamental. As alunas do
Curso de Formação de Professores que participaram desta experiência piloto estavam na fase de
elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso, tendo sua atenção voltada para a realização do
trabalho, o que prejudicou sua participação; outro fato que prejudicou o trabalho foi a presença de
duas professoras, que as orientavam, na sala de aula no primeiro encontro. Por estes motivos, esta
experiência foi descartada, mas não a percepção de falhas na construção do projeto para a
vivência.
Na segunda experiência, a vivência foi organizada em três encontros, com duração de
duas horas, que foram realizados na própria escola na qual trabalham as professoras, com
intervalos de duas semanas entre cada encontro, abrangendo os meses de Outubro e Novembro de
2003. Os sujeitos da pesquisa foram um grupo de professoras do ensino fundamental de uma
Escola Municipal situada na região de Curitiba. Todas as professoras já atuam no magistério há
mais de 10 anos, totalizando 4 professoras; duas das quais possuem ensino superior, uma possui
magistério e uma possui pós-graduação. Em uma conversa preliminar com as professoras e as
diretoras da escola foi possível marcar os encontros e contar com o comprometimento das
professoras, com as quais foi possível realizar todas as etapas e atividades da pesquisa.
No primeiro encontro as professoras preencheram o questionário, e participaram da
entrevista coletiva, a segunda atividade foi assistir à cena da novela Mulheres Apaixonadas,
gravada no dia 18 de setembro de 2003, da emissora de televisão Rede Globo. Após um breve
comentário sobre alguns elementos visuais presentes em uma cena, como tipos de
enquadramento, luz, etc. foi iniciada a terceira atividade do encontro: construir um roteiro para a
dramatização no próximo encontro.
No segundo encontro as professoras ensaiaram seus roteiros e depois realizaram a
dramatização. Como uma das professoras faltou neste dia, assumi o papel dela na dramatização
por considerar que não afetaria o resultado final, pois o roteiro já estava pronto, eu só tive que ler
as falas para que a professora pudesse participar. Depois da dramatização, as professoras
definiram três conceitos que resumiam as cenas para elas e saímos pela escola para que elas
fotografassem imagens que representassem os conceitos. Após cada atividade foram realizadas
conversas que tinham o intuito de registrar as opiniões imediatas das professoras com relação às
atividades.
No terceiro encontro a seqüência das atividades foi planejada de forma a possibilitar que
as professoras pudessem comentar, e pensar a respeito da linguagem visual, retomando todas as
fases da vivência. Em primeiro lugar assistiram à dramatização realizada por elas; em segundo,
observaram as fotografias tiradas e retomaram as ligações entre as atividades; em terceiro,
assistiram novamente à dramatização; em quarto, assistiram novamente à cena da novela assistida
no primeiro encontro; e, em quinto, foi realizada uma conversa sobre como elas percebem a
presença da mídia na escola. As várias atividades realizadas no último encontro possibilitaram
uma dinâmica entre as linguagens visuais trabalhadas e, a passagem de uma para a outra
possibilitou que as professoras fizessem as conexões entre as atividades.
Para realizar a análise do material coletado, as fitas de vídeo foram assistidas e as falas e
comportamentos transcritos detalhadamente, para comporem, junto com os relatórios realizados
todos os dias após os encontros e as fotografias, o material de base para a análise de conteúdo.
A análise de conteúdo busca a compreensão dos significados das mensagens para seus
emissores em um determinado momento; o objetivo é trabalhar a mensagem (conteúdo e
expressão deste conteúdo) para evidenciar indicadores que permitam inferir em outra realidade.
Parte-se de uma leitura inicial e superficial até o aprofundamento, visando ultrapassar os
significados manifestos. Relacionam-se as estruturas dos enunciados, nas quais articulam-se os
textos descritos e analisados com os fatores que determinam suas características: variáveis
psicossociais, contexto cultural e processo de produção da mensagem.21
Dentre as várias técnicas de análise de conteúdo existentes, foi escolhida a análise
temática para trabalhar os dados coletados. A análise temática é uma afirmação acerca de um
assunto e pode ser representada por uma palavra, uma frase ou um resumo. Segundo Bardin, “[...]
o tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado segundo
certos critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura.”22
Uma análise temática consiste em descobrir os “núcleos de sentido” que compõem a
comunicação e cuja presença ou freqüência de aparição podem significar alguma coisa para o
objetivo analítico escolhido; organiza-se em três pólos: pré-análise, exploração do material e
tratamento dos resultados obtidos, e, interpretação.
21 MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 6.ed. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1999. 22 BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1995, p.105.
De acordo com Bardin, os passos para a análise do conteúdo neste trabalho foram os
seguintes:
Pré-análise: esta é a fase na qual é feita a organização das idéias iniciais, de forma a
conduzir a um esquema de operações de análise. Caracteriza-se pela escolha dos documentos que
serão analisados e a formulação das hipóteses, objetivos e elaboração de indicadores que
fundamentam a interpretação final. Esta fase é composta de várias atividades:
a. leitura flutuante: visa estabelecer contato com os documentos, momento no qual o
pesquisador deixa-se invadir por impressões e orientações; gradativamente a leitura se torna mais
precisa, em função das hipóteses iniciais e da projeção de teorias sobre o material. Neste trabalho,
esta fase se constituiu por momentos nos quais as fitas de vídeo que registraram a vivência foram
assistidas, a leitura da transcrição das falas das professoras, juntamente com os questionários e os
relatos. Este procedimento se repetiu várias vezes até que se iniciou uma classificação por
proximidade de idéias, o que foi seguido por um novo contato com o material; passos estes que se
repetiram: leitura, classificação por proximidade, nova leitura, nova classificação; até uma
organização que permitisse entrar na etapa seguinte proposta por Bardin;
b. escolha dos documentos: a constituição de um corpus de documentos a serem
submetidos aos procedimentos analíticos, os quais devem responder aos critérios de:
exaustividade: contemplar todos os aspectos do tema; representatividade: conter a
representatividade do universo pretendido; homogeneidade: responder a critérios precisos de
escolha; pertinência: os documentos devem ser adequados como fonte de informação
respondendo ao objetivo de análise. Neste trabalho esta etapa se deu pelo agrupamento das falas
das professoras participantes da vivência, dos materiais escritos, fotográficos e audiovisuais.
c. formulação das hipóteses e objetivos: formulação de uma afirmação provisória a ser
verificada com base nos procedimentos analíticos; no presente estudo a formulação das hipóteses
foi feita momento a momento quando do agrupamento e análise dos dados, visando encontrar o
conjunto que melhor representasse o significado das falas;
d. referenciação dos índices e a elaboração dos indicadores: é a escolha dos índices e a
sua organização sistemática na forma de indicadores, que devem ter determinadas operações:
recorte do texto em unidades comparáveis de categorização para a análise temática e de
modalidade de codificação para registro dos dados. Nessa etapa, coloca-se o conjunto das falas,
com os recortes de textos que representem as unidades que são comparáveis, isto é, tem o mesmo
significado e, gradativamente vão se transformando em indicadores para a categorização. Após a
distribuição dos indicadores em diferentes conjuntos de categorização, uma nova leitura era
realizada, observando-se as convergências e divergências dos indicadores; foram feitos vários
agrupamentos, até chegar ao que melhor representasse os resultados desse estudo.
A exploração do material: esta fase se resume basicamente à operação de codificação,
mediante a transformação dos dados brutos com vistas a alcançar o núcleo de compreensão do
texto.
Tratamento dos resultados obtidos e interpretação: os resultados brutos devem ser
tratados de maneira a serem significativos e válidos. A partir daí o analista propõe inferências e
realiza interpretações previstas no seu quadro teórico ou abre outras pistas em torno de dimensões
teóricas sugeridas pela leitura.
A codificação corresponde a uma transformação sistemática dos dados brutos do texto,
que posteriormente são agregados em unidades, permitindo a descrição das características do
conteúdo. Ao chegar nas unidades de categorização propostas no presente estudo, o trabalho de
análise foi realizado, para o qual foi utilizado o referencial teórico estudado.
O referencial teórico foi construído com base na teoria crítica da sociedade, com os
teóricos da Escola de Frankfurt, além de outros que pudessem trazer contribuições para a
compreensão do objeto de estudo. Neste sentido, no segundo capítulo desta dissertação são
discutidas as questões relacionadas à sociedade, ao indivíduo e à reprodutibilidade técnica da
imagem. No terceiro capítulo, é abordada a educação e a formação dos professores, relacionando
a pseudoformação, a coisificação da profissão de ensinar, o ensino da arte e a inclusão das mídias
na escola. No quarto capítulo, a metodologia é apresentada detalhadamente e no quinto capítulo
são apresentadas as análises da pesquisa. As considerações finais constituem o sexto e último
capítulo desta dissertação.
CAPÍTULO II SOCIEDADE E IMAGENS
Os signos metropolitanos são “imagens reproduzidas e reprodutíveis, reproduções
de imagens que implicam outras imagens e outras reproduções, imagens
formalizadas que remetem a outras imagens, imagens que se articulam no código
e o exibem ao mesmo tempo, como mediação estruturadora que liga todas as
coisas de maneira viscosa”. A imagem da imagem é uma mensagem que explicita
logo o código que a estrutura, definindo o próprio funcionamento e a própria
trajetória significativa. A imagem metropolitana não é aquilo que pode ser
reproduzido, mas aquilo que traz em si a própria reprodução. Mais do que
repetição ela é reprodução permanente e auto-reprodução, abrindo um processo
de infinitos reflexos no duplo.23
Nesta citação, Anatereza Fabris comenta e completa a citação de Paolo Bertetto, sobre os
signos metropolitanos, as imagens visuais, que se tornam cada vez mais numerosas e importantes
em nossa sociedade, formando o que muitos chamam de Sociedade das Imagens. Para entender a
dinâmica da reprodutibilidade descrita acima, faz-se necessário entender o princípio que a gerou,
isto é, a “racionalidade tecnológica24”, que perpassa toda a sociedade, e define a própria
percepção que as pessoas têm da realidade. Percepção esta que sofre consideráveis mudanças no
desenvolvimento histórico de nossa civilização, em decorrência de transformações profundas na
organização social. 23 BERTETTO, Paolo apud FABRIS, Anatereza. Percorrendo veredas: hipóteses sobre a arte brasileira atual. In: Revista USP. São Paulo, dezembro/fevereiro 1998-99, nº40, p. 68-77, p. 71. 24 O termo “racionalidade tecnológica” é usado de acordo com Marcuse em “Algumas Implicações da Tecnologia Moderna”: “Sob o impacto deste aparato [o termo ‘aparato’ designa as instituições, dispositivos e organizações da indústria em sua situação social dominante], a racionalidade individualista se viu transformada em racionalidade tecnológica. De modo algum está confinada aos sujeitos e objetos das empresas de grande porte, mas caracteriza um modo difundido de pensamento e até mesmo as diversas formas de protesto e rebelião. Esta racionalidade estabelece padrões de julgamento e fomenta atitudes que predispõem os homens a aceitar e introjetar os ditames do aparato.” MARCUSE, Herbert. Algumas implicações da tecnologia moderna. In: Tecnologia, guerra e fascismo. KELLNER, Douglas (ed). Tradução de Maria Cristina Vidal Borba. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 73-104. p.77.
2.1 Cultura e Civilização
A Sociedade Ocidental passa por um processo de industrialização que se iniciou no final
da Idade Média, possibilitou a passagem do modo feudalista de produção para o modo capitalista,
e se realizou em meio a reformulações na técnica de produção, pela invenção das primeiras
máquinas. Este processo continua se atualizando até hoje, mas como os seus meandros são
complexos e demandariam todo um trabalho de pesquisa para analisá-los corretamente, para os
fins deste estudo, não entraremos nestes detalhes, apenas levantaremos alguns pontos que possam
esclarecer o nosso objeto de estudo: a compreensão das imagens metropolitanas e sua relação
com o sujeito contemporâneo.
Os pressupostos dos Movimentos do Esclarecimento eram de que pelo uso da Razão, a
humanidade atingiria o esclarecimento e a autonomia; e prescreviam que o progresso a levaria a
sair da menoridade, que seria, como explicou Kant, atingir esta autonomia e a liberdade, através
deste esclarecimento.
É interessante ressaltar que o conceito de progresso é fundamental neste contexto, pois se
constitui no motor de todo o desenvolvimento da Sociedade Ocidental. Como foi delineado por
Adorno, o conceito de progresso difundido pelo Iluminismo se origina nas idéias de Santo
Agostinho, de que a redenção de Cristo colocava a espécie humana em marcha imanente para a
bem-aventurança, o Reino Celestial. O que fazia da vida na terra, uma vida de pecado e
sofrimento que seriam compensados depois da morte, ao lado de Deus. Mas a impugnação desta
redenção bem sucedida pela história pós-cristã (a redenção de Cristo não livrou o mundo do mal,
e o fato de que a igreja perde gradativamente seu poder político-econômico-ideológico no
período moderno), torna-se motivo de uma irresistível secularização do progresso a partir da
Renascença. O iluminismo que “[...] coloca pela primeira vez, nas mãos da humanidade seu
próprio progresso e concretiza desse modo sua idéia como algo a ser efetivado, espreita a
ratificação conformista daquilo que meramente existe.”25 A idéia de evolução para algo melhor é
reformulada pelo iluminismo: o caminho para chegar ao estado superior não é a religião, pois
este estado não está no céu, está na terra e pode ser alcançado pelas pessoas pelo uso da razão,
pois seria a emancipação da consciência. O progresso se torna o fim e os meios da sociedade26
para atingir o estado superior, e mantém o caráter de libertação prescrito nas idéias de Santo
Agostinho.
Os objetivos sociais que derivam deste conceito de progresso podem ser compreendidos
sob a luz da discussão de Marcuse sobre Cultura, sendo esta definida por ele como: “[...] o
complexo de objetivos (ou valores) morais, intelectuais e estéticos, considerados por uma
sociedade como meta da organização, da divisão e da direção de seu trabalho – o ‘Bem’, que
deve ser alcançado mediante o modo de vida por ela instituído.”27 Pensando ainda no conceito de
progresso descrito acima, podemos considerar que os objetivos que a civilização ocidental
declara e a pretensão de realizá-los, definem a sua cultura, como um
[...] processo de humanização caracterizado pelo esforço coletivo para conservar
a vida humana, para pacificar a luta pela existência ou mantê-la dentro de limites
controláveis, para consolidar uma organização produtiva da sociedade, para
25 ADORNO, Theodor, W. Progresso. In: Palavras e sinais – modelos críticos 2. Tradução: Maria Helena Ruschel; supervisão de Álvaros Valls. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p.42. 26 Segundo a definição dada por Adorno e Horkheimer no texto Sociedade: “No seu sentido mais importante entendemos por ‘sociedade’ uma espécie de contextura formada entre todos os homens e na qual uns dependem dos outros, sem exceção; na qual o todo só pode subsistir em virtude da unidade das funções assumidas pelos co-participantes, a cada um dos quais se atribui, em princípio, uma tarefa funcional; e onde todos os indivíduos, por seu turno, estão condicionadas, em grande parte, pela sua participação no contexto geral.” ADORNO, T.W; HORKHEIMER, M. Sociedade. In: Temas básicos da sociologia. Tradução de Álvaro Cabral, São Paulo: Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973, p. 25-44. p. 25 27 MARCUSE, 1998, p. 153.
desenvolver as capacidades intelectuais dos homens e para diminuir e sublimar a
agressão, a violência e a miséria.28
Nesses objetivos estão excluídos, necessariamente, a crueldade, o fanatismo e a violência
não-sublimada; pois com a inclusão destes, a cultura não pode ser vista como processo de
humanização; mas que podem, no entanto, fazer parte de uma cultura como os meios para o
alcançar ou a aproximação dos objetivos culturais29.
O meio pelo qual a civilização ocidental pretendia atingir as metas culturais era o
progresso tecnológico, pois por meio dele, as pessoas estariam liberadas do trabalho árduo e
alienante, ficando assim livres para ocupar e organizar seu tempo com atividades segundo suas
próprias intenções. Estas eram as metas culturais ligadas ao progresso no início de seu
desenvolvimento, as metas cantadas pelos iluministas. Mas que, como descreve Adorno, sofreram
algumas mudanças no decorrer do percurso:
Enquanto a classe burguesa permaneceu oprimida, pelo menos no plano das
formas políticas, opôs-se com a palavra de ordem do progresso à situação
estacionária vigente; seu patos era eco desta. Somente depois de esta classe já ter
conquistado as posições de poder decisivas, o conceito de progresso degenerou
em ideologia, que logo foi imputado pela vácua profundidade ideológica, ao
século XVIII. O século XIX chegou aos limites da sociedade burguesa; esta não
podia realizar sua própria razão, seus ideais de liberdade, justiça e
espontaneidade, a não ser superando seu próprio ordenamento. Isso a obrigou a
computar, falsamente, a seu favor, como sendo conquista, o que foi deixado de
lado.30
28 MARCUSE, 1998, p. 154. 29 Ibid., p. 154. 30 ADORNO, 1995, p. 52.
Historicamente os pressupostos iluministas ainda não foram realizados, e a conseqüência
é uma tensão crescente entre as metas culturais e os meios pelos quais a sociedade pretende
atingi-las. “As metas são estabelecidas, presumivelmente, pela ‘cultura superior’ aprovada
(socialmente); são pois, valores, que devem ser incorporados, mais ou menos adequadamente, nas
instituições e nas relações sociais.”31 Por “cultura superior” 32, Marcuse entende “literatura, arte,
filosofia e religião [...]”33, e, para determinar aquela tensão, se pergunta como, afinal, estas se
relacionam com a práxis social.
A tensão, entre os fins do desenvolvimento da sociedade e os meios pelos quais esta
pretende atingi-los, dá início a uma discussão, que atualmente, segundo Marcuse, se expressa na
diferenciação entre Cultura e Civilização:
“Cultura” se relaciona a uma dimensão superior da autonomia e da realização
humana, enquanto “Civilização” indica o reino da necessidade, do trabalho e do
comportamento socialmente necessários, dentro do qual o homem não é
efetivamente ele mesmo, nem está em seu próprio elemento, mas sim submetido à
heteronomia, às condições e às necessidades exteriores.34
Marcuse afirma que dentro desta distinção, o progresso só pode se referir ao progredir da
Civilização, ao progresso técnico (desenvolvimento de habilidades e conhecimentos35). No
entanto, com relação a esta questão, Adorno e Horkheimer36, levantam que a diferenciação de
cultura e civilização deve ser analisada com cuidado, pois a demonização do conceito de 31 MARCUSE, 1998, p.155. 32 O conceito de “Cultura Superior” empregado por Marcuse será substituído no decorrer do trabalho simplesmente por “Cultura”, pensando nesta como o campo no qual se desenvolvem as produções culturais, desde as eruditas até as populares, pois a integração da cultura na civilização, como será visto adiante, não se refere apenas à cultura erudita, mas à toda a esfera de produções desvinculadas do reino do trabalho árduo e socialmente necessário. 33 MARCUSE, op. cit., p. 155. 34 Ibid., loc. cit. 35 BEJAMIN, Walter. apud ADORNO, 1995, p.39. 36 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M.. Cultura e civilização. In: Temas básicos da sociologia. Tradução de Álvaro Cabral, São Paulo: Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973, p. 93-104.
civilização pode levar a um pessimismo histórico, quando a cultura é elevada ao reino das
realizações espirituais sem as devidas observações sobre sua atual condição, pois:
[...] o uso moderno de civilização relacionou-se, por um lado, como o
extraordinário aumento da população, da Revolução Industrial em diante, e com a
concentração urbana resultante; e, por outro lado, com a desintegração da
ordenação tradicional da sociedade, em conseqüência do racionalismo. A velha
ordem institucional seria substituída por um estado de superorganização, somado
a uma caótica desarticulação. Temos, assim, uma quantidade enorme de homens
que levam uma existência superficial, sem alma, atomizados, sem a força de uma
coesão interna, cada um apegado às suas próprias prerrogativas e, ao mesmo
tempo, vagamente cônscio da força dos números [...]37
Cultura e civilização são elementos interdependentes, apesar de contraditórios no
processo de gradual socialização; uma não pode existir sem a outra, pois “[...] o desenvolvimento
interior o homem e a sua configuração do mundo externo dependem um do outro, sendo uma
ilusão querer criar um mundo de interioridade que não desse provas de sua existência atuando
sobre a realidade exterior.”38 Assim, a relação entre as metas da sociedade e os meios pelos quais
ela pretende realizá-las, é o que realmente importa para a discussão, pois:
Os aspectos caóticos e monstruosos da civilização técnica dos nossos dias não
promanam do próprio conceito de civilização nem de determinados aspectos
intrínsecos da técnica. Na sociedade moderna, a técnica já adquiriu uma estrutura
e uma posição específicas, cuja relação com as necessidades dos homens é
profundamente incongruente. Assim, o mal não deriva da racionalização do nosso
mundo mas da irracionalidade com que essa racionalidade atua. Os bens da
civilização que nos horrorizam são os instrumentos de destruição ou os bens
37 ADORNO; HORKHEIMER, 1973, p. 94. 38 Ibid., p. 96.
criados pela superprodução, que iludem os homens com sua engrenagem
publicitária, tanto mais inútil quanto mais engenhosamente refinada. [...] O
absurdo econômico em cuja teia a tecnologia se enredou, não já o progresso
técnico como tal, faz pesar a sua ameaça sobre o Espírito e agora, sobre a própria
sobrevivência física da humanidade.39
Assim, ao pensarmos nas metas propostas pela sociedade, percebemos que o
desenvolvimento do progresso, ao contrário do esperado pelos iluministas, se afastou dos
pressupostos da humanização. Desta situação resultou que a luta pela sobrevivência não foi
apaziguada, pois a marcha do progresso tecnológico, como descrito por Adorno e Horkheimer,
depende de sua manutenção e aumento progressivo. Nesse sentido, as metas propostas pela
“cultura” se colocavam, neste ponto, contra a marcha do progresso tecnológico, pois ainda
enunciavam a liberdade e a felicidade como os fins do progresso, o que significaria o progresso
da própria humanidade.
Pouco a pouco se inicia um desequilíbrio entre os meios e os fins determinados pela
sociedade, e as relações sociais passam a se desenvolver sob a égide da Civilização40. Esse
desequilíbrio se refere a um maior foco nos meios que promovem o progresso tecnológico em
detrimento das metas culturais; do que resulta, que aqueles pressupostos se converteram em
heteronomia e mistificação – o mito do próprio progresso, pois como afirma Adorno, a Burguesia
computou, falsamente, a seu favor, como sendo conquista, o que foi deixado de lado.
39 ADORNO; HORKHEIMER, 1973, p. 98-99. 40 “[...] o aumento da riqueza social [é], entre outras coisas, uma das causas primordiais da autonomia que as instituições e formas de socialização adotam para os homens, como um todo organizado, já não se identifica mais com os próprios homens e, pelo contrário passou a se afirmar e consolidar independentemente deles.” Ibid., p. 33.
A distância entre as metas culturais (cultura41) e o que passou a ser realizado de fato
(civilização) aumentou, mas ao mesmo tempo a tensão entre as duas é cada vez mais reprimida, a
cultura é “incorporada sistemática e organizadamente na vida cotidiana e no trabalho [...]”, o
resultado é uma nivelação entre as duas esferas; em relação a isso Marcuse se questiona sobre a
possibilidade, em nossa sociedade, de distinguir Cultura e Civilização, já que nesse processo
aconteceu uma absorção dos fins pelos meios.
Mas, se historicamente estamos abandonando os instrumentos que permitiriam a
libertação individual e social e privilegiando os elementos irracionais – a força, a
agressão, a competição, o consumo de bens desnecessários – isso significa que o
progresso convive com a regressão.42
E a regressão a qual Crochík se refere é justamente a manutenção da sociedade no estágio
que deveria ser o intermediário entre o desejo de uma sociedade livre, que tivesse a vida humana
como fim, e sua concretização. O progresso tecnológico não tem mais a vida humana como fim,
ele passou a ser o fim de todo o desenvolvimento.
Assim, o progresso tecnológico passou a ser a meta da sociedade, e a Razão exaltada pela
Revolução Burguesa, se transformou em “racionalidade tecnológica”, uma forma de organizar a
vida, que tem por objetivo o desenvolvimento tecnológico, como explica Marcuse:
No decorrer do processo tecnológico, uma nova racionalidade e novos padrões de
individualidade se disseminaram na sociedade, diferentes e até mesmo opostos
àqueles que iniciaram a marcha da tecnologia. Essas mudanças não são efeito
41 Com o fim de tornar o texto mais fluido, manteremos a distinção entre Cultura e Civilização, mas levando em consideração todas as advertências acima referidas, definindo Cultura como o reino onde se produziram as obras de arte, filosofia, literatura; e Civilização, o reino do trabalho socialmente necessário. 42 CROCHIK, José Leon. A ideologia da racionalidade tecnológica e a personalidade narcisista. Tese para o concurso de livre docência. São Paulo: ISUSP, 1999, p. 20.
(direto ou derivado) da maquinaria sobre seus usuários ou da produção em massa
sobre seus consumidores; são, antes, elas próprias, fatores determinantes no
desenvolvimento da maquinaria e da produção em massa.43
A nova racionalidade da qual Marcuse fala, é a “racionalidade tecnológica”; e ele afirma
que o que gerou o atual estado de coisas não foi o efeito da industrialização sobre as pessoas, mas
o contrário, que as pessoas, a partir do desenvolvimento desta nova racionalidade, desenvolveram
a maquinaria e toda a situação social que se instaurou em decorrência dessa nova forma de
organizar e compreender o mundo. “Um mundo como o de hoje, no qual a técnica ocupa uma
posição-chave, produz pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica.”44 Isso significa que esta
racionalidade, que toma como modelo a máquina, moldou a percepção que as pessoas tem da
realidade e preparou o caminho para o desenvolvimento tecnológico ilimitado com o qual ainda
convivemos. As pessoas afinadas com a técnica, impregnadas pela “racionalidade tecnológica”,
organizam suas vidas seguindo o modelo de organização social, e é assim que se dá sua
identificação com a sociedade, acontece uma integração do particular no universal, o que aparece
é a unidade do todo, o poder do todo de marcar o individual de forma tão potente que as
diferenças são minimizadas, se institui uma homogeneidade: a ordem é mantida.
Para compreender este processo, é interessante retomar a discussão de Marcuse sobre a
cultura, sua incorporação na vida cotidiana e no trabalho, no sentido de esclarecer como a cultura,
na sociedade atual, se transforma, nas palavras de Marcuse, em um veículo de adaptação.
Em meio à homogeneidade que se instaurou na civilização ocidental, a cultura aparece
como a diferença, pois ideologicamente mantém-se como “processo de humanização” tal como
descrito acima. Mas apenas como mera ideologia (falsa consciência), pois como afirmou
43 MARCUSE, 1999, p. 74. 44 ADORNO, Theodor W. Tabus que pairam sobre a profissão de ensinar. In: Palavras e sinais – modelos críticos 2. Tradução: Maria Helena Ruschel; supervisão de Álvaro Valls. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p.118.
Marcuse, foi incorporada organizada e sistematicamente na vida cotidiana e no trabalho, e nessa
incorporação aliviou-se a tensão entre Cultura e Civilização. Em outras palavras, a diferença foi
assimilada, é produzida pela indústria cultural, e funciona agora, para reafirmar o existente – a
vida cotidiana e o trabalho. Essa diferença que se desenvolve dentro da esfera da Civilização, está
integrada na homogeneidade dominante, e portanto, não é uma diferença real, é aparência de
diferença.
A aparência de diferença acontece nos bens culturais, pelo efeito particular dentro da
obra, a monotonia da homogeneidade é quebrada momentaneamente e isso se coloca como a
diferença, mas esse efeito nada mais é que parte do esquema de organização formal da obra, que
existe com este fim mesmo de proporcionar a ilusão da diferença, e se manter como uma
manifestação cultural. Este processo foi chamado por Adorno de estandardização. Dentro da
sociedade, a cultura quebra a monotonia generalizada, mas como o efeito particular que é parte
do esquema formal de produção das obras da indústria cultural, a Cultura é parte da organização
formal da Sociedade, tendo ambos a finalidade de proporcionar a ilusão de diferença, que é
importante para afirmar a diferença dentro da realidade estabelecida, e, como vamos ver mais
adiante, manter as pessoas confinadas nesta, acreditando que, pela cultura que conhecem, se
livram da pressão do trabalho.
A forma pela qual a Cultura é incorporada na Civilização é, por um lado, a divulgação das
obras da “cultura” ao grande público, juntamente com a tradução dos conceitos destas obras; e,
por outro, pela criação de uma indústria cultural, que produz bens culturais de acordo com as leis
do mercado. No processo de tradução dos conceitos das obras da “cultura”, pode-se dizer que
acontece a eliminação ou redução destes conteúdos, pois modificados, já não são compreendidos
pelo que originariamente significavam, isso “[...] bloqueia um espaço vital importante ao
desenvolvimento da autonomia e da oposição e destrói um refúgio e uma barreira contra o
totalitarismo.”45 Aqui, Marcuse se refere ao fato de que a “cultura” se colocava como um espaço
apartado do mundo do trabalho, concretizando a tensão entre Cultura e Civilização. Com esta
distância, a “cultura” não era afetada pela lógica operacional da Civilização, e mantinha a
possibilidade de pensar sobre ela e, de certa forma controlar a marcha do progresso tecnológico
por meio da proposição das metas sociais. Mas a incorporação da Cultura na Civilização destrói
este espaço pela sua invasão, as produções da “cultura” são apropriadas e utilizadas como mais
uma forma de garantir e manter o status quo.
No entanto, Marcuse lembra que a “cultura” – as artes, a literatura e a filosofia –, sempre
foi privilégio de uma minoria “[...] uma questão de riqueza, de tempo e de feliz coincidência.”46,
para a maioria, seus conteúdos sempre foram palavras irrealizadas, incompreensíveis e distantes;
e era justamente por ser um círculo fechado e reduzido, que esta “cultura” tinha a possibilidade
de se manter alheia ao sofrimento existente e, prescrever uma moral em contradição com a moral
socialmente útil, além de alcançar e transmitir verdades “[...] que eram negadas e reprimidas na
realidade estabelecida ou transpostas nos conceitos e nos cânones socialmente úteis.”47 Por outro
lado, essa transposição acontece quando as obras de arte literatura e filosofia são popularizadas,
trazidas a público. Aquela maioria que não tinha acesso a estas obras, passa a recebê-las, mas, no
entanto, não lhes foram concedidos os meios necessários à sua compreensão; o que significa que
seus conteúdos continuariam incompreensíveis, não fosse a tradução destes conteúdos para a
realidade existente, realizada quando de sua assimilação, proporcionando a compreensão
deturpada destas obras pela população desavisada.
45 MARCUSE, 1998, p. 158. 46 Ibid., p. 159. 47 Ibid., p. 159.
Os elementos oposicionais da cultura são assim enfraquecidos: a civilização
assume, organiza, compra e vende cultura; idéias que em sua essência são não-
operacionais, não orientadas ao comportamento, são traduzidas em operacionais e
referidas ao comportamento; e essa tradução não é uma simples metodologia, mas
sim um processo social e até político.48
Cultura se transforma em mercadoria e tem seus conteúdos operacionalizados de forma
que sejam direcionados ao comportamento individual, assim são facilmente ajustados ao
existente. A conseqüência é a afirmação do existente, ou seja, sua naturalização, que significa a
afirmação da impossibilidade de transformação social, pois mostra que não existe outra forma
possível. “Resultado: os conteúdos culturais tornaram-se pedagógicos e edificantes, algo
relaxante – um veículo de adaptação.”49 A cultura se torna mais uma forma de validar o existente
porque ideologicamente fala em ideais de liberdade e felicidade, mas esses ideais são mostrados
como já realizados na sociedade; em decorrência disso, sua realização pessoal depende
unicamente dos comportamentos individuais.
Os conteúdos imanentes às obras de arte, filosofia e literatura, são antagônicos à
Civilização, ou seja, mantém uma tensão com ela, porque não foram realizados na sociedade em
decorrência da crescente violência do existente; as metas prescritas pela “cultura” se distanciaram
progressivamente da realidade estabelecida. Conservaram seu caráter intraduzível porque não
tinham correspondência com o real. Enquanto pensados em uma esfera que não se fundia com o
mundo do trabalho, os conceitos se mantinham em sua integridade, mas quando a cultura é
incorporada, seus conteúdos são traduzidos em termos operacionais e ajustados ao existente, os
nomes dos conceitos são mantidos, mas os conteúdos são adaptados à realidade, o que significa
48 MARCUSE, 1998, p. 160. 49 Ibid., loc. cit.
que são compreendidos como existentes e referentes aos comportamentos individuais, e não às
metas sociais.
Pensando na questão da maior acessibilidade das obras da “cultura” e suas conseqüências,
Adorno coloca que:
[...] as obras de arte são apresentadas como slogans políticos e, como eles,
inculcadas a um público relutante a preços reduzidos. Elas tornaram-se tão
acessíveis quanto os parques públicos. Mas isso não significa que, ao perderem o
caráter de uma autêntica mercadoria, estariam preservadas na vida de uma
sociedade livre, mas, ao contrário, que agora caiu também a última proteção
contra sua degradação em bens culturais. A eliminação do privilégio da cultura
pela venda em liquidação dos bens culturais não introduz as massas nas áreas de
que eram antes excluídas, mas serve, ao contrário, nas condições sociais
existentes, justamente para a decadência da cultura e para o progresso da
incoerência bárbara.50
As obras de arte, literatura e filosofia são transformadas em bens culturais; em relação a
isso, Adorno afirma, em concordância com Marcuse, que o simples contato com as obras de arte
não propicia a compreensão destas obras, os conteúdos continuam inacessíveis. É importante
ressaltar que quando Adorno fala das “condições sociais existentes”, se refere justamente ao fato
de que a maior acessibilidade não é negativa, pelo contrário, é positiva, mas nas condições nas
quais ocorreu, os meios para a compreensão das obras não foram proporcionados junto com a
maior acessibilidade; e que, ao mesmo tempo, a tradução dos conteúdos destas obras ao existente,
produz nas massas a ilusão de que agora compreendem as obras de arte literatura e filosofia, pois
reafirmam a situação na qual estão – pela suposta realização das metas culturais na realidade
estabelecida. É nesse sentido que Adorno afirma que isso ocasiona a decadência da cultura. Obras
50 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 150.
que estavam protegidas do processo de produção e, portanto, não eram usadas para reafirmar a
ideologia da racionalidade tecnológica, ao serem trazidas para perto das pessoas, se degradaram
em bens culturais, veículos de manutenção da ordem, “[...] tornam-se afirmativos, isto é, servem
para consolidar a violência do existente sobre o espírito (Geist) – aquele existente que tornou
acessível os bens culturais aos homens [...]”51; assim, os elementos da cultura servem para
reforçar o grau do que é, em detrimento do que pode ou deve ser, mantendo oculto seu poder de
projetar, criticar e denunciar a violência do existente. Mas Marcuse aponta que:
[...] o amplo acesso à cultura tradicional e particularmente a suas obras autênticas
é melhor do que a conservação de privilégios culturais para um círculo reduzido
desde a base pela riqueza e pelo nascimento. Porém, para se conservar o conteúdo
de conhecimento destas obras, precisa-se de capacidades espirituais e de uma
consciência intelectual que não estejam adaptadas ao modo de atuar e de pensar
desejado pela civilização dominante nos países industriais avançados.52
A real popularização da “cultura tradicional”, como define o autor, que significa
disponibilizar os meios para sua compreensão juntamente com o acesso às obras, pode ser visto
como uma das metas da “cultura” para a sociedade no seu processo de humanização, mas não foi
isto que aconteceu. A população, que antes não tinha acesso às obras de arte, literatura e filosofia,
passou a ter a possibilidade de entrar em contato com estas obras, mas para poder entendê-las, e
assim realizar aquela meta, precisariam desenvolver “capacidade espirituais” e intelectuais que
não acompanharam esta popularização; nesses termos, a popularização destas obras seria
realmente positiva se junto com o contato viesse a educação necessária para ler estas obras. O que
aconteceu, ao contrário, foi que as obras de arte literatura e filosofia foram incorporadas à vida
51 MARCUSE, 1998, p.157. 52 Ibid., p.157.
cotidiana, deslocadas do ambiente no qual adquiriam sentido, e divulgadas com a legenda de que
os ideais dos quais falam são os que a civilização oferece. Seus conceitos intraduzíveis foram
transmutados em palavras sem sentido, ou pior, em conceitos operacionais, voltados para o
comportamento socialmente necessário para a manutenção do status quo. Mas ainda assim, o
acesso é melhor que a manutenção dos privilégios culturais, pois pelo menos uma das barreiras
que impedia a compreensão das obras da “cultura” foi derrubada.
A tradução realizada pela industria cultural pode ser entendida quando pensamos na
relação entre forma e conteúdo nas obras de arte. Segundo Pareyson, “Há arte quando o exprimir
apresenta-se como um fazer e o fazer é, ao mesmo tempo, um exprimir, quando a formação de
um conteúdo tem lugar como formação de uma matéria e a formação de uma matéria tem o
sentido da formação de um conteúdo.”53 Isso significa que conteúdo e forma são idênticos e
indissociáveis, uma coincidência entre o modo de formar do artista e sua humanidade, o conteúdo
da obra por ele realizada; assim, quando um dos dois sofre um transformação, ou modificação, a
obra já não é ela mesma, é outra coisa. A industria cultural opera aqui em dois aspectos, ao
divulgar as obras da cultura, interfere em sua forma – ao adaptar a obras à matéria e forma dos
meios de comunicação pra transmiti-las –, e ao resignificar conteúdos, interfere na sua
compreensão. Em outras palavras, a tradução feita pela indústria cultural muda a natureza das
obras, e o que ela divulga, são sempre suas próprias produções.
A recepção condicionada da população se mostra como o meio pelo qual as obras de arte
assimiladas pela indústria cultural, com seus conteúdos antagônicos ocultados pela sua tradução,
são percebidas como meros produtos indiferenciados no meio das produções da própria indústria
cultural. Quanto a isso, Adorno afirma: “Por enquanto, a técnica da indústria cultural levou
apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia diferença entre a lógica da 53 PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 62.
obra e a do sistema social.”54 A lógica das obras era diferente da lógica do sistema social porque
não estava submetida à racionalidade tecnológica; a razão que organizava os conteúdos dentro da
obra, sua forma, estava condicionada à lógica da própria obra e portanto mostrava uma forma
diferente de organização no mundo fictício – o mundo apresentado nas obras de arte é sempre um
mundo fictício – que se colocava em paralelo ao mundo real. E era por meio deste paralelismo
que estas obras tencionavam os impulsos destrutivos da realidade estabelecida, já que a “cultura”
era responsável pela determinação das metas da sociedade, ou seja, determinava para que servia o
trabalho e em função de que se desenvolvia o progresso.
Em relação à assimilação das obras de arte pela indústria cultural, Marcuse acrescenta:
A cultura superior ainda existe. É mais acessível do que nunca. É lida, vista e
ouvida por mais pessoas do que jamais o fora; porém a sociedade bloqueou há
muito tempo os domínios espirituais dentro dos quais essa cultura poderia ser
entendida em seu conteúdo cognitivo e em sua verdade determinada.55
Bloqueou, na verdade, a possibilidade de desenvolvimento desses domínios espirituais;
mas como as produções da arte, literatura e filosofia se tornaram acessíveis, o que é lido pela
maioria das pessoas, é a mensagem traduzida e não o conteúdo real das obras. Este conjunto de
obras é mais acessível do que nunca, e, portanto, seus conteúdos antagônicos à realidade
estabelecida também, mas os indivíduos, que agora tem acesso às obras, já não podem
decodificá-las em decorrência de sua identificação com a sociedade, não podem perceber o
antagonismo.
54 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.114. 55 MARCUSE, 1998, p. 159-160.
A “cultura” tinha a possibilidade de pensar o processo de humanização porque não estava
submetida ao processo de produção, o seu trabalho não era coordenado pelas mesmas leis que
coordenavam o trabalho árduo e socialmente necessário, a cultura estava protegida da violência
do existente, e assim podia se desenvolver em contraposição ao sistema social. Mas hoje, com
todo o processo de neutralização da cultura, as diferenças que existiam entre cultura e civilização
foram niveladas, a oposição que existia se transformou em equivalência, pois as esferas da
cultura assumiram as características das esferas da civilização, se transformando em indústria
cultural, e a forma como a “arte” circula está inevitavelmente marcada por essa violência.
Os conceitos tradicionais e as palavras tradicionais usadas para designar uma
sociedade melhor, ou seja, uma sociedade livre (e a arte tem algo a ver com a
liberdade), parecem despojados de significado hoje em dia. São inadequados em
comunicar o que homens e coisas possam ser e devem ser. Estes conceitos
tradicionais se referem a uma linguagem que ainda é a de uma época pré-
tecnológica e pré-totalitária em relação àquela em que vivemos.56
Assim Marcuse fala dessa linguagem de certa forma defasada da arte e da “cultura”
tradicionais, conceitos, que agora traduzidos em outros significados, necessitam de uma
contextualização histórica para serem compreendidos em sua verdade original. “O mundo passa a
ser dividido em preto e branco por categorias que giram em falso, e desta forma é preparado para
a dominação, contra a qual os conceitos haviam sido outrora concebidos.”57
56 MARCUSE, Herbert. Arte na sociedade unidimensional. In: LIMA, Luiz Costa Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 244. 57 ADORNO, Theodor W. Prisma: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Editora Ática, 2001, p.24-25.
2.2 Outros Veículos de Adaptação
Para entendermos como a Civilização Ocidental consegue se perpetuar, com toda a
violência e sofrimento existentes, é interessante pensar nos mecanismos de controle utilizados
para adaptar os indivíduos à sociedade. Então, para que a sociedade mantenha seu
desenvolvimento da forma como vem acontecendo, é importante que os indivíduos que compõe
esta sociedade estejam integrados e adaptados aos meios pelos quais o progresso tecnológico se
desenvolve, é necessário que eles perpetuem os valores desta sociedade, acreditem na civilização
a ponto de se sacrificarem na luta pela sobrevivência. Para que isso aconteça, além de usar a
cultura como veículo de adaptação, existem ainda outros meios.
Em primeiro lugar podemos retomar a tradução dos conteúdos das obras de arte, literatura
e filosofia em conceitos que supostamente se realizam na sociedade, o enraizamento destes
conceitos traduzidos e deturpados, produz o que Marcuse chama de “falsa consciência”. Os
múltiplos processos de introjeção destas falsas verdades parecem ossificados em reações quase
mecânicas, ou seja, os indivíduos respondem com base em verdades impostas, por meio do
pensamento operacional e orientado para o comportamento, nos quais se transformaram os
conceitos da “cultura”. O resultado não é o ajustamento, mas a mimese: uma identificação
imediata do indivíduo com sua sociedade, e através disso com a sociedade como um todo.58 Os
indivíduos que mimetizam a sociedade acreditam em suas leis e fatos, a tal ponto que esta se
tornou a sua realidade; identificam-se com a existência que lhes é imposta e, portanto não estão
alienados de sua vida, no sentido tradicional do termo, “O sujeito que é alienado é engolfado por
58 MARCUSE, 1969, p. 31.
sua existência alienada.”59 O indivíduo sustenta e defende a sociedade e sua situação, acredita na
sua liberdade.60
“Simultaneamente, a aparência de liberdade torna a reflexão sobre a própria não-liberdade
incomparavelmente mais difícil do que antes, quando esta estava em contradição como uma não-
liberdade manifesta, o que acaba reforçando a dependência.”61 A aparência de liberdade, além de
produzir uma falsa idéia sobre todo o sistema social, conserva apenas a sua forma negativa, a
irresponsabilidade, que é uma encenação da liberdade. Esta encenação acontece também pelas
possibilidades de escolha dadas ao indivíduo, mas que se dão dentro de um número limitado de
possibilidades orientadas para o comportamento. A imposição de modelos de comportamento que
se formam a partir das orientações construídas com a operacionalização dos ideais culturais,
mostra como cada um deve ser. Os estereótipos são as categorias dentro das quais os indivíduos
se encaixam, e junto com eles, existe um conjunto de produtos e bens culturais a serem
consumidos, que são oferecidos de acordo com sua classe social ou grupo, e que reafirmam o seu
lugar na sociedade. “Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade
com o seu level, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher as categorias dos
produtos de massa fabricada para o seu tipo.”62 Isso significa que existe uma variedade de tipos
de produtos que condizem com estes vários levels, esta variedade foi bem caracterizada por
Adorno:
As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou
entre as histórias publicadas em revistas de diferentes preços, têm menos a ver
com seu conteúdo do que com sua utilidade para classificação, organização e
59 MARCUSE, 1969, p.31. 60 Ibid. 61 ADORNO, 2001, p. 10. 62 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 116.
computação estatística dos consumidores. Para todos algo está previsto; para que
ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas.63
O fenômeno da Indústria Cultural – como é chamado por Adorno, e que consiste na
assimilação das obras da cultura pela civilização, simultaneamente à instituição de uma indústria
que gerencia seu acesso e a produção de bens culturais em série, aos quais voltaremos mais tarde
– impõe-se de forma tão incisiva, com seus produtos e promessas de felicidade, que a aparente
necessidade se mostra como uma imposição autoritária de consumo, gerada pelo sistema como
um todo. O indivíduo está cercado, oprimido por vontades que deve ter, e principalmente
oprimido pela compulsão e pressão de realizá-las. Para estar incluído socialmente no seu level, ou
camada social, o indivíduo deve possuir uma porção de sinais, que materializados em
mercadorias e comportamentos, geram a identificação entre os vários integrantes. Marcuse chama
estas necessidades de “falsas” necessidades: “‘Falsas’ são aquelas superimpostas ao indivíduo por
interesses sociais particulares ao reprimi-lo: as necessidades que perpetuam a labuta, a
agressividade, a miséria e a injustiça.”64 O jogo entre as necessidades superimpostas e a
satisfação destas necessidades, contribui para a manutenção do sofrimento coletivo, pois cada um
perpetua nos seus comportamentos, o todo. A satisfação destas necessidades só gera:
[...] euforia na infelicidade. A maioria das necessidades comuns de descansar,
distrair-se, comportar-se e consumir de acordo com os anúncios, amar e odiar o
que os outros amam e odeiam, pertence a essa categoria de falsas necessidades.
Tais necessidades têm um conteúdo e uma função sociais determinados por forças
externas sobre as quais o indivíduo não tem controle algum; o desenvolvimento e
a satisfação dessas necessidades são heterônomos.65
63 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 116. 64 MARCUSE, 1969, p. 26. 65 Ibid., p. 26.
Por mais que o indivíduo tenha internalizado estas necessidades como suas, elas
continuam sendo o que sempre foram: mecanismos de controle e repressão. O controle pelas
necessidades individuais, acaba por se mostrar como a forma mais eficiente de controle, pois é
um controle que se efetiva “espontaneamente” pelo próprio indivíduo, já que não é explícito. “A
necessidade que talvez pudesse escapar ao controle central já é recalcada pelo controle da
consciência individual.”66 E como as necessidades desenvolvidas pelo indivíduo são definidas
por forças externas, as mesmas que disponibilizam os meios para satisfazê-las, o aparato67 se
coloca como o provedor, que “cuida” do bem-estar da população; ao passo que a culpa pela não
satisfação das necessidades é jogada sobre o indivíduo. Em outras palavras, a felicidade e a
liberdade já são realizadas na sociedade, mas a sua realização pessoal depende dos
comportamentos do indivíduo, se ele estiver em sintonia com a sociedade, a realização se torna
mais fácil, mas não “dada” pela sociedade.
Pois a cultura democrática dominante promove a heteronomia sob a máscara da
autonomia, impede o desenvolvimento das necessidades e limita o pensamento e
a experiência sob o pretexto de ampliá-los e distendê-los por toda parte. A
maioria dos homens usufrui de um considerável espaço para compra e venda, para
a busca de um trabalho e em sua escolha; podem expressar sua opinião e mover-
se livremente – mas suas opiniões jamais transcendem o sistema social
estabelecido, que determina suas necessidades, sua escolha e suas opiniões. A
liberdade mesma opera como veículo de adaptação e limitação.68
66 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.114. 67 “[...] o termo ‘aparato’ designa as instituições, dispositivos e organizações da indústria em sua situação social dominante.” Nota de rodapé, MARCUSE, 1999, p.77. 68 Id., 1998. p. 164.
A crença na realização da liberdade na sociedade, mantém a promessa de liberdade, mas a
liberdade possível, não é libertadora, pois somente possibilita um movimento dentro dos limites
do aparato, e se estas “falsas” necessidades, como fala Marcuse, são internalizadas pelas pessoas,
elas não têm consciência da sua falta de liberdade, em outras palavras: “[...] como podem as
pessoas que tenham sido objeto de dominação eficaz e produtiva criar elas próprias as condições
de liberdade?”69; se acreditam no existente como a única possibilidade, como podem elas
transcender o existente e projetar um futuro diferente?
O próprio mecanismo que ata o indivíduo à sua sociedade mudou, e o controle
social está ancorado nas novas necessidades que ela produziu. As formas
prevalecentes de controle social são tecnológicas num novo sentido. Na verdade,
a estrutura e eficiência técnicas do aparato produtivo e destrutivo foram um meio
importante de sujeitar a população à divisão social do trabalho estabelecida,
durante todo o período moderno. Mais ainda, tal integração sempre foi
acompanhada de formas de compulsão mais óbvias: perda dos meios de sustento,
a distribuição da justiça, a polícia, as forças armadas. Mas, no período
contemporâneo, os controles tecnológicos parece serem a própria personificação
da Razão para o bem de todos os grupos e interesses sociais – a tal ponto que toda
contradição parece irracional e toda ação contrária parece impossível.70
Retomando o período moderno, Marcuse levanta as maravilhas do progresso tecnológico
como o primeiro mecanismo de sujeição dos indivíduos à divisão social do trabalho, à
manutenção e ampliação da luta pela existência. A racionalidade tecnológica, que organiza a vida
atualmente na civilização ocidental, é incorporada pelo indivíduo, que nessa identificação,
desloca sua razão para o aparato e deixa-se guiar em conformidade com o todo. O aparato social
se coloca ao indivíduo de forma tão potente e totalitária, que ele se sente paralisado e compelido
69 MARCUSE, 1969. p. 27. 70 Ibid., p. 30.
a se adaptar, sob pena de não alcançar a liberdade prometida. Estes controles, que como observa
Marcuse, foram se estabelecendo aos poucos, passaram a administrar a vida das pessoas por meio
de suas necessidades: “É um aparato racional, combinando a máxima eficiência com a máxima
conveniência, economizando tempo e energia, eliminando o desperdício, adaptando todos os
meios a um fim, antecipando as conseqüências, sustentando a calculabilidade e a segurança.”71
Disso deriva que qualquer tentativa de resistência ou protesto se coloque como irracional,
insensata, excêntrica e desnecessária, aniquilando o espaço para liberdade de ação e a autonomia,
o aparato cercou o indivíduo por todos os lados, sob o pretexto de facilitar sua vida, com conforto
e segurança. Para ilustrar esta questão, o trecho a seguir que aparece no texto Algumas
implicações sociais da tecnologia moderna, de Marcuse, se mostra muito interessante:
Um homem que viaje de carro a um lugar distante escolhe sua rota num guia de
estradas. Cidades, lagos e montanhas aparecem como obstáculos a serem
ultrapassados. O campo é delineado e organizado pela estrada: o que se encontra
no percurso é um subproduto ou anexo da estrada. Vários sinais e placas dizem ao
viajante o que fazer e pensar; até chamam a atenção para as belezas naturais ou
marcos históricos. Outros pensaram pelo viajante e talvez para melhor. Espaços
convenientes para estacionar foram construídos onde as mais amplas e mais
surpreendentes vistas se desenrolam. Painéis gigantes lhe dizem onde parar e
encontrar a pausa revigorante. E tudo isto na realidade é para seu benefício,
segurança e conforto; ele recebe o que quer. O comércio, a técnica, as
necessidades humanas e a natureza se unem em um mecanismo racional e
conveniente. Aquele que seguir as instruções será mais bem-sucedido,
subordinando sua espontaneidade à sabedoria anônima que ordenou tudo para
ele.72
71 MARCUSE, 1999, p. 80. 72 Ibid., p. 80.
A racionalidade do aparato, seu direcionamento para o conforto do indivíduo não a
naturalizam somente nos pontos onde realmente traz proveitos para os seres humanos, mas
naturalizam-na em seu todo, principalmente nos setores onde ela perpetua o sofrimento, a
violência, a luta pela existência. A ideologia segundo a qual o aparato se desenvolve para
melhorar as condições de sobrevivência mascara a realidade oposta que se estabelece.
Todas as necessidades do indivíduo são satisfeitas pelo aparato, e o indivíduo escolhe
suas necessidade a partir das opções disponíveis dentro deste aparato, assim, ele o alimenta com
seus desejos, pensamentos, sentimentos, vontades, que, em contrapartida, provém para ele os
meios de satisfazê-los, este é o círculo vicioso das necessidades retroativas.
2.3 Diversão
Na indústria cultural, cultura se resume à diversão. Este é o ponto alto da utilização da
cultura como veículo de adaptação, na diversão não sobra nada da esfera da “cultura”, como
espaço para a reflexão crítica da sociedade. A diversão é chamada por Adorno de “arte leve”, que
aparece como uma sombra do que ele chama de “arte séria”.
“A diversão favorece a resignação, que nela quer se esquecer.”73, pois é apresentada para
as pessoas como o refúgio do cotidiano massificante e alienante, e incentivada como sua
recompensa, mas na verdade o que faz, é:
73 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 133.
[...] ocupar os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a chegada
ao relógio ponto, na manhã seguinte, com o selo da tarefa de que devem se ocupar
durante o dia, essa subsunção realiza ironicamente o conceito da cultura unitária
que os filósofos da personalidade opunham à massificação.74
Ou seja, a idéia de que o trabalho não se diferenciasse do lazer, no sentido de que ambos
convergissem para a realização humana, mas ao contrário, o que é descrito por Adorno é que o
trabalho não se diferencia do lazer, pois os dois têm a função de manter o indivíduo preso ao
processo alienante de trabalho, e junto com ele, à racionalidade tecnológica que administra a vida
como um todo.
A cultura deveria aliviar a alienação do trabalho, deveria ser um espaço reservado à
reflexão crítica da condição a qual trabalho submete as pessoas, um espaço reservado à
humanização, como descrita no primeiro item deste capítulo. Mas a diversão é construída de tal
forma que esse refúgio se transforme em um mecanismo de manutenção da capacidade produtiva
do trabalhador, para que na alienação da diversão ele continue submerso na alienação da
produção em série, pela seqüência automatizada de operações padronizadas. “A diversão é o
prolongamento do trabalho sob capitalismo tardio.”75 Isso se dá pela reprodução exata e
indefectível da realidade nos produtos culturais, como uma continuação do cotidiano, com o
intuito de reafirmar a condição do espectador, por uma formação contínua.
Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao
pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem
perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no
entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o
filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a
74 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 123. 75 Ibid., p. 128.
realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do
consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. [...]
Inevitavelmente, cada manifestação da indústria cultural reproduz as pessoas tais
como as modelou a indústria como um todo.76
A identificação do espectador com a realidade através dos produtos da indústria cultural é
uma conseqüência da incorporação da cultura na vida cotidiana e no trabalho. Como ainda se
guarda a idéia de que a cultura se desenvolve no reino da liberdade e, portanto se constitui pela
diferença ao existente, o espectador se entrega a ela sem prevenções, com o desejo de sair da
esfera do trabalho e entrar nesta outra esfera da liberdade; mas os bens culturais manifestos pela
industria cultural, já perderam há muito tempo a ligação com os valores espirituais da
humanidade. Os bens culturais, atrelados à civilização, reafirmam o existente como ideal, e a
cultura passa a ser a reafirmação do reino do trabalho.
A similaridade com a realidade elimina a necessidade de esforço, o espectador se deixa
levar pela diversão sem ter que abstrair os mecanismos de produção aos quais foi submetido
durante o período de trabalho. Nesse processo se confronta a onipotência da indústria com a
impotência do indivíduo. Os produtos da indústria cultural são construídos de modo a exigir do
espectador o mesmo tipo de raciocínio que o processo de trabalho. A atenção, eficiência, rapidez
de raciocínio, a capacidade de resolver imprevistos, atenção para mudanças bruscas dentro do
mesmo padrão, concentração em atividades específicas, responder dentro de categorias pré-
determinadas, acertar as respostas “certas”, introjetar estruturas impostas, agir dentro de
possibilidades limitadas, e dentro de um número finito de regras, reconhecer determinados
símbolos... A diversão deve ser um prazer, e um prazer, dentro da indústria cultural, não pode
exigir esforço; sair do mecanismo de trabalho, pensar sobre a lógica repressora do sistema,
76 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 119.
descobrir outras lógicas possíveis, ativar outras habilidades, outros tipos de raciocínio seriam um
esforço que acabaria com o prazer, assim como ele é compreendido e disseminado.
Assim como mal podemos dar um passo fora do período de trabalho sem tropeçar
em uma manifestação da indústria cultural, os seus veículos se articulam de tal
forma que não há espaço entre elas para que qualquer reflexão possa tomar ar e
perceber que o seu mundo não é o mundo.77
Em outras palavras, o espectador não tem tempo nem possibilidades para perceber, (nas
condições sociais existentes), que a realidade mostrada pela industria cultural é a reafirmação do
existente, e que por isso mesmo, não é a única possibilidade. Os produtos da indústria cultural
requisitam do espectador as mesmas habilidades que o trabalho, treinam e desenvolvem estas
habilidades para que ele esteja pronto para encarar um outro dia, sem ter tido a possibilidades de
sair da lógica, ou perceber que existem outras lógicas. “É somente no conjunto de todos os
procedimentos mutuamente afinados e contudo divergentes quanto à técnica e ao efeito que se
forma o clima da indústria cultural.”78
2.4 A Reprodutibilidade Técnica e a Mudança de Percepção
Para entrarmos na discussão sobre as imagens técnicas propriamente ditas, podemos
retomar uma consideração de Marcuse, citada no início do capítulo, na qual ele afirma que as
77 ADORNO, Theodor W. Tv consciência e indústria cultural. In: COHN, G. (Org). Comunicação e indústria cultural. São Paulo: T.A.Queiroz, 1987, p. 346-7. 78 Ibid., p. 347.
mudanças descritas até aqui, não foram o efeito da industrialização e dos produtos de massa sobre
as pessoas, mas ao contrário, que as pessoas, a partir do desenvolvimento da racionalidade
tecnológica, desenvolveram a maquinaria e toda a situação social que se instaurou em
decorrência dessa nova forma de organizar e compreender o mundo. É assim que podemos pensar
sobre a mudança de percepção da realidade que sofreu a humanidade, no sentido de que não foi a
invenção da fotografia ou do cinema que provocaram a mudança de percepção, mas que em
decorrência desta nova percepção, que surge com a racionalidade tecnológica, foi possível o
desenvolvimento da fotografia, do cinema e de todas as outras técnicas de reprodutibilidade da
imagem.
A percepção da realidade se dá por uma construção simbólica do sensível, e nesse sentido
a percepção visual tem uma função muito importante, pois como afirma Aumont: “[...] a imagem
tem por função primeira garantir, reforçar, reafirmar e explicitar nossa relação com o mundo
visual: ela desempenha o papel de descoberta do visual.”79 O que significa que ao vermos uma
representação visual, reconhecemos nela o mundo sensível, mas ao mesmo tempo, a experiência
com as imagens influi na forma como vemos a realidade. Para esclarecer o que entendemos por
imagem no contexto deste trabalho, emprestaremos de Jacques Aumont, a definição que
apresenta na introdução de seu livro A Imagem:
A imagem tem inúmeras atualizações potenciais, algumas se dirigem aos
sentidos, outras unicamente ao intelecto, como quando se fala do poder que certas
palavras têm de “produzir imagem”, por uso metafórico por exemplo. Convém
portanto dizer em primeiro lugar que, sem ignorar essa multiplicidade de sentidos,
79 AUMONT, Jacques. A imagem. Tradução: Estela dos Santos Abreu e Cláudio C. Santoro. Campinas, SP: Papirus, 1993 – (Coleção Ofício de Arte e Forma), p. 81.
aqui só será considerada uma variedade de imagens, as que possuem forma
visível, as imagens visuais.80
E para completar o recorte feito por Aumont e adequá-lo a este trabalho, trataremos das
imagens visuais e sua relação com o sujeito, como uma das formas de compreendermos por que
se nomeia nossa sociedade de Sociedade das Imagens. Esta escolha se justifica pelo fato de que
no contexto atual as imagens visuais assumem uma função preponderante no que se refere à
comunicação e à linguagem.
Para compreender quais imagens visuais são estas, qual a sua origem, e em qual ponto se
ligam à racionalidade tecnológica, iniciaremos com algumas considerações sobre a fotografia, por
ser esta a primeira tecnologia mecânica da imagem. Com a história da fotografia podemos
entender como a reprodutibilidade técnica, que está diretamente ligada à racionalidade
tecnológica, se incrustou nas produções visuais. Este processo deriva da nova percepção da
realidade que se instaura na sociedade industrializada, e faz com que cada vez mais a obra de arte
reproduzida seja uma obra de arte feita para a reprodução, ou seja, que leva em conta esta questão
como parte integrante da obra, o que extrapola os limites da arte e inunda toda a produção de
imagens contemporâneas, gerando o que hoje conhecemos como Sociedade das Imagens.
No início do século XIX, em meio ao desenvolvimento tecnológico que atingiu pouco a
pouco todas as esferas sociais, foi inventada a fotografia; invenção que afetou de forma decisiva
o campo das artes visuais. Até então, a produção de imagens visuais somente era possível
manualmente e por artistas, o que condicionava, de uma forma ou de outra, sua produção e
recepção à instituição da Arte, isso significa que a produção de imagens visuais dependia do fazer
artístico. É justamente neste ponto que a fotografia opera sua transformação: na produção. Até
80 AUMONT, 1993, p. 13.
aqui vínhamos falando da assimilação da cultura na vida cotidiana e no trabalho, pensando na
manipulação dos conteúdos das obras de artes literatura e filosofia, aqui entraremos na questão da
produção em série de imagens, e por extensão, de cultura.
A pesquisa científica para captação e inscrição mecânicas de imagens visuais, que resulta
na fotografia, seguiu dois caminhos paralelos e simultâneos. Enquanto Daguerre e Niepce
empenhavam-se para fixar as imagens da câmera obscura com fins artísticos, a pesquisa de
Talbot se destinava a ilustrações para as ciências, como registro e divulgação de espécimes de
plantas, animais e casos clínicos exóticos, até então, produzidos pela “inexata” mão humana. A
fotografia veio se colocar entre a ciência e a arte, sendo vista ora como ciência artística, ora como
arte científica; esta seria a primeira máquina de produzir imagens, uma tecnologia que não cessou
de providenciar desdobramentos.
Depois de inúmeras tentativas, no início do século XIX, as primeiras figuras
representacionais derivadas da câmera obscura foram fixadas, por meio de produtos químicos,
sobre uma placa de metal. Essas primeiras impressões eram únicas e sua novidade estava na
representação da realidade sem a intervenção manual, em outras palavras, a produção de figuras
que não dependiam de um fazer artístico, ou, de certas habilidades manuais específicas e
essenciais para a produção de pinturas, gravuras, desenhos. Pouco tempo depois foi inventado o
processo que produzia um negativo em papel, possibilitando a multiplicação das representações
por um dispositivo matricial – esta invenção foi o primeiro passo para alcançar o processo
negativo/positivo que conhecemos hoje81.
A industrialização da fotografia aconteceu em meados do século XIX, com a produção em
série dos artefatos e instrumentos fotográficos e a constituição de um vasto grupo de fotógrafos
81 Maiores detalhes sobre os processos químicos e a história dos primeiros anos da fotografia podem ser encontradas no site The Daguerreian Society. In: http://www.daguerre.org
profissionais. A “classe” dos fotógrafos profissionais se coloca como mais um ramo dentro da
divisão social do trabalho, pela produção em série de imagens mecanizadas. Em pouco tempo a
fotografia se tornou muito popular, tornando-se essencial à comunicação e, de certa forma, à
memória tanto individual quanto coletiva.
Para Walter Benjamin, a constituição deste grupo de fotógrafos profissionais marca o
declínio da fotografia, ou seja, sua entrada no sistema de produção; e, o curto período que durou,
da sua invenção e divulgação (1840) até sua industrialização (1860), é considerado por Benjamin
o período no qual as produções fotográficas atingiram seu apogeu.
No texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin propõe
uma discussão relativa a entrada da fotografia no sistema da comunicação e da arte,
problematizando principalmente a reprodutibilidade técnica, como o ponto de partida para a atual
dinâmica social em torno da linguagem visual, ou seja, discute as transformações sofridas pela
linguagem visual com sua inclusão no processo de produção. A fotografia é a primeira técnica
que possibilita a captação e inscrição de figuras por meio de uma máquina, e sua produção em
série. Como disse Benjamin: “No momento em que Daguerre conseguiu fixar as imagens da
câmera obscura, os técnicos substituíram, nesse ponto, os pintores.”82 Esta afirmação de
Benjamin é essencial para a compreensão da relação destas novas imagens e seu público, pois
imagens produzidas por técnicos se transformam em produtos indiferenciados no meio do
processo de produção, pois tem o foco da produção na máquina e não no sujeito. O técnico não
tem necessariamente uma relação afetiva com a imagem que produz, enquanto que para o pintor
essa relação é indispensável, a anonimidade do técnico traduz bem sua função de “operário”.
82 BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: Obras escolhidas – volume I. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987a, p. 91-107, p.97.
O novo quadro que se estabeleceu, com a produção em série de imagens fotográficas,
afetou diretamente a reprodução das obras de arte, que não era uma atividade nova, pois já era
feita por artistas que utilizavam a gravura e a própria pintura como maneira de divulgação de
determinadas obras. Para a realização destas cópias, existiam além da perspectiva, mecanismos
de visualização como a câmara obscura que permitiam que o artista recortasse um fragmento da
realidade, organizando o olhar e que facilitavam a feitura da pintura ou desenho, e
conseqüentemente de uma possível reprodução. Estes instrumentos não faziam a inscrição
mecânica da figura no papel ou tela, pois eram apenas instrumentos para uma outra artesania da
representação, e mantinham o caráter individual e subjetivo dos trabalhos. Neste ponto é
interessante pensar que as reproduções feitas manualmente por pintores ou desenhistas,
dependendo de sua proximidade com o original, poderiam se constituir em falsificações,
enquanto as reproduções fotográficas nunca estabelecerão esta relação com o original; é imediato
o reconhecimento de que uma fotografia só pode existir como um subproduto de algo que estava
lá em sua frente em determinado momento. A fotografia faz a inscrição da figura “sem a mão do
indivíduo”, e essa distância crescente entre o sujeito e o real pela mediação de máquinas foi o que
fez com que a fotografia fosse encarada como a mais objetiva das técnicas de representação, pois
possibilitava aparentemente que o próprio real se inscrevesse no suporte. Como afirma Philippe
Dubois, as máquinas:
[...] são intermediários que se inserem entre o homem e o mundo no sistema de
construção simbólica que é o próprio princípio da representação. Se a Imagem é
uma relação entre o Sujeito e o Real, o jogo das máquinas figurativas, e sobretudo
seu aumento progressivo, virá mais e mais distender, distanciar, separar os dois
pólos, como um jogo de filtros ou de telas que se adicionam.83
Como foi dito, a imagem visual é fruto de uma construção simbólica que tem por
finalidade representar o mundo sob o ponto de vista de seu produtor, ou como diz Dubois, é uma
relação entre o Sujeito e o Real; nesse sentido, as máquinas figurativas, ou as imagens visuais
produzidas por máquinas, modificam esta relação na sua base, pois por muito tempo se acreditou
que, por exemplo, pela fotografia, o próprio real se inscrevia no suporte, e esta objetividade da
máquina, que ainda não foi inteiramente superada, elimina desta equação o Sujeito produtor. As
imagens visuais produzidas por máquinas são naturalizadas, isto acontece porque o técnico como
produtor é somente o operador da máquina, a imagem resultante tem uma grande probabilidade
de ser percebida como uma janela, e assim, sua intencionalidade é descartada. Mas como as
imagens fotográficas não são uma janela, mas uma construção cheia de intencionalidades, esta
confusão gera uma leitura falsa da imagem: tomada pelo real, a sua leitura é condicionada de
forma inconsciente. Se o produtor é desconsiderado, a imagem é tomada por uma janela para o
real, e como ela não é o real e sim uma representação do real feita por alguém, a falta desta
informação proporciona um tipo de leitura falsa desta imagem; ao passo que uma imagem que
tem a marca de seu autor inclui na sua leitura esta informação. Se a mediação não está clara, a
distância entre o sujeito e o real aumenta.
É característico que o debate tenha se concentrado na estética da “fotografia como
arte”, ao passo que poucos se interessaram, por exemplo, pelo fato bem mais
evidente da “arte como fotografia”. No entanto a importância da reprodução
fotográfica de obras de arte para a função artística é muito maior que a construção
83 DUBOIS, Philippe. A linha geral (as máquinas de imagens). In: Cadernos de Antropologia da Imagem. nº 9, Rio de Janeiro, 1999, p. 4.
mais ou menos artística de uma fotografia, que transforma a vivência em objeto a
ser apropriado pela câmera.84
Com a difusão de cópias fotográficas de obras de arte, e mesmo com as fotografias
independentes dessa função, o que se perde é a unicidade do objeto artístico – já que a fotografia
acontece pelo princípio da reprodução, não faz sentido, para não dizer que é impossível, pensar
em um original; a matriz da qual as cópias são tiradas é o negativo que em si não é a imagem,
mas um dispositivo que a carrega em potência. A cópia é um novo objeto que se faz presente,
atualizando e reconstruindo as relações tanto espaciais como temporais, desse original
reproduzido em diferentes situações. “A reprodução técnica pode colocar a cópia do original em
situações impossíveis para o próprio original”.85 Decorre daí que a experiência com a obra de arte
se modifica, pois o espectador pode ter acesso a uma reprodução antes de ir ao encontro da obra
original, como um intermediário, e nesse sentido a reprodução ganha um estatuto de propaganda,
que anuncia a existência da obra. O que significa que a princípio ela perde o caráter intocável,
que era garantido pela proteção oferecida pelos museus, que guardavam a obra única atrás de
grossas paredes; mas ganha a difusão, circulação e o consumo, oferecidos pela publicidade. A
atualização da aparência da obra mediada pela sua reprodução mecânica estabelece relações
diversas das produzidas pelo original, pois tem outra materialidade e dimensão, o que modifica
seu testemunho histórico. A obra de arte é recontextualizada, redimensionada. Em uma obra de
arte, o conteúdo é diretamente condicionado pela forma e vice versa, quando a forma da obra é
modificada – transformada em fotografia, por exemplo –, esta relação entre a forma e o conteúdo
é modificada, o que significa que o conteúdo também é modificado. A aparência da obra na
84 BENJAMIN, 1987a, p. 104. 85 Id., 1987b, p. 168.
fotografia não carrega as relações formais de tamanho, materialidade, e experiência da obra, ou
seja, a lógica de construção da obra é deturpada por essa tradução.
No texto sobre a reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin propõe que a mudança de
percepção que sofreu a sociedade ocidental está calcada no declínio da aura, a aura é definida
como “[...] uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única
de uma coisa distante, por mais próxima que esteja”86; e junto com este declínio acontece o fim
da noção de autenticidade, componente da aura, descrita como a “[...] quintessência de tudo o que
foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu
testemunho histórico”87, pois o que se perde com a reprodutibilidade técnica, é a unicidade dos
objetos e fatos. Mas não é só na produção artística que este declínio da aura acontece e nem só
pela fotografia, ele é resultado de toda a nova conjuntura social, o declínio da aura se refere ao
novo modelo de relacionamento com o real estabelecido pelas pessoas na sociedade capitalista. O
declínio da aura é o declínio da cultura. Nada mais é distante e único, tudo pode ser atualizado
pelos meios de reprodução e, no entanto o sujeito se distancia do real, pois o seu contato com o
real é mediado pelas reproduções; com a disseminação de cópias reproduzidas, já não existe
original, tudo pode ser adquirido por todos, e assim tudo se torna potencialmente descartável.
Benjamin descreveu muito bem esta forma de percepção nesta frase: “Retirar o objeto do seu
invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de
captar o ‘semelhante’ no mundo é tão aguda que, graças à reprodução, ela consegue captá-lo até
no fenômeno único”.88 A aura é um elemento dos objetos e acontecimentos percebido pelo
sujeito, não existe em si, portanto o novo modelo de relacionamento com o real faz com que a
86 BENJAMIN, 1987a, p. 101. 87 Id., 1987b, p. 168. 88 Id., 1987a, p. 101.
aura perca a importância, este é seu declínio, a possibilidade de experienciá-la continua no
original, o declínio acontece na percepção das pessoas, que não conseguem mais vivenciá-la.
Benjamin aponta o declínio da aura na arte, como uma mudança drástica na estrutura,
portanto na produção, e na recepção da obra de arte. Como foi dito acima, o declínio da aura se
refere, antes de tudo, ao novo modelo de relacionamento que as pessoas estabelecem com o real;
mas ao mesmo tempo, esta nova lógica se infiltra nas produções artísticas e cada vez mais a obra
de arte reproduzida é uma obra de arte feita para a reprodução. A autenticidade de uma obra de
arte é o seu aqui e agora, que faz com que este objeto seja sempre o mesmo, igual e idêntico a si
mesmo, sempre cercado pelas mesmas relações históricas, e tendo a mesma materialidade. Uma
obra de arte autêntica guarda em si, por mais próxima fisicamente que esteja, uma distância
temporal e espacial, porque remete sempre ao momento em que foi feita; quando a obra de arte é
reproduzida pela fotografia, a atualização da aparência da obra, elimina nesta tradução justamente
o testemunho histórico da obra; a materialidade de uma obra de arte transmite seu tempo de vida
(o que, como diz Benjamin, só pode ser verificado por meios químicos), mas também transmite a
tradição, pois remete ao momento histórico no qual ela foi produzida. A recepção de uma obra de
arte depende de um contato imediato com a obra, para que se possa respirar sua aura, para que se
possa sentir sua aparição única, sua materialidade e temporalidade. Nesse sentido que o novo
modelo de relacionamento com o real, interfere na relação com as obras de arte, o espectador não
mais diferencia a experiência com a obra original e a experiência com as reproduções mecânicas.
Assim podemos nos lembrar da discussão sobre a acessibilidade das obras de arte, e como,
mesmo tendo contato com estas obras, a sua compreensão não acontece, isto está diretamente
ligado com a nova percepção.
A despeito das considerações feitas sobre a aura, nos primeiros anos da fotografia, Walter
Benjamin fez uma ressalva: o último refúgio da aura era o rosto humano, era onde o valor de
culto ainda se sobrepunha. Nas fotografias de retrato sempre buscamos
[...] a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade
chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se
aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloqüência
que podemos descobri-lo, olhando para trás.89
A sensação de que na imagem fotográfica, o próprio real se imprimiu no papel, faz com as
fotografias propiciem a sensação de que vejo o outro cristalizado em minha frente, pois a
experiência com o outro – o único – se equivale à experiência com a reprodução neste novo
modelo de relacionamento com o real. Como escreve Lichtwark em 1907: “Nenhuma obra de arte
é contemplada tão atentamente em nosso tempo como a imagem fotográfica de nós mesmos, de
nossos parentes próximos, de nossos seres amados [...]”90 Além do culto da saudade, fundado no
afeto, comentado por Lichtwark, não é só nos rostos conhecidos que a aura ainda respira, existe
uma magia no rosto humano que burla as conseqüências da reprodutibilidade técnica: o
conhecimento imanente da unicidade do indivíduo, ou seja, de que o modelo é definitivamente
único, quebra com o ciclo da multiplicidade, pois o sujeito, ainda que anônimo, carrega
particularidades e diferenças que mesmo desconhecidas, se sobrepõem à imagem reproduzida, ele
é o original. É no outro que reconheço minha humanidade, e sendo assim, é na figura do outro
que reconheço a minha figura, é essa a magia que envolve a inefável relação que se estabelece
com os retratos. Assim, nos primeiros anos da fotografia temos, no princípio da relação afetiva
89 BENJAMIN, 1987a, p. 94. 90 LICHTWARK, 1907 apud BENJAMIN, 1987a, p. 103.
que estabelecemos com os retratos e a sensação de unicidade dos retratados, um contraponto ao
que acontece com o indivíduo do ponto de vista psicológico na era da industrialização.
O que significa que na fotografia de retrato existe um maravilhamento com a cristalização
da subjetividade do outro, e esta centelha de acaso de que Walter Benjamin fala, é a humanidade
do outro que procuro na sua imagem. Olhando para a individualidade do outro, afirmamos a
nossa, e em um período marcado pelo esfacelamento do eu – no qual surgem as teorias da
psicanálise que revelam a fragmentariedade do eu, em oposição às idéias de unicidade do
indivíduo divulgadas pelo racionalismo iluminista e que tem uma ligação com a religião cristã
que prega a unicidade do espírito; juntamente com as próprias condições sociais que se
estabeleceram com a produção em série e a divisão social do trabalho – essa segurança na
imagem do outro, aparentemente tão íntegra no retrato, propicia a ilusão da minha própria
unidade. O que do ponto de vista psicológico se coloca como o oposto do que é sentido pelo
sujeito, a busca por essa unidade suscitada pelos retratos e vista neste outro, é a busca do próprio
indivíduo. Mas isso acontece porque a percepção está condicionada a entender a imagem como
totalidade, como se o outro pudesse ser apreendido pelo retrato, pela sua representação imagética.
Ao passo que os conflitos interiores vividos pelo indivíduo são fruto justamente de sua
pluralidade interna.
As fotografias de retrato possuíam a mesma capacidade de presentificação que tinham as
obras de arte até o século XIV91, de onde advém o culto da saudade, que até hoje marca com a
91 Para compreender esta capacidade, vamos recorrer às explicações do filósofo Francis Wolf sobre transparência e opacidade. Quando a função artística se impõe à produção de obras de arte, o que se modifica no interior da obra, é a sua transparência, utilizada aqui como a capacidade que uma representação possuía até o século XIV de ser o canal de transmissão de mensagens divinas, a personificação/presentificação dos santos, deuses e ensinamentos religiosos de toda a sorte. A partir do século XIV, essa transparência começa a se transformar em opacidade, o que possibilita essa transformação é justamente a presença de uma mão que faz, o artista começa a se colocar como informação componente da imagem, a assinatura e a manufatura especializada e diferenciada das representações coloca o artista no meio do caminho entre o objeto de arte e a mensagem que ele carrega, a opacidade se refere aqui à presença do objeto. As representações deixam de ser somente transparentes, canais de presentificação de divindades, e passam a
preciosidade de um relicário as fotografias das pessoas amadas e ausentes. A fotografia tem a
possibilidade de funcionar como um canal de presentificação dos entes queridos, ao mesmo
tempo que de nós mesmos em outras épocas; fazer do eu o outro, ou, como dizia Roland Barthes:
“[...] a fotografia é o advento de mim mesmo como outro: uma dissociação astuciosa da
consciência de identidade.”92 Na imagem fotográfica se busca uma identidade impossível, já que
este outro não sou eu ao mesmo tempo que sou. Sou eu transformado em imagem, e essa
distância entre “eu” e o objeto representação-fotográfica, que é ao mesmo tempo proximidade,
ainda não foi resolvida, apesar de ter se transformado em costume.
A fotografia transformava o sujeito em objeto, e até mesmo, se é possível falar
assim, em objeto de museu: para fazer os primeiros retratos (em torno de 1840),
era preciso submeter o sujeito a longas poses atrás de uma vidraça em pleno sol;
tornar-se objeto, isso fazia sofrer como uma operação cirúrgica; inventou-se então
um aparelho, um apoio para a cabeça, espécie de prótese, invisível para a
objetiva, que sustentava e mantinha o corpo em sua passagem para a imobilidade:
esse apoio para a cabeça era o soco da estátua que eu ia tornar-me, o espartilho de
minha essência imaginária.93
Essa angústia gerada pelo momento da transformação em estátua foi sendo protelada na
medida em que o tempo de exposição diminuía; sem sofrer o tempo da transformação pela
invenção do instantâneo, a transformação se tornou inconsciente, além de naturalizada pelo
costume de ver fotografias e ser fotografado.
existir em si, a mostrar a mão do artista, as diferenças de um ou outro, a assinatura: acrescido ao reconhecimento de uma figura vem o reconhecimento de quem a fez, a opacidade convive com essa transparência. A função artística é justamente o reconhecimento das habilidades do artista e de sua presença, o que possibilita a exponibilidade, ou seja, ser exposta como o produto de um profissional especializado. WOLF, Francis. Aquém do espetáculo aquém das imagens. Palestra conferida no dia 2 de setembro de 2003, por ocasião do ciclo de conferências: Muito Além do Espetáculo, realizado de 26 de agosto a 25 de setembro de 2003, no Teatro SESC da Esquina de Curitiba. 92 BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1984, p.25. 93 Ibid., p. 26-27.
O instantâneo fotográfico veio potencializar o soco da estátua (transformação do sujeito
em objeto): diminuindo o tempo da transformação, torna-a inconsciente e, portanto não
questionável. Das imagens feitas para durar, entramos em uma época das imagens efêmeras e
descartáveis. A transformação do sujeito em objeto, de que fala Barthes, se acentua com a rapidez
do instantâneo, pois, sendo imperceptível, a transformação se torna corriqueira e atinge todas as
coisas fotografadas, tudo é visto como objeto, o eu, o outro e todo o mundo, tudo é objetivado. As
imagens fotográficas são produzidas em uma quantidade cada vez maior, e vão ocupando os
espaços entre o sujeito e o real. O contato com a fotografia condiciona o contato com tudo o que
é visível, fazendo com que as pessoas percebam o real a partir das categorias da fotografia. Nesse
sentido, pode-se falar em um contato mediado com o mundo, pré-condicionado, pré-conceituado,
estereotipado, pré-categorizado. O outro é visto como objeto porque é visto como uma imagem.
A aparência encaixada em categorias ou estereótipos molda a percepção da realidade.
Além destas questões subjetivas da relação com a imagem fotográfica, a circulação
intensa de imagens implica uma mudança na auto-percepção e na percepção do outro: tendo
retratos seus, as pessoas começam a se olhar de forma diferente, pensando em como elas querem
parecer, o que engendra uma possibilidade, mesmo que remota, de ter sua fotografia circulando
nos meios de comunicação; com a difusão de imagens de anônimos – transformados em
celebridades, personalidades famosas, ou não – o olhar sobre o outro se modifica: formam-se
assim modelos imagéticos, que na busca por uma identificação, se transformam, aos olhos das
pessoas, em modelos de comportamento e de visual. O culto da personalidade, encarnado nas
estrelas de cinema e astros do rock, reflete de certa forma a possibilidade e a vontade de todas as
pessoas se tornarem celebridades.
A starlet deve simbolizar a empregada de escritório, mas de tal sorte que,
diferentemente da verdadeira, o grande vestido de noite já parece talhado para ela.
Assim, ela fixa para a espectadora, não apenas a possibilidade de também vir a se
mostrar na tela, mas ainda mais enfaticamente a distância entre elas. Só uma pode
tirar a sorte grande, só um pode se tornar célebre, e mesmo se todos têm a mesma
possibilidade, esta é para cada um tão mínima que é melhor riscá-la de vez e
regozijar-se com a felicidade do outro, que poderia ser ele próprio e que, no
entanto, jamais é.94
Adorno levanta aqui a consciência que cada um tem de que a possibilidade de se tornar
célebre está fundada em um acaso de probabilidade ínfima, e mesmo que todos possam e queiram
ter esta oportunidade, sabem que jamais serão os escolhidos, e que, portanto, devem se conformar
com sua situação. É neste jogo entre a vontade de aparecer na tela, e a impossibilidade de
concretizar este sonho, que se estabelece a admiração por quem conseguiu: o culto às estrelas de
cinema e astros de rock.
A imagem se transforma em uma mercadoria passível de consumo, portanto cada um
constrói a imagem de si mesmo que quer “vender”, agregando os vários produtos que podem
atestar essa identidade; mas esse processo está tão enraizado na formação de nossa subjetividade
que é inconsciente, nós próprios acreditamos na imagem que criamos. Assim que a relação com o
outro, construída a partir dessa relação com as imagens, se torna uma relação entre objetos.
Se a fotografia pode ajudar a conjurar o processo de extermínio da própria
alteridade, ela é simultaneamente um mecanismo de expropriação e de
aniquilamento da singularidade, transformando o homem numa ‘coisa entre
coisas, todas estranhas umas às outras, todas familiares e enigmáticas, em lugar
94 ADORNO; HORKHEIMER, 1985. p. 136.
de um universo de sujeitos comunicando-se todos uns com os outros, todos
transparentes uns aos outros.’95
A formação desse sujeito inebriado pelas imagens que o circundam está calcada em
experiências mediadas pela reprodutibilidade técnica, o que significa apreender o mundo como
uma seqüência de elementos padronizados, e, olhar para o mundo com olhar fotográfico e por
fotografias96: não apreender processos, mas captar cenas e fatos. Tendo a percepção da realidade
formatada por essa mediação, a tendência é formar sua subjetividade a partir de estereótipos –
imagens padronizadas de aparências, reações e comportamentos –; substituindo as vivências
processuais e reais por um tipo de experiência objetivada que se resume a fatos, pré-catalogados e
padronizados, e que se dá pelo contato com as imagens que se interpõe entre o sujeito e o mundo,
propondo interpretações prontas deste mundo. Esse processo intensifica a superficialidade da
relação do sujeito com o mundo e com os outros indivíduos.
Na indústria, o indivíduo é ilusório não apenas por causa da padronização do
modo de produção. Ele só é tolerado na medida em que sua identidade
incondicional com o universal está fora de questão. Da improvisação padronizada
no jazz até os tipos originais do cinema, que têm que deixar a franja cair sobre os
95 BAUDRILLARD, Jean. A Arte da Desaparição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p. 35. apud FABRIS, Anatereza. Percorrendo veredas: Hipóteses sobre a arte Brasileira atual. In: Revista USP. São Paulo, dezembro/fevereiro 1998-99, nº40, p.68-77. 96 Vilém Flusser, descrevendo a trajetória da construção da imagem desde a pré-história, afirma que as imagens foram criadas para que o homem pudesse ter acesso ao mundo, ou seja, pudesse através de representações visuais produzir esquemas que facilitassem a compreensão dos fenômenos; já que este acesso não acontece imediatamente por ser o homem parte integrante do mundo, em outras palavras, existente. Mas com o propósito de representar o mundo, se fazer símbolo, as imagens acabam por se interpor entre o homem e o mundo, como biombos. É o que Flusser chama a magicização da vida. Num segundo momento e contra esta magicização foi criada a escrita linear metaforizada por Flusser como o rasgamento das imagens em linhas e o conseqüente alinhamento desses elementos imagéticos em textos. Acontece que contra a intenção de desvendar as imagens mágicas, os textos acabaram por se afastar ainda mais da realidade, se tornando complexos e inimagináveis. Com a evolução científica surgem as imagens técnicas – texto científico aplicado – que são imagens que imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo. Pontuando mais uma vez o distanciamento entre o homem e o real pela mediação da própria linguagem. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
olhos para serem reconhecidos como tais, o que domina é a pseudo-
individualidade. O individual reduz-se à capacidade do universal de marcar tão
integralmente o contingente que ele possa ser conservado como o mesmo.97
Os modelos de individualidade e unicidade apresentados são eles próprios construídos
com a finalidade de afirmar o que é, ou deve ser a individualidade e a unicidade, e que na verdade
não passam de “[...] mercadorias monopolizadas e socialmente condicionadas”98, marcas
estereotipadas aceitas socialmente como marcas da individualidade, e vendidas como uma
conseqüência da aquisição de produtos. A individualidade é formada dentro de um campo
limitado de possibilidades, que se anunciam, no entanto, como liberdade; como explica
Shusterman:
A idéia divulgada, segundo a qual todos deveriam adotar um estilo próprio e
individual pela escolha livre e pessoal de modos de vida, não pode ocultar o fato
de que não somente a gama de opções viáveis de modos de vida como também a
própria consciência e a própria escolha do indivíduo são fortemente coagidas e
programadas por forças sociais que estão normalmente muito além de seu poder –
enquanto indivíduo – de resistir, para não falar em controlá-las.99
Os modos de vida disponibilizados pela Industria Cultural, são construídos com imagens
simples e unilaterais, que atendem a uma necessidade unilateral de consumo, feitas para um
sujeito que se percebe também dessa forma, como consumidor. Pois acontece uma conversão e
todas as esferas da vida à racionalidade da produção,100 ou seja, o indivíduo é mais uma peça do
sistema produtivo.
97 ADORNO; HORKHEIMER, 1985. p. 144-5. 98 Ibid., p. 145. 99 SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 222. 100 CROCHIK, 1999, p. 4.
A formação de um sujeito, com compreensão da dimensão histórica de si e da
sociedade, vem sendo enfraquecida pela ideologia da racionalidade tecnológica,
pois esta utiliza todos os espaços e atua em todas as dimensões da vida humana,
dificultando enormemente essa formação.101
A dimensão histórica desaparece porque a racionalidade tecnológica propõe um presente
constante, ou melhor, uma afirmação e naturalização do presente que aparece como se este
estivesse estendido eternamente e desde sempre.
Os padrões de comportamento impostos por meio das imagens estereotipadas desses
comportamentos, atingem o indivíduo das mais diferentes formas, pois “longe de ser algo
unificado e consciente, emergindo de um centro autônomo, estável e racional, o eu é destituído de
centro, é uma coleção de quase-egos, o produto de um conjunto aleatório de necessidades
idiossincráticas”,102 o que causa a identificação de cada quase-ego com um modo de vida
diferente que responde a uma necessidade de consumo diferente, já que esta esfera interior
encontra-se invadida e desbastada pela racionalidade tecnológica. Como conseqüência, temos a
auto-dispersão, que contribui para a falta de entendimento da complexidade do indivíduo: a
complexidade seria a ligação orgânica dos fragmentos; e a auto-dispersão, a tentativa desesperada
dos quase-egos de se conectar, ou identificar, com modelos que aparentemente supririam suas
necessidades. O que se torna prejudicial é que esses modelos são impostos externamente,
potencializando a fragmentação e desfazendo a ligação orgânica primordial entre os seus
fragmentos.
101 VERMELHO, Sonia Cristina Soares Dias. Educação e virtualização: as mídias e a formação do indivíduo. São Paulo: EHPS/PUCSP, 2003, p.31. 102 SHUSTERMAN, 1998, p. 203.
Os modelos são impostos pela indústria do consumo, que entrega os pacotes de “falsas
necessidades” com o rótulo do estereótipo ao qual se referem, cada um escolhe o seu tipo. Os
indivíduos são consumidores e a afirmação de sua individualidade depende dos produtos que ele
“escolhe”.
Quando a cultura é incorporada na vida cotidiana e no trabalho, o uso das imagens adquire
outra função, e se as primeiras pesquisas fotográficas se deram no campo da arte, mais adiante ela
foi absorvida pela publicidade. Atendendo a uma demanda industrial do aumento de consumo, o
produto foi substituído, no jogo da compra e da venda, pela sua imagem, que se mostra no fetiche
da embalagem, que revela-oculta o produto, mistificando e mitificando sua imagem, que neste
contexto é frágil e desgasta com o tempo. “Descobriu-se que o consumo psicológico é
infinitamente mais rápido do que o consumo objetivo; basta apresentar um novo tipo de produto,
e imediatamente o velho torna-se ‘obsoleto’, ‘caduco’”.103
A retórica do novo está fundada na ideologia da ruptura e do progresso contínuo, uma
tendência a convencer a supremacia do novo sobre o velho, o que projeta para o futuro a
realização, a satisfação e a felicidade e, institui a descartabilidade; além de profetizar que no
futuro ‘tudo será diferente e muito melhor’, fundada em uma necessidade econômica, que é a
base da lógica publicitária.104
Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é
imune a sua falsidade. E, ao ficarem esses produtos benéficos à disposição do
maior números de indivíduos e de classes sociais, a doutrinação que eles portam
deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida.”105
103 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 581. 104 DUBOIS, 1999, p. 15. 105 MARCUSE, 1969, p. 32.
E um bom estilo de vida que, por ser bom, milita contra a transformação qualitativa.
Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo privá-las disso é a mesma coisa. [...] [É] a
necessidade imanente ao sistema de não soltar o consumidor, de não lhe dar em
nenhum momento o pressentimento da possibilidade da resistência. O princípio
impõe que todas as necessidades lhe sejam apresentadas como podendo ser
satisfeitas pela indústria cultural, mas, por outro lado, que essas necessidades
sejam organizadas de tal sorte que ele se veja nelas unicamente como um eterno
consumidor, como objeto da indústria cultural. [...] A Indústria Cultural volta a
oferecer como paraíso o mesmo cotidiano.106
Ou as pessoas se entregam por completo ao sistema, ou estão fora, são outsiders. Na luta
pela sobrevivência, ninguém quer ser outsider, porque assim sendo, está fora do mercado de
trabalho, excluído. O sistema mostra que cada um tem que lutar pela sua sobrevivência, e que a
aliança com a sociedade é a forma mais fácil e rápida de atingir seus objetivos, o medo de ser
excluído do mercado de trabalho faz com que se exclua o outro, projetando nele as fraquezas e
deficiências proscritas pelo sistema produtivo, é assim que o sistema consegue a conivência de
todos para sua perpetuação. Todos são concorrentes em potencial e a competição agressiva de
todos contra todos aumenta a violência existente, além de cada um sentir que a sociedade é seu
único aliado. Em uma sociedade que já possui os meios para que não se precisasse lutar pela
sobrevivência, se mantém o medo para se manter o status quo, este é um aspecto irracional da
forma como a racionalidade tecnológica atua.
O desejo de consumo está atrelado ao jogo de imagens que seduz os consumidores com
promessas de realização e felicidade, e estimulam o consumismo desmedido que observamos
hoje. Esse desejo se constitui no tipo de experiência mais comum em uma sociedade de consumo
106 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 132-3.
de massa, pois desejar os produtos, é uma forma de consumo: o consumo das imagens destes
produtos. A aquisição do produto não acaba com a magia de sua imagem, porque esta se
transforma em símbolo de status; e mesmo porque, a imagem do produto raramente se realiza no
produto: a beleza que a embalagem mostra, nem sempre coincide com o que ela contém de fato.
O que importa nessa relação, é a posse da imagem do produto, do que ele significa, e não do
produto em si como uma mercadoria funcional. Como o que se consome é a imagem, assim que o
produto se encontra nas mãos do consumidor, deixa de ser desejável, o que fica é o seu valor
simbólico vinculado aos estereótipos que o produto ajuda a caracterizar; no instante em que se
efetua a compra, o consumidor inicia imediatamente a busca por um outro produto qualquer,
outra imagem na qual projetar seu desejo. O consumidor acumula imagens de produtos. Como
afirma Vermelho: “A qualquer hora, em qualquer dia e de qualquer lugar podemos consumir,
podemos buscar a felicidade nos objetos, ou recalcar um sofrimento, uma angústia entrando numa
sala de cinema, mas tudo isso certamente se tivermos condições financeiras.”107
O consumidor anda pela cidade, meio às compras meio a passeio, consumindo, mesmo
que só com os olhos, olhando os rostos da multidão, olhando o que está acontecendo nas vitrines.
A cidade, nesse caso, é o duplo do mercado, fornecedora de bens e serviços: olhar e devanear no
ambiente urbano é a extrapolação da experiência básica de olhar a mercadoria, quem olha a
mercadoria assim, devaneia, fantasia, sonha. Essa fantasia é a fascinação, a vulnerabilidade, o
desejo; a projeção da possibilidade de aquisição do produto é o movimento de desejo que
antecede o consumo.108
Esse comportamento do consumidor o converte num especialista do mercado, fica
sabendo como, onde, o que comprar: o melhor preço, o melhor produto, se torna viciado neste
107 VERMELHO, 2003, p.19. 108 Este trecho foi baseado na palestra Cinema e pop art ministrada pelo Profº Luiz Renato Martins na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, a 5 de agosto de 1998.
tipo de devaneio, de desejo, de fantasia da antecipação do consumo. Para os indivíduos, este é o
modelo de atitude perceptiva que satura a vida moderna, em particular a sociedade de consumo
de massa e é fonte de suas ilusões: ver televisão, escutar rádio, fazer turismo, ler jornal, etc. são
as atividades que preenchem a vida das pessoas nesta sociedade, mais particularmente seus
momentos de lazer, quando tentam escapar da opressão do trabalho.109
O que torna este comportamento reprodutível, ou seja, generalizado, é o fato de ocorrer
quando se tem diante de si a possibilidade de substituição ou descarte do objeto, ou seja, é
substituível porque é produzido em série; isso é o que possibilita o prazer antecipado que o
consumidor tem, pois sabe que pode adquirir o produto, sabe que é acessível, que não vai acabar.
A gratificação imaginária acontece porque o consumo é possível, o produto é acessível para quem
tem moeda, o consumidor fica gratificado de ver o produto na vitrine, já vai desfrutando do
produto bem antes de tê-lo110. E este jogo acontece não só com as mercadorias, mas também com
as produções da indústria cultural, nas palavras de Vermelho:
[...] o grande logro está em que aquilo que a Indústria Cultural promete fica
sempre adiado pelo prazer temporário de suas produções: o riso fugidio, o alívio
de tensão em troca da eliminação da fome e da divisão social. Esse é um dos
aspectos centrais da Indústria Cultural: a capacidade de reforçar a negação que é
imposta aos indivíduos, prometendo-lhes uma felicidade, inculcando nas pessoas
uma falsa verdade sobre a vida e sobre o mundo fundada sobre uma falsa
ideologia, sobre um falso distanciamento.111
Nesta colocação, Vermelho se refere à organização dos produtos da indústria cultural e ao
jogo de promessas não cumpridas e falsamente perpetuadas como realizadas por meio de
109 MARTINS, 1998. 110 Ibid. 111 VERMELHO, 2003, p.18.
“prazeres temporários”, a diversão desvia as pessoas de seus objetivos reais pois traz consigo as
falsas verdades sobre a vida e sobre o mundo.
2.5 O Cinema e as Massas
Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da
realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento
como para a intuição.112
O clima da indústria cultural, como pudemos perceber até aqui, acontece em decorrência
de inúmeros fatores, e, entre eles, está a reformulação das cidades que se inicia com a Revolução
Industrial. O trabalho nas fábricas requer um grande número de operários e sua permanência nas
cidades depende desta reestruturação, as cidades passam a ser organizadas em função do grande
número de pessoas que passam a habitá-las. As modificações nas cidades podem ser sentidas na
forma como passam a ser construídas e organizadas as moradias, pois como afirma Benjamin, a
numeração das casas que acontece nesse período, é uma forma de controle e organização; ou nos
meios de transporte que começam a ser pensados em função da locomoção da coletividade.
Pensando nas modificações sofridas pela cultura em decorrência desse maior número de
pessoas, podemos citar como exemplo a pintura e sua recepção. Benjamin levanta o fato de que a
pintura é uma arte para ser contemplada individualmente, um grande número de pessoas
visitando ao mesmo tempo uma exposição em um museu ou galeria, torna quase impraticável a
contemplação:
112 BENJAMIN, 1987b, p.170.
Por mais que se tentasse confrontar a pintura com a massa do público, nas galerias
e salões, esse público não podia de modo algum, na recepção das obras,
organizar-se e controlar-se. Teria que recorrer ao escândalo para manifestar
abertamente seu julgamento. Em outros termos: a manifestação aberta do seu
julgamento teria constituído um escândalo.113
A dificuldade de recepção das formas tradicionais de arte pela massa, e a instituição desta
acessibilidade, é uma das condições para o desenvolvimento da indústria cultural. Os grandes
“salões de pintura” passam a ser abertos ao público, a massa é convidada a entrar nos museus e
desfrutar das criações da arte contemporânea da época, mas como disse Benjamin, seria
necessário recorrer ao escândalo para manifestar abertamente seu julgamento, principalmente se
cada um quisesse fazê-lo. As formas tradicionais de arte não comportam este tipo de recepção.
Assim, a cidade passa a se organizar para a massa, para acomodá-la, para facilitar seu trânsito, e
os produtos da indústria cultural são organizados para entretê-la. Como dizia Benjamin, a pintura
é uma arte individual, deve ser contemplada na solidão, não comporta grandes públicos;
atualmente, a “arte” que é feita para a massa e que depende dela, é o cinema, como sempre foi o
caso da arquitetura, e antes, da epopéia114.
Nas obras cinematográficas, a reprodutibilidade técnica do produto não é, como
no caso da literatura ou da pintura, uma condição externa para sua difusão
maciça. A reprodutibilidade técnica do filme tem seu fundamento imediato na
técnica de sua produção. Esta não apenas permite, da forma mais imediata, a
difusão em massa da obra cinematográfica, como a torna obrigatória. A difusão
se torna obrigatória, porque a produção de um filme é tão cara que um
113 BENJAMIN, 1987b, p.188. 114 Ibid., p.188.
consumidor, que poderia, por exemplo, pagar um quadro115, não pode mais pagar
um filme. O filme é uma criação da coletividade.116
Em primeiro lugar, a produção de um filme depende de um grande número de pessoas: o
diretor, os especialistas, os técnicos, os montadores, os atores etc.; e depois, no cinema como na
fotografia, a reprodutibilidade é um elemento da própria técnica de produção, mas enquanto a
fotografia ainda admite uma recepção individual, o cinema depende da recepção coletiva. Por
isso, a reprodutibilidade técnica não é uma condição externa para a sua difusão, como na pintura,
na qual, a partir de um original são reproduzidas cópias que tem outra materialidade, e que,
portanto, diferem daquele. A difusão maciça é um elemento constituinte da obra cinematográfica,
sem a qual o seu custo a torna impraticável. Mas é a relação do cinema com a massa que faz com
que Benjamin o considere a forma artística que está em sintonia com a forma de percepção que se
instituiu na sociedade industrializada, pois não existe um original, todas as cópias são originais,
ao mesmo tempo em que nenhuma o é.
Se pensarmos na linguagem visual em movimento, e sua relação com o espectador,
podemos aprofundar um pouco o entendimento da percepção de mundo que foi discutida com a
fotografia. O cinema é um desdobramento da fotografia, surgiu como um mecanismo de
projeção, em um suporte, de uma seqüência de imagens fixas oriundas do processo fotográfico.
Tudo o que se desenvolveu com a fotografia foi utilizado pelo cinema, tendo como diferencial
que, enquanto a fotografia captura as imagens do real e as fixa em um suporte, o cinema é uma
forma de representação visual que não tem suporte, existe durante o tempo de projeção das
imagens na tela, a película em si não é a imagem, assim como o negativo da fotografia também
115 Salvo algumas exceções, como por exemplo, um quadro de Van Gogh que pode, atualmente, ser vendido por uma quantia equivalente a 80 milhões de dólares. 116 BENJAMIN, 1987b, p. 172.
não. A ilusão de movimento provocada pela projeção se dá para cada espectador, e não na tela,
ou seja, a possibilidade de apreensão do movimento está no espectador. Isso é importante na
medida em que se mostra como um processo mental e interno e não físico e externo (a percepção
do movimento acontece pelo efeito fi).
A recepção coletiva transforma a sala do cinema em um ambiente que depende da massa:
[...] no cinema, mais que em qualquer outra arte, as reações do indivíduo, cuja
soma constitui a reação coletiva do público, são condicionadas desde o início,
pelo caráter coletivo dessa reação. Ao mesmo tempo que essas reações se
manifestam, elas se controlam mutuamente.117
A recepção coletiva é ao mesmo tempo manifesta e controlada, por que acontece por meio
de um condicionamento efetuado por mecanismos estruturais que perpassam todos os produtos da
indústria cultural, no cinema as pessoas podem se manifestar abertamente porque o fazem em
uníssono. Como exemplo, podemos pensar em um filme de comédia, existem cenas mais
engraçadas e outras menos engraçadas, isso pode ser observado pela explosão de riso automática
e simultânea em grande parte dos espectadores, que reconhecem naturalmente estes momentos e
compartilham com os outros. Estes momentos são construídos com este fim mesmo, e sua
estrutura se repete em vários filmes e produtos da indústria cultural, são efeitos estandardizados.
Benjamin se refere aos espectadores do cinema como semi-especialistas, pois o cinema
absorve uma quantidade muito grande de pessoas para as suas produções, os atores
cinematográficos não precisam ser “bons atores” no sentido exigido pelo teatro, pois como disse
Benjamin, no cinema o ator somente representa a si mesmo diante do aparelho. E é esta condição
de proximidade que torna a todos semi-especialistas, pois o cinema acaba por absorver um grande
117 BENJAMIN, 1987b, p.188.
número de atores e não-atores. “No que diz respeito ao cinema, os filmes de atualidades provam
com clareza que todos têm a oportunidade de aparecer na tela.” 118 Mas, ao mesmo tempo, como
disse Adorno, hoje em dia esta chance “é para cada um tão mínima que é melhor riscá-la de vez e
regozijar-se com a felicidade do outro, que poderia ser ele próprio e que, no entanto, jamais é.119
Esse regozijo pode ser entendido como uma ligação afetiva do espectador com o personagem, e
uma idealização da figura do ator que atingiu o que ele mesmo gostaria de atingir.
Muitos autores estabelecem uma relação entre o cinema e a psicanálise, referindo-se aos
processos de identificação do espectador com obra cinematográfica. Aumont120 fala de uma dupla
identificação no cinema, advertindo que os processos de identificação do cinema e da psicanálise
não podem ser confundidos, mas que podem ser relacionados; para diferenciar as duas teorias da
identificação, chama as identificações que acontecem no cinema de identificações
cinematográficas primária e secundária.121 A identificação cinematográfica primária seria a
identificação do espectador com o sujeito do olhar, e a identificação cinematográfica secundária,
seria a identificação do espectador com a narrativa e seus personagens.
A identificação cinematográfica primária acontece pela identificação do espectador com
seu próprio olhar, pois se sente o foco da representação que vê diante de si, como se toda a cena
estivesse se desenvolvendo em função dele, por sua causa, se sente o “sujeito privilegiado, central
e transcendental da visão.”122 Mas esta identificação acontece na verdade com o ponto de vista da
câmera, o ponto de vista único e total, é a:
118 BENJAMIN, 1987b, p.183. 119 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 136.b 120 AUMONT, Jacques. A estética do filme. Tradução Marina Appenzeller; revisão técnica Nuno César P. de Abreu. Campinas, SP: Papirus, 1995. 121 Para ver mais sobre este tópico: AUMONT, 1995. 122 Ibid., p.260.
[...] capacidade do espectador de identificar-se com o sujeito da visão, com o olho
da câmera que viu antes dele, capacidade de identificação sem a qual o filme nada
seria senão uma sucessão de sombras, de formas e cores, literalmente “não
identificáveis” em uma tela.123
A possibilidade de assistir a um filme depende desta identificação, mas esta capacidade,
no entanto, não é dada, ela se desenvolve culturalmente. Em uma sociedade como a nossa, que
tem as produções cinematográficas como um produto cultural acessível à grande parte das
pessoas, e razoavelmente comum, este processo pode se dar naturalmente, sem os choques que
ocorreram quando das primeiras projeções do cinematógrafo no fim de 1800.124
A identificação cinematográfica secundária se refere ao tipo de identificação mais
comentado e conhecido por todos, a identificação com a história, com os personagens. O primeiro
ponto levantado por Aumont sobre a identificação cinematográfica secundária, é uma
identificação primordial com a narrativa:
Essa identificação com a narrativa enquanto tal deve-se provavelmente, em
grande parte, à analogia, muitas vezes detectada, entre as estruturas fundamentais
da narrativa e a estrutura edipiana. Pode-se dizer que qualquer narrativa, de certo
123 AUMONT, 1995, p. 259. 124 “Esta história começa entre 1894 e 1895, quando os irmãos Auguste e Louis Lumière, sintetizando todos os aparelhos precursores, criaram e patentearam o cinematógrafo. Apresentaram sua invenção à sociedade científica em março de 1895 e, em dezembro do mesmo ano, em Paris, um público de 33 pessoas pagou 1 franco de ingresso para assistir ao que se pode considerar o primeiro espetáculo cinematográfico, uma fita de 10 minutos, que incluía a exibição da famosa ‘Chegada do trem na estação Ciotat’. [...] Maximo Gorki, entretanto, expressa esta intensidade ao relatar, num texto da época, a sensação que ele experimentou: ‘Surge um trem que, tal qual uma flecha, mergulha direto sobre o espectador. Cuidado! Ribombando na obscuridade, ele se apressa em transformá-lo num saco de pele esfolada, cheio de carniça humana e ossos quebrados, e teme-se que ele destrua essa sala, esta casa onde abundam o vício, as mulheres e a música, onde o vinho corre em torrentes, só deixando atrás dele ruínas e poeira. Mas, na realidade, não passa de um trem fantasma.’ ” SAMPAIO, C.P. O cinema e a potência do imaginário. In: BARTUCCI, Giovana (Org). Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000, p. 53; 54.
modo, e é nisso que ela fascina, revive a cena do Édipo, o confronto do desejo e
da lei.125
A narrativa desperta no espectador a sensação de que de alguma forma ela fala dele
também, como algo que lhe diz respeito profundamente, pois reproduz a estrutura edipiana, que
faz parte da constituição individual da personalidade já na primeira infância. Essa lembrança da
estrutura permanece ao longo da vida, pois é a partir da crise edipiana que o sujeito tem as
identificações secundárias que se sucedem e substituem durante toda a vida, pelas quais ele vai se
diferenciar e constituir sua personalidade.126
Este ponto da identificação cinematográfica secundária se constitui, junto com a
identificação cinematográfica primária, nos dois princípios, talvez indispensáveis, para que o
espectador possa de fato assistir ao filme e dar sentido a ele, pois sem estas, o cinema não
passaria de um desfile de fantasmas e sombras indecifráveis. É a partir desta identificação com a
narrativa e deste “dar sentido” ao filme, pela identificação com o sujeito do olhar para o qual as
cenas se organizam, que surge a identificação com determinados personagens. Os personagens
não são indivíduos com um caráter definido, eles constroem-se enquanto o filme avança. Esta
identificação acontece em decorrência das primeiras duas formas citadas, e depois que o filme se
acabou, pela lembrança, na qual os personagens aparecem como dotados de um perfil psicológico
125 AUMONT, 1995, p. 263. 126 “Conhecemos o lugar fundador do complexo de Édipo na teoria psicanalítica e o papel central que Freud proporciona a essa crise, à sua posição e à sua solução na estruturação da personalidade. Da mesma forma, para Jacques Lacan, o Édipo assinala uma transformação radical do ser humano, a passagem da relação dual própria do imaginário (que caracterizava a fase do espelho) para o registro do simbólico, passagem que vai permitir se constituir em sujeito, instaurando-o em sua singularidade..” AUMONT, Jacques. O filme e seu espectador. In: AUMONT, 1995, p. 247.
relativamente estável e homogêneo. Esta sensação é o que faz com que pensemos neles como
pessoas reais, com os quais acreditamos nos identificar. 127
Assim, todo este processo psicológico que entra em funcionamento quando os filmes são
assistidos, tem uma ligação com a linguagem própria do cinema, com a estrutura narrativa
apresentada, e com a relação convencionada que é instituída com o real. Segundo Vermelho, as
produções cinematográficas:
[...] obedecem a código de linguagem próprio, vão se constituir num arsenal
discursivo e de expressão do real, dotada de vida e de sentido para seus
telespectadores. Esse sentido construído, segundo alguns autores, se dá em função
da relação que se estabelece entre a visualização daquelas imagens e a nossa
constituição psíquica, em particular, instaurada por um processo de identificação,
ou seja, a relação que o espectador constrói com os personagens e com a história
narrada é uma relação de identificação narcísica.128
Pela ficção, acontece no cinema uma fusão entre fantasia e ilusão de realidade, o que o
diferencia das outras narrativas, é justamente a sua técnica, que possibilita a reprodução do real
com uma semelhança, que até a invenção do cinema, não se havia conseguido. Esta é a novidade
do cinema, a possibilidade de incrementar a reprodução do real com vários elementos. A
fotografia reproduz a aparência do real e congela sua imagem, o cinema introduz nessa
reprodução o tempo e o movimento, criando uma ilusão de real muito mais intensa. Pois os fatos
se desenrolam no tempo, e o duplo movimento, o da bobina que se desenrola e a ilusão de
127 AUMONT, 1995, p.265. 128 VERMELHO, 2003, p.109.
movimento representada, criam esta ilusão de real. Assim a imagem do cinema se aproxima da
imagem mental e, em decorrência disso, da imagem concreta129.
O cinema é chamado por Philippe Dubois de uma máquina de representação da ordem 3,
sendo precedida e constituída pela câmera obscura (máquina de ordem 1, pois é uma máquina de
pré-visão que organiza o olhar), e pela fotografia (máquina de ordem 2, pois parte da primeira e
realiza a inscrição da figura no suporte por meios mecânicos). A máquina de ordem 3 é uma:
[...] máquina de recepção do objeto visual, ou seja, posterior à imagem: de fato,
as imagens do cinema só podem ser vistas por intermédio de máquinas, quer
dizer, pelo e no fenômeno da projeção. Sem a máquina de projeção (e o que a
cerca), só se vê a realidade-película do filme (a fita, feita de imagens fixas), isto é,
só se vê a sua parte fotográfica.130
A imaterialidade da imagem fílmica condiciona sua recepção à sala do cinema, e no
escuro, à todos os mecanismos de identificação citados acima, pois estes mecanismos dependem
da instituição cinema, de todo o processo de se retirar do mundo por algumas horas e escolher
entrar em uma narrativa.
O fato de termos de nos deslocar até uma sala de projeção tem uma função. Ao
adentrar numa sala escura e nos posicionarmos na frente de uma tela gigantesca,
são criadas as condições espaciais para a fuga do real. Tudo fica lá fora e, muitas
vezes, com bastante ansiedade o espectador vai buscar alienar-se nessa sala
escura, buscar um pouco de alívio, de alento, de amor, mecanismos para canalizar
sua energia psíquica. No entanto, “[...] o cinema, ao nos mostrar imagens em
movimento, defronta-nos com o choque entre a força da ilusão das imagens da
realidade e a certeza de que se trata de truque”. Ou seja, ainda que obtenha um
129 DUBOIS, 1999, p.16. 130 Ibid., p. 6.
pouco de prazer durante a projeção, ao seu final tem que encarar novamente a sua
vida real, muitas vezes imbuído com um sentimento de frustração ainda maior e
tendo que lidar com esse sentimento.”131
O espectador fica no “meio do caminho”: sabe que está diante de uma produção cultural,
que só pode ser experienciada através de máquinas, mas ao mesmo tempo, os processos de
identificação imprimem nele com força, transportando-o para dentro da narrativa, dentro deste
mundo fictício que se parece muito com o mundo real. Como diz Vermelho, a fuga do real é
ansiada, pois proporciona um afastamento dos problemas e dificuldades enfrentados na vida real,
mas que, no entanto, continuam fora do cinema à espera do espectador assim que as luzes se
acendem.
O cinema vem aumentar a distância entre o sujeito e o real porque aumenta o número de
máquinas que se interpõem entre o sujeito e a construção simbólica (representação). A ilusão de
realidade proporcionada pelo cinema, e a proximidade que ele adquire com a vida cotidiana,
moldam, pelo mesmo processo que a fotografia, a compreensão do real. Assim, concluímos com
Aumont quando afirma que, olhando uma imagem visual reconhecemos nela a aparência do real,
e por este reconhecimento modificamos a forma de ver o próprio real, e este é um processo
constante e ininterrupto, já que cada vez mais temos acesso às imagens produzidas pelas mais
diferentes técnicas.
131 Vermelho completa e comenta a citação de SAMPAIO, 2000, p.54 apud VERMELHO, 2003, p. 111.
2.6 Televisão
Dentro do esquema da indústria cultural, a televisão aparece como uma síntese do rádio e
do cinema; combinando a característica do rádio de atender o consumidor a domicílio, com a
fusão de sons e imagens bidimensionais do cinema, que no caso da televisão, têm a mesma
propriedade que as imagens fotográficas: a miniaturização. “O próprio meio de comunicação,
contudo, insere-se no âmbito do esquema da indústria cultural e, enquanto combinação de filme e
rádio, leva adiante a tendência daquela, no sentido de cercar e capturar a consciência do público
por todos os lados.”132 A televisão prende todos os sentidos do espectador, não deixando espaço
para a reflexão, como faz também o cinema, e o fato de que isso aconteça dentro de sua casa,
potencializa a tendência do aparato de se infiltrar em todos os pormenores da vida das pessoas. A
televisão entra na casa do consumidor, invade um espaço que antes era isolado do mundo
exterior, de intimidade, privacidade, proteção. Com o fenômeno da indústria cultural dentro dos
espaços privados, este passa a ter um caráter de fora, pois nele circulam informações da rua que
antes só entravam por meio das narrativas dos membros da família, essa invasão modifica o
espaço privado. A televisão aproxima os produtos do espectador, porque traz a imagem
publicitária para dentro da sua casa, e justamente pela publicidade disseminada em todos os
programas, atualiza as necessidades impostas pelo aparato.
A televisão permite aproximar-se da meta, que é ter de novo a totalidade do mundo sensível em
uma imagem que alcança todos os órgãos, o sonho sem sonho; ao mesmo tempo, permite
introduzir furtivamente na duplicata do mundo aquilo que se considera adequado ao real.
132 ADORNO, 1987, p. 346.
Preenche-se a lacuna que ainda restava para a existência privada antes da indústria cultural,
enquanto esta ainda não dominava a dimensão do visível em todos os seus pontos.133
Quanto mais familiares se tornam os produtos da indústria cultural mais difícil se torna a
decodificação destes produtos, pois são naturalizados, e, enquanto tais, tomam parte da vida das
pessoas, não esteticamente, mas naturalmente. Torna-se quase impossível perceber essas imagens
como algo em si ao qual se deve atenção, concentração, esforço e compreensão, ou seja: “Fazer a
abstração da magnitude real do fenômeno [...]”134, percebê-las como uma construção intencional
e parcial, ao invés de um espelho, no qual se projetam os fatos tais como acontecem na realidade.
A imagem é tomada como uma parcela da realidade, como um acessório da casa,
que se adquiriu junto com o aparelho, cuja posse além do mais, aumenta o
prestígio com as crianças. Dificilmente será ir longe demais dizer que,
reciprocamente, a realidade é olhada através dos óculos da TV, que o sentido
furtivamente imprimido ao cotidiano volte a refletir-se nele.135
Se a primeira formatação da percepção da realidade se amoldou ao recorte fotográfico,
com a televisão essa confusão do real com a sua representação vem mais e mais se ampliar, já
que na televisão acontece a apropriação de mais elementos da realidade sensível que na
fotografia. Pois ao contrário do cinema, não depende de uma retirada da vida cotidiana – a
entrada na sala do cinema – a televisão traz o cinema para dentro das casas, com todas as suas
implicações psicológicas discutidas anteriormente. A inclusão do movimento e do som advindos
do cinema, junto da sensação de posse pela miniaturização que a fotografia já proporcionava,
aumenta o caráter ficcional do real, ou seja, acontece uma inversão baseada naquela confusão.
133 ADORNO, 1987, p. 346. 134 Ibid., p. 348. 135 Ibid., p. 349.
A gratuidade das imagens faz com que o espectador desvalorize sua presença, ele as tolera
desatentamente:
Elas devem dar brilho ao seu cotidiano cinzento, e se lhe assemelharem no
essencial: de sorte que são antecipadamente inúteis. O que fosse diferente seria
insuportável, porque recordaria aquilo que lhe é vedado. Tudo se apresenta como
se lhe pertencesse, porque ele próprio não se pertence.136
Como mais um produto da indústria cultural, a televisão se apresenta como um veículo de
adaptação, dá brilho ao cotidiano cinzento sempre-igual do espectador, pela ilusão de diferença
que marca os produtos da indústria cultural, reafirma mais uma vez a racionalidade tecnológica,
lógica que o espectador entende rapidamente por ser a mesma que o fatigou durante a jornada de
trabalho. O que fosse diferente, produzido a partir de outra lógica, seria insuportável, mostraria
uma liberdade na organização do pensamento que lhe é vedada. Se, como diz Adorno, podemos
afirmar que a realidade é olhada pelos óculos da TV, a percepção do real se transforma em
distância e sensação de posse de um real apreendido sempre de fora: o indivíduo se torna
espectador da sua própria vida e vítima dos seus fatos.
A sensação de posse e poder sobre as imagens tornam o espectador o senhor da realidade
apresentada no aparelho: “Os homenzinhos e mulherzinhas que se obtêm a domicílio tornaram-se
joguetes para a percepção inconsciente. Algo disso poderá recrear o espectador: ele os sente
como propriedade, da qual pode dispor e em relação à qual se sente superior.”137 Os personagens
que aparecem na televisão, nas novelas e seriados, são ainda mais estereotipados e rudimentares
dos que aparecem no cinema, podem ser facilmente identificados de acordo com seu tipo, além
136 ADORNO, 1987, p. 349. 137 Ibid., p. 348.
de proporcionar uma identificação no espectador que se dá “por um reconhecimento em uma
tipologia dos personagens: o bom, o mau, o herói, o traidor, o vencedor, o vencido etc., com o
qual o espectador o reconhecerá como um tipo e se identificará com esse ou com aquele
personagem.”138 A disseminação de estereótipos pela indústria cultural se torna a fonte dos
modelos de comportamento assumidos por uma grande maioria, e nesse caso, a influência da
televisão é preponderante; pois ela se encontra fixada dentro das casas e faz parte da vida
cotidiana de cada um.
Aquela ‘proximidade’ fatal da televisão, que também é causa do efeito
supostamente comunitário do aparelho, em torno do qual os membros da família e
os amigos, que de outra forma não saberiam o que dizer uns aos outros, se reúnem
em mutismo, não só satisfaz um desejo diante do qual nada de espiritual se pode
manter que não se transforme em propriedade, como ainda obscurece a distância
real entre as pessoas e entre as pessoas e as coisas. Ela se torna o sucedâneo de
uma imediação social que é vedada aos homens.139
A televisão remedia e substitui a relação entre as pessoas, se torna a voz dos diálogos,
mascarando a distância real entre elas. Assim, o meio de comunicação, que produz a ilusão de
real, semelhante a do cinema, e é entregue em casa como o rádio, ofusca a presença das pessoas e
do real. “Em vez das imagens representarem a realidade, as imagens passavam a ser percebidas
como definidoras da realidade. E a realidade abarcava nossa subjetividade e a percepção que
temos de nós mesmos”140 – e dos outros. Assim, Phillips aponta a confusão entre a imagem e a
realidade, quando as imagens passam a ser o que afirma a realidade das coisas e de nós mesmos.
No mesmo sentido, Bourdieu afirma que “[...] insensivelmente, a televisão que se pretende um 138 VERMELHO, 2003, p. 112. 139 ADORNO, 1987, p. 350. 140 PHILLIPS, Lisa. Photoplay: A arte contemporânea na fotografia. In: Photoplay: New York: Chase Manhatan, 1994, (Catálogo de exposição), p. 17.
instrumento de registro torna-se um instrumento de criação de realidade.”141 Como Phillips,
Bourdieu comentou a inversão que vem acontecendo já desde a invenção da fotografia – senão
antes – de que as imagens produzidas por máquinas são tomadas como a própria realidade, e esta,
é deixada em segundo plano, a realidade que descobrimos nos meios de comunicação, é a
realidade oficial. A relação do sujeito com a televisão e, por conseguinte, com essa realidade, e
suas conseqüências é que são preocupantes. “A forma e o conteúdo do que é veiculado pela
televisão encontram-se intimamente ligados. O seu grande poder encontra-se na forma de
recepção que [...] impede o controle sobre o eu consciente.”142
Podemos pensar que o relacionamento que se estabelece com uma imagem é sempre
unilateral, pois o outro não existe: o outro-imagem é personificado pela projeção dos meus
desejos; nesse sentido, o outro que não é imagem (ou seja, é outro ser humano), também é
obrigado a satisfazer meus desejos, desde que queira se relacionar comigo.
Podemos ainda supor que a distinção entre subjetividade e alteridade fica enfraquecida: o
outro é o outro dentro de mim, o que diminui a possibilidade de comunicação entre as pessoas, a
troca de experiências e de conhecimentos, pela instituição do individualismo, da manipulação, da
insatisfação; nessa situação, as pessoas não poderiam aceitar as diferenças, pois estariam
constantemente vivendo suas projeções imaginárias, o que significa, não conseguir apreender o
outro como ser distinto. Este é um dos pontos levantados por Crochik143 quando discute o
preconceito, a impossibilidade de ter experiências reais e imediatas com a realidade e com o
outro.
141 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Tradução: Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 29. 142 VERMELHO, 2003, p. 121. 143 CROCHIK, José Leon. Preconceito: indivíduo e cultura. São Paulo: Robe Editorial, 1997.
Os estereótipos são proporcionados pela cultura e se mostram propícios à
estereotipia do pensamento do indivíduo preconceituoso, fortalecendo o
preconceito e servindo para sua justificativa, ou então são formados à base de
mecanismos psíquicos que tentam perceber a realidade de forma primitiva, sendo
estes mesmos mecanismos a base do pensamento estereotipado.144
Chochik acrescenta que os estereótipos não são utilizados unicamente pelos indivíduos
preconceituosos ou com predisposição ao preconceito, todas as pessoas em nossa sociedade se
servem dos estereótipos de alguma forma, os compreendem e os utilizam.
Nesse sentido ainda, a indústria cultural oferece os clichês que aliviam a angústia da
experiência e da reflexão, pois estes clichês ou estereótipos, que fragmentam o mundo,
dicotomizando-o em certo e errado, bom e mau, provém da própria realidade que se organiza de
forma binária, classificatória, esquemática, igual aos processos de produção.145 E dessa forma o
processo de produção marca progressivamente todos os setores, separados e classificados, da vida
humana – o trabalho, o lazer, o amor, a família, os amigos, cada um com seus horários e
comportamentos determinados.
Com relação a esta forma de estar no mundo, podemos perceber que a televisão tem uma
linguagem unidirecional, um discurso imposto, que não oferece possibilidade de resposta, o que
pode ser visto nas pessoas como um comportamento “autista” é disseminado pela televisão 24
horas por dia. E é esta relação unidirecional e impositiva que faz com a televisão seja um meio de
comunicação perfeito para a disseminação de falsas verdades no formato publicitário.
As imagens veiculadas pela televisão se desenrolam independentemente da presença dos
espectadores, os programas se sucedem uns aos outros continuamente, com uma programação
fixa a qual o espectador deve se adaptar, como explica Dubois:
144 CROCHIK, 1997, p. 18 145 Ibid., p.20
O que é próprio da maquinaria televisual é a transmissão. Uma transmissão à
distância, ao vivo e imediata. Ver, por toda parte onde haja receptores, o mesmo
objeto ou acontecimento, em imagem, em tempo real e estando sempre longe ou
em outro lugar. [...] A imagem-tela da transmissão direta de televisão, que nada
mais tem de lembrança já que não tem passado, doravante viaja, circula, propaga-
se, sempre no presente, onde quer que esteja. [...] Imagem amnésica cujo
fantasma é o perpétuo planetário ao vivo, ela abre a porta à ilusão (à simulação)
da co-presença integral. Assegurando maquinalmente a multitransmissão em
tempo real da imagem (não importa que imagem), a televisão, no fundo,
transformou o espectador – que, no escuro e no anonimato da sala de cinema,
tinha ao menos uma forte identidade imaginária – numa espécie de fantasma
indiferenciado, a tal ponto eclipsado pela luz do mundo que se tornou
completamente transparente, invisível, não existe mais como tal (ele é, na melhor
das hipóteses, uma cifra, um alvo, um índice de audiência): uma onipresença
fictícia, sem corpo, sem identidade e sem consciência.146
Dubois se refere à forma intensa com a qual as imagens da televisão são despejadas
ininterruptamente pelos aparelhos nas casas, ou aonde houver receptores; uma transmissão que
não depende da presença das pessoas, como o cinema, que depende das salas cheias. A televisão
é a consumação da percepção seriada dos seres humanos, pois entrega em casa todo um conjunto
de produtos e mensagens iguais a todos; as possibilidades de escolha dentro do aparelho são
enfatizadas e difundidas; mas, como em todos os produtos da indústria cultural, o único conteúdo
que transmitem é a unidade da técnica, é a possibilidade de transmissão à distância, ao vivo e a
cores.
Em todo caso, pode-se encarar um meio de comunicação que atinge incontados
milhões e que freqüentemente supera qualquer outro interesse, sobretudo no caso
146 DUBOIS, 1999, p. 8.
de jovens e crianças, como uma espécie de voz do espírito objetivo, ainda que
este não mais resulte espontaneamente do jogo de forças da sociedade mas seja
planejado em moldes industriais.147
É justamente sob moldes industriais que o espírito objetivo se afirma com maior força,
achatando as diferenças e exaltando sua onipotência, proporcionando um divertimento contínuo e
descartável.
“A televisão comercial evita tudo que possa lembrar, por mais remotamente que seja, as
origens da obra de arte no culto e sua celebração reservada a motivos especiais.”148 Evita o que
possa lembrar as funções da obra de arte como construção simbólica, como mediação entre o
sujeito e o real, e traz à tona a inutilidade de imagens vazias. A produção em série das imagens,
sua vulgaridade e popularidade, transforma a linguagem visual na linguagem do mundo comum;
a potência de uma imagem não é vista como tal, e apesar dos efeitos desta potência se manterem,
ela é absorvida, e não contemplada.
Desde sua invenção, a televisão já demonstrava o grande empobrecimento estético da
produção e recepção dos bens culturais, que manipulados pela reprodutibilidade técnica
transformaram a experiência da cultura em veículo de adaptação; pois como afirma Adorno, o
esquematismo destas produções isenta o espectador de qualquer necessidade de decodificação
dos elementos percebidos, pois já são decodificados pela indústria e entregues prontos para o
consumo. Nenhuma qualidade interpretativa, crítica ou seletiva é requisitada, apenas a recepção
passiva das informações emitidas.
147 ADORNO, 1987, p. 351. 148 Ibid., p. 349.
2.7 Imagem Informática
Na sociedade contemporânea temos como mais recente tecnologia da imagem, a
linguagem digital; esta, que surge na década de 1970 em pesquisas científicas e militares, tornou-
se, em pouco tempo, acessível a um grande número de pessoas. Hoje, no início do século XXI, é
comum possuir um PC (Personal Computer) em casa. A rede de internet que conecta todos os
computadores e permite a comunicação entre eles, ganha cada vez mais adeptos. Mas por ser uma
tecnologia nova e, portanto cara, exclui do seu uso uma grande maioria, pelo menos nos países do
chamado 3º mundo. No entanto, esta é uma situação que foi vivida no surgimento da televisão, e
hoje em dia, são muito poucas as pessoas, mesmos nos países do chamado 3º mundo, que não
possuem uma televisão em casa. Assim, podemos presumir que devido ao aumento progressivo
de seus usuários, em pouco tempo, o PC será mais um eletrodoméstico indispensável em
qualquer residência.
Pode-se dizer que as imagens informáticas já são acessíveis a todas as pessoas em nossa
sociedade, dado que grande de parte dos cartazes, outdoors, fotografias de revistas, programas de
televisão, produções cinematográficas, já são, senão produzidas por computador, manipuladas ou
finalizadas com o auxílio deste meio. Em muitos casos, não notamos diferença na aparência
destas imagens, quando comparadas com as produzidas pelos meios analógicos, pois se esmeram
na técnica para se aproximar e aperfeiçoar a semelhança com o real. Este dado é importante no
que toca a produção das imagens informáticas, pois, segundo Dubois, a sua grande diferença com
relação às outras técnicas está no fato de que com as imagens informáticas:
[...] pode-se dizer que é o próprio ‘Real’ (o referencial originário) que se torna
maquinista, já que é gerado pelo computador. Isto transforma fundamentalmente
o estatuto dessa ‘realidade’, entidade intrínseca que era captada pela câmera
obscura do pintor, inscrita pela química fotográfica e projetada ou transmitida,
em seguida pelo cinema e pela televisão. Não há mais necessidade desses
instrumentos de registro e reprodução, já que a partir de agora o objeto ‘a ser
representado’ pertence, ele próprio, à ordem das máquinas: é gerado pelo
programa, não existe fora dele, é o programa que o cria, molda-o e modela-o à sua
vontade.149
Nas produções digitais, o real exterior é tomado como modelo estrutural e não como
matriz, retomado para conferência da semelhança. Neste caso o que importa é o “real” construído
dentro das possibilidades do programa, que é aperfeiçoado também com este intuito, de aumentar
a perfectibilidade. O que Dubois chamava no livro O Ato Fotográfico, de relação indicial
estabelecida com o real pela fotografia, é aqui abandonado. Na fotografia existe a impressão
luminosa do real no papel sensível, é uma relação de toque, a imagem fotográfica – como a
cinematográfica e grande parte da televisiva – deriva do real fisicamente. A representação
dependia do real, mas com as imagens informáticas: “[...] é a própria idéia de representação que
perde todo o seu sentido e o seu valor. A representação pressupunha um distanciamento original
entre o objeto e a sua figuração, uma barra entre o signo e o referente, uma distância fundamental
entre o ser e o parecer.”150 Agora, com o “real” construído dentro da máquina, ou como chama
Dubois, um real maquinista, este distanciamento desaparece, a figuração e o objeto são um só.
Nesse sentido, a imagem que aparece no computador é sempre virtual, potencial, ou seja, é uma
atualização dos possíveis do programa, e sendo assim pode ser vista como um acidente, no
sentido de que qualquer atualização das potencialidades do programa poderia ocupar o seu lugar.
149 DUBOIS, 1999, p. 9. 150 Ibid., p. 9.
[...] a imagem informática, sabemos, é uma imagem puramente visual. Ela apenas
atualiza uma possibilidade de um programa matemático; reduz-se, em última
instância, não a um sinal analógico, mas a um sinal digital, isto é, a uma
seqüência de cifras, a uma série de algoritmos.151
Portanto a referência da imagem informática é uma seqüência numérica binária. “A partir
do momento em que a máquina não reproduz mais, mas gera o seu próprio real, que é a sua
própria imagem, é evidente que a relação de semelhança não faz mais sentido, já que não há mais
representação nem referente.”152 É nesse sentido que surge esta realidade paralela chamada
realidade virtual, que não passa da atualização de uma das potencialidades do programa, essa
realidade é potencial, e por isso existe no momento em que é acessada, não existe em si.
É o triunfo da simulação, na qual a impressão de realidade é substituída pela
impressão de presença, na qual o usuário experimenta a simulação como um real,
na qual não somente a imagem não tem mais corpo, mas o próprio real parece ter
se volatilizado, dissolvido, descorporificado em uma abstração sensorial total.153
A realidade virtual que aperfeiçoa sua técnica para proporcionar “vivências” digitais é
cada vez mais procurada pelas pessoas. E aqui, não precisamos ir tão longe citando as luvas
sensoriais ou os óculos digitais, a simulação da presença é vivida nos chats e seus derivados, de
forma tão intensa, que de acordo com Vermelho, estas são chamadas comunidades virtuais.
Possibilitam a comunicação entre duas ou mais pessoas ao mesmo tempo (a comunicação entre
duas pessoas, sincronizada temporalmente, já é possível desde a invenção do telefone) e, portanto
151 DUBOIS, 1999, p. 18. 152 Ibid., p. 12. 153 Ibid., p. 18.
podem ser considerados espaços de socialização. “Enquanto as mídias anteriores eram mídias
ditas unidirecionais, ou seja, a mensagem era transmitida numa única direção, a internet permite a
bidirecionalidade, ou seja, de ambas as pontas existe produção de discurso.”154 E isto é
significativo no sentido de que a posição do usuário não é passiva frente ao que recebe, ele pode
intervir no contato com o computador definindo em que espaços entrar, quando e como.
Quanto ao significado de comunidade que a internet vem recebendo, é interessante notar,
como adverte Vermelho, que este significado se liga mais a um ideal de comunidade livre,
soberana e justa, que à real; mas, se no real não realizamos este ideal, no virtual igualmente isso
não acontece. Pois, mesmo que circunscrita a um sistema próprio e diferente do real, as pessoas
que participam desta suposta comunidade de homens livres, são as mesmas que participam da
sociedade real, com a crescente opressão, violência e sofrimento. 155 Segundo Vermelho, no
espaço virtual:
[...] cria-se uma sensação de comunidade quando na realidade o que temos são
pessoas isoladas, imaginando-se num grupo. [...] o que se torna relevante é a
relação do usuário com a socioespacialização da tela, pois na medida em que sua
consciência fica toda voltada para aquele espaço, [...] o espaço imediato [...] fica
em segundo plano, deixa de ser centralizado pela consciência.156
A simulação da presença e a interação em tempo real faz com que os usuários deixem-se
absorver pelo mundo virtual. A possibilidade de escolha de o que ver, o que ler, com quem
conversar, acaba por descartar as possibilidades de experiências imediatas que o mundo real
154 VERMELHO, 2003, p.131. 155 Ibid., p. 133-4. 156 Ibid., p. 137.
oferece, nos seus imprevistos, encontros e desencontros, situações inesperadas, que fazem parte
do processo de socialização e construção da personalidade.
A simulação do real é uma potencialização da troca do real por imagens, como discutida
nos tópicos anteriores, pois na simulação esta confusão é ainda mais intensa. Existe um real
paralelo, a realidade virtual, onde o espectador não está passivo, ele interage com a máquina. As
pessoas têm a sensação de que participam desta comunidade virtual, e com isso a distância entre
o sujeito e o real aumenta, pois o sujeito pode ficar horas absorvido nesta outra realidade,
sentindo como se estivesse vivendo lá dentro: compra, conversa, namora, escuta música, assiste a
filmes, lê reportagens e livros, sem se mexer, acoplado à máquina. A ligação com o real fica
enfraquecida, se torna secundária.
A percepção do mundo por meio de imagens é característica da sociedade atual, sempre
pronta a lidar com a fantasia. Segundo Jean Baudrillard, a apreensão do real por imagens é tão
falsa quanto a tentativa de entender a imagem visual como sendo uma representação do real.
À decepção com uma realidade entregue à superficialidade da imagem seria
preciso opor a decepção com uma imagem entregue à expressão do real. É só
libertando a imagem do real que lhe conferiremos a sua potência, e é só
conferindo à imagem a sua especificidade (seu idiotismo, diria Rosset) que o
próprio real pode encontrar sua verdadeira imagem.157
Uma representação é sempre uma construção que parte de uma redução: de escala, de
proporções, de conteúdo, de natureza, de materialidade.158 A partir da fotografia essa redução é
ainda mais evidente se concordarmos com Baudrillard que a imagem fotográfica não é uma
157 BAUDRILLARD, Jean. A troca impossível, Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2002, p. 148 158 O que não significa estabelecer uma hierarquia do real para a representação, aqui a redução é tratada como uma compressão a tal ponto que o real adquira uma outra aparência.
representação, mas uma ficção. Sendo uma ficção do real, é uma simulação que suprime a
materialidade do mundo, faz um recorte e dentro dele recria o olhar humano imitando a
perspectiva, o que resulta em uma relação espacial: mas uma relação espacial plana. É o
achatamento de todos os componentes da imagem a um único plano e a uma única materialidade;
equivalência total da superfície que afirma a literalidade do objeto. A imagem fotográfica é a
abstração de duas das quatro dimensões que se percebe no real (altura, largura, profundidade e
tempo), e a percepção e a compreensão da imagem estão fundadas em uma capacidade de
imaginar e assim restituir as quatro dimensões à imagem afim de decodificá-la. Apesar disso, o
princípio fotográfico, faz com que o real seja substituído pela sua superfície, é a redução
fotográfica que permite a sensação de posse do real por meio da sua imagem. Mas “entre a
realidade e sua imagem, a troca é impossível, há, na melhor das hipóteses, uma correlação
figurativa”.159 A experiência com a imagem visual é uma experiência dentro do real, não sobre o
real.
Dentro deste contexto da troca da realidade por imagens, podemos pensar na formação do
sujeito como resultado desta dinâmica, uma poderosa arma de dominação e manutenção do status
quo. Segundo Theodor Adorno, a Indústria Cultural, é uma pequena fração dos monopólios
econômicos que comandam a sociedade. É o veio pelo qual a diversão atua como reguladora dos
ânimos da população, contendo os ímpetos individuais de revolta, um veículo de adaptação. A
Indústria Cultural exerce sua função pela imposição de um modelo de diversão que reproduz a
condição do trabalho nos momentos de lazer, com o objetivo de sufocar a tentativa de escape da
realidade massificante, mantendo os homens ocupados desde a saída do trabalho até seu retorno,
159 BAUDRILLARD, 2002, p. 146.
com atividades que reafirmam sua condição e o preparam para a próxima jornada. “A diversão
favorece a resignação, que nela quer se esquecer.”160
Olhar vitrines, assistir filmes, ver televisão, fazer turismo: atividades de lazer “oferecidas”
pela Indústria Cultural que preenchem a vida do sujeito com “sonhos de consumo”; criadas a
partir do princípio fotográfico de registrar imagens, de guardar recortes da realidade, transferem a
importância das vivências dos processos históricos para cenas que registram estados diáfanos e
eternalizados em fotografias. Propiciam o consumo das virtualidades dos processos, sem
proporcionar as vivências destes processos; são as ilusões de efetivação, que projetam para um
futuro inexistente a felicidade. E essa promessa a ser cumprida, amarra o sujeito contemporâneo
numa trama de simulacros, alimenta o sistema e reduz o sujeito a uma peça da engrenagem
social, na dinâmica do consumo compulsivo, e na passividade da massificação e da alienação.
160 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 133.
CAPÍTULO III EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE DAS IMAGENS
A abordagem da educação na Sociedade das Imagens remete à articulação entre dois
campos: cultura e educação, um binômio que não pode ser desconsiderado no processo de
formação. Mas para pensar estes dois campos hoje, é necessário ter em mente, como discutido no
capítulo anterior, que na sociedade administrada, a cultura deve ser pensada em função das
transformações que assume com a indústria cultural; e a educação, como inserida neste contexto,
pelas transformações que sofre nas mesmas condições. Embora cultura abranja também as
produções humanas dentro da filosofia, religião, ciência, para fins deste trabalho, será pensada na
sua ligação com a arte; e, com a tecnologia, esta pela influência que vem exercendo na arte e na
educação. Nesse sentido, a educação será analisada na sua articulação com a cultura, como hoje
se estabelece na sociedade administrada, e, portanto, a indústria cultural.
No primeiro capítulo refletimos sobre a sociedade atual como a Sociedade das Imagens,
essa discussão girou em torno da organização social em função da racionalidade tecnológica e, da
concepção de que progressivamente as imagens tecnicamente produzidas e reproduzidas tomam
parte na vida das pessoas. Este processo se dá em função de uma imbricação da cultura e da
civilização, pelo engolfamento da primeira pela última e, da administração social das
necessidades individuais. Como disse Marcuse, a cultura se coloca na sociedade industrializada e
tecnológica como veículo de adaptação. O que outrora era um espaço destinado à denúncia e à
reflexão crítica sobre os problemas da sociedade e do indivíduo, se tornou uma ferramenta de
ajustamento às regras e comportamentos exigidos para a manutenção do aparato. “Resultado: os
conteúdos culturais tornaram-se pedagógicos e edificantes, algo relaxante – um veículo de
adaptação.”161 A tradução dos conteúdos das obras da “cultura”, em idéias operacionais e
referidas aos comportamentos individuais, é que os torna “edificantes” e pedagógicos, no sentido
de transmitir os ditames do aparato, de forma que sejam absorvidos pelos indivíduos
desapercebidamente, ou seja, nos seus momentos de lazer, pois como afirma Adorno, cultura
agora se resume à diversão.
Os produtos da indústria cultural estão presentes em todos os ambientes, de forma tão
intensa que já não os percebemos mais; estamos acostumados com sua presença, e principalmente
com sua substituição constante. A linguagem visual assume grande importância na indústria
cultural, passando a ser sua linguagem “oficial”, podemos dizer que os textos estão, de certa
forma, submetidos a ela: todos os dias novos cartazes aparecem nos muros, novos jornais nas
bancas e, na televisão sua velocidade é tal que não conseguimos fixar as imagens que duram
décimos de segundos.
O convívio com essas imagens faz com que não nos preocupemos em decodificar a
pluralidade de discursos que elas carregam: nós as toleramos. Mas nossos olhos podem ver muito
mais do que nós nos damos conta, e a displicência com as imagens nos deixa vulneráveis às
mensagens que elas possam trazer: nos deixa vulneráveis à sua função de veículo de adaptação.
Assim, segundo Adorno: “Quanto mais completo o mundo como aparência, tanto mais
inescrutável a aparência como ideologia.”162 A ideologia não é mais redutível pura e
simplesmente a um interesse parcial, não podemos identificar um sujeito contra quem nos voltar,
está em todas as partes a uma mesma distância do centro.163 A aparência do mundo transmitida, é
de uma sociedade livre, onde as pessoas são autônomas e podem se desenvolver segundo suas
próprias determinações, o que, como vimos, não passa de uma falsa ideologia, de um engodo
161 MARCUSE, 1998, p. 158; 160. 162 ADORNO, 1987, p. 347. 163 Id., 2001, p. 21.
usado como forma de controle. Sendo que a indústria cultural é uma pequena fração de todo o
mecanismo de adaptação social que opera no sentido de manter a ordem vigente e o aparato,
percebemos que todas as instâncias sociais convergem para o mesmo fim.
Nessa perspectiva, a educação pode ser compreendida como estando em função desta
ideologia que perpassa todos os âmbitos da sociedade, uma vez que a escola se coloca como uma
das instituições responsáveis pela formação do indivíduo, na qual este entra em contato com a
cultura de forma sistematizada, mas este contato não depende exclusivamente da escola, ele se dá
durante todo o processo de socialização.
A educação proposta pelos iluministas tinha como objetivo a formação do sujeito
autônomo, mas esta idéia nunca se efetivou e parece cada vez mais distante na sociedade
contemporânea. Como afirma Crochik: “A educação, em seu sentido amplo, é vista como aquela
responsável pela constituição de um indivíduo que, como a filosofia ocidental iluminista propôs,
deveria ter a autonomia da razão [...]”164, esta concepção da educação, guiada pelos ideais
iluministas, pode ser vista como uma das metas da cultura para a sociedade, como discutido no
primeiro capítulo, mas como as outras metas propostas e professadas, não foi atingida, como
completa Crochik:
[...] porque ao mesmo tempo em que transmite informações, hábitos e valores, ao
não refleti-los em nome da emancipação, torna-os externos aos indivíduos. É
nesse sentido que podemos entender a afirmação de Adorno de que se as
necessidades individuais sempre foram mediadas socialmente, hoje são externas
ao indivíduo e exigem sua mera adaptação às regras do jogo da publicidade.165
164 CROCHIK, José Leon. Notas sobre psicanálise e educação em T.W. Adorno. In: Contemporaneidade e Educação: Atualidade da escola de Frankfurt. Vanilda Paiva (Org.), revista semestral temática de ciências sociais e educação. Instituto de estudos da cultura e educação continuada, São Paulo, ano 1, n. 0, set. 1996, p. 90. 165 Neste trecho, Crochik se refere ao texto de T.W. Adorno: Acerca de la relación entre sociologia y psicologia, p 49 apud CROCHIK, 1996, p.90.
E assim, temos na educação mais um dos mecanismos de adaptação e controle, pela
externalidade das informações, hábitos e valores que transmite irrefletidamente, e, que nesse
sentido, se tornam heterônomos. Portanto, o indivíduo que se quer autônomo, deve manter com a
cultura, uma dupla relação, pois ao mesmo tempo em que é formado por ela, e que nesse sentido
nela se reconhece; deve se colocar como sua antítese, negando-a quando percebe sua
irracionalidade e violência. “A irracionalidade cultural caracteriza-se pela exigência contínua do
sacrifício individual que não é compensado, traindo assim a promessa de constituir indivíduos
livres, autônomos, capazes de buscar a felicidade no objeto sem que haja a ameaça que sustenta
aquele sacrifício.”166 A indústria cultural promete a felicidade e os meios para alcançá-la, mas ao
mesmo tempo, quebra sua promessa e projeta a realização da felicidade para mais adiante,
promovendo a heteronomia e a dependência.
Pensando na cultura e na sua relação com a formação dos indivíduos, concordamos com
Crochik quando fala que:
[...] a democratização dos bens culturais acabou nivelando por baixo a educação,
permitindo aquilo que Adorno denominou de pseudoformação. [...] A
pseudoformação, inimiga de qualquer formação, se expressa na superficialidade
com a qual os dados da cultura são apresentados e incorporados. Do lado da
cultura isto significa a sua banalização; do lado do indivíduo, o seu
enfraquecimento.167
Uma das facetas da pseudoformação se refere à formação da subjetividade com base em
um contato com a cultura por meio de informações, nas quais são transformados os
conhecimentos. A informação, como explica Benjamin, é um evento impregnado de explicações,
166 CROCHIK, 1996, p.91. 167 Id., 1997, p.120-121.
e “[...] recebe sua recompensa no momento em que é nova; vive apenas nesse momento; deve se
entregar totalmente a ele e, sem perder tempo, a ele se explicar.”168 Nesse sentido, as informações
são um “barateamento” do conhecimento sobre o mundo, se substituem umas às outras
constantemente e renovam-se ininterruptamente. Impregnadas de explicações, as informações não
permitem ao sujeito sua própria elaboração, pois recorrem a um registro positivista dos dados,
que usurpam ao sujeito o esquematismo, e se firmam sobre esquemas estereotipados do
pensamento e da realidade. Segundo Kant169, o esquematismo é o único e verdadeiro meio de se
estabelecer uma relação com o objeto, ou em outras palavras, se produzir conhecimento.
No texto Esquematismo e semiformação170, Rodrigo Duarte faz uma explanação do
assunto tal como aparece na obra de Adorno, Theorie der Halbbildung (Teoria da
Pseudoformação), relacionando-o com textos da Dialética do Esclarecimento de Adorno e
Horkheimer e da noção de esquematismo desenvolvida por Kant. Na imbricação destas
referências, o autor afirma que “[...] a semiformação não significa pura e simples falta de cultura,
mas o resultado de um processo planejado de supressão das possibilidades libertadoras até
mesmo da incultura [...]”171, pois a pseudoformação significa uma falsa formação, fundada em
falsos valores. Nesse sentido o autor completa seu pensamento com uma citação de Adorno, na
qual este afirma que “[...] aquilo que é semicompreendido e semi-experienciado não é o estágio
168 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – volume II. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987c, p.276. 169 DUARTE, Rodrigo. Esquematismo e semiformação. In: Educação e Sociedade: Dossiê “Adorno e a Educação”. Revista de Ciência da Educação. nº 83, v. 24 – Agosto 2003. São Paulo: Cortez; Campinas: Cedes, 2003, p. 441-457. 170 Aqui o termo semiformação é um sinônimo do anteriormente utilizado pseudoformação, mas devemos atentar que possuem significados diferentes. Enquanto semiformação indica uma formação incompleta e dá a entender que esta pode ser completada; o termo pseudoformação indica uma falsa formação, fundada em falsos valores. Esta diferença advém das possibilidades de tradução da palavra Halbbildung do alemão, Halb significa metade, meio e Bildung formação, cultura, educação, dando margem para a tradução semiformação. Mas o conceito empregado por Adorno se refere a uma formação falsa que se mostra aparentemente completa, portanto o termo pseudoformação, empregado na tradução espanhola do mesmo texto utilizado por Duarte, Theorie der Halbbildung, se mostra mais apropriado, e será mantido neste trabalho, somente sendo empregado semiformação nas citações retiradas do texto de Duarte. Ibid. A tradução dos termos do alemão foram retiradas do dicionário: TOCHTROP, Leonardo. Dicionário alemão-português. 9. ed.. São Paulo: Globo, 1996. 171 Ibid., p.445.
prévio da cultura, mas seu inimigo mortal.”172, ao contrário do que se poderia pensar, ou seja, que
um contato precário com a cultura seria melhor que nenhum. Porque esta pseudo-experiência não
é percebida como tal, ela é vivida pelo sujeito como experiência completa, este é o grande
engodo proporcionado pela indústria cultural – um dos mecanismos pelos quais a
pseudoformação se dá –; ao sujeito é oferecida pseudoformação pelos produtos da indústria
cultural, como se fosse a formação pela experiência com a cultura. Assim, as camadas menos
favorecidas da população a quem sempre foi negada a “cultura”, antes que pudessem se “formar”,
tornaram-se facilmente presas da ideologia, ou da indústria cultural, pois como afirma Duarte:
Todas as tentativas – mesmo as bem-intencionadas – de se superar essa situação
por meio de projetos de “educação popular” (Volksbildung) padecem, segundo
Adorno, da crença de que a tradicional exclusão do proletariado da cultura pode
ser revogada pela ‘mera’ cultura, isto é, sem uma subversão na própria ordem
burguesa, que pressupõe e determina aquela exclusão.173
Neste ponto, Duarte deixa entrever uma das origens da pseudoformação, pois a educação
destinada a essas camadas menos favorecidas sempre foi um projeto das camadas dominantes,
com o intuito de que os trabalhadores adquirissem o mínimo de educação necessária para
aumentar a produção, desenvolvendo as habilidades que possibilitassem à adaptação aos novos
meios de produção. Esse processo leva necessariamente a uma adaptação à ordem vigente, pois
como afirma Chochík:
[...] a mecanização crescente do trabalho não exige um alto grau de educação,
mas sim a adaptação aos procedimentos da máquina, e um simples treinamento
172 ADORNO, T. W. Teoria da Semiformação, p. 111 apud DUARTE, 2003, p. 445. 173 DUARTE, 2003, p. 443-444.
pode propiciar um desempenho adequado, o que leva a própria educação, tal
como pensada em séculos passados, a ser menosprezada.174
Levando, segundo Duarte, a uma:
[...] confirmação, vinda ‘de baixo’, da tendência predominante na sociedade
burguesa tardia: a supervalorização do conhecimento que possibilita a dominação
da natureza e o menosprezo de tudo o que se relaciona com o âmbito cultural,
sendo que tudo, no limite, é reduzido ao desempenho de tarefas técnicas.175
Assim podemos recordar a tradução dos conteúdos das obras de arte, literatura e filosofia
em idéias operacionais e referidas aos comportamentos, e podemos ainda perceber que o
conhecimento instrumental oferecido como ‘formação’ para a população, transpõe os limites
desta “educação popular” e atinge todo o sistema educacional e resulta na crise educacional que
hoje vivemos, como explica Chochík:
Assim a educação que se baliza neste século, pelas necessidades do mercado e
tenta preparar o aluno para ele, depara-se com um mercado que necessita cada vez
menos de trabalhadores devido à crescente automatização, os quais, por sua vez,
cada vez menos precisam de educação, além da básica, para se adaptar àquela. De
outro lado, aquilo que ainda resta da educação que não se refere ao mercado traz a
marca da inutilidade, que se associa à superficialidade com que é transmitida,
perdendo, assim a possibilidade de levar o aluno a refletir sobre a inutilidade que
marca a todos nós, uma vez que cada vez mais somos prescindíveis, isto é,
substituíveis.176
174 CROCHIK, 1997, p. 120. 175 DUARTE, 2003., p. 444. 176 CROCHIK, op. cit., p.124.
A pseudoformação é, na educação, a realização do que aconteceu com a cultura quando
de sua assimilação pela civilização, é a educação realizando com o indivíduo o que o aparato
prescreveu como o destino da cultura. Sendo que as duas esferas, a educação e a cultura, estão
intimamente relacionadas, os dois processos se encontram e completam, pois se a cultura se
transforma, na sociedade administrada, em veículo de adaptação, a educação não foge a este
destino.
Dentro deste contexto, uma questão importante a ser analisada se refere a própria
profissão de ensinar, isto porque, estando a educação inserida no aparato e com uma função
definida no processo civilizatório, é permeada pela lógica do sistema como qualquer outra
instituição, o que pode ser visto claramente com a transformação do ensino em negócio. Se a
civilização compra e vende cultura, os indivíduos compram e vendem conhecimentos.
Hoje, em vista da coisificação da profissão de ensinar que já se anuncia, entra em
cena uma certa reviravolta. É perceptível também uma mudança de estrutura em
relação ao professor universitário. Nos Estados Unidos, onde tais procedimentos
são muito mais pronunciados que aqui na Alemanha, já faz muito tempo que o
professor passou gradual, mas penso que irresistivelmente, a ser um vendedor de
conhecimentos, ao qual se lastima um pouco porque não é capaz de tirar melhor
proveito destes em seu próprio interesse material. [...] tal racionalidade-relativa-
aos-fins reduz o espírito a seu valor de troca, e isto é tão problemático como todo
o progresso dentro do “status quo”.177
Aqui, Adorno fala em uma época na qual a “coisificação da profissão de ensinar” ainda
estava se insinuando como possível; hoje, no entanto, percebemos este processo já estabelecido
em grande parte das instituições de ensino e disseminado por um grande número de professores e
177 ADORNO, 1995, p.91.
alunos. A transformação do conhecimento em mercadoria modifica drasticamente a relação
professor-aluno, e destes, individual e coletivamente, com o conhecimento; pois, tendo o
conhecimento como mercadoria, sua busca se resume à busca por um meio que possibilite algum
fim. O conhecimento deixa de ser um fim em si mesmo, como fomento da autonomia e da
liberdade, para se transformar em instrumento na luta pela sobrevivência. A pergunta pela
utilidade e aplicabilidade do conhecimento destrói a finalidade do conhecimento, pois a utilidade
que se busca é material e não espiritual (no sentido proposto por Adorno).
3.1 Formação de Professores
Pensando na coisificação da profissão de ensinar, encontramos no texto de Sonia Kramer
e Maria Luiza Oswald: Leitura e escrita de professores em três escolas de formação178, uma
análise que esclarece um dos aspectos do processo de coisificação. Enquanto o texto de Adorno
se refere à mercantilização dos conhecimentos, no texto de Kramer e Oswald encontramos a
descrição de uma situação dentro de cursos de formação de professores, onde o saber é
coisificado.
Neste trabalho de pesquisa, as autoras investigaram três escolas de formação de
professores – antigo magistério – no Rio de Janeiro, onde observaram as aulas das matérias
relacionadas à língua portuguesa e à alfabetização; e percebem que a língua portuguesa é
coisificada no processo de ensino. Em outras palavras, a escrita e a leitura são recebidas e
178 KRAMER, Sonia; OSWALD Maria Luiza. Leitura e escrita de professores em três escolas de formação. In: FREITAS, Maria Tereza e COSTA, Sérgio Roberto. Leitura e escrita na formação de professores. INEP/MUSA/UFJF, 2002.
transmitidas como ‘coisas’, que copiadas do quadro negro, sem mediação, ou repetidas em voz
alta na sala de aula, se transformam em palavras sem sentido, estranhas e deslocadas da realidade
dos alunos. A leitura e a escrita não são vividas como experiência pelos alunos, o que aprendem,
ou decoram, é o caráter instrumental da língua, a aquisição de pré-requisitos da técnica da leitura
e da escrita para propiciar às crianças a condição de leitoras, já que estas futuras professoras são
vistas como mero instrumento de alfabetismo179; reprodutoras de um método explicitamente
negado, mas implicitamente reproduzido.
Em um trecho da pesquisa no qual são analisadas falas de professoras do curso de
formação, as autoras ressaltam que uma professora “manda” que as alunas escrevam em seus
cadernos para não usar cópia e memorização para alfabetizar, o que é comentado por Kramer e
Oswald:
[...] a cópia compulsória e a memorização mecânica não tem sentido para
alfabetizar crianças, mas o que não serve para alfabetizar crianças é usado com as
futuras professoras que devem copiar em seus cadernos, para melhor memorizar,
o que não pode ser feito.180
Isso mostra que a professora entende o significado dessas atividades, mas não o bastante
para reestruturar sua prática. Perpetuando o modelo de memorização e cópia tão questionado e
criticado nas discussões sobre a educação, coisificando o próprio conhecimento transmitido às
futuras professoras.
Para esclarecer este processo, as autoras emprestam de Bourdieu o conceito de fetichismo
da língua, descrito como:
179 KRAMER; OSWALD, 2002, p.20-21. 180 Ibid.,p.15.
[...] um modo de se relacionar com a língua em que ela é percebida como coisa,
como algo que tem existência independente dos falantes, valendo por si mesma e
em si mesma e devendo orientar a atividade lingüística dos falantes, da qual, na
verdade, é, porém, resultante.181
A inversão ocasiona a morte da língua, que é “passada” como algo fechado e auto-
suficiente; quando na verdade a língua está em constante movimento e transformação, pois seus
significados se fazem na sua utilização. Sendo que as aulas analisadas se referiam às matérias de
alfabetização e língua portuguesa, a coisificação da língua, significa a coisificação do
conhecimento trabalhado nestas disciplinas, e da própria linguagem utilizada para transmiti-los.
Se pensarmos na coisificação e instrumentalização dos conhecimentos nos cursos de
formação de professores, e sua própria condição de instrumentos de ensino, não podemos esperar
que sua atuação das escolas aconteça de forma diferente.
Nesses termos, a coisificação da profissão de ensinar começa muito antes do professor
entrar na sala de aula, inicia no próprio processo de formação, com a coisificação dos
conhecimentos que não são aprendidos pela experiência, mas pela imposição; e é neste
distanciamento, entre o professor e os conhecimentos que ele deve transmitir, que podemos
localizar um dos elementos que se relaciona com a coisificação da profissão de ensinar.
Um outro ponto que pode ser levado em conta, de acordo com Chaves, é a:
[...] falta de possibilidades do curso de fornecer recursos para o professor/aluno
conhecer com rigor, profundidade e criticidade as condições histórico-sociais
concretas do processo educacional no qual vai atuar. Isto acaba propiciando uma
prática de ensino mecanicista e indiferente aos determinantes de ordem
181 KRAMER; OSWALD, 2002, p.16.
antropológica, política, social e cultural que permeiam o contexto da educação e
do ensino. [...] O contato do licenciando com as disciplinas pedagógicas é tão
limitado, na maioria dos cursos, que ele não pode desenvolver, de fato, uma
vivência formativa.182
Os conhecimentos trabalhados, uma vez coisificados, não têm relação com a realidade
vivida pelo futuro professor, que muitas vezes inicia a profissão antes de estar formado,
impossibilitando o que Chaves chamou de vivência formativa. Dessa forma, podemos completar
este pensamento com a análise de Pereira sobre os cursos de formação de professores, que trazem
um novo problema para o processo de formação, pois:
[...] aligeirar a formação dos profissionais da educação, em especial a do
professor, ao mesmo tempo que inviabiliza uma formação que articule o ensino, a
pesquisa e a extensão, é, [...] negar “à educação o estatuto epistemológico de
ciência, descaracterizando o profissional da educação como intelectual
responsável por uma área específica do conhecimento, atribuindo-se a ele uma
dimensão tarefeira, para o que não precisa se apropriar dos conteúdos da ciência e
da pesquisa pedagógica [...]”183
Pereira, juntamente com Kuenzer, afirmam que as poucas horas destinadas aos cursos de
formação de professores impossibilitam o contato dos alunos com conhecimentos atualizados, ao
mesmo tempo em que os poucos conhecimentos disponibilizados não são devidamente
182 CHAVES, Iduina Mont’Alverne. A Licenciatura: traços e marcas. In: CHAVES, I. M. A.; SILVA, W. C. da. (Orgs). Formação de professor: narrando, refletindo, intervindo. Rio de Janeiro: Quartet; Niterói: Intertexto, 1999, p. 85-106, p. 95. Neste trecho a autora analisa a proposta educacional de Severino para a formação de professores. (SEVERINO, A.J. Pensando em subsídios filosóficos para a formação do educador. In: Revista Humanidades, n. 43, 1997) 183 PEREIRA, Maria Clara Infante. O curso de pedagogia no processo de formação dos profissionais da educação: questões e perspectivas. In: CHAVES, I.M.A.; SILVA, W.C.da (Orgs). Formação de professor: narrando, refletindo, intervindo. Rio de Janeiro: Quartet; Niterói: Intertexto, 1999, p. 67-84, p. 68-9. (Neste trecho a autora cita Kuenzer,1998, p.11).
aprofundados. Assim, a tríade ensino, pesquisa e extensão é excluída do processo de formação, e
o campo específico da educação é descaracterizado.
Para aprofundar esta questão recorreremos ao estudo de Scheibe, que analisando as
políticas educacionais, lista vários conhecimentos indicados para garantir a formação dos
professores nas reformas educacionais em curso, mas afirma que estes conhecimentos trazem, de
forma acentuadamente pragmática, a competência profissional para o lugar central da formação
em lugar dos saberes docentes. Estes princípios, no entanto, estão subordinados a uma concepção
de racionalidade econômica, pois, é “mais barato” treinar os professores para um receituário
genérico e abstrato, do que lhes oferecer condições para fazerem cursos nos quais se articula
ensino com análise e pesquisa da realidade184, assim, afirma que:
[...] embora não ocorra a ninguém educar para a incompetência, é preciso
reconhecer neste conceito o significado que ele adquire por conta das novas
demandas do mundo do trabalho. [Assim, podemos identificar] a competência,
nas atuais circunstâncias, como fortemente vinculada à capacidade para resolver
um problema em uma situação dada, o que implica ação mensurável por
intermédio da aferição dos seus resultados imediatos. Tudo indica que o forte
apelo ao conceito de competência, que está posto em todas as diretrizes que
deverão nortear o ensino nas próximas décadas, vincula-se a uma concepção
produtivista e pragmatista na qual a educação é confundida com informação e
instrução, com a preparação para o trabalho, distanciando-se do seu significado
mais amplo de humanização, de formação para a cidadania.185
184 SCHEIBE, Leda. Formação dos profissionais da educação pós-LDB: vicissitudes e perspectivas. In: VEIGA, I. P. A.; AMARAL, A. L. (Orgs). Formação de professores: políticas e debates. Campinas, SP: Papirus, 2002, p.47-63, p.52-3. 185 Ibid., p. 53, Neste trecho, a autora faz referência ao estudo realizado por KUENZER, A.Z. Ensino médio: construindo uma proposta para os que vivem do trabalho. São Paulo: Cortez, 2000.
Ainda nesse sentido, encontramos no texto: Professor: tecnólogo do ensino ou agente
social, de Ilma Veiga, uma reflexão sobre a formação dos professores centrada nas diretrizes
curriculares para a formação inicial de professores da educação básica (lei nº 9.394/96), onde
propõe o termo tecnólogo do ensino caracterizando-o da seguinte forma:
a) está intimamente ligada a um projeto de sociedade globalizada e neoliberal e a
um modelo de formação que representa uma opção político-teórica;
b) parte de um projeto político educacional maior, de abrangência internacional,
com orientações advindas do Banco Mundial, com ênfase na chamada educação
por resultados, que estabelece padrões de rendimento, alicerçada nos chamados
modelos matemáticos, ficando o processo educacional reduzido a algumas
variações ligadas à relação custo/benefício;
c) está vinculada, explicitamente, à educação e produtividade, numa visão
puramente economicista.186
A formação dos professores fica assim, adequada às demandas do mercado globalizado;
este professor/tecnólogo é reprodutor dos conhecimentos acumulados pela humanidade, que, para
atingir os objetivos, utiliza estratégias de ensino, procurando o desempenho e a eficácia. Esta
formação centra-se no desenvolvimento de competências para o exercício técnico-profissional,
baseada no saber fazer, sendo os conhecimentos mobilizados a partir do que fazer.187 Esta
perspectiva é limitada porque prepara o prático, o tecnólogo, ou em outras palavras,
[...] aquele que faz mas não conhece os fundamentos do fazer, que se restringe ao
micro-universo escolar, esquecendo toda a relação com a realidade social mais
186 VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Professor: tecnólogo do ensino ou agente social?. In: VEIGA, I. P. A.; AMARAL, A. L. (Orgs). Formação de professores: políticas e debates. Campinas, SP: Papirus, 2002, p. 65-93, p.71-72. 187 Ibid., p.72.
ampla que, em última análise, influencia a escola e por ela é influenciada. Assim,
a competência se resume a um fazer prático.188
Ou seja, um conhecimento distanciado da prática, concebido como independente das
condições sociais às quais se destina. As competências, como núcleo da formação docente, são
operacionalizadas e referidas ao comportamento, o que as torna um receituário genérico e
abstrato, como designado por Scheibe. Para Veiga:
O conceito de competência, por seu caráter polissêmico, tem provocado múltiplas
interpretações. No contexto das diretrizes curriculares nacionais, a competência
está fortemente vinculada a experimentações na educação profissional mais do
que na educação básica escolar. Ela restringe-se à dimensão técnico-instrumental
tornando-se uma simples estratégia de adaptação às necessidades práticas e
imediatas do trabalho pedagógico.189
As competências aparecem assim como propostas de atuação para os professores. Veiga
seleciona algumas das competências enumeradas na LDB, para ressaltar seu caráter operacional,
por indicarem uma ação já que são iniciadas com verbos, e, sua generalidade por se dirigirem à
atuação profissional de qualquer nível de ensino. As competências são as seguintes:
- fazer uso de recursos da tecnologia da informação e da comunicação de forma a
orientar as possibilidades de aprendizagem dos alunos;
- utilizar-se dos conhecimentos para manter-se atualizados em relação aos
conteúdos de ensino e ao conhecimento pedagógico;
- analisar situações e relações interpessoais que ocorrem na escola, com o
distanciamento profissional necessário à sua compreensão.190
188 VEIGA, 2002, p.72-73. 189 Ibid., p.74. 190 Diretrizes Curriculares Nacionais, Brasil/CNE/CP, 2001, p.40-43 apud VEIGA, 2002, p.75.
Segundo a autora, as competências se referem à ordenação do conhecimento ou a critérios
para a seleção de estratégias para a organização do processo de ensino-aprendizagem, e mostram
um culto à eficiência e uma noção instrumental do currículo. “A relação
conhecimento/competências/habilidades básicas fortalece o caráter meramente instrumental dos
cursos de formação mediante a dissociação teoria/prática, ensino/pesquisa.”191 Ou seja, estes
cursos se organizam de forma a providenciar uma formação profissional aplicável, um “como
fazer”, não privilegiando a formação humana dos futuros docentes.
Mas essa visão da educação está em consonância com a estrutura da própria escola, que
além de se colocar como instituição responsável pelo processo civilizatório, se coloca como
responsável pela formação profissional dos alunos, ou seja, sua preparação para o mercado de
trabalho. Mas como indica Chochík, cada vez mais a formação humana é desnecessária para os
empregos ofertados, o que é ocasionado pela crescente mecanização do trabalho, para o qual um
simples treinamento é suficiente192, nesses termos, a função da escola, de “transmissora” da
cultura se torna ainda mais limitada, porque esta cultura, relativa à formação individual descrita
pelos ideais iluministas, aparece como inútil nesta realidade.
Pensando no papel da educação na sociedade, com relação à preparação dos alunos para o
mercado de trabalho e a inclusão das novas tecnologias no processo educativo, Vermelho aponta,
em análise dos documentos oficiais da educação brasileira (PCNs), que :
Não somente as novas formas de gerenciamento estão caminhando para uma
melhor adaptação do sujeito à sociedade, mas a educação tem sido chamada a
reforçar tal perspectiva trazendo, no bojo de sua proposta, o uso das mídias como
191 VEIGA, 2002, p.77. 192 CROCHIK, 1997, p. 120-121
recurso didático, ou seja, para que esse sujeito possa se apresentar ao mercado
com todas as qualidades necessárias para o estágio atual do processo econômico e
produtivo, é necessário o domínio de várias linguagens, uma capacidade
interpretativa de imagens, gráficos, signos, ícones, que saiba buscar a informação,
selecioná-las, relacioná-las para que ele possa desesperadamente encontrar
brechas no mercado, provavelmente na informalidade, para se manter competitivo
o suficiente para não ser descartado.193
Aqui Vermelho aponta a questão do uso das mídias na sala de aula como mais um veículo
de adaptação a uma nova condição sócio-econômica. Trazer os meios de comunicação para
dentro da sala de aula, como meio de formar os futuros trabalhadores, transforma a escola em um
setor do processo produtivo, que enreda os indivíduos desde o início de seu processo de
socialização. Na mesma pesquisa, porém, Vermelho aponta que a escola tem duas possibilidades
quanto a esta exigência do setor econômico: uma de acordo com o mercado que vê as novas
tecnologias dentro da escola como um benefício para os alunos em vista de seu futuro, e
considera que a simples inclusão das mídias na escola significa um progresso para o sistema
educacional; e outra, que percebe a escola como um ambiente possível para o desenvolvimento
da leitura crítica dos meios de comunicação, que leva em conta o caráter formativo das mídias, e,
portanto, antes de aceitar a simples inclusão da “tecnologia”, propõe que se repense o ambiente
escolar no sentido de questionar suas possibilidades quanto à crítica desses meios. Podemos
perceber que hoje se estabelece uma complexa trama de comunicação da qual a escola não pode
estar excluída, como afirma Barbero:
Ao reduzir a comunicação educativa à sua dimensão instrumental, isto é, ao uso
das mídias, o que se deixa de fora é justamente aquilo que é estratégico pensar: a
193 VERMELHO, 2003, p. 155.
inserção da escola nos processos complexos de comunicação da sociedade atual,
no ecossistema comunicativo que constitui o entorno educacional difuso e
descentrado produzido pelas mídias. Um entorno difuso de informações,
linguagens e saberes, e descentrado com relação aos dois centros – escola e livro
– que ainda organizam o sistema educativo vigente.194
Nesse sentido Belloni acrescenta:
A pesquisa sobre linguagens e potencialidades comunicacionais dos diferentes
meios tecnológicos deve avançar nas tecnicalidades sem perder de vista os
objetivos ou fins da ação educativa: é fundamental encarar as tecnologias como
ferramentas, como meios, o que inclui as máquinas, mas também os programas, e,
sobretudo, os saberes, instrumentos intelectuais e verbais. A introdução da
imagem e seus suportes técnicos (a tela da televisão e do computador) no
universo da palavra escrita suscita muitas interrogações ainda sem resposta.195
Os dois teóricos levantam a possibilidade da educação interagir com o mundo da
comunicação, em toda a sua complexidade atual, de forma a transformar a escola em um pólo de
discussão ativo, e não passivo como vem acontecendo hoje. E assim, na mistura das várias
linguagens que se articulam nos meios de comunicação, a escola poderia se abrir justamente para
a discussão em torno destas novas linguagens, para poder, a partir daí se colocar como pólo ativo.
Enquanto a escola mantiver o medo de trabalhar com as novas linguagens – não apenas
incluindo-as nas salas de aula, mas discutindo-as – a simples inclusão se coloca como uma
afirmação dos discursos que estas linguagens trazem fora da escola.
194 BARBERO, Jesús Martín-; REY, German. Exercícios do ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001, p. 59. 195 BELLONI, Maria Luiza. O que é mídia-educação. Campinas, S.P: Autores Associados, 2001 – (Coleção polêmicas do nosso tempo; 78), p. 28.
De acordo com a segunda perspectiva levantada por Vermelho, podemos retomar a
discussão sobre a indústria cultural e seu caráter adaptativo e formativo; se pensarmos que tanto
os alunos quanto os professores estão submetidos à sua influência, podemos prever que a simples
inclusão dos meios de comunicação na escola, não possibilita nenhuma melhoria no processo de
ensino-aprendizagem, pois como afirma Vermelho:
O fato de essa relação se dar em casa ou na escola, não muda a relação que esses
docentes estabelecem com essas mídias. Com isso, permanece inalterada a forma
de atuar subjetivamente nesses sujeitos, professores e alunos, e as mídias ou
qualquer atividade que venha a ser realizada com elas na escola reforçam, ao
invés de se contrapor, as experiências que esses sujeitos passam para além dos
muros escolares.196
Em outras palavras, para que os professores possam realizar um trabalho efetivo com as
mídias, no sentido de possibilitar um espaço de discussão crítica sobre elas com os alunos, é
necessário pensar na formação destes professores. Se eles estão inseridos na mecânica da
indústria cultural, eles são tão carentes de compreensão crítica quanto os alunos.
O pensamento crítico sobre as mídias, ou sobre a indústria cultural, requer conhecimentos
nos campos da arte, filosofia, sociologia e psicologia, pois é na imbricação destas áreas que se
encontram os elementos necessários para a compreensão da indústria cultural, dos indivíduos e da
sociedade. Portanto, pensar na formação dos professores, requer pensar na formação humanística
destes professores, pois como afirma Adorno: “[...] sempre é preferível um pouco de
esclarecimento, por insuficiente e só parcialmente eficaz que seja, do que nenhum.”197
196 VERMELHO, 2003, p.147-8. 197 ADORNO, 1995, p. 100.
Nesse sentido, é urgente reverter o processo de coisificação e instrumentalização dos
conhecimentos nos cursos de formação de professores, pois o seu resultado é um distanciamento
crescente da humanização e formação para a cidadania, não só dos futuros professores, mas
principalmente dos seus futuros alunos. Esta reversão é o que aparece nesta citação de Adorno,
quando fala da preferência por um pouco de esclarecimento, que nenhum.
3.2 As Concepções do Ensino da Arte
Retomando o eixo que perpassa todo este trabalho, podemos entrar na discussão sobre a
linguagem visual e sua atual importância para a educação na Sociedade das Imagens. Se a escola,
como acreditam vários teóricos da educação, deve possibilitar aos alunos uma melhor
compreensão da realidade e de si mesmos, a arte tem um papel fundamental para o
desenvolvimento destes conhecimentos; já que pensar a imagem é o conhecimento específico da
área das artes visuais.
A linguagem visual é complexa, e sua leitura depende de conhecimentos específicos e a
possibilidade de conviver com a sua polissemia, o que nem sempre é fácil já que pode suscitar
elementos inesperados quando trabalhada, depende portanto de uma postura não-autoritária e
não-impositiva, como explica Barbero, se referindo à resistência da escola para aceitar a
linguagem visual:
Daí a antiga e pertinaz desconfiança da escola para com a imagem, para com sua
incontrolável polissemia, que a converte no contrário do escrito, esse texto
controlado, de dentro, pela sintaxe e, de fora, pela identificação da claridade com
a univocidade. Não obstante, a escola buscará controlar a imagem a todo custo,
seja subordinando-a a tarefa de mera ilustração do texto escrito, seja
acompanhando-a de uma legenda que indique ao aluno o que diz a imagem.198
Esta desconfiança da escola para com a imagem aparece desde que aconteceram as
primeiras inclusões do ensino da arte na escola, tendo esta matéria sofrido várias modificações no
decurso de sua história. Os conteúdos trabalhados nas aulas de artes sempre tiveram um caráter
marginal e indefinido, o que contribuiu para a dificuldade que encontrou para sua inclusão no
currículo escolar, desde as primeiras tentativas. A necessidade de justificativas ainda está
presente no sistema educacional, pois somente se tornou obrigatória com a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional nº 9394/96, artigo 26 parágrafo 2º199, onde se lê: “O ensino da arte
constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a
promover o desenvolvimento cultural dos alunos.” 200 E, mesmo assim, merece críticas de vários
teóricos do ensino da arte (BARBOSA, 1994; FUSARI, 1999; TOURINHO201, 2002), que
atribuem à generalidade da lei o fato de que este ensino não vem sendo ofertado em todas as
séries, e ainda, é muitas vezes incluído em outras disciplinas, como literatura, que fica
responsável pelos conteúdos específicos da arte.
Nesse sentido, para situar o campo de conhecimento aqui abordado, o ensino da arte, é
importante retomar brevemente a história deste ensino no Brasil, por meio da qual, podemos
entender um pouco melhor sua atual condição nas escolas.
198 BARBERO, 2001, p.57. 199 ALVES, N.; VILLARDI (Org.). Múltiplas leituras na nova LDB: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96). Rio de janeiro: Qualitymark Dunya, 1997. 200 BRASIL, Cap. II, Art. 26 § 2º 201 TOURINHO, Irene. Transformações no ensino da arte: algumas questões para uma reflexão conjunta. In: BARBOSA, Ana Mae. Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002a, p.27-34
A inclusão do ensino da arte na escola acontece, no Brasil, no início do Século XIX, e
desde então, tem sofrido influência das correntes teóricas que guiaram a educação no país.
Vinculando a primeira fase do ensino da arte à Escola Tradicional, podemos perceber que o
ensino da arte se resume ao ensino de desenho – de observação, cópia, geométrico – e, seu
enfoque se liga ora à tendência liberal, ora à tendência positivista202. Quando ligado à primeira, as
aulas de desenho se voltam para o desenho de observação (cópia de desenhos feitos pelos
professores no quadro negro, ou da natureza), e noções do desenho geométrico, com a função de
preparar os alunos para o trabalho nas indústrias. Quando ligado à segunda, a ênfase recai no
desenho geométrico e geometria, como preparação para linguagem científica, e também em
função no trabalho nas indústrias. Este período sofre uma forte influência de experiências
realizadas na Europa e nos Estados Unidos, sendo nestes, a teoria que guiava as experiências,
diretamente ligada à produção industrial, principalmente de estampas e para o desenvolvimento
da maquinaria.
Como uma segunda fase, podemos perceber a influência da Escola Nova; conhecida no
Brasil na década de 1930, mas tendo efetivado sua influência nas escolas a partir da década de
1950203. Neste período as aulas de artes sofrem uma mudança drástica na concepção, com a
influência das correntes artísticas do expressionismo, surrealismo e outros movimentos das
vanguardas artísticas do início do século XX. Em contraposição explícita à metodologia da
Escola Tradicional, as aulas de artes passam a ser um espaço de desenvolvimento da criatividade
dos alunos e expressão de seus sentimentos, por uma experiência individual e subjetiva. Como
202 Detalhes deste período podem ser encontrados em BARBOSA, Ana Mae. Arte-educação no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2002b. 203 Detalhes sobre esta fase do ensino da arte em FUSARI, Maria F. de Rezende e; FERRAZ, Maria Heloísa C. de T. Arte na educação escolar. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001; FUSARI, Maria F. de Rezende e; FERRAZ, Maria Heloísa C. de T. Metodologia do ensino de arte. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1999.
diz o professor Saviani204, a pedagogia nova desviou a importância do intelecto para o
sentimento, do aspecto lógico para o psicológico, dos conteúdos cognitivos para os métodos ou
processos pedagógicos, do esforço para o interesse, do professor para o aluno, da disciplina para
a espontaneidade. Os educadores acreditavam que as crianças possuíam dentro de si um mundo
de expressões artísticas que deveriam ser expressas e nunca reprimidas. Os professores são
incentivadores do processo, não lhes cabendo qualquer julgamento do que é produzido pelos
alunos.
Um terceiro momento pode ser ligado à influência da Escola Tecnicista, a partir das
décadas de 1960 e 1970205, num momento em que a educação sofre uma crise, por ser
considerada insuficiente na formação profissional. Para resolver a situação, esta tendência propõe
uma escola mais eficiente, e que prepare indivíduos mais competentes e produtivos para o
mercado de trabalho. Visa provocar mudanças de comportamento nos alunos, através de
procedimentos e técnicas organizadas racionalmente. Na década de 1970, é assinada a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692/71206 que introduz a Educação Artística no
currículo escolar de 1º e 2º graus, mas com uma redação que dá à arte um caráter flutuante, sem
contornos, incluindo todas as modalidades (artes plásticas, dança, música, teatro, etc.) como
meras atividades artísticas que deveriam se adaptar às tendências e interesses da instituição.
Neste contexto a arte perde sua função na educação, e seu espaço é utilizado para a produção das
festas da escola e confecção de presentes para os dias comemorativos. Com a indefinição que
aparece na LDB, e a exigência de planos de ensino e organização de conteúdos, os professores de
204 FUSARI; FERRAZ, 2001, p.35. 205 Detalhes sobre esta fase do ensino da arte em: BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1994; BARBOSA, Ana Mae. Recorte e colagem: influência de John Dewey no ensino da arte no Brasil. São Paulo: Cortez, 1989. 206 BRASIL, parecer nº540/77, onde se lê: “não é uma matéria, mas uma área bastante generosa e sem contornos fixos, flutuando ao sabor das tendências e dos interesses.” apud FUSARI; FERRAZ, 2001, p. 41-42.
artes se vêem obrigados a utilizar os livros didáticos, o que limita as aulas a exercícios de
coordenação motora, e assimilação de elementos visuais básicos.
As aulas de arte hoje apresentam influências das três correntes apresentadas (tradicional,
escola nova, tecnicista) em maior ou menor grau, o que acarreta que as aulas de arte mostram-se
dicotomizadas, superficiais, enfatizando ora um saber “construir” artístico, ora um saber
expressar-se.207 A delimitação do papel específico da arte vem sendo pensada por inúmeros
teóricos que acreditam na importância da arte na escola, com objetivos mais democráticos e
críticos, com uma preocupação social de conscientização do aluno e redimensionamento histórico
do trabalho escolar.
Nesse sentido temos a influência da pedagogia libertadora, proposta por Paulo Freire, e,
principalmente, da pedagogia histórico-crítica dos conteúdos, como duas correntes que repensam
a educação no Brasil, incluídas na corrente progressista-realista. Esta influência começa a ser
sentida no ensino da arte na década de 1980208, quando acontecem as primeiras reuniões das
associações de professores de arte. Esta proposta tem no diálogo entre educador e educando o
principal procedimento de ensino, visando uma consciência crítica dos alunos com relação aos
fatos sociais dos quais participam.
O papel do professor é considerado imprescindível, pois é o mediador entre os
conhecimentos historicamente construídos e em construção, e, os alunos, tendo como função
fazer a reavaliação e ligação destes conteúdos com e a partir dos saberes dos alunos,
possibilitando que eles exerçam uma cidadania consciente, crítica e participante; o que implica
um trabalho pedagógico crítico do social, no sentido de transformá-lo.209
207 FUSARI; FERRAZ, 2001 208 BARBOSA, 1989. 209 FUSARI; FERRAZ, op. cit., p. 44-48.
Atualmente no ensino da arte, temos como continuadora da proposta progressista, a
teórica e professora Ana Mae Barbosa, que realiza um estudo sério e profundo do ensino da arte
no Brasil e propõe uma metodologia de ensino conhecida como Proposta Triangular, que integra
três facetas do conhecimento em arte: o fazer artístico, a crítica de arte, e a história da arte. A
articulação destes três pontos possibilita ao aluno uma aproximação com o universo da arte, ao
mesmo tempo em que a compreensão da linguagem visual como um meio pelo qual pode ler a
realidade à sua volta e expressar-se. As imagens dos meios de comunicação também são
trabalhadas na proposta triangular, que não visa a formação de artistas, mas de pessoas que
possam compreender e utilizar a linguagem visual210.
Essa proposta é de suma importância, pois se coloca como uma alternativa de trabalho
para os conteúdos da arte, elevando-a à condição de matéria específica dentro da escola, em
contraposição ao preconceito dirigido contra este campo do conhecimento, considerado inútil e
desnecessário para a formação e atuação profissionais.
Depois deste breve passeio pela história do ensino da arte, que visou uma aproximação
dos momentos mais significativos, e que se relacionam com as teorias gerais da educação,
podemos entrar na discussão sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino da arte e,
entender como o ensino da arte é regulamentado e prescrito pelos documentos oficiais da
educação brasileira, para assim, incluirmos esta perspectiva no âmbito deste estudo.
210 BARBOSA, 1994; BARBOSA, Ana Mae (org). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002a.
3.3 PCNs e o Ensino da Arte
Observando os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino da arte, percebe-se que a
proposta para o ensino da arte, e, portanto a introdução dos alunos às manifestações culturais da
humanidade, tem um enfoque na fruição da arte, o que significa um contato com as obras visando
a apreciação; mas em nenhum momento levanta a importância da arte como espaço de
questionamento da realidade, como formulado por Marcuse e desenvolvida pela visão
progressista para educação.
Na “Caracterização da área de Arte”, seu ensino é descrito de seguinte forma:
A educação em arte propicia o desenvolvimento do pensamento artístico e da
percepção estética, que caracterizam um modo próprio de ordenar e dar sentido à
experiência humana: o aluno desenvolve sua sensibilidade, percepção e
imaginação, tanto ao realizar formas artísticas quanto na ação de apreciar e
conhecer as formas produzidas por ele e pelos colegas, pela natureza e nas
diferentes culturas.211
Nesse trecho, o pensamento artístico e a percepção estética são definidos como o
desenvolvimento da sensibilidade, percepção e imaginação; faculdades que se desenvolvem na
fruição artística, mas não são incluídos no documento a possibilidade de compreensão crítica do
mundo e a relação da arte com a realidade, além de omitir os processos mentais de raciocínio e
pensamento indispensáveis à experiência da arte. Ao comparar os PCNs com os escritos de Ana
Mae Barbosa, percebemos que o ponto central de sua teoria que se expressa pelo momento da
211 BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: arte. – 2. ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p.19.
crítica de arte, tanto dos trabalhos produzidos pelos alunos, como das obras de arte, é eliminada,
se resumindo a “apreciar e conhecer” as formas trabalhadas. Este ponto é significativo e permeia
todo o documento.
No item “O Conhecimento Artístico como Reflexão” são levantados elementos que na
arte, se mostrariam como a “necessidade de investigar o campo artístico como atividade
humana.” O fenômeno artístico é visto: “como produto das culturas; como parte da História;
como estrutura formal na qual podem ser identificados elementos que compõem os trabalhos
artísticos e os princípios que regem sua combinação.”212 Mesmo considerando a arte como
produto das culturas, esse mesmo ponto é levantado em outros momentos, com a ênfase de que o
aluno deve ser capaz de identificar elementos artísticos de outras culturas, respeitá-los, perceber
as diferenças e semelhanças com sua própria cultura, “com interesse e curiosidade”. Podemos ler,
nesse trecho, que a arte se coloca como uma esfera fechada dentro das várias culturas, e não o
espaço no qual os indivíduos das diferentes culturas refletem sobre suas sociedades e suas vidas,
propondo questões sobre sua situação, denunciando problemas, contrapondo-se ao discurso
oficial. Assim, mesmo que o título coloque o conhecimento artístico como reflexão, esta não
atinge a reflexão crítica sobre a sociedade e sobre si mesmo, elementos indissociáveis do trabalho
artístico, tanto na produção do aluno como no contato com as produções artísticas da
humanidade.
Nos “Objetivos Gerais de Arte para o Ensino Fundamental” o objetivo do ensino da arte é
assim colocado:
No transcorrer do ensino fundamental, o aluno poderá desenvolver sua
competência estética e artística nas diversas modalidades da área de Arte (Artes
212 BRASIL, 2000.p. 43.
Visuais, Dança, Música, Teatro), tanto para produzir trabalhos pessoais e grupais
quanto para que possa, progressivamente, apreciar, desfrutar, valorizar e julgar os
bens artísticos de distintos povos e culturas produzidos ao longo da história e na
contemporaneidade.213
Também nos objetivos que se referem à arte, não se fala que o entendimento da arte pode
possibilitar uma melhor compreensão da realidade, ou como os vários artistas no decorrer da
história perceberam o momento no qual viviam; nem mesmo, que a partir da leitura dos próprios
trabalhos e dos trabalhos dos colegas, a criança pode adquirir o vocabulário específico da arte e
compreender os sentimentos que expressou, usando a arte como um espaço de compreensão
individual e da realidade; os objetivos se referem à experiência do aluno com arte, no fazer e no
fruir, e não no compreender.
No item “Conteúdos Gerais da Arte” a arte é trabalhada como:
[...] expressão e comunicação dos indivíduos; elementos básicos das formas
artísticas, modos de articulação formal, técnicas, materiais e procedimentos na
criação em arte; produtores em arte: vidas, épocas e produtos em conexões;
diversidade das formas de arte e concepções estéticas da cultura regional,
nacional e internacional: produções, reproduções e suas histórias; a arte na
sociedade, considerando os produtores em arte, as produções e suas formas de
documentação, preservação e divulgação em diferentes culturas e momentos
históricos.214
O enfoque dos PCNs para arte se coloca de forma a contemplar a experiência estética do
aluno no fazer e no fruir arte, e, ainda usar a arte como elemento de caracterização de culturas e
épocas históricas, mas o texto é muito vago quanto ao papel da arte para a reflexão sobre a
213 BRASIL, 2000.p. 53. 214 BRASIL, 2000.p. 57.
realidade, fala-se em criticidade, mas sem dizer sobre o que ou como se dá. Os elementos
oposicionais da cultura são descartados nessa concepção do ensino da arte. Assim, podemos ver
nos PCNs, as aulas de artes como veículo de adaptação, pois a possibilidade de levantar
questionamentos sobre a realidade vigente, que é o que favorece uma mudança de consciência, é
anulada no contato estabelecido pelos parâmetros que programam um contato somente de fruição.
A experiência estética com a arte não proporciona somente o prazer da fruição, mas a
possibilidade da construção do conhecimento; pois por mais que a cultura tenha se transformado
em veículo de adaptação, ela pode ser veículo de transformação da consciência. Arte é uma
construção simbólica, uma relação entre o sujeito e o real, e se a arte tem uma função, é a de
diminuir a distância entre as pessoas e a realidade, questionar e aprofundar a compreensão de
mundo, possibilitar a percepção de outras formas possíveis de representação do real, que muitas
vezes se coloca em contraposição à representação oficial.
Como fala Marcuse:
Toda autêntica obra de literatura, arte, música e filosofia fala uma metalinguagem
que transmite outros fatos e condições do que aqueles que são acessíveis à
linguagem orientando o comportamento – nisso consiste sua substância
irredutível e intraduzível.215
Assim, Marcuse levanta as idéias não-operacionais da arte, que só podem ser alcançadas
por meio de reflexões profundas, que estão ausentes nas orientações dadas pelos PCNs, pois
quando apontam para a apreciação das formas estéticas, se referem a uma identificação dos
elementos formais básicos e a uma apreciação da sua aparência. A aparência da obra de arte foi o
215 MARCUSE, 1998, p.160.
que sobrou quando a cultura foi assimilada pela civilização, pois é na identidade forma-conteúdo
que os elementos oposicionais das obras de arte podem ser percebidos.
Além disso, nos dias de hoje, a apropriação da cultura não se dá mais como a
possibilidade da reflexão do universal pelo particular, que pode levar a
perspectivas distintas das construídas até então, mas como apropriação de um
bem de consumo. A aquisição da cultura não é pensada como um elemento
necessário à formação do cidadão esclarecido, mas como marca da
excentricidade, de inutilidade.216
Como levanta Chochík, a apropriação da cultura não mais possibilita que o indivíduo
reflita sobre o mundo, não é mais um processo de renovação do pensamento pelo
questionamento, pela reflexão, pela busca de novas idéias, pela transformação, pela
transcendência ao existente.
O contato com diferentes linguagens, na apropriação e na leitura, é fundamental nos dias
de hoje, momento no qual estas se multiplicam e tomam parte na vida das pessoas. Com as
discussões realizadas, podemos perceber que o ensino da arte, quando vinculado ao objetivo de
possibilitar uma compreensão crítica da linguagem visual, se direciona para a abertura da
oportunidade de ampliação da compreensão da realidade.
216 CROCHIK, 1997, p.120-121.
3.4 Letramento como o Princípio da Leitura do Mundo
As discussões feitas até agora propuseram uma reflexão sobre uma leitura de mundo que
ultrapasse as barreiras impostas pela civilização tecnológica, e que, portanto, permita aos
indivíduos um espaço dentro da sociedade para o pensamento crítico sobre ela. O intuito é
discorrer sobre a educação, a formação, como um meio de se atingir a autonomia e a liberdade.
Para que uma mudança nesse sentido aconteça, todas as fases da educação formal devem
ter a autonomia e a emancipação como meta, e ainda possibilitar que essa formação ultrapasse os
muros da escola e realmente se constitua em uma formação sólida para os indivíduos.
Levando se em conta a impossibilidade de abordar todas as fases da educação em um
único trabalho, dado que cada uma tem suas peculiaridades e se torna um universo com
características específicas, optou-se por abordar as séries iniciais da educação fundamental, ou
seja, o período de alfabetização. Esta escolha se deu em função de ser esta a fase na qual as
crianças têm seu primeiro contato com o “mundo dos adultos”, no que se refere ao conhecimento
historicamente acumulado; e é uma fase de significativa importância para o desenvolvimento da
capacidade de leitura do mundo.
Buscando os termos que designam esta fase, encontramos nos textos de Magda Soares,
Letramento217, que vem se colocar como o antônimo de analfabetismo, e um sinônimo para
alfabetizar, mas com o significado ampliado como veremos mais adiante; assim, o termo
Letramento tem uma importância capital para este estudo.
Em um texto posterior, Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura, a
autora abre o conceito de letramento, propondo seu plural: 217 SOARES, Magda. Letramento: um tema e três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
Na verdade, essa necessidade de pluralização da palavra letramento e, portanto,
do fenômeno que ela designa já vem sendo reconhecida internacionalmente, para
designar diferentes efeitos cognitivos, culturais e sociais em função ora dos
contextos de interação com a palavra escrita, ora em função de variadas e
múltiplas formas de interação com o mundo – não só a palavra escrita, mas
também a comunicação visual, auditiva, espacial.218
Portanto, partiremos da discussão sobre letramento em relação à aquisição das habilidades
da escrita e da leitura, para em um segundo momento abrirmos este conceito para a linguagem
visual, utilizando os pressupostos levantados pela autora, para abordarmos a linguagem visual
como fundamental para a interação com o mundo hoje.
No livro Letramento: um tema em três gêneros, a professora Magda Soares faz um estudo
sobre a origem do termo e suas implicações para a educação. Letramento é uma versão
portuguesa para a palavra inglesa “Literacy [letramento], que se refere ao estado ou condição de
ser literate [letrado], que é definido como educado, especialmente apto a ler e escrever.”219 Por
ser uma palavra nova no vocabulário brasileiro, consta em poucos dicionários com esta
acepção.220
Letramento se diferencia de Alfabetização, pois, além da aquisição das habilidades
técnicas de leitura e escrita, engloba a prática social destas habilidades dentro de um processo
contínuo, que abarca desde as primeiras fases de aquisição de técnicas e habilidades, até níveis
avançados e indefinidos como, por exemplo, na elaboração de uma tese de doutorado.
218 SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. In: Educação e Sociedade [online]. dez. 2002, vol.23, no.81 [citado 22 Setembro 2003], p.143-160. Disponível em http://www.scielo.br/scielo 219 Id., 1998, p.17. 220 O Dicionário Houaiss define Letramento: “2. Rubrica: pedagogia. m.q. alfabetização ('processo'); 3. (dez.1980) Rubrica: pedagogia. Conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito.” Instituto Antonio Houaiss. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Editora Objetiva Ltda.. Versão 1.0, dez, 2001.
O surgimento desta palavra, para designar “[...] o estado ou a condição que assume aquele
que aprende a ler e escrever.”221, está relacionado, para a autora, com uma nova situação social.
Esta diferença, ou nova situação e demanda social do ler e do escrever, foi constatada por ela na
análise da alteração do critério utilizado pelo Censo (2000) para verificação do número de
analfabetos e alfabetizados. O critério utilizado durante muito tempo, o de saber ler e escrever o
próprio nome, foi substituído pelo: “saber ler e escrever um bilhete simples no idioma que
conhecia.”222, o que designa uma prática social da habilidade de ler e escrever, e que, para a
autora, já demonstra a busca pela avaliação do nível de letramento, ou seja, pretende verificar
quantas pessoas vivem em estado ou condição de quem sabe ler e escrever.
Portanto, Letramento vem se colocar como o oposto da palavra Analfabetismo – termo
antigo no vocabulário da língua portuguesa – que, como “[...] define o Novo Dicionário Aurélio
da Língua Portuguesa, é o ‘estado ou condição de analfabeto’, e analfabeto é o ‘que não sabe ler
e escrever’, ou seja, é o que vive no estado ou condição de quem não sabe ler e escrever [...]”223.
A esta definição, Soares acrescenta: “[...] o analfabeto é aquele que não pode exercer em toda a
sua plenitude os seus direitos de cidadão, é aquele que a sociedade marginaliza, é aquele que não
tem acesso aos bens culturais de sociedades letradas e, mais que isso, grafocêntricas [...]”224.
Condição experienciada por grande parte da população brasileira.
A palavra que designa o oposto de analfabeto não era necessária em uma sociedade na
qual a grande maioria da população não possuía as habilidades básicas de escrita e leitura.
221 SOARES, 1998, p.17. 222 Ibid., p. 21; INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, In: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/educacao/notas.pdf, acessado no dia 2 de junho de 2004. 223 SOARES, op. cit., p. 16. 224 Ibid., p. 20.
Só recentemente esse oposto tornou-se necessário, porque só recentemente
passamos a enfrentar esta nova realidade social em que não basta apenas saber ler
e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder
às exigências de leitura e escrita que a sociedade faz continuamente – daí o
recente surgimento do termo letramento [...].225
Esta mudança na compreensão do ler e do escrever, portanto, demonstra uma nova
condição social, pois o aumento do número de pessoas que sabem ler e escrever, requer uma
diferenciação dos graus deste ler e escrever e de suas funções sociais.
Implícita no conceito de Letramento está a idéia de que a leitura e a escrita afetam o
estado ou a condição de quem adquire esta habilidade e envolve-se em suas práticas sociais; ou
seja, mudanças de cunho social, cultural, político, econômico, cognitivo, lingüístico, são
percebidas quando há uma passagem do estado de analfabeto para o de letrado.226
“Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o
estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se
apropriado da escrita.”227
Nos estudo sobre Letramento, existem linhas de pesquisa que enfatizam pontos diferentes
no processo de letramento; em primeiro lugar, há a diferenciação entre os que pensam na
dimensão individual e os que pensam na dimensão social do letramento.
Dentro da dimensão individual, discute-se a aquisição de habilidades específicas ligadas à
leitura e à escrita. Uma questão que a autora levanta, é o fato de que os teóricos da dimensão
individual, dificilmente levam em conta as diferenças e a complementaridade entre a leitura e a
escrita, ao mesmo tempo. O conjunto de habilidades que envolvem a aquisição da capacidade de
225 SOARES, 1998, p. 20. 226 Ibid., p. 18. 227 Ibid., p. 18.
escrita é muito diferente do conjunto de habilidades que envolvem a aquisição da capacidade de
leitura228, requerendo atenções especiais para cada uma. Mas, ao mesmo tempo, letramento é
constituído por ambos os processos indissociavelmente. Neste sentido, a busca por uma definição
do conceito de letramento se torna difícil, pois como definir quais habilidades específicas de
leitura e escrita um indivíduo deve possuir para ser considerado letrado? Ainda pensando o
letramento como um conjunto de habilidades adquiridas gradualmente dentro de um contínuo,
existem vários tipos e níveis de letramento, o que dificulta o estabelecimento de uma linha
divisória entre um indivíduo letrado de um indivíduo iletrado.229
Na dimensão social, o que é considerado pelos teóricos, “é o que as pessoas fazem com as
habilidades de leitura e de escrita em um contexto específico, e como estas habilidades se
relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais.”230 Nesta dimensão existem as
versões liberal e revolucionária. Na perspectiva liberal, foi cunhado o termo “letramento
funcional” para designar o conjunto e o uso das habilidades mínimas necessárias para que o
indivíduo “funcione” adequadamente no contexto social. Ou seja, letramento funcional, significa
“adaptação”, o que enfatiza seu valor para a sobrevivência:
[...] sendo o uso das habilidades de leitura e escrita para o funcionamento e a
participação adequados na sociedade, e para o sucesso pessoal, o letramento é
considerado como responsável por produzir resultados importantes:
desenvolvimento cognitivo e econômico, mobilidade social, progresso
profissional, cidadania [...] 231
228 “A leitura, do ponto de vista da dimensão individual de letramento (a leitura como ‘tecnologia’), é um conjunto de habilidades lingüísticas e psicológicas, que se estendem desde a habilidade de decodificar palavras escritas até a capacidade de compreender textos escritos.” SOARES, 1998, p. 68. 229 Ibid., p. 70-1. 230 Ibid., p. 72. 231 Ibid., p. 72-3.
A afirmação de ascensão social, cognitiva e econômica como decorrente do letramento
vem sendo refutada por inúmeros estudos.232
Para os teóricos da corrente Funcional, o letramento tem uma função instrumental, e
objetiva a adaptação do indivíduo à sociedade; então, o nível de letramento deve ser medido pelo
mínimo necessário para que o indivíduo esteja apto a integrar o mercado de trabalho. De acordo
com esta tendência, o letramento não objetiva a leitura crítica do mundo, é mais um veículo de
adaptação.
Em contraste com a versão liberal, a perspectiva revolucionária, considera que o
[...] letramento não pode ser considerado um ‘instrumento’ neutro a ser usado nas
práticas sociais quando exigido, mas é essencialmente um conjunto de práticas
socialmente construídas que envolvem a leitura e a escrita, geradas por processos
sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições e
formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais.233
Nesta concepção ainda, letramento é conectado ao uso que se faz da leitura e da escrita,
em que contextos são requisitados, e dentro deles como são utilizados, ou seja, que formas
assumem em determinados contextos sociais. O conceito de letramento é vinculado ao conteúdo
utilizado para adquiri-lo e transmiti-lo, portanto
[...] o que letramento é depende essencialmente de como a leitura e a escrita são
concebidas e praticadas em determinado contexto social; letramento é um
conjunto de práticas de leitura e escrita que resultam de uma concepção de o quê,
como, quando e por quê ler e escrever.234
232 SOARES, 1998, p. 72-3. 233 Ibid., p. 74-5. 234 Ibid., p. 75.
Estes teóricos defendem que o letramento, no modo como vem sendo feito hoje, é um
instrumento ideológico de reprodução da situação social, e muitos, como Paulo Freire, afirmam o
poder revolucionário do letramento, como um meio de tomar consciência da realidade e
transformá-la.235 Nesse sentido, a concepção social do letramento entra em concordância com a
idéia central deste texto, que pensa a educação como um meio pelo qual o indivíduo pode
desenvolver um pensamento critico sobre a sua realidade, com o objetivo de questioná-la e assim
buscar sua transformação.
Um ponto levantado pela autora, que é muito interessante, se refere ao fato de que uma
pessoa pode ser analfabeta, ou seja, não possuir a habilidade do ler e do escrever, e, no entanto,
ser letrada (no sentido que adquire quando é vinculada a letramento). Pois o letramento se refere
também ao uso social da leitura e da escrita, o que significa que, se esta pessoa pede para
alfabetizados lerem jornais, cartas que tenha recebido, ou dite cartas e bilhetes para que outros os
escrevam, esta pessoa pode ser considerada letrada, pois tem um envolvimento social com o
universo do ler e do escrever.
Da mesma forma, a criança que ainda não se alfabetizou, mas já folheia livros,
finge lê-los, brinca de escrever, ouve histórias que lhe são lidas, está rodeada de
material escrito e percebe seu uso e função, essa criança é ainda “analfabeta”,
porque não aprendeu a ler e a escrever, mas já penetrou no mundo do letramento,
já é de certa forma letrada.236
Isso significa que o letramento se refere ao envolvimento social do indivíduo com a
escrita e com a leitura como meio para ler a realidade a sua volta e para compreendê-la; assim, é
neste ponto que podemos pluralizar e aproximar o conceito de letramento com a capacidade de
235 SOARES, 1998, p. 76. 236 Ibid., p. 24.
leitura de imagens em nossa sociedade, como aspectos convergentes para o processo de formação
para a autonomia.
O conceito de letramento, que envolve a leitura do mundo, mesmo que se referindo ao
texto escrito, se mostra como o início de uma abertura da escola para as transformações nos
modos de ler, e para a pluralidade de textos que aparecem na sociedade contemporânea. Pois
como afirmou Soares, hoje, devemos pensar no plural do termo letramento, de forma a
contemplar as múltiplas formas de interação com o mundo, pois como afirma Barbero:
[...] as transformações nos modos como circula o saber constituem uma das mais
profundas mutações que uma sociedade pode sofrer. Disperso e fragmentado, é
como o saber escapa dos lugares sagrados, que antes o continham e legitimavam,
e das figuras sociais, que o detinham e administravam. A atual diversificação e
difusão do saber constitui, portanto, um dos reptos mais sérios que o mundo da
comunicação apresenta ao sistema educativo.237
Assim, o saber hoje circula das mais diferentes formas, e pode ser produzido e apreendido
por meio das mais diferentes linguagens; é pensando na importância que atualmente a linguagem
visual assume em nossa sociedade, que trazemos a necessidade da sua compreensão.
Segundo Soares, são também consideradas letradas as pessoas que não possuem as
habilidades básicas do ler e do escrever, mas que mantém um contato com o universo da
linguagem escrita; quando esta situação é transposta a linguagem visual, este processo assume
dois aspectos: por um lado, todas as pessoas que vivem em nossa sociedade têm contato com a
linguagem visual e estabelecem algum tipo de comunicação com ela; por outro, esta mesma
linguagem é complexa e possibilita vários níveis de compreensão, e se torna veículo de
conteúdos, que num contato ingênuo, são absorvidas inconscientemente. Nesse sentido, mostra-se 237 BARBERO, 2001, p.59.
importante pensarmos como seria uma alfabetização da linguagem visual, e como seria uma
pessoa letrada nesta linguagem, pensando este processo como um continuo, assim como é
percebido no desenvolvimento da a linguagem escrita, que vai desde os primeiros contatos de
aquisição das habilidades de ler e escrever até níveis avançados e indefinidos como, por exemplo,
na elaboração de uma tese de doutorado.
3.5 Letramento e Linguagem Visual para a Leitura do Mundo na Sociedade das Imagens
Todas as pessoas em nossa sociedade têm contato com imagens diariamente, e as
compreendem de alguma forma. A linguagem visual se apresenta e provoca leituras,
independentemente dos conhecimentos sobre a linguagem visual que a pessoa possa ter, ao
contrário da linguagem escrita que depende de conhecimentos específicos para o acesso às
informações. O que se diferencia, no contato com a linguagem visual, é a forma como cada
pessoa a compreende e a profundidade com que acontece esta leitura.
Para fazer um paralelo entre o letramento, como discutido anteriormente, e o que seria um
“letramento” na linguagem visual, faz-se necessário definir neste universo, os termos utilizados
por Soares238 para discutir o letramento. Em primeiro lugar, uma analogia com o analfabetismo;
em segundo, o que seria um alfabetizado em imagens; em terceiro a definição do estado ou
condição de letrado em linguagem visual; e por último, como seria a prática social com a
linguagem visual.
238 SOARES, 1998.
O analfabetismo visual não pode ser visto como o lingüístico, pois palavras para um
analfabeto são criptogramas indecifráveis, já no caso das imagens, todos que vêem, captam
alguma coisa da linguagem visual – muitas vezes mais do que imaginam. Portanto o
analfabetismo visual se refere ao fato de as pessoas verem as imagens, absorverem seus
conteúdos, e não possuírem as ferramentas necessárias para interpretar estes conteúdos e entender
que mensagens transmitem. O que significa absorver inconscientemente os conteúdos trazidos
pelas imagens – sem saber que podem ser interpretadas. O analfabeto visual recebe
desatentamente as imagens, deixa que seu olho pouse sobre elas, mas não conhece os
mecanismos de leitura e decodificação da imagem.
Como seria um alfabetizado em imagens? A alfabetização em imagens se refere aos
primeiros contatos com a decodificação das imagens, de uma forma diferenciada deste contato
diário no qual as imagens são toleradas desatentamente. O que significa entender que as imagens
transmitem informações que não percebemos, e que podemos perceber, filtrar, selecionar, ou
melhor, interagir ativamente com elas. Estas imagens não são simplesmente bonitas, chamativas,
atraentes, sedutoras, mas são utilizadas dessa forma para que este contato seja agradável, e junto
com isso impor uma certa visão de mundo. A partir disso o alfabetizado passa a saber que as
imagens não são “inofensivas”, são uma linguagem poderosa – por esse motivo, largamente
utilizada – que atinge a todos indistintamente e atua diretamente no inconsciente onde formamos
nossa subjetividade e nosso jeito de nos relacionarmos com o mundo. Assim, um alfabetizado em
imagens conhece os mecanismos básicos de leitura e decodificação da linguagem visual.
Como seria a condição ou estado de letrado na linguagem visual? Seria fruto deste
primeiro contato, quando a pessoa já percebe que as imagens trazem mensagens, e tem condições
de interagir ativamente com elas. Para além disso, o letrado em linguagem visual tem a
possibilidade de apreender criticamente estas mensagens, com a capacidade de decidir quais
conteúdos quer reter. A partir do julgamento das imagens, que agora é capaz de realizar, esta
pessoa pode passar a saber usar as imagens transmitidas para uma melhor compreensão dos
mecanismos de manutenção da atual situação social, presentes nas imagens. O letrado em
linguagem visual tem a possibilidade de utilizar as imagens para compreender como sua posição
social é representada e qual a intencionalidade contida nesta forma de representação, o que
possibilita uma dissociação entre o estereótipo veiculado pela mídia e a experiência real dessa
condição. Ao atingir este nível de compreensão o indivíduo se torna capaz de desnaturalizar esta
forma de representação, entendendo que esta é formada a partir de uma visão de mundo
específica, que normalmente reproduz a ordem social. Se ficamos sabendo dos fatos que ocorrem
no mundo através dos meios de comunicação, que são na sua maioria meios visuais, ler as
imagens transmitidas por eles é uma forma de leitura do mundo. O letrado em imagens seria
aquele que possui os mecanismos de leitura da imagem, e pode utilizar estes conhecimentos para
ler a realidade a sua volta e compreendê-la.
A prática social com a linguagem visual surge como uma nova etapa na compreensão
desta linguagem, e se caracteriza pela interferência na produção de imagens e conseqüentemente
pela transmissão de uma visão de mundo diferenciada. A partir da leitura crítica da imagem do
mundo veiculada pelos meios de comunicação, a prática social implicaria na utilização desta
compreensão para a produção, estabelecendo um diálogo com a produção oficial, e produzindo
uma interferência que descentrasse a emissão de mensagens. A prática social com a linguagem
visual se coloca como o reverso do analfabetismo, por se caracterizar, não somente pelo aumento
da consciência com relação às informações contidas nas imagens, mas ao mesmo tempo, pela
interferência na produção de imagens. A apropriação da linguagem visual pela sua produção
crítica se coloca em contraposição a sua utilização pelo aparato, dentro do qual esta se torna um
veículo de adaptação.
Nesse sentido, podemos ver a compreensão da linguagem visual como voltada para a
compreensão e apropriação da cultura visual, que, segundo Hernández, refere-se a todas as
produções visuais da humanidade, historicamente acumuladas e em produção. Assim, este teórico
propõe o contato com a arte como uma das possibilidades de ampliação da compreensão da
cultura visual:
[...] a arte na educação para a compreensão tem como finalidade evidenciar a
trajetória percorrida pelos olhares em torno das representações visuais das
diferentes culturas para confrontar criticamente os estudantes com elas. Trata-se
de expor os estudantes não só ao conhecimento formal, conceitual e prático em
relação às Artes, mas também à sua consideração como parte da cultura visual de
diferentes povos e sociedades. Esse enfoque compreensivo trata de favorecer
neles e nelas uma atitude reconstrutiva, ou seja, de autoconsciência de sua própria
experiência em relação às obras, aos artefatos, aos temas ou aos problemas que
trabalham na sala de aula (ou fora dela).239
Aqui, Hernándes coloca o contato com a arte, como meio para desenvolver uma atitude
crítica frente ao mundo, pensando na “trajetória percorrida pelos olhares” como as diversas
visões de mundo que se cristalizaram em obras de arte no decorrer do tempo. O autor não toma a
experiência com a arte como uma experiência de simples apreciação das obras, como indicado
nos PCNs, mas toma as obras como documentos históricos legítimos, e assim, desmistifica a
fruição, afirmando-a como um processo de questionamento frente às obras.
Uma outra perspectiva da educação para a compreensão da cultura visual, como proposta
por Hernández, relacionada com a experiência estética, pode ser encontrada no pensamento de
Lanier:
239 HERNÁNDEZ, 2000, p. 50.
O primeiro ponto é que a experiência estética em geral, incluindo aqui um de seus
aspectos particulares, a experiência estética visual, já é desfrutada pelo indivíduo
antes que ele entre para a escola. Portanto, não a introduzimos para nossos alunos
mas a incrementamos a partir de algo que já está lá. O segundo, é que as artes
plásticas, que entre outros estímulos, provocam a experiência estética visual,
devem incluir hoje muito mais que o óleo em moldura dourada e o mármore sobre
o pedestal dos museus. Devem incluir artesanato e arte popular, em particular, e a
mídia eletrônica como cinema e televisão.240
Vincent Lanier aponta, em concordância com Hernándes, que a experiência com a arte
tem como objetivo uma compreensão aprofundada da realidade, e, portanto, não deve incluir no
seu currículo somente as obras de arte historicamente reconhecidas – que ainda assim, são
fundamentais para o processo – mas procura trazer a compreensão artística para o cotidiano dos
alunos; ou seja, que eles possam usar os conhecimentos adquiridos nas aulas de artes para ler seu
próprio universo. Esta leitura se dá pela apreensão de um vocabulário que se constrói pelo
contato com as mais variadas imagens, pois como afirma Barbosa:
O pensamento presentacional das artes plásticas capta e processa informação
através da imagem. A produção de arte faz a criança pensar inteligentemente
acerca da criação de imagens visuais, mas somente a produção não é suficiente
para a leitura e o julgamento de qualidade das imagens produzidas por artistas ou
do mundo cotidiano que nos cerca. (...) Temos que alfabetizar para a leitura da
imagem. Através da leitura das obras de artes plásticas estaremos preparando a
criança para a decodificação da gramática visual da imagem fixa e, através da
leitura do cinema e da televisão, a preparamos para aprender a gramática da
imagem em movimento.241
240 LANIER, Vicent. Devolvendo arte à arte-educação. In: BARBOSA, A. M. Arte-educação: leitura no subsolo. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1999, p. 43-55, p. 46 241 BARBOSA, 1994, p. 34.
Ana Mae Barbosa se refere aqui, à construção do pensamento visual relacionado com a
prática artística e a leitura de imagens, que articulados com a história da arte compõem a Proposta
Triangular, por ela formulada. Com estes três pontos, acredita-se que o aluno esteja habilitado a
entender: os mecanismos de construção da arte, pelo fazer arte; seja capaz de fazer julgamentos
críticos e estéticos, pela leitura de sua própria produção e, de qualquer imagem com a qual tenha
contato; e por fim, com a história da arte, possa contextualizar as produções artísticas e conhecer
o desenvolvimento da arte através do tempo, ou seja, entrar em contato com o conhecimento
historicamente construído da arte e assim entender melhor o pensamento de quem produziu a
obra de arte, o que significou para o momento histórico no qual foi produzida, e, que significados
assume em nosso momento histórico.
A proposta triangular se propõe a possibilitar que os alunos desenvolvam o pensamento
crítico sobre as imagens, pela constituição de um vocabulário específico que possibilite falar
sobre arte, e, portanto decodificar a gramática visual, com a qual as imagens são construídas, e
também ampliar a percepção estética dos alunos, ou seja, uma percepção profunda e crítica da
experiência estética visual. Assim, quando se é educado a olhar para a arte com esse olhar crítico,
aprende-se a olhar para todas as coisas do mundo com esse mesmo olhar crítico, esta é uma
habilidade que se desenvolve.
É por isso que um dos objetivos a que nos propomos com a educação para a
compreensão da cultura visual [...], é o estudo e a decodificação desses produtos
culturais mediáticos. Conhecimento que talvez não seja conveniente aprender na
escola, se o que se persegue é que os indivíduos respondam indefesos diante da
enxurrada mediática que lhes cai em cima.242
242 HERNÁNDEZ, 2000, p. 43
Hernándes levanta a questão da presença da indústria cultural na vida contemporânea e,
como já foi abordado, sua função para adaptação do indivíduo à civilização. A compreensão da
cultura visual pode ser uma forma de proporcionar aos alunos que não mais respondam indefesos
diante da enxurrada mediática da qual fala Hernándes. A cultura e a arte são fundamentais para a
humanidade, podemos dizer que a arte tem, de certa forma, o papel de representar o mundo de
uma forma diferenciada pela construção do novo, que contraposto à estandardização da indústria
cultural, pode possibilitar a percepção de outras formas de representação do mundo.
Pensando nestas questões, podemos lembrar da discussão sobre cultura de Marcuse, na
qual afirma que hoje temos a cultura assimilada pela civilização, o que faz com que seus
elementos sejam forçosamente utilizados como veículos de adaptação, mas podemos pensar nesse
projeto de humanização como a inversão dessa situação: a Civilização convertida em Cultura.
E de fato uma redefinição da cultura contrariaria as tendências mais potentes.
Significaria a libertação do pensar, do investigar, do ensinar e do aprender do
sistema existente de valores e modos de comportamento, assim como a
elaboração de métodos e de conceitos capazes de ultrapassar racionalmente os
limites dos fatos e dos ‘valores’ estabelecidos.243
E assim pensar na pacificação da existência, pois como o próprio Marcuse afirma: “A vida
como um fim é qualitativamente diferente da vida como um meio.”244 Esta percepção deve ser
levada em consideração desde o início do processo de formação.
243 MARCUSE, 1998, p.165. 244 Id., 1969, p.36.
CAPÍTULO IV A COMPREENSÃO QUE AS PROFESSORAS TÊM DA LINGUAGEM
VISUAL
4.1 O Processo da Investigação Empírica
A Pesquisa Empírica realizada para obtenção dos dados, teve como participante um grupo
de quatro professoras de uma escola de ensino básico localizada na região de Curitiba. A
proposta, a qual denominamos Vivência, aconteceu em três encontros na própria escola, com
duração de duas horas cada um e, as atividades foram escolhidas e organizadas de forma a
possibilitar que se compreendesse como estas professoras lêem e compreendem a linguagem
visual, bem como possibilitar uma reflexão sobre esta. As várias etapas da pesquisa
proporcionaram à pesquisadora, não somente a constatação de como as professoras se relacionam
com a linguagem visual, como também, a realização de um trabalho junto às professoras no
sentido de aprofundar a sua percepção e compreensão das imagens visuais. Todas as atividades
realizadas foram seguidas de conversas sobre as mesmas, para que fosse possível captar as
impressões imediatas das professoras com relação às atividades.
O trabalho com a linguagem visual seguiu um caminho de aproximação com o universo
das imagens, iniciando pelo preenchimento de um questionário, no qual as professoras foram
questionadas sobre suas preferências e hábitos ao assistir televisão. A opção por iniciar com o
questionário foi feita levando-se em conta que antes de ver imagens da mídia, falar sobre elas e
construir imagens, seria interessante que as professoras lembrassem como é o seu contato diário
com estas imagens e qual sua opinião, pois no preenchimento do questionário tiveram a
oportunidade de elaborar racionalmente suas opiniões. Outro motivo foi o de construir um ponto
de referência, baseado na racionalização e verbalização destes hábitos e preferências. A
comparação das respostas dos questionários com as falas emitidas durante a vivência, deixa claro
como alguns elementos são selecionados racionalmente para serem verbalizados, enquanto outros
requerem outro tipo de experiência para serem externados.
Depois de preenchidos os questionários, a filmadora foi ligada e foi solicitado às
professoras que verbalizassem suas respostas em uma entrevista coletiva, na qual cada uma
contou o que havia escrito, iniciando uma conversa entre todas as participantes.
A segunda atividade da vivência, no primeiro dia, consistia em assistir a uma cena da
telenovela Mulheres Apaixonadas, gravada no dia 18 de Setembro de 2003 da emissora Rece
Globo de Televisão. A escolha por esta telenovela se deu em função de ser a telenovela de maior
audiência no horário nobre na época. A trama da cena consistia em uma tentativa de
atropelamento, realizada por Giulia Gan, protagonista da cena, no papel de Heloísa; contra
Vidinha, personagem interpretada por Julia Almeida; a tentativa não foi bem sucedida e Heloísa
foi repreendida por seu marido Sérgio, interpretado por Marcelo Antony e por Lorena,
interpretada por Suzana Vieira, mãe da Vidinha. Somente uma das professoras já havia assistido à
cena, embora todas as outras soubessem o que havia se passado.
Depois de assistida a cena da telenovela, foi feita uma breve explicação sobre a
importância dos elementos visuais e sonoros para a construção do clima da cena, fundamental
para a compreensão da narrativa; neste caso um clima de suspense. Alguns termos foram
levantados e identificados na primeira parte da cena quando a Heloísa está no carro e observa a
Vidinha que ajuda sua mãe a estacionar o carro, momento no qual, aparentemente, ela tem a idéia
de atropelá-la. Os efeitos comentados foram: o tipo de filmagem em super-close, que capta os
olhos da atriz, os efeitos sonoros de respiração ofegante e música de suspense, a iluminação
precária, que transmite a sensação de penumbra, etc.
Ao fim da explicação, a pesquisadora convidou as professoras a se dirigirem a uma sala
de aula, onde foi realizada a próxima atividade. O motivo do deslocamento foi o de procurar um
ambiente mais reservado, já que a televisão se encontrava na sala dos professores, lugar no qual
existia um transito de professores, alunos e funcionários.
Na sala de aula, a pesquisadora propõe às professoras a construção de um roteiro em
duplas para a dramatização no encontro seguinte. Para a construção do roteiro, as professoras
receberam uma folha de papel com 4 temas que sugeriam quatro histórias diferentes. Cada dupla
deveria escolher um dos temas e, a partir dele, construir um roteiro para uma cena; pensar em um
momento da história e construir as falas, decidir quais personagens deveriam aparecer etc. Dadas
as instruções, as professoras iniciaram a construção do roteiro, no qual já poderiam ser incluídos
alguns dos elementos visuais comentados ao fim da novela (tipo de filmagem, iluminação, etc.).
O encontro terminou com o roteiro finalizado.
A construção e dramatização do roteiro foram pensadas no sentido de proporcionar às
professoras uma experiência com a produção audiovisual, já que o contato habitual com estas
produções acontece pelo pólo do espectador, do receptor, e não do produtor. Esta inversão de
papéis possibilitou que estas professoras saíssem do papel de espectadoras e consumidoras, e
assumissem o papel de produtoras e protagonistas de uma história criada e dramatizada por elas.
Levando-se em conta esta longa experiência com os produtos audiovisuais, era objetivo: a
produção, atuação e revelação das representações sociais que construíram enquanto espectadoras.
No segundo encontro, foram realizadas duas atividades, a realização e gravação da
dramatização e a produção de um ensaio fotográfico. Com os roteiros nas mãos, as professoras
ensaiaram a dramatização, que foi apresentada formalmente para a câmera depois de dois ensaios.
Ao término da gravação, a pesquisadora solicitou que as professoras definissem dois ou três
conceitos que resumissem a dramatização para, a partir deles, produzir um ensaio fotográfico.
De posse destes conceitos, as professoras saíram pela escola, acompanhadas pela
pesquisadora, procurando imagens que os traduzissem. Para a realização desta atividade a
pesquisadora levou uma câmera fotográfica e quatro cartões de papel preto com um orifício no
centro para ser utilizado como visualizador/visor. A proposta foi que selecionassem as imagens
com os cartões e depois as registrassem com a câmera. A escolha por fazer a atividade com
quatro cartões e uma câmera, foi feita para que as professoras tivessem tempo para olhar as
imagens antes de fotografar, pudessem pensar nas imagens no lugar de fotografar qualquer
imagem sem pensar sobre suas escolhas. Antes de sair, foi solicitado que tentassem escolher as
imagens com os cartões antes de as registrar com a máquina, prestando atenção aos pontos de
vista, às distâncias e ao enquadramento mais adequados para tirar as fotografias.
O ensaio fotográfico foi integrado à vivência com o intuito de incluir uma modalidade da
linguagem visual com a qual as professoras já tivessem um contato prévio, considerando que se
apropriariam desta linguagem com maior facilidade. A fotografia se mostrou o meio mais
adequado para realizar a ponte entre o papel de espectadoras da linguagem visual, habitualmente
assumido por elas, e o papel de produtoras, proposto pela vivência. A fotografia se coloca como
intermediária entre as duas posturas, pois ao mesmo tempo em que é uma produção de imagens
visuais, esta produção se dá pela captura de imagens através de um visor, não tendo as
professoras como protagonistas da cena registrada. Com o ensaio fotográfico foi possível realizar
a articulação entre os vários papeis assumidos por elas durante o processo da vivência, além da
articulação entre duas modalidades da linguagem visual, sendo uma das quais já experimentada
pelas professoras, e uma ainda não vivenciada até então.
No terceiro dia, a atividade programada foi para permitir que as professoras pudessem
recuperar todo o processo pelo qual passaram nos dois primeiros dias e neste último, para que
elas pudessem compreender a seqüência das atividades e perceber as ligações e, principalmente
para que pudessem falar sobre a linguagem visual a partir desta vivência.
A primeira atividade foi assistir à fita com as dramatizações gravadas e observar as
fotografias reveladas e ampliadas, para que entrassem em contato com os resultados de suas
produções. Com as fotografias nas mãos foi iniciada a primeira conversa sobre as atividades dos
encontros anteriores.
A partir das fotografias, a pesquisadora pediu que as professoras trilhassem o caminho
inverso ao que foi seguido durante as atividades: olhando para as fotografias, lembrassem dos
conceitos que cada uma representava, e refizessem a conexão desta imagem fotográfica com o
conceito. Em seguida pensar na relação entre os conceitos e a dramatização assistida por elas.
Neste dia, a pesquisadora insistiu em referir-se sempre à cena assistida e não à dramatizada,
realizada no encontro anterior, tentando focar a conversa na imagem televisiva assistida, como
um objeto que estava à sua frente.
Depois da conversa sobre as fotografias, os conceitos e as relações com a dramatização,
as professoras assistiram novamente ao vídeo com as dramatizações. Neste momento, foram
solicitadas a pensar na diferença que poderia existir entre a experiência de assistir a cena pela
televisão e a experiência presenciar a cena ao vivo, como aconteceu no encontro anterior.
Levando-se em conta que a experiência do encontro anterior poderia ser comparada à experiência
com uma dramatização teatral e, a deste encontro com a experiência de assistir a uma cena de
telenovela – com todas as implicações do recorte televisivo, temporal e espacial, ponto de vista
único e o distanciamento proposto pelo registro fílmico – tencionando a apreensão da
dramatização como um objeto videográfico.
A partir desta conversa foram questionadas sobre as escolhas feitas durante a construção
do roteiro, o caminho percorrido por elas para chegar à configuração final da cena que foi
assistida.
A próxima atividade foi assistir novamente à cena da telenovela Mulheres Apaixonadas
assistida no primeiro dia da vivência. A escolha por assistir novamente à cena, aconteceu por três
motivos: em primeiro lugar, para retomar o ponto a partir do qual se iniciou o trabalho com a
linguagem visual; em segundo lugar, para pensar em uma possível ligação entre a cena assistida e
as dramatizações; e, em terceiro lugar, para perceber como seria a experiência de assistir à cena
da novela, pela segunda vez e, após as professoras terem produzido um roteiro e dramatizado, ou
seja, terem entrado em contato com a produção de uma cena, e terem participado de discussões
sobre o assunto. Ao término da cena, as professoras foram questionadas sobre semelhanças e
diferenças entre a cena da novela e as cenas produzidas por elas.
Depois desta conversa, as professoras foram questionadas também sobre a presença da
mídia na escola, como elas percebem esta presença a partir do comportamento e das falas dos
alunos, e como elas trabalham com esta presença.
Para finalizar as conversas sobre a linguagem visual, a pesquisadora retomou todas as
formas de expressão trabalhadas na vivência (oral, escrita, corporal, visual), e questionou como
as professoras percebiam as linguagens, e, se percebiam diferenças entre a primeira e a segunda
vez que assistiram à cena de novela.
Para fechar a vivência, a pesquisadora solicitou que as professoras escrevessem em forma
de relato como foi a experiência da vivência para cada uma delas. Com o objetivo de que cada
uma registrasse as suas impressões individualmente, como uma reflexão particular sobre todo o
processo.
4.2 Resultados e Análise da Pesquisa
Partindo da leitura do material coletado em todas as fases da vivência, pudemos separar o
conteúdo em torno de alguns núcleos temáticos como resultado de um trabalho de análise. Estes
núcleos foram definidos levando-se em conta a reincidência em alguns assuntos/pensamentos, o
que os tornavam significativos para a compreensão das representações sociais externadas pelas
professoras.
Como um primeiro núcleo, podemos identificar as Verbalizações sobre o Outro,
emitidas em vários momentos e fases da vivência, a partir das quais podemos analisar qual é a
imagem formulada pelas professoras em relação aos vários outros que apareceram caracterizados
nas falas e comentários.
Como um segundo núcleo temático, as Verbalizações sobre a Telenovela, pois enquanto
assistiam à cena, tanto no primeiro dia da vivência quanto no terceiro dia, aconteceram conversas
que podem ser compreendidas sob a luz da discussão sobre o espectador realizada no capítulo
Sociedade e Imagens.
Observando as produções das professoras, tanto a dramatização quanto o ensaio
fotográfico, e as verbalizações emitidas durante o processo de produção e nas discussões sobre as
produções, identificamos aspectos que podem ser compreendidos como Dissociações entre
Forma e Conteúdo, quando analisamos o que foi feito e o que foi dito sobre o que foi feito.
Para finalizar a análise voltamos a atenção para os momentos nos quais percebemos uma
Dissociação entre Informação e Conhecimento, caracterizado pelos momentos nos quais as
professoras apontaram alguns fatos como negativos e, ao mesmo tempo, demonstraram uma
incapacidade para compreendê-los e explicitaram impotência para modificá-los.
1. Verbalizações sobre o Outro
Durante as atividades dos três dias da vivência, existiram momentos nos quais as
professoras contaram histórias que ilustravam seus pensamentos, ou que lembravam a partir das
atividades e assuntos discutidos. Com estas histórias podemos entender um pouco como estas
professoras atuaram em determinadas situações, e seu pensamento sobre as situações e as pessoas
envolvidas. Por exemplo, no primeiro dia, na entrevista coletiva sobre os questionários, quando
falavam sobre os programas aos quais não assistem e dos quais não gostam, a Professora 1 afirma
que o jornal Tribuna245 é um jornal que ela não gosta, não lê, pois trata de violência, mas que é
um jornal de grande aceitação pela população, o que ela justifica dizendo:
“classe d, e, f, g, h... é só a Tribuna que o pessoal lê, é a notícia do momento que
eles gostam, né bem...” (1)
Aqui a professora associa a preferência por determinados tipos de informação – como as
que aparecem no jornal impresso Tribuna, por exemplo – às pessoas pertencentes a determinadas
classes sociais: “d, e, f, g, h”. A conversa sobre as diversas classes sociais aparece em outros
momentos, nos quais as professoras definem características e comportamentos relativos às
pessoas provenientes das classes menos favorecidas. É possível estabelecer uma relação entre as
imagens caracterizadas pelas professoras nas várias manifestações sobre o assunto. Como na
história contada pela Professora 1 sobre uma situação que ela vivenciou anos atrás em uma escola
da qual foi diretora:
245 Jornal impresso que apresenta notícias policiais e é conhecido pela crueza com que expõem tragédias e cenas de violência explícita.
“... foi um conjunto habitacional de baixa renda que eles construíram, a escola
no meio, e aquele pessoal veio de invasão, veio de baixo da ponte, veio da casa
dos parentes, eles não tinham residência. Então tinha gente muito boa, que tinha
emprego e tal, e tinha outras pessoas que vieram da rua, que não tinham, não
sabia usar o banheiro, plantaram flor dentro do vaso, arrancaram vaso e
venderam, coisas desse tipo...” (1)
“[...] mas veja bem quem é essa clientela...” (1)
A caracterização dos moradores do conjunto habitacional feita pela Professora 1, mostra
quais características a professora considera relevantes para definir a “clientela” a qual a escola
servia. Ela divide os moradores em dois grupos opostos, o de “gente muito boa”, pessoas que
tinham emprego e o das “outras pessoas”, que vieram da rua, não sabiam usar o banheiro. A
Professora 1 acredita que esta divisão e caracterização são suficientes para esclarecer aos
ouvintes o tipo de pessoas com as quais ela estava trabalhando. Como se o fato de estar
empregado fosse suficiente para designar o caráter de alguém na atualidade, quando o
desemprego é comum e crescente; ou não saber usar o banheiro, como existe nos ambientes
urbanos, fosse suficiente para caracterizar uma pessoa “não boa”.
Nesta situação, percebemos o pensamento estereotipado da professora que tenta
caracterizar os habitantes do conjunto com algumas características que enquadram os moradores
em duas categorias distintas e opostas. Segundo Chochík, o pensamento estereotipado é
construído culturalmente e está fundado em uma fixidez do comportamento:
Isso porque a fixidez de um mesmo tipo de comportamento se relaciona com
estereótipos oriundos da cultura, que embora se diferenciem em cada objeto, não
se confundem com eles; é dizer: à aparente diversidade com que a roupagem dos
estereótipos culturais reveste os seus objetos, corresponde uma fixidez de
comportamento no preconceituoso. Esta relação não é direta, pois o indivíduo se
apropria dos estereótipos e os modifica de acordo com as suas necessidades.246
Assim, podemos inferir que o preconceito tem uma forte ligação com a cultura na qual se
desenvolve. Isso significa também que todas as pessoas que participam de uma mesma cultura
têm acesso a estes códigos, introjetando-os de forma mais ou menos intensa, dependendo das
condições nas quais se dá o seu processo de socialização, no qual ocorre, segundo Chochík, esta
introjeção. Mas como “[...] tanto o processo de tornar-se indivíduo, que envolve a socialização,
quanto o do desenvolvimento da cultura têm se dado em função da luta pela sobrevivência, o
preconceito surge como resposta aos conflitos presentes nessa luta.”247 O preconceito surge como
uma forma de defesa contra a violência da realidade estabelecida, como discutido no capítulo
Sociedade e Imagens, mas que se mostra como uma impossibilidade de flexibilizar os
comportamentos e conceitos sobre o mundo.
Em um outro momento, quando as professoras construíam os roteiros, aconteceu uma
discussão sobre o preconceito, a Professora 2 repreendeu as Professoras 3 e 4, dizendo que
estavam sendo preconceituosas na construção das falas para a dramatização:
“Professora 3 – ‘magora, ma-go-ra foi demais!’ [ri]
Professora 4 – ‘magora foi de mais da conta’
[...]
Professora 3 – ‘ó ele vindo aí, vamo priguntá’
Professora 2 – olhe aí você ainda fala que, que as empregada são negra né, olha
a discriminação aí
Professora 3 – o que? o que, fale de novo
Professora 1 – falou errado!
246 CROCHIK, 1997, p.12. 247 Ibid., p.11.
[...]
Professora 4 – está bom,
Professora 3 – duas favelada!
Professora 4 – então você vá
Professora 2 – e daí?
Professora 4 – vá lá e veja quantas falam corr...de outra forma
Professora 2 – não, não
Professora 3 – a [Professora 4] é professora!
Professora 4 – são raras exceções
Professora 2 – nossa, eu morava numa rua que todos falavam bem...
Professora 1 – agora você vai no Rio, na favela, você vai ver que os caras do
morro falam corretamente
Professora 3 – ah! Mas aí é diferente
[...]
Professora 1 – é, o linguajar do sul é diferente
Professora 3 – mas aqui, aqui...
Professora 4 – é que na verdade esse povo aqui, não que ele fala errado, é que a
maioria veio do interior então têm aquele linguajar do interior
Professora 3 – é o êxodo rural
Professora 4 – precisavam ter visto o cara que veio falar comigo hoje
Professora 3 – não é o carioca que vive lá, já é o neto que está lá numa favela, é
o êxodo rural
Professora 4 – depois eu conto o pai que veio falar comigo hoje de manhã, aquilo
merecia ser filmado [falando para a pesquisadora]. Aquilo não existe, sabe? você
não sabe se você ri ou se você chora”
Esta discussão é interessante, pois mostra um conflito que surge entre elas com relação à
imagem que as professoras fazem das pessoas que moram nas favelas, em algumas regiões.
Enquanto a Professora 2 afirma que é um preconceito mostrar estas personagens “falando
errado”, e que a experiência que ela tem, mostra que as pessoas que conheceu que moravam em
favelas “falavam corretamente”, as Professoras 3 e 4 afirmam que todas as pessoas que moram
em favelas “falam errado”, justificando com o fato da Professora 4 trabalhar nestes locais, e
portanto conhecer bem esta realidade.
No meio da discussão a Professora 1 faz uma intervenção dizendo que nas favelas do Rio
de Janeiro, os moradores “falam corretamente”, o que é acolhido por todas as professoras como
uma verdade. O que não fica claro é se esta constatação da Professora 1 nasceu de uma
experiência vivida dentro das favelas do Rio de Janeiro, ou do contato que ela teve por meio dos
meios de comunicação. Mas será que os habitantes das favelas do Rio de Janeiro falam
“corretamente”, segundo a norma padrão? Pois quando elas falam em “falar corretamente”, elas
estão se referindo a seguir a norma culta. Podemos supor que esta constatação nasceu do contato
com os meios de comunicação pela estrutura das conversas durante todo o processo da vivência;
enquanto todas as afirmações eram seguidas da sua comprovação por meio de histórias
vivenciadas, nesta ocasião, a afirmação foi justificada pelas outras professoras que se referiram à
constituição das favelas da região sul do país como fruto do êxodo rural, enquanto as favelas do
Rio de Janeiro são habitadas por pessoas que estão nos centros urbanos há gerações.
A afirmação da Professora 1 aconteceu em um momento no qual as professoras tentavam
eliminar a idéia de preconceito contra as classes menos favorecidas, introduzindo a informação
de que não são todas as pessoas que moram em favelas que “falam errado”, só as que habitam as
favelas do sul, mais recentes, e que portanto não tiveram um contato suficientemente prolongado
com os centros urbanos, que pudesse modificar seu “linguajar”; em oposição à situação do Rio
de Janeiro, onde, segundo as professoras, o contato prolongado com os centros urbanos
descaracterizou o “linguajar” que eles pudessem trazer quando sofreram o êxodo rural. Podemos
perceber que as professoras acreditam que o contato com os centros urbanos é “civilizatório”.
Mas mesmo com a tentativa de amenizar a atitude preconceituosa, elas ainda mostraram
fortemente um pensamento estereotipado e, o preconceito de classe e de região, medido pela
forma de expressão dos habitantes das favelas do sul e, pela constatação das oposições entre estar
mais próximos ou distante da configuração urbana. A discussão termina com uma afirmação da
Professora 4, sobre um pai que veio conversar com ela e que “merecia ser filmado”, ou seja, sua
imagem de não-pertencente aos padrões de civilidade, estabelecidos por ela, merecia ser
registrada, pois provavelmente o registro fílmico traria veracidade e confirmação àquela verdade.
Momentos depois, a Professora 4 conta a história do pai que “merecia ser filmado”:
“Professora 4 – aí o pai foi lá reclamar porque estavam batendo no filho dele e
ele não queria mais vir pra escola; mas eu nunca vi baterem, as inspetoras nem
conheciam o menino... sabe aquela coisa, ninguém viu, mas no fim fomos lá,
fizemos a reunião acalmamos os ânimos. Depois disse assim: ‘agora eu vou
falar, por que que eu queria chamar o senhor’, eu disse ‘ah seu filho é inseguro,
ele tem uma série de problemas, ele chega a ... ele enterra as unhas na palma da
mão, ele tem problema de fala..’ Aí o pai disse que o menino não tem problema
de fala, são as pessoas que não entendem o que ele fala
Professora 1 – o pai é muito autoritário?
Professora 4 – o pai é acho que acabou de vim lá do lugar mais distante, lá do
Chuí lá da.... sabe aquela coisa assim, não é que ele seja autoritário, ele não é...
não é a questão do pai ser autoritário, ele disse assim: ‘eu falo enrolado com ele,
porque não vou falar com ele como eu falo com você, ele sabe mais coisa..’ e...
‘olha seu filho está com dificuldade...’ ‘mas ele sabe mais coisa do que eu sabia
quando tinha 15 anos, eu não quero que meu filho seja médico’
Professora 3 – é difícil...
Professora 4 – ‘sabendo ler e escreve pra mim já está bom e se começar a dar
muito problema também tiro ele da escola ele fica em casa e fim de papo e quero
ver quem vai mandar ele vir pra escola’, eu olhei.... ‘sim senhor’; aí eu chamei a
pedagoga, ele repetiu toda história pra pedagoga de novo... bom eu fiz a minha
parte, até tentei argumentar
Professora 1 – vai tentar, vai ter que tentar fazer o máximo pelo menino porque a
família não...
Professora 3 – dentro de sala de aula e a maioria é assim
Professora 4 – mas olhe, esse foi assim, sabe aquele homem de bota e chapelão,
sabe, é bem assim... característica, aquela coisa que te chama atenção mesmo, eu
fiquei olhando... você vai fazer o que com uma criatura dessa?
Professora 1 – é muito difícil mudar...
Professora 4 – dá dó da criança, né”
Neste depoimento da Professora 4 podemos perceber que aconteceu um conflito entre o
posicionamento dela e o do pai, que veio à escola reclamar pois seu filho lhe disse que estava
sendo agredido pelos colegas, acusação que a Professora 4 julgou falsa, baseada no fato de
nenhuma das inspetoras ter presenciado as agressões; o pai estava preocupado com a integridade
física de seu filho; e a professora estava preocupada com os problemas de aprendizagem do
menino. O fato do pai não se preocupar com os problemas de aprendizagem ou julgar que não
existiam tais problemas, e a professora julgar que não existiam agressões físicas contra o menino,
bloqueou a comunicação entre eles; cada um manteve sua posição e os problemas da criança,
quer fossem quanto à sua integridade física ou quanto aos seus problemas de aprendizagem não
foram resolvidos. O problema de comunicação entre eles foi justificado pela professora como
resultante da proveniência do pai, que ela acredita ter vindo “lá do lugar mais distante, lá do
Chuí”, o que é reafirmado pela sua aparência bem “característica” de “bota e chapelão”: “você
vai fazer o que com uma criatura dessa?”. Mais uma vez ter vindo do interior e não estar
totalmente adaptado ao modo de vida urbano é motivo suficiente para atestar a falta de
inteligência e compreensão de uma pessoa. Os comentários das outras professoras em relação a
esta história foram os de que a Professora 4 deveria desconsiderar as colocações do pai e assumir
em sala de aula a postura que ela considera necessária, pois como a Professora 1 disse, ela não
pode contar com a família, que não tem condições de compreender estes problemas, ou ajudar a
solucioná-los. Outro ponto que pode ser levantado é o fato de que as inspetoras não terem
presenciado as agressões contra o menino, não significar que estas não tenham ocorrido, ou ainda
que o comportamento comum e aceito pelas inspetoras pode não ser visto dessa forma pelo
menino, que estava se sentindo agredido de alguma forma.
No terceiro dia da vivência, a Professora 4 faz novamente referência à história deste pai,
mas nesse dia, a história é vista por outro ponto de vista, mas não muito distante.
“Professora 4 – Eu tenho um pai da manhã que o menino dele está com muita
dificuldade, tem problema de fala uma série de coisas, mas ele disse assim:“meu
filho com 6 anos sabe mais do que eu sabia com 15, você está querendo muito do
meu filho” quer dizer, do ponto de vista dele, ele está com a razão
Professora 3 – a vivência dele é essa
Professora 4 – é essa!
Professora 2 – é a realidade de cada um né?
Professora 1 – o pai já tinha algum problema aos 15 anos
[todas riem]
Professora 4 – sério! O problema é que o homem tem 2 metros de altura daí a
gente ficou pensando se discutia ou não com ele
Professora 3 – não e depois até onde que ele pode ir
Professora 4 – até onde que a compreensão dele vai [...] e de repente também pra
expectativa de vida que ele tem pro filho dele, o filho dele não precisa ser muito
mais do que isso”
Neste momento as professoras assumem o relativismo para explicar a convivência entre
os pontos de vista do pai e da Professora 4, mas no relativismo, todas as posições são aceitas, não
questionadas e não necessariamente compreendidas. Assim, a Professora se coloca há uma
distância ainda maior do pai, pois mostra que o pai não tinha condições de compreender o que ela
estava falando para ele, porque dentro das suas possibilidades de compreensão, ele estava com a
razão, e não havia nada que a professora pudesse fazer para mudar essa situação. Da
impossibilidade de mudança, vem uma aparente condescendência com a opinião do pai, mas que
“já tinha algum problema aos 15 anos”, ou seja, ele não tem a inteligência suficientemente
desenvolvida para entender o que as professoras compreendem como sendo “o certo”, e assim
elas estabelecem um limite para a compreensão do pai: “até onde que a compreensão dele vai”,
porque dentro do que ele pode compreender, o filho dele não precisa ser muito mais do que já é, e
que pelo visto, é considerado “pouco” pela professora. As professoras mostram uma fixidez de
pensamento e a impossibilidade de compreender a realidade do outro, pois o motivo que levou o
pai a ir até a escola foram as reclamações do menino, esta era a sua preocupação.
Nesta conversa podemos perceber que as professoras usam o relativismo para explicar o
ponto de vista divergente do pai, mas como afirma Chochík:
Dentro do relativismo, a explicação preconceituosa tem o mesmo valor de sua
negação e, assim, as justificativas para se agredir o mais frágil podem ser
defendidas tanto quanto as justificativas para não fazê-lo. Neste sentido, a
liberdade dos pontos de vista não liberta o pensamento e já pode estar nos
remetendo a indivíduos com predisposição ao preconceito, uma vez que no
relativismo o objeto é percebido como o sujeito pode percebê-lo em função de
suas características e necessidades.248
O que faz com que as professoras aceitem formalmente os argumentos do pai, mas
mantenham o preconceito quanto às suas possibilidade de compreensão; cada um manteve seu
ponto de vista, e “respeitou” o do outro, mas os problemas da criança não foram resolvidos. Os
comentários das professoras mostram uma sensação de superioridade com relação ao pai, que não
concordou com a Professora 4, segundo elas, por não poder compreender o que ela estava
dizendo, ou seja: “[...] à onipotência – manifesta ou velada – pela qual o preconceituoso julga-se
248 CROCHIK, 1997, p.24-25.
superior ao seu objeto, corresponde a impotência que sente para lidar com os sofrimentos
provenientes da realidade.”249 O que fica muito claro nesta situação, na qual a professora tinha
intenção de conversar com o pai sobre os problemas que ela percebia na criança, mas as
preocupações do pai estavam voltadas para outra questão, que não diziam respeito à dificuldade
de aprendizagem da criança, ele veio à escola porque seu filho reclamou que estava sendo
agredido pelos colegas. Para o pai o que a criança estava aprendendo era suficiente, o que o
preocupava era a integridade física de seu filho.
Um outro ponto, que se refere ao preconceito e ao estereótipo está relacionado com a
imagem que a escola pública assume em nossa sociedade, uma imagem que é, segundo as
professoras, pejorativa, como podemos ver no comentário da Professora 2, enquanto contava a
história de “uma menina que veio de uma escola apostilada”, cujo pai veio reclamar, dizendo que
sua filha estava “errando mais” desde que mudou para a escola pesquisada, o que foi respondido
pela Professora 2:
“[...] ‘ela está errando mais porque ela está escrevendo mais [...] por isso
que ela está errando mais’ e no final do ano esse mesmo pai veio me
agradecer porque a [nome da aluna] que entrou na escola e a Talita que
saiu da escola era totalmente diferente, sabe? Então eles colocam o filho e
muitos pais, a gente sofre com criança porque muitos pais dizem: ‘ó meu
filho, agora, você saiu daquela escola boa por isso e por isso, agora você
vai pra aquela escola’, você vai pra aquela escola, então a criança já vem
[...] com aquela imagem que é aquela escola que porque aqui é pública
então ele pode tudo, porque não vai ser expulso, não vai ser convidado a
sair, e aos poucos você tem que ir fazendo muita coisa, muita coisa pra
249 CROCHIK, 2003, p. 13.
poder mudar a visão, muda muito mais fácil a visão da criança que do pai,
o pai demora mais.” (2)
Neste comentário da Professora 2, que foi reforçado pela outras professoras, podemos
perceber o preconceito que elas sentem dos pais e alunos com relação à escola pública, e ainda o
preconceitos das próprias professoras com relação às escola particulares, pois quando ela fala em
“escola apostilada”, ela está se referindo à má qualidade das escola particulares, nas quais as
crianças não escrevem, só recebem folhas para preencher e por isso sentem dificuldade quando
tem que escrever mais. Continuando esta discussão, a professora 4 conta sobre uma aluna sua que
está na mesma situação:
“muitas vezes você percebe assim até isso, bem isso que a [Professora 2]
falou, a criança que vem da particular vem com mais dificuldade do que a
que a gente tem em sala, pela concepção que se tem na escola particular.
Eu peguei uma menina no meio do ano com a mesma situação, você
pegava o caderninho dela, a [nome da aluna] que veio aqui hoje, você
pegava o caderninho dela da metade pra trás que é da outra escola só tem
folha colada, então quando a gente pegou ela aqui, quando ela entrou na
sala, não sabia fazer o formato de um texto!” (4)
Ou seja, elas afirmam e generalizam que a formação proporcionada pela escola particular
não é tão boa quanto a que elas oferecem ali na escola pública. Elas falam como se houvessem
dois grupos, um formado pelas escolas particulares e, outro, formado pelas escolas públicas;
apesar do preconceito que elas sentem da sociedade com relação à escola pública, afirmam que
não é verdadeiro, pois elas recebem crianças das escolas particulares que não receberam
orientações básicas, como “fazer o formato de um texto” por exemplo.
Para compreender a estereotipagem do pensamento das professoras, podemos recorrer aos
escritos de Chochík, no livro intitulado Preconceito250, e à discussão sobre a televisão dentro da
industria cultural do capítulo Sociedade e Imagens.
Como foi discutido acerca da indústria cultural, este pensamento estereotipado está
relacionado com a caracterização dos personagens da televisão, construídos com poucos
elementos que são marcantes e suficientes para defini-los como os tipos: o herói, o vilão, o
mocinho, o bom, o mau, o traidor, o vencedor, o vencido etc. Desta forma a percepção dos tipos é
automática e acontece em função de marcas que se repetem em vários programas e servem como
categorias dentro das quais se pode enquadrar as pessoas. Como afirma Vermelho o espectador se
identifica com os personagens pelo reconhecimento na tipologia: “[...] com o qual o espectador o
reconhecerá como um tipo e se identificará com esse ou com aquele personagem.”251 A
percepção estereotipada dos personagens serve como um guia para a percepção das pessoas com
as quais se convive, pois ao mesmo tempo em que as pessoas se espelham nestes personagens
para constituírem suas inúmeras características, identificam nos outros estas categorias
marcadamente, como se por alguns adjetivos fosse possível defini-las. Como afirma Adorno, a
realidade passa a ser olhada “pelos óculos da tv”; o que é reforçado por Bourdieu e Phillips,
quando comentam que a televisão acaba por definir a realidade e construí-la, a imagem passa a
ser uma parcela da realidade.
Segundo Chochík:
Não vemos a pessoa que é objeto de preconceito a partir dos diversos predicados
que possui, mas reduzimos esses diversos predicados ao nome que não permite
nomeação: judeu, negro, louco etc. [...] independentemente das inúmeras
250 CROCHIK, 1997. 251 VERMELHO, 2003, p.112.
características que a pessoa vítima do preconceito possua, a que passa a
caracterizá-la é o termo que designa o preconceito.252
A esta particularidade da característica preponderante da vítima do preconceito são
associados ainda outros atributos fixos que completam o estereótipo, pois a “classe” das pessoas
que pertencem a um ou outro estereótipo, é constituída por todas as pessoas que podem ser
agrupadas sob este nome e que, para o olhar preconceituoso, possuem um conjunto de
características comuns. Assim, ao se referir às pessoas que se mudaram para o conjunto
habitacional, a Professora 1 nomeou dois grupos que dividiam e comportavam todos os
moradores do conjunto habitacional: o de “gente boa” e “as outras pessoas”; ou os que não
sabiam “usar o banheiro”, e os que “possuíam um emprego”. Com estas duas categorias, ela
pretendia mostrar o “tipo de clientela” à qual a escola atendia.
Na separação entre as escolas particulares e as escolas públicas, a estereotipagem também
aparece; pelas histórias das duas crianças, foi possível que elas generalizassem que todas as
escolas particulares, “apostiladas”, não possibilitam uma boa formação aos seus alunos, enquanto
as escolas públicas, nas quais as crianças têm que escrever mais, esta formação é possível. Nesta
questão podemos ainda pensar em um preconceito que se desenvolve a partir do preconceito
sofrido, para amenizar a imagem de que a escola pública é “aquela escola, com aquela imagem”,
inverte-se “aquela imagem” para a escola particular; funcionando como um mecanismo de defesa
contra a violência sofrida.
A imagem pejorativa da escola pública atinge diretamente as professoras, como afirma a
Professora 3:
252 CROCHIK, 1997, p.17.
“agora existem escolas e escolas né gente, porque as pessoas... as escolas
são feitas de pessoas, então, aquela coisa né...”(3) [todas concordam]
“tanto a pública como a particular depende muito da mente de cada
um”(4)
“mas agora o particular lógico, eles têm medo de perder o emprego, que
da pública é menor, então é, são feito de pessoas, de compromissos, e de
valores e de ética, é por aí né?”(3)
Mas a relativização dos comentários termina com a consideração de que os professores
das escolas particulares “têm medo de perder o emprego”, o que os obriga a se submeter aos
ditames das escolas, ou seja, eles não têm liberdade para desenvolver seus próprios valores, o que
mantém a idéia pejorativa das escolas particulares.
Com estas verbalizações das professoras no decorrer da vivência podemos compreender
como o pensamento estereotipado e o preconceito estão presentes nas compreensões que estas
professoras têm da realidade, e como formatam as imagens criadas sobre o outro e determinam o
comportamento e a atitude das professoras.
2. Verbalizações sobre a Telenovela:
A cena da telenovela foi assistida duas vezes durante a vivência, e, cruzando as
manifestações que ocorreram no primeiro dia com as que ocorreram no terceiro dia, podemos
perceber que algumas opiniões se repetiram, algumas foram acrescentadas e, também, como a
experiência com a linguagem visual, possibilitada pela vivência, modificou a postura das
professoras.
Com estas manifestações podemos perceber um pouco como as professoras se relacionam
com a narrativa da telenovela, e como relacionam esta narrativa ficcional com a vida real,
constatando uma indissociabilidade entre o personagem e o sujeito/ator. Se relacionarmos estas
manifestações com as manifestações emitidas com relação à dramatização, percebemos ainda
uma indissociabilidade entre o eu e o personagem. Vejamos estas falas:
“essa eu assisti quando ela atropelou a outra...” (4)
“essa moça está precisando se tratar né?” (1)
“eu não assisto novela, essa cena eu assisti.” (4)
“Professora 1 – quem é a Vidinha?
Professora 3 – a Vidinha é uma menina que dá em cima do marido dela
[...] ontem beijou o marido da outra [...] na boca ainda!”
Estes comentários, retirados de uma conversa que acontece assim que a cena começa, no
primeiro dia, representam um momento no qual as professoras começam a entrar na narrativa,
situam os personagens, retomam momentos anteriores da narrativa e fazem referência à
informações que receberam dos outros meios de comunicação, como revistas de fofoca ou
reportagens sobre a vida dos atores. Quando a cena começa, existe um breve silêncio,
interrompido por um suspiro da Professora 3 que é comentado pela Professora 4:
“Professora 3 – Ah! Não tinha assistido!
Professora 4 – deve ser engraçado assistir você... ver você assistindo
novela”
Este é o primeiro de uma série de comentários das professoras com relação à filmagem,
pois apesar de estarem cientes de que a vivência seria registrada em fita de vídeo – o que foi
determinado no primeiro encontro quando foram acertados os dias e as participantes – em vários
momentos durante todo o processo, as professoras fizeram comentários sobre a filmadora e o fato
de estarem sendo filmadas, como se sentiam, o que pensavam sobre o assunto, etc. Neste
comentário a Professora 4 demonstra que tem consciência de que esta fita será assistida pela
pesquisadora, e a confusão de “assistir você... ver você” deixa claro que este “assistir” não se
refere à estar ao lado no momento no qual a Professora 3 assiste à novela, mas principalmente
“assistir” pela televisão a ela assistindo à novela.
No desenrolar da cena, as professoras continuam conversando e comentando as cenas,
muito envolvidas com a narrativa:
“Professora 2 – Mas se ela não se joga ela se machuca
Professora 3 – ela machucou o joelho tudo assim, mas eu matava se fosse
minha filha”
Estas demonstrações de envolvimento emocional são muito interessantes se pensarmos na
identificação com uma ou outra personagem. Em um primeiro momento, a Professora 3 mostra
uma certa identificação com a Heloísa, quando repreende o comportamento da Vidinha, “que dá
em cima do marido” da Heloísa, mas neste momento do atropelamento, quando elas discutem se
a Vidinha se machucou ou não, ela mostra uma identificação com a Lorena, mãe da Vidinha. Esta
questão entra em contato com a discussão sobre identificação no cinema de Aumont253, na qual
explica que o espectador não se identifica com um ou outro personagem durante toda a narrativa,
253 AUMONT, 1995.
mas se identifica com determinadas situações, ou tipos; no primeiro caso, com o papel de esposa,
e no segundo, com o papel de mãe.
Por outro lado, são feitos comentários que se referem à construção da novela, sobre as
escolhas da representação social de alguns personagens, por exemplo, como nesta manifestação
da Professora 3:
“A empregada continua negra” (3)
Neste comentário aparecem dois elementos: em primeiro lugar, a consciência da
professora de que esta situação se trata de um pesquisa, e que portanto, elas estão sendo
observadas, e nesse sentido, ela tem uma imagem a preservar, a de uma professora crítica que
consegue perceber a reafirmação do preconceito de raça, ainda presente na maioria das
telenovelas brasileiras; e em segundo lugar, um comentário que se coloca como um chavão
dentro das discussões de preconceito, o que pode ser visto como um pensamento estereotipado,
referente a como se comportar e ao que observar.
Na continuação da cena, a Heloísa aparece em seu apartamento, em uma cena longa que
mostra as expressões faciais da atriz em silêncio, com uma trilha sonora e uma iluminação baixa
que ajudam a criar o clima de loucura que se instaura na sala onde ela permanece até o fim da
cena. Durante esta cena, as professoras comentam o que ouviram falar que irá acontecer a seguir:
“Agora ela vai tentar se jogar da janela” (2)
A Professora 1 dá risada pensando que a Professora 2 está brincando, mas a Professora 2 e
a Professora 3, confirmam dizendo que é verdade. O que é interessante notar neste momento, é
que as duas professoras repetem a mesma frase 3 e 2 vezes respectivamente, a Professora 2
dizendo que sua tia havia lhe contado, e a Professora 3, dizendo que a empregada, que era
maltratada pela Heloísa, é quem a salva:
“coitada da minha tia que me contou” (2) [3 vezes]
“coitada da empregada que ela humilha o tempo inteiro que salvou ainda
ela” (3) [2 vezes]
As duas em uma fala cega, repetindo automaticamente a mesma frase como se ninguém as
estivesse ouvindo, com os olhos fixos no aparelho de televisão.
Deste momento de total imersão na narrativa, inicia outro momento com um tipo diferente
de imersão, as professoras discutem sobre a saúde mental da atriz Giulia Gan:
“Professora 1 – mas ela é louquinha na vida real
Professora 2 – eu também acho, eu acho que é ela que...
Professora 3 – eu não sei...
Professora 2 – eu não, acho que ela... ela é assim mesmo!
Professora 3 – Será?
Professora 2 – Louca sim!
Professora 3 – Ela é louca na vida real?
Professora 2 – Tanto que o Pedro Bial conseguiu tirar a guarda da...
Professora 1 – louquinha, louquinha [sinal de mais ou menos], mas agora
acho que ela está de volta”
Esta conversa evidencia uma confusão entre a vida real da atriz Giulia Gan e a sua vida
ficcional como Heloísa, é interessante notar que se retome esta conversa (logo que iniciou a cena
a Professora 1 comenta: “essa moça está precisando se tratar né?”) justamente em um momento
no qual a iluminação, a trilha sonora, a filmagem em super-close, e a expressão corporal e facial
da atriz constroem um clima de loucura e angústia. Conversa esta que será retomada pelas
professoras no último dia da vivência quando assistem novamente à mesma cena. Neste sentido,
podemos perceber um tipo diferente de imersão na narrativa, pois as duas vidas da atriz (ficcional
e real) se confundem nas revistas de fofoca, que transformam fatos isolados em partes contínuas
de uma narrativa que pode ser acompanhada pelos leitores. Mas a construção destas narrativas é
sempre fragmentada, formada por algumas cenas assistidas da novela, e pela leitura de alguns dos
fatos que aparecem nas revistas, as lacunas são então preenchidas pela imaginação acostumada a
completar, com continuidade, fatos isolados, como em uma história em quadrinhos.
Nesta discussão percebemos a confusão entre a atriz e a personagem; a personagem
Heloísa é caracterizada como louca na novela, tem um ciúme doentio do marido e por isso tem
algumas atitudes consideradas exageradas, assim, no momento em que ela aparece, as professoras
falam sobre ela como se ela fosse uma extensão da atriz Giulia Gan, que a representa. A atriz é
tida como louca por elas, e a justificativa da Professora 2, para garantir que ela seja “louca na
vida real”, é que o apresentador de televisão Pedro Bial, conseguiu “tirar a guarda da...”
provavelmente do filho deles. Mas obviamente um fato não justifica o outro, a vida das atrizes
contada nas revistas de fofoca é uma outra construção, e nem sempre corresponde ao que
realmente acontece. Mas para as professoras, as fofocas e a imagem da atriz representando uma
personagem louca, são suficientes para que elas acreditem que ela seja louca na vida real.
Esta discussão se inicia no primeiro dia, mas é retomada no último dia, mesmo depois que
a novela já havia terminado, com o mesmo enfoque, mas agora a confusão entre a realidade e a
ficção se dá em outro nível. A confusão entre atriz e personagem, é trocada pela confusão entre a
existência ficcional e real da personagem:
“Professora 2 – se você pensar bem nessa novela no final da... no último
dia, na cena dela, ela ainda ficou completamente maluca né?
Professora 3 – não!
Professora 4 – mas claro que sim
Professora 3 – claro que não
Professora 2 – mas claro que sim
Professora 2 – ela não melhorou um pouquinho se quer
Professora 3 – ah não, não, ela melhorou sim
Professora 2 – melhorou nada!
Professora 4 – ela só ficou dissimulada
Professora 2 – ela ficou dissimulada
Professora 3 – eu não concordo
Professora 2 – ela aprendeu a fingir
Professora 3 – não, vocês não acreditam nas pessoas gente, ah não!
Professora 2 – de jeito nenhum
Professora 3 – ah ela melhorou, melhorou, ele é que é doente também, não
pensem que é só ela é doente, os dois são doente
Professora 4 – acho que é mais doente quem fica discutindo isso
Professora 3 – porque olha bem, ele tomou parte de toda essa história aí, e
ele ainda fazendo ciuminho pra ela, não, ele é doente também, é igual ela”
Aqui as professoras discutem se, depois do tratamento que a personagem sofreu na
novela, ela “melhorou”, se curou, da loucura ou não. O capítulo ao qual as professoras se referem
é o último capítulo da novela, então a continuidade da loucura ou não, não é possível, pois a
ficção é interrompida e a construção da personagem também. A construção dos personagens de
filmes ou novelas se dá durante a produção, portanto a caracterização do personagem varia no
decorrer da narrativa, eles não têm um caráter definido, a unidade de caráter acontece na
percepção do espectador, quando lembra e retoma os fatos dos quais o personagem fez parte.
Quando a Professora 2 inicia a discussão dizendo que a personagem continuou louca a partir da
última cena, e as outras respondem e discutem a respeito, mostra que a narrativa da novela se
mantém em suspenso, com se continuasse se desenrolando nas cabeças das professoras, mesmo
depois de passado quase um mês do término da novela. Apesar da Professora 3 comentar que “é
mais doente quem fica discutindo isso”, se distanciando da imersão, sua afirmação é ignorada
pelas outras professoras.
Para entender esta confusão podemos retomar a discussão sobre identificação no cinema,
de acordo com Aumont. Dentro do processo de identificação que ocorre no cinema temos a
identificação cinematográfica primária e secundária. A identificação cinematográfica primária
seria a identificação do espectador com o sujeito do olhar, indispensável para que este assista ao
filme e compreenda qualquer produção filmográfica ou videográfica; se a identificação
cinematográfica primária não acontece, as imagens que aparecem na tela são literalmente não-
identificáveis e não passam de um desfile de sombras e cores. A identificação cinematográfica
secundária seria a identificação do espectador com a narrativa e seus personagens.
Como primeiro elemento levantado na identificação cinematográfica secundária, temos a
identificação com a narrativa, ou seja, no momento em que começamos a ouvir uma narrativa, em
qualquer situação, nos prendemos a ela. Podemos perceber isto neste caso, pelo fato de que esta
cena da telenovela foi assistida pelas professoras duas vezes durante o período da vivência, e
mesmo assim, nas duas vezes, assim que se iniciou a narrativa, as professoras se ligaram a ela e
prestaram atenção, ficaram envolvidas. E ainda, na segunda vez em que foi passada a cena para
as professoras, a novela já havia acabado, o que poderia ser um motivo para que elas não se
interessassem por este fragmento de narrativa já assistida e parte de uma história que já acabou.
No entanto, elas se prenderam à narrativa, a acompanharam até o final e mostraram o mesmo tipo
de envolvimento que na primeira vez, se manifestando ainda mais espontaneamente, talvez por já
estarem familiarizadas com a pesquisadora. Como foi discutido no segundo capítulo desta
dissertação, a narrativa desperta no espectador a sensação de que de alguma forma fala dele
também, como algo que lhe diz respeito profundamente, pois reproduz a estrutura edipiana, que
faz parte da constituição individual da personalidade já na primeira infância; segundo Aumont254,
este é um dos motivos pelos quais ocorre a identificação com a narrativa.
O segundo elemento da identificação cinematográfica secundária se refere à identificação
com os personagens, com os tipos representados. Os personagens não são indivíduos com um
caráter definido, eles constroem-se enquanto a novela avança, o que, no caso das novelas
brasileiras, está relacionado com as pesquisas de mercado realizadas com os espectadores que
assistem às novelas.
A interferência dos espectadores na construção dos personagens e na continuidade da
narrativa pode ser entendida a partir da discussão sobre a Indústria Cultural, na qual insistimos no
mecanismo denominado por Marcuse de falsa consciência, uma falsa compreensão da realidade
fundada em uma falsa liberdade de escolha. Este falseamento produz uma identificação do
espectador com a sociedade como um todo, e pelo controle das necessidades, vontades e desejos,
as escolhas dos consumidores são condicionadas pelas possibilidades ofertadas pela própria
indústria cultural, o que faz com que as opiniões coletadas nas pesquisas de opinião, estejam
conectadas com um número finito de possibilidades oferecidas de antemão pela própria indústria
da telenovela. Como afirma Marcuse:
Pois a cultura democrática dominante promove a heteronomia sob a máscara da
autonomia, impede o desenvolvimento das necessidades e limita o pensamento e
a experiência sob o pretexto de ampliá-los e distendê-los por toda parte. A
maioria dos homens usufrui de um considerável espaço para compra e venda, para
a busca de um trabalho e em sua escolha; podem expressar sua opinião e mover-
254 AUMONT, 1995.
se livremente – mas suas opiniões jamais transcendem o sistema social
estabelecido, que determina suas necessidades, sua escolha e suas opiniões. A
liberdade mesma opera como veículo de adaptação e limitação.255
A identificação com os personagens se dá na lembrança do espectador, ele reconstrói o
caráter dos personagens ligando as cenas que assistiu da telenovela; assim, os personagens
aparecem como dotados de um perfil psicológico relativamente estável e homogêneo. Esta
sensação é o que faz com que pensemos neles como pessoas reais, com os quais acreditamos nos
identificar.256 É a lembrança fragmentada das cenas assistidas e das notícias lidas nas revistas de
fofoca que comentam as novelas, que permitem que o perfil do personagem seja construído. Este
processo aparece claramente neste trecho da conversa entre as professoras, no qual se referem à
personagem como dotada de um perfil psicológico estável e homogêneo, o que levou as
professoras 2 e 4 a afirmar que ela não melhorou após o tratamento, enquanto a Professora 3
afirma que ela melhorou e ainda repreende as colegas dizendo “não, vocês não acreditam nas
pessoas gente, ah não!” ou seja, existe uma confusão entre as fronteiras da vida real e da vida
ficcional, a existência do personagem transbordou os limites entre a ficção e a realidade, ele é
visto como uma pessoa real que habita o espaço real.
Foi interessante que se tenha retomado a discussão, incluindo as novas informações dos
outros capítulos, como se a história da telenovela estivesse acontecendo, como se o que vimos na
televisão fosse um recorte desta história, que possui um antes e um depois. A noção de
continuidade que aparece aqui é um elemento narrativo utilizado nas telenovelas para conectar
um capítulo ao outro no decorrer dos dias, o que é introjetado pelas pessoas como um elemento
estrutural da narrativa, que gera uma ligação com a vida real. A noção de continuidade, aliada à
255 MARCUSE, 1998, p. 164. 256 AUMONT, 1995, p. 265.
noção de fora de campo, completam esta ligação por propor que mesmo que o fato não esteja
sendo transmitido pela televisão, ele pode estar se desenrolando no espaço fora de campo.
No primeiro dia, quando termina a cena, a Professora 4 realiza uma ruptura com a
narrativa, tentando analisar a ficção e a relação entre atores e personagens:
“Professora 4 – Como é que uma pessoa, um ator sai no final de um dia de
gravação como essa? Como é que elabora isso?”
Professora 1 – Eles estão exauridos.
Professora 3 – Só fazem isso
Professora 4 – Tem que trabalhar emocionalmente estas questões porque
você encarna o papel
Professora 3 – Ela quase se matou aí
[...]
Professora 1 – O que você falou, é uma agressão que eles sofrem e alguns
não conseguem se desligar do personagem depois que termina ali”
Nesta conversa, as professoras fazem uma ponte entre a conversa anterior, quando
discutem a saúde mental da atriz Giulia Gan, e a consciência de que estão assistindo a uma
representação, construída, na qual atuam profissionais. No entanto, os comentários das
professoras se referem a uma confusão entre ficção e realidade por parte dos próprios atores, pois
elas afirmam que os atores não conseguem se desligar dos personagens que representam, como se
eles não soubessem que a telenovela se trata de uma representação ficcional. Podemos ler esta
conversa como uma projeção das professoras nos atores, uma dificuldade sentida por elas para
diferenciar a ficção da realidade. Já que é parte da profissão de ator saber o limite entre a ficção e
a realidade, e entre as várias ficções vividas por eles, pois em alguns casos, os atores representam
vários papéis, trabalham em várias ficções ao mesmo tempo.
Por outro lado, no terceiro dia da vivência, enquanto as professoras assistiam à cena da
novela algumas manifestações mostram que depois de produzir a dramatização, o ensaio
fotográfico e discutir a linguagem visual, a postura das professoras frente à cena se modificou:
“Professora 1 – ah aquela tristeza [...] tenho uma reclamação a fazer, você
quando editou não botou o fundo musical adequado! [se dirigindo à
pesquisadora]
[todas concordam]
Professora 2 – é mas aí que está a grande diferença
[...]
Professora 4 – é a mesma história do Matrix
[...]
Professora 3 – na verdade dá uma tristeza na gente essa música
Professora 4 – não, e olhar com essa cara”
Nesta conversa percebemos uma atenção das professoras para com os efeitos especiais, ou
os elementos formais que constituem a cena, e os comentários podem ser vistos não tanto como
uma reclamação pelo fato da cena que elas fizeram não ter sido editada com efeitos especiais,
quanto um primeiro momento de distanciamento com relação à narrativa para perceber os
elementos formais que constroem o clima desta cena. Durante a construção do roteiro as
professoras foram solicitadas a pensar sobre efeitos especiais que pudessem ser incluídos, mas
sua compreensão formal ainda não possibilitava este distanciamento formal da dramatização,
estágio atingido aqui no final do terceiro dia da vivência. Esta compreensão formal mais apurada
foi manifestada ainda em outros momentos:
“Professora 4 – é a terceira vez que eu estou vendo essa cena e estou
achando ele meio... meio artificial
Professora 3 – ele é tão bonito que a gente nem percebe que ele é artificial
Professora 4 – a interpretação dele não está tão boa assim”
“Professora 4 – eu queria saber quem que assinou o apartamento [...] eu
fico olhando a decoração, eu faço coleção de revista de decoração”
“Professora 3 – olha o quadro que legal, mostrando bem abstrato assim
vermelho
Professora 4 – é a mesma cena né?”
Destas manifestações podemos ver que as professoras começam a perceber elementos que
não foram notados no primeiro dia: na opinião da Professora 4, o ator Marcelo Anthony não atua
tão bem quanto ela pensava, o que é reforçado pela Professora 3, que afirma que o fato dele ser
bonito é o que impediu que elas percebessem isso antes. No entanto, o que acontece, é que
aparentemente agora, a construção da cena está mais clara para elas, elas atingiram um nível
diferente de concentração ao assistir a cena, no qual o envolvimento com a narrativa não é total,
existe uma brecha para um certo distanciamento. Nesse sentido comentam ainda a decoração do
ambiente no qual acontece a cena, o que pode ser visto como uma atenção à visualidade, à
aparência do cenário. A última afirmação da Professora 4, na qual ela pergunta se esta é a mesma
cena assistida no primeiro dia, demonstra que ela está vendo esta construção de forma diferente, e
desta nova forma de apreender a produção videográfica surge a dúvida sobre a identidade das
duas experiências.
3. Dissociações entre Forma e Conteúdo
Durante a vivência as professoras produziram a dramatização e o ensaio fotográfico, duas
atividades que, junto com as conversas sobre estas produções, possibilitaram um aprofundamento
na compreensão da relação das professoras com a linguagem visual. Com estas produções foi
possível perceber, por uma expressão não-verbal, como as professoras articulam estas linguagens
com seus discursos.
Em seguida serão apresentadas as falas das dramatizações:
Dramatização 1:
“Professora 2 – eu vou usar a minha sacola, chegando do mercado, a
gente chega assim ó, pronto.
[Professora 1e 2 riem]
Professora 4 – a sacola anda junto com ela.
Professora 2 – filho faz isso, faz aquilo e o cara está estático ali
Professora 2 – o que aconteceu? brigou com alguém? bateu o carro? Está
doente?
Professora 1 – não
Professora 2 – o que que aconteceu?
Professora 1 – fui demitido
Professora 2 – ah!
Professora 1 – a firma faliu
Professora 2 – ah!
Professora 1 – E agora?
Professora 2 – E agora? Que vamos fazer?
Professora 1 – bom, Vamos ter que cortar tudo... boutique, festas,
academia...
Professora 2 – escola... [bem baixinho]
Professora 1 – festas
Professora 2 – natação [bem baixinho]
Professora 1 – tudo, tudo, tudo
Professora 2 – Tudo? Não tudo não, não, não... você tem que falar não
também... não... e a gente vai chorar agora...
Professora 1 – fim.
Professora 2 – pronto, estático”
Dramatização 2:
“Pesquisadora – então, tá, nós estaríamos então na frente do portão da
casa
Professora 4 – isso
Pesquisadora – as duas estão grávidas?
Professora 4 – as duas estão grávidas, as duas vizinhas conversando
Pesquisadora – Vizinha decidi largá o João
Professora 4 – ué, pro que? Eu acho até que ele era bão procê e pros
menino
Pesquisadora – era bom pra mim é bom tamém pras outra!
Professora 4 – não tô entendendo
Pesquisadora – sempre sabia que ele num era ninhum santo, magora foi
demais da conta
Professora 4 – O que aconteceu?
Pesquisadora – o Neco disse que viu ele com otra e a danada tá até
grávida, ih olha aí Neco vindo aí
Professora 4 – Xi acabei de lembrar da panela no fogo
[todas riem]”
Para compreender as dramatizações, é interessante pensar no momento em que os roteiros
foram construídos, no qual aparecem as escolhas feitas pelas professoras e o trajeto percorrido
por elas para chegar à configuração final da cena acima apresentada. Enquanto elas escreviam,
conversavam e comentavam as escolhas.
Para organizar as manifestações das professoras e realizar a ligação entre as falas e o
roteiro realizado, as conversas sobre as cenas serão divididas por duplas, em primeiro lugar, a
dupla formada pelas Professoras 3 e 4, que produziram a Dramatização 2, e em segundo, a dupla
formada pelas Professoras 1 e 2, que produziram a Dramatização 1.
Um momento interessante da construção do roteiro da dupla Professora 3 e 4, é no qual
elas definem o caráter da cena:
“Professora 3 – duas mulheres juntas conversando, pode ser um chá, ou
alguma coisa assim? Chá?
Professora 4 – pode ser
Professora 3 – não, vamos fazer uma coisa engraçada
Professora 4 – é, mais engraçado
Professora 3 – que você falou... vamos fazer diferente, a vizinha, as duas
vizinhas conversando [faz um sinal de uma e outra] ... o marido
Professora 4 – beleza! Já temos umas dez cenas aí
[...]
Professora 4 – a cena acontece no portão tem que ser no portão
Professora 3 – portão, não tem portão, é no barraco, na frente do barraco
Professora 4 – na porta
Professora 3 – o que elas estão fazendo? Vendo as crianças brincar na
rua, numa poça de água suja...
Professora 4 – ô, a atividade preferida deles é ficar olhando, vendo o
movimento da rua”
Neste trecho podemos perceber como aconteceu a escolha por dramatizar uma cena que se
passaria em uma favela, e ao mesmo tempo, que imagem estas professoras têm das pessoas que
moram em favelas, para os quais a atividade preferida é ficar vendo o movimento da rua e cuja
casa não tem portão. Retomando a discussão sobre o preconceito, podemos perceber que as
professoras têm uma imagem fixa de como é o comportamento e como são as casas onde moram
as pessoas que habitam as favelas. Esta imagem fixa possibilita que as professoras não tenham
dúvidas de como caracterizar os personagens e o ambiente da cena, pois são suficientes algumas
poucas características.
No segundo dia da vivência, depois de realizadas as dramatizações, acontece uma
conversa sobre a realização da cena na qual as professoras são questionadas sobre a escolha do
tema, a Professora 4 explica:
Professora 4 – ah, a gente pensou em fazer alguma coisa mais engraçada
não ficamos preocupadas muito assim com o por quê, a gente viu qual dos
três que a gente imaginou uma cena engraçada e foi aquela ali [...]
engraçada porque não era nenhuma das duas que está vivendo”
Podemos perceber que ela mostra uma escolha quase aleatória do tema, como se ela e a
Professora 3 tivessem escolhido o tema pela possibilidade de fazer uma história engraçada, mas
quando retomamos a construção do roteiro, percebemos que o critério de escolha foi o de uma
cena que tivesse menos personagens e pudesse ser representada somente pelas duas professoras, a
idéia de fazer uma cena engraçada veio depois, como uma segunda idéia para o roteiro.
“Professora 4 – esse a gente podia fazer esse aqui
Professora 3 – ahã, e esse?
Professora 4 – é que aqui ó, aqui precisa de mais personagens”
Se o critério fosse apenas o de um tema que possibilitasse a construção de uma cena
engraçada, elas poderiam ter escolhidos qualquer um dos temas, pois o elemento cômico é
exterior ao tema proposto.
Na última frase do trecho recortado anterior, a Professora 4 diz que a cena era engraçada
porque não era nenhuma delas que estava vivendo, esta afirmação que foi repetida por ela em
outras ocasiões, sempre confirmada pelas outras professoras, mostra que a Professora 4 sente um
estranhamento com relação à cena produzida por ela, que de certa forma vai contra a postura que
ela assumiu no questionário e nas discussões sobre a televisão, quando ela afirmou
categoricamente que não gostava e não assistia programas de auditório, sendo que, no entanto,
podemos perceber uma grande similaridade entre eles:
“programa de auditório no Brasil é um caso sério [...] difícil salvar
alguma coisa [...] tem aqueles programas apelativos [...] aqueles dito
jornalístico [...] sangue escorrendo pela tela aquilo também não dá, não
tem condição, na verdade se você olhar bem sobra pouca coisa na
televisão pra assistir”(4)
Com estes comentários, a Professora 4 afirma que não assiste a estes programas que
exploram a “desgraça alheia” como entretenimento, e afirma que só gosta de assistir ao noticiário
na televisão; mas o roteiro apresentado por ela e pela Professora 3, tem uma grande semelhança
com estes programas que ela diz não assistir. Mas que a Professora 3 confessa ver às vezes:
“Agora meu filho me chama pra assisti Ratinho [...] ‘venha ver mãe’ na
sala, ‘venha ver mãe, venha ver o que está acontecendo’. ” (3)
A semelhança entre a dramatização e os programas de auditório que a Professora 4 diz
não assistir, é percebida pela estrutura da cena que torna engraçada a “desgraça alheia”, estrutura
utilizada em muitos destes programas, nos quais são transmitidas as “Pegadinhas”, situações
desagradáveis às quais são expostas pessoas sem aviso prévio e que se caracterizam por infligir
constrangimento e susto pela gravação escondida de brincadeiras de mau-gosto, transformando a
“desgraça alheia” em entretenimento; ou então pela exposição de situações particulares e íntimas
de conflito entre casais, ou outros membros da família, sempre visando o entretenimento. Para
pensar a transformação da “desgraça alheia” em entretenimento vamos recorrer ao texto
“Educação após Auschwitz”257 de Adorno, no qual discute que o atual objetivo da educação
deveria estar voltado para que Auschwitz não se repita, e em meio a esta discussão fala um pouco
sobre a frieza das pessoas em nossa sociedade como um dos elementos que permitiram que
Auschwitz acontecesse, pela impossibilidade de identificação com o sofrimento alheio:
Aqui vêm a propósito algumas palavras acerca da frieza. Se ela não fosse um
traço básico da antropologia, e, portanto, da constituição humana como ela
realmente é em nossa sociedade; se as pessoas não fossem profundamente
indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, excetuando o
punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de
alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas
não o teriam aceito. [...] A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a
condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz
em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas.258
Esta incapacidade de se identificar com o sofrimento alheio, como resultado da frieza que
existe em nossa sociedade, pode ser percebida nestes programas de auditório, que transformam
em comédia a “desgraça alheia”, estrutura que foi reproduzida na dramatização das Professoras 3
e 4. A diferença que podemos perceber entre Auschwitz e os programas de auditório está no fato
de que nos programas de auditório, a indiferença que apareceu em Auschwitz é transformada em 257 ADORNO, Theordor. Educação após Auschwitz. In: Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995b. 258 Ibid., p. 133-4.
entretenimento, ou seja acontece um agravamento desta frieza e incapacidade de identificação
comentadas por Adorno. Esta frieza está relacionada com o preconceito no sentido em que ela se
aplica sempre ao “outro”, como afirma Adorno quando fala que a indiferença só não se aplica ao
punhado de pessoas com as quais se mantém um estreito vínculo.
Outro ponto que pode ser levantado com relação aos programas de auditório é a exposição
do privado que se torna público, e o interesse crescente dos espectadores pela vida íntima de
outras pessoas, como aparece nos reality shows259, cada vez mais freqüentes na televisão
mundial.
Quando questionada sobre a construção da solução para a cena, a Professora 4 afirma:
“é uma coisa bem de realidade, [...] é uma resposta que é.. comum de você
encontrar, a gente até estranha isso, mas se você vai numa comunidade aí
mais carente é comum você encontrar, até de repente as duas... quando eu
trabalhava na Vila Pinto, tinha uma família que eu atendia que morava o
marido, as duas esposas e os dez filhos, todos na mesma casa [...] então
quer dizer é uma coisa que parece muito distante mas na verdade não é”
(4)
A Professora 4 diz que a solução da cena foi baseada em fatos reais, situações que ela
presenciou, ela afirma que “a gente até estranha”, mas que é muito comum encontrar estas
“respostas” nesse mundo, percebido como “distante”, que é o mundo das “comunidades mais
carentes” das favelas. A professora diz presenciar estes fatos, mas marca uma distancia muito
grande entre “a gente” e as pessoas que moram em “comunidades mais carentes”, ou seja as
259 Reality Shows se refere aos programas que apresentam cenas supostamente reais vividas por um grupo de pessoas durante o período do programa, como por exemplo, Big Brother e Casa dos Artistas, apresentados respectivamente pelas emissoras Globo e SBT, nos quais um grupo de pessoas vive isolado em uma casa durante alguns meses, são filmadas 24 horas por dia, tendo algumas das cenas apresentadas ao público durante o programa.
pessoas que moram em favelas se constituem como o “outro” deste discurso, e o contato que ela
tem com eles não ameniza esta distância.
A afirmação de que retiraram suas idéias para o roteiro da vida real se mantém mesmo
quando a pesquisadora pergunta se as professoras lembram de ter visto alguma coisa nos meios
de comunicação que estivesse ligado aos temas das dramatizações:
“Professora 4 – acho que você não tava aí, a mãe do meu aluno... da nossa
história, até ontem um aluno veio comentar, ‘ah,o pai do fulano fugiu com
a vizinha’
Professora 1 – olha aí ó, inspirou-se”
Reafirmando que a construção do roteiro tem uma grande ligação com o que acontece na
vida real.
No último dia, com o intuito de recuperar este processo, são questionadas sobre a
construção do roteiro, as escolhas feitas para delimitação da cena, sobre o que responderam:
“Professora 3 – no começo a gente pensou em fazer uma classe média, um
chá, até meio chiquezinho né [Professora 4]? [...] e aí uma amiga contando
pra outra amiga que o marido estava traindo e aí... mas vamos fazer uma
coisa mais assim povão, uma coisa né? Aí que girou em torno daí até a
[Professora 2] falou: ‘mas vocês estão falando errado você está fazendo
falar errado, isso daí já é um preconceito’ daí a gente ‘não, a gente quer
deixar engraçado’
Professora 4 – daí a linguagem não é errada, é a linguagem do local
[...]
Professora 3 – estão acostumados a usar, que eles usam, se tornou uma
discussãozinha paralela, a respeito da linguagem ou não e do social, aí
entrou no social
[...]
Professora 4 – até depois quando você reproduziu o meu comentário, eu
fiquei pensando em uma questão de valores, nós achamos engraçada a
cena, mas, por que que nós achamos isso engraçado né? [se referindo à
questão colocada pela pesquisadora que lembrou que no segundo dia a
Professora 4 comentou que elas queriam fazer uma cena engraçada]
Professora 3 – porque eles falam errado!
Professora 4 – porque eles falam errado e tal, mas, de repente não teria a
menor graça se a cena estivesse acontecendo com a gente, seria trágica
Professora 3 – seria trágico, é
Professora 4 – quer dizer, porque a gente tinha certeza de que era uma
ficção, só era engraçado porque era ficção, [...] se fosse realidade não
teria graça
[...]
Professora 3 – foi engraçado o final que você deu como que a gente ía
terminar? [...] ai o fogo, o homem está vindo ai meu deus do céu o feijão
está queimando!
Professora 4 – sim, mas é engraçado porque era ficção, a gente sabia que
era ficção, a gente levou nesse sentido assim, não teve preocupação muito
com questão de realidade, a gente resolveu brincar mesmo”
Nesta conversa percebemos que a Professora 4 tenta justificar o elemento de
estranhamento que ela apontou no trecho anterior quando afirma que somente pôde achar a cena
engraçada porque não estava acontecendo com ela. Aqui podemos lembrar das influências
apontadas pela Professora 4 e a relação que ela diz estabelecer com a cena apresentada por ela.
Ao mesmo tempo em que ela afirma ter colhido as influências da vida real, de situações e fatos
que ela presenciou, ela afirma que a cena se tornou cômica porque estava muito claro para ela
que se tratava de uma ficção.
Quando a Professora 4 diz que a cena só foi considerada engraçada porque era ficção, ela
mostra uma postura de espectadora frente à realidade, pois este distanciamento da ficção,
possibilita uma visão de fora, ela não é afetada pela cena, apesar de afirmar que este tipo de
situação é muito comum na vida real, e que ela tem muito contato com pessoas que moram em
favelas, onde isto é muito comum.
Em outras palavras, se na ficção isto pode ser engraçado porque existe um distanciamento,
o da não-realidade, como ela se relaciona com estes mesmos fatos com os quais se depara na vida
real? Será que o fato dela se permitir achar esta cena engraçada num momento no qual ela
poderia escolher qualquer situação para representar, significa que pela ficção ela pôde aliviar a
tensão de conviver com estas cenas na vida real, ou será que a postura dela frente a estas cenas na
vida real também tem um caráter ficcional? Se lembrarmos da colocação de Adorno sobre a
frieza, e da colocação da professora de que “a gente até estranha” mas que é comum encontrar
estas situações em “comunidades mais carentes”, percebemos que, neste caso, o distanciamento
apontado pela professora é o distanciamento em relação ao outro, possibilitado pela frieza.
Para compreender esta questão podemos retomar mais uma vez a afirmação de Adorno de
que com a mediação da Indústria Cultural a realidade passa a ser vista pelos óculos da televisão,
ou seja, a realidade apresentada na televisão e a forma pela qual é apresentada, se tornam os
moldes para a relação com os momentos na vida real, os óculos da televisão, se referem à postura
de espectador frente à vida.
A postura de espectadora que parece ser assumida pela Professora 4 será compreendida no
final deste item, quando discutirmos como as professoras se sentiram com o fato de estarem
sendo filmadas.
Sobre os elementos que elas incluíram na cena para torná-la engraçada, as professoras
apontam o “falar errado” e o “sair correndo” com a desculpa de que a panela com feijão estava no
fogo, a pesquisadora insiste perguntando se existe mais algum elemento:
“Professora 3 – ela sair correndo pra fugir de uma situação, né
Pesquisadora – uhum, e essas coisas que fizeram essa história então ser
engraçada, fizeram com que a gente risse depois que foi feita a coisa?
Professora 3 – e daí também tem a noção de continuidade, dá uma noção
continuidade a cena. Não é uma coisa acabada, porque está chegando
alguém, porque alguém está saindo rápido, então aquilo fica no ar assim
que vai continuar”
Este elemento de “continuidade” que elas apresentam como sendo um elemento cômico, é
um artifício utilizado nas telenovelas com o intuito de prender a atenção do espectador
prorrogando o fechamento da cena para um próximo capítulo, e que foi absorvido por elas na
construção da cena. É um mecanismo tão presente na Indústria Cultural que se retomarmos as
manifestações sobre a telenovela, percebemos que mesmo depois de terminada a novela, na
segunda vez que a cena foi assistida, no terceiro dia da vivência, as professoras manifestaram a
idéia de continuidade da narrativa, imaginando o que estaria acontecendo na novela que já havia
acabado. Podemos ainda nos lembrar da discussão sobre a Indústria Cultural que se utiliza deste
mecanismo de prorrogação da promessa de felicidade, ou realização do desejo, como mecanismo
para prender o consumidor aos produtos culturais, prometendo e prorrogando a consumação.
A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e pela encenação, é prorrogada
indefinidamente: maldosamente, a promessa a que afinal se reduz o espetáculo
significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado deve se
contentar com a leitura do cardápio.260
O “falar errado” foi mantido na dramatização mesmo com a discussão que ocorreu
durante a construção do roteiro, na qual a Professora 2 repreende as Professoras 3 e 4 dizendo
que estão sendo preconceituosas, pois este elemento foi considerado como fundamental para
tornar a cena engraçada. Mas o “falar errado” é simplesmente um elemento de caracterização das
personagens. No entanto, podemos perceber que o elemento que fez com que todas rissem ao
término da dramatização foi a iminência do confronto entre a vizinha que traiu e o amigo que
testemunhou a traição, confronto que colocaria tudo a descoberto; acrescido da saída estratégica
da vizinha lembrando da panela no fogo. A estrutura da narrativa é o suspense, o medo de ser
surpreendido é aliviado pela saída estratégica; o riso nervoso é causado pelo alívio da tensão,
como afirma Adorno:
Rimos do fato de que não há nada de que se rir. O riso, tanto o riso da
reconciliação quanto o riso de terror, acompanha sempre o instante em que o
medo passa. Ele indica a liberação, seja do perigo físico, seja das garras da lógica.
O riso da reconciliação é como que o eco do fato de ter escapado à potência, o
riso mau vence o medo passando para o lado das instâncias que inspiram terror.
Ele é o eco da potência como algo de inescapável. Fun é um banho medicinal,
que a indústria do prazer prescreve incessantemente. O riso torna-se nela o meio
fraudulento de ludibriar a felicidade. [...] Rir-se de alguma coisa é sempre
ridicularizar, e a vida que, segundo Bergson, rompe com o riso a consolidação
dos costumes, é na verdade a vida que irrompe barbaramente, a auto-afirmação
que ousa festejar numa ocasião social sua liberação do escrúpulo. Um grupo de
pessoas a rir é uma paródia da humanidade. São mônadas, cada uma das quais se
260 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 131.
entrega ao prazer de estar decidida a tudo às custas dos demais e com o respaldo
da maioria.261
O que gerou o riso, neste caso, foi o alívio da tensão. Como explica Aumont, na narrativa,
o espectador pode ser levado a se identificar com personagens que, pelo seu caráter, não sentiria
simpatia, guiado pela estrutura a narrativa. “[...] é a situação (aqui, alguém que corre o risco de
ser surpreendido) e a maneira como ela é proposta ao espectador (a enunciação) que vão
determinar quase estruturalmente a identificação com este ou aquele personagem em determinado
momento do filme.”262 O que faz com que os espectadores sintam medo pela personagem e se
instale a tensão, e depois o alívio pelo seu triunfo.
Retomando a Dramatização 1, da dupla das Professoras 1 e 2, podemos pensar na
construção e discussões sobre o roteiro e dramatização delas:
“Professora 2 – tá e aí, e o pai vai ter que ter um chilique né porque
geralmente o pai...
Professora 1 – desilusão? estado de espírito?
Professora 2 – o que aconteceu? está doente? bateu o carro? O time
perdeu? Eu digo, esses dias o [nome do marido] chegou em casa irritado
irritado, tinha voltado da pescaria sabe? olhei pra ele: o que aconteceu?
Bater o carro não bateu porque não temos, gorou a pescaria? Hahaha, e
ele: “não”, eu disse: “tudo bem depois a gente se fala”, ele chega irritado
e desconta na gente tudo o que acontece lá fora ele desconta na gente,
sabe
[...]
Professora 2 – se fosse o filho que perdeu... ‘fui demitido!’... foi demitido
mas tem seguro desemprego! 4 meses [as duas riem]
261 ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 131-2. 262 AUMONT, 1995, p. 266; 268.
[...]
Professora 2 – fui demitido, bem, estamos na miséria, o que fazer, vamos
começar os cortes... primeira coisa que eles cortam é a escola particular
dos filhos
Professora 1 – Com certeza
Professora 2 – é sempre assim
Professora 1 – é que eu não consigo mexer na educação!”
Estes trechos da conversa entre as professoras mostram o ponto de partida e a estrutura da
narrativa. A partir deste ponto as professoras começam a construir os diálogos e a ambientação.
No roteiro da dupla das Professoras 1 e 2, a discussão sobre os cortes de gastos que serão feitos
pela família se torna o eixo da narrativa, e a discussão se a escola deve ser cortada ou não é o
foco principal. Momentos depois, a Professora 2 propõe que elas façam o contrário do que elas
acreditam que seja feito pela maioria das famílias:
“mas se a gente disser tudo contrário que esse povo quer?” (2)
No lugar de cortar a escola, ela propõe que se corte passeio e academia, deixando a
escola. O que é interessante notar nas falas da Professora 2 é a constante retomada de situações
vivenciadas por ela, o que ficou claro no exemplo acima quando ela conta o que passou com o
marido, e em seguida repete a mesma estrutura de diálogo no roteiro. Isto se repete quando ela
fala do desemprego, contando que sua filha perdeu o emprego meses antes e que recebeu o
seguro-desemprego, enfatizando que neste momento sua filha teve a idéia de parar de estudar,
coisa que a Professora 2 e seu marido não permitiram, fazendo vários sacrifícios para mantê-la na
faculdade.
Analisando a conversa entre as professoras no momento em que discutiam e criavam o
roteiro, pode-se perceber que cada escolha feita pelas Professoras 1 e 2 é conectada a momentos
vividos, principalmente pela Professora 2, que conta longas histórias para ilustrar as escolhas.
Este elemento é importante porque quando são questionadas, no encontro seguinte, sobre as
fontes de inspiração para os roteiros elas se referem exclusivamente aos fatos de suas vidas.
No início da dramatização a Professora 2 anda pela sala com duas sacolas nas mãos
dizendo que é assim que ela chega do mercado, mas no entanto ela está representando o filho. A
escolha dos personagens que apareceram na dramatização é muito interessante pois foram
escolhidos o filho e o pai como sendo as figuras consideradas mais importantes pelas professoras
para a caracterização da cena, mas desde o início aconteceu uma confusão sobre esta escolha.
Durante a construção do roteiro elas diziam que um dos personagens seria imaginário, mas que
estaria presente durante a conversa, em alguns momentos era o pai e em alguns momentos era o
filho, em nenhum momento a mãe foi colocada como personagem imaginário, no entanto, na
dramatização acontece uma inversão e quem não aparece na cena, nem imaginariamente, é a mãe.
Esta questão é relevante já que as duas são mulheres, a Professora 2 é casada e mãe, e a
Professora 1 trabalha com crianças há muitos anos, o que torna a opção por omitir a mãe
significativa, e, um elemento que dificulta a leitura da dramatização, pois não foi incluído
nenhum comportamento diferenciado que identifique o personagem como sendo pai, ou filho ou
mesmo a mãe. É uma conversa entre duas pessoas, na qual não se pode identificar diferença de
sexo ou idade. É claro que na leitura da dramatização não foi exigida, das professoras, qualquer
qualidade estética, o que está sendo levantado é a escolha por omitir a figura da mãe, personagem
mais próximo da vivência das professoras, substituída pelas figuras do pai e do filho.
É interessante levantar as diferenças entre as duas dramatizações quanto à formalização:
enquanto na Dramatização 2 aconteceu um pensamento formal, uma tentativa de caracterização
do personagens e ambientação da cena, na Dramatização 1, estas questões não foram pensadas
pelas professoras. Elas definiram um diálogo e o apresentaram, sem colocar nenhum elemento
formal que ajudasse na caracterização dos personagens, isto pode ser compreendido pela forma
como se relacionam com a linguagem visual, na qual a naturalização da forma impede que se
perceba sua construção formal, fundamental para ambientação e compreensão da Dramatização.
Assim, o pensamento das professoras estava focado no conteúdo do que seria apresentado e não
na forma como seria apresentado. O elemento que traz uma certa caracterização à cena é a
entonação das professoras e a forma drástica como é apresentada a questão ao filho, que mostra
um certo desespero quando sabe que serão feitos cortes nos gastos da família.
Durante a dramatização a Professora 2 fala bem baixinho para lembrar a Professora 1 de
coisas que estavam no roteiro e que ela havia esquecido, como educação e natação, o que vai
contra sua decisão de não cortar os gastos com a educação do filho. Este ponto é muito relevante,
pois durante a conversa sobre a dramatização no terceiro dia, a pesquisadora questionou sobre
esta escolha de incluir ou não a educação nos gastos a serem cortados, tomando como base o que
foi dito pelos personagens na dramatização, e elas se colocaram como tendo escolhido que a
educação não seria cortada. Outro elemento que pode ser lembrado é a repetição do diálogo que a
Professora 2 teve com seu marido, contada para a Professora 1 durante a construção do roteiro.
Quando questionada sobre a escolha do tema, a Professora 2 responde:
“Professora 2 – ai sei lá, a gente começou a conversar, conversar, ouvimos
o que elas iam fazer da vizinha, [todas riem] então não dava pra ser igual
[rindo junto com a Professora 1], não dava pra ser igual, daí resolvemos
fazer a família de classe média que é o que está mais em vista, mais
atuante
Quando a Professora 2 diz que escolheram a família de classe média porque é o que “está
mais em vista, mais atuante”, podemos nos questionar o que a Professora quis dizer com isso:
estar mais “em vista” significa aparecer mais na mídia? E “estar mais atuante”? Quando os
meios de comunicação tratam dos problemas da educação, é comum mostrarem as dificuldades
sentidas pela classe média para manter seu padrão, mostram como as mensalidades das escolas
particulares estão subindo, como os materiais estão caros, etc. será que é a isso que a Professora 2
está se referindo? Este tipo de atuação/reclamação?
A pesquisadora pergunta como foi dada a solução para a cena, e as professoras comentam
situações que influenciaram a construção do roteiro e do desfecho da cena:
“Professora 2 – ... e o caso do pai que perde o emprego, é... tudo é
cortado, né? principalmente, a escola, a primeira coisa que eles falam é
tirar a escola do filho: ‘vamos passar você pra uma escola pública’, como
se a escola pública fosse a pior das coisas. ‘Vamos tirar a natação, vamos
tirar não sei o que’, agora em nenhum momento ele lembrou em tirar o
cigarro, tirar o futebol...
Professora 1 – bebida, o futebol
Professora 4 – é uma questão de prioridades
Professora 1 – a revista educação tem uma reportagem sobre isso, que
enfoca muito bem, está certo que eu estava lendo e estava... [se referiu à
dramatização], porque a primeira... quando o cinto apertou, é essa
expressão que eles usam, a primeira atitude a tomar foi justamente tirar os
filhos das melhores escolas onde eles estavam, e colocá-los, ou numa
particular mais barata e com uma qualidade não tão boa, ou então
colocar na escola pública. ”
Na conversa entre a Professora 2 e a Professora 1 podemos nos perguntar de quem
exatamente elas estão falando: do personagem da dramatização, de alguém concreto ou das
pessoas em geral?
A Professora 1 fala de uma referência nos meios de comunicação, mas na continuação da
conversa, a pesquisadora pergunta às professoras se elas lembram de ter visto alguma coisa nos
meios de comunicação relacionado aos temas trabalhados por elas, antes ou depois de fazer o
roteiro e a dramatização, já que elas dizem que são temas tão cotidianos. E, apesar da Professora
1 ter comentado momentos antes sobre esta reportagem que ela leu em uma revista, na resposta à
pergunta, as professoras se referem a fatos que vivenciaram:
“Professora 2 – ao lado da minha casa tem uma panificadora que os filhos
estudam todos na escola particular, é, conversando com ela, com a dona
da panificadora, ela, o marido foi demitido e agora está só na
panificadora, ela mesmo disse pra mim, ‘olhe agora que o [nome do
marido] perdeu o emprego, acho que ano que vem’ ela tem um casal de
filhos gêmeos, ‘acho que ano que vem os gêmeos vão voltar pro [escola
pesquisada].’ Sabe? Então você veja, é uma coisa que acontece a menina
vai pro segundo grau, vai tentar Colégio Estadual e o menino vai, os
meninos, os gêmeos virão pro [escola pesquisada] onde fizeram o pré,
sabe”
Em resposta à pergunta sobre referências encontradas nos meios de comunicação, elas
contaram fatos vivenciados por elas, não fazendo nenhuma referência aos meios de comunicação,
como se por algum motivo, fosse mais adequado falar das influências da vida real.
Em um outro momento a pesquisadora questiona sobre as escolhas que elas fizeram
quanto aos cortes dos gastos, pois a Professora 1 que representava o pai na dramatização, diz ao
filho que serão cortados os passeios, a boutique e as festas, mesmo que a Professora 2 tenha
falado em voz baixa, escola e natação, o que se ouviu foi: os passeios, a boutique e as festas,
então se elas comentaram que o que elas conhecem e sabem que acontece é que o primeiro corte
recai sobre a educação, como foi esta escolha? É interessante levantar ainda que, apesar de ser o
pai a conversar com o filho sobre os gastos, boutiques e festas são elementos característicos do
universo feminino, relembrando aquela confusão sobre a idade e o sexo dos personagens.
“Professora 2 – ah pra gente ser um pouco diferente, porque assim que a
gente gostaria que fosse agido, porque a gente sabe que não é o que
acontece... e se você pensar bem, é, eu passei agora por uma parte dessa
[...] e foi isso que eu senti, que acho que muitas vezes não tem essa
necessidade ‘ah corta tudo’, seria muito mais fácil”
Para justificar a escolha por não cortar educação, a Professora 2 conta a história de sua
filha, que perdeu o emprego e a Professora 2 e seu marido fizeram muitos sacrifícios para mantê-
la na faculdade, que ela havia contado no primeiro dia enquanto as professoras construíam o
roteiro, reafirmando que elas não cortaram a educação na dramatização por saberem que é
possível manter a escola e por acreditarem que esta é importante, mesmo tendo cochichado para a
Professora 1 durante a dramatização “escola” e “natação”.
Quando questionadas sobre a construção do roteiro e as escolhas, afirmaram:
“Professora 2 – mas na realidade era bem dramático, mas que tivesse um
outro enfoque, coisa ligada na realidade que é o que acontece, e nós não
queríamos que o enfoque fosse cortar as prioridades como educação essa
coisa toda, lembra, que por isso que a gente falou em festa falou isso
porque nós usamos a realidade mas também um pouquinho pra fugir do
que [...] do que acontece pra ser um pouquinho diferente [...] é, no fundo
no fundo é pra que, pras pessoas quando acontecem isso com eles não
fizessem o óbvio que é cortar o principal e sim o supérfluo.
Professora 1 – é esperança de professora que a educação seja
considerada, porque na prática se você for conversar com as pessoas da
nossa comunidade e de outras comunidades, eles colocam o valor
educação como prioritário. É, raríssimas são as pessoas que dizem ‘não,
não precisa, meu filho não precisa mais estudar’ muito raro, seja na
classe a, b, c, d, e, f, g, h, agora, na classe média, que foi o que a gente
enfocou ali, o corte primeiro é na escola, porque a escola está muito cara
então o primeiro corte, e é um corte único, não precisa ficar escalonando
vou gastar mais, menos, não eu não gasto mais, então eu vou lá pra escola
pública
Desta conversa podemos perceber que as professoras fazem uma comparação entre o que
elas desejam que aconteça e o que percebem que acontece na vida real, usando a ficção para
alimentar a esperança, que é frustrada na vida real. Falando que, teoricamente, as pessoas com as
quais elas conversam afirmam a educação como prioridade, mas que normalmente o primeiro
corte recai sobre ela. Quando comparamos esta idéia com a história contada pela Professora 4
sobre o pai que disse que tiraria o filho da escola se ele continuasse a ser agredido pelos colegas,
de certa forma esta generalização feita pela Professora 1 é relativizada.
Como uma segunda atividade de produção, as professoras produziram um ensaio
fotográfico, que foi construído em duas etapas, em primeiro lugar as professoras foram
solicitadas a definir dois ou três conceitos que resumissem as dramatizações, para depois sair pela
escola procurando imagens que traduzissem estes conceitos. Sobre a escolha dos conceitos e suas
justificativas, as professoras disseram:
“Pesquisadora – quais você escolheu?
Professora 4 – compromisso e relações
Pesquisadora – por que você escolheu?
Professora 4 – porque hoje em dia essa questão está muito banalizada essa
questão do relacionamento, do afeto, aquela coisa: hoje eu não quero
mais, amanhã eu quero, então quer dizer é assim, você vê assim, cada dia
você encontra as pessoas com parceiros diferentes e a família também
acho que completava bem
Pesquisadora – e vocês?
Professora 1 – aqui: perda, prioridades e realidade. A realidade no
sentido do que está acontecendo, a perda que é o fato em si que é a perda
e o estabelecimento das prioridades
Professora 2 – nem sempre o que é prioridade é o que não é cortado [ri]...”
Estes conceitos representam as idéias-chaves que apareceram nas dramatizações depois de
serem apresentadas, uma elaboração das professoras depois de terem conversado um pouco a
respeito das dramatizações e, mostram como as professoras relacionam a dramatização com a
vida real.
Com os conceitos definidos, a pesquisadora e as Professoras saíram pela escola. Durante o
passeio pode-se perceber que as Professoras 1 e 2 usaram o cartão tranqüilamente e de forma
lúdica, enquanto a Professora 4 devolveu o cartão para a pesquisadora depois de tirar a primeira
fotografia. A Professora 2 estava muito envolvida com a atividade, explorando as possibilidades
de imagens que a escola proporcionava.
De volta à sala, a pesquisadora pergunta como foi a atividade, o que acharam, quais foram
as dificuldades, e as professoras respondem:
“Professora 1 – ah! legal. [...] Ainda mais gostei do trubisquinho aqui [se
referindo ao cartão utilizado como visualizador] Ah prioridade, prioridade
foi difícil
Professora 2 – foi difícil, porque, você vê teus conceitos quando você vai
fotografar você vê ele de diversas formas, qual é a realidade, que tipo de
realidade, não só aquela realidade ali [da dramatização]
Professora 4 – até porque a gente está num espaço limitado também de
imagens, tem algumas coisas que você complica pelo fato da
Professora 1 – não, e nós pegamos conceitos muito abstratos
Professora 4 – É o meu já ficou mais fácil
Professora 1 – por exemplo, compromisso eu pegaria algumas pessoas
dando a mão
Professora 4 – é vocês, o que que eu peguei, eu peguei a [nome da
secretária] trabalhando
Professora 1 – agora o abstrato, é mais fácil de traduzir, agora prioridade
realmente minha cabeça batucou [?] aqui claro educação é prioridade,
você pode traduzir por isso, mas até você traduzir por isso demora [...] a
imagem não fala
Professora 2 – a imagem quando você vai olhar bem como nós estávamos
comentando com ela, ali, a dramatização dela, dá pra ver de duas formas,
de diversas formas, depende do teu ponto de vista, e a imagem é assim,
quando você pega uma foto você pode tirar, nossa mil coisas de dentro
dela”
A princípio as professoras apontam que tiveram algumas dificuldades para encontrar
imagens que traduzissem os conceitos, a Professora 1 diz que os conceitos que definiu eram
muito abstratos, para depois dizer que “agora o abstrato, é mais fácil de traduzir”, num momento
em que conversando, encontra qual seria a sua prioridade, apontando ainda, que os conceitos
definidos pela Professora 4 eram mais “fáceis”.
Nesta conversa, a Professora 2 propõe o oposto levantado pela Professora 1, enquanto
uma não vê possibilidade de construção de discurso com a imagem, a segunda aponta que é
possível “tirar mil coisas de dentro dela”, dependendo do ponto de vista. A polissemia da
imagem existe, ela carrega muitos discursos articulados, que é o contrário do texto, como afirma
Barbero263, mas não se pode esquecer que existe uma imagem que está lá, e possibilita um
número finito de leituras e compreensões. Os dois extremos levantados pelas professoras
reafirmam a tese de Barbero, segundo a qual existe na escola uma antiga e pertinaz desconfiança
para com incontrolável polissemia da imagem, o que faz com que esta tente controlá-la tornando-
a ilustração do texto escrito ou acompanhada de uma legenda que a traduza.264 Pois se com a
imagem não é possível construir discurso, segundo a Professora 1, a legenda cumpre este papel.
Assim, o comentário da Professora 1 funciona como uma justificativa para sua dificuldade para
representar o conceito; dizendo que a imagem não fala, quer dizer que com uma imagem é difícil
articular um discurso. Já a Professora 4, considerou a tarefa relativamente fácil, encontrou
rapidamente 3 imagens que pudessem traduzir os seus conceitos, apesar de afirmar que a escola é
um espaço limitado de imagens, e que isso dificultou a atividade.
A partir desta conversa, a Professora 1 lembra-se de um programa que assistiu no canal
Futura, e o utiliza para falar sobre como a imagem pode transmitir mensagens:
“ontem passou um documentário sobre a experiência, do Bom Aluno,
quando é que surgiu e tal. Mas entre uma experiência e outra, que eles
estavam pegando experiências de todo Brasil, eles tem um vídeo-clipe da
Futura, mas são imagens de crianças, de jovens, jogadas assim, uma
montagem fabulosa, está escrito, não precisa você prestar atenção na
263 BARBERO. 2001. 264 Ibid., p.57.
música, no fundo, na letra, porque você está vendo a idéia que eles querem
te jogar, em relação à questão da educação, muito interessante” (1)
Neste depoimento sobre o programa, a Professora 1 fala de uma seqüência de imagens
que transmitem uma mensagem, a aparente contradição com a afirmação anterior – quando ela
diz que a imagem não fala – é desfeita se prestarmos atenção à forma como ela descreve esta
montagem.
Neste caso, diz que a montagem de imagens podia ser lida como um texto, não precisava
de legenda para que o espectador entendesse a mensagem que eles queriam transmitir, a
seqüência de imagens era suficiente para se compreender a narrativa, uma montagem didática.
Ela considera este dado positivo, mas pelo seu comentário, percebe-se que o conteúdo
transmitido estava tão amarrado pela seqüência narrativa, que não possibilitava qualquer tipo de
interpretação que ultrapassasse a mensagem que eles queriam transmitir, e quando ela diz que não
precisava “você prestar atenção na música, no fundo, na letra porque você está vendo a idéia
que eles querem te jogar”, ela mostra que o conteúdo era tão fechado, que a legenda era
desnecessária, e mesmo assim, existia essa legenda que reafirmava, confirmava a mensagem.
Essa colocação da Professora 1, somente aparentemente contradiz a afirmação anterior, pois para
ela, a imagem isolada de um contexto que lhe dê um significado pré-determinado por “outro”,
diante da qual ela é espectadora, ou sem uma legenda, não fala, mas quando faz parte de um
contexto dado pelo emissor da mensagem, amarrado e fechado, a imagem se presta à transmitir
mensagens. Quando ela teve que produzir um discurso com imagens, ela não soube por onde
começar porque a legenda que ela tinha na mão, que ela produziu sem saber exatamente que seria
uma legenda, não se prestava para essa função. Não facilitava e sim dificultava a tarefa de
produzir mensagens.
Ela mostra uma dificuldade para lidar com as imagens, contrapondo uma experiência fora
da ação docente (programa de televisão) a outra dentro (vivência). Fora da escola é espectadora,
lê, recebe as informações; já na escola, ela é docente, assume outro tipo de postura frente ao
discurso, pois tem que dominar, interpretar, o que mostra uma dicotomia entre a experiência
cotidiana e a experiência na escola.
No terceiro dia da vivência, quando as professoras receberam as fotografias tiradas no
encontro anterior, ficaram por um momento observando as fotografias, mostrando para as colegas
e conversando sobre elas. A Professora 4 reclama dizendo que não sabe mais tirar fotografias,
que as suas ficaram fora de foco, e separa a que considera que ficou boa (apêndice E, fotografia
03) das que considera que ficaram ruins (apêndice E, fotografias 01 e 04); a Professora 2 elogia
uma de suas fotos (apêndice E, fotografia 02), e a Professora 3, que não estava presente no
encontro anterior, pergunta qual era o objetivo da atividade. A pesquisadora responde à pergunta
aproveitando para relembrar o processo pelo qual elas passaram, falando que a partir do roteiro e
da cena, elas retiraram três conceitos que resumiam a história e que a partir destes conceitos,
saíram pela escola procurando imagens que representassem estes conceitos.
Com as fotografias nas mãos das professoras, a pesquisadora pediu que elas trilhassem o
caminho inverso: olhando para as fotografias, lembrassem dos conceitos que cada uma
representou, e refizessem a conexão destas imagens fotográficas, com os conceitos. As falas
sobre isso:
“Professora 2 – é, o ralo [apêndice E, fotografia 2] a gente usou como
perda. Porque...
Professora 1 – é ficou muito boa, olhe só os cascalhos aparecem
Professora 2 – é a fotógrafa é muito boa, tirou de pertinho pro ralo
aparecer bem grandão assim”
Esta conversa é muito importante porque revela um momento no qual as professoras
fazem comentários sobre a imagem que estão vendo, sem se referir ao que ela representa, dizendo
que a fotografia “ficou muito boa”, estão se referindo à beleza da imagem fotográfica e não à
beleza do ralo que está no pátio.
Professora 2 – é, lembra que nós usamos a realidade
Professora 1 – as crianças
Professora 2 – porque nós ouvimos uma zona que era dia de permanência,
uma bagunça toda, era na sala, eu abri a porta e bati a foto [apêndice E,
fotografias 9 e 10] eles nem sequer se tocaram que eu bati a foto [...]
porque era aquela realidade
Professora 4 – aquele momento desesperador
[todas riem]
Professora 2 – é... essa aqui e essa aqui, era além de ser família, era as
prioridades, prioridade aqui: prioridade família [apêndice E, fotografia
11] e aqui prioridade paz [apêndice E, fotografia 12] então por isso que
entrou, a outra era realidade
[...]
Professora 1 – bem cara de perda [apêndice E, fotografia 5] [...] perdi
toda...
[...]
Professora 2 – porque na realidade aqui também foi a gente, se foi...
lembra que estava chovendo e eu queria bater a fachada da escola, como
estava chovendo então eu bati “o logo” [símbolo da escola] porque é a
prioridade, prioridade enfocando educação [apêndice E, fotografia 7 e 8]
[colocar as fotos]
[...]
Professora 4 – o meu, eram dois conceitos: compromisso e... relação então
ficou essa daqui e essa daqui [apêndice E, fotografias 1 e 4] como relação
e essa [apêndice E, fotografia 3] como compromisso
Professora 1 – você não sabe o que você vai pagar de direitos de imagem
Professora 2 – autorais
[Professora 4 dá uma risada]
Professora 2 – é nós não precisamos pagar pro ralo
[todas riram]
Professora 4 – mas olha quantas crianças tem nessas fotos
Professora 3 – é vocês estão perdida viu
Professora 1 – mas das crianças a gente pegou autorização
Professora 2 – é, todinhas, está lá, autorização pra imagem”
Nesta conversa percebemos que elas retomam o momento no qual tiraram as fotografias,
lembrando os motivos que as levaram a escolher determinadas imagens, indicando qual imagem
representava qual conceito, para em seguida, a pedido da pesquisadora, retomarem a relação entre
os conceitos e a dramatização:
“Professora 2 – Por exemplo aquela foto lá dela, dessa aqui, o estado de
desânimo que ela está mostrando ali, desanimada aqui. [apêndice E,
fotografia 5] Assim ficou, por exemplo, a gente na hora que a gente soube
que o pai perdeu o emprego, e que ía ter que cortar tudo... então, ficou
uma sensação de perda da realidade que a gente tinha que enfrentar por
muita coisa; e até a prioridade, ali sendo prioridade educação e família
perdeu-se porque a gente fez como prioridade e sentiu na conversa que
nós tivemos do nosso texto, que não ía ser a prioridade, que educação não
ía ser então tem tudo...
Professora 1 – bem contrário, primeiro corte, sai da escola particular, vai
pra escola pública, que é o que a gente escuta aqui na escola”
Nesta explicação da Professora 2, percebemos a construção de um pensamento confuso
que inicia com a comparação do desânimo da secretária na fotografia (05, apêndice E) e o
desânimo sentido pela família na qual o pai perde o emprego; mas é interessante que quando ela
começa a falar da sensação de perda ela fale: “além dessa sensação de perda da realidade que a
gente tinha que enfrentar por muita coisa”, conectando a perda do emprego com a perda da
realidade, como se a mudança das condições financeiras da família ocasionasse uma mudança na
estrutura da família, que aparece quando ela diz que “educação e família perdeu-se”. Será que as
mudanças nas condições financeiras da família geram realmente a perda da família, da educação
e da realidade? Se pensarmos em uma sociedade, como a nossa, que se estrutura a partir do
emprego, a perda do emprego pode significar a perda do sujeito, do real, um sentir-se fora da
realidade, estereótipo que é reforçado pelas imagens das mídias. Questão que foi apontada pela
Professora 1 quando falava do conjunto habitacional, afirmando que existia “gente muito boa,
que tinha emprego” e as “outras pessoas”.
Em seguida a pesquisadora volta a pergunta para a Professora 4:
“Professora 4 – o meu acho que, tanto esta [apêndice E, fotografia 1],
quanto esta foto aqui [apêndice E, fotografia 4], as duas, a questão da
relação, que foi o enfoque ali, tanto a relação daquela falando do marido
da relação mulher com o marido, quanto da relação das duas, na verdade
é a relação de todos nós, de alguma forma você está estabelecendo
relações o tempo todo, você não vive isolado, agora essa aqui do
compromisso [apêndice E, fotografia 3] aí já fica uma coisa bem mais
subjetiva nesse caso, ao contrário do que tinha acontecido com vocês lá
[...] agora essa aqui fica muito subjetiva, porque que tipo de compromisso
eu estabeleço nessas relações, [todas concordaram] até expectativas de
cada um, eu posso estabelecer um tipo de compromisso e ela outro na
mesma relação
Professora 1 – é são as diferentes visões, com essa foto também a gente
pode falar em desapego, desânimo e tudo o mais, e outra pessoa pode
enxergar ‘não, ela está placidamente pensando, ela esta lá zen’? Então
depende da ótica de cada uma, da experiência de cada um, como essa
daqui está uma foto linda
Professora 4 – esse quadro é lindo
Professora 3 – ah esse é lindo
Professora 1 – esse está muito lindo mas a foto ficou bonita”
A Professora 4 pensa o conceito de relação que a fotografia representa como a relação que
as pessoas estabelecem entre si, que pode atingir diferentes níveis e acontecer de diferentes
maneiras. Mas quando entra no conceito do compromisso, afirma que é difícil fazer a relação do
conceito com a fotografia, porque o compromisso que se estabelece em cada relação é diferente, e
a representação do compromisso na fotografia parece subjetiva para ela, porque ela pensa no tipo
de compromisso que cada um estabelece dentro da relação, ligando-o com as expectativas de
cada um. Dessa forma, para ela, torna-se muito difícil representar toda esta idéia por meio de uma
fotografia.
Concordando com a Professora 4, a Professora 1 volta a falar de sua fotografia (05,
apêndice E,), que foi definida como representando a perda, na qual ela afirma que a interpretação
depende da “ótica” de cada um, usando o relativismo para indicar que não existe uma leitura
única. Nestes comentários, tanto da Professora 4 quanto da Professora 1, podemos ver uma
tentativa de controlar os significados propostos pela imagem, pois a imagem é aberta à múltiplas
interpretações, o que significa que não pode ser controlada, mas isso não quer dizer que, dentro
das possibilidades levantadas pela imagem, uma interpretação invalide a outra, e sim que
convivem. A escolha da imagem e a sua relação com o conceito, foram produzidas
subjetivamente, não pretendiam abarcar todas as possibilidades de leitura, e nem ser única
imagem possível. Assim, quando a Professora 4 afirma que a relação proposta por ela é muito
subjetiva, como um problema, ela está percebendo que não é possível controlar a imagem,
mesmo que tenha sido produzida por ela.
Podemos notar no fim da conversa que a Professora 1 retoma a fotografia 11(apêndice E),
dizendo que “está uma foto linda”, reafirmando que o quadro é lindo, mas que a foto ficou
bonita, esta é mais uma manifestação que mostra uma consideração formal sobre as fotografias,
tenta abordar o objeto que está em sua frente sem pensar na sua referência, o quadro pendurado
na parede. É importante ressaltar que foram feitas poucas considerações formais sobre os objetos
produzidos por elas, mesmo não ultrapassando o gostar ou não gostar, já tenta olhar para a
fotografia como um objeto independente, que é diferente do quadro do qual se originou.
Outra questão interessante a ser levantada se refere à pergunta feita pela pesquisadora
sobre as possíveis diferenças sentidas pelas professoras entre presenciar a realização da
dramatização ao vivo, como aconteceu no segundo encontro, e assistir pela televisão:
“Professora 1 – ah claro que é!
Pesquisadora – como que é?
Professora 1 – você tem uma imagem de você e aí quando vê pela tv é
outra...
Professora 4 – é engraçado você se observar...”
Nesta resposta podemos perceber que a Professora 1 se refere à diferença de auto-imagem
que ela tem, ou seja, quando ela pensa em si mesma, ela forma uma determinada imagem mental
de como ela é, mas quando ela se viu pela televisão, ela se percebeu de uma forma diferente, ou
seja, percebeu uma diferença entre o real e sua representação. O que pode ser comparado com a
conversa das professoras sobre a saúde mental da atriz Giulia Gan, na qual apareceu uma
completa confusão entre a vida ficcional e a vida real da atriz; aqui a Professora 1 sente a
diferença entre sua vida real e sua vida ficcional, sua experiência concreta e a mediada. Para
estimular que as professoras falassem mais a este respeito, depois destes comentários, a
pesquisadora retoma a pergunta especificando a questão, apontando elementos como: o ponto de
vista único da televisão e o recorte temporal e espacial; com relação a esta questão, a Professora 4
comenta:
“Professora 4 – eu até... assisti uma reportagem domingo sobre aquele
filme Matrix, sobre a produção do filme, aí até comentei com meu marido
que na realidade as pessoas que fizeram, só vão ter consciência do que
elas fizeram a hora que elas assistirem o vídeo, porque grande parte do
filme é feito por computador, é montagem, então quer dizer, aquela cena
isolada que ele fez, até não tem tanto efeito quanto quando colocada
dentro de um contexto; então eu acho que acontece mais ou menos isso, no
nosso caso não tanto porque na verdade foi exatamente isso que
aconteceu, exatamente isso que agente viu aqui.”
Aqui a Professora 4 deixa claro que, na sua opinião, o que pode produzir uma diferença
entre a experiência de assistir ao vivo e a experiência de assistir pela televisão, seriam os efeitos
especiais, a montagem feita por computador, que transformariam a dramatização em uma cena
com aparência totalmente diferente da que foi presenciada. Mas ela considera que no caso delas,
isso não aconteceu porque o que passou na televisão foi “exatamente” o que aconteceu no dia da
dramatização. O que poderia ser diferenciado, neste caso, não seria o conteúdo ou a aparência da
sala, das professoras ou do que elas disseram, mas a experiência de presenciar uma dramatização
ao vivo, ou ver sua reprodução pela televisão. Aqui podemos retomar o conceito de declínio da
aura, trabalhado nos capítulos anteriores, segundo o qual o modelo de relacionamento com o real
instituído na era industrial, modifica a relação das pessoas com a experiência. O costume com a
reprodutibilidade técnica das coisas e dos momentos, anula a diferença entre a reprodução e a
coisa mesma; ou seja, a experiência única vivenciada no segundo encontro tinha aura e
autenticidade, mas a possibilidade de experienciá-la, e aí diferenciar esta experiência da
experiência da reprodução da dramatização já não existe. Podemos pensar que os óculos da
televisão, como descrito por Adorno, formatam a percepção da realidade e, que a realidade
construída que aparece na tv, é tomada pela própria realidade, ou seja, como experiência com a
realidade.
Neste sentido podemos pensar na postura de espectador apontada na fala da Professora 4
indicada anteriormente. A postura de espectador pode ser compreendida quando analisamos a
questão da exponibilidade, ou seja, como as professoras se sentiram com a situação de serem
filmadas.
Desde o início do processo podemos perceber várias falas das professoras que fazem
referência à filmagem, como por exemplo, neste comentário da Professora 4 que se refere ao
momento em que a Professora 3 suspira de susto no instante em que a Heloísa tenta atropelar a
Vidinha, na cena da telenovela, no primeiro dia da vivência:
“deve ser engraçado assistir você... ver você assistindo novela”(4)
Neste comentário a Professora 4 enfatiza a situação de pesquisa que registra o susto e
comentário da Professora 3, pensando em como seria assistir à Professora 3 assistindo à novela, e
não estar ao seu lado enquanto assiste à cena.
Uma outra forma utilizada pelas professoras para falar sobre a filmagem da dramatização,
foi a referência às crianças:
“Professora 1 – só que nós devíamos trazer as crianças pra dramatizar”
“Professora 2 – é, eles dramatizariam numa boa”
“Professora 3 – ah gente! Que legal pra fazer com as crianças!”
“Professora 4 – ah não, para fazer com as crianças é legal...”
Os primeiros comentários, feitos no segundo dia da vivência momentos antes de ser
realizada a dramatização, mostram a apreensão das professoras para realizá-la; e os segundos,
feitos no terceiro dia logo depois de terem assistido à dramatização pela televisão, a constatação
de que esta é uma ótima atividade para realizar com as crianças. As professoras afirmam que as
crianças não têm medo de se expor, “eles dramatizariam numa boa”; e para reafirmar esta idéia,
a Professora 1 conta a história de uma professora da escola que estava fazendo um trabalho com
as crianças sobre as telenovelas, no qual a professora trazia cenas de telenovela e as crianças
interpretavam, mostrando o quanto as crianças gostam de fazer estas atividades. Aqui ainda
podemos pensar nas brincadeiras de faz-de-conta das crianças, nas quais elas inventam
personagens e entram no mundo da ficção sem medo de se “perder” ou confundir com este
mundo. Esta prática das crianças mostra que elas não confundem a ficção com a realidade,
entram e saem da ficção, e quando estão dentro, assumem o personagem por inteiro, criam vozes,
trejeitos, expressões faciais e corporais para caracterizar os personagens sem medo de que isso
possa causar qualquer tipo de mal-entendido, como serem julgadas pelas palavras ou atos do
personagem.
Em outros momentos, as professoras são mais diretas nas suas colocações conversando
especificamente sobre suas sensações ao serem filmadas, como neste comentário da Professora 1
que acontece em um momento em que a pesquisadora pergunta se elas querem fazer algum
comentário sobre a dramatização logo depois de realizada a gravação:
“não, o comentário que eu queria fazer é o seguinte: a gente é tão
espontânea, a gente fala tanto, todo mundo dá aula, você se expõem, mas
quando você está numa situação de formalismo com aquela bendita
câmera, e o fato de estar numa situação que não é real no sentido do
cotidiano do nosso trabalho, você muda, é engraçado.”(1)
Quando ela fala que na vida real ela é espontânea e se expõe, e que a presença da câmera
faz com que ela se iniba, ou “mude” como ela falou, ela demonstra o incômodo com a câmera
que permaneceu ligada durante todo o processo da vivência; o que fez com que ela permanecesse
atenta à câmera durante todo o processo, e de certo modo anulou a diferença entre atuar na
dramatização e participar da vivência. A diferença entre a vida real e a dramatização foi
enfatizada quando ela falou da “sensação de irrealidade”, mas essa sensação não foi direcionada
para a ficção, para a representação de um personagem que não era ela, mas para a situação de
pesquisa. Podemos perceber que ela viveu o personagem como se ele fosse uma extensão dela,
não entrando no jogo de faz-de-conta proposto pela ficção, no momento dadramatização. Ela se
sentiu julgada pelas coisas que disse enquanto personagem, porque aconteceu uma confusão entre
o personagem e ela mesma. Talvez o direcionamento da ficção para a situação de pesquisa gerado
pela presença da câmera, tenha feito a Professora 1 assumir um distanciamento com relação à
situação de pesquisa como um todo, e a preocupação com a câmera tenha dificultado seu
envolvimento com as atividades, e a diferenciação entre a atividade da dramatização e as outras,
que não exigiam representação.
O que é reforçado pela Professoras 4:
“é aquela coisa assim, até pela questão de convivência mesmo, esse é o tipo de situação
que a gente em sala de aula vive constantemente [...] você dramatiza e faz cena e não sei
o que [...] só que, você está lá com teus alunos de todo dia... quando chega assim, são
pessoas de um outro tipo de convivência você já se retrai” (4)
Estes comentários apareceram durante todo o processo, elas se referiam ao fato de
aparecer na frente da câmera, e ter este momento registrado. É interessante observar como
dramatizar na frente dos alunos não causa constrangimento, mas no meio das colegas e de uma
pessoa de fora, a situação se mostra embaraçosa. Aqui podemos pensar sobre o que significa estar
em frente à câmera e dramatizar, assumir um papel, construir este papel e apresentar. Por um lado
existe o fato de se tornar ator, ou atuante, assumindo a responsabilidade sobre a idéia expressada
perante as colegas e a pesquisadora. Para compreender esta situação podemos pensar na fala da
Professora 4, no momento em que é proposta a atividade do ensaio fotográfico:
“eu gosto de ficar atrás” (4)
Ou seja, não aparecer, ser espectadora dos fatos, não participar ou atuar, pois atuar
significa assumir a responsabilidade e agir, enquanto ficar a trás, significa assumir uma postura
de espectadora, que observa e julga. Como disse Adorno em relação aos personagens que
aparecem na televisão: “Os homenzinhos e mulherzinhas que se obtêm a domicílio tornaram-se
joguetes para a percepção inconsciente. Algo disso poderá recrear o espectador: ele os sente
como propriedade, da qual pode dispor e em relação à qual se sente superior.”265 Este
distanciamento proporcionado pela postura do espectador que olha para um cenário construído
em sua frente, em relação ao qual se sente superior, pode ser um dos motivos que levaram as
professoras à inconscientemente preferirem “ficar atrás”, ou se sentirem demasiado expostas
quando filmadas por terem que assumir este lugar dentro do cenário, onde as coisas acontecem. A
posição aparentemente mais confortável de espectadoras e a preferência por se colocar nesta
situação, não demonstra uma consciência com relação ao duplo ficção x realidade, mas uma
tendência a preferir não se colocar como foco de atenção ou atuação, é nesse sentido que
acontece a confusão entre a ficção e a realidade, pois sempre se colocam como que protegidas por
uma distância da relação direta com a realidade. A confusão entre a ficção e a realidade se dá por
uma permanência na postura de espectador que assiste a tudo, sempre de fora
A comparação entre as situações de dramatização que elas vivem nas salas de aula e a
dramatização proposta na vivência foi trazida ainda outras vezes no último dia, para justificar que
em sala de aula elas não têm problemas em dramatizar, o que as deixou inibidas na vivência, foi o
fato de não estarem em sala de aula e estarem com as colegas de trabalho e a pesquisadora e, com
a câmera registrando os encontros. Mas são duas situações muito diferentes, na sala de aula, ser
teatral para explicar conteúdos para os alunos é um recurso didático do qual as professoras
lançam mão, uma forma de chamar atenção dos alunos para determinados assuntos; na vivência
não se tratava de um recurso didático, era uma situação fora do cotidiano, de isolamento, de
pesquisa, da qual elas eram os sujeitos participantes e que sabiam que estavam sendo observadas.
Além disso, estavam participando de uma atividade com a qual não têm familiaridade, a
construção e dramatização de um roteiro e não uma improvisação espontânea. Na vivência foi
requisitado a elas que construíssem personagens e uma história e que depois apresentassem esta 265 ADORNO, 1987, p. 348.
construção às colegas, ou seja, assumissem esta construção como uma produção e interpretação
pessoal de um assunto.
Depois de assistir à cena, a pesquisadora pergunta como elas se sentiram assistindo à si
mesmas na televisão representando:
“Professora 2 – Horrível!
Professora 1 – ah, legal...
Professora 1 – revelações globais aqui!
Professora 2 – mas eu acho assim que você, você sabendo que está sendo
filmada, que está sendo... deixa você muito [...] bloqueada mesmo, inibida
[...] você faz qualquer coisa fora, por exemplo: você vai dar uma aula você
vira um palhaço lá na frente da sala e não está nem aí, agora se você
sente alguém que está te observando, aí você se inibe
Professora 1 – a palavra filmagem, fotografia e avaliação [...] já te
colocam em uma situação de irrealidade, você se coloca:‘ah vão me
observar, vão me julgar’
Professora 3 – você se sente exposto, vão me julgar de qualquer maneira
Professora 2 – e depois tem que pensar que não é o teu espaço não é tua
sala de aula [...] se você tivesse sendo filmada talvez dentro do contexto da
tua sala de aula com todos os teus alunos com tudo ía ser muito mais
natural.
Professora 3 – ah mas também tem outra gente, você está num papel,
representando [...] isso é uma coisa complicada pra gente, porque a gente
não é atriz, a gente não está fazendo...
Professora 4 – às vezes em sala de aula você até faz isso mas é espontâneo
Professora 3 – é mas aí você está com outra pessoa, você está num
diálogo, você está numa cena
Professora 4 – a diferença é assim: na sala da aula somos nós que criamos
a situação e aqui a situação nos foi colocada
Professora 3 – você está com outra pessoa e sendo filmada...
Nesta conversa entre as professoras podemos perceber que elas investigam porque
ficaram inibidas na hora da filmagem, a Professora 2 começa falando que saber que está sendo
filmada a deixa bloqueada e inibida, mas que no entanto, quando ela está em sala de aula, ela faz
até “palhaçadas” na frente dos alunos e isso não a incomoda.
A Professora 1 tenta justificar a inibição dizendo que as palavras: “filmagem, fotografia e
avaliação”, são palavras que inibem por proporem uma situação de “irrealidade”; mas podemos
pensar o que faz com que estas três palavras sejam colocadas em uma mesma categoria. A
palavra irrealidade pode ter o sentido de inadequação à realidade, será que é a essa sensação que
a Professora 1 se refere? Sensação de inadequação? Aparentemente estas três palavras não têm
uma ligação, mas dentro da vivência, por se tratar de uma situação de pesquisa, a filmagem se
colocou como a forma de registro, captando as vozes e as imagens das professoras, o que se
coloca como uma prova inegável das afirmações feitas por elas durante os encontros, encontros
que seriam analisados pela pesquisadora ao término da vivência, situação conhecida pelas
professoras; então, será que o medo expressado pelas professoras era de ser avaliada e ter suas
falas e comportamentos registrados e analisados pela pesquisadora? Será que é este o medo de se
expor que foi levantado pela Professora 4?
E se, como coloca a Professora 2, as filmagens fossem realizadas dentro da sala de aula,
será que haveria realmente mais naturalidade? Neste ponto a Professora 3 levanta uma questão
muito interessante, o fato de que atividade proposta – construir e interpretar um roteiro – é uma
atividade com a qual elas não estão familiarizadas, e que por isso não pode ser comparada com as
dramatizações feitas em sala de aula como recurso didático; afirmação que foi desconsiderada
pelas outras professoras. Interpretar um papel requer habilidades que elas não desenvolveram
durante suas vidas – ter freqüentado um curso de dramatização não era um dos pré-requisitos para
participar da vivência, nem foi fornecido à pesquisadora qualquer informação a respeito da
participação ou não de tais cursos – mesmo porque a qualidade estética das dramatizações não foi
levada em conta na análise. A pesquisadora partiu do pressuposto de que nenhuma das
professoras participantes tivesse qualquer experiência na arte da dramatização. Mas mesmo com
esta colocação da Professora 3, as professoras continuaram investigando o porquê de sua inibição
na dramatização, se em sala de aula elas geralmente dramatizam, concluindo que a diferença foi
de que em sala de aula a dramatização é espontânea e na pesquisa ela foi imposta. Mas mais
importante que a imposição de uma situação, devemos levar em conta que a dramatização
proposta não se tratava de uma improvisação realizada no interior da sala de aula; as professoras
construíram um roteiro e o representaram publicamente, ou seja, para aparecer na televisão; isso
significa que montaram um projeto que envolvia escolhas e um pensamento sobre estas escolhas,
e que de alguma forma revelaria a compreensão das professoras sobre os assuntos tratados.
Talvez assumir as idéias apresentadas publicamente foi o que causou medo.
A última atividade da Vivência foi escrever um relato sobre a experiência da vivência, no
qual aparece um elemento muito interessante com relação à compreensão que estas professoras
desenvolveram da linguagem visual. No relato, as professoras afirmam:
“A experiência foi muito interessante, no sentido de oportunizar a vivência
de +- 5 linguagens e a reflexão social sobre as mesmas.” (apêndice B,
relato 01)
“Foi uma experiência bem gratificante. Pude perceber como situações que
assisto na televisão, podem ser lidas de tantas formas.
Na maioria das vezes não percebemos quanto é difícil e complexa a
linguagem visual. Como podemos aproveitar todo esse mundo
“imaginário” para a nossa realidade. Quantos elementos importantes que
passei a perceber neste exercício e a importância da opinião do grupo a
respeito deste assunto.” (apêndice B, relato 02)
“Foi uma experiência interessante e ao mesmo tempo estimulante pois
além de ampliar meus conhecimentos foi um tema que fugiu do meu
cotidiano. Ampliei minha compreensão sobre o funcionamento de um
vídeo e os elementos que o compõe.” (apêndice B, relato 03)
“Foi uma experiência muito interessante. Serviu para mostrar uma outra
visão de como avaliamos o que vemos na televisão, o modo de
interpretação dos programas e cenas.” (apêndice B, relato 04)
Com estes depoimentos percebemos que as professoras notaram uma diferença na sua
compreensão da linguagem visual a partir das atividades da Vivência. Passaram a olhar as
produções da mídia com um certo distanciamento que possibilita uma apreensão formal, diferente
de seu contato anterior. No primeiro relato, a professora aponta a vivência das linguagens e a
reflexão sobre elas; no relato 02, percebemos que a professora se refere à linguagem visual, e não
à telenovela ou às fotografias, isso significa que existe uma compreensão de que nestas produções
existe uma linguagem que é comum. No relato 03, a professoras fala do vídeo, ou seja a
linguagem videográfica e as mudanças que sua compreensão sofreu com relação a este meio. E
no relato 04 a professora focou a interpretação do que é visto pela televisão.
4. Dissociação entre Informação e Conhecimento:
No decorrer da Vivência existiram alguns momentos nos quais as professoras colocaram
algumas situações e assuntos sobre os quais mostram um conhecimento informativo, ao mesmo
tempo em que se sentem impotentes, tanto na vontade de modificar as situações, quanto na
compreensão das suas causas. Por exemplo, no segundo dia durante a conversa sobre as
dramatizações, as professoras começam a falar sobre o desemprego e entram no assunto da perda
do poder aquisitivo:
“Professora 1 – o poder aquisitivo, até ontem nós estávamos vendo, quem
paga imposto de renda e todos nós pagamos, quem tem dois padrões paga,
pega a primeira faixa e paga, nós tivemos uma perda de 54%, por quê?
Com a inflação e com o congelamento da tabela nós estamos perdendo o
equivalente a 54% no nosso poder aquisitivo...
Professora 4 – basta ver há dois anos atrás eu pagava o financiamento do
meu apartamento tranqüilamente, hoje já é uma coisa que pra mim fica
muito caro, e eu não perdi o emprego nem nada ainda, meu poder
aquisitivo está caindo, tudo foi subindo
Professora 1 – é muito violento... não sei o que que vai acontecer...”
Nesta conversa percebemos que as professoras levantam o problema social da
desvalorização do dinheiro, mas as informações que a Professora 1 traz, são descontextualizadas,
pois não explicita de qual fonte retirou as informações, ou em comparação a qual data aconteceu
esta perda, o que indica que provavelmente ela leu estas informações em alguma revista ou viu
em algum noticiário de televisão, mostrando a constatação de um fato sem a compreensão
histórica deste fato. A forma como a Professora 4 se refere à situação que está vivendo,
demonstra que ela está assustada, pois percebe os resultados de uma situação social precária que
existe no país, e se sentindo vítima destes fatos, não busca uma análise mais profunda que
contextualize estes problemas sociais, se colocando como impotente frente a uma situação que
foge ao seu controle. A perda do poder aquisitivo é conseqüência de toda uma situação social que
vem se delineando há tempo, não é um fato que simplesmente aconteceu; para compreendê-la é
necessário uma retomada histórica, que aponte a origem deste problema social. O último
comentário da Professora 1 reafirma esta sensação de impotência e surpresa vivenciada por elas
com relação a esta informação.
Um outro momento que podemos analisar pensando nesta dissociação entre informação e
conhecimento é a conversa que acontece no final do terceiro dia da vivência, na qual a
pesquisadora questiona as professoras com relação à presença da mídia na sala de aula. Em um
primeiro momento as professoras comentam que existe uma presença muito forte da mídia:
“Professora 4 – às vezes esse é o único assunto [...] Por mais que você
tente puxar, tente fazer outras coisas assim, é o único assunto...
Professora 3 – é bem importante na vida delas”
“Professora 1 – é que a conversa com a mídia está substituindo a conversa
com os pais, não existe mais diálogo, todo mundo fica no seu isolamento
individual...
Professora 3 – projetando
Professora 1 – numa presença coletiva, mas num isolamento individual
tentando interagir com a televisão, é isso que está acontecendo.”
Nestes comentários, as professoras se referem, não só à presença da mídia na sala de
aula, apontando que os assuntos da mídia são muito importantes para as crianças, e que
dificultam o trabalho em muitas ocasiões; mas também fora dela, mostrando a percepção de que a
televisão produz um distanciamento entre os membros da família. Esta opinião levantada pela
Professora 1 pode ser relacionada com o comentário de Adorno sobre a televisão:
Aquela ‘proximidade’ fatal da televisão, que também é causa do efeito
supostamente comunitário do aparelho, em torno do qual os membros da família e
os amigos, que de outra forma não saberiam o que dizer uns aos outros, se reúnem
em mutismo, não só satisfaz um desejo diante do qual nada de espiritual se pode
manter que não se transforme em propriedade, como ainda obscurece a distância
real entre as pessoas e entre as pessoas e as coisas. Ela se torna o sucedâneo de
uma imediação social que é vedada aos homens.266
Nesta colocação de Adorno percebemos uma discussão muito próxima à que é apontada
pela Professora 1, quando fala que a conversa com a mídia está substituindo a conversa com os
pais, mas se lembrarmos do momento no qual as professoras assistem à cena de novela, podemos
notar que elas reproduzem este mesmo comportamento. Ainda que levemos em conta a situação
de pesquisa na qual elas se dispuseram a participar das atividades, o comportamento observado
das professoras não foi imposto pela situação de pesquisa, ele se deu naturalmente. Todas se
fixaram instantaneamente na cena de novela, e se nos lembrarmos de algumas conversas que
aconteceram neste momento, percebemos que os diálogos se tornavam dispersos, como no
momento no qual a Professora 2 comenta que a Heloísa vai se jogar pela janela, e depois do
comentário da Professora 1, a Professora 2 e a Professora 3 repetem a mesma frase 3 e 2 vezes
respectivamente, de forma automática e mecânica. Neste comentário da Professora 1, ela
demonstra a percepção do problema nas crianças, nos outros, não refletindo como ela própria
reproduz este comportamento.
Quando questionadas sobre como trabalhar com a presença da mídia na sala de aula,
afirmam:
266 ADORNO, 1987, p. 350.
“ah acho que a gente tem que aproveitar das boas coisas e das más coisas
que ela traz, e reverter pra dentro da sala de aula, dentro dos seus
conteúdos, dentro das suas implicações, e transformar isso, se é ruim
explicar o porque, se é bom dar uma aula em cima daquilo, mas trazendo,
já que é o tal negócio: se você não pode com ele alie-se a ele.”(2)
“e também mostrando a visão crítica da coisa você pode pegar uma
situação, colocar, eles trazem e você coloca a situação e ‘vamos ver o que
vocês acham disso’ e vamos procurar ver o outro lado da história; por que
que eles estão colocando isso, por que que está assim, então é um aliado,
pode ser um aliado”(3)
“e a televisão também tem bons programas, a gente tem que fazer com que
a criança perceba outros programas além daqueles que eles estão
habituados”(4)
Observando estas declarações das professoras, podemos ver que de alguma forma elas
sabem que é possível e necessário ir além da informação, mas ao mesmo tempo, não demonstram
nenhuma tentativa de realizar esta vontade, ou algum momento no qual tenham realizado; por
outro lado percebemos que existe uma grande semelhança entre as colocações das professoras e
as orientações dos PCNs com relação ao trabalho com a Mídia como tema transversal:
A qualidade da maior parte das programações é, sem dúvida, muito discutível.
Informações tendenciosas, tanto naquilo que é dito quanto naquilo que deixa de
ser dito; produções artísticas pouco elaboradas; incentivo ao consumo
desenfreado; valorização de atitudes violentas e discriminatórias. No entanto, a
mídia oferece a cada um, e não só aos jovens, a possibilidade de distrair-se de
suas preocupações, informar-se e até mesmo de resignar-se com as dificuldades
enfrentadas em face da enxurrada de tragédias alheias. Por isso, a estratégias de
alguns educadores de tratar a mídia como adversárias acaba funcionando como
um distanciamento entre esses e os alunos. A mídia pode ser uma grande aliada
no processo educacional: é importante aproveitar o conhecimento que ela propicia
e propor trabalhos de reflexão sobre as programações, incentivando um olhar
crítico. Do ponto de vista educativo, o problema não está no consumo, mas no
consumo passivo de tudo que é veiculado.267
Comparando as falas das professoras com as orientações dos PCNs, percebemos uma
grande similaridade, mas apesar das professoras terem introjetado estas orientações, não sabem
como lidar com os conteúdos que aparecem nas salas de aula. Esta consciência que elas
demonstram, da necessidade de trabalhar com a mídia, não é transformada em ação, porque
direcionam suas preocupações, enquanto educadoras, para seus alunos, não refletindo sobre a
necessidade de uma compreensão aprofundada de sua própria relação com a mídia:
“eu gostaria de acabar com os desenhos do Yu-Gi-Oh [...] que é uma
fixação dos meninos da minha sala que é uma coisa horrorosa, eles eu
acho que comem mexendo naquelas cartinhas, levantam mexendo
naquelas cartinhas tudo... fazem coleção, fazem campeonato...”(4)
A professora 4 se refere aos desenhos animados japoneses e aos brinquedos vinculados
aos desenhos, que se tornam, segundo a professora “uma fixação”, uma mania; são brinquedos
que possibilitam uma interação entre as crianças e os desenhos animados, já que a brincadeira é
imitar, com o brinquedo, as atitudes dos personagens do desenho. A professora demonstra uma
dificuldade de trabalhar com este conteúdo, pois diz que “gostaria de acabar com os desenhos do
Yu-Gi-Oh”. Este desabafo da Professora 4 mostra que por não saber como trabalhar esta
realidade com os alunos, sua vontade é de fazer esta realidade desaparecer. Ela percebe esta
267 BRASIL, 1998, p. 120 apud VERMELHO, 2003, p. 149-150.
situação como uma interferência no seu trabalho e não como, talvez, uma oportunidade de
realizar um trabalho com estes conteúdos da mídia, como orientam os PCNs.
Nos capítulos anteriores quando discutimos a pseudoformação, levantamos que uma de
suas características é a transformação dos conhecimentos em informações, que aprendidos e
ensinados por imposição são dissociados da vivência, e portanto impedem a construção do
conhecimento. Instrumentalizados, são vistos como indicações de como trabalhar, mas na
vivência real, na qual os problemas se apresentam e pedem uma compreensão profunda e
reflexiva, estas informações instrumentais de nada adiantam, não foram internalizadas como
conhecimentos e, se tornam apenas discursos.
O envolvimento das crianças com a mídia reflete o envolvimento de grande parte da
população, e a falta de consciência da própria situação vivenciada pelas professoras, provoca a
dificuldade para discutir com os alunos essa situação comum entre eles.
Quando questionadas sobre a influência da mídia no comportamento das crianças, todas
foram taxativas:
“as crianças que tem maior envolvimento com esse tipo de... [atividade
relacionada com os conteúdos da mídia] são as mais agressivas [...] é bem
direto isso, os meninos que tem mais relação com esse tipo de atividade
são os mais agressivos e sempre assim, são crianças assim que é natural
dar um chute, ‘ah se você gritou comigo, eu chuto você’, ah pronto”(4)
Neste comentário percebemos que a professora percebe que as mesmas crianças que tem
um maior envolvimento com estas atividades, ou seja, conversas sobre os produtos da mídia ou
brincadeiras com os brinquedos vinculados aos desenhos animados, mostram um comportamento
mais agressivo. Segundo Wartella; Olivarez; Jennings, falando da violência na programação
norte-americana, observa que “[...] o contexto em que a maior parte da violência é apresentada é
são; a violência raramente é punida no contexto imediato em que ela ocorre; e raramente resulta
em prejuízo observável para as vítimas.”268 O que descaracteriza totalmente o ato violento na
ficção, distanciando-o da sua realização na vida real, mostrando uma imagem distorcida dos atos
de violência. O que pode ser relacionado com a discussão sobre a frieza e a incapacidade de
identificação, levantada no núcleo de análise Verbalizações sobre o outro, no qual, a partir das
considerações de Adorno, foi trabalhado o problema do preconceito percebido nas falas das
professoras.
Wartella; Olivarez; Jennings ainda discutem a dessensibilização provocada pelo contato
com a mídia:
[...] o ato prolongado de ver violência na mídia pode levar à dessensibilização
emocional em relação à violência do mundo real às suas vítimas, o que, por sua
vez, pode levar a atitudes insensíveis em relação à violência dirigida a outros e a
uma probabilidade menor de agir em benefício da vítima quando ocorre
violência.269
O comportamento violento observado pela professora e a relação entre este e os conteúdos
da mídia, foram observados por inúmeros pesquisadores, aos quais se refere o texto citado, que
aponta considerações a partir de uma compilação de pesquisas sobre os conteúdos violentos dos
meios de comunicação e as crianças. Nas crianças a manifestação da dessensibilização, ou frieza,
como foi denominado por Adorno, se dá pela agressão física de umas contra as outras, no
entanto, quando nos lembramos da cena dramatizada pelas Professoras 3 e 4, a transformação da
268 WARTELLA, Ellen; OLIVAREZ, Ariana; JENNINGS, Nancy. A criança e a violência na televisão nos EUA. In: CARLSSON, Ulla; FEILITZEN, Cecília von (Orgs.). A criança e a violência na mídia. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 1999, p. 63. 269 Ibid., p. 67.
“desgraça alheia” em uma cena cômica, assume o mesmo caráter da incapacidade de
identificação com o outro.
Até então, as professoras só haviam comentado desta relação com a mídia percebida nos
meninos, o que levou a pesquisadora a questioná-las a respeito do envolvimento das meninas com
este universo:
“Professora 1 – é uma sexualidade acho mais...
Professora 4 – é uma sensualidade, é a questão do baton, da...”
“se você observar, se ficar até a hora do recreio e você observar o tipo de
dança das meninas... você já percebe! [...] e não se está fazendo uma
leitura do que essa dança provoca, do que essa dança significa, então as
meninas fazem os trejeitos, fazem os movimentos com o corpo, que elas
nem entendem o que representa”(1)
“agora o que eu já percebi mesmo na terceira e quarta série, é que as
meninas, elas não sabem o que fazer com essa sensualidade, aí elas
começam a bater pra pegar [e pega na Professora 2 imitando o
comportamento das alunas], só que elas não sabem como pegar [...] então
é uma forma de troca, mas só que é na agressividade, porque é a forma
que os meninos conhecem e que é o permitido, digamos assim entre aspas
[fazendo sinal de aspas], então essa parte é muito forte nas meninas mas é,
na realidade o que elas querem...”(3)
Com relação às meninas, o envolvimento com a mídia é percebido nas danças ensaiadas
na hora do recreio, que são danças imitadas dos grupos musicais que aparecem na televisão, que
trazem movimentos sensuais, como definem as professoras, e que na sua opinião, estimulam a
sensualidade das meninas em uma idade na qual ainda não estão preparadas para lidar com isso.
No comentário da Professora 1, ela afirma que não está sendo feita uma leitura das conseqüências
destas danças para as crianças, mas trabalhar estas questões não seria justamente fazer esta
leitura? Ao mesmo tempo elas notam violência no comportamento das meninas também, para
justificá-lo, relacionam as agressões das meninas contra os meninos, em função desta
sensualidade precoce.
“Professora 2 – e é uma parte também de agressividade das meninas, as
meninas também estão muito agressivas, muito mais agressivas do que
eram antigamente
Professora 1 – ah lógico!
Professora 2 – a gente vê nas crianças de quarta série, aquelas que se os
meninos falam... eles não precisam falar nada, assim, mas elas se acham
no direito de estapiar, de bater, de chutar, então está um negócio assim
que, chega na fila, você vê assim: ‘aqui não é o teu lugar!’ ‘claro que é
aqui!’ [empurra a Professora 3 imitando as meninas] ‘Sai daqui!
Professora ali ele está me chutando, professora ele está me batendo!’ mas
não, você vê que parte delas, delas também achar que podem tudo, que
elas podem tudo...”
Então a agressividade não está focada somente nos meninos, mesmo porque não são
somente eles que tem contato com programas violentos. A programação infantil é assistida por
todas as crianças e, se para as professoras, nos meninos parece mais direta a ligação entre os
desenhos animados violentos e as atitudes violentas, as meninas também tem contato com estes
conteúdos e suas atitudes também estão sujeitas a estas influências. Mesmo porque, a
dessensibilização não se dá exclusivamente pelo contato com conteúdos violentos da mídia, ela
acontece em decorrência de um processo mais complexo que se realiza na própria cultura, ligada
à frieza e à luta pela sobrevivência. Como apontado por Chochík, a fixidez do comportamento,
que caracteriza preconceito, se relaciona com os estereótipos oriundos da própria cultura, de onde
o preconceito surge como uma resposta aos conflitos presentes na luta pela sobrevivência. Em
outras palavras, a incapacidade de identificação com o outro está relacionada com o pensamento
estereotipado, e a violência infligida contra o outro, de uma maneira geral, com a luta pela
sobrevivência.
A sensação de impotência para lidar com o problema da mídia manifestada pelas
professoras, pode ser percebida nesta fala da Professora 1:
“a mídia [bate uma mão na outra] massificando... todos os sentidos, os sete
buracos da cabeça, os pais, aprovando, e como é que a escola, com os
recursos que tem, vai fazer frente a isso? É muito difícil, é muito
complicado. Não adianta falar com pai, mãe, porque a maioria é
conivente”(1)
Neste trecho percebemos que a professora se coloca como impotente frente à pressão que
se coloca na escola para resolver os problemas da relação das crianças com a mídia, porque ela
afirma que os pais não estão cumprindo o seu papel de orientação e interferência sobre o contato
das crianças com a mídia, o que, segundo a Professora 1, dificulta muito o papel da escola. Mas,
retomandos as orientações dos PCNs, estas não deveriam dar suporte e subsídios justamente para
esta questão? Estas professoras que mostram que conhecem as orientações, não deveriam estar
preparadas para trabalhar as questões da mídia com as crianças? Com estas colocações
percebemos que ler o que deve ser feito não é suficiente para que as professoras saibam lidar com
as mídias na escola. Retomando as palavras de Vermelho:
O fato de essa relação se dar em casa ou na escola, não muda a relação que esses
docentes estabelecem com essas mídias. Com isso, permanece inalterada a forma
de atuar subjetivamente nesses sujeitos, professores e alunos, e as mídias ou
qualquer atividade que venha a ser realizada com elas na escola reforçam, ao
invés de se contrapor, as experiências que esses sujeitos passam para além dos
muros escolares.270
Ou seja, tanto os professores quanto os alunos são carentes de compreensão crítica com
relação aos meios de comunicação, que não pode ser adquirida pela leitura de manuais, ela deve
ser experienciada e vivida cotidianamente. Neste sentido que a simples inclusão das mídias na
escola não proporciona muitos benefícios, pois a relação com a mídia permanece inalterada. Esta
compreensão crítica se constrói com base em leituras e experiências, pois deve se concretizar em
uma atitude crítica. Mas como afirma Vermelho, esta é uma questão política e não somente
pedagógica, pois, mesmo que a escola possa assumir em parte esta formação,
Não adianta um discurso pedagógico dessa natureza, numa sociedade que permite
a veiculação de programas infantis que lançam mão explicitamente de
mecanismos de erotização e de estímulo ao consumo irrefreado sobre nossas
crianças e adolescentes, com uma programação que predominantemente exalta o
corpo belo, com uma reprodução dos modelos do mundo fashion internacional.
Seria mais coerente se, aliado a essa política educacional, houvesse também uma
política de controle ao que é produzido e veiculado de programação infantil nos
canais de televisão.271
Assim, Vermelho levanta a necessidade de uma atuação social-política-econômica que
possa controlar os exageros da mídia. Pois mesmo os documentos dos PCNs que falam em uma
visão crítica das mídias, não especificam a que tipo de crítica estão se referindo, uma crítica real 270 VERMELHO, 2003, p. 147-8. 271 Ibid., p.150.
ou superficial? Pois se os professores devem estimular uma discussão crítica com os alunos, eles
precisam de elementos que permitam estas reflexões, precisam ir além da simples constatação de
que existe um problema272, como pudemos perceber nas declarações das professoras acima
citadas.
É necessário que as professoras mudem sua relação com a mídia, exerçam uma reflexão
profunda e constante sobre sua própria situação, para que possam de fato trabalhar esta questão
com seus alunos e possibilitar a construção do conhecimento. Retomando, pela reflexão conjunta,
a possibilidade de efetivação do projeto da educação para a autonomia e emancipação.
272 VERMELHO, 2003, p.151.
CAPÍTULO V CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve como objetivo contribuir para a discussão sobre a formação dos
professores(as) da educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental, especificamente no
que se refere à importância da compreensão da linguagem visual. Uma tentativa de cruzar um
estudo sobre a situação do sujeito na sociedade contemporânea – que há algum tempo vem sendo
chamada de Sociedade das Imagens –, com o universo da educação, para investigar qual é a
compreensão que estes professores(as) tem da linguagem visual e, enfatizar a importância da
ampliação desta compreensão para a formação tanto dos professores(as) quanto de seus alunos.
Para tanto, partiu-se de um estudo teórico fundamentado na Teoria Crítica da Sociedade,
com teóricos da Escola de Frankfurt, que por ter orientação freudo-marxista possibilitou o
entrecruzamento da situação social e a do indivíduo de forma crítica. Neste estudo foram
levantadas questões sobre as várias formas presentes em nossa sociedade para a manutenção da
ordem, que significa a reprodução do sistema social. Vimos como os indivíduos, em nossa
sociedade, estão atrelados à estrutura social e como a cultura se transformou em veículo de
adaptação, pela sua subsunção à indústria cultural; situação que levanta vários questionamentos
no campo da educação quando vinculada às idéias de autonomia e emancipação.
Toda a discussão teve como eixo central a compreensão da linguagem visual, pois como
já foi citado, nossa sociedade é chamada Sociedade das Imagens, o que nos faz pensar a
linguagem visual como fundamental para a compreensão do mundo, principalmente se pensarmos
no mundo que nos é mostrado pelos meios de comunicação. Assim, tendo o campo das artes
visuais como o espaço no qual a linguagem visual é pensada e discutida, levantamos sua
fundamental importância para a compreensão de toda esta conjuntura.
Tendo estas diretrizes como ponto de partida, procuramos levantar questões sobre a
relação indivíduo-linguagem visual, especificamente com um grupo de quatro professoras de uma
escola de educação básica situada na região de Curitiba; para, a partir das experiências vividas
junto às professoras, pensar como esta relação aparece na compreensão que os sujeitos da
pesquisa têm da realidade. Ou seja, investigar como é a compreensão que estas professoras tem
da linguagem visual e como se apropriam desta, para perceber se e, como esta linguagem
influencia sua compreensão de mundo, e como é utilizada por elas em sala de aula. Sendo estas
professoras as mediadoras do processo de letramento, como discutido anteriormente, sua
compreensão da linguagem visual assume grande importância atualmente.
A pesquisa de campo, denominada Vivência, trouxe dados valiosos para compreendermos
melhor como se dá a relação das professoras com a linguagem visual, em particular aquelas
veiculadas pelos meios de comunicação. Tivemos como objetivo central, perceber como as
professoras lêem as imagens visuais e, ao mesmo tempo proporcionar um espaço de discussão
sobre estas questões, para verificar a possibilidade de interferir nesta realidade. No entanto esta
pesquisa não pretendeu esgotar as possibilidades de investigação desta relação, mas a partir da
seleção de um grupo de professoras, aprofundar a compreensão em um universo reduzido, mas
representativo.
Como discutimos nos capítulos anteriores, os meios de comunicação de massa surgiram
em decorrência das várias tecnologias de reprodutibilidade da imagem que se sucederam no
decorrer do tempo: fotografia, cinema, televisão, computador. Meios que possibilitaram a
produção em série de cultura visual e, seguiram um caminho em direção à meta de reproduzir em
uma imagem visual, a realidade sensível com a maior perfectibilidade possível. Estes meios de
representação, a serviço da Indústria Cultural, receberam ainda a função de introduzir nesta
duplicata do mundo o que se considerava adequado ao real, ou seja, trazer para perto das pessoas,
através dos produtos da indústria cultural, as palavras de ordem do aparato: regras, valores e
verdades, sem os quais dificilmente a ordem social se manteria.
Neste sentido podemos perceber que a nomeação Sociedade das Imagens tem uma
significação social de denunciar que a aparência de realidade transmitida pelos meios de
comunicação assume o significado de realidade; e que, como diz Bourdieu, acaba por construí-la
e determiná-la. Esta passa a ser considerada a realidade oficial, o que assume uma grande
complexidade se pensarmos que toda imagem visual é uma representação e, portanto, uma
construção que se realiza em uma transformação formal, ou seja, são imagens com aparência de
real, mas não são o real; são uma produção visual que tem um autor (mesmo que seja uma
equipe, e que sofra as interferências mais diversas), e essa autoria se refere a um ponto de vista, a
uma intenção. Se as imagens visuais que aparecem nos meios de comunicação são tomadas pela
realidade, e se constituem como a realidade oficial, a parcialidade de sua construção é
desconsiderada, e a apreensão formal desta construção é dificultada.
Segundo as discussões da estética, a leitura formal de uma imagem visual é fundamental
para a compreensão do seu conteúdo, pois, em uma obra de arte, por exemplo, o modo de formar
do artista (seu fazer, o modo como manipula a matéria) determina o conteúdo da obra, assim
como o conteúdo determina também seu modo de formar; estes dois aspectos têm uma relação
dialética na lógica de construção das obras de cada artista. Nestes termos, podemos compreender
que conteúdo e forma são idênticos, coincidem, ou seja, uma produção cultural é a formalização
de um conteúdo e só existe nestes termos. Assim, o agenciamento e controle manejados pela
Indústria Cultural agem justamente nesta identidade entre forma e conteúdo, pois para realizar a
difusão das produções culturais sob sua lógica, a Indústria Cultural realiza uma tradução destas
produções para a linguagem (modo de formar) dos meios de comunicação, que as põem em
circulação. A mediação feita pela Indústria Cultural é a padronização formal, pois seu modo de
formar é sempre igual, sempre a partir da mesma lógica de organização e formalização,
sacrificando neste processo de filtragem, a coincidência entre forma e conteúdo, própria das
produções culturais.
A repetição da estrutura formal faz com que esta seja naturalizada, a forma passa
desapercebida, absorvida inconscientemente, enquanto seu conteúdo é percebido como “puro”,
ou seja, a tela da televisão é vista como uma janela para o real, um canal de presentificação.
Nesse sentido a compreensão formal é um dos elementos fundamentais para a compreensão dos
conteúdos transmitidos pela Indústria Cultural, para a compreensão de suas produções como
construções.
O que se evidenciou com o material coletado foi que as professoras têm um grande
contato com os meios de comunicação, principalmente a televisão, mas que ao mesmo tempo
existe uma grande dificuldade para a compreensão formal deste meio, ou seja para apreender as
produções visuais videográficas como um objeto, observar e identificar os elementos formais que
as constituem. Esta compreensão exige do telespectador um distanciamento, para que se possa
apreendê-la como uma estrutura narrativa construída. O que foi percebido na vivência, pelo
contrário, foi um grande envolvimento das professoras com a narrativa, sem perceber suas
delimitações, o que gerou discussões nas quais eram confundidos personagem e ator, vida real e
vida ficcional.
Essa dificuldade de apreender formalmente os produtos da Indústria Cultural apareceu na
maior parte do processo da Vivência, sofrendo uma modificação no último dia, quando pudemos
perceber que toda a experiência vivida pelas professoras provocou uma certa mudança na sua
compreensão visual. Este dado é muito positivo, pois é resultado de todo o processo da vivência,
que, a partir das discussões e da produção visual e audiovisual, possibilitou que as professoras
iniciassem uma compreensão formal destes objetos, o que não foi possível no primeiro dia. Em
um primeiro momento, esta compreensão formal se deu com relação às fotografias, o que nos
levou a inferir que isto deriva do fato de ser a fotografia uma linguagem mais familiar e um
objeto que pode ser manipulado fisicamente; tornando-a uma boa alternativa para iniciar um
trabalho com a linguagem visual. Outro momento no qual as professoras apresentaram
compreensões formais, foi no último encontro, assistindo à cena da telenovela pela segunda vez.
A repetição da atividade, depois de terem sido feitas as produções e várias discussões sobre a
linguagem visual e audiovisual, abriu a possibilidade de um aprofundamento na compreensão das
professoras.
Mas apesar desses momentos, percebemos nas verbalizações das professoras, durante as
atividades, um pensamento estereotipado. Este pensamento aparece na caracterização das pessoas
e situações vividas ou dramatizadas, que é muito próxima à forma como, as pessoas e situações,
são caracterizadas nos meios de comunicação. As pessoas foram definidas como tipos
pertencentes a categorias distintas, sempre por oposição. O que pode ser percebido também nos
personagens dos programas de televisão e mesmo nas pessoas que aparecem em reportagens, que
são sempre caracterizados a partir de uma tipologia que os encaixa em um grupo: o bom, o mau,
o herói, o vilão, o trabalhador, o desempregado, o da classe média, baixa ou alta, o do campo, o
da cidade, o da favela, o professor de escola particular, o de escola pública, etc. Assim,
percebemos nas verbalizações das professoras uma reprodução desta forma de perceber e
caracterizar o outro, ou seja, a imagem que constroem para compreender o outro.
Dentro deste pensamento estereotipado pudemos perceber, em vários momentos, uma
atitude preconceituosa das professoras para com as pessoas sobre as quais falavam. O preconceito
pode ser visto, em alguns momentos, como uma forma de defesa contra um preconceito que
sofrem, o que faz com que se coloquem como uma categoria em oposição; ou como uma fixidez
de comportamento, uma forma de apreender o outro como ser distinto, não pelos vários
predicados que possui, mas como pertencente à outra categoria. O preconceito aparece em nossa
sociedade como um mecanismo de defesa contra a violência da estrutura social, que se realiza na
luta pela sobrevivência, e manifesta-se pelo pensamento dicotomizado que separa o mundo em
bem e mau, verdadeiro e falso, certo e errado, e exige tomadas de posição firmes e definitivas.
Esta operacionalização simplificadora foi percebida nas tomadas de posição das professoras, que
mostraram uma fixidez de comportamento, recorrendo ao relativismo quando sentiam que de
alguma forma deveriam aceitar a existência de pensamentos contrários aos seus.
A compreensão estereotipada do mundo permeou todas as conversas que aconteceram
durante a vivência, o que mostra que não é simplesmente a indivíduos preconceituosos que
estamos nos referindo, mas a uma predisposição ao preconceito, e a uma atitude preconceituosa
frente ao mundo. Se retomarmos o pensamento de Chochík, segundo o qual os estereótipos são
oriundos da cultura na qual os indivíduos se desenvolvem, esta predisposição não é exclusiva
destas professoras, mas generalizada e estabelecida como valor a ser transmitido e propagado
pela nossa cultura.
Podemos ainda estabelecer uma relação entre a atitude preconceituosa e a compreensão
que se tem das imagens veiculadas pelos meios de comunicação, nas quais a formalização dos
tipos humanos apresentados segue esta tendência de caracterização. A incapacidade de
decodificação dos elementos formais presentes nestas construções, gerada pela sua naturalização,
naturaliza esta tipologia na vida real, tornando-a um padrão de apreensão das pessoas com as
quais se convive.
Outra relação que podemos estabelecer entre o comportamento e a compreensão das
professoras e a lógica da indústria cultural se refere à instrumentalização dos conhecimentos, que
recebidos como receitas de como fazer são dissociados de sua vivência, transformados em
informações e traduzidos em termos operacionais e orientados ao comportamento.
Ao mesmo tempo em que as professoras traziam um discurso carregado de informações
sobre como, por exemplo, trabalhar a presença da mídia na escola, nos depoimentos sobre a sua
prática pedagógica mostraram não conseguir realizar estas idéias. Esta dificuldade pode advir do
fato de não terem vivenciado a aprendizagem do trabalho com a mídia, vivência que deveria
iniciar com a reflexão sobre sua própria relação com esta. Isso nos leva a supor que a leitura dos
manuais que indicam como trabalhar com as crianças, pode fazer com que elas projetem nestas
suas próprias dificuldades, e com isso dificultar um trabalho de formação para uma relação mais
autônoma com as mídias.
A partir destas reflexões é fundamental lembrarmos do conceito de pseudoformação,
como uma formação fundada em falsas verdades e falsos valores. Um dos aspectos da
pseudoformação, diz respeito à formação da subjetividade com base em uma cultura que
privilegia a absorção de informações, a partir das quais são constituídos os conhecimentos e a
compreensão do mundo sob a lógica da Indústria Cultural: operacionalizados e orientados ao
comportamento. Este processo transfere o objetivo de formação humana para aqueles
relacionados à manutenção de uma dada ordem social, tendo a aquisição de conhecimentos como
um meio e não um fim.
Nesse sentido podemos compreender que a leitura dos PCNs sobre como trabalhar a
presença da mídia na vida das crianças, não auxilia a prática pedagógica das professoras e ainda
descarta a vivência da compreensão da presença da mídia nas suas vidas. Se as professoras são
vistas e tratadas como meros instrumentos de ensino e não como educadoras em sentido global, o
que se requisita delas é simplesmente que desenvolvam mecanismos de transmissão de
conhecimentos-informações e não que vivenciem a construção de conhecimentos junto aos seus
alunos.
Este processo pode ser compreendido a partir do conceito de coisificação dos
conhecimentos e da própria profissão de ensinar, devido aos quais os conhecimentos não são
aprendidos/ensinados pela experiência, mas pela imposição, o que dá o caráter instrumental aos
cursos e aos conteúdos trabalhados nestes cursos.
A ligação entre a coisificação e a pseudoformação nos remete a influência da Indústria
Cultural na educação, que transforma a cultura em veiculo de adaptação, conhecimentos em
informações, experiências em pseudoexperiências e ensino em negócio. Como vimos no segundo
capítulo, a produção em série de cultura tem suas origens no modelo de relacionamento com o
real instituído na era industrial. O principal sintoma deste modelo é o declínio da aura, que pode
ser entendido como o declínio da própria cultura. Nada mais é distante e único, tudo pode ser
atualizado pelos meios de reprodução e, no entanto, o sujeito se distancia do real, pois o seu
contato com o real é mediado pelas reproduções; com a disseminação de cópias reproduzidas, já
não existe original, tudo pode ser adquirido por todos, e assim tudo se torna potencialmente
descartável. Esta capacidade de captar o semelhante no mundo é fruto de uma percepção
acostumada com a reprodutibilidade, o que faz com que consiga captar este semelhante, ou duplo,
até no fenômeno único. A aura é um elemento dos objetos e acontecimentos percebido pelo
sujeito, não existe em si, portanto o novo modelo de relacionamento com o real faz com que a
aura perca a importância, este é seu declínio, a possibilidade de experienciá-la continua no
original, o declínio acontece na percepção das pessoas, que não conseguem mais vivenciá-la.
A descartabilidade da cultura, do conhecimento e das experiências, tendencialmente tem
levado ao enfraquecimento do sujeito; a reversão desta situação, ou seja, o fortalecimento do
sujeito, só pode acontecer pela retomada da formação humana para a autonomia. Isso implica um
projeto de educação para emancipação que inicie pela desnaturalização dos processos de
adaptação e mecanismos de controle presentes em nossa sociedade, além de um trabalho de
decodificação da Indústria Cultural.
Retomando o foco deste trabalho, podemos pensar na desnaturalização das estruturas
formais das imagens veiculadas pelos meios de comunicação, como uma forma de desvendar as
estruturas formais disseminadas pela racionalidade tecnológica. Estruturas que atam o indivíduo a
uma rede complexa de relações, compromissos, deveres e desejos, todos ligados à estrutura
social, não permitindo que se vislumbrem possibilidades de saída.
Neste sentido é fundamental que os cursos de formação de professores atentem para o
problema da Indústria Cultural e sua relação com a linguagem visual, para proporcionar aos
futuros professores(as) condições de compreender, refletir e discutir sobre seu próprio
envolvimento com este universo, para que tenham subsídios para trabalhar estas questões junto
aos seus alunos.
Uma forma de realizar este trabalho é articular as artes visuais e a mídia, pois as artes
visuais são o espaço no qual a linguagem visual é discutida, pensada, questionada, é o meio pelo
qual os(as) professores(as) podem ampliar seu repertório de imagens visuais, abrindo sua
compreensão para além dos estereótipos veiculados pela mídia. É necessário que se tenha claro
que a linguagem visual não é utilizada somente pela Indústria Cultural, existe um universo de
produções que questionam e discutem essa realidade, tornando-se um terreno muito fértil para a
compreensão das linguagens utilizadas pela mídia.
As imagens veiculadas pelas artes visuais são diferentes das imagens veiculadas pela
Indústria Cultural porque são construídas dentro de um espaço de reflexão e criação do novo,
enquanto na Indústria Cultural o que acontece é a estandardização e a repetição.
Um trabalho muito mais significativo poderia ser realizado sobre a mídia se, ao invés de
problematizar a questão unicamente demonizando sua presença e ressaltando seus prejuízos para
o sujeito, a questão fosse problematizada transcendendo as discussões sobre os seus conteúdos
para pensar a relação entre este conteúdo e sua forma, buscando entender o que é esta linguagem,
como é utilizada, que conseqüências tem, como pode ser compreendida.
Assim, podemos perceber que a metodologia apresentada na pesquisa de campo desta
dissertação se mostrou um caminho para trabalhar a mídia com os(as) professores(as), pois,
apesar de ter acontecido em apenas três encontros, pudemos evidenciar uma certa mudança na
compreensão dos sujeitos da pesquisa com relação às produções apresentadas e trabalhadas.
A construção e dramatização do roteiro foram um meio para as professoras entrarem em
contato com a construção do produto audiovisual, atividade que teve resultados muito positivos,
mas pelo tempo destinado à pesquisa e, pela disponibilidade das professoras, não foi possível
explorar todas as possibilidades que oferecia. E ainda, para que as professoras-participantes
tivessem consciência do processo pelo qual passaram, seria necessário um trabalho mais longo,
com discussões mais aprofundadas e leitura de textos, utilizando as atividades da Vivência como
estimuladoras das discussões. Dessa forma, a Vivência, da forma como aconteceu, abriu a
possibilidade das professoras vislumbrarem uma compreensão diferenciada das produções de
telenovela.
Nos relatos que as professoras escreveram como última atividade, a percepção desta
mudança ocasionada pelo processo da Vivência, é descrita como uma nova forma de assistir à
televisão e compreender seus programas. A experiência com a linguagem visual ampliou as
possibilidades de compreensão e decodificação das produções trabalhadas, o que nos leva a
concluir que, ainda que pequeno, este resultado é excelente dentro das limitações deste trabalho.
Os dados da pesquisa nos indicam que é urgente trabalhar a linguagem visual com os
professores e as professoras da educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental, pois a
partir desta compreensão, poderão iniciar uma reflexão sobre as mídias junto às crianças e,
também, sobre sua própria relação com essas. Percebemos que eles(as) estão carentes desta
reflexão, pois sentem a presença da mídia, arriscam vinculá-la ao comportamento das crianças,
mas não tem subsídios nem conhecimentos para realizar um trabalho consistente.
Assim, este trabalho que buscou aprofundar a compreensão da situação do sujeito na
sociedade contemporânea, bem como da educação, dos(as) professores(as) da educação infantil e
das séries iniciais do ensino fundamental e, principalmente, da inserção da linguagem visual neste
ambiente e na vida destes sujeitos; abriu muitos outros questionamentos. A partir deste trabalho
podemos pensar, por exemplo, sobre a possibilidade de ampliação do repertório visual dos
sujeitos através do trabalho com as artes visuais; sobre as contribuições que os outros campos da
arte como a música, o teatro e a dança, possam trazer para o aprofundamento da decodificação da
estrutura da indústria cultural; sobre a efetivação do projeto acima proposto, que integre
discussões sobre a arte e os meios de comunicação na educação para a autonomia. Estas são
apenas algumas das direções para as quais este trabalho aponta, que abrem a possibilidade de
outros estudos e pesquisas que aprofundem a compreensão do fenômeno.
Desta forma, pensando na abertura de outros estudos e não no fechamento deste, é
necessário interromper estas reflexões, que marcam um ponto no processo de compreensão crítica
dos processos sociais e do indivíduo e que exploram a relação entre os vários campos do
conhecimento que nos permitem investigar as questões que nos inquietam continuamente.
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PESQUISA: UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES: A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS INSTRUÇÃO INICIAL: Este questionário tem por finalidade a caracterização dos sujeitos da pesquisa, todos os campos devem ser preenchidos. Questionário:
1. Data de nascimento: ____/____/______
2. Sexo: F ( ) M ( )
3. Estado civil: __________________________________
4. Tem filhos: sim ( ) não ( )
5. Em caso afirmativo, indique quantos, e qual o sexo: _________________________
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6. Escolaridade _____________________________________________________________
7. Em qual nível/série atua ____________________________________________________
8. Tempo de experiência no magistério: __________________________________________
9. Em qual escola trabalha: ____________________________________________________
10. Quanto tempo, em média, assiste televisão por dia: __________________________
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11. Quais os programas que mais gosta? O que faz com que goste destes programas?
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12. Quais programas assiste com maior regularidade?
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13. O que leva você a escolher um programa de televisão?
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14. Que tipo de programas não gosta? O que nos programas lhe desagrada?
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15. Quais as propagandas que mais gosta? O que nas propagandas lhe agrada e desagrada?
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PESQUISA: UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES: A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS RELATO INSTRUÇÃO INICIAL: Conte como foi esta experiência para você.
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PESQUISA: UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES: A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS
RELATÓRIO Nº________
1. Data de entrevista/vivência:__________________________________________________
2. Lugar da e/v: _____________________________________________________________
3. Duração da e/v: das ___:___ às ___:___
4. Indicadores para identificar o entrevistado:______________________________________
5. Peculiaridades da entrevista:_________________________________________________
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PESQUISA: UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES: A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS TEMAS:
1. Uma família de classe média – pai, mãe, 1 filho(a), tem uma vida economicamente boa, o filho(a) estuda em uma escola particular, a mãe o pai trabalham. Um dia o pai perde o emprego. O que fazer?
2. Em uma casa de classe alta, começam a desaparecer coisas, objetos de valor. O que acontece? Como a família resolve esta situação?
3. Em uma família, um dos(as) filhos(as) tem um relacionamento escondido, a família começa a desconfiar e decidem fazer uma conversa em família para saber o que está acontecendo. Quem é essa pessoa, como resolver esta situação?
4. Em uma conversa entre amigas, uma delas conta que está se separando do marido. Porque ela está se separando, o que as amigas acham?