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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS MESTRADO EM EDUCAÇÃO UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES: A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS CURITIBA 2004

52:… · Agradecer às pessoas que me cercaram durante esta trajetória é um pouco difícil, pois o sentimento de gratidão não pode ser traduzido em palavras. Mas mesmo que insuficiente

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES:

A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS

CURITIBA 2004

JULIANA GISI MARTINS DE ALMEIDA

UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES:

A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Teologia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Orientadora: Profª. Drª Sonia Cristina Soares Dias Vermelho

CURITIBA 2004

Dedico este trabalho às pessoas que estiveram ao meu lado ao longo deste percurso, que me incentivaram, e principalmente, que acreditaram em minha capacidade para realizá-lo: meus pais, minhas irmãs e Fábio.

Agradecer às pessoas que me cercaram durante esta trajetória é um pouco difícil, pois o sentimento de gratidão não pode ser traduzido em palavras. Mas mesmo que insuficientes, as palavras são necessárias, e assim, agradeço a todas pessoas que estiveram comigo e que de alguma forma possibilitaram a realização deste trabalho. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha Orientadora, Cristina Vermelho, em quem me espelhei com muita admiração e que embarcou comigo nesta viagem, me acolhendo de forma tão carinhosa. Guiando-me pelo caminho da Teoria Crítica, com muita certeza e desenvoltura, me indicando sempre as leituras certas na hora certa. Quero agradecer aos professores do Mestrado, que possibilitaram que eu entrasse no mundo da educação e da pesquisa com muita competência. Em especial à professora Mariulda que, além de trazer muitas contribuições na banca de qualificação, foi muito importante em todo o processo do Mestrado. A toda equipe do Mestrado que com muita paciência e eficiência resolveram problemas e esclareceram dúvidas, tornando-se um porto-seguro em meio a este mar de incertezas que é a realização de uma dissertação de mestrado. À professora Maria Lucia Batezat que, com suas contribuições, trouxe fôlego novo para a continuidade do trabalho. À Fabiana, colega do mestrado, que se tornou uma amiga querida aliviando um pouco da solidão deste processo. À escola, que abriu suas portas para me receber e possibilitar a realização da pesquisa empírica, à disponibilidade das professoras em passar comigo tardes realizando as atividades e compartilhando suas opiniões e pensamentos. Gostaria de agradecer muito ao Fábio, à minha mãe e à minha irmã Bruna que, com paciência, estiveram sempre prontos à me incentivar, auxiliar e discutir idéias, dando apoio nos momentos mais difíceis.

RESUMO

Este trabalho discute a relação da educação com a linguagem visual, a inserção desta última na

sociedade contemporânea, bem como as implicações para o sujeito. Com base na Teoria Crítica

da Sociedade, especificamente com os autores Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin;

enfocando seus pensamentos sobre Indústria Cultural, Reprodutibilidade Técnica, e a discussão

sobre Cultura. O objetivo principal deste estudo foi o de compreender como os(as)

professores(as) da educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental lêem, compreendem e

utilizam a linguagem visual na sua prática docente e vida pessoal, tendo em vista a possibilidade

de ampliação desta capacidade através de uma formação adequada. Para realizar a investigação, a

metodologia escolhida foi a pesquisa qualitativa com grupo focal, em forma de uma vivência que

englobou atividades práticas, discussões e aplicação de questionário. Buscou-se investigar,

mediante pesquisa empírica, a capacidade destes(as) professores(as) de realizar uma leitura

crítica da linguagem visual. A partir deste estudo, foi possível perceber que existe uma grande

dificuldade na leitura dos códigos visuais em função, entre outras coisas, da falta de um espaço

nos cursos de formação no qual se possa realizar esta aprendizagem; mas, verificou-se também,

que uma formação adequada, que possibilite uma compreensão crítica da linguagem visual, pode

reverter este quadro, ampliando a compreensão dos professores e assim, as possibilidades de

trabalho com esta linguagem nas escolas.

Palavras-chave: formação de professores; linguagem visual; teoria crítica da sociedade.

ABSTRACT

This writting dicusses the conection between education and visual language, the insertion of the

last one in the society ands its relation with the contemporary subject. The teoretical basis was

built after the Teory of the Critical Studies of Society, mainly with the writers Adorno,

Horkheimer, Marcuse and Benjamin; with focuss on their thoughts about the Cultural Industry,

Technical Reprodutibility, and the dscussion over the Culture. So, it was the intent to analise,

with empiric research, the capability of the teachers of the kinder and earlier years of the

fundamental education to accomplish a critical reading of the visual language. The main goal of

this investigation was to understand, beginning with the insertion of the visual language in the

contemporary society, how these teachers read, comprehend and utilise the visual language in

their teaching practise and private lifes, thinking about the possibility of enlargement of this

capability through the adequate education. To realise the investigation, the chosen method was

the qualitative research with focal group, in the shape of a thre days experience, witch was

formed of practical activities, conversations and a questionary. With this research was possible to

realise that there is, among the teachers, a great dificulty in reading the visual codes, that is

caused by the lac of a space in witch this learning is possible; but, it was possible to realise as

wel, that the adequade education for a critical understanding of the visual language can change

this situation, amplifying the teachers understanding, as wel as the possibility of their work with

this language in the schools.

Keuwords:

SUMÁRIO CAPÍTULO I INTRODUÇÃO.................................................................................. 1

1.1 Problema................................................................................................................. 5

1.2 Metodologia............................................................................................................ 6

CAPÍTULO II SOCIEDADE E IMAGENS............................................................. 21

2.1 Cultura e Civilização.............................................................................................. 22

2.2 Outros Veículos de Adaptação................................................................................ 38

2.3 Diversão.................................................................................................................. 44

2.4 A Reprodutibilidade Técnica e a Mudança de Percepção...................................... 47

2.5 O Cinema e as Massas............................................................................................ 69

2.6 Televisão................................................................................................................. 79

2.7 Imagem Informática................................................................................................ 87

CAPÍTULO III EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE DAS IMAGENS....................... 94

3.1 Formação de Professores....................................................................................... 102

3.2 As Concepções do Ensino da Arte.......................................................................... 113

3.3 PCNs e o Ensino da Arte....................................................................................… 119

3.4 Letramento como o Princípio da Leitura do Mundo............................................... 124

3.5 Letramento e Linguagem Visual para a Leitura do Mundo na Sociedade das Imagens.........................................................................................................................

132

CAPÍTULO IV A COMPREENSÃO QUE AS PROFESSORAS TÊM DA LINGUAGEM VISUAL.............................................................................................

139

4.1 O Processo da investigação Empírica..................................................................... 139

4.2 Resultado e Análise da Pesquisa............................................................................. 145

CAPÍTULO V CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................... 224

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 235

APÊNDICE A – Questionário...................................................................................... 240

APÊNDICE B – Relato................................................................................................. 243

APÊNDICE C – Relatório............................................................................................ 245

APÊNDICE D – Temas................................................................................................ 247

APÊNDICE E – Ensaio fotográfico.............................................................................. 249

CAPÍTULO I INTRODUÇÃO

Pensamento mal-humorado. – Aos homens sucede o mesmo que aos montes de

carvão na floresta. Apenas depois de terem queimado e se carbonizado, como

estes, os homens jovens se tornam úteis. Enquanto ardem e fumegam, são talvez

mais interessantes, mas inúteis e freqüentemente incômodos. – De modo

implacável, a humanidade emprega todo indivíduo como material para aquecer

suas grandes máquinas: mas para que então as máquinas, se todos os indivíduos

(ou seja, a humanidade) servem apenas para mantê-las? Máquinas que são um fim

em si mesmas – será esta a umana commedia [comédia humana]?1

O aforismo de Nietzsche, que abre este trabalho, nos revela uma cruel comédia humana

que só fez piorar desde 1878 – data em que foi publicado, pela primeira vez, no livro Humano

demasiado humano –, uma comédia que se torna mais trágica com o passar do tempo e nos deixa

mais perplexos com o movimento imanente rumo a supremacia da máquina sobre o ser humano.

Percebemos na hierarquia das prioridades que a vida humana é “empurrada” cada vez

mais para baixo e, o progredir da humanidade se torna o progredir da técnica. Este processo se dá

em um movimento contrário ao proposto pelos Movimentos do Esclarecimento, que deram início

ao pensamento sobre o progresso da humanidade pela sua autodeterminação: pelo uso da Razão,

a humanidade atingiria o esclarecimento e a autonomia, e assim, a bem-aventurança. Assim, o

que vemos com Nietzsche, e nossa vivência confirma, é que atualmente a vida humana é um

meio para se atingir a evolução da tecnologia, é a lenha que esquenta as caldeiras.

A tecnologia avança e acelera o ritmo da vida nas cidades, exige nossa rápida adaptação

aos novos meios para tornar nossa vida mais fácil, agradável, eficiente e produtiva. As formas de

1 NIETZSCHE, Friedrich. Humana, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 283.

adaptação se tornam formas de controle, e o bem-estar, uma identificação com a heteronomia

resultante.

Percebemos as formas de adaptação permeando e invadindo a vida das pessoas pelo

controle das necessidades individuais, tornando-as mais eficientes por partirem do próprio

indivíduo. A adaptação impõe que as pessoas não saiam do sistema de produção por um instante

se quer: durante o trabalho, alimentam o sistema produtivo com sua força, e fora dele, consomem

o que foi produzido por outros; o movimento nunca é interrompido e as máquinas continuam em

funcionamento.

Dentre os vários mecanismos que hoje organizam e controlam a vida em nossa sociedade

temos a indústria cultural, que agencia e controla os momentos de lazer das pessoas que estão em

horário de não-trabalho. Muitas vezes este consumo é puramente visual: por um lado, porque se

realiza desde o desejo de consumo despertado pela propaganda e pela “embalagem” à

transformação deste consumo em símbolo de status; e, por outro, porque grande parte destas

produções é construída com a linguagem visual.

A linguagem visual é largamente utilizada pela indústria cultural em suas produções, o

que pode ser percebido pelo fato de a grande maioria dos meios de comunicação ser visual em

sua essência: o cinema, a televisão, as revistas, os cartazes, outdoors, etc.. Disto podemos

concluir que as informações que estes meios trazem são formadas por dois discursos nem sempre

unívocos: a tradição do discurso da linguagem escrita e falada e o discurso da linguagem visual.

Se a maioria das informações que recebemos sobre o mundo, são transmitidas por estes meios de

comunicação, podemos perceber que a compreensão e decodificação da linguagem visual se

tornam essenciais para o entendimento do mundo que nos é mostrado.

Assim, a nomeação Sociedade das Imagens, além de indicar que atualmente a aparência

das coisas assume o lugar das coisas mesmas em vários sentidos, fala também da crescente

presença e importância da linguagem visual em nossas vidas. Desta percepção, que se deu ao

término de minha Monografia de Especialização em História da Arte do Século XX2, surgiu a

necessidade desta pesquisa, na qual a intenção foi investigar e questionar a relação entre os

indivíduos de nossa sociedade e estas imagens. Neste sentido, temos como ponto de partida para

a discussão sobre a linguagem visual, o espaço das artes plásticas, compreendido como o campo

do conhecimento no qual a linguagem visual é pensada e discutida.

Aprofundando estes questionamentos, ao conectá-los com a necessidade da formação para

a leitura crítica dos códigos visuais que hoje nos cercam, tornou-se imperativo encaminhar esta

pesquisa para a área da educação, dentro da qual foi possível investigar como a linguagem visual

é compreendida pelos professores(as) da educação infantil e séries iniciais do ensino

fundamental. A compreensão de como estes professores(as) se relacionam com a linguagem

visual, nos permite deduzir a forma como é trabalhada dentro das escolas. Destarte, a relação

entre arte, cultura, educação e sociedade se coloca como o eixo em torno do qual o trabalho se

desenvolve.

Para abordar estas questões foram utilizados os escritos de alguns dos teóricos da Escola

de Frankfurt, especificamente Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Walter

Benjamin. A Teoria Crítica da Sociedade, por ser de orientação freudo-marxista se mostra muito

interessante neste contexto, pois articula o pensamento sobre o indivíduo e a sociedade de forma

crítica, levantando o problema da reprodutibilidade técnica – discutido por Walter Benjamin em

A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade técnica3 –, das falsas necessidades e da cultura –

2 ALMEIDA, Juliana Gisi Martins. O auto-retrato fotográfico contemporâneo e a situação do sujeito. Curitiba: EMBAP, 2002. 3 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas- volume I. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987b. (p. 165 –196).

como discutido por Herbert Marcuse em Novas Formas de Controle4 e Comentários para uma

redefinição de Cultura5 – e da indústria cultural – termo cunhado por Adorno e Horkheimer no

livro Dialética do Esclarecimento6, que se refere ao mercado das produções culturais e ao

agenciamento do seu contato com o público. A indústria cultural pode ser considerada como o

ponto de ligação entre o indivíduo contemporâneo e a cultura, possibilitada pela reprodutibilidade

técnica e disseminadora das falsas necessidades, afeta diretamente a cultura e a educação.

Segundo Marcuse, a cultura se coloca na sociedade contemporânea como veículo de

adaptação7; resumindo-se, dentro da indústria cultural, à diversão: um meio de aliviar a tensão

causada pela repressão e opressão sofridas pelas pessoas na luta pela sobrevivência. Um dos

motivos para esta situação, é que a sociedade administrada8 vem, há algum tempo, bloqueando os

domínios espirituais e intelectuais – como propostos pelos teóricos da Escola de Frankfurt –

dentro dos quais a cultura poderia ser compreendida em seus conteúdos originais, oposicionais à

estrutura social; o que torna a compreensão das formas pelas quais se dá este processo importante

para entendermos a educação hoje.

Nesse sentido, faz-se urgente uma educação que disponibilize os meios necessários para

que nós possamos ver criticamente as imagens; para ler o mundo hoje, é necessário saber decifrar

os códigos visuais e seus sistemas simbólicos, saber selecionar as imagens dentro do turbilhão de

informações que nos atingem e, usá-las para ler a realidade que nos cerca. Assim, uma educação

4 MARCUSE, Herbert. As novas formas de controle. In: Ideologia da sociedade industrial. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969. 5 MARCUSE, Herbert. Comentários para uma redefinição de cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. Cultura e Sociedade, volume II. 6 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 7 MARCUSE, op. cit., p. 159. 8 O conceito de Sociedade Administrada se refere, em última instância, à situação atual, na qual a estrutura social realiza um controle cada vez mais amplo de toda vida, administrando todos os setores sociais com o objetivo de sua própria reprodução. Esta situação é resultado de um processo longo que tem suas origens no início do processo de industrialização e no controle realizado pela racionalidade tecnológica, como veremos no decorrer do Capítulo Sociedade e Imagens.

que possibilite a ampliação destas capacidades, é fundamental para entendermos quem somos e

projetarmos quem queremos ser.

Tendo o espaço das artes visuais como o campo do conhecimento no qual se realiza o

pensamento crítico sobre a linguagem visual, percebemos que não basta incluir conteúdos de

Artes nos currículos das escolas; para que este ensino possa vislumbrar a autonomia do sujeito, os

professores(as) precisam de uma formação que possibilite a compreensão crítica destes

conteúdos. A decodificação da linguagem visual não se refere somente ao contato com as obras

de arte, mas principalmente à sua utilização como mais uma forma de leitura do mundo.

Para que a linguagem visual auxilie na compreensão da cultura visual, como proposta por

Fernando Hernándes9, é necessário proporcionar aos professores a vivência da linguagem visual,

para que possam trabalhar com as crianças, intercalando os conhecimentos das produções

artísticas da humanidade e, as produções visuais da indústria cultural.

1.1 Problema de Pesquisa

Assim, temos como problema de pesquisa: Qual é a compreensão, elaboração e

capacidade de leitura crítica da linguagem visual dos professores(as) que atuam na educação

infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. A partir desse problema, delimitamos como

objetivos: Analisar a inserção/influência da imagem visual na sociedade contemporânea e a

9 HERNÁNDES, Fernando. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Alegre, RS: Editora Artes Médicas Sul, 2000.

capacidade de leitura crítica da linguagem visual de professores(as) da educação infantil e séries

iniciais do ensino fundamental.

Mais especificamente, analisar a influência das imagens na formação do indivíduo na

sociedade contemporânea; investigar a importância da formação dos professores(as) da educação

infantil e séries iniciais do ensino fundamental para a leitura crítica das imagens; identificar como

os(as) professores(as) lêem, interpretam e utilizam as imagens visuais nas suas práticas docentes

e vidas particulares; investigar possibilidades de intervir na leitura crítica dos(as) professores(as),

em relação às imagens, através de vivências dialógicas e analíticas, com o intuito de melhorar a

compreensão da linguagem visual; apresentar subsídios para o desenvolvimento da leitura crítica

das imagens visuais na formação de professores(as).

1.2 Metodologia

Ao tomar como objeto de investigação a compreensão das diferentes formas da linguagem

visual que têm os(as) professores(as) da educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental,

definimos como opção metodológica a pesquisa qualitativa. Dentro do universo da pesquisa

qualitativa, a modalidade aplicada foi a entrevista com grupo focal natural, aliada ao uso de

recursos visuais e audiovisuais como estímulo para discussões e obtenção de dados.

Uma opção metodológica está intimamente ligada à especificidade do objeto de

investigação e à visão de mundo do investigador. A própria determinação do objeto a ser

investigado já é produto de uma ação intencional.

A opção pela pesquisa qualitativa baseou-se na concepção de que este método “[...]

fornece uma compreensão profunda de certos fenômenos sociais apoiados no pressuposto da

maior relevância do aspecto subjetivo da ação social face à configuração das estruturas

societais.”10

Neste estudo a pesquisa qualitativa torna-se fundamental, levando-se em conta que o

mesmo tem seu foco na compreensão das diferentes formas da linguagem visual dos sujeitos.

Este método possibilita, de acordo com Richardson,

[...] analisar a interação de certas variáveis, compreender e classificar processos

dinâmicos vividos por grupos sociais, contribuir no processo de mudança de

determinado grupo e possibilitar, em maior nível de profundidade, o

entendimento das particularidades do comportamento dos indivíduos.11

A presente investigação foi realizada com os(as) professores(as) da educação infantil e

séries iniciais do ensino fundamental, por serem estes que intermediam o primeiro contato das

crianças com as diversas linguagens, período de significativa importância para a compreensão da

linguagem visual.

A escolha dos sujeitos deve-se ao fato de ser importante que a educação visual aconteça

desde os primeiros anos do período escolar, pois o contato com a gramática visual e a

compreensão da linguagem visual, deve ocorrer simultaneamente à alfabetização.

A seleção dos sujeitos da pesquisa se deu através dos seguintes requisitos: um grupo de 4

professores(as) de uma mesma escola, com disponibilidade para se reunir em três encontros com

duração de 2 horas cada um. Em relação a este critério, segundo Gakell:

10 HAGUETTE, Tereza Maria Frota. Metodologias qualitativas na sociologia. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 63. 11 RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas, 1999, p. 80.

Na pesquisa qualitativa, a seleção dos entrevistados não pode seguir os

procedimentos da pesquisa quantitativa por um bom número de razões.

Primeiramente, numa improvável situação de selecionar uma amostra aleatória

de, digamos 30 pessoas, para um estudo qualitativo, a margem de erro ligada a

uma divisão de 50/50 com qualquer indicador seria na região de mais ou menos

20 por cento.12

O que nos levou a usar outro método para a seleção dos sujeitos da pesquisa qualitativa

com grupo focal, os grupos naturais. O grupo focal tradicional é composto por pessoas que não se

conhecem, mas isto não é um pré-requisito; sendo a familiaridade anterior considerada uma

vantagem em alguns casos13, como no presente. O trabalho com grupo focal se constitui em uma

alternativa aos grupos estatísticos ou taxonômicos, como afirma Gakell:

Nos grupos naturais, as pessoas interagem conjuntamente; elas podem partilhar

um passado comum, ou ter um projeto futuro comum. Elas podem também ler os

mesmos veículos de comunicação e ter interesses e valores mais ou menos

semelhantes. Neste sentido, grupos naturais formam um meio social.14

Neste caso, o critério utilizado foi o da convivência profissional, pois os sujeitos

escolhidos atuam na mesma escola pública de Curitiba, com as primeiras séries do ensino

fundamental.

O grupo focal natural apresenta uma interação social mais autêntica que a entrevista

qualitativa em profundidade, pois como uma unidade social mínima em operação, faz com que as

12 GASKELL, George. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, M. W., GASKELL, G.. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Tradução: Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 64-89, p. 67-68. 13 Ibid., p. 82. 14 Ibid., p. 69.

representações que surjam no decorrer das atividades e encontros sejam mais influenciadas pela

natureza social da interação do grupo.15

Os “[...] membros dos grupos focais não foram escolhidos para representar a sociedade

como um todo; eles foram escolhidos para constituir grupos que pudessem ter algo a dizer em

relação às questões teóricas trabalhadas.”16 Pois o objetivo não é abarcar uma fatia da população

e sim investigar com maior profundidade um grupo reduzido que pudesse trazer informações

sobre a compreensão do meio visual; para tanto foram selecionados como sujeitos da pesquisa

um grupo de 4 professoras de uma escola Municipal da região de Curitiba.

A “[...] finalidade real da pesquisa qualitativa não é contar opiniões ou pessoas, mas ao

contrário, explorar o espectro de opiniões, as diferentes representações sobre o assunto em

questão.”17 Neste sentido, a escolha pela entrevista com grupo focal natural oferece a

possibilidade de apreensão destas opiniões e representações em um ambiente no qual os sujeitos

já têm um vínculo social natural, possibilitando a convivência dos diversos pontos de vista,

instituída anteriormente à reunião para a pesquisa, mas que se afirma enquanto grupo isolado dos

outros membros da comunidade escolar de onde provêem, o grupo se constitui em uma unidade.

A entrevista qualitativa, pois, fornece os dados básicos para o desenvolvimento e

a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação. O objetivo é

uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações, em

relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos.18

15 GASKELL, 2002, p. 75. 16 MYERS, Greg. Análise da conversação e da fala. In: BAUER, M. W., GASKELL, G.. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Tradução: Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 271-292, p. 286. 17 GASKELL, 2002, p. 68. 18 Ibid., p.65.

O grupo se torna uma entidade em si mesma, mais que a soma das partes, pois pode-se

observar que a convivência entre os componentes do grupo possibilitou uma aproximação à

interação social, através da qual foram trazidas à luz, questões presentes no cotidiano escolar do

grupo pesquisado, o que foi possível por se tratar de um grupo natural. Como observa Gaskell:

A interação do grupo pode gerar emoção, humor, espontaneidade e intuições

criativas. As pessoas nos grupos estão mais propensas a acolher novas idéias e a

explorar suas implicações. Descobriu-se que os grupos assumem riscos maiores e

mostram uma polarização de atitudes – um movimento para posições mais

extremadas.19

A obtenção dos dados junto às professoras foi desenvolvida mediante uma vivência, que

englobava conversas e atividades práticas, o preenchimento de um questionário (apêndice A), a

realização de uma entrevista coletiva, além da produção de um relato (apêndice B) em forma de

texto no final da vivência. A opção por determinadas técnicas deve ter estreita relação com o tipo

de esclarecimento que se busca do objeto da investigação; neste caso, a reunião de diversas

atividades que exploravam diferentes aspectos da relação dos sujeitos com a linguagem visual.

As atividades práticas possibilitaram aprofundar a compreensão do problema, pois foi

possível entrar em contato com valores muitas vezes não explicitados oralmente ou por escrito,

quando o sujeito tem a possibilidade de selecionar racionalmente os conteúdos que irá expor; o

que pudemos perceber pelas diferenças entre os conteúdos que apareceram no questionário e

durante as atividades práticas.

A vivência foi proposta nestes termos, levando-se em conta a total inexperiência dos

sujeitos com a arte da dramatização, mas a sua experiência direta com os produtos desta arte por

19 GASKELL, 2002, p.76.

meio do contato com o teatro, a televisão e o cinema. Este contato se mostra como uma

experiência constante com a linguagem dramática e visual, mesmo que somente do produto final,

não sendo esperado, portanto, qualquer qualidade dramática nas representações. O que se buscou

foi perceber como esta experiência de assistir a filmes, teatro ou televisão se constitui em

experiência para a construção de um roteiro e uma dramatização, comportamento em cena, idéias

de construção das imagens e das falas. Pois se não existiram aulas de dramatização, os modelos

de referência foram buscados em outras experiências: as de espectadores(as). Esta produção

informal de uma dramatização teve como objetivo captar as reações espontâneas que os sujeitos

pudessem trazer de suas experiências cotidianas. Como afirma Bauer:

A comunicação informal possui algumas poucas regras explícitas: as pessoas

podem falar, desenhar ou cantar do modo que queiram. O fato de haver poucas

regras explícitas não significa que não existam regras, e pode acontecer que o

foco central da pesquisa social seja desvelar a ordem oculta do mundo informal

da vida cotidiana. Na pesquisa social, estamos interessados na maneira como as

pessoas espontaneamente se expressam e falam sobre o que é importante para elas

e como elas pensam sobre suas ações e as dos outros. Dados informais são

gerados menos conforme as regras de competências, tais como capacidade de

escrever um texto, pintar ou compor uma música, e mais do impulso do momento,

ou sob a influência do pesquisador.20

Portanto, a vivência não tinha o intuito de julgar a qualidade estética da dramatização ou

do roteiro realizados pelos sujeitos, mas de, a partir desta atividade, detectar as representações

sociais que pudessem aparecer e utilizar as atividades como estímulo para conversas e

depoimentos dos sujeitos.

20 BAUER, Martin W.; GASKELL, George; ALLUM, Nicholas C.. Qualidade, quantidade e interesses do conhecimento: evitando confusões. In: BAUER, M. W., GASKELL, G.. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Tradução: Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p.17-36, p.21.

Todos os encontros foram registrados em fita de vídeo e, após cada encontro, foi

produzido um relatório (apêndice C) com as impressões e idéias que pudessem ser sugeridas

durante o encontro. A escolha por este método de registro se deve à especificidade das atividades,

que tendo como ponto central a construção e dramatização de um roteiro para uma cena, exigia o

registro do comportamento dos sujeitos além de suas falas. E como se pretendia captar todo o

ambiente onde se desenvolveram as atividades e principalmente porque se trabalhou com a

linguagem visual e corporal, a filmagem em fita de vídeo se mostrou a melhor opção para o

registro. O que significa que a presença da filmadora deve ser levada em consideração na análise

dos dados, pois é de nosso conhecimento que a filmagem se apresenta como muito mais invasiva

que a gravação em fita k7, embora as professoras tenham sido consultadas sobre o uso deste

procedimento e tenham concordado, pois foi garantida a anonimidade das participantes.

O objetivo desta vivência foi perceber como estas professoras lêem os conteúdos e as

imagens da mídia, como se apropriam deste conteúdo e como o trabalham em sala de aula.

Portanto, todas as atividades e conversas foram direcionadas para a relação que estas professoras

estabelecem com os meios de comunicação visuais. Foram realizadas atividades e conversas que

possibilitassem uma maior aproximação com o objeto de estudo desta dissertação, não somente

por meios verbais, o que possibilitou uma compreensão aprofundada da relação dos sujeitos com

os conteúdos e forma dos meios de comunicação.

A realização da vivência seguiu os seguintes passos:

Primeiro dia:

1. Questionário: preenchimento de um questionário semi-aberto, que inquiria sobre as

preferências, hábitos e disponibilidade dos sujeitos ao assistir televisão.

2. Entrevista coletiva: com base no questionário foi realizada uma entrevista coletiva na

qual as professoras expuseram suas opiniões.

3. Cena de novela: as professoras assistiram a uma cena de novela, gravada no dia 18 de

Setembro, da novela de maior audiência no horário nobre, na Rede Globo de

Televisão: Mulheres Apaixonadas.

4. Roteiro: foi solicitado às professoras que construíssem um roteiro para posterior

dramatização, em duplas, com base em um tema proposto entre quatro possibilidades

(apêndice D).

Segundo dia:

5. Dramatização: as professoras encenaram o roteiro por elas construído, que foi

registrado em uma fita de vídeo para ser assistido no encontro seguinte.

6. Conceitos: foi solicitado que cada dupla definisse dois ou três conceitos que

resumissem o seu roteiro.

7. Ensaio fotográfico: as professoras construíram um ensaio fotográfico, buscando

imagens para fotografar na própria escola, que traduzissem os conceitos definidos por

elas (apêndice E).

Terceiro dia:

8. Observação do material produzido: a dramatização realizada pelas professoras foi

editada em uma fita de vídeo, e as fotografias reveladas e ampliadas, para que no

encontro as professoras pudessem observar e comentar o material produzido por elas.

9. Cena de novela: a cena de novela descrita no 3º passo do primeiro dia da vivência foi

assistida novamente pelas professoras no último dia da vivência.

10. Relato: foi solicitado às professoras que produzissem em forma de texto um relato

sobre todo o processo vivido por elas nos três dias da vivência.

Todas as atividades foram seguidas de conversas, que pretendiam registrar as impressões

imediatas dos sujeitos com relação à atividade proposta.

A primeira pesquisa piloto se mostrou fundamental para reorganização das atividades.

Percebeu-se nesta atividade que o total comprometimento das participantes é essencial para a

continuidade e sentido da vivência. O formato inicial da vivência que comportava, dos pontos

citados acima, apenas os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 8, 9 e 10, foi modificado com a inclusão dos pontos

6 e 7. O motivo da inclusão foi o de entrelaçar a produção da dramatização com a produção de

um ensaio fotográfico como desdobramento da atividade, apreendendo assim, duas formas da

linguagem visual, em movimento e fixa. Outro motivo que levou à inclusão destas atividades foi

o de permitir a produção de imagens em um meio mais familiar e do qual as professoras se

apropriaram mais facilmente; além de aumentar o material de análise e discussão, com a

construção, pelos sujeitos, de imagens que pudessem se colocar em paralelo à dramatização para

aprofundar a compreensão da linguagem visual e ampliar o âmbito de ligações entre os conteúdos

da mídia, as imagens da mídia e os modelos de dramatização efetuados. Percebeu-se também,

com a primeira pesquisa, que só a dramatização se mostrou insuficiente para o fechamento da

vivência, pois, a produção de um roteiro e sua dramatização, são duas atividades muito distantes

do dia a dia dos sujeitos, o que, de certa forma, dificulta a formalização, pela falta de vocabulário

e intimidade com o meio.

A primeira pesquisa piloto foi realizada com uma turma de um Curso de Formação de

Professores, com total de 8 alunas. Foi dada toda a orientação para a diretora do curso, por

escrito, dizendo que se tratava de uma pesquisa e, que as alunas deveriam decidir se queriam

participar ou não. Quando a diretora orientou as alunas, apenas se referiu à pesquisa como mais

uma das atividades optativas ofertadas para as alunas durante aquela semana. Iniciei as atividades

modificando no decorrer do tempo as orientações por perceber que a pesquisa não poderia ser

realizada da forma como estava ocorrendo. Mesmo não sendo dito que se tratava de uma

pesquisa, as alunas sabiam que se tratava de uma atividade optativa, do que se pode concluir que

participaram espontaneamente; mas mesmo assim assumi internamente que esta atividade não

seria usada na pesquisa, ficando como uma experiência piloto, já que de qualquer forma os dados

não seriam divulgados. Pude perceber nos dois encontros realizados com as alunas do referido

curso, que para a realização da pesquisa deveria incluir algumas atividades a mais, para que a

obtenção dos dados se realizasse de forma mais completa, assim optei por incluir a produção de

um ensaio fotográfico relacionado com a dramatização. Constatei também que o total

comprometimento com a pesquisa, por parte dos sujeitos, se mostrou fundamental. As alunas do

Curso de Formação de Professores que participaram desta experiência piloto estavam na fase de

elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso, tendo sua atenção voltada para a realização do

trabalho, o que prejudicou sua participação; outro fato que prejudicou o trabalho foi a presença de

duas professoras, que as orientavam, na sala de aula no primeiro encontro. Por estes motivos, esta

experiência foi descartada, mas não a percepção de falhas na construção do projeto para a

vivência.

Na segunda experiência, a vivência foi organizada em três encontros, com duração de

duas horas, que foram realizados na própria escola na qual trabalham as professoras, com

intervalos de duas semanas entre cada encontro, abrangendo os meses de Outubro e Novembro de

2003. Os sujeitos da pesquisa foram um grupo de professoras do ensino fundamental de uma

Escola Municipal situada na região de Curitiba. Todas as professoras já atuam no magistério há

mais de 10 anos, totalizando 4 professoras; duas das quais possuem ensino superior, uma possui

magistério e uma possui pós-graduação. Em uma conversa preliminar com as professoras e as

diretoras da escola foi possível marcar os encontros e contar com o comprometimento das

professoras, com as quais foi possível realizar todas as etapas e atividades da pesquisa.

No primeiro encontro as professoras preencheram o questionário, e participaram da

entrevista coletiva, a segunda atividade foi assistir à cena da novela Mulheres Apaixonadas,

gravada no dia 18 de setembro de 2003, da emissora de televisão Rede Globo. Após um breve

comentário sobre alguns elementos visuais presentes em uma cena, como tipos de

enquadramento, luz, etc. foi iniciada a terceira atividade do encontro: construir um roteiro para a

dramatização no próximo encontro.

No segundo encontro as professoras ensaiaram seus roteiros e depois realizaram a

dramatização. Como uma das professoras faltou neste dia, assumi o papel dela na dramatização

por considerar que não afetaria o resultado final, pois o roteiro já estava pronto, eu só tive que ler

as falas para que a professora pudesse participar. Depois da dramatização, as professoras

definiram três conceitos que resumiam as cenas para elas e saímos pela escola para que elas

fotografassem imagens que representassem os conceitos. Após cada atividade foram realizadas

conversas que tinham o intuito de registrar as opiniões imediatas das professoras com relação às

atividades.

No terceiro encontro a seqüência das atividades foi planejada de forma a possibilitar que

as professoras pudessem comentar, e pensar a respeito da linguagem visual, retomando todas as

fases da vivência. Em primeiro lugar assistiram à dramatização realizada por elas; em segundo,

observaram as fotografias tiradas e retomaram as ligações entre as atividades; em terceiro,

assistiram novamente à dramatização; em quarto, assistiram novamente à cena da novela assistida

no primeiro encontro; e, em quinto, foi realizada uma conversa sobre como elas percebem a

presença da mídia na escola. As várias atividades realizadas no último encontro possibilitaram

uma dinâmica entre as linguagens visuais trabalhadas e, a passagem de uma para a outra

possibilitou que as professoras fizessem as conexões entre as atividades.

Para realizar a análise do material coletado, as fitas de vídeo foram assistidas e as falas e

comportamentos transcritos detalhadamente, para comporem, junto com os relatórios realizados

todos os dias após os encontros e as fotografias, o material de base para a análise de conteúdo.

A análise de conteúdo busca a compreensão dos significados das mensagens para seus

emissores em um determinado momento; o objetivo é trabalhar a mensagem (conteúdo e

expressão deste conteúdo) para evidenciar indicadores que permitam inferir em outra realidade.

Parte-se de uma leitura inicial e superficial até o aprofundamento, visando ultrapassar os

significados manifestos. Relacionam-se as estruturas dos enunciados, nas quais articulam-se os

textos descritos e analisados com os fatores que determinam suas características: variáveis

psicossociais, contexto cultural e processo de produção da mensagem.21

Dentre as várias técnicas de análise de conteúdo existentes, foi escolhida a análise

temática para trabalhar os dados coletados. A análise temática é uma afirmação acerca de um

assunto e pode ser representada por uma palavra, uma frase ou um resumo. Segundo Bardin, “[...]

o tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado segundo

certos critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura.”22

Uma análise temática consiste em descobrir os “núcleos de sentido” que compõem a

comunicação e cuja presença ou freqüência de aparição podem significar alguma coisa para o

objetivo analítico escolhido; organiza-se em três pólos: pré-análise, exploração do material e

tratamento dos resultados obtidos, e, interpretação.

21 MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 6.ed. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1999. 22 BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1995, p.105.

De acordo com Bardin, os passos para a análise do conteúdo neste trabalho foram os

seguintes:

Pré-análise: esta é a fase na qual é feita a organização das idéias iniciais, de forma a

conduzir a um esquema de operações de análise. Caracteriza-se pela escolha dos documentos que

serão analisados e a formulação das hipóteses, objetivos e elaboração de indicadores que

fundamentam a interpretação final. Esta fase é composta de várias atividades:

a. leitura flutuante: visa estabelecer contato com os documentos, momento no qual o

pesquisador deixa-se invadir por impressões e orientações; gradativamente a leitura se torna mais

precisa, em função das hipóteses iniciais e da projeção de teorias sobre o material. Neste trabalho,

esta fase se constituiu por momentos nos quais as fitas de vídeo que registraram a vivência foram

assistidas, a leitura da transcrição das falas das professoras, juntamente com os questionários e os

relatos. Este procedimento se repetiu várias vezes até que se iniciou uma classificação por

proximidade de idéias, o que foi seguido por um novo contato com o material; passos estes que se

repetiram: leitura, classificação por proximidade, nova leitura, nova classificação; até uma

organização que permitisse entrar na etapa seguinte proposta por Bardin;

b. escolha dos documentos: a constituição de um corpus de documentos a serem

submetidos aos procedimentos analíticos, os quais devem responder aos critérios de:

exaustividade: contemplar todos os aspectos do tema; representatividade: conter a

representatividade do universo pretendido; homogeneidade: responder a critérios precisos de

escolha; pertinência: os documentos devem ser adequados como fonte de informação

respondendo ao objetivo de análise. Neste trabalho esta etapa se deu pelo agrupamento das falas

das professoras participantes da vivência, dos materiais escritos, fotográficos e audiovisuais.

c. formulação das hipóteses e objetivos: formulação de uma afirmação provisória a ser

verificada com base nos procedimentos analíticos; no presente estudo a formulação das hipóteses

foi feita momento a momento quando do agrupamento e análise dos dados, visando encontrar o

conjunto que melhor representasse o significado das falas;

d. referenciação dos índices e a elaboração dos indicadores: é a escolha dos índices e a

sua organização sistemática na forma de indicadores, que devem ter determinadas operações:

recorte do texto em unidades comparáveis de categorização para a análise temática e de

modalidade de codificação para registro dos dados. Nessa etapa, coloca-se o conjunto das falas,

com os recortes de textos que representem as unidades que são comparáveis, isto é, tem o mesmo

significado e, gradativamente vão se transformando em indicadores para a categorização. Após a

distribuição dos indicadores em diferentes conjuntos de categorização, uma nova leitura era

realizada, observando-se as convergências e divergências dos indicadores; foram feitos vários

agrupamentos, até chegar ao que melhor representasse os resultados desse estudo.

A exploração do material: esta fase se resume basicamente à operação de codificação,

mediante a transformação dos dados brutos com vistas a alcançar o núcleo de compreensão do

texto.

Tratamento dos resultados obtidos e interpretação: os resultados brutos devem ser

tratados de maneira a serem significativos e válidos. A partir daí o analista propõe inferências e

realiza interpretações previstas no seu quadro teórico ou abre outras pistas em torno de dimensões

teóricas sugeridas pela leitura.

A codificação corresponde a uma transformação sistemática dos dados brutos do texto,

que posteriormente são agregados em unidades, permitindo a descrição das características do

conteúdo. Ao chegar nas unidades de categorização propostas no presente estudo, o trabalho de

análise foi realizado, para o qual foi utilizado o referencial teórico estudado.

O referencial teórico foi construído com base na teoria crítica da sociedade, com os

teóricos da Escola de Frankfurt, além de outros que pudessem trazer contribuições para a

compreensão do objeto de estudo. Neste sentido, no segundo capítulo desta dissertação são

discutidas as questões relacionadas à sociedade, ao indivíduo e à reprodutibilidade técnica da

imagem. No terceiro capítulo, é abordada a educação e a formação dos professores, relacionando

a pseudoformação, a coisificação da profissão de ensinar, o ensino da arte e a inclusão das mídias

na escola. No quarto capítulo, a metodologia é apresentada detalhadamente e no quinto capítulo

são apresentadas as análises da pesquisa. As considerações finais constituem o sexto e último

capítulo desta dissertação.

CAPÍTULO II SOCIEDADE E IMAGENS

Os signos metropolitanos são “imagens reproduzidas e reprodutíveis, reproduções

de imagens que implicam outras imagens e outras reproduções, imagens

formalizadas que remetem a outras imagens, imagens que se articulam no código

e o exibem ao mesmo tempo, como mediação estruturadora que liga todas as

coisas de maneira viscosa”. A imagem da imagem é uma mensagem que explicita

logo o código que a estrutura, definindo o próprio funcionamento e a própria

trajetória significativa. A imagem metropolitana não é aquilo que pode ser

reproduzido, mas aquilo que traz em si a própria reprodução. Mais do que

repetição ela é reprodução permanente e auto-reprodução, abrindo um processo

de infinitos reflexos no duplo.23

Nesta citação, Anatereza Fabris comenta e completa a citação de Paolo Bertetto, sobre os

signos metropolitanos, as imagens visuais, que se tornam cada vez mais numerosas e importantes

em nossa sociedade, formando o que muitos chamam de Sociedade das Imagens. Para entender a

dinâmica da reprodutibilidade descrita acima, faz-se necessário entender o princípio que a gerou,

isto é, a “racionalidade tecnológica24”, que perpassa toda a sociedade, e define a própria

percepção que as pessoas têm da realidade. Percepção esta que sofre consideráveis mudanças no

desenvolvimento histórico de nossa civilização, em decorrência de transformações profundas na

organização social. 23 BERTETTO, Paolo apud FABRIS, Anatereza. Percorrendo veredas: hipóteses sobre a arte brasileira atual. In: Revista USP. São Paulo, dezembro/fevereiro 1998-99, nº40, p. 68-77, p. 71. 24 O termo “racionalidade tecnológica” é usado de acordo com Marcuse em “Algumas Implicações da Tecnologia Moderna”: “Sob o impacto deste aparato [o termo ‘aparato’ designa as instituições, dispositivos e organizações da indústria em sua situação social dominante], a racionalidade individualista se viu transformada em racionalidade tecnológica. De modo algum está confinada aos sujeitos e objetos das empresas de grande porte, mas caracteriza um modo difundido de pensamento e até mesmo as diversas formas de protesto e rebelião. Esta racionalidade estabelece padrões de julgamento e fomenta atitudes que predispõem os homens a aceitar e introjetar os ditames do aparato.” MARCUSE, Herbert. Algumas implicações da tecnologia moderna. In: Tecnologia, guerra e fascismo. KELLNER, Douglas (ed). Tradução de Maria Cristina Vidal Borba. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 73-104. p.77.

2.1 Cultura e Civilização

A Sociedade Ocidental passa por um processo de industrialização que se iniciou no final

da Idade Média, possibilitou a passagem do modo feudalista de produção para o modo capitalista,

e se realizou em meio a reformulações na técnica de produção, pela invenção das primeiras

máquinas. Este processo continua se atualizando até hoje, mas como os seus meandros são

complexos e demandariam todo um trabalho de pesquisa para analisá-los corretamente, para os

fins deste estudo, não entraremos nestes detalhes, apenas levantaremos alguns pontos que possam

esclarecer o nosso objeto de estudo: a compreensão das imagens metropolitanas e sua relação

com o sujeito contemporâneo.

Os pressupostos dos Movimentos do Esclarecimento eram de que pelo uso da Razão, a

humanidade atingiria o esclarecimento e a autonomia; e prescreviam que o progresso a levaria a

sair da menoridade, que seria, como explicou Kant, atingir esta autonomia e a liberdade, através

deste esclarecimento.

É interessante ressaltar que o conceito de progresso é fundamental neste contexto, pois se

constitui no motor de todo o desenvolvimento da Sociedade Ocidental. Como foi delineado por

Adorno, o conceito de progresso difundido pelo Iluminismo se origina nas idéias de Santo

Agostinho, de que a redenção de Cristo colocava a espécie humana em marcha imanente para a

bem-aventurança, o Reino Celestial. O que fazia da vida na terra, uma vida de pecado e

sofrimento que seriam compensados depois da morte, ao lado de Deus. Mas a impugnação desta

redenção bem sucedida pela história pós-cristã (a redenção de Cristo não livrou o mundo do mal,

e o fato de que a igreja perde gradativamente seu poder político-econômico-ideológico no

período moderno), torna-se motivo de uma irresistível secularização do progresso a partir da

Renascença. O iluminismo que “[...] coloca pela primeira vez, nas mãos da humanidade seu

próprio progresso e concretiza desse modo sua idéia como algo a ser efetivado, espreita a

ratificação conformista daquilo que meramente existe.”25 A idéia de evolução para algo melhor é

reformulada pelo iluminismo: o caminho para chegar ao estado superior não é a religião, pois

este estado não está no céu, está na terra e pode ser alcançado pelas pessoas pelo uso da razão,

pois seria a emancipação da consciência. O progresso se torna o fim e os meios da sociedade26

para atingir o estado superior, e mantém o caráter de libertação prescrito nas idéias de Santo

Agostinho.

Os objetivos sociais que derivam deste conceito de progresso podem ser compreendidos

sob a luz da discussão de Marcuse sobre Cultura, sendo esta definida por ele como: “[...] o

complexo de objetivos (ou valores) morais, intelectuais e estéticos, considerados por uma

sociedade como meta da organização, da divisão e da direção de seu trabalho – o ‘Bem’, que

deve ser alcançado mediante o modo de vida por ela instituído.”27 Pensando ainda no conceito de

progresso descrito acima, podemos considerar que os objetivos que a civilização ocidental

declara e a pretensão de realizá-los, definem a sua cultura, como um

[...] processo de humanização caracterizado pelo esforço coletivo para conservar

a vida humana, para pacificar a luta pela existência ou mantê-la dentro de limites

controláveis, para consolidar uma organização produtiva da sociedade, para

25 ADORNO, Theodor, W. Progresso. In: Palavras e sinais – modelos críticos 2. Tradução: Maria Helena Ruschel; supervisão de Álvaros Valls. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p.42. 26 Segundo a definição dada por Adorno e Horkheimer no texto Sociedade: “No seu sentido mais importante entendemos por ‘sociedade’ uma espécie de contextura formada entre todos os homens e na qual uns dependem dos outros, sem exceção; na qual o todo só pode subsistir em virtude da unidade das funções assumidas pelos co-participantes, a cada um dos quais se atribui, em princípio, uma tarefa funcional; e onde todos os indivíduos, por seu turno, estão condicionadas, em grande parte, pela sua participação no contexto geral.” ADORNO, T.W; HORKHEIMER, M. Sociedade. In: Temas básicos da sociologia. Tradução de Álvaro Cabral, São Paulo: Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973, p. 25-44. p. 25 27 MARCUSE, 1998, p. 153.

desenvolver as capacidades intelectuais dos homens e para diminuir e sublimar a

agressão, a violência e a miséria.28

Nesses objetivos estão excluídos, necessariamente, a crueldade, o fanatismo e a violência

não-sublimada; pois com a inclusão destes, a cultura não pode ser vista como processo de

humanização; mas que podem, no entanto, fazer parte de uma cultura como os meios para o

alcançar ou a aproximação dos objetivos culturais29.

O meio pelo qual a civilização ocidental pretendia atingir as metas culturais era o

progresso tecnológico, pois por meio dele, as pessoas estariam liberadas do trabalho árduo e

alienante, ficando assim livres para ocupar e organizar seu tempo com atividades segundo suas

próprias intenções. Estas eram as metas culturais ligadas ao progresso no início de seu

desenvolvimento, as metas cantadas pelos iluministas. Mas que, como descreve Adorno, sofreram

algumas mudanças no decorrer do percurso:

Enquanto a classe burguesa permaneceu oprimida, pelo menos no plano das

formas políticas, opôs-se com a palavra de ordem do progresso à situação

estacionária vigente; seu patos era eco desta. Somente depois de esta classe já ter

conquistado as posições de poder decisivas, o conceito de progresso degenerou

em ideologia, que logo foi imputado pela vácua profundidade ideológica, ao

século XVIII. O século XIX chegou aos limites da sociedade burguesa; esta não

podia realizar sua própria razão, seus ideais de liberdade, justiça e

espontaneidade, a não ser superando seu próprio ordenamento. Isso a obrigou a

computar, falsamente, a seu favor, como sendo conquista, o que foi deixado de

lado.30

28 MARCUSE, 1998, p. 154. 29 Ibid., p. 154. 30 ADORNO, 1995, p. 52.

Historicamente os pressupostos iluministas ainda não foram realizados, e a conseqüência

é uma tensão crescente entre as metas culturais e os meios pelos quais a sociedade pretende

atingi-las. “As metas são estabelecidas, presumivelmente, pela ‘cultura superior’ aprovada

(socialmente); são pois, valores, que devem ser incorporados, mais ou menos adequadamente, nas

instituições e nas relações sociais.”31 Por “cultura superior” 32, Marcuse entende “literatura, arte,

filosofia e religião [...]”33, e, para determinar aquela tensão, se pergunta como, afinal, estas se

relacionam com a práxis social.

A tensão, entre os fins do desenvolvimento da sociedade e os meios pelos quais esta

pretende atingi-los, dá início a uma discussão, que atualmente, segundo Marcuse, se expressa na

diferenciação entre Cultura e Civilização:

“Cultura” se relaciona a uma dimensão superior da autonomia e da realização

humana, enquanto “Civilização” indica o reino da necessidade, do trabalho e do

comportamento socialmente necessários, dentro do qual o homem não é

efetivamente ele mesmo, nem está em seu próprio elemento, mas sim submetido à

heteronomia, às condições e às necessidades exteriores.34

Marcuse afirma que dentro desta distinção, o progresso só pode se referir ao progredir da

Civilização, ao progresso técnico (desenvolvimento de habilidades e conhecimentos35). No

entanto, com relação a esta questão, Adorno e Horkheimer36, levantam que a diferenciação de

cultura e civilização deve ser analisada com cuidado, pois a demonização do conceito de 31 MARCUSE, 1998, p.155. 32 O conceito de “Cultura Superior” empregado por Marcuse será substituído no decorrer do trabalho simplesmente por “Cultura”, pensando nesta como o campo no qual se desenvolvem as produções culturais, desde as eruditas até as populares, pois a integração da cultura na civilização, como será visto adiante, não se refere apenas à cultura erudita, mas à toda a esfera de produções desvinculadas do reino do trabalho árduo e socialmente necessário. 33 MARCUSE, op. cit., p. 155. 34 Ibid., loc. cit. 35 BEJAMIN, Walter. apud ADORNO, 1995, p.39. 36 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M.. Cultura e civilização. In: Temas básicos da sociologia. Tradução de Álvaro Cabral, São Paulo: Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973, p. 93-104.

civilização pode levar a um pessimismo histórico, quando a cultura é elevada ao reino das

realizações espirituais sem as devidas observações sobre sua atual condição, pois:

[...] o uso moderno de civilização relacionou-se, por um lado, como o

extraordinário aumento da população, da Revolução Industrial em diante, e com a

concentração urbana resultante; e, por outro lado, com a desintegração da

ordenação tradicional da sociedade, em conseqüência do racionalismo. A velha

ordem institucional seria substituída por um estado de superorganização, somado

a uma caótica desarticulação. Temos, assim, uma quantidade enorme de homens

que levam uma existência superficial, sem alma, atomizados, sem a força de uma

coesão interna, cada um apegado às suas próprias prerrogativas e, ao mesmo

tempo, vagamente cônscio da força dos números [...]37

Cultura e civilização são elementos interdependentes, apesar de contraditórios no

processo de gradual socialização; uma não pode existir sem a outra, pois “[...] o desenvolvimento

interior o homem e a sua configuração do mundo externo dependem um do outro, sendo uma

ilusão querer criar um mundo de interioridade que não desse provas de sua existência atuando

sobre a realidade exterior.”38 Assim, a relação entre as metas da sociedade e os meios pelos quais

ela pretende realizá-las, é o que realmente importa para a discussão, pois:

Os aspectos caóticos e monstruosos da civilização técnica dos nossos dias não

promanam do próprio conceito de civilização nem de determinados aspectos

intrínsecos da técnica. Na sociedade moderna, a técnica já adquiriu uma estrutura

e uma posição específicas, cuja relação com as necessidades dos homens é

profundamente incongruente. Assim, o mal não deriva da racionalização do nosso

mundo mas da irracionalidade com que essa racionalidade atua. Os bens da

civilização que nos horrorizam são os instrumentos de destruição ou os bens

37 ADORNO; HORKHEIMER, 1973, p. 94. 38 Ibid., p. 96.

criados pela superprodução, que iludem os homens com sua engrenagem

publicitária, tanto mais inútil quanto mais engenhosamente refinada. [...] O

absurdo econômico em cuja teia a tecnologia se enredou, não já o progresso

técnico como tal, faz pesar a sua ameaça sobre o Espírito e agora, sobre a própria

sobrevivência física da humanidade.39

Assim, ao pensarmos nas metas propostas pela sociedade, percebemos que o

desenvolvimento do progresso, ao contrário do esperado pelos iluministas, se afastou dos

pressupostos da humanização. Desta situação resultou que a luta pela sobrevivência não foi

apaziguada, pois a marcha do progresso tecnológico, como descrito por Adorno e Horkheimer,

depende de sua manutenção e aumento progressivo. Nesse sentido, as metas propostas pela

“cultura” se colocavam, neste ponto, contra a marcha do progresso tecnológico, pois ainda

enunciavam a liberdade e a felicidade como os fins do progresso, o que significaria o progresso

da própria humanidade.

Pouco a pouco se inicia um desequilíbrio entre os meios e os fins determinados pela

sociedade, e as relações sociais passam a se desenvolver sob a égide da Civilização40. Esse

desequilíbrio se refere a um maior foco nos meios que promovem o progresso tecnológico em

detrimento das metas culturais; do que resulta, que aqueles pressupostos se converteram em

heteronomia e mistificação – o mito do próprio progresso, pois como afirma Adorno, a Burguesia

computou, falsamente, a seu favor, como sendo conquista, o que foi deixado de lado.

39 ADORNO; HORKHEIMER, 1973, p. 98-99. 40 “[...] o aumento da riqueza social [é], entre outras coisas, uma das causas primordiais da autonomia que as instituições e formas de socialização adotam para os homens, como um todo organizado, já não se identifica mais com os próprios homens e, pelo contrário passou a se afirmar e consolidar independentemente deles.” Ibid., p. 33.

A distância entre as metas culturais (cultura41) e o que passou a ser realizado de fato

(civilização) aumentou, mas ao mesmo tempo a tensão entre as duas é cada vez mais reprimida, a

cultura é “incorporada sistemática e organizadamente na vida cotidiana e no trabalho [...]”, o

resultado é uma nivelação entre as duas esferas; em relação a isso Marcuse se questiona sobre a

possibilidade, em nossa sociedade, de distinguir Cultura e Civilização, já que nesse processo

aconteceu uma absorção dos fins pelos meios.

Mas, se historicamente estamos abandonando os instrumentos que permitiriam a

libertação individual e social e privilegiando os elementos irracionais – a força, a

agressão, a competição, o consumo de bens desnecessários – isso significa que o

progresso convive com a regressão.42

E a regressão a qual Crochík se refere é justamente a manutenção da sociedade no estágio

que deveria ser o intermediário entre o desejo de uma sociedade livre, que tivesse a vida humana

como fim, e sua concretização. O progresso tecnológico não tem mais a vida humana como fim,

ele passou a ser o fim de todo o desenvolvimento.

Assim, o progresso tecnológico passou a ser a meta da sociedade, e a Razão exaltada pela

Revolução Burguesa, se transformou em “racionalidade tecnológica”, uma forma de organizar a

vida, que tem por objetivo o desenvolvimento tecnológico, como explica Marcuse:

No decorrer do processo tecnológico, uma nova racionalidade e novos padrões de

individualidade se disseminaram na sociedade, diferentes e até mesmo opostos

àqueles que iniciaram a marcha da tecnologia. Essas mudanças não são efeito

41 Com o fim de tornar o texto mais fluido, manteremos a distinção entre Cultura e Civilização, mas levando em consideração todas as advertências acima referidas, definindo Cultura como o reino onde se produziram as obras de arte, filosofia, literatura; e Civilização, o reino do trabalho socialmente necessário. 42 CROCHIK, José Leon. A ideologia da racionalidade tecnológica e a personalidade narcisista. Tese para o concurso de livre docência. São Paulo: ISUSP, 1999, p. 20.

(direto ou derivado) da maquinaria sobre seus usuários ou da produção em massa

sobre seus consumidores; são, antes, elas próprias, fatores determinantes no

desenvolvimento da maquinaria e da produção em massa.43

A nova racionalidade da qual Marcuse fala, é a “racionalidade tecnológica”; e ele afirma

que o que gerou o atual estado de coisas não foi o efeito da industrialização sobre as pessoas, mas

o contrário, que as pessoas, a partir do desenvolvimento desta nova racionalidade, desenvolveram

a maquinaria e toda a situação social que se instaurou em decorrência dessa nova forma de

organizar e compreender o mundo. “Um mundo como o de hoje, no qual a técnica ocupa uma

posição-chave, produz pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica.”44 Isso significa que esta

racionalidade, que toma como modelo a máquina, moldou a percepção que as pessoas tem da

realidade e preparou o caminho para o desenvolvimento tecnológico ilimitado com o qual ainda

convivemos. As pessoas afinadas com a técnica, impregnadas pela “racionalidade tecnológica”,

organizam suas vidas seguindo o modelo de organização social, e é assim que se dá sua

identificação com a sociedade, acontece uma integração do particular no universal, o que aparece

é a unidade do todo, o poder do todo de marcar o individual de forma tão potente que as

diferenças são minimizadas, se institui uma homogeneidade: a ordem é mantida.

Para compreender este processo, é interessante retomar a discussão de Marcuse sobre a

cultura, sua incorporação na vida cotidiana e no trabalho, no sentido de esclarecer como a cultura,

na sociedade atual, se transforma, nas palavras de Marcuse, em um veículo de adaptação.

Em meio à homogeneidade que se instaurou na civilização ocidental, a cultura aparece

como a diferença, pois ideologicamente mantém-se como “processo de humanização” tal como

descrito acima. Mas apenas como mera ideologia (falsa consciência), pois como afirmou

43 MARCUSE, 1999, p. 74. 44 ADORNO, Theodor W. Tabus que pairam sobre a profissão de ensinar. In: Palavras e sinais – modelos críticos 2. Tradução: Maria Helena Ruschel; supervisão de Álvaro Valls. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p.118.

Marcuse, foi incorporada organizada e sistematicamente na vida cotidiana e no trabalho, e nessa

incorporação aliviou-se a tensão entre Cultura e Civilização. Em outras palavras, a diferença foi

assimilada, é produzida pela indústria cultural, e funciona agora, para reafirmar o existente – a

vida cotidiana e o trabalho. Essa diferença que se desenvolve dentro da esfera da Civilização, está

integrada na homogeneidade dominante, e portanto, não é uma diferença real, é aparência de

diferença.

A aparência de diferença acontece nos bens culturais, pelo efeito particular dentro da

obra, a monotonia da homogeneidade é quebrada momentaneamente e isso se coloca como a

diferença, mas esse efeito nada mais é que parte do esquema de organização formal da obra, que

existe com este fim mesmo de proporcionar a ilusão da diferença, e se manter como uma

manifestação cultural. Este processo foi chamado por Adorno de estandardização. Dentro da

sociedade, a cultura quebra a monotonia generalizada, mas como o efeito particular que é parte

do esquema formal de produção das obras da indústria cultural, a Cultura é parte da organização

formal da Sociedade, tendo ambos a finalidade de proporcionar a ilusão de diferença, que é

importante para afirmar a diferença dentro da realidade estabelecida, e, como vamos ver mais

adiante, manter as pessoas confinadas nesta, acreditando que, pela cultura que conhecem, se

livram da pressão do trabalho.

A forma pela qual a Cultura é incorporada na Civilização é, por um lado, a divulgação das

obras da “cultura” ao grande público, juntamente com a tradução dos conceitos destas obras; e,

por outro, pela criação de uma indústria cultural, que produz bens culturais de acordo com as leis

do mercado. No processo de tradução dos conceitos das obras da “cultura”, pode-se dizer que

acontece a eliminação ou redução destes conteúdos, pois modificados, já não são compreendidos

pelo que originariamente significavam, isso “[...] bloqueia um espaço vital importante ao

desenvolvimento da autonomia e da oposição e destrói um refúgio e uma barreira contra o

totalitarismo.”45 Aqui, Marcuse se refere ao fato de que a “cultura” se colocava como um espaço

apartado do mundo do trabalho, concretizando a tensão entre Cultura e Civilização. Com esta

distância, a “cultura” não era afetada pela lógica operacional da Civilização, e mantinha a

possibilidade de pensar sobre ela e, de certa forma controlar a marcha do progresso tecnológico

por meio da proposição das metas sociais. Mas a incorporação da Cultura na Civilização destrói

este espaço pela sua invasão, as produções da “cultura” são apropriadas e utilizadas como mais

uma forma de garantir e manter o status quo.

No entanto, Marcuse lembra que a “cultura” – as artes, a literatura e a filosofia –, sempre

foi privilégio de uma minoria “[...] uma questão de riqueza, de tempo e de feliz coincidência.”46,

para a maioria, seus conteúdos sempre foram palavras irrealizadas, incompreensíveis e distantes;

e era justamente por ser um círculo fechado e reduzido, que esta “cultura” tinha a possibilidade

de se manter alheia ao sofrimento existente e, prescrever uma moral em contradição com a moral

socialmente útil, além de alcançar e transmitir verdades “[...] que eram negadas e reprimidas na

realidade estabelecida ou transpostas nos conceitos e nos cânones socialmente úteis.”47 Por outro

lado, essa transposição acontece quando as obras de arte literatura e filosofia são popularizadas,

trazidas a público. Aquela maioria que não tinha acesso a estas obras, passa a recebê-las, mas, no

entanto, não lhes foram concedidos os meios necessários à sua compreensão; o que significa que

seus conteúdos continuariam incompreensíveis, não fosse a tradução destes conteúdos para a

realidade existente, realizada quando de sua assimilação, proporcionando a compreensão

deturpada destas obras pela população desavisada.

45 MARCUSE, 1998, p. 158. 46 Ibid., p. 159. 47 Ibid., p. 159.

Os elementos oposicionais da cultura são assim enfraquecidos: a civilização

assume, organiza, compra e vende cultura; idéias que em sua essência são não-

operacionais, não orientadas ao comportamento, são traduzidas em operacionais e

referidas ao comportamento; e essa tradução não é uma simples metodologia, mas

sim um processo social e até político.48

Cultura se transforma em mercadoria e tem seus conteúdos operacionalizados de forma

que sejam direcionados ao comportamento individual, assim são facilmente ajustados ao

existente. A conseqüência é a afirmação do existente, ou seja, sua naturalização, que significa a

afirmação da impossibilidade de transformação social, pois mostra que não existe outra forma

possível. “Resultado: os conteúdos culturais tornaram-se pedagógicos e edificantes, algo

relaxante – um veículo de adaptação.”49 A cultura se torna mais uma forma de validar o existente

porque ideologicamente fala em ideais de liberdade e felicidade, mas esses ideais são mostrados

como já realizados na sociedade; em decorrência disso, sua realização pessoal depende

unicamente dos comportamentos individuais.

Os conteúdos imanentes às obras de arte, filosofia e literatura, são antagônicos à

Civilização, ou seja, mantém uma tensão com ela, porque não foram realizados na sociedade em

decorrência da crescente violência do existente; as metas prescritas pela “cultura” se distanciaram

progressivamente da realidade estabelecida. Conservaram seu caráter intraduzível porque não

tinham correspondência com o real. Enquanto pensados em uma esfera que não se fundia com o

mundo do trabalho, os conceitos se mantinham em sua integridade, mas quando a cultura é

incorporada, seus conteúdos são traduzidos em termos operacionais e ajustados ao existente, os

nomes dos conceitos são mantidos, mas os conteúdos são adaptados à realidade, o que significa

48 MARCUSE, 1998, p. 160. 49 Ibid., loc. cit.

que são compreendidos como existentes e referentes aos comportamentos individuais, e não às

metas sociais.

Pensando na questão da maior acessibilidade das obras da “cultura” e suas conseqüências,

Adorno coloca que:

[...] as obras de arte são apresentadas como slogans políticos e, como eles,

inculcadas a um público relutante a preços reduzidos. Elas tornaram-se tão

acessíveis quanto os parques públicos. Mas isso não significa que, ao perderem o

caráter de uma autêntica mercadoria, estariam preservadas na vida de uma

sociedade livre, mas, ao contrário, que agora caiu também a última proteção

contra sua degradação em bens culturais. A eliminação do privilégio da cultura

pela venda em liquidação dos bens culturais não introduz as massas nas áreas de

que eram antes excluídas, mas serve, ao contrário, nas condições sociais

existentes, justamente para a decadência da cultura e para o progresso da

incoerência bárbara.50

As obras de arte, literatura e filosofia são transformadas em bens culturais; em relação a

isso, Adorno afirma, em concordância com Marcuse, que o simples contato com as obras de arte

não propicia a compreensão destas obras, os conteúdos continuam inacessíveis. É importante

ressaltar que quando Adorno fala das “condições sociais existentes”, se refere justamente ao fato

de que a maior acessibilidade não é negativa, pelo contrário, é positiva, mas nas condições nas

quais ocorreu, os meios para a compreensão das obras não foram proporcionados junto com a

maior acessibilidade; e que, ao mesmo tempo, a tradução dos conteúdos destas obras ao existente,

produz nas massas a ilusão de que agora compreendem as obras de arte literatura e filosofia, pois

reafirmam a situação na qual estão – pela suposta realização das metas culturais na realidade

estabelecida. É nesse sentido que Adorno afirma que isso ocasiona a decadência da cultura. Obras

50 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 150.

que estavam protegidas do processo de produção e, portanto, não eram usadas para reafirmar a

ideologia da racionalidade tecnológica, ao serem trazidas para perto das pessoas, se degradaram

em bens culturais, veículos de manutenção da ordem, “[...] tornam-se afirmativos, isto é, servem

para consolidar a violência do existente sobre o espírito (Geist) – aquele existente que tornou

acessível os bens culturais aos homens [...]”51; assim, os elementos da cultura servem para

reforçar o grau do que é, em detrimento do que pode ou deve ser, mantendo oculto seu poder de

projetar, criticar e denunciar a violência do existente. Mas Marcuse aponta que:

[...] o amplo acesso à cultura tradicional e particularmente a suas obras autênticas

é melhor do que a conservação de privilégios culturais para um círculo reduzido

desde a base pela riqueza e pelo nascimento. Porém, para se conservar o conteúdo

de conhecimento destas obras, precisa-se de capacidades espirituais e de uma

consciência intelectual que não estejam adaptadas ao modo de atuar e de pensar

desejado pela civilização dominante nos países industriais avançados.52

A real popularização da “cultura tradicional”, como define o autor, que significa

disponibilizar os meios para sua compreensão juntamente com o acesso às obras, pode ser visto

como uma das metas da “cultura” para a sociedade no seu processo de humanização, mas não foi

isto que aconteceu. A população, que antes não tinha acesso às obras de arte, literatura e filosofia,

passou a ter a possibilidade de entrar em contato com estas obras, mas para poder entendê-las, e

assim realizar aquela meta, precisariam desenvolver “capacidade espirituais” e intelectuais que

não acompanharam esta popularização; nesses termos, a popularização destas obras seria

realmente positiva se junto com o contato viesse a educação necessária para ler estas obras. O que

aconteceu, ao contrário, foi que as obras de arte literatura e filosofia foram incorporadas à vida

51 MARCUSE, 1998, p.157. 52 Ibid., p.157.

cotidiana, deslocadas do ambiente no qual adquiriam sentido, e divulgadas com a legenda de que

os ideais dos quais falam são os que a civilização oferece. Seus conceitos intraduzíveis foram

transmutados em palavras sem sentido, ou pior, em conceitos operacionais, voltados para o

comportamento socialmente necessário para a manutenção do status quo. Mas ainda assim, o

acesso é melhor que a manutenção dos privilégios culturais, pois pelo menos uma das barreiras

que impedia a compreensão das obras da “cultura” foi derrubada.

A tradução realizada pela industria cultural pode ser entendida quando pensamos na

relação entre forma e conteúdo nas obras de arte. Segundo Pareyson, “Há arte quando o exprimir

apresenta-se como um fazer e o fazer é, ao mesmo tempo, um exprimir, quando a formação de

um conteúdo tem lugar como formação de uma matéria e a formação de uma matéria tem o

sentido da formação de um conteúdo.”53 Isso significa que conteúdo e forma são idênticos e

indissociáveis, uma coincidência entre o modo de formar do artista e sua humanidade, o conteúdo

da obra por ele realizada; assim, quando um dos dois sofre um transformação, ou modificação, a

obra já não é ela mesma, é outra coisa. A industria cultural opera aqui em dois aspectos, ao

divulgar as obras da cultura, interfere em sua forma – ao adaptar a obras à matéria e forma dos

meios de comunicação pra transmiti-las –, e ao resignificar conteúdos, interfere na sua

compreensão. Em outras palavras, a tradução feita pela indústria cultural muda a natureza das

obras, e o que ela divulga, são sempre suas próprias produções.

A recepção condicionada da população se mostra como o meio pelo qual as obras de arte

assimiladas pela indústria cultural, com seus conteúdos antagônicos ocultados pela sua tradução,

são percebidas como meros produtos indiferenciados no meio das produções da própria indústria

cultural. Quanto a isso, Adorno afirma: “Por enquanto, a técnica da indústria cultural levou

apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia diferença entre a lógica da 53 PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 62.

obra e a do sistema social.”54 A lógica das obras era diferente da lógica do sistema social porque

não estava submetida à racionalidade tecnológica; a razão que organizava os conteúdos dentro da

obra, sua forma, estava condicionada à lógica da própria obra e portanto mostrava uma forma

diferente de organização no mundo fictício – o mundo apresentado nas obras de arte é sempre um

mundo fictício – que se colocava em paralelo ao mundo real. E era por meio deste paralelismo

que estas obras tencionavam os impulsos destrutivos da realidade estabelecida, já que a “cultura”

era responsável pela determinação das metas da sociedade, ou seja, determinava para que servia o

trabalho e em função de que se desenvolvia o progresso.

Em relação à assimilação das obras de arte pela indústria cultural, Marcuse acrescenta:

A cultura superior ainda existe. É mais acessível do que nunca. É lida, vista e

ouvida por mais pessoas do que jamais o fora; porém a sociedade bloqueou há

muito tempo os domínios espirituais dentro dos quais essa cultura poderia ser

entendida em seu conteúdo cognitivo e em sua verdade determinada.55

Bloqueou, na verdade, a possibilidade de desenvolvimento desses domínios espirituais;

mas como as produções da arte, literatura e filosofia se tornaram acessíveis, o que é lido pela

maioria das pessoas, é a mensagem traduzida e não o conteúdo real das obras. Este conjunto de

obras é mais acessível do que nunca, e, portanto, seus conteúdos antagônicos à realidade

estabelecida também, mas os indivíduos, que agora tem acesso às obras, já não podem

decodificá-las em decorrência de sua identificação com a sociedade, não podem perceber o

antagonismo.

54 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.114. 55 MARCUSE, 1998, p. 159-160.

A “cultura” tinha a possibilidade de pensar o processo de humanização porque não estava

submetida ao processo de produção, o seu trabalho não era coordenado pelas mesmas leis que

coordenavam o trabalho árduo e socialmente necessário, a cultura estava protegida da violência

do existente, e assim podia se desenvolver em contraposição ao sistema social. Mas hoje, com

todo o processo de neutralização da cultura, as diferenças que existiam entre cultura e civilização

foram niveladas, a oposição que existia se transformou em equivalência, pois as esferas da

cultura assumiram as características das esferas da civilização, se transformando em indústria

cultural, e a forma como a “arte” circula está inevitavelmente marcada por essa violência.

Os conceitos tradicionais e as palavras tradicionais usadas para designar uma

sociedade melhor, ou seja, uma sociedade livre (e a arte tem algo a ver com a

liberdade), parecem despojados de significado hoje em dia. São inadequados em

comunicar o que homens e coisas possam ser e devem ser. Estes conceitos

tradicionais se referem a uma linguagem que ainda é a de uma época pré-

tecnológica e pré-totalitária em relação àquela em que vivemos.56

Assim Marcuse fala dessa linguagem de certa forma defasada da arte e da “cultura”

tradicionais, conceitos, que agora traduzidos em outros significados, necessitam de uma

contextualização histórica para serem compreendidos em sua verdade original. “O mundo passa a

ser dividido em preto e branco por categorias que giram em falso, e desta forma é preparado para

a dominação, contra a qual os conceitos haviam sido outrora concebidos.”57

56 MARCUSE, Herbert. Arte na sociedade unidimensional. In: LIMA, Luiz Costa Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 244. 57 ADORNO, Theodor W. Prisma: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Editora Ática, 2001, p.24-25.

2.2 Outros Veículos de Adaptação

Para entendermos como a Civilização Ocidental consegue se perpetuar, com toda a

violência e sofrimento existentes, é interessante pensar nos mecanismos de controle utilizados

para adaptar os indivíduos à sociedade. Então, para que a sociedade mantenha seu

desenvolvimento da forma como vem acontecendo, é importante que os indivíduos que compõe

esta sociedade estejam integrados e adaptados aos meios pelos quais o progresso tecnológico se

desenvolve, é necessário que eles perpetuem os valores desta sociedade, acreditem na civilização

a ponto de se sacrificarem na luta pela sobrevivência. Para que isso aconteça, além de usar a

cultura como veículo de adaptação, existem ainda outros meios.

Em primeiro lugar podemos retomar a tradução dos conteúdos das obras de arte, literatura

e filosofia em conceitos que supostamente se realizam na sociedade, o enraizamento destes

conceitos traduzidos e deturpados, produz o que Marcuse chama de “falsa consciência”. Os

múltiplos processos de introjeção destas falsas verdades parecem ossificados em reações quase

mecânicas, ou seja, os indivíduos respondem com base em verdades impostas, por meio do

pensamento operacional e orientado para o comportamento, nos quais se transformaram os

conceitos da “cultura”. O resultado não é o ajustamento, mas a mimese: uma identificação

imediata do indivíduo com sua sociedade, e através disso com a sociedade como um todo.58 Os

indivíduos que mimetizam a sociedade acreditam em suas leis e fatos, a tal ponto que esta se

tornou a sua realidade; identificam-se com a existência que lhes é imposta e, portanto não estão

alienados de sua vida, no sentido tradicional do termo, “O sujeito que é alienado é engolfado por

58 MARCUSE, 1969, p. 31.

sua existência alienada.”59 O indivíduo sustenta e defende a sociedade e sua situação, acredita na

sua liberdade.60

“Simultaneamente, a aparência de liberdade torna a reflexão sobre a própria não-liberdade

incomparavelmente mais difícil do que antes, quando esta estava em contradição como uma não-

liberdade manifesta, o que acaba reforçando a dependência.”61 A aparência de liberdade, além de

produzir uma falsa idéia sobre todo o sistema social, conserva apenas a sua forma negativa, a

irresponsabilidade, que é uma encenação da liberdade. Esta encenação acontece também pelas

possibilidades de escolha dadas ao indivíduo, mas que se dão dentro de um número limitado de

possibilidades orientadas para o comportamento. A imposição de modelos de comportamento que

se formam a partir das orientações construídas com a operacionalização dos ideais culturais,

mostra como cada um deve ser. Os estereótipos são as categorias dentro das quais os indivíduos

se encaixam, e junto com eles, existe um conjunto de produtos e bens culturais a serem

consumidos, que são oferecidos de acordo com sua classe social ou grupo, e que reafirmam o seu

lugar na sociedade. “Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade

com o seu level, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher as categorias dos

produtos de massa fabricada para o seu tipo.”62 Isso significa que existe uma variedade de tipos

de produtos que condizem com estes vários levels, esta variedade foi bem caracterizada por

Adorno:

As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou

entre as histórias publicadas em revistas de diferentes preços, têm menos a ver

com seu conteúdo do que com sua utilidade para classificação, organização e

59 MARCUSE, 1969, p.31. 60 Ibid. 61 ADORNO, 2001, p. 10. 62 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 116.

computação estatística dos consumidores. Para todos algo está previsto; para que

ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas.63

O fenômeno da Indústria Cultural – como é chamado por Adorno, e que consiste na

assimilação das obras da cultura pela civilização, simultaneamente à instituição de uma indústria

que gerencia seu acesso e a produção de bens culturais em série, aos quais voltaremos mais tarde

– impõe-se de forma tão incisiva, com seus produtos e promessas de felicidade, que a aparente

necessidade se mostra como uma imposição autoritária de consumo, gerada pelo sistema como

um todo. O indivíduo está cercado, oprimido por vontades que deve ter, e principalmente

oprimido pela compulsão e pressão de realizá-las. Para estar incluído socialmente no seu level, ou

camada social, o indivíduo deve possuir uma porção de sinais, que materializados em

mercadorias e comportamentos, geram a identificação entre os vários integrantes. Marcuse chama

estas necessidades de “falsas” necessidades: “‘Falsas’ são aquelas superimpostas ao indivíduo por

interesses sociais particulares ao reprimi-lo: as necessidades que perpetuam a labuta, a

agressividade, a miséria e a injustiça.”64 O jogo entre as necessidades superimpostas e a

satisfação destas necessidades, contribui para a manutenção do sofrimento coletivo, pois cada um

perpetua nos seus comportamentos, o todo. A satisfação destas necessidades só gera:

[...] euforia na infelicidade. A maioria das necessidades comuns de descansar,

distrair-se, comportar-se e consumir de acordo com os anúncios, amar e odiar o

que os outros amam e odeiam, pertence a essa categoria de falsas necessidades.

Tais necessidades têm um conteúdo e uma função sociais determinados por forças

externas sobre as quais o indivíduo não tem controle algum; o desenvolvimento e

a satisfação dessas necessidades são heterônomos.65

63 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 116. 64 MARCUSE, 1969, p. 26. 65 Ibid., p. 26.

Por mais que o indivíduo tenha internalizado estas necessidades como suas, elas

continuam sendo o que sempre foram: mecanismos de controle e repressão. O controle pelas

necessidades individuais, acaba por se mostrar como a forma mais eficiente de controle, pois é

um controle que se efetiva “espontaneamente” pelo próprio indivíduo, já que não é explícito. “A

necessidade que talvez pudesse escapar ao controle central já é recalcada pelo controle da

consciência individual.”66 E como as necessidades desenvolvidas pelo indivíduo são definidas

por forças externas, as mesmas que disponibilizam os meios para satisfazê-las, o aparato67 se

coloca como o provedor, que “cuida” do bem-estar da população; ao passo que a culpa pela não

satisfação das necessidades é jogada sobre o indivíduo. Em outras palavras, a felicidade e a

liberdade já são realizadas na sociedade, mas a sua realização pessoal depende dos

comportamentos do indivíduo, se ele estiver em sintonia com a sociedade, a realização se torna

mais fácil, mas não “dada” pela sociedade.

Pois a cultura democrática dominante promove a heteronomia sob a máscara da

autonomia, impede o desenvolvimento das necessidades e limita o pensamento e

a experiência sob o pretexto de ampliá-los e distendê-los por toda parte. A

maioria dos homens usufrui de um considerável espaço para compra e venda, para

a busca de um trabalho e em sua escolha; podem expressar sua opinião e mover-

se livremente – mas suas opiniões jamais transcendem o sistema social

estabelecido, que determina suas necessidades, sua escolha e suas opiniões. A

liberdade mesma opera como veículo de adaptação e limitação.68

66 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.114. 67 “[...] o termo ‘aparato’ designa as instituições, dispositivos e organizações da indústria em sua situação social dominante.” Nota de rodapé, MARCUSE, 1999, p.77. 68 Id., 1998. p. 164.

A crença na realização da liberdade na sociedade, mantém a promessa de liberdade, mas a

liberdade possível, não é libertadora, pois somente possibilita um movimento dentro dos limites

do aparato, e se estas “falsas” necessidades, como fala Marcuse, são internalizadas pelas pessoas,

elas não têm consciência da sua falta de liberdade, em outras palavras: “[...] como podem as

pessoas que tenham sido objeto de dominação eficaz e produtiva criar elas próprias as condições

de liberdade?”69; se acreditam no existente como a única possibilidade, como podem elas

transcender o existente e projetar um futuro diferente?

O próprio mecanismo que ata o indivíduo à sua sociedade mudou, e o controle

social está ancorado nas novas necessidades que ela produziu. As formas

prevalecentes de controle social são tecnológicas num novo sentido. Na verdade,

a estrutura e eficiência técnicas do aparato produtivo e destrutivo foram um meio

importante de sujeitar a população à divisão social do trabalho estabelecida,

durante todo o período moderno. Mais ainda, tal integração sempre foi

acompanhada de formas de compulsão mais óbvias: perda dos meios de sustento,

a distribuição da justiça, a polícia, as forças armadas. Mas, no período

contemporâneo, os controles tecnológicos parece serem a própria personificação

da Razão para o bem de todos os grupos e interesses sociais – a tal ponto que toda

contradição parece irracional e toda ação contrária parece impossível.70

Retomando o período moderno, Marcuse levanta as maravilhas do progresso tecnológico

como o primeiro mecanismo de sujeição dos indivíduos à divisão social do trabalho, à

manutenção e ampliação da luta pela existência. A racionalidade tecnológica, que organiza a vida

atualmente na civilização ocidental, é incorporada pelo indivíduo, que nessa identificação,

desloca sua razão para o aparato e deixa-se guiar em conformidade com o todo. O aparato social

se coloca ao indivíduo de forma tão potente e totalitária, que ele se sente paralisado e compelido

69 MARCUSE, 1969. p. 27. 70 Ibid., p. 30.

a se adaptar, sob pena de não alcançar a liberdade prometida. Estes controles, que como observa

Marcuse, foram se estabelecendo aos poucos, passaram a administrar a vida das pessoas por meio

de suas necessidades: “É um aparato racional, combinando a máxima eficiência com a máxima

conveniência, economizando tempo e energia, eliminando o desperdício, adaptando todos os

meios a um fim, antecipando as conseqüências, sustentando a calculabilidade e a segurança.”71

Disso deriva que qualquer tentativa de resistência ou protesto se coloque como irracional,

insensata, excêntrica e desnecessária, aniquilando o espaço para liberdade de ação e a autonomia,

o aparato cercou o indivíduo por todos os lados, sob o pretexto de facilitar sua vida, com conforto

e segurança. Para ilustrar esta questão, o trecho a seguir que aparece no texto Algumas

implicações sociais da tecnologia moderna, de Marcuse, se mostra muito interessante:

Um homem que viaje de carro a um lugar distante escolhe sua rota num guia de

estradas. Cidades, lagos e montanhas aparecem como obstáculos a serem

ultrapassados. O campo é delineado e organizado pela estrada: o que se encontra

no percurso é um subproduto ou anexo da estrada. Vários sinais e placas dizem ao

viajante o que fazer e pensar; até chamam a atenção para as belezas naturais ou

marcos históricos. Outros pensaram pelo viajante e talvez para melhor. Espaços

convenientes para estacionar foram construídos onde as mais amplas e mais

surpreendentes vistas se desenrolam. Painéis gigantes lhe dizem onde parar e

encontrar a pausa revigorante. E tudo isto na realidade é para seu benefício,

segurança e conforto; ele recebe o que quer. O comércio, a técnica, as

necessidades humanas e a natureza se unem em um mecanismo racional e

conveniente. Aquele que seguir as instruções será mais bem-sucedido,

subordinando sua espontaneidade à sabedoria anônima que ordenou tudo para

ele.72

71 MARCUSE, 1999, p. 80. 72 Ibid., p. 80.

A racionalidade do aparato, seu direcionamento para o conforto do indivíduo não a

naturalizam somente nos pontos onde realmente traz proveitos para os seres humanos, mas

naturalizam-na em seu todo, principalmente nos setores onde ela perpetua o sofrimento, a

violência, a luta pela existência. A ideologia segundo a qual o aparato se desenvolve para

melhorar as condições de sobrevivência mascara a realidade oposta que se estabelece.

Todas as necessidades do indivíduo são satisfeitas pelo aparato, e o indivíduo escolhe

suas necessidade a partir das opções disponíveis dentro deste aparato, assim, ele o alimenta com

seus desejos, pensamentos, sentimentos, vontades, que, em contrapartida, provém para ele os

meios de satisfazê-los, este é o círculo vicioso das necessidades retroativas.

2.3 Diversão

Na indústria cultural, cultura se resume à diversão. Este é o ponto alto da utilização da

cultura como veículo de adaptação, na diversão não sobra nada da esfera da “cultura”, como

espaço para a reflexão crítica da sociedade. A diversão é chamada por Adorno de “arte leve”, que

aparece como uma sombra do que ele chama de “arte séria”.

“A diversão favorece a resignação, que nela quer se esquecer.”73, pois é apresentada para

as pessoas como o refúgio do cotidiano massificante e alienante, e incentivada como sua

recompensa, mas na verdade o que faz, é:

73 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 133.

[...] ocupar os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a chegada

ao relógio ponto, na manhã seguinte, com o selo da tarefa de que devem se ocupar

durante o dia, essa subsunção realiza ironicamente o conceito da cultura unitária

que os filósofos da personalidade opunham à massificação.74

Ou seja, a idéia de que o trabalho não se diferenciasse do lazer, no sentido de que ambos

convergissem para a realização humana, mas ao contrário, o que é descrito por Adorno é que o

trabalho não se diferencia do lazer, pois os dois têm a função de manter o indivíduo preso ao

processo alienante de trabalho, e junto com ele, à racionalidade tecnológica que administra a vida

como um todo.

A cultura deveria aliviar a alienação do trabalho, deveria ser um espaço reservado à

reflexão crítica da condição a qual trabalho submete as pessoas, um espaço reservado à

humanização, como descrita no primeiro item deste capítulo. Mas a diversão é construída de tal

forma que esse refúgio se transforme em um mecanismo de manutenção da capacidade produtiva

do trabalhador, para que na alienação da diversão ele continue submerso na alienação da

produção em série, pela seqüência automatizada de operações padronizadas. “A diversão é o

prolongamento do trabalho sob capitalismo tardio.”75 Isso se dá pela reprodução exata e

indefectível da realidade nos produtos culturais, como uma continuação do cotidiano, com o

intuito de reafirmar a condição do espectador, por uma formação contínua.

Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao

pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem

perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no

entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o

filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a

74 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 123. 75 Ibid., p. 128.

realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do

consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. [...]

Inevitavelmente, cada manifestação da indústria cultural reproduz as pessoas tais

como as modelou a indústria como um todo.76

A identificação do espectador com a realidade através dos produtos da indústria cultural é

uma conseqüência da incorporação da cultura na vida cotidiana e no trabalho. Como ainda se

guarda a idéia de que a cultura se desenvolve no reino da liberdade e, portanto se constitui pela

diferença ao existente, o espectador se entrega a ela sem prevenções, com o desejo de sair da

esfera do trabalho e entrar nesta outra esfera da liberdade; mas os bens culturais manifestos pela

industria cultural, já perderam há muito tempo a ligação com os valores espirituais da

humanidade. Os bens culturais, atrelados à civilização, reafirmam o existente como ideal, e a

cultura passa a ser a reafirmação do reino do trabalho.

A similaridade com a realidade elimina a necessidade de esforço, o espectador se deixa

levar pela diversão sem ter que abstrair os mecanismos de produção aos quais foi submetido

durante o período de trabalho. Nesse processo se confronta a onipotência da indústria com a

impotência do indivíduo. Os produtos da indústria cultural são construídos de modo a exigir do

espectador o mesmo tipo de raciocínio que o processo de trabalho. A atenção, eficiência, rapidez

de raciocínio, a capacidade de resolver imprevistos, atenção para mudanças bruscas dentro do

mesmo padrão, concentração em atividades específicas, responder dentro de categorias pré-

determinadas, acertar as respostas “certas”, introjetar estruturas impostas, agir dentro de

possibilidades limitadas, e dentro de um número finito de regras, reconhecer determinados

símbolos... A diversão deve ser um prazer, e um prazer, dentro da indústria cultural, não pode

exigir esforço; sair do mecanismo de trabalho, pensar sobre a lógica repressora do sistema,

76 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 119.

descobrir outras lógicas possíveis, ativar outras habilidades, outros tipos de raciocínio seriam um

esforço que acabaria com o prazer, assim como ele é compreendido e disseminado.

Assim como mal podemos dar um passo fora do período de trabalho sem tropeçar

em uma manifestação da indústria cultural, os seus veículos se articulam de tal

forma que não há espaço entre elas para que qualquer reflexão possa tomar ar e

perceber que o seu mundo não é o mundo.77

Em outras palavras, o espectador não tem tempo nem possibilidades para perceber, (nas

condições sociais existentes), que a realidade mostrada pela industria cultural é a reafirmação do

existente, e que por isso mesmo, não é a única possibilidade. Os produtos da indústria cultural

requisitam do espectador as mesmas habilidades que o trabalho, treinam e desenvolvem estas

habilidades para que ele esteja pronto para encarar um outro dia, sem ter tido a possibilidades de

sair da lógica, ou perceber que existem outras lógicas. “É somente no conjunto de todos os

procedimentos mutuamente afinados e contudo divergentes quanto à técnica e ao efeito que se

forma o clima da indústria cultural.”78

2.4 A Reprodutibilidade Técnica e a Mudança de Percepção

Para entrarmos na discussão sobre as imagens técnicas propriamente ditas, podemos

retomar uma consideração de Marcuse, citada no início do capítulo, na qual ele afirma que as

77 ADORNO, Theodor W. Tv consciência e indústria cultural. In: COHN, G. (Org). Comunicação e indústria cultural. São Paulo: T.A.Queiroz, 1987, p. 346-7. 78 Ibid., p. 347.

mudanças descritas até aqui, não foram o efeito da industrialização e dos produtos de massa sobre

as pessoas, mas ao contrário, que as pessoas, a partir do desenvolvimento da racionalidade

tecnológica, desenvolveram a maquinaria e toda a situação social que se instaurou em

decorrência dessa nova forma de organizar e compreender o mundo. É assim que podemos pensar

sobre a mudança de percepção da realidade que sofreu a humanidade, no sentido de que não foi a

invenção da fotografia ou do cinema que provocaram a mudança de percepção, mas que em

decorrência desta nova percepção, que surge com a racionalidade tecnológica, foi possível o

desenvolvimento da fotografia, do cinema e de todas as outras técnicas de reprodutibilidade da

imagem.

A percepção da realidade se dá por uma construção simbólica do sensível, e nesse sentido

a percepção visual tem uma função muito importante, pois como afirma Aumont: “[...] a imagem

tem por função primeira garantir, reforçar, reafirmar e explicitar nossa relação com o mundo

visual: ela desempenha o papel de descoberta do visual.”79 O que significa que ao vermos uma

representação visual, reconhecemos nela o mundo sensível, mas ao mesmo tempo, a experiência

com as imagens influi na forma como vemos a realidade. Para esclarecer o que entendemos por

imagem no contexto deste trabalho, emprestaremos de Jacques Aumont, a definição que

apresenta na introdução de seu livro A Imagem:

A imagem tem inúmeras atualizações potenciais, algumas se dirigem aos

sentidos, outras unicamente ao intelecto, como quando se fala do poder que certas

palavras têm de “produzir imagem”, por uso metafórico por exemplo. Convém

portanto dizer em primeiro lugar que, sem ignorar essa multiplicidade de sentidos,

79 AUMONT, Jacques. A imagem. Tradução: Estela dos Santos Abreu e Cláudio C. Santoro. Campinas, SP: Papirus, 1993 – (Coleção Ofício de Arte e Forma), p. 81.

aqui só será considerada uma variedade de imagens, as que possuem forma

visível, as imagens visuais.80

E para completar o recorte feito por Aumont e adequá-lo a este trabalho, trataremos das

imagens visuais e sua relação com o sujeito, como uma das formas de compreendermos por que

se nomeia nossa sociedade de Sociedade das Imagens. Esta escolha se justifica pelo fato de que

no contexto atual as imagens visuais assumem uma função preponderante no que se refere à

comunicação e à linguagem.

Para compreender quais imagens visuais são estas, qual a sua origem, e em qual ponto se

ligam à racionalidade tecnológica, iniciaremos com algumas considerações sobre a fotografia, por

ser esta a primeira tecnologia mecânica da imagem. Com a história da fotografia podemos

entender como a reprodutibilidade técnica, que está diretamente ligada à racionalidade

tecnológica, se incrustou nas produções visuais. Este processo deriva da nova percepção da

realidade que se instaura na sociedade industrializada, e faz com que cada vez mais a obra de arte

reproduzida seja uma obra de arte feita para a reprodução, ou seja, que leva em conta esta questão

como parte integrante da obra, o que extrapola os limites da arte e inunda toda a produção de

imagens contemporâneas, gerando o que hoje conhecemos como Sociedade das Imagens.

No início do século XIX, em meio ao desenvolvimento tecnológico que atingiu pouco a

pouco todas as esferas sociais, foi inventada a fotografia; invenção que afetou de forma decisiva

o campo das artes visuais. Até então, a produção de imagens visuais somente era possível

manualmente e por artistas, o que condicionava, de uma forma ou de outra, sua produção e

recepção à instituição da Arte, isso significa que a produção de imagens visuais dependia do fazer

artístico. É justamente neste ponto que a fotografia opera sua transformação: na produção. Até

80 AUMONT, 1993, p. 13.

aqui vínhamos falando da assimilação da cultura na vida cotidiana e no trabalho, pensando na

manipulação dos conteúdos das obras de artes literatura e filosofia, aqui entraremos na questão da

produção em série de imagens, e por extensão, de cultura.

A pesquisa científica para captação e inscrição mecânicas de imagens visuais, que resulta

na fotografia, seguiu dois caminhos paralelos e simultâneos. Enquanto Daguerre e Niepce

empenhavam-se para fixar as imagens da câmera obscura com fins artísticos, a pesquisa de

Talbot se destinava a ilustrações para as ciências, como registro e divulgação de espécimes de

plantas, animais e casos clínicos exóticos, até então, produzidos pela “inexata” mão humana. A

fotografia veio se colocar entre a ciência e a arte, sendo vista ora como ciência artística, ora como

arte científica; esta seria a primeira máquina de produzir imagens, uma tecnologia que não cessou

de providenciar desdobramentos.

Depois de inúmeras tentativas, no início do século XIX, as primeiras figuras

representacionais derivadas da câmera obscura foram fixadas, por meio de produtos químicos,

sobre uma placa de metal. Essas primeiras impressões eram únicas e sua novidade estava na

representação da realidade sem a intervenção manual, em outras palavras, a produção de figuras

que não dependiam de um fazer artístico, ou, de certas habilidades manuais específicas e

essenciais para a produção de pinturas, gravuras, desenhos. Pouco tempo depois foi inventado o

processo que produzia um negativo em papel, possibilitando a multiplicação das representações

por um dispositivo matricial – esta invenção foi o primeiro passo para alcançar o processo

negativo/positivo que conhecemos hoje81.

A industrialização da fotografia aconteceu em meados do século XIX, com a produção em

série dos artefatos e instrumentos fotográficos e a constituição de um vasto grupo de fotógrafos

81 Maiores detalhes sobre os processos químicos e a história dos primeiros anos da fotografia podem ser encontradas no site The Daguerreian Society. In: http://www.daguerre.org

profissionais. A “classe” dos fotógrafos profissionais se coloca como mais um ramo dentro da

divisão social do trabalho, pela produção em série de imagens mecanizadas. Em pouco tempo a

fotografia se tornou muito popular, tornando-se essencial à comunicação e, de certa forma, à

memória tanto individual quanto coletiva.

Para Walter Benjamin, a constituição deste grupo de fotógrafos profissionais marca o

declínio da fotografia, ou seja, sua entrada no sistema de produção; e, o curto período que durou,

da sua invenção e divulgação (1840) até sua industrialização (1860), é considerado por Benjamin

o período no qual as produções fotográficas atingiram seu apogeu.

No texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin propõe

uma discussão relativa a entrada da fotografia no sistema da comunicação e da arte,

problematizando principalmente a reprodutibilidade técnica, como o ponto de partida para a atual

dinâmica social em torno da linguagem visual, ou seja, discute as transformações sofridas pela

linguagem visual com sua inclusão no processo de produção. A fotografia é a primeira técnica

que possibilita a captação e inscrição de figuras por meio de uma máquina, e sua produção em

série. Como disse Benjamin: “No momento em que Daguerre conseguiu fixar as imagens da

câmera obscura, os técnicos substituíram, nesse ponto, os pintores.”82 Esta afirmação de

Benjamin é essencial para a compreensão da relação destas novas imagens e seu público, pois

imagens produzidas por técnicos se transformam em produtos indiferenciados no meio do

processo de produção, pois tem o foco da produção na máquina e não no sujeito. O técnico não

tem necessariamente uma relação afetiva com a imagem que produz, enquanto que para o pintor

essa relação é indispensável, a anonimidade do técnico traduz bem sua função de “operário”.

82 BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: Obras escolhidas – volume I. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987a, p. 91-107, p.97.

O novo quadro que se estabeleceu, com a produção em série de imagens fotográficas,

afetou diretamente a reprodução das obras de arte, que não era uma atividade nova, pois já era

feita por artistas que utilizavam a gravura e a própria pintura como maneira de divulgação de

determinadas obras. Para a realização destas cópias, existiam além da perspectiva, mecanismos

de visualização como a câmara obscura que permitiam que o artista recortasse um fragmento da

realidade, organizando o olhar e que facilitavam a feitura da pintura ou desenho, e

conseqüentemente de uma possível reprodução. Estes instrumentos não faziam a inscrição

mecânica da figura no papel ou tela, pois eram apenas instrumentos para uma outra artesania da

representação, e mantinham o caráter individual e subjetivo dos trabalhos. Neste ponto é

interessante pensar que as reproduções feitas manualmente por pintores ou desenhistas,

dependendo de sua proximidade com o original, poderiam se constituir em falsificações,

enquanto as reproduções fotográficas nunca estabelecerão esta relação com o original; é imediato

o reconhecimento de que uma fotografia só pode existir como um subproduto de algo que estava

lá em sua frente em determinado momento. A fotografia faz a inscrição da figura “sem a mão do

indivíduo”, e essa distância crescente entre o sujeito e o real pela mediação de máquinas foi o que

fez com que a fotografia fosse encarada como a mais objetiva das técnicas de representação, pois

possibilitava aparentemente que o próprio real se inscrevesse no suporte. Como afirma Philippe

Dubois, as máquinas:

[...] são intermediários que se inserem entre o homem e o mundo no sistema de

construção simbólica que é o próprio princípio da representação. Se a Imagem é

uma relação entre o Sujeito e o Real, o jogo das máquinas figurativas, e sobretudo

seu aumento progressivo, virá mais e mais distender, distanciar, separar os dois

pólos, como um jogo de filtros ou de telas que se adicionam.83

Como foi dito, a imagem visual é fruto de uma construção simbólica que tem por

finalidade representar o mundo sob o ponto de vista de seu produtor, ou como diz Dubois, é uma

relação entre o Sujeito e o Real; nesse sentido, as máquinas figurativas, ou as imagens visuais

produzidas por máquinas, modificam esta relação na sua base, pois por muito tempo se acreditou

que, por exemplo, pela fotografia, o próprio real se inscrevia no suporte, e esta objetividade da

máquina, que ainda não foi inteiramente superada, elimina desta equação o Sujeito produtor. As

imagens visuais produzidas por máquinas são naturalizadas, isto acontece porque o técnico como

produtor é somente o operador da máquina, a imagem resultante tem uma grande probabilidade

de ser percebida como uma janela, e assim, sua intencionalidade é descartada. Mas como as

imagens fotográficas não são uma janela, mas uma construção cheia de intencionalidades, esta

confusão gera uma leitura falsa da imagem: tomada pelo real, a sua leitura é condicionada de

forma inconsciente. Se o produtor é desconsiderado, a imagem é tomada por uma janela para o

real, e como ela não é o real e sim uma representação do real feita por alguém, a falta desta

informação proporciona um tipo de leitura falsa desta imagem; ao passo que uma imagem que

tem a marca de seu autor inclui na sua leitura esta informação. Se a mediação não está clara, a

distância entre o sujeito e o real aumenta.

É característico que o debate tenha se concentrado na estética da “fotografia como

arte”, ao passo que poucos se interessaram, por exemplo, pelo fato bem mais

evidente da “arte como fotografia”. No entanto a importância da reprodução

fotográfica de obras de arte para a função artística é muito maior que a construção

83 DUBOIS, Philippe. A linha geral (as máquinas de imagens). In: Cadernos de Antropologia da Imagem. nº 9, Rio de Janeiro, 1999, p. 4.

mais ou menos artística de uma fotografia, que transforma a vivência em objeto a

ser apropriado pela câmera.84

Com a difusão de cópias fotográficas de obras de arte, e mesmo com as fotografias

independentes dessa função, o que se perde é a unicidade do objeto artístico – já que a fotografia

acontece pelo princípio da reprodução, não faz sentido, para não dizer que é impossível, pensar

em um original; a matriz da qual as cópias são tiradas é o negativo que em si não é a imagem,

mas um dispositivo que a carrega em potência. A cópia é um novo objeto que se faz presente,

atualizando e reconstruindo as relações tanto espaciais como temporais, desse original

reproduzido em diferentes situações. “A reprodução técnica pode colocar a cópia do original em

situações impossíveis para o próprio original”.85 Decorre daí que a experiência com a obra de arte

se modifica, pois o espectador pode ter acesso a uma reprodução antes de ir ao encontro da obra

original, como um intermediário, e nesse sentido a reprodução ganha um estatuto de propaganda,

que anuncia a existência da obra. O que significa que a princípio ela perde o caráter intocável,

que era garantido pela proteção oferecida pelos museus, que guardavam a obra única atrás de

grossas paredes; mas ganha a difusão, circulação e o consumo, oferecidos pela publicidade. A

atualização da aparência da obra mediada pela sua reprodução mecânica estabelece relações

diversas das produzidas pelo original, pois tem outra materialidade e dimensão, o que modifica

seu testemunho histórico. A obra de arte é recontextualizada, redimensionada. Em uma obra de

arte, o conteúdo é diretamente condicionado pela forma e vice versa, quando a forma da obra é

modificada – transformada em fotografia, por exemplo –, esta relação entre a forma e o conteúdo

é modificada, o que significa que o conteúdo também é modificado. A aparência da obra na

84 BENJAMIN, 1987a, p. 104. 85 Id., 1987b, p. 168.

fotografia não carrega as relações formais de tamanho, materialidade, e experiência da obra, ou

seja, a lógica de construção da obra é deturpada por essa tradução.

No texto sobre a reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin propõe que a mudança de

percepção que sofreu a sociedade ocidental está calcada no declínio da aura, a aura é definida

como “[...] uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única

de uma coisa distante, por mais próxima que esteja”86; e junto com este declínio acontece o fim

da noção de autenticidade, componente da aura, descrita como a “[...] quintessência de tudo o que

foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu

testemunho histórico”87, pois o que se perde com a reprodutibilidade técnica, é a unicidade dos

objetos e fatos. Mas não é só na produção artística que este declínio da aura acontece e nem só

pela fotografia, ele é resultado de toda a nova conjuntura social, o declínio da aura se refere ao

novo modelo de relacionamento com o real estabelecido pelas pessoas na sociedade capitalista. O

declínio da aura é o declínio da cultura. Nada mais é distante e único, tudo pode ser atualizado

pelos meios de reprodução e, no entanto o sujeito se distancia do real, pois o seu contato com o

real é mediado pelas reproduções; com a disseminação de cópias reproduzidas, já não existe

original, tudo pode ser adquirido por todos, e assim tudo se torna potencialmente descartável.

Benjamin descreveu muito bem esta forma de percepção nesta frase: “Retirar o objeto do seu

invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de

captar o ‘semelhante’ no mundo é tão aguda que, graças à reprodução, ela consegue captá-lo até

no fenômeno único”.88 A aura é um elemento dos objetos e acontecimentos percebido pelo

sujeito, não existe em si, portanto o novo modelo de relacionamento com o real faz com que a

86 BENJAMIN, 1987a, p. 101. 87 Id., 1987b, p. 168. 88 Id., 1987a, p. 101.

aura perca a importância, este é seu declínio, a possibilidade de experienciá-la continua no

original, o declínio acontece na percepção das pessoas, que não conseguem mais vivenciá-la.

Benjamin aponta o declínio da aura na arte, como uma mudança drástica na estrutura,

portanto na produção, e na recepção da obra de arte. Como foi dito acima, o declínio da aura se

refere, antes de tudo, ao novo modelo de relacionamento que as pessoas estabelecem com o real;

mas ao mesmo tempo, esta nova lógica se infiltra nas produções artísticas e cada vez mais a obra

de arte reproduzida é uma obra de arte feita para a reprodução. A autenticidade de uma obra de

arte é o seu aqui e agora, que faz com que este objeto seja sempre o mesmo, igual e idêntico a si

mesmo, sempre cercado pelas mesmas relações históricas, e tendo a mesma materialidade. Uma

obra de arte autêntica guarda em si, por mais próxima fisicamente que esteja, uma distância

temporal e espacial, porque remete sempre ao momento em que foi feita; quando a obra de arte é

reproduzida pela fotografia, a atualização da aparência da obra, elimina nesta tradução justamente

o testemunho histórico da obra; a materialidade de uma obra de arte transmite seu tempo de vida

(o que, como diz Benjamin, só pode ser verificado por meios químicos), mas também transmite a

tradição, pois remete ao momento histórico no qual ela foi produzida. A recepção de uma obra de

arte depende de um contato imediato com a obra, para que se possa respirar sua aura, para que se

possa sentir sua aparição única, sua materialidade e temporalidade. Nesse sentido que o novo

modelo de relacionamento com o real, interfere na relação com as obras de arte, o espectador não

mais diferencia a experiência com a obra original e a experiência com as reproduções mecânicas.

Assim podemos nos lembrar da discussão sobre a acessibilidade das obras de arte, e como,

mesmo tendo contato com estas obras, a sua compreensão não acontece, isto está diretamente

ligado com a nova percepção.

A despeito das considerações feitas sobre a aura, nos primeiros anos da fotografia, Walter

Benjamin fez uma ressalva: o último refúgio da aura era o rosto humano, era onde o valor de

culto ainda se sobrepunha. Nas fotografias de retrato sempre buscamos

[...] a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade

chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se

aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloqüência

que podemos descobri-lo, olhando para trás.89

A sensação de que na imagem fotográfica, o próprio real se imprimiu no papel, faz com as

fotografias propiciem a sensação de que vejo o outro cristalizado em minha frente, pois a

experiência com o outro – o único – se equivale à experiência com a reprodução neste novo

modelo de relacionamento com o real. Como escreve Lichtwark em 1907: “Nenhuma obra de arte

é contemplada tão atentamente em nosso tempo como a imagem fotográfica de nós mesmos, de

nossos parentes próximos, de nossos seres amados [...]”90 Além do culto da saudade, fundado no

afeto, comentado por Lichtwark, não é só nos rostos conhecidos que a aura ainda respira, existe

uma magia no rosto humano que burla as conseqüências da reprodutibilidade técnica: o

conhecimento imanente da unicidade do indivíduo, ou seja, de que o modelo é definitivamente

único, quebra com o ciclo da multiplicidade, pois o sujeito, ainda que anônimo, carrega

particularidades e diferenças que mesmo desconhecidas, se sobrepõem à imagem reproduzida, ele

é o original. É no outro que reconheço minha humanidade, e sendo assim, é na figura do outro

que reconheço a minha figura, é essa a magia que envolve a inefável relação que se estabelece

com os retratos. Assim, nos primeiros anos da fotografia temos, no princípio da relação afetiva

89 BENJAMIN, 1987a, p. 94. 90 LICHTWARK, 1907 apud BENJAMIN, 1987a, p. 103.

que estabelecemos com os retratos e a sensação de unicidade dos retratados, um contraponto ao

que acontece com o indivíduo do ponto de vista psicológico na era da industrialização.

O que significa que na fotografia de retrato existe um maravilhamento com a cristalização

da subjetividade do outro, e esta centelha de acaso de que Walter Benjamin fala, é a humanidade

do outro que procuro na sua imagem. Olhando para a individualidade do outro, afirmamos a

nossa, e em um período marcado pelo esfacelamento do eu – no qual surgem as teorias da

psicanálise que revelam a fragmentariedade do eu, em oposição às idéias de unicidade do

indivíduo divulgadas pelo racionalismo iluminista e que tem uma ligação com a religião cristã

que prega a unicidade do espírito; juntamente com as próprias condições sociais que se

estabeleceram com a produção em série e a divisão social do trabalho – essa segurança na

imagem do outro, aparentemente tão íntegra no retrato, propicia a ilusão da minha própria

unidade. O que do ponto de vista psicológico se coloca como o oposto do que é sentido pelo

sujeito, a busca por essa unidade suscitada pelos retratos e vista neste outro, é a busca do próprio

indivíduo. Mas isso acontece porque a percepção está condicionada a entender a imagem como

totalidade, como se o outro pudesse ser apreendido pelo retrato, pela sua representação imagética.

Ao passo que os conflitos interiores vividos pelo indivíduo são fruto justamente de sua

pluralidade interna.

As fotografias de retrato possuíam a mesma capacidade de presentificação que tinham as

obras de arte até o século XIV91, de onde advém o culto da saudade, que até hoje marca com a

91 Para compreender esta capacidade, vamos recorrer às explicações do filósofo Francis Wolf sobre transparência e opacidade. Quando a função artística se impõe à produção de obras de arte, o que se modifica no interior da obra, é a sua transparência, utilizada aqui como a capacidade que uma representação possuía até o século XIV de ser o canal de transmissão de mensagens divinas, a personificação/presentificação dos santos, deuses e ensinamentos religiosos de toda a sorte. A partir do século XIV, essa transparência começa a se transformar em opacidade, o que possibilita essa transformação é justamente a presença de uma mão que faz, o artista começa a se colocar como informação componente da imagem, a assinatura e a manufatura especializada e diferenciada das representações coloca o artista no meio do caminho entre o objeto de arte e a mensagem que ele carrega, a opacidade se refere aqui à presença do objeto. As representações deixam de ser somente transparentes, canais de presentificação de divindades, e passam a

preciosidade de um relicário as fotografias das pessoas amadas e ausentes. A fotografia tem a

possibilidade de funcionar como um canal de presentificação dos entes queridos, ao mesmo

tempo que de nós mesmos em outras épocas; fazer do eu o outro, ou, como dizia Roland Barthes:

“[...] a fotografia é o advento de mim mesmo como outro: uma dissociação astuciosa da

consciência de identidade.”92 Na imagem fotográfica se busca uma identidade impossível, já que

este outro não sou eu ao mesmo tempo que sou. Sou eu transformado em imagem, e essa

distância entre “eu” e o objeto representação-fotográfica, que é ao mesmo tempo proximidade,

ainda não foi resolvida, apesar de ter se transformado em costume.

A fotografia transformava o sujeito em objeto, e até mesmo, se é possível falar

assim, em objeto de museu: para fazer os primeiros retratos (em torno de 1840),

era preciso submeter o sujeito a longas poses atrás de uma vidraça em pleno sol;

tornar-se objeto, isso fazia sofrer como uma operação cirúrgica; inventou-se então

um aparelho, um apoio para a cabeça, espécie de prótese, invisível para a

objetiva, que sustentava e mantinha o corpo em sua passagem para a imobilidade:

esse apoio para a cabeça era o soco da estátua que eu ia tornar-me, o espartilho de

minha essência imaginária.93

Essa angústia gerada pelo momento da transformação em estátua foi sendo protelada na

medida em que o tempo de exposição diminuía; sem sofrer o tempo da transformação pela

invenção do instantâneo, a transformação se tornou inconsciente, além de naturalizada pelo

costume de ver fotografias e ser fotografado.

existir em si, a mostrar a mão do artista, as diferenças de um ou outro, a assinatura: acrescido ao reconhecimento de uma figura vem o reconhecimento de quem a fez, a opacidade convive com essa transparência. A função artística é justamente o reconhecimento das habilidades do artista e de sua presença, o que possibilita a exponibilidade, ou seja, ser exposta como o produto de um profissional especializado. WOLF, Francis. Aquém do espetáculo aquém das imagens. Palestra conferida no dia 2 de setembro de 2003, por ocasião do ciclo de conferências: Muito Além do Espetáculo, realizado de 26 de agosto a 25 de setembro de 2003, no Teatro SESC da Esquina de Curitiba. 92 BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1984, p.25. 93 Ibid., p. 26-27.

O instantâneo fotográfico veio potencializar o soco da estátua (transformação do sujeito

em objeto): diminuindo o tempo da transformação, torna-a inconsciente e, portanto não

questionável. Das imagens feitas para durar, entramos em uma época das imagens efêmeras e

descartáveis. A transformação do sujeito em objeto, de que fala Barthes, se acentua com a rapidez

do instantâneo, pois, sendo imperceptível, a transformação se torna corriqueira e atinge todas as

coisas fotografadas, tudo é visto como objeto, o eu, o outro e todo o mundo, tudo é objetivado. As

imagens fotográficas são produzidas em uma quantidade cada vez maior, e vão ocupando os

espaços entre o sujeito e o real. O contato com a fotografia condiciona o contato com tudo o que

é visível, fazendo com que as pessoas percebam o real a partir das categorias da fotografia. Nesse

sentido, pode-se falar em um contato mediado com o mundo, pré-condicionado, pré-conceituado,

estereotipado, pré-categorizado. O outro é visto como objeto porque é visto como uma imagem.

A aparência encaixada em categorias ou estereótipos molda a percepção da realidade.

Além destas questões subjetivas da relação com a imagem fotográfica, a circulação

intensa de imagens implica uma mudança na auto-percepção e na percepção do outro: tendo

retratos seus, as pessoas começam a se olhar de forma diferente, pensando em como elas querem

parecer, o que engendra uma possibilidade, mesmo que remota, de ter sua fotografia circulando

nos meios de comunicação; com a difusão de imagens de anônimos – transformados em

celebridades, personalidades famosas, ou não – o olhar sobre o outro se modifica: formam-se

assim modelos imagéticos, que na busca por uma identificação, se transformam, aos olhos das

pessoas, em modelos de comportamento e de visual. O culto da personalidade, encarnado nas

estrelas de cinema e astros do rock, reflete de certa forma a possibilidade e a vontade de todas as

pessoas se tornarem celebridades.

A starlet deve simbolizar a empregada de escritório, mas de tal sorte que,

diferentemente da verdadeira, o grande vestido de noite já parece talhado para ela.

Assim, ela fixa para a espectadora, não apenas a possibilidade de também vir a se

mostrar na tela, mas ainda mais enfaticamente a distância entre elas. Só uma pode

tirar a sorte grande, só um pode se tornar célebre, e mesmo se todos têm a mesma

possibilidade, esta é para cada um tão mínima que é melhor riscá-la de vez e

regozijar-se com a felicidade do outro, que poderia ser ele próprio e que, no

entanto, jamais é.94

Adorno levanta aqui a consciência que cada um tem de que a possibilidade de se tornar

célebre está fundada em um acaso de probabilidade ínfima, e mesmo que todos possam e queiram

ter esta oportunidade, sabem que jamais serão os escolhidos, e que, portanto, devem se conformar

com sua situação. É neste jogo entre a vontade de aparecer na tela, e a impossibilidade de

concretizar este sonho, que se estabelece a admiração por quem conseguiu: o culto às estrelas de

cinema e astros de rock.

A imagem se transforma em uma mercadoria passível de consumo, portanto cada um

constrói a imagem de si mesmo que quer “vender”, agregando os vários produtos que podem

atestar essa identidade; mas esse processo está tão enraizado na formação de nossa subjetividade

que é inconsciente, nós próprios acreditamos na imagem que criamos. Assim que a relação com o

outro, construída a partir dessa relação com as imagens, se torna uma relação entre objetos.

Se a fotografia pode ajudar a conjurar o processo de extermínio da própria

alteridade, ela é simultaneamente um mecanismo de expropriação e de

aniquilamento da singularidade, transformando o homem numa ‘coisa entre

coisas, todas estranhas umas às outras, todas familiares e enigmáticas, em lugar

94 ADORNO; HORKHEIMER, 1985. p. 136.

de um universo de sujeitos comunicando-se todos uns com os outros, todos

transparentes uns aos outros.’95

A formação desse sujeito inebriado pelas imagens que o circundam está calcada em

experiências mediadas pela reprodutibilidade técnica, o que significa apreender o mundo como

uma seqüência de elementos padronizados, e, olhar para o mundo com olhar fotográfico e por

fotografias96: não apreender processos, mas captar cenas e fatos. Tendo a percepção da realidade

formatada por essa mediação, a tendência é formar sua subjetividade a partir de estereótipos –

imagens padronizadas de aparências, reações e comportamentos –; substituindo as vivências

processuais e reais por um tipo de experiência objetivada que se resume a fatos, pré-catalogados e

padronizados, e que se dá pelo contato com as imagens que se interpõe entre o sujeito e o mundo,

propondo interpretações prontas deste mundo. Esse processo intensifica a superficialidade da

relação do sujeito com o mundo e com os outros indivíduos.

Na indústria, o indivíduo é ilusório não apenas por causa da padronização do

modo de produção. Ele só é tolerado na medida em que sua identidade

incondicional com o universal está fora de questão. Da improvisação padronizada

no jazz até os tipos originais do cinema, que têm que deixar a franja cair sobre os

95 BAUDRILLARD, Jean. A Arte da Desaparição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p. 35. apud FABRIS, Anatereza. Percorrendo veredas: Hipóteses sobre a arte Brasileira atual. In: Revista USP. São Paulo, dezembro/fevereiro 1998-99, nº40, p.68-77. 96 Vilém Flusser, descrevendo a trajetória da construção da imagem desde a pré-história, afirma que as imagens foram criadas para que o homem pudesse ter acesso ao mundo, ou seja, pudesse através de representações visuais produzir esquemas que facilitassem a compreensão dos fenômenos; já que este acesso não acontece imediatamente por ser o homem parte integrante do mundo, em outras palavras, existente. Mas com o propósito de representar o mundo, se fazer símbolo, as imagens acabam por se interpor entre o homem e o mundo, como biombos. É o que Flusser chama a magicização da vida. Num segundo momento e contra esta magicização foi criada a escrita linear metaforizada por Flusser como o rasgamento das imagens em linhas e o conseqüente alinhamento desses elementos imagéticos em textos. Acontece que contra a intenção de desvendar as imagens mágicas, os textos acabaram por se afastar ainda mais da realidade, se tornando complexos e inimagináveis. Com a evolução científica surgem as imagens técnicas – texto científico aplicado – que são imagens que imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo. Pontuando mais uma vez o distanciamento entre o homem e o real pela mediação da própria linguagem. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

olhos para serem reconhecidos como tais, o que domina é a pseudo-

individualidade. O individual reduz-se à capacidade do universal de marcar tão

integralmente o contingente que ele possa ser conservado como o mesmo.97

Os modelos de individualidade e unicidade apresentados são eles próprios construídos

com a finalidade de afirmar o que é, ou deve ser a individualidade e a unicidade, e que na verdade

não passam de “[...] mercadorias monopolizadas e socialmente condicionadas”98, marcas

estereotipadas aceitas socialmente como marcas da individualidade, e vendidas como uma

conseqüência da aquisição de produtos. A individualidade é formada dentro de um campo

limitado de possibilidades, que se anunciam, no entanto, como liberdade; como explica

Shusterman:

A idéia divulgada, segundo a qual todos deveriam adotar um estilo próprio e

individual pela escolha livre e pessoal de modos de vida, não pode ocultar o fato

de que não somente a gama de opções viáveis de modos de vida como também a

própria consciência e a própria escolha do indivíduo são fortemente coagidas e

programadas por forças sociais que estão normalmente muito além de seu poder –

enquanto indivíduo – de resistir, para não falar em controlá-las.99

Os modos de vida disponibilizados pela Industria Cultural, são construídos com imagens

simples e unilaterais, que atendem a uma necessidade unilateral de consumo, feitas para um

sujeito que se percebe também dessa forma, como consumidor. Pois acontece uma conversão e

todas as esferas da vida à racionalidade da produção,100 ou seja, o indivíduo é mais uma peça do

sistema produtivo.

97 ADORNO; HORKHEIMER, 1985. p. 144-5. 98 Ibid., p. 145. 99 SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 222. 100 CROCHIK, 1999, p. 4.

A formação de um sujeito, com compreensão da dimensão histórica de si e da

sociedade, vem sendo enfraquecida pela ideologia da racionalidade tecnológica,

pois esta utiliza todos os espaços e atua em todas as dimensões da vida humana,

dificultando enormemente essa formação.101

A dimensão histórica desaparece porque a racionalidade tecnológica propõe um presente

constante, ou melhor, uma afirmação e naturalização do presente que aparece como se este

estivesse estendido eternamente e desde sempre.

Os padrões de comportamento impostos por meio das imagens estereotipadas desses

comportamentos, atingem o indivíduo das mais diferentes formas, pois “longe de ser algo

unificado e consciente, emergindo de um centro autônomo, estável e racional, o eu é destituído de

centro, é uma coleção de quase-egos, o produto de um conjunto aleatório de necessidades

idiossincráticas”,102 o que causa a identificação de cada quase-ego com um modo de vida

diferente que responde a uma necessidade de consumo diferente, já que esta esfera interior

encontra-se invadida e desbastada pela racionalidade tecnológica. Como conseqüência, temos a

auto-dispersão, que contribui para a falta de entendimento da complexidade do indivíduo: a

complexidade seria a ligação orgânica dos fragmentos; e a auto-dispersão, a tentativa desesperada

dos quase-egos de se conectar, ou identificar, com modelos que aparentemente supririam suas

necessidades. O que se torna prejudicial é que esses modelos são impostos externamente,

potencializando a fragmentação e desfazendo a ligação orgânica primordial entre os seus

fragmentos.

101 VERMELHO, Sonia Cristina Soares Dias. Educação e virtualização: as mídias e a formação do indivíduo. São Paulo: EHPS/PUCSP, 2003, p.31. 102 SHUSTERMAN, 1998, p. 203.

Os modelos são impostos pela indústria do consumo, que entrega os pacotes de “falsas

necessidades” com o rótulo do estereótipo ao qual se referem, cada um escolhe o seu tipo. Os

indivíduos são consumidores e a afirmação de sua individualidade depende dos produtos que ele

“escolhe”.

Quando a cultura é incorporada na vida cotidiana e no trabalho, o uso das imagens adquire

outra função, e se as primeiras pesquisas fotográficas se deram no campo da arte, mais adiante ela

foi absorvida pela publicidade. Atendendo a uma demanda industrial do aumento de consumo, o

produto foi substituído, no jogo da compra e da venda, pela sua imagem, que se mostra no fetiche

da embalagem, que revela-oculta o produto, mistificando e mitificando sua imagem, que neste

contexto é frágil e desgasta com o tempo. “Descobriu-se que o consumo psicológico é

infinitamente mais rápido do que o consumo objetivo; basta apresentar um novo tipo de produto,

e imediatamente o velho torna-se ‘obsoleto’, ‘caduco’”.103

A retórica do novo está fundada na ideologia da ruptura e do progresso contínuo, uma

tendência a convencer a supremacia do novo sobre o velho, o que projeta para o futuro a

realização, a satisfação e a felicidade e, institui a descartabilidade; além de profetizar que no

futuro ‘tudo será diferente e muito melhor’, fundada em uma necessidade econômica, que é a

base da lógica publicitária.104

Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é

imune a sua falsidade. E, ao ficarem esses produtos benéficos à disposição do

maior números de indivíduos e de classes sociais, a doutrinação que eles portam

deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida.”105

103 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 581. 104 DUBOIS, 1999, p. 15. 105 MARCUSE, 1969, p. 32.

E um bom estilo de vida que, por ser bom, milita contra a transformação qualitativa.

Oferecer-lhes algo e ao mesmo tempo privá-las disso é a mesma coisa. [...] [É] a

necessidade imanente ao sistema de não soltar o consumidor, de não lhe dar em

nenhum momento o pressentimento da possibilidade da resistência. O princípio

impõe que todas as necessidades lhe sejam apresentadas como podendo ser

satisfeitas pela indústria cultural, mas, por outro lado, que essas necessidades

sejam organizadas de tal sorte que ele se veja nelas unicamente como um eterno

consumidor, como objeto da indústria cultural. [...] A Indústria Cultural volta a

oferecer como paraíso o mesmo cotidiano.106

Ou as pessoas se entregam por completo ao sistema, ou estão fora, são outsiders. Na luta

pela sobrevivência, ninguém quer ser outsider, porque assim sendo, está fora do mercado de

trabalho, excluído. O sistema mostra que cada um tem que lutar pela sua sobrevivência, e que a

aliança com a sociedade é a forma mais fácil e rápida de atingir seus objetivos, o medo de ser

excluído do mercado de trabalho faz com que se exclua o outro, projetando nele as fraquezas e

deficiências proscritas pelo sistema produtivo, é assim que o sistema consegue a conivência de

todos para sua perpetuação. Todos são concorrentes em potencial e a competição agressiva de

todos contra todos aumenta a violência existente, além de cada um sentir que a sociedade é seu

único aliado. Em uma sociedade que já possui os meios para que não se precisasse lutar pela

sobrevivência, se mantém o medo para se manter o status quo, este é um aspecto irracional da

forma como a racionalidade tecnológica atua.

O desejo de consumo está atrelado ao jogo de imagens que seduz os consumidores com

promessas de realização e felicidade, e estimulam o consumismo desmedido que observamos

hoje. Esse desejo se constitui no tipo de experiência mais comum em uma sociedade de consumo

106 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 132-3.

de massa, pois desejar os produtos, é uma forma de consumo: o consumo das imagens destes

produtos. A aquisição do produto não acaba com a magia de sua imagem, porque esta se

transforma em símbolo de status; e mesmo porque, a imagem do produto raramente se realiza no

produto: a beleza que a embalagem mostra, nem sempre coincide com o que ela contém de fato.

O que importa nessa relação, é a posse da imagem do produto, do que ele significa, e não do

produto em si como uma mercadoria funcional. Como o que se consome é a imagem, assim que o

produto se encontra nas mãos do consumidor, deixa de ser desejável, o que fica é o seu valor

simbólico vinculado aos estereótipos que o produto ajuda a caracterizar; no instante em que se

efetua a compra, o consumidor inicia imediatamente a busca por um outro produto qualquer,

outra imagem na qual projetar seu desejo. O consumidor acumula imagens de produtos. Como

afirma Vermelho: “A qualquer hora, em qualquer dia e de qualquer lugar podemos consumir,

podemos buscar a felicidade nos objetos, ou recalcar um sofrimento, uma angústia entrando numa

sala de cinema, mas tudo isso certamente se tivermos condições financeiras.”107

O consumidor anda pela cidade, meio às compras meio a passeio, consumindo, mesmo

que só com os olhos, olhando os rostos da multidão, olhando o que está acontecendo nas vitrines.

A cidade, nesse caso, é o duplo do mercado, fornecedora de bens e serviços: olhar e devanear no

ambiente urbano é a extrapolação da experiência básica de olhar a mercadoria, quem olha a

mercadoria assim, devaneia, fantasia, sonha. Essa fantasia é a fascinação, a vulnerabilidade, o

desejo; a projeção da possibilidade de aquisição do produto é o movimento de desejo que

antecede o consumo.108

Esse comportamento do consumidor o converte num especialista do mercado, fica

sabendo como, onde, o que comprar: o melhor preço, o melhor produto, se torna viciado neste

107 VERMELHO, 2003, p.19. 108 Este trecho foi baseado na palestra Cinema e pop art ministrada pelo Profº Luiz Renato Martins na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, a 5 de agosto de 1998.

tipo de devaneio, de desejo, de fantasia da antecipação do consumo. Para os indivíduos, este é o

modelo de atitude perceptiva que satura a vida moderna, em particular a sociedade de consumo

de massa e é fonte de suas ilusões: ver televisão, escutar rádio, fazer turismo, ler jornal, etc. são

as atividades que preenchem a vida das pessoas nesta sociedade, mais particularmente seus

momentos de lazer, quando tentam escapar da opressão do trabalho.109

O que torna este comportamento reprodutível, ou seja, generalizado, é o fato de ocorrer

quando se tem diante de si a possibilidade de substituição ou descarte do objeto, ou seja, é

substituível porque é produzido em série; isso é o que possibilita o prazer antecipado que o

consumidor tem, pois sabe que pode adquirir o produto, sabe que é acessível, que não vai acabar.

A gratificação imaginária acontece porque o consumo é possível, o produto é acessível para quem

tem moeda, o consumidor fica gratificado de ver o produto na vitrine, já vai desfrutando do

produto bem antes de tê-lo110. E este jogo acontece não só com as mercadorias, mas também com

as produções da indústria cultural, nas palavras de Vermelho:

[...] o grande logro está em que aquilo que a Indústria Cultural promete fica

sempre adiado pelo prazer temporário de suas produções: o riso fugidio, o alívio

de tensão em troca da eliminação da fome e da divisão social. Esse é um dos

aspectos centrais da Indústria Cultural: a capacidade de reforçar a negação que é

imposta aos indivíduos, prometendo-lhes uma felicidade, inculcando nas pessoas

uma falsa verdade sobre a vida e sobre o mundo fundada sobre uma falsa

ideologia, sobre um falso distanciamento.111

Nesta colocação, Vermelho se refere à organização dos produtos da indústria cultural e ao

jogo de promessas não cumpridas e falsamente perpetuadas como realizadas por meio de

109 MARTINS, 1998. 110 Ibid. 111 VERMELHO, 2003, p.18.

“prazeres temporários”, a diversão desvia as pessoas de seus objetivos reais pois traz consigo as

falsas verdades sobre a vida e sobre o mundo.

2.5 O Cinema e as Massas

Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da

realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento

como para a intuição.112

O clima da indústria cultural, como pudemos perceber até aqui, acontece em decorrência

de inúmeros fatores, e, entre eles, está a reformulação das cidades que se inicia com a Revolução

Industrial. O trabalho nas fábricas requer um grande número de operários e sua permanência nas

cidades depende desta reestruturação, as cidades passam a ser organizadas em função do grande

número de pessoas que passam a habitá-las. As modificações nas cidades podem ser sentidas na

forma como passam a ser construídas e organizadas as moradias, pois como afirma Benjamin, a

numeração das casas que acontece nesse período, é uma forma de controle e organização; ou nos

meios de transporte que começam a ser pensados em função da locomoção da coletividade.

Pensando nas modificações sofridas pela cultura em decorrência desse maior número de

pessoas, podemos citar como exemplo a pintura e sua recepção. Benjamin levanta o fato de que a

pintura é uma arte para ser contemplada individualmente, um grande número de pessoas

visitando ao mesmo tempo uma exposição em um museu ou galeria, torna quase impraticável a

contemplação:

112 BENJAMIN, 1987b, p.170.

Por mais que se tentasse confrontar a pintura com a massa do público, nas galerias

e salões, esse público não podia de modo algum, na recepção das obras,

organizar-se e controlar-se. Teria que recorrer ao escândalo para manifestar

abertamente seu julgamento. Em outros termos: a manifestação aberta do seu

julgamento teria constituído um escândalo.113

A dificuldade de recepção das formas tradicionais de arte pela massa, e a instituição desta

acessibilidade, é uma das condições para o desenvolvimento da indústria cultural. Os grandes

“salões de pintura” passam a ser abertos ao público, a massa é convidada a entrar nos museus e

desfrutar das criações da arte contemporânea da época, mas como disse Benjamin, seria

necessário recorrer ao escândalo para manifestar abertamente seu julgamento, principalmente se

cada um quisesse fazê-lo. As formas tradicionais de arte não comportam este tipo de recepção.

Assim, a cidade passa a se organizar para a massa, para acomodá-la, para facilitar seu trânsito, e

os produtos da indústria cultural são organizados para entretê-la. Como dizia Benjamin, a pintura

é uma arte individual, deve ser contemplada na solidão, não comporta grandes públicos;

atualmente, a “arte” que é feita para a massa e que depende dela, é o cinema, como sempre foi o

caso da arquitetura, e antes, da epopéia114.

Nas obras cinematográficas, a reprodutibilidade técnica do produto não é, como

no caso da literatura ou da pintura, uma condição externa para sua difusão

maciça. A reprodutibilidade técnica do filme tem seu fundamento imediato na

técnica de sua produção. Esta não apenas permite, da forma mais imediata, a

difusão em massa da obra cinematográfica, como a torna obrigatória. A difusão

se torna obrigatória, porque a produção de um filme é tão cara que um

113 BENJAMIN, 1987b, p.188. 114 Ibid., p.188.

consumidor, que poderia, por exemplo, pagar um quadro115, não pode mais pagar

um filme. O filme é uma criação da coletividade.116

Em primeiro lugar, a produção de um filme depende de um grande número de pessoas: o

diretor, os especialistas, os técnicos, os montadores, os atores etc.; e depois, no cinema como na

fotografia, a reprodutibilidade é um elemento da própria técnica de produção, mas enquanto a

fotografia ainda admite uma recepção individual, o cinema depende da recepção coletiva. Por

isso, a reprodutibilidade técnica não é uma condição externa para a sua difusão, como na pintura,

na qual, a partir de um original são reproduzidas cópias que tem outra materialidade, e que,

portanto, diferem daquele. A difusão maciça é um elemento constituinte da obra cinematográfica,

sem a qual o seu custo a torna impraticável. Mas é a relação do cinema com a massa que faz com

que Benjamin o considere a forma artística que está em sintonia com a forma de percepção que se

instituiu na sociedade industrializada, pois não existe um original, todas as cópias são originais,

ao mesmo tempo em que nenhuma o é.

Se pensarmos na linguagem visual em movimento, e sua relação com o espectador,

podemos aprofundar um pouco o entendimento da percepção de mundo que foi discutida com a

fotografia. O cinema é um desdobramento da fotografia, surgiu como um mecanismo de

projeção, em um suporte, de uma seqüência de imagens fixas oriundas do processo fotográfico.

Tudo o que se desenvolveu com a fotografia foi utilizado pelo cinema, tendo como diferencial

que, enquanto a fotografia captura as imagens do real e as fixa em um suporte, o cinema é uma

forma de representação visual que não tem suporte, existe durante o tempo de projeção das

imagens na tela, a película em si não é a imagem, assim como o negativo da fotografia também

115 Salvo algumas exceções, como por exemplo, um quadro de Van Gogh que pode, atualmente, ser vendido por uma quantia equivalente a 80 milhões de dólares. 116 BENJAMIN, 1987b, p. 172.

não. A ilusão de movimento provocada pela projeção se dá para cada espectador, e não na tela,

ou seja, a possibilidade de apreensão do movimento está no espectador. Isso é importante na

medida em que se mostra como um processo mental e interno e não físico e externo (a percepção

do movimento acontece pelo efeito fi).

A recepção coletiva transforma a sala do cinema em um ambiente que depende da massa:

[...] no cinema, mais que em qualquer outra arte, as reações do indivíduo, cuja

soma constitui a reação coletiva do público, são condicionadas desde o início,

pelo caráter coletivo dessa reação. Ao mesmo tempo que essas reações se

manifestam, elas se controlam mutuamente.117

A recepção coletiva é ao mesmo tempo manifesta e controlada, por que acontece por meio

de um condicionamento efetuado por mecanismos estruturais que perpassam todos os produtos da

indústria cultural, no cinema as pessoas podem se manifestar abertamente porque o fazem em

uníssono. Como exemplo, podemos pensar em um filme de comédia, existem cenas mais

engraçadas e outras menos engraçadas, isso pode ser observado pela explosão de riso automática

e simultânea em grande parte dos espectadores, que reconhecem naturalmente estes momentos e

compartilham com os outros. Estes momentos são construídos com este fim mesmo, e sua

estrutura se repete em vários filmes e produtos da indústria cultural, são efeitos estandardizados.

Benjamin se refere aos espectadores do cinema como semi-especialistas, pois o cinema

absorve uma quantidade muito grande de pessoas para as suas produções, os atores

cinematográficos não precisam ser “bons atores” no sentido exigido pelo teatro, pois como disse

Benjamin, no cinema o ator somente representa a si mesmo diante do aparelho. E é esta condição

de proximidade que torna a todos semi-especialistas, pois o cinema acaba por absorver um grande

117 BENJAMIN, 1987b, p.188.

número de atores e não-atores. “No que diz respeito ao cinema, os filmes de atualidades provam

com clareza que todos têm a oportunidade de aparecer na tela.” 118 Mas, ao mesmo tempo, como

disse Adorno, hoje em dia esta chance “é para cada um tão mínima que é melhor riscá-la de vez e

regozijar-se com a felicidade do outro, que poderia ser ele próprio e que, no entanto, jamais é.119

Esse regozijo pode ser entendido como uma ligação afetiva do espectador com o personagem, e

uma idealização da figura do ator que atingiu o que ele mesmo gostaria de atingir.

Muitos autores estabelecem uma relação entre o cinema e a psicanálise, referindo-se aos

processos de identificação do espectador com obra cinematográfica. Aumont120 fala de uma dupla

identificação no cinema, advertindo que os processos de identificação do cinema e da psicanálise

não podem ser confundidos, mas que podem ser relacionados; para diferenciar as duas teorias da

identificação, chama as identificações que acontecem no cinema de identificações

cinematográficas primária e secundária.121 A identificação cinematográfica primária seria a

identificação do espectador com o sujeito do olhar, e a identificação cinematográfica secundária,

seria a identificação do espectador com a narrativa e seus personagens.

A identificação cinematográfica primária acontece pela identificação do espectador com

seu próprio olhar, pois se sente o foco da representação que vê diante de si, como se toda a cena

estivesse se desenvolvendo em função dele, por sua causa, se sente o “sujeito privilegiado, central

e transcendental da visão.”122 Mas esta identificação acontece na verdade com o ponto de vista da

câmera, o ponto de vista único e total, é a:

118 BENJAMIN, 1987b, p.183. 119 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 136.b 120 AUMONT, Jacques. A estética do filme. Tradução Marina Appenzeller; revisão técnica Nuno César P. de Abreu. Campinas, SP: Papirus, 1995. 121 Para ver mais sobre este tópico: AUMONT, 1995. 122 Ibid., p.260.

[...] capacidade do espectador de identificar-se com o sujeito da visão, com o olho

da câmera que viu antes dele, capacidade de identificação sem a qual o filme nada

seria senão uma sucessão de sombras, de formas e cores, literalmente “não

identificáveis” em uma tela.123

A possibilidade de assistir a um filme depende desta identificação, mas esta capacidade,

no entanto, não é dada, ela se desenvolve culturalmente. Em uma sociedade como a nossa, que

tem as produções cinematográficas como um produto cultural acessível à grande parte das

pessoas, e razoavelmente comum, este processo pode se dar naturalmente, sem os choques que

ocorreram quando das primeiras projeções do cinematógrafo no fim de 1800.124

A identificação cinematográfica secundária se refere ao tipo de identificação mais

comentado e conhecido por todos, a identificação com a história, com os personagens. O primeiro

ponto levantado por Aumont sobre a identificação cinematográfica secundária, é uma

identificação primordial com a narrativa:

Essa identificação com a narrativa enquanto tal deve-se provavelmente, em

grande parte, à analogia, muitas vezes detectada, entre as estruturas fundamentais

da narrativa e a estrutura edipiana. Pode-se dizer que qualquer narrativa, de certo

123 AUMONT, 1995, p. 259. 124 “Esta história começa entre 1894 e 1895, quando os irmãos Auguste e Louis Lumière, sintetizando todos os aparelhos precursores, criaram e patentearam o cinematógrafo. Apresentaram sua invenção à sociedade científica em março de 1895 e, em dezembro do mesmo ano, em Paris, um público de 33 pessoas pagou 1 franco de ingresso para assistir ao que se pode considerar o primeiro espetáculo cinematográfico, uma fita de 10 minutos, que incluía a exibição da famosa ‘Chegada do trem na estação Ciotat’. [...] Maximo Gorki, entretanto, expressa esta intensidade ao relatar, num texto da época, a sensação que ele experimentou: ‘Surge um trem que, tal qual uma flecha, mergulha direto sobre o espectador. Cuidado! Ribombando na obscuridade, ele se apressa em transformá-lo num saco de pele esfolada, cheio de carniça humana e ossos quebrados, e teme-se que ele destrua essa sala, esta casa onde abundam o vício, as mulheres e a música, onde o vinho corre em torrentes, só deixando atrás dele ruínas e poeira. Mas, na realidade, não passa de um trem fantasma.’ ” SAMPAIO, C.P. O cinema e a potência do imaginário. In: BARTUCCI, Giovana (Org). Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000, p. 53; 54.

modo, e é nisso que ela fascina, revive a cena do Édipo, o confronto do desejo e

da lei.125

A narrativa desperta no espectador a sensação de que de alguma forma ela fala dele

também, como algo que lhe diz respeito profundamente, pois reproduz a estrutura edipiana, que

faz parte da constituição individual da personalidade já na primeira infância. Essa lembrança da

estrutura permanece ao longo da vida, pois é a partir da crise edipiana que o sujeito tem as

identificações secundárias que se sucedem e substituem durante toda a vida, pelas quais ele vai se

diferenciar e constituir sua personalidade.126

Este ponto da identificação cinematográfica secundária se constitui, junto com a

identificação cinematográfica primária, nos dois princípios, talvez indispensáveis, para que o

espectador possa de fato assistir ao filme e dar sentido a ele, pois sem estas, o cinema não

passaria de um desfile de fantasmas e sombras indecifráveis. É a partir desta identificação com a

narrativa e deste “dar sentido” ao filme, pela identificação com o sujeito do olhar para o qual as

cenas se organizam, que surge a identificação com determinados personagens. Os personagens

não são indivíduos com um caráter definido, eles constroem-se enquanto o filme avança. Esta

identificação acontece em decorrência das primeiras duas formas citadas, e depois que o filme se

acabou, pela lembrança, na qual os personagens aparecem como dotados de um perfil psicológico

125 AUMONT, 1995, p. 263. 126 “Conhecemos o lugar fundador do complexo de Édipo na teoria psicanalítica e o papel central que Freud proporciona a essa crise, à sua posição e à sua solução na estruturação da personalidade. Da mesma forma, para Jacques Lacan, o Édipo assinala uma transformação radical do ser humano, a passagem da relação dual própria do imaginário (que caracterizava a fase do espelho) para o registro do simbólico, passagem que vai permitir se constituir em sujeito, instaurando-o em sua singularidade..” AUMONT, Jacques. O filme e seu espectador. In: AUMONT, 1995, p. 247.

relativamente estável e homogêneo. Esta sensação é o que faz com que pensemos neles como

pessoas reais, com os quais acreditamos nos identificar. 127

Assim, todo este processo psicológico que entra em funcionamento quando os filmes são

assistidos, tem uma ligação com a linguagem própria do cinema, com a estrutura narrativa

apresentada, e com a relação convencionada que é instituída com o real. Segundo Vermelho, as

produções cinematográficas:

[...] obedecem a código de linguagem próprio, vão se constituir num arsenal

discursivo e de expressão do real, dotada de vida e de sentido para seus

telespectadores. Esse sentido construído, segundo alguns autores, se dá em função

da relação que se estabelece entre a visualização daquelas imagens e a nossa

constituição psíquica, em particular, instaurada por um processo de identificação,

ou seja, a relação que o espectador constrói com os personagens e com a história

narrada é uma relação de identificação narcísica.128

Pela ficção, acontece no cinema uma fusão entre fantasia e ilusão de realidade, o que o

diferencia das outras narrativas, é justamente a sua técnica, que possibilita a reprodução do real

com uma semelhança, que até a invenção do cinema, não se havia conseguido. Esta é a novidade

do cinema, a possibilidade de incrementar a reprodução do real com vários elementos. A

fotografia reproduz a aparência do real e congela sua imagem, o cinema introduz nessa

reprodução o tempo e o movimento, criando uma ilusão de real muito mais intensa. Pois os fatos

se desenrolam no tempo, e o duplo movimento, o da bobina que se desenrola e a ilusão de

127 AUMONT, 1995, p.265. 128 VERMELHO, 2003, p.109.

movimento representada, criam esta ilusão de real. Assim a imagem do cinema se aproxima da

imagem mental e, em decorrência disso, da imagem concreta129.

O cinema é chamado por Philippe Dubois de uma máquina de representação da ordem 3,

sendo precedida e constituída pela câmera obscura (máquina de ordem 1, pois é uma máquina de

pré-visão que organiza o olhar), e pela fotografia (máquina de ordem 2, pois parte da primeira e

realiza a inscrição da figura no suporte por meios mecânicos). A máquina de ordem 3 é uma:

[...] máquina de recepção do objeto visual, ou seja, posterior à imagem: de fato,

as imagens do cinema só podem ser vistas por intermédio de máquinas, quer

dizer, pelo e no fenômeno da projeção. Sem a máquina de projeção (e o que a

cerca), só se vê a realidade-película do filme (a fita, feita de imagens fixas), isto é,

só se vê a sua parte fotográfica.130

A imaterialidade da imagem fílmica condiciona sua recepção à sala do cinema, e no

escuro, à todos os mecanismos de identificação citados acima, pois estes mecanismos dependem

da instituição cinema, de todo o processo de se retirar do mundo por algumas horas e escolher

entrar em uma narrativa.

O fato de termos de nos deslocar até uma sala de projeção tem uma função. Ao

adentrar numa sala escura e nos posicionarmos na frente de uma tela gigantesca,

são criadas as condições espaciais para a fuga do real. Tudo fica lá fora e, muitas

vezes, com bastante ansiedade o espectador vai buscar alienar-se nessa sala

escura, buscar um pouco de alívio, de alento, de amor, mecanismos para canalizar

sua energia psíquica. No entanto, “[...] o cinema, ao nos mostrar imagens em

movimento, defronta-nos com o choque entre a força da ilusão das imagens da

realidade e a certeza de que se trata de truque”. Ou seja, ainda que obtenha um

129 DUBOIS, 1999, p.16. 130 Ibid., p. 6.

pouco de prazer durante a projeção, ao seu final tem que encarar novamente a sua

vida real, muitas vezes imbuído com um sentimento de frustração ainda maior e

tendo que lidar com esse sentimento.”131

O espectador fica no “meio do caminho”: sabe que está diante de uma produção cultural,

que só pode ser experienciada através de máquinas, mas ao mesmo tempo, os processos de

identificação imprimem nele com força, transportando-o para dentro da narrativa, dentro deste

mundo fictício que se parece muito com o mundo real. Como diz Vermelho, a fuga do real é

ansiada, pois proporciona um afastamento dos problemas e dificuldades enfrentados na vida real,

mas que, no entanto, continuam fora do cinema à espera do espectador assim que as luzes se

acendem.

O cinema vem aumentar a distância entre o sujeito e o real porque aumenta o número de

máquinas que se interpõem entre o sujeito e a construção simbólica (representação). A ilusão de

realidade proporcionada pelo cinema, e a proximidade que ele adquire com a vida cotidiana,

moldam, pelo mesmo processo que a fotografia, a compreensão do real. Assim, concluímos com

Aumont quando afirma que, olhando uma imagem visual reconhecemos nela a aparência do real,

e por este reconhecimento modificamos a forma de ver o próprio real, e este é um processo

constante e ininterrupto, já que cada vez mais temos acesso às imagens produzidas pelas mais

diferentes técnicas.

131 Vermelho completa e comenta a citação de SAMPAIO, 2000, p.54 apud VERMELHO, 2003, p. 111.

2.6 Televisão

Dentro do esquema da indústria cultural, a televisão aparece como uma síntese do rádio e

do cinema; combinando a característica do rádio de atender o consumidor a domicílio, com a

fusão de sons e imagens bidimensionais do cinema, que no caso da televisão, têm a mesma

propriedade que as imagens fotográficas: a miniaturização. “O próprio meio de comunicação,

contudo, insere-se no âmbito do esquema da indústria cultural e, enquanto combinação de filme e

rádio, leva adiante a tendência daquela, no sentido de cercar e capturar a consciência do público

por todos os lados.”132 A televisão prende todos os sentidos do espectador, não deixando espaço

para a reflexão, como faz também o cinema, e o fato de que isso aconteça dentro de sua casa,

potencializa a tendência do aparato de se infiltrar em todos os pormenores da vida das pessoas. A

televisão entra na casa do consumidor, invade um espaço que antes era isolado do mundo

exterior, de intimidade, privacidade, proteção. Com o fenômeno da indústria cultural dentro dos

espaços privados, este passa a ter um caráter de fora, pois nele circulam informações da rua que

antes só entravam por meio das narrativas dos membros da família, essa invasão modifica o

espaço privado. A televisão aproxima os produtos do espectador, porque traz a imagem

publicitária para dentro da sua casa, e justamente pela publicidade disseminada em todos os

programas, atualiza as necessidades impostas pelo aparato.

A televisão permite aproximar-se da meta, que é ter de novo a totalidade do mundo sensível em

uma imagem que alcança todos os órgãos, o sonho sem sonho; ao mesmo tempo, permite

introduzir furtivamente na duplicata do mundo aquilo que se considera adequado ao real.

132 ADORNO, 1987, p. 346.

Preenche-se a lacuna que ainda restava para a existência privada antes da indústria cultural,

enquanto esta ainda não dominava a dimensão do visível em todos os seus pontos.133

Quanto mais familiares se tornam os produtos da indústria cultural mais difícil se torna a

decodificação destes produtos, pois são naturalizados, e, enquanto tais, tomam parte da vida das

pessoas, não esteticamente, mas naturalmente. Torna-se quase impossível perceber essas imagens

como algo em si ao qual se deve atenção, concentração, esforço e compreensão, ou seja: “Fazer a

abstração da magnitude real do fenômeno [...]”134, percebê-las como uma construção intencional

e parcial, ao invés de um espelho, no qual se projetam os fatos tais como acontecem na realidade.

A imagem é tomada como uma parcela da realidade, como um acessório da casa,

que se adquiriu junto com o aparelho, cuja posse além do mais, aumenta o

prestígio com as crianças. Dificilmente será ir longe demais dizer que,

reciprocamente, a realidade é olhada através dos óculos da TV, que o sentido

furtivamente imprimido ao cotidiano volte a refletir-se nele.135

Se a primeira formatação da percepção da realidade se amoldou ao recorte fotográfico,

com a televisão essa confusão do real com a sua representação vem mais e mais se ampliar, já

que na televisão acontece a apropriação de mais elementos da realidade sensível que na

fotografia. Pois ao contrário do cinema, não depende de uma retirada da vida cotidiana – a

entrada na sala do cinema – a televisão traz o cinema para dentro das casas, com todas as suas

implicações psicológicas discutidas anteriormente. A inclusão do movimento e do som advindos

do cinema, junto da sensação de posse pela miniaturização que a fotografia já proporcionava,

aumenta o caráter ficcional do real, ou seja, acontece uma inversão baseada naquela confusão.

133 ADORNO, 1987, p. 346. 134 Ibid., p. 348. 135 Ibid., p. 349.

A gratuidade das imagens faz com que o espectador desvalorize sua presença, ele as tolera

desatentamente:

Elas devem dar brilho ao seu cotidiano cinzento, e se lhe assemelharem no

essencial: de sorte que são antecipadamente inúteis. O que fosse diferente seria

insuportável, porque recordaria aquilo que lhe é vedado. Tudo se apresenta como

se lhe pertencesse, porque ele próprio não se pertence.136

Como mais um produto da indústria cultural, a televisão se apresenta como um veículo de

adaptação, dá brilho ao cotidiano cinzento sempre-igual do espectador, pela ilusão de diferença

que marca os produtos da indústria cultural, reafirma mais uma vez a racionalidade tecnológica,

lógica que o espectador entende rapidamente por ser a mesma que o fatigou durante a jornada de

trabalho. O que fosse diferente, produzido a partir de outra lógica, seria insuportável, mostraria

uma liberdade na organização do pensamento que lhe é vedada. Se, como diz Adorno, podemos

afirmar que a realidade é olhada pelos óculos da TV, a percepção do real se transforma em

distância e sensação de posse de um real apreendido sempre de fora: o indivíduo se torna

espectador da sua própria vida e vítima dos seus fatos.

A sensação de posse e poder sobre as imagens tornam o espectador o senhor da realidade

apresentada no aparelho: “Os homenzinhos e mulherzinhas que se obtêm a domicílio tornaram-se

joguetes para a percepção inconsciente. Algo disso poderá recrear o espectador: ele os sente

como propriedade, da qual pode dispor e em relação à qual se sente superior.”137 Os personagens

que aparecem na televisão, nas novelas e seriados, são ainda mais estereotipados e rudimentares

dos que aparecem no cinema, podem ser facilmente identificados de acordo com seu tipo, além

136 ADORNO, 1987, p. 349. 137 Ibid., p. 348.

de proporcionar uma identificação no espectador que se dá “por um reconhecimento em uma

tipologia dos personagens: o bom, o mau, o herói, o traidor, o vencedor, o vencido etc., com o

qual o espectador o reconhecerá como um tipo e se identificará com esse ou com aquele

personagem.”138 A disseminação de estereótipos pela indústria cultural se torna a fonte dos

modelos de comportamento assumidos por uma grande maioria, e nesse caso, a influência da

televisão é preponderante; pois ela se encontra fixada dentro das casas e faz parte da vida

cotidiana de cada um.

Aquela ‘proximidade’ fatal da televisão, que também é causa do efeito

supostamente comunitário do aparelho, em torno do qual os membros da família e

os amigos, que de outra forma não saberiam o que dizer uns aos outros, se reúnem

em mutismo, não só satisfaz um desejo diante do qual nada de espiritual se pode

manter que não se transforme em propriedade, como ainda obscurece a distância

real entre as pessoas e entre as pessoas e as coisas. Ela se torna o sucedâneo de

uma imediação social que é vedada aos homens.139

A televisão remedia e substitui a relação entre as pessoas, se torna a voz dos diálogos,

mascarando a distância real entre elas. Assim, o meio de comunicação, que produz a ilusão de

real, semelhante a do cinema, e é entregue em casa como o rádio, ofusca a presença das pessoas e

do real. “Em vez das imagens representarem a realidade, as imagens passavam a ser percebidas

como definidoras da realidade. E a realidade abarcava nossa subjetividade e a percepção que

temos de nós mesmos”140 – e dos outros. Assim, Phillips aponta a confusão entre a imagem e a

realidade, quando as imagens passam a ser o que afirma a realidade das coisas e de nós mesmos.

No mesmo sentido, Bourdieu afirma que “[...] insensivelmente, a televisão que se pretende um 138 VERMELHO, 2003, p. 112. 139 ADORNO, 1987, p. 350. 140 PHILLIPS, Lisa. Photoplay: A arte contemporânea na fotografia. In: Photoplay: New York: Chase Manhatan, 1994, (Catálogo de exposição), p. 17.

instrumento de registro torna-se um instrumento de criação de realidade.”141 Como Phillips,

Bourdieu comentou a inversão que vem acontecendo já desde a invenção da fotografia – senão

antes – de que as imagens produzidas por máquinas são tomadas como a própria realidade, e esta,

é deixada em segundo plano, a realidade que descobrimos nos meios de comunicação, é a

realidade oficial. A relação do sujeito com a televisão e, por conseguinte, com essa realidade, e

suas conseqüências é que são preocupantes. “A forma e o conteúdo do que é veiculado pela

televisão encontram-se intimamente ligados. O seu grande poder encontra-se na forma de

recepção que [...] impede o controle sobre o eu consciente.”142

Podemos pensar que o relacionamento que se estabelece com uma imagem é sempre

unilateral, pois o outro não existe: o outro-imagem é personificado pela projeção dos meus

desejos; nesse sentido, o outro que não é imagem (ou seja, é outro ser humano), também é

obrigado a satisfazer meus desejos, desde que queira se relacionar comigo.

Podemos ainda supor que a distinção entre subjetividade e alteridade fica enfraquecida: o

outro é o outro dentro de mim, o que diminui a possibilidade de comunicação entre as pessoas, a

troca de experiências e de conhecimentos, pela instituição do individualismo, da manipulação, da

insatisfação; nessa situação, as pessoas não poderiam aceitar as diferenças, pois estariam

constantemente vivendo suas projeções imaginárias, o que significa, não conseguir apreender o

outro como ser distinto. Este é um dos pontos levantados por Crochik143 quando discute o

preconceito, a impossibilidade de ter experiências reais e imediatas com a realidade e com o

outro.

141 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Tradução: Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 29. 142 VERMELHO, 2003, p. 121. 143 CROCHIK, José Leon. Preconceito: indivíduo e cultura. São Paulo: Robe Editorial, 1997.

Os estereótipos são proporcionados pela cultura e se mostram propícios à

estereotipia do pensamento do indivíduo preconceituoso, fortalecendo o

preconceito e servindo para sua justificativa, ou então são formados à base de

mecanismos psíquicos que tentam perceber a realidade de forma primitiva, sendo

estes mesmos mecanismos a base do pensamento estereotipado.144

Chochik acrescenta que os estereótipos não são utilizados unicamente pelos indivíduos

preconceituosos ou com predisposição ao preconceito, todas as pessoas em nossa sociedade se

servem dos estereótipos de alguma forma, os compreendem e os utilizam.

Nesse sentido ainda, a indústria cultural oferece os clichês que aliviam a angústia da

experiência e da reflexão, pois estes clichês ou estereótipos, que fragmentam o mundo,

dicotomizando-o em certo e errado, bom e mau, provém da própria realidade que se organiza de

forma binária, classificatória, esquemática, igual aos processos de produção.145 E dessa forma o

processo de produção marca progressivamente todos os setores, separados e classificados, da vida

humana – o trabalho, o lazer, o amor, a família, os amigos, cada um com seus horários e

comportamentos determinados.

Com relação a esta forma de estar no mundo, podemos perceber que a televisão tem uma

linguagem unidirecional, um discurso imposto, que não oferece possibilidade de resposta, o que

pode ser visto nas pessoas como um comportamento “autista” é disseminado pela televisão 24

horas por dia. E é esta relação unidirecional e impositiva que faz com a televisão seja um meio de

comunicação perfeito para a disseminação de falsas verdades no formato publicitário.

As imagens veiculadas pela televisão se desenrolam independentemente da presença dos

espectadores, os programas se sucedem uns aos outros continuamente, com uma programação

fixa a qual o espectador deve se adaptar, como explica Dubois:

144 CROCHIK, 1997, p. 18 145 Ibid., p.20

O que é próprio da maquinaria televisual é a transmissão. Uma transmissão à

distância, ao vivo e imediata. Ver, por toda parte onde haja receptores, o mesmo

objeto ou acontecimento, em imagem, em tempo real e estando sempre longe ou

em outro lugar. [...] A imagem-tela da transmissão direta de televisão, que nada

mais tem de lembrança já que não tem passado, doravante viaja, circula, propaga-

se, sempre no presente, onde quer que esteja. [...] Imagem amnésica cujo

fantasma é o perpétuo planetário ao vivo, ela abre a porta à ilusão (à simulação)

da co-presença integral. Assegurando maquinalmente a multitransmissão em

tempo real da imagem (não importa que imagem), a televisão, no fundo,

transformou o espectador – que, no escuro e no anonimato da sala de cinema,

tinha ao menos uma forte identidade imaginária – numa espécie de fantasma

indiferenciado, a tal ponto eclipsado pela luz do mundo que se tornou

completamente transparente, invisível, não existe mais como tal (ele é, na melhor

das hipóteses, uma cifra, um alvo, um índice de audiência): uma onipresença

fictícia, sem corpo, sem identidade e sem consciência.146

Dubois se refere à forma intensa com a qual as imagens da televisão são despejadas

ininterruptamente pelos aparelhos nas casas, ou aonde houver receptores; uma transmissão que

não depende da presença das pessoas, como o cinema, que depende das salas cheias. A televisão

é a consumação da percepção seriada dos seres humanos, pois entrega em casa todo um conjunto

de produtos e mensagens iguais a todos; as possibilidades de escolha dentro do aparelho são

enfatizadas e difundidas; mas, como em todos os produtos da indústria cultural, o único conteúdo

que transmitem é a unidade da técnica, é a possibilidade de transmissão à distância, ao vivo e a

cores.

Em todo caso, pode-se encarar um meio de comunicação que atinge incontados

milhões e que freqüentemente supera qualquer outro interesse, sobretudo no caso

146 DUBOIS, 1999, p. 8.

de jovens e crianças, como uma espécie de voz do espírito objetivo, ainda que

este não mais resulte espontaneamente do jogo de forças da sociedade mas seja

planejado em moldes industriais.147

É justamente sob moldes industriais que o espírito objetivo se afirma com maior força,

achatando as diferenças e exaltando sua onipotência, proporcionando um divertimento contínuo e

descartável.

“A televisão comercial evita tudo que possa lembrar, por mais remotamente que seja, as

origens da obra de arte no culto e sua celebração reservada a motivos especiais.”148 Evita o que

possa lembrar as funções da obra de arte como construção simbólica, como mediação entre o

sujeito e o real, e traz à tona a inutilidade de imagens vazias. A produção em série das imagens,

sua vulgaridade e popularidade, transforma a linguagem visual na linguagem do mundo comum;

a potência de uma imagem não é vista como tal, e apesar dos efeitos desta potência se manterem,

ela é absorvida, e não contemplada.

Desde sua invenção, a televisão já demonstrava o grande empobrecimento estético da

produção e recepção dos bens culturais, que manipulados pela reprodutibilidade técnica

transformaram a experiência da cultura em veículo de adaptação; pois como afirma Adorno, o

esquematismo destas produções isenta o espectador de qualquer necessidade de decodificação

dos elementos percebidos, pois já são decodificados pela indústria e entregues prontos para o

consumo. Nenhuma qualidade interpretativa, crítica ou seletiva é requisitada, apenas a recepção

passiva das informações emitidas.

147 ADORNO, 1987, p. 351. 148 Ibid., p. 349.

2.7 Imagem Informática

Na sociedade contemporânea temos como mais recente tecnologia da imagem, a

linguagem digital; esta, que surge na década de 1970 em pesquisas científicas e militares, tornou-

se, em pouco tempo, acessível a um grande número de pessoas. Hoje, no início do século XXI, é

comum possuir um PC (Personal Computer) em casa. A rede de internet que conecta todos os

computadores e permite a comunicação entre eles, ganha cada vez mais adeptos. Mas por ser uma

tecnologia nova e, portanto cara, exclui do seu uso uma grande maioria, pelo menos nos países do

chamado 3º mundo. No entanto, esta é uma situação que foi vivida no surgimento da televisão, e

hoje em dia, são muito poucas as pessoas, mesmos nos países do chamado 3º mundo, que não

possuem uma televisão em casa. Assim, podemos presumir que devido ao aumento progressivo

de seus usuários, em pouco tempo, o PC será mais um eletrodoméstico indispensável em

qualquer residência.

Pode-se dizer que as imagens informáticas já são acessíveis a todas as pessoas em nossa

sociedade, dado que grande de parte dos cartazes, outdoors, fotografias de revistas, programas de

televisão, produções cinematográficas, já são, senão produzidas por computador, manipuladas ou

finalizadas com o auxílio deste meio. Em muitos casos, não notamos diferença na aparência

destas imagens, quando comparadas com as produzidas pelos meios analógicos, pois se esmeram

na técnica para se aproximar e aperfeiçoar a semelhança com o real. Este dado é importante no

que toca a produção das imagens informáticas, pois, segundo Dubois, a sua grande diferença com

relação às outras técnicas está no fato de que com as imagens informáticas:

[...] pode-se dizer que é o próprio ‘Real’ (o referencial originário) que se torna

maquinista, já que é gerado pelo computador. Isto transforma fundamentalmente

o estatuto dessa ‘realidade’, entidade intrínseca que era captada pela câmera

obscura do pintor, inscrita pela química fotográfica e projetada ou transmitida,

em seguida pelo cinema e pela televisão. Não há mais necessidade desses

instrumentos de registro e reprodução, já que a partir de agora o objeto ‘a ser

representado’ pertence, ele próprio, à ordem das máquinas: é gerado pelo

programa, não existe fora dele, é o programa que o cria, molda-o e modela-o à sua

vontade.149

Nas produções digitais, o real exterior é tomado como modelo estrutural e não como

matriz, retomado para conferência da semelhança. Neste caso o que importa é o “real” construído

dentro das possibilidades do programa, que é aperfeiçoado também com este intuito, de aumentar

a perfectibilidade. O que Dubois chamava no livro O Ato Fotográfico, de relação indicial

estabelecida com o real pela fotografia, é aqui abandonado. Na fotografia existe a impressão

luminosa do real no papel sensível, é uma relação de toque, a imagem fotográfica – como a

cinematográfica e grande parte da televisiva – deriva do real fisicamente. A representação

dependia do real, mas com as imagens informáticas: “[...] é a própria idéia de representação que

perde todo o seu sentido e o seu valor. A representação pressupunha um distanciamento original

entre o objeto e a sua figuração, uma barra entre o signo e o referente, uma distância fundamental

entre o ser e o parecer.”150 Agora, com o “real” construído dentro da máquina, ou como chama

Dubois, um real maquinista, este distanciamento desaparece, a figuração e o objeto são um só.

Nesse sentido, a imagem que aparece no computador é sempre virtual, potencial, ou seja, é uma

atualização dos possíveis do programa, e sendo assim pode ser vista como um acidente, no

sentido de que qualquer atualização das potencialidades do programa poderia ocupar o seu lugar.

149 DUBOIS, 1999, p. 9. 150 Ibid., p. 9.

[...] a imagem informática, sabemos, é uma imagem puramente visual. Ela apenas

atualiza uma possibilidade de um programa matemático; reduz-se, em última

instância, não a um sinal analógico, mas a um sinal digital, isto é, a uma

seqüência de cifras, a uma série de algoritmos.151

Portanto a referência da imagem informática é uma seqüência numérica binária. “A partir

do momento em que a máquina não reproduz mais, mas gera o seu próprio real, que é a sua

própria imagem, é evidente que a relação de semelhança não faz mais sentido, já que não há mais

representação nem referente.”152 É nesse sentido que surge esta realidade paralela chamada

realidade virtual, que não passa da atualização de uma das potencialidades do programa, essa

realidade é potencial, e por isso existe no momento em que é acessada, não existe em si.

É o triunfo da simulação, na qual a impressão de realidade é substituída pela

impressão de presença, na qual o usuário experimenta a simulação como um real,

na qual não somente a imagem não tem mais corpo, mas o próprio real parece ter

se volatilizado, dissolvido, descorporificado em uma abstração sensorial total.153

A realidade virtual que aperfeiçoa sua técnica para proporcionar “vivências” digitais é

cada vez mais procurada pelas pessoas. E aqui, não precisamos ir tão longe citando as luvas

sensoriais ou os óculos digitais, a simulação da presença é vivida nos chats e seus derivados, de

forma tão intensa, que de acordo com Vermelho, estas são chamadas comunidades virtuais.

Possibilitam a comunicação entre duas ou mais pessoas ao mesmo tempo (a comunicação entre

duas pessoas, sincronizada temporalmente, já é possível desde a invenção do telefone) e, portanto

151 DUBOIS, 1999, p. 18. 152 Ibid., p. 12. 153 Ibid., p. 18.

podem ser considerados espaços de socialização. “Enquanto as mídias anteriores eram mídias

ditas unidirecionais, ou seja, a mensagem era transmitida numa única direção, a internet permite a

bidirecionalidade, ou seja, de ambas as pontas existe produção de discurso.”154 E isto é

significativo no sentido de que a posição do usuário não é passiva frente ao que recebe, ele pode

intervir no contato com o computador definindo em que espaços entrar, quando e como.

Quanto ao significado de comunidade que a internet vem recebendo, é interessante notar,

como adverte Vermelho, que este significado se liga mais a um ideal de comunidade livre,

soberana e justa, que à real; mas, se no real não realizamos este ideal, no virtual igualmente isso

não acontece. Pois, mesmo que circunscrita a um sistema próprio e diferente do real, as pessoas

que participam desta suposta comunidade de homens livres, são as mesmas que participam da

sociedade real, com a crescente opressão, violência e sofrimento. 155 Segundo Vermelho, no

espaço virtual:

[...] cria-se uma sensação de comunidade quando na realidade o que temos são

pessoas isoladas, imaginando-se num grupo. [...] o que se torna relevante é a

relação do usuário com a socioespacialização da tela, pois na medida em que sua

consciência fica toda voltada para aquele espaço, [...] o espaço imediato [...] fica

em segundo plano, deixa de ser centralizado pela consciência.156

A simulação da presença e a interação em tempo real faz com que os usuários deixem-se

absorver pelo mundo virtual. A possibilidade de escolha de o que ver, o que ler, com quem

conversar, acaba por descartar as possibilidades de experiências imediatas que o mundo real

154 VERMELHO, 2003, p.131. 155 Ibid., p. 133-4. 156 Ibid., p. 137.

oferece, nos seus imprevistos, encontros e desencontros, situações inesperadas, que fazem parte

do processo de socialização e construção da personalidade.

A simulação do real é uma potencialização da troca do real por imagens, como discutida

nos tópicos anteriores, pois na simulação esta confusão é ainda mais intensa. Existe um real

paralelo, a realidade virtual, onde o espectador não está passivo, ele interage com a máquina. As

pessoas têm a sensação de que participam desta comunidade virtual, e com isso a distância entre

o sujeito e o real aumenta, pois o sujeito pode ficar horas absorvido nesta outra realidade,

sentindo como se estivesse vivendo lá dentro: compra, conversa, namora, escuta música, assiste a

filmes, lê reportagens e livros, sem se mexer, acoplado à máquina. A ligação com o real fica

enfraquecida, se torna secundária.

A percepção do mundo por meio de imagens é característica da sociedade atual, sempre

pronta a lidar com a fantasia. Segundo Jean Baudrillard, a apreensão do real por imagens é tão

falsa quanto a tentativa de entender a imagem visual como sendo uma representação do real.

À decepção com uma realidade entregue à superficialidade da imagem seria

preciso opor a decepção com uma imagem entregue à expressão do real. É só

libertando a imagem do real que lhe conferiremos a sua potência, e é só

conferindo à imagem a sua especificidade (seu idiotismo, diria Rosset) que o

próprio real pode encontrar sua verdadeira imagem.157

Uma representação é sempre uma construção que parte de uma redução: de escala, de

proporções, de conteúdo, de natureza, de materialidade.158 A partir da fotografia essa redução é

ainda mais evidente se concordarmos com Baudrillard que a imagem fotográfica não é uma

157 BAUDRILLARD, Jean. A troca impossível, Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2002, p. 148 158 O que não significa estabelecer uma hierarquia do real para a representação, aqui a redução é tratada como uma compressão a tal ponto que o real adquira uma outra aparência.

representação, mas uma ficção. Sendo uma ficção do real, é uma simulação que suprime a

materialidade do mundo, faz um recorte e dentro dele recria o olhar humano imitando a

perspectiva, o que resulta em uma relação espacial: mas uma relação espacial plana. É o

achatamento de todos os componentes da imagem a um único plano e a uma única materialidade;

equivalência total da superfície que afirma a literalidade do objeto. A imagem fotográfica é a

abstração de duas das quatro dimensões que se percebe no real (altura, largura, profundidade e

tempo), e a percepção e a compreensão da imagem estão fundadas em uma capacidade de

imaginar e assim restituir as quatro dimensões à imagem afim de decodificá-la. Apesar disso, o

princípio fotográfico, faz com que o real seja substituído pela sua superfície, é a redução

fotográfica que permite a sensação de posse do real por meio da sua imagem. Mas “entre a

realidade e sua imagem, a troca é impossível, há, na melhor das hipóteses, uma correlação

figurativa”.159 A experiência com a imagem visual é uma experiência dentro do real, não sobre o

real.

Dentro deste contexto da troca da realidade por imagens, podemos pensar na formação do

sujeito como resultado desta dinâmica, uma poderosa arma de dominação e manutenção do status

quo. Segundo Theodor Adorno, a Indústria Cultural, é uma pequena fração dos monopólios

econômicos que comandam a sociedade. É o veio pelo qual a diversão atua como reguladora dos

ânimos da população, contendo os ímpetos individuais de revolta, um veículo de adaptação. A

Indústria Cultural exerce sua função pela imposição de um modelo de diversão que reproduz a

condição do trabalho nos momentos de lazer, com o objetivo de sufocar a tentativa de escape da

realidade massificante, mantendo os homens ocupados desde a saída do trabalho até seu retorno,

159 BAUDRILLARD, 2002, p. 146.

com atividades que reafirmam sua condição e o preparam para a próxima jornada. “A diversão

favorece a resignação, que nela quer se esquecer.”160

Olhar vitrines, assistir filmes, ver televisão, fazer turismo: atividades de lazer “oferecidas”

pela Indústria Cultural que preenchem a vida do sujeito com “sonhos de consumo”; criadas a

partir do princípio fotográfico de registrar imagens, de guardar recortes da realidade, transferem a

importância das vivências dos processos históricos para cenas que registram estados diáfanos e

eternalizados em fotografias. Propiciam o consumo das virtualidades dos processos, sem

proporcionar as vivências destes processos; são as ilusões de efetivação, que projetam para um

futuro inexistente a felicidade. E essa promessa a ser cumprida, amarra o sujeito contemporâneo

numa trama de simulacros, alimenta o sistema e reduz o sujeito a uma peça da engrenagem

social, na dinâmica do consumo compulsivo, e na passividade da massificação e da alienação.

160 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 133.

CAPÍTULO III EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE DAS IMAGENS

A abordagem da educação na Sociedade das Imagens remete à articulação entre dois

campos: cultura e educação, um binômio que não pode ser desconsiderado no processo de

formação. Mas para pensar estes dois campos hoje, é necessário ter em mente, como discutido no

capítulo anterior, que na sociedade administrada, a cultura deve ser pensada em função das

transformações que assume com a indústria cultural; e a educação, como inserida neste contexto,

pelas transformações que sofre nas mesmas condições. Embora cultura abranja também as

produções humanas dentro da filosofia, religião, ciência, para fins deste trabalho, será pensada na

sua ligação com a arte; e, com a tecnologia, esta pela influência que vem exercendo na arte e na

educação. Nesse sentido, a educação será analisada na sua articulação com a cultura, como hoje

se estabelece na sociedade administrada, e, portanto, a indústria cultural.

No primeiro capítulo refletimos sobre a sociedade atual como a Sociedade das Imagens,

essa discussão girou em torno da organização social em função da racionalidade tecnológica e, da

concepção de que progressivamente as imagens tecnicamente produzidas e reproduzidas tomam

parte na vida das pessoas. Este processo se dá em função de uma imbricação da cultura e da

civilização, pelo engolfamento da primeira pela última e, da administração social das

necessidades individuais. Como disse Marcuse, a cultura se coloca na sociedade industrializada e

tecnológica como veículo de adaptação. O que outrora era um espaço destinado à denúncia e à

reflexão crítica sobre os problemas da sociedade e do indivíduo, se tornou uma ferramenta de

ajustamento às regras e comportamentos exigidos para a manutenção do aparato. “Resultado: os

conteúdos culturais tornaram-se pedagógicos e edificantes, algo relaxante – um veículo de

adaptação.”161 A tradução dos conteúdos das obras da “cultura”, em idéias operacionais e

referidas aos comportamentos individuais, é que os torna “edificantes” e pedagógicos, no sentido

de transmitir os ditames do aparato, de forma que sejam absorvidos pelos indivíduos

desapercebidamente, ou seja, nos seus momentos de lazer, pois como afirma Adorno, cultura

agora se resume à diversão.

Os produtos da indústria cultural estão presentes em todos os ambientes, de forma tão

intensa que já não os percebemos mais; estamos acostumados com sua presença, e principalmente

com sua substituição constante. A linguagem visual assume grande importância na indústria

cultural, passando a ser sua linguagem “oficial”, podemos dizer que os textos estão, de certa

forma, submetidos a ela: todos os dias novos cartazes aparecem nos muros, novos jornais nas

bancas e, na televisão sua velocidade é tal que não conseguimos fixar as imagens que duram

décimos de segundos.

O convívio com essas imagens faz com que não nos preocupemos em decodificar a

pluralidade de discursos que elas carregam: nós as toleramos. Mas nossos olhos podem ver muito

mais do que nós nos damos conta, e a displicência com as imagens nos deixa vulneráveis às

mensagens que elas possam trazer: nos deixa vulneráveis à sua função de veículo de adaptação.

Assim, segundo Adorno: “Quanto mais completo o mundo como aparência, tanto mais

inescrutável a aparência como ideologia.”162 A ideologia não é mais redutível pura e

simplesmente a um interesse parcial, não podemos identificar um sujeito contra quem nos voltar,

está em todas as partes a uma mesma distância do centro.163 A aparência do mundo transmitida, é

de uma sociedade livre, onde as pessoas são autônomas e podem se desenvolver segundo suas

próprias determinações, o que, como vimos, não passa de uma falsa ideologia, de um engodo

161 MARCUSE, 1998, p. 158; 160. 162 ADORNO, 1987, p. 347. 163 Id., 2001, p. 21.

usado como forma de controle. Sendo que a indústria cultural é uma pequena fração de todo o

mecanismo de adaptação social que opera no sentido de manter a ordem vigente e o aparato,

percebemos que todas as instâncias sociais convergem para o mesmo fim.

Nessa perspectiva, a educação pode ser compreendida como estando em função desta

ideologia que perpassa todos os âmbitos da sociedade, uma vez que a escola se coloca como uma

das instituições responsáveis pela formação do indivíduo, na qual este entra em contato com a

cultura de forma sistematizada, mas este contato não depende exclusivamente da escola, ele se dá

durante todo o processo de socialização.

A educação proposta pelos iluministas tinha como objetivo a formação do sujeito

autônomo, mas esta idéia nunca se efetivou e parece cada vez mais distante na sociedade

contemporânea. Como afirma Crochik: “A educação, em seu sentido amplo, é vista como aquela

responsável pela constituição de um indivíduo que, como a filosofia ocidental iluminista propôs,

deveria ter a autonomia da razão [...]”164, esta concepção da educação, guiada pelos ideais

iluministas, pode ser vista como uma das metas da cultura para a sociedade, como discutido no

primeiro capítulo, mas como as outras metas propostas e professadas, não foi atingida, como

completa Crochik:

[...] porque ao mesmo tempo em que transmite informações, hábitos e valores, ao

não refleti-los em nome da emancipação, torna-os externos aos indivíduos. É

nesse sentido que podemos entender a afirmação de Adorno de que se as

necessidades individuais sempre foram mediadas socialmente, hoje são externas

ao indivíduo e exigem sua mera adaptação às regras do jogo da publicidade.165

164 CROCHIK, José Leon. Notas sobre psicanálise e educação em T.W. Adorno. In: Contemporaneidade e Educação: Atualidade da escola de Frankfurt. Vanilda Paiva (Org.), revista semestral temática de ciências sociais e educação. Instituto de estudos da cultura e educação continuada, São Paulo, ano 1, n. 0, set. 1996, p. 90. 165 Neste trecho, Crochik se refere ao texto de T.W. Adorno: Acerca de la relación entre sociologia y psicologia, p 49 apud CROCHIK, 1996, p.90.

E assim, temos na educação mais um dos mecanismos de adaptação e controle, pela

externalidade das informações, hábitos e valores que transmite irrefletidamente, e, que nesse

sentido, se tornam heterônomos. Portanto, o indivíduo que se quer autônomo, deve manter com a

cultura, uma dupla relação, pois ao mesmo tempo em que é formado por ela, e que nesse sentido

nela se reconhece; deve se colocar como sua antítese, negando-a quando percebe sua

irracionalidade e violência. “A irracionalidade cultural caracteriza-se pela exigência contínua do

sacrifício individual que não é compensado, traindo assim a promessa de constituir indivíduos

livres, autônomos, capazes de buscar a felicidade no objeto sem que haja a ameaça que sustenta

aquele sacrifício.”166 A indústria cultural promete a felicidade e os meios para alcançá-la, mas ao

mesmo tempo, quebra sua promessa e projeta a realização da felicidade para mais adiante,

promovendo a heteronomia e a dependência.

Pensando na cultura e na sua relação com a formação dos indivíduos, concordamos com

Crochik quando fala que:

[...] a democratização dos bens culturais acabou nivelando por baixo a educação,

permitindo aquilo que Adorno denominou de pseudoformação. [...] A

pseudoformação, inimiga de qualquer formação, se expressa na superficialidade

com a qual os dados da cultura são apresentados e incorporados. Do lado da

cultura isto significa a sua banalização; do lado do indivíduo, o seu

enfraquecimento.167

Uma das facetas da pseudoformação se refere à formação da subjetividade com base em

um contato com a cultura por meio de informações, nas quais são transformados os

conhecimentos. A informação, como explica Benjamin, é um evento impregnado de explicações,

166 CROCHIK, 1996, p.91. 167 Id., 1997, p.120-121.

e “[...] recebe sua recompensa no momento em que é nova; vive apenas nesse momento; deve se

entregar totalmente a ele e, sem perder tempo, a ele se explicar.”168 Nesse sentido, as informações

são um “barateamento” do conhecimento sobre o mundo, se substituem umas às outras

constantemente e renovam-se ininterruptamente. Impregnadas de explicações, as informações não

permitem ao sujeito sua própria elaboração, pois recorrem a um registro positivista dos dados,

que usurpam ao sujeito o esquematismo, e se firmam sobre esquemas estereotipados do

pensamento e da realidade. Segundo Kant169, o esquematismo é o único e verdadeiro meio de se

estabelecer uma relação com o objeto, ou em outras palavras, se produzir conhecimento.

No texto Esquematismo e semiformação170, Rodrigo Duarte faz uma explanação do

assunto tal como aparece na obra de Adorno, Theorie der Halbbildung (Teoria da

Pseudoformação), relacionando-o com textos da Dialética do Esclarecimento de Adorno e

Horkheimer e da noção de esquematismo desenvolvida por Kant. Na imbricação destas

referências, o autor afirma que “[...] a semiformação não significa pura e simples falta de cultura,

mas o resultado de um processo planejado de supressão das possibilidades libertadoras até

mesmo da incultura [...]”171, pois a pseudoformação significa uma falsa formação, fundada em

falsos valores. Nesse sentido o autor completa seu pensamento com uma citação de Adorno, na

qual este afirma que “[...] aquilo que é semicompreendido e semi-experienciado não é o estágio

168 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – volume II. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987c, p.276. 169 DUARTE, Rodrigo. Esquematismo e semiformação. In: Educação e Sociedade: Dossiê “Adorno e a Educação”. Revista de Ciência da Educação. nº 83, v. 24 – Agosto 2003. São Paulo: Cortez; Campinas: Cedes, 2003, p. 441-457. 170 Aqui o termo semiformação é um sinônimo do anteriormente utilizado pseudoformação, mas devemos atentar que possuem significados diferentes. Enquanto semiformação indica uma formação incompleta e dá a entender que esta pode ser completada; o termo pseudoformação indica uma falsa formação, fundada em falsos valores. Esta diferença advém das possibilidades de tradução da palavra Halbbildung do alemão, Halb significa metade, meio e Bildung formação, cultura, educação, dando margem para a tradução semiformação. Mas o conceito empregado por Adorno se refere a uma formação falsa que se mostra aparentemente completa, portanto o termo pseudoformação, empregado na tradução espanhola do mesmo texto utilizado por Duarte, Theorie der Halbbildung, se mostra mais apropriado, e será mantido neste trabalho, somente sendo empregado semiformação nas citações retiradas do texto de Duarte. Ibid. A tradução dos termos do alemão foram retiradas do dicionário: TOCHTROP, Leonardo. Dicionário alemão-português. 9. ed.. São Paulo: Globo, 1996. 171 Ibid., p.445.

prévio da cultura, mas seu inimigo mortal.”172, ao contrário do que se poderia pensar, ou seja, que

um contato precário com a cultura seria melhor que nenhum. Porque esta pseudo-experiência não

é percebida como tal, ela é vivida pelo sujeito como experiência completa, este é o grande

engodo proporcionado pela indústria cultural – um dos mecanismos pelos quais a

pseudoformação se dá –; ao sujeito é oferecida pseudoformação pelos produtos da indústria

cultural, como se fosse a formação pela experiência com a cultura. Assim, as camadas menos

favorecidas da população a quem sempre foi negada a “cultura”, antes que pudessem se “formar”,

tornaram-se facilmente presas da ideologia, ou da indústria cultural, pois como afirma Duarte:

Todas as tentativas – mesmo as bem-intencionadas – de se superar essa situação

por meio de projetos de “educação popular” (Volksbildung) padecem, segundo

Adorno, da crença de que a tradicional exclusão do proletariado da cultura pode

ser revogada pela ‘mera’ cultura, isto é, sem uma subversão na própria ordem

burguesa, que pressupõe e determina aquela exclusão.173

Neste ponto, Duarte deixa entrever uma das origens da pseudoformação, pois a educação

destinada a essas camadas menos favorecidas sempre foi um projeto das camadas dominantes,

com o intuito de que os trabalhadores adquirissem o mínimo de educação necessária para

aumentar a produção, desenvolvendo as habilidades que possibilitassem à adaptação aos novos

meios de produção. Esse processo leva necessariamente a uma adaptação à ordem vigente, pois

como afirma Chochík:

[...] a mecanização crescente do trabalho não exige um alto grau de educação,

mas sim a adaptação aos procedimentos da máquina, e um simples treinamento

172 ADORNO, T. W. Teoria da Semiformação, p. 111 apud DUARTE, 2003, p. 445. 173 DUARTE, 2003, p. 443-444.

pode propiciar um desempenho adequado, o que leva a própria educação, tal

como pensada em séculos passados, a ser menosprezada.174

Levando, segundo Duarte, a uma:

[...] confirmação, vinda ‘de baixo’, da tendência predominante na sociedade

burguesa tardia: a supervalorização do conhecimento que possibilita a dominação

da natureza e o menosprezo de tudo o que se relaciona com o âmbito cultural,

sendo que tudo, no limite, é reduzido ao desempenho de tarefas técnicas.175

Assim podemos recordar a tradução dos conteúdos das obras de arte, literatura e filosofia

em idéias operacionais e referidas aos comportamentos, e podemos ainda perceber que o

conhecimento instrumental oferecido como ‘formação’ para a população, transpõe os limites

desta “educação popular” e atinge todo o sistema educacional e resulta na crise educacional que

hoje vivemos, como explica Chochík:

Assim a educação que se baliza neste século, pelas necessidades do mercado e

tenta preparar o aluno para ele, depara-se com um mercado que necessita cada vez

menos de trabalhadores devido à crescente automatização, os quais, por sua vez,

cada vez menos precisam de educação, além da básica, para se adaptar àquela. De

outro lado, aquilo que ainda resta da educação que não se refere ao mercado traz a

marca da inutilidade, que se associa à superficialidade com que é transmitida,

perdendo, assim a possibilidade de levar o aluno a refletir sobre a inutilidade que

marca a todos nós, uma vez que cada vez mais somos prescindíveis, isto é,

substituíveis.176

174 CROCHIK, 1997, p. 120. 175 DUARTE, 2003., p. 444. 176 CROCHIK, op. cit., p.124.

A pseudoformação é, na educação, a realização do que aconteceu com a cultura quando

de sua assimilação pela civilização, é a educação realizando com o indivíduo o que o aparato

prescreveu como o destino da cultura. Sendo que as duas esferas, a educação e a cultura, estão

intimamente relacionadas, os dois processos se encontram e completam, pois se a cultura se

transforma, na sociedade administrada, em veículo de adaptação, a educação não foge a este

destino.

Dentro deste contexto, uma questão importante a ser analisada se refere a própria

profissão de ensinar, isto porque, estando a educação inserida no aparato e com uma função

definida no processo civilizatório, é permeada pela lógica do sistema como qualquer outra

instituição, o que pode ser visto claramente com a transformação do ensino em negócio. Se a

civilização compra e vende cultura, os indivíduos compram e vendem conhecimentos.

Hoje, em vista da coisificação da profissão de ensinar que já se anuncia, entra em

cena uma certa reviravolta. É perceptível também uma mudança de estrutura em

relação ao professor universitário. Nos Estados Unidos, onde tais procedimentos

são muito mais pronunciados que aqui na Alemanha, já faz muito tempo que o

professor passou gradual, mas penso que irresistivelmente, a ser um vendedor de

conhecimentos, ao qual se lastima um pouco porque não é capaz de tirar melhor

proveito destes em seu próprio interesse material. [...] tal racionalidade-relativa-

aos-fins reduz o espírito a seu valor de troca, e isto é tão problemático como todo

o progresso dentro do “status quo”.177

Aqui, Adorno fala em uma época na qual a “coisificação da profissão de ensinar” ainda

estava se insinuando como possível; hoje, no entanto, percebemos este processo já estabelecido

em grande parte das instituições de ensino e disseminado por um grande número de professores e

177 ADORNO, 1995, p.91.

alunos. A transformação do conhecimento em mercadoria modifica drasticamente a relação

professor-aluno, e destes, individual e coletivamente, com o conhecimento; pois, tendo o

conhecimento como mercadoria, sua busca se resume à busca por um meio que possibilite algum

fim. O conhecimento deixa de ser um fim em si mesmo, como fomento da autonomia e da

liberdade, para se transformar em instrumento na luta pela sobrevivência. A pergunta pela

utilidade e aplicabilidade do conhecimento destrói a finalidade do conhecimento, pois a utilidade

que se busca é material e não espiritual (no sentido proposto por Adorno).

3.1 Formação de Professores

Pensando na coisificação da profissão de ensinar, encontramos no texto de Sonia Kramer

e Maria Luiza Oswald: Leitura e escrita de professores em três escolas de formação178, uma

análise que esclarece um dos aspectos do processo de coisificação. Enquanto o texto de Adorno

se refere à mercantilização dos conhecimentos, no texto de Kramer e Oswald encontramos a

descrição de uma situação dentro de cursos de formação de professores, onde o saber é

coisificado.

Neste trabalho de pesquisa, as autoras investigaram três escolas de formação de

professores – antigo magistério – no Rio de Janeiro, onde observaram as aulas das matérias

relacionadas à língua portuguesa e à alfabetização; e percebem que a língua portuguesa é

coisificada no processo de ensino. Em outras palavras, a escrita e a leitura são recebidas e

178 KRAMER, Sonia; OSWALD Maria Luiza. Leitura e escrita de professores em três escolas de formação. In: FREITAS, Maria Tereza e COSTA, Sérgio Roberto. Leitura e escrita na formação de professores. INEP/MUSA/UFJF, 2002.

transmitidas como ‘coisas’, que copiadas do quadro negro, sem mediação, ou repetidas em voz

alta na sala de aula, se transformam em palavras sem sentido, estranhas e deslocadas da realidade

dos alunos. A leitura e a escrita não são vividas como experiência pelos alunos, o que aprendem,

ou decoram, é o caráter instrumental da língua, a aquisição de pré-requisitos da técnica da leitura

e da escrita para propiciar às crianças a condição de leitoras, já que estas futuras professoras são

vistas como mero instrumento de alfabetismo179; reprodutoras de um método explicitamente

negado, mas implicitamente reproduzido.

Em um trecho da pesquisa no qual são analisadas falas de professoras do curso de

formação, as autoras ressaltam que uma professora “manda” que as alunas escrevam em seus

cadernos para não usar cópia e memorização para alfabetizar, o que é comentado por Kramer e

Oswald:

[...] a cópia compulsória e a memorização mecânica não tem sentido para

alfabetizar crianças, mas o que não serve para alfabetizar crianças é usado com as

futuras professoras que devem copiar em seus cadernos, para melhor memorizar,

o que não pode ser feito.180

Isso mostra que a professora entende o significado dessas atividades, mas não o bastante

para reestruturar sua prática. Perpetuando o modelo de memorização e cópia tão questionado e

criticado nas discussões sobre a educação, coisificando o próprio conhecimento transmitido às

futuras professoras.

Para esclarecer este processo, as autoras emprestam de Bourdieu o conceito de fetichismo

da língua, descrito como:

179 KRAMER; OSWALD, 2002, p.20-21. 180 Ibid.,p.15.

[...] um modo de se relacionar com a língua em que ela é percebida como coisa,

como algo que tem existência independente dos falantes, valendo por si mesma e

em si mesma e devendo orientar a atividade lingüística dos falantes, da qual, na

verdade, é, porém, resultante.181

A inversão ocasiona a morte da língua, que é “passada” como algo fechado e auto-

suficiente; quando na verdade a língua está em constante movimento e transformação, pois seus

significados se fazem na sua utilização. Sendo que as aulas analisadas se referiam às matérias de

alfabetização e língua portuguesa, a coisificação da língua, significa a coisificação do

conhecimento trabalhado nestas disciplinas, e da própria linguagem utilizada para transmiti-los.

Se pensarmos na coisificação e instrumentalização dos conhecimentos nos cursos de

formação de professores, e sua própria condição de instrumentos de ensino, não podemos esperar

que sua atuação das escolas aconteça de forma diferente.

Nesses termos, a coisificação da profissão de ensinar começa muito antes do professor

entrar na sala de aula, inicia no próprio processo de formação, com a coisificação dos

conhecimentos que não são aprendidos pela experiência, mas pela imposição; e é neste

distanciamento, entre o professor e os conhecimentos que ele deve transmitir, que podemos

localizar um dos elementos que se relaciona com a coisificação da profissão de ensinar.

Um outro ponto que pode ser levado em conta, de acordo com Chaves, é a:

[...] falta de possibilidades do curso de fornecer recursos para o professor/aluno

conhecer com rigor, profundidade e criticidade as condições histórico-sociais

concretas do processo educacional no qual vai atuar. Isto acaba propiciando uma

prática de ensino mecanicista e indiferente aos determinantes de ordem

181 KRAMER; OSWALD, 2002, p.16.

antropológica, política, social e cultural que permeiam o contexto da educação e

do ensino. [...] O contato do licenciando com as disciplinas pedagógicas é tão

limitado, na maioria dos cursos, que ele não pode desenvolver, de fato, uma

vivência formativa.182

Os conhecimentos trabalhados, uma vez coisificados, não têm relação com a realidade

vivida pelo futuro professor, que muitas vezes inicia a profissão antes de estar formado,

impossibilitando o que Chaves chamou de vivência formativa. Dessa forma, podemos completar

este pensamento com a análise de Pereira sobre os cursos de formação de professores, que trazem

um novo problema para o processo de formação, pois:

[...] aligeirar a formação dos profissionais da educação, em especial a do

professor, ao mesmo tempo que inviabiliza uma formação que articule o ensino, a

pesquisa e a extensão, é, [...] negar “à educação o estatuto epistemológico de

ciência, descaracterizando o profissional da educação como intelectual

responsável por uma área específica do conhecimento, atribuindo-se a ele uma

dimensão tarefeira, para o que não precisa se apropriar dos conteúdos da ciência e

da pesquisa pedagógica [...]”183

Pereira, juntamente com Kuenzer, afirmam que as poucas horas destinadas aos cursos de

formação de professores impossibilitam o contato dos alunos com conhecimentos atualizados, ao

mesmo tempo em que os poucos conhecimentos disponibilizados não são devidamente

182 CHAVES, Iduina Mont’Alverne. A Licenciatura: traços e marcas. In: CHAVES, I. M. A.; SILVA, W. C. da. (Orgs). Formação de professor: narrando, refletindo, intervindo. Rio de Janeiro: Quartet; Niterói: Intertexto, 1999, p. 85-106, p. 95. Neste trecho a autora analisa a proposta educacional de Severino para a formação de professores. (SEVERINO, A.J. Pensando em subsídios filosóficos para a formação do educador. In: Revista Humanidades, n. 43, 1997) 183 PEREIRA, Maria Clara Infante. O curso de pedagogia no processo de formação dos profissionais da educação: questões e perspectivas. In: CHAVES, I.M.A.; SILVA, W.C.da (Orgs). Formação de professor: narrando, refletindo, intervindo. Rio de Janeiro: Quartet; Niterói: Intertexto, 1999, p. 67-84, p. 68-9. (Neste trecho a autora cita Kuenzer,1998, p.11).

aprofundados. Assim, a tríade ensino, pesquisa e extensão é excluída do processo de formação, e

o campo específico da educação é descaracterizado.

Para aprofundar esta questão recorreremos ao estudo de Scheibe, que analisando as

políticas educacionais, lista vários conhecimentos indicados para garantir a formação dos

professores nas reformas educacionais em curso, mas afirma que estes conhecimentos trazem, de

forma acentuadamente pragmática, a competência profissional para o lugar central da formação

em lugar dos saberes docentes. Estes princípios, no entanto, estão subordinados a uma concepção

de racionalidade econômica, pois, é “mais barato” treinar os professores para um receituário

genérico e abstrato, do que lhes oferecer condições para fazerem cursos nos quais se articula

ensino com análise e pesquisa da realidade184, assim, afirma que:

[...] embora não ocorra a ninguém educar para a incompetência, é preciso

reconhecer neste conceito o significado que ele adquire por conta das novas

demandas do mundo do trabalho. [Assim, podemos identificar] a competência,

nas atuais circunstâncias, como fortemente vinculada à capacidade para resolver

um problema em uma situação dada, o que implica ação mensurável por

intermédio da aferição dos seus resultados imediatos. Tudo indica que o forte

apelo ao conceito de competência, que está posto em todas as diretrizes que

deverão nortear o ensino nas próximas décadas, vincula-se a uma concepção

produtivista e pragmatista na qual a educação é confundida com informação e

instrução, com a preparação para o trabalho, distanciando-se do seu significado

mais amplo de humanização, de formação para a cidadania.185

184 SCHEIBE, Leda. Formação dos profissionais da educação pós-LDB: vicissitudes e perspectivas. In: VEIGA, I. P. A.; AMARAL, A. L. (Orgs). Formação de professores: políticas e debates. Campinas, SP: Papirus, 2002, p.47-63, p.52-3. 185 Ibid., p. 53, Neste trecho, a autora faz referência ao estudo realizado por KUENZER, A.Z. Ensino médio: construindo uma proposta para os que vivem do trabalho. São Paulo: Cortez, 2000.

Ainda nesse sentido, encontramos no texto: Professor: tecnólogo do ensino ou agente

social, de Ilma Veiga, uma reflexão sobre a formação dos professores centrada nas diretrizes

curriculares para a formação inicial de professores da educação básica (lei nº 9.394/96), onde

propõe o termo tecnólogo do ensino caracterizando-o da seguinte forma:

a) está intimamente ligada a um projeto de sociedade globalizada e neoliberal e a

um modelo de formação que representa uma opção político-teórica;

b) parte de um projeto político educacional maior, de abrangência internacional,

com orientações advindas do Banco Mundial, com ênfase na chamada educação

por resultados, que estabelece padrões de rendimento, alicerçada nos chamados

modelos matemáticos, ficando o processo educacional reduzido a algumas

variações ligadas à relação custo/benefício;

c) está vinculada, explicitamente, à educação e produtividade, numa visão

puramente economicista.186

A formação dos professores fica assim, adequada às demandas do mercado globalizado;

este professor/tecnólogo é reprodutor dos conhecimentos acumulados pela humanidade, que, para

atingir os objetivos, utiliza estratégias de ensino, procurando o desempenho e a eficácia. Esta

formação centra-se no desenvolvimento de competências para o exercício técnico-profissional,

baseada no saber fazer, sendo os conhecimentos mobilizados a partir do que fazer.187 Esta

perspectiva é limitada porque prepara o prático, o tecnólogo, ou em outras palavras,

[...] aquele que faz mas não conhece os fundamentos do fazer, que se restringe ao

micro-universo escolar, esquecendo toda a relação com a realidade social mais

186 VEIGA, Ilma Passos Alencastro. Professor: tecnólogo do ensino ou agente social?. In: VEIGA, I. P. A.; AMARAL, A. L. (Orgs). Formação de professores: políticas e debates. Campinas, SP: Papirus, 2002, p. 65-93, p.71-72. 187 Ibid., p.72.

ampla que, em última análise, influencia a escola e por ela é influenciada. Assim,

a competência se resume a um fazer prático.188

Ou seja, um conhecimento distanciado da prática, concebido como independente das

condições sociais às quais se destina. As competências, como núcleo da formação docente, são

operacionalizadas e referidas ao comportamento, o que as torna um receituário genérico e

abstrato, como designado por Scheibe. Para Veiga:

O conceito de competência, por seu caráter polissêmico, tem provocado múltiplas

interpretações. No contexto das diretrizes curriculares nacionais, a competência

está fortemente vinculada a experimentações na educação profissional mais do

que na educação básica escolar. Ela restringe-se à dimensão técnico-instrumental

tornando-se uma simples estratégia de adaptação às necessidades práticas e

imediatas do trabalho pedagógico.189

As competências aparecem assim como propostas de atuação para os professores. Veiga

seleciona algumas das competências enumeradas na LDB, para ressaltar seu caráter operacional,

por indicarem uma ação já que são iniciadas com verbos, e, sua generalidade por se dirigirem à

atuação profissional de qualquer nível de ensino. As competências são as seguintes:

- fazer uso de recursos da tecnologia da informação e da comunicação de forma a

orientar as possibilidades de aprendizagem dos alunos;

- utilizar-se dos conhecimentos para manter-se atualizados em relação aos

conteúdos de ensino e ao conhecimento pedagógico;

- analisar situações e relações interpessoais que ocorrem na escola, com o

distanciamento profissional necessário à sua compreensão.190

188 VEIGA, 2002, p.72-73. 189 Ibid., p.74. 190 Diretrizes Curriculares Nacionais, Brasil/CNE/CP, 2001, p.40-43 apud VEIGA, 2002, p.75.

Segundo a autora, as competências se referem à ordenação do conhecimento ou a critérios

para a seleção de estratégias para a organização do processo de ensino-aprendizagem, e mostram

um culto à eficiência e uma noção instrumental do currículo. “A relação

conhecimento/competências/habilidades básicas fortalece o caráter meramente instrumental dos

cursos de formação mediante a dissociação teoria/prática, ensino/pesquisa.”191 Ou seja, estes

cursos se organizam de forma a providenciar uma formação profissional aplicável, um “como

fazer”, não privilegiando a formação humana dos futuros docentes.

Mas essa visão da educação está em consonância com a estrutura da própria escola, que

além de se colocar como instituição responsável pelo processo civilizatório, se coloca como

responsável pela formação profissional dos alunos, ou seja, sua preparação para o mercado de

trabalho. Mas como indica Chochík, cada vez mais a formação humana é desnecessária para os

empregos ofertados, o que é ocasionado pela crescente mecanização do trabalho, para o qual um

simples treinamento é suficiente192, nesses termos, a função da escola, de “transmissora” da

cultura se torna ainda mais limitada, porque esta cultura, relativa à formação individual descrita

pelos ideais iluministas, aparece como inútil nesta realidade.

Pensando no papel da educação na sociedade, com relação à preparação dos alunos para o

mercado de trabalho e a inclusão das novas tecnologias no processo educativo, Vermelho aponta,

em análise dos documentos oficiais da educação brasileira (PCNs), que :

Não somente as novas formas de gerenciamento estão caminhando para uma

melhor adaptação do sujeito à sociedade, mas a educação tem sido chamada a

reforçar tal perspectiva trazendo, no bojo de sua proposta, o uso das mídias como

191 VEIGA, 2002, p.77. 192 CROCHIK, 1997, p. 120-121

recurso didático, ou seja, para que esse sujeito possa se apresentar ao mercado

com todas as qualidades necessárias para o estágio atual do processo econômico e

produtivo, é necessário o domínio de várias linguagens, uma capacidade

interpretativa de imagens, gráficos, signos, ícones, que saiba buscar a informação,

selecioná-las, relacioná-las para que ele possa desesperadamente encontrar

brechas no mercado, provavelmente na informalidade, para se manter competitivo

o suficiente para não ser descartado.193

Aqui Vermelho aponta a questão do uso das mídias na sala de aula como mais um veículo

de adaptação a uma nova condição sócio-econômica. Trazer os meios de comunicação para

dentro da sala de aula, como meio de formar os futuros trabalhadores, transforma a escola em um

setor do processo produtivo, que enreda os indivíduos desde o início de seu processo de

socialização. Na mesma pesquisa, porém, Vermelho aponta que a escola tem duas possibilidades

quanto a esta exigência do setor econômico: uma de acordo com o mercado que vê as novas

tecnologias dentro da escola como um benefício para os alunos em vista de seu futuro, e

considera que a simples inclusão das mídias na escola significa um progresso para o sistema

educacional; e outra, que percebe a escola como um ambiente possível para o desenvolvimento

da leitura crítica dos meios de comunicação, que leva em conta o caráter formativo das mídias, e,

portanto, antes de aceitar a simples inclusão da “tecnologia”, propõe que se repense o ambiente

escolar no sentido de questionar suas possibilidades quanto à crítica desses meios. Podemos

perceber que hoje se estabelece uma complexa trama de comunicação da qual a escola não pode

estar excluída, como afirma Barbero:

Ao reduzir a comunicação educativa à sua dimensão instrumental, isto é, ao uso

das mídias, o que se deixa de fora é justamente aquilo que é estratégico pensar: a

193 VERMELHO, 2003, p. 155.

inserção da escola nos processos complexos de comunicação da sociedade atual,

no ecossistema comunicativo que constitui o entorno educacional difuso e

descentrado produzido pelas mídias. Um entorno difuso de informações,

linguagens e saberes, e descentrado com relação aos dois centros – escola e livro

– que ainda organizam o sistema educativo vigente.194

Nesse sentido Belloni acrescenta:

A pesquisa sobre linguagens e potencialidades comunicacionais dos diferentes

meios tecnológicos deve avançar nas tecnicalidades sem perder de vista os

objetivos ou fins da ação educativa: é fundamental encarar as tecnologias como

ferramentas, como meios, o que inclui as máquinas, mas também os programas, e,

sobretudo, os saberes, instrumentos intelectuais e verbais. A introdução da

imagem e seus suportes técnicos (a tela da televisão e do computador) no

universo da palavra escrita suscita muitas interrogações ainda sem resposta.195

Os dois teóricos levantam a possibilidade da educação interagir com o mundo da

comunicação, em toda a sua complexidade atual, de forma a transformar a escola em um pólo de

discussão ativo, e não passivo como vem acontecendo hoje. E assim, na mistura das várias

linguagens que se articulam nos meios de comunicação, a escola poderia se abrir justamente para

a discussão em torno destas novas linguagens, para poder, a partir daí se colocar como pólo ativo.

Enquanto a escola mantiver o medo de trabalhar com as novas linguagens – não apenas

incluindo-as nas salas de aula, mas discutindo-as – a simples inclusão se coloca como uma

afirmação dos discursos que estas linguagens trazem fora da escola.

194 BARBERO, Jesús Martín-; REY, German. Exercícios do ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001, p. 59. 195 BELLONI, Maria Luiza. O que é mídia-educação. Campinas, S.P: Autores Associados, 2001 – (Coleção polêmicas do nosso tempo; 78), p. 28.

De acordo com a segunda perspectiva levantada por Vermelho, podemos retomar a

discussão sobre a indústria cultural e seu caráter adaptativo e formativo; se pensarmos que tanto

os alunos quanto os professores estão submetidos à sua influência, podemos prever que a simples

inclusão dos meios de comunicação na escola, não possibilita nenhuma melhoria no processo de

ensino-aprendizagem, pois como afirma Vermelho:

O fato de essa relação se dar em casa ou na escola, não muda a relação que esses

docentes estabelecem com essas mídias. Com isso, permanece inalterada a forma

de atuar subjetivamente nesses sujeitos, professores e alunos, e as mídias ou

qualquer atividade que venha a ser realizada com elas na escola reforçam, ao

invés de se contrapor, as experiências que esses sujeitos passam para além dos

muros escolares.196

Em outras palavras, para que os professores possam realizar um trabalho efetivo com as

mídias, no sentido de possibilitar um espaço de discussão crítica sobre elas com os alunos, é

necessário pensar na formação destes professores. Se eles estão inseridos na mecânica da

indústria cultural, eles são tão carentes de compreensão crítica quanto os alunos.

O pensamento crítico sobre as mídias, ou sobre a indústria cultural, requer conhecimentos

nos campos da arte, filosofia, sociologia e psicologia, pois é na imbricação destas áreas que se

encontram os elementos necessários para a compreensão da indústria cultural, dos indivíduos e da

sociedade. Portanto, pensar na formação dos professores, requer pensar na formação humanística

destes professores, pois como afirma Adorno: “[...] sempre é preferível um pouco de

esclarecimento, por insuficiente e só parcialmente eficaz que seja, do que nenhum.”197

196 VERMELHO, 2003, p.147-8. 197 ADORNO, 1995, p. 100.

Nesse sentido, é urgente reverter o processo de coisificação e instrumentalização dos

conhecimentos nos cursos de formação de professores, pois o seu resultado é um distanciamento

crescente da humanização e formação para a cidadania, não só dos futuros professores, mas

principalmente dos seus futuros alunos. Esta reversão é o que aparece nesta citação de Adorno,

quando fala da preferência por um pouco de esclarecimento, que nenhum.

3.2 As Concepções do Ensino da Arte

Retomando o eixo que perpassa todo este trabalho, podemos entrar na discussão sobre a

linguagem visual e sua atual importância para a educação na Sociedade das Imagens. Se a escola,

como acreditam vários teóricos da educação, deve possibilitar aos alunos uma melhor

compreensão da realidade e de si mesmos, a arte tem um papel fundamental para o

desenvolvimento destes conhecimentos; já que pensar a imagem é o conhecimento específico da

área das artes visuais.

A linguagem visual é complexa, e sua leitura depende de conhecimentos específicos e a

possibilidade de conviver com a sua polissemia, o que nem sempre é fácil já que pode suscitar

elementos inesperados quando trabalhada, depende portanto de uma postura não-autoritária e

não-impositiva, como explica Barbero, se referindo à resistência da escola para aceitar a

linguagem visual:

Daí a antiga e pertinaz desconfiança da escola para com a imagem, para com sua

incontrolável polissemia, que a converte no contrário do escrito, esse texto

controlado, de dentro, pela sintaxe e, de fora, pela identificação da claridade com

a univocidade. Não obstante, a escola buscará controlar a imagem a todo custo,

seja subordinando-a a tarefa de mera ilustração do texto escrito, seja

acompanhando-a de uma legenda que indique ao aluno o que diz a imagem.198

Esta desconfiança da escola para com a imagem aparece desde que aconteceram as

primeiras inclusões do ensino da arte na escola, tendo esta matéria sofrido várias modificações no

decurso de sua história. Os conteúdos trabalhados nas aulas de artes sempre tiveram um caráter

marginal e indefinido, o que contribuiu para a dificuldade que encontrou para sua inclusão no

currículo escolar, desde as primeiras tentativas. A necessidade de justificativas ainda está

presente no sistema educacional, pois somente se tornou obrigatória com a Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional nº 9394/96, artigo 26 parágrafo 2º199, onde se lê: “O ensino da arte

constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a

promover o desenvolvimento cultural dos alunos.” 200 E, mesmo assim, merece críticas de vários

teóricos do ensino da arte (BARBOSA, 1994; FUSARI, 1999; TOURINHO201, 2002), que

atribuem à generalidade da lei o fato de que este ensino não vem sendo ofertado em todas as

séries, e ainda, é muitas vezes incluído em outras disciplinas, como literatura, que fica

responsável pelos conteúdos específicos da arte.

Nesse sentido, para situar o campo de conhecimento aqui abordado, o ensino da arte, é

importante retomar brevemente a história deste ensino no Brasil, por meio da qual, podemos

entender um pouco melhor sua atual condição nas escolas.

198 BARBERO, 2001, p.57. 199 ALVES, N.; VILLARDI (Org.). Múltiplas leituras na nova LDB: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96). Rio de janeiro: Qualitymark Dunya, 1997. 200 BRASIL, Cap. II, Art. 26 § 2º 201 TOURINHO, Irene. Transformações no ensino da arte: algumas questões para uma reflexão conjunta. In: BARBOSA, Ana Mae. Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002a, p.27-34

A inclusão do ensino da arte na escola acontece, no Brasil, no início do Século XIX, e

desde então, tem sofrido influência das correntes teóricas que guiaram a educação no país.

Vinculando a primeira fase do ensino da arte à Escola Tradicional, podemos perceber que o

ensino da arte se resume ao ensino de desenho – de observação, cópia, geométrico – e, seu

enfoque se liga ora à tendência liberal, ora à tendência positivista202. Quando ligado à primeira, as

aulas de desenho se voltam para o desenho de observação (cópia de desenhos feitos pelos

professores no quadro negro, ou da natureza), e noções do desenho geométrico, com a função de

preparar os alunos para o trabalho nas indústrias. Quando ligado à segunda, a ênfase recai no

desenho geométrico e geometria, como preparação para linguagem científica, e também em

função no trabalho nas indústrias. Este período sofre uma forte influência de experiências

realizadas na Europa e nos Estados Unidos, sendo nestes, a teoria que guiava as experiências,

diretamente ligada à produção industrial, principalmente de estampas e para o desenvolvimento

da maquinaria.

Como uma segunda fase, podemos perceber a influência da Escola Nova; conhecida no

Brasil na década de 1930, mas tendo efetivado sua influência nas escolas a partir da década de

1950203. Neste período as aulas de artes sofrem uma mudança drástica na concepção, com a

influência das correntes artísticas do expressionismo, surrealismo e outros movimentos das

vanguardas artísticas do início do século XX. Em contraposição explícita à metodologia da

Escola Tradicional, as aulas de artes passam a ser um espaço de desenvolvimento da criatividade

dos alunos e expressão de seus sentimentos, por uma experiência individual e subjetiva. Como

202 Detalhes deste período podem ser encontrados em BARBOSA, Ana Mae. Arte-educação no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2002b. 203 Detalhes sobre esta fase do ensino da arte em FUSARI, Maria F. de Rezende e; FERRAZ, Maria Heloísa C. de T. Arte na educação escolar. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2001; FUSARI, Maria F. de Rezende e; FERRAZ, Maria Heloísa C. de T. Metodologia do ensino de arte. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1999.

diz o professor Saviani204, a pedagogia nova desviou a importância do intelecto para o

sentimento, do aspecto lógico para o psicológico, dos conteúdos cognitivos para os métodos ou

processos pedagógicos, do esforço para o interesse, do professor para o aluno, da disciplina para

a espontaneidade. Os educadores acreditavam que as crianças possuíam dentro de si um mundo

de expressões artísticas que deveriam ser expressas e nunca reprimidas. Os professores são

incentivadores do processo, não lhes cabendo qualquer julgamento do que é produzido pelos

alunos.

Um terceiro momento pode ser ligado à influência da Escola Tecnicista, a partir das

décadas de 1960 e 1970205, num momento em que a educação sofre uma crise, por ser

considerada insuficiente na formação profissional. Para resolver a situação, esta tendência propõe

uma escola mais eficiente, e que prepare indivíduos mais competentes e produtivos para o

mercado de trabalho. Visa provocar mudanças de comportamento nos alunos, através de

procedimentos e técnicas organizadas racionalmente. Na década de 1970, é assinada a Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692/71206 que introduz a Educação Artística no

currículo escolar de 1º e 2º graus, mas com uma redação que dá à arte um caráter flutuante, sem

contornos, incluindo todas as modalidades (artes plásticas, dança, música, teatro, etc.) como

meras atividades artísticas que deveriam se adaptar às tendências e interesses da instituição.

Neste contexto a arte perde sua função na educação, e seu espaço é utilizado para a produção das

festas da escola e confecção de presentes para os dias comemorativos. Com a indefinição que

aparece na LDB, e a exigência de planos de ensino e organização de conteúdos, os professores de

204 FUSARI; FERRAZ, 2001, p.35. 205 Detalhes sobre esta fase do ensino da arte em: BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1994; BARBOSA, Ana Mae. Recorte e colagem: influência de John Dewey no ensino da arte no Brasil. São Paulo: Cortez, 1989. 206 BRASIL, parecer nº540/77, onde se lê: “não é uma matéria, mas uma área bastante generosa e sem contornos fixos, flutuando ao sabor das tendências e dos interesses.” apud FUSARI; FERRAZ, 2001, p. 41-42.

artes se vêem obrigados a utilizar os livros didáticos, o que limita as aulas a exercícios de

coordenação motora, e assimilação de elementos visuais básicos.

As aulas de arte hoje apresentam influências das três correntes apresentadas (tradicional,

escola nova, tecnicista) em maior ou menor grau, o que acarreta que as aulas de arte mostram-se

dicotomizadas, superficiais, enfatizando ora um saber “construir” artístico, ora um saber

expressar-se.207 A delimitação do papel específico da arte vem sendo pensada por inúmeros

teóricos que acreditam na importância da arte na escola, com objetivos mais democráticos e

críticos, com uma preocupação social de conscientização do aluno e redimensionamento histórico

do trabalho escolar.

Nesse sentido temos a influência da pedagogia libertadora, proposta por Paulo Freire, e,

principalmente, da pedagogia histórico-crítica dos conteúdos, como duas correntes que repensam

a educação no Brasil, incluídas na corrente progressista-realista. Esta influência começa a ser

sentida no ensino da arte na década de 1980208, quando acontecem as primeiras reuniões das

associações de professores de arte. Esta proposta tem no diálogo entre educador e educando o

principal procedimento de ensino, visando uma consciência crítica dos alunos com relação aos

fatos sociais dos quais participam.

O papel do professor é considerado imprescindível, pois é o mediador entre os

conhecimentos historicamente construídos e em construção, e, os alunos, tendo como função

fazer a reavaliação e ligação destes conteúdos com e a partir dos saberes dos alunos,

possibilitando que eles exerçam uma cidadania consciente, crítica e participante; o que implica

um trabalho pedagógico crítico do social, no sentido de transformá-lo.209

207 FUSARI; FERRAZ, 2001 208 BARBOSA, 1989. 209 FUSARI; FERRAZ, op. cit., p. 44-48.

Atualmente no ensino da arte, temos como continuadora da proposta progressista, a

teórica e professora Ana Mae Barbosa, que realiza um estudo sério e profundo do ensino da arte

no Brasil e propõe uma metodologia de ensino conhecida como Proposta Triangular, que integra

três facetas do conhecimento em arte: o fazer artístico, a crítica de arte, e a história da arte. A

articulação destes três pontos possibilita ao aluno uma aproximação com o universo da arte, ao

mesmo tempo em que a compreensão da linguagem visual como um meio pelo qual pode ler a

realidade à sua volta e expressar-se. As imagens dos meios de comunicação também são

trabalhadas na proposta triangular, que não visa a formação de artistas, mas de pessoas que

possam compreender e utilizar a linguagem visual210.

Essa proposta é de suma importância, pois se coloca como uma alternativa de trabalho

para os conteúdos da arte, elevando-a à condição de matéria específica dentro da escola, em

contraposição ao preconceito dirigido contra este campo do conhecimento, considerado inútil e

desnecessário para a formação e atuação profissionais.

Depois deste breve passeio pela história do ensino da arte, que visou uma aproximação

dos momentos mais significativos, e que se relacionam com as teorias gerais da educação,

podemos entrar na discussão sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino da arte e,

entender como o ensino da arte é regulamentado e prescrito pelos documentos oficiais da

educação brasileira, para assim, incluirmos esta perspectiva no âmbito deste estudo.

210 BARBOSA, 1994; BARBOSA, Ana Mae (org). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002a.

3.3 PCNs e o Ensino da Arte

Observando os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino da arte, percebe-se que a

proposta para o ensino da arte, e, portanto a introdução dos alunos às manifestações culturais da

humanidade, tem um enfoque na fruição da arte, o que significa um contato com as obras visando

a apreciação; mas em nenhum momento levanta a importância da arte como espaço de

questionamento da realidade, como formulado por Marcuse e desenvolvida pela visão

progressista para educação.

Na “Caracterização da área de Arte”, seu ensino é descrito de seguinte forma:

A educação em arte propicia o desenvolvimento do pensamento artístico e da

percepção estética, que caracterizam um modo próprio de ordenar e dar sentido à

experiência humana: o aluno desenvolve sua sensibilidade, percepção e

imaginação, tanto ao realizar formas artísticas quanto na ação de apreciar e

conhecer as formas produzidas por ele e pelos colegas, pela natureza e nas

diferentes culturas.211

Nesse trecho, o pensamento artístico e a percepção estética são definidos como o

desenvolvimento da sensibilidade, percepção e imaginação; faculdades que se desenvolvem na

fruição artística, mas não são incluídos no documento a possibilidade de compreensão crítica do

mundo e a relação da arte com a realidade, além de omitir os processos mentais de raciocínio e

pensamento indispensáveis à experiência da arte. Ao comparar os PCNs com os escritos de Ana

Mae Barbosa, percebemos que o ponto central de sua teoria que se expressa pelo momento da

211 BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: arte. – 2. ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p.19.

crítica de arte, tanto dos trabalhos produzidos pelos alunos, como das obras de arte, é eliminada,

se resumindo a “apreciar e conhecer” as formas trabalhadas. Este ponto é significativo e permeia

todo o documento.

No item “O Conhecimento Artístico como Reflexão” são levantados elementos que na

arte, se mostrariam como a “necessidade de investigar o campo artístico como atividade

humana.” O fenômeno artístico é visto: “como produto das culturas; como parte da História;

como estrutura formal na qual podem ser identificados elementos que compõem os trabalhos

artísticos e os princípios que regem sua combinação.”212 Mesmo considerando a arte como

produto das culturas, esse mesmo ponto é levantado em outros momentos, com a ênfase de que o

aluno deve ser capaz de identificar elementos artísticos de outras culturas, respeitá-los, perceber

as diferenças e semelhanças com sua própria cultura, “com interesse e curiosidade”. Podemos ler,

nesse trecho, que a arte se coloca como uma esfera fechada dentro das várias culturas, e não o

espaço no qual os indivíduos das diferentes culturas refletem sobre suas sociedades e suas vidas,

propondo questões sobre sua situação, denunciando problemas, contrapondo-se ao discurso

oficial. Assim, mesmo que o título coloque o conhecimento artístico como reflexão, esta não

atinge a reflexão crítica sobre a sociedade e sobre si mesmo, elementos indissociáveis do trabalho

artístico, tanto na produção do aluno como no contato com as produções artísticas da

humanidade.

Nos “Objetivos Gerais de Arte para o Ensino Fundamental” o objetivo do ensino da arte é

assim colocado:

No transcorrer do ensino fundamental, o aluno poderá desenvolver sua

competência estética e artística nas diversas modalidades da área de Arte (Artes

212 BRASIL, 2000.p. 43.

Visuais, Dança, Música, Teatro), tanto para produzir trabalhos pessoais e grupais

quanto para que possa, progressivamente, apreciar, desfrutar, valorizar e julgar os

bens artísticos de distintos povos e culturas produzidos ao longo da história e na

contemporaneidade.213

Também nos objetivos que se referem à arte, não se fala que o entendimento da arte pode

possibilitar uma melhor compreensão da realidade, ou como os vários artistas no decorrer da

história perceberam o momento no qual viviam; nem mesmo, que a partir da leitura dos próprios

trabalhos e dos trabalhos dos colegas, a criança pode adquirir o vocabulário específico da arte e

compreender os sentimentos que expressou, usando a arte como um espaço de compreensão

individual e da realidade; os objetivos se referem à experiência do aluno com arte, no fazer e no

fruir, e não no compreender.

No item “Conteúdos Gerais da Arte” a arte é trabalhada como:

[...] expressão e comunicação dos indivíduos; elementos básicos das formas

artísticas, modos de articulação formal, técnicas, materiais e procedimentos na

criação em arte; produtores em arte: vidas, épocas e produtos em conexões;

diversidade das formas de arte e concepções estéticas da cultura regional,

nacional e internacional: produções, reproduções e suas histórias; a arte na

sociedade, considerando os produtores em arte, as produções e suas formas de

documentação, preservação e divulgação em diferentes culturas e momentos

históricos.214

O enfoque dos PCNs para arte se coloca de forma a contemplar a experiência estética do

aluno no fazer e no fruir arte, e, ainda usar a arte como elemento de caracterização de culturas e

épocas históricas, mas o texto é muito vago quanto ao papel da arte para a reflexão sobre a

213 BRASIL, 2000.p. 53. 214 BRASIL, 2000.p. 57.

realidade, fala-se em criticidade, mas sem dizer sobre o que ou como se dá. Os elementos

oposicionais da cultura são descartados nessa concepção do ensino da arte. Assim, podemos ver

nos PCNs, as aulas de artes como veículo de adaptação, pois a possibilidade de levantar

questionamentos sobre a realidade vigente, que é o que favorece uma mudança de consciência, é

anulada no contato estabelecido pelos parâmetros que programam um contato somente de fruição.

A experiência estética com a arte não proporciona somente o prazer da fruição, mas a

possibilidade da construção do conhecimento; pois por mais que a cultura tenha se transformado

em veículo de adaptação, ela pode ser veículo de transformação da consciência. Arte é uma

construção simbólica, uma relação entre o sujeito e o real, e se a arte tem uma função, é a de

diminuir a distância entre as pessoas e a realidade, questionar e aprofundar a compreensão de

mundo, possibilitar a percepção de outras formas possíveis de representação do real, que muitas

vezes se coloca em contraposição à representação oficial.

Como fala Marcuse:

Toda autêntica obra de literatura, arte, música e filosofia fala uma metalinguagem

que transmite outros fatos e condições do que aqueles que são acessíveis à

linguagem orientando o comportamento – nisso consiste sua substância

irredutível e intraduzível.215

Assim, Marcuse levanta as idéias não-operacionais da arte, que só podem ser alcançadas

por meio de reflexões profundas, que estão ausentes nas orientações dadas pelos PCNs, pois

quando apontam para a apreciação das formas estéticas, se referem a uma identificação dos

elementos formais básicos e a uma apreciação da sua aparência. A aparência da obra de arte foi o

215 MARCUSE, 1998, p.160.

que sobrou quando a cultura foi assimilada pela civilização, pois é na identidade forma-conteúdo

que os elementos oposicionais das obras de arte podem ser percebidos.

Além disso, nos dias de hoje, a apropriação da cultura não se dá mais como a

possibilidade da reflexão do universal pelo particular, que pode levar a

perspectivas distintas das construídas até então, mas como apropriação de um

bem de consumo. A aquisição da cultura não é pensada como um elemento

necessário à formação do cidadão esclarecido, mas como marca da

excentricidade, de inutilidade.216

Como levanta Chochík, a apropriação da cultura não mais possibilita que o indivíduo

reflita sobre o mundo, não é mais um processo de renovação do pensamento pelo

questionamento, pela reflexão, pela busca de novas idéias, pela transformação, pela

transcendência ao existente.

O contato com diferentes linguagens, na apropriação e na leitura, é fundamental nos dias

de hoje, momento no qual estas se multiplicam e tomam parte na vida das pessoas. Com as

discussões realizadas, podemos perceber que o ensino da arte, quando vinculado ao objetivo de

possibilitar uma compreensão crítica da linguagem visual, se direciona para a abertura da

oportunidade de ampliação da compreensão da realidade.

216 CROCHIK, 1997, p.120-121.

3.4 Letramento como o Princípio da Leitura do Mundo

As discussões feitas até agora propuseram uma reflexão sobre uma leitura de mundo que

ultrapasse as barreiras impostas pela civilização tecnológica, e que, portanto, permita aos

indivíduos um espaço dentro da sociedade para o pensamento crítico sobre ela. O intuito é

discorrer sobre a educação, a formação, como um meio de se atingir a autonomia e a liberdade.

Para que uma mudança nesse sentido aconteça, todas as fases da educação formal devem

ter a autonomia e a emancipação como meta, e ainda possibilitar que essa formação ultrapasse os

muros da escola e realmente se constitua em uma formação sólida para os indivíduos.

Levando se em conta a impossibilidade de abordar todas as fases da educação em um

único trabalho, dado que cada uma tem suas peculiaridades e se torna um universo com

características específicas, optou-se por abordar as séries iniciais da educação fundamental, ou

seja, o período de alfabetização. Esta escolha se deu em função de ser esta a fase na qual as

crianças têm seu primeiro contato com o “mundo dos adultos”, no que se refere ao conhecimento

historicamente acumulado; e é uma fase de significativa importância para o desenvolvimento da

capacidade de leitura do mundo.

Buscando os termos que designam esta fase, encontramos nos textos de Magda Soares,

Letramento217, que vem se colocar como o antônimo de analfabetismo, e um sinônimo para

alfabetizar, mas com o significado ampliado como veremos mais adiante; assim, o termo

Letramento tem uma importância capital para este estudo.

Em um texto posterior, Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura, a

autora abre o conceito de letramento, propondo seu plural: 217 SOARES, Magda. Letramento: um tema e três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

Na verdade, essa necessidade de pluralização da palavra letramento e, portanto,

do fenômeno que ela designa já vem sendo reconhecida internacionalmente, para

designar diferentes efeitos cognitivos, culturais e sociais em função ora dos

contextos de interação com a palavra escrita, ora em função de variadas e

múltiplas formas de interação com o mundo – não só a palavra escrita, mas

também a comunicação visual, auditiva, espacial.218

Portanto, partiremos da discussão sobre letramento em relação à aquisição das habilidades

da escrita e da leitura, para em um segundo momento abrirmos este conceito para a linguagem

visual, utilizando os pressupostos levantados pela autora, para abordarmos a linguagem visual

como fundamental para a interação com o mundo hoje.

No livro Letramento: um tema em três gêneros, a professora Magda Soares faz um estudo

sobre a origem do termo e suas implicações para a educação. Letramento é uma versão

portuguesa para a palavra inglesa “Literacy [letramento], que se refere ao estado ou condição de

ser literate [letrado], que é definido como educado, especialmente apto a ler e escrever.”219 Por

ser uma palavra nova no vocabulário brasileiro, consta em poucos dicionários com esta

acepção.220

Letramento se diferencia de Alfabetização, pois, além da aquisição das habilidades

técnicas de leitura e escrita, engloba a prática social destas habilidades dentro de um processo

contínuo, que abarca desde as primeiras fases de aquisição de técnicas e habilidades, até níveis

avançados e indefinidos como, por exemplo, na elaboração de uma tese de doutorado.

218 SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. In: Educação e Sociedade [online]. dez. 2002, vol.23, no.81 [citado 22 Setembro 2003], p.143-160. Disponível em http://www.scielo.br/scielo 219 Id., 1998, p.17. 220 O Dicionário Houaiss define Letramento: “2. Rubrica: pedagogia. m.q. alfabetização ('processo'); 3. (dez.1980) Rubrica: pedagogia. Conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito.” Instituto Antonio Houaiss. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Editora Objetiva Ltda.. Versão 1.0, dez, 2001.

O surgimento desta palavra, para designar “[...] o estado ou a condição que assume aquele

que aprende a ler e escrever.”221, está relacionado, para a autora, com uma nova situação social.

Esta diferença, ou nova situação e demanda social do ler e do escrever, foi constatada por ela na

análise da alteração do critério utilizado pelo Censo (2000) para verificação do número de

analfabetos e alfabetizados. O critério utilizado durante muito tempo, o de saber ler e escrever o

próprio nome, foi substituído pelo: “saber ler e escrever um bilhete simples no idioma que

conhecia.”222, o que designa uma prática social da habilidade de ler e escrever, e que, para a

autora, já demonstra a busca pela avaliação do nível de letramento, ou seja, pretende verificar

quantas pessoas vivem em estado ou condição de quem sabe ler e escrever.

Portanto, Letramento vem se colocar como o oposto da palavra Analfabetismo – termo

antigo no vocabulário da língua portuguesa – que, como “[...] define o Novo Dicionário Aurélio

da Língua Portuguesa, é o ‘estado ou condição de analfabeto’, e analfabeto é o ‘que não sabe ler

e escrever’, ou seja, é o que vive no estado ou condição de quem não sabe ler e escrever [...]”223.

A esta definição, Soares acrescenta: “[...] o analfabeto é aquele que não pode exercer em toda a

sua plenitude os seus direitos de cidadão, é aquele que a sociedade marginaliza, é aquele que não

tem acesso aos bens culturais de sociedades letradas e, mais que isso, grafocêntricas [...]”224.

Condição experienciada por grande parte da população brasileira.

A palavra que designa o oposto de analfabeto não era necessária em uma sociedade na

qual a grande maioria da população não possuía as habilidades básicas de escrita e leitura.

221 SOARES, 1998, p.17. 222 Ibid., p. 21; INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, In: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/educacao/notas.pdf, acessado no dia 2 de junho de 2004. 223 SOARES, op. cit., p. 16. 224 Ibid., p. 20.

Só recentemente esse oposto tornou-se necessário, porque só recentemente

passamos a enfrentar esta nova realidade social em que não basta apenas saber ler

e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder

às exigências de leitura e escrita que a sociedade faz continuamente – daí o

recente surgimento do termo letramento [...].225

Esta mudança na compreensão do ler e do escrever, portanto, demonstra uma nova

condição social, pois o aumento do número de pessoas que sabem ler e escrever, requer uma

diferenciação dos graus deste ler e escrever e de suas funções sociais.

Implícita no conceito de Letramento está a idéia de que a leitura e a escrita afetam o

estado ou a condição de quem adquire esta habilidade e envolve-se em suas práticas sociais; ou

seja, mudanças de cunho social, cultural, político, econômico, cognitivo, lingüístico, são

percebidas quando há uma passagem do estado de analfabeto para o de letrado.226

“Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o

estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se

apropriado da escrita.”227

Nos estudo sobre Letramento, existem linhas de pesquisa que enfatizam pontos diferentes

no processo de letramento; em primeiro lugar, há a diferenciação entre os que pensam na

dimensão individual e os que pensam na dimensão social do letramento.

Dentro da dimensão individual, discute-se a aquisição de habilidades específicas ligadas à

leitura e à escrita. Uma questão que a autora levanta, é o fato de que os teóricos da dimensão

individual, dificilmente levam em conta as diferenças e a complementaridade entre a leitura e a

escrita, ao mesmo tempo. O conjunto de habilidades que envolvem a aquisição da capacidade de

225 SOARES, 1998, p. 20. 226 Ibid., p. 18. 227 Ibid., p. 18.

escrita é muito diferente do conjunto de habilidades que envolvem a aquisição da capacidade de

leitura228, requerendo atenções especiais para cada uma. Mas, ao mesmo tempo, letramento é

constituído por ambos os processos indissociavelmente. Neste sentido, a busca por uma definição

do conceito de letramento se torna difícil, pois como definir quais habilidades específicas de

leitura e escrita um indivíduo deve possuir para ser considerado letrado? Ainda pensando o

letramento como um conjunto de habilidades adquiridas gradualmente dentro de um contínuo,

existem vários tipos e níveis de letramento, o que dificulta o estabelecimento de uma linha

divisória entre um indivíduo letrado de um indivíduo iletrado.229

Na dimensão social, o que é considerado pelos teóricos, “é o que as pessoas fazem com as

habilidades de leitura e de escrita em um contexto específico, e como estas habilidades se

relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais.”230 Nesta dimensão existem as

versões liberal e revolucionária. Na perspectiva liberal, foi cunhado o termo “letramento

funcional” para designar o conjunto e o uso das habilidades mínimas necessárias para que o

indivíduo “funcione” adequadamente no contexto social. Ou seja, letramento funcional, significa

“adaptação”, o que enfatiza seu valor para a sobrevivência:

[...] sendo o uso das habilidades de leitura e escrita para o funcionamento e a

participação adequados na sociedade, e para o sucesso pessoal, o letramento é

considerado como responsável por produzir resultados importantes:

desenvolvimento cognitivo e econômico, mobilidade social, progresso

profissional, cidadania [...] 231

228 “A leitura, do ponto de vista da dimensão individual de letramento (a leitura como ‘tecnologia’), é um conjunto de habilidades lingüísticas e psicológicas, que se estendem desde a habilidade de decodificar palavras escritas até a capacidade de compreender textos escritos.” SOARES, 1998, p. 68. 229 Ibid., p. 70-1. 230 Ibid., p. 72. 231 Ibid., p. 72-3.

A afirmação de ascensão social, cognitiva e econômica como decorrente do letramento

vem sendo refutada por inúmeros estudos.232

Para os teóricos da corrente Funcional, o letramento tem uma função instrumental, e

objetiva a adaptação do indivíduo à sociedade; então, o nível de letramento deve ser medido pelo

mínimo necessário para que o indivíduo esteja apto a integrar o mercado de trabalho. De acordo

com esta tendência, o letramento não objetiva a leitura crítica do mundo, é mais um veículo de

adaptação.

Em contraste com a versão liberal, a perspectiva revolucionária, considera que o

[...] letramento não pode ser considerado um ‘instrumento’ neutro a ser usado nas

práticas sociais quando exigido, mas é essencialmente um conjunto de práticas

socialmente construídas que envolvem a leitura e a escrita, geradas por processos

sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições e

formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais.233

Nesta concepção ainda, letramento é conectado ao uso que se faz da leitura e da escrita,

em que contextos são requisitados, e dentro deles como são utilizados, ou seja, que formas

assumem em determinados contextos sociais. O conceito de letramento é vinculado ao conteúdo

utilizado para adquiri-lo e transmiti-lo, portanto

[...] o que letramento é depende essencialmente de como a leitura e a escrita são

concebidas e praticadas em determinado contexto social; letramento é um

conjunto de práticas de leitura e escrita que resultam de uma concepção de o quê,

como, quando e por quê ler e escrever.234

232 SOARES, 1998, p. 72-3. 233 Ibid., p. 74-5. 234 Ibid., p. 75.

Estes teóricos defendem que o letramento, no modo como vem sendo feito hoje, é um

instrumento ideológico de reprodução da situação social, e muitos, como Paulo Freire, afirmam o

poder revolucionário do letramento, como um meio de tomar consciência da realidade e

transformá-la.235 Nesse sentido, a concepção social do letramento entra em concordância com a

idéia central deste texto, que pensa a educação como um meio pelo qual o indivíduo pode

desenvolver um pensamento critico sobre a sua realidade, com o objetivo de questioná-la e assim

buscar sua transformação.

Um ponto levantado pela autora, que é muito interessante, se refere ao fato de que uma

pessoa pode ser analfabeta, ou seja, não possuir a habilidade do ler e do escrever, e, no entanto,

ser letrada (no sentido que adquire quando é vinculada a letramento). Pois o letramento se refere

também ao uso social da leitura e da escrita, o que significa que, se esta pessoa pede para

alfabetizados lerem jornais, cartas que tenha recebido, ou dite cartas e bilhetes para que outros os

escrevam, esta pessoa pode ser considerada letrada, pois tem um envolvimento social com o

universo do ler e do escrever.

Da mesma forma, a criança que ainda não se alfabetizou, mas já folheia livros,

finge lê-los, brinca de escrever, ouve histórias que lhe são lidas, está rodeada de

material escrito e percebe seu uso e função, essa criança é ainda “analfabeta”,

porque não aprendeu a ler e a escrever, mas já penetrou no mundo do letramento,

já é de certa forma letrada.236

Isso significa que o letramento se refere ao envolvimento social do indivíduo com a

escrita e com a leitura como meio para ler a realidade a sua volta e para compreendê-la; assim, é

neste ponto que podemos pluralizar e aproximar o conceito de letramento com a capacidade de

235 SOARES, 1998, p. 76. 236 Ibid., p. 24.

leitura de imagens em nossa sociedade, como aspectos convergentes para o processo de formação

para a autonomia.

O conceito de letramento, que envolve a leitura do mundo, mesmo que se referindo ao

texto escrito, se mostra como o início de uma abertura da escola para as transformações nos

modos de ler, e para a pluralidade de textos que aparecem na sociedade contemporânea. Pois

como afirmou Soares, hoje, devemos pensar no plural do termo letramento, de forma a

contemplar as múltiplas formas de interação com o mundo, pois como afirma Barbero:

[...] as transformações nos modos como circula o saber constituem uma das mais

profundas mutações que uma sociedade pode sofrer. Disperso e fragmentado, é

como o saber escapa dos lugares sagrados, que antes o continham e legitimavam,

e das figuras sociais, que o detinham e administravam. A atual diversificação e

difusão do saber constitui, portanto, um dos reptos mais sérios que o mundo da

comunicação apresenta ao sistema educativo.237

Assim, o saber hoje circula das mais diferentes formas, e pode ser produzido e apreendido

por meio das mais diferentes linguagens; é pensando na importância que atualmente a linguagem

visual assume em nossa sociedade, que trazemos a necessidade da sua compreensão.

Segundo Soares, são também consideradas letradas as pessoas que não possuem as

habilidades básicas do ler e do escrever, mas que mantém um contato com o universo da

linguagem escrita; quando esta situação é transposta a linguagem visual, este processo assume

dois aspectos: por um lado, todas as pessoas que vivem em nossa sociedade têm contato com a

linguagem visual e estabelecem algum tipo de comunicação com ela; por outro, esta mesma

linguagem é complexa e possibilita vários níveis de compreensão, e se torna veículo de

conteúdos, que num contato ingênuo, são absorvidas inconscientemente. Nesse sentido, mostra-se 237 BARBERO, 2001, p.59.

importante pensarmos como seria uma alfabetização da linguagem visual, e como seria uma

pessoa letrada nesta linguagem, pensando este processo como um continuo, assim como é

percebido no desenvolvimento da a linguagem escrita, que vai desde os primeiros contatos de

aquisição das habilidades de ler e escrever até níveis avançados e indefinidos como, por exemplo,

na elaboração de uma tese de doutorado.

3.5 Letramento e Linguagem Visual para a Leitura do Mundo na Sociedade das Imagens

Todas as pessoas em nossa sociedade têm contato com imagens diariamente, e as

compreendem de alguma forma. A linguagem visual se apresenta e provoca leituras,

independentemente dos conhecimentos sobre a linguagem visual que a pessoa possa ter, ao

contrário da linguagem escrita que depende de conhecimentos específicos para o acesso às

informações. O que se diferencia, no contato com a linguagem visual, é a forma como cada

pessoa a compreende e a profundidade com que acontece esta leitura.

Para fazer um paralelo entre o letramento, como discutido anteriormente, e o que seria um

“letramento” na linguagem visual, faz-se necessário definir neste universo, os termos utilizados

por Soares238 para discutir o letramento. Em primeiro lugar, uma analogia com o analfabetismo;

em segundo, o que seria um alfabetizado em imagens; em terceiro a definição do estado ou

condição de letrado em linguagem visual; e por último, como seria a prática social com a

linguagem visual.

238 SOARES, 1998.

O analfabetismo visual não pode ser visto como o lingüístico, pois palavras para um

analfabeto são criptogramas indecifráveis, já no caso das imagens, todos que vêem, captam

alguma coisa da linguagem visual – muitas vezes mais do que imaginam. Portanto o

analfabetismo visual se refere ao fato de as pessoas verem as imagens, absorverem seus

conteúdos, e não possuírem as ferramentas necessárias para interpretar estes conteúdos e entender

que mensagens transmitem. O que significa absorver inconscientemente os conteúdos trazidos

pelas imagens – sem saber que podem ser interpretadas. O analfabeto visual recebe

desatentamente as imagens, deixa que seu olho pouse sobre elas, mas não conhece os

mecanismos de leitura e decodificação da imagem.

Como seria um alfabetizado em imagens? A alfabetização em imagens se refere aos

primeiros contatos com a decodificação das imagens, de uma forma diferenciada deste contato

diário no qual as imagens são toleradas desatentamente. O que significa entender que as imagens

transmitem informações que não percebemos, e que podemos perceber, filtrar, selecionar, ou

melhor, interagir ativamente com elas. Estas imagens não são simplesmente bonitas, chamativas,

atraentes, sedutoras, mas são utilizadas dessa forma para que este contato seja agradável, e junto

com isso impor uma certa visão de mundo. A partir disso o alfabetizado passa a saber que as

imagens não são “inofensivas”, são uma linguagem poderosa – por esse motivo, largamente

utilizada – que atinge a todos indistintamente e atua diretamente no inconsciente onde formamos

nossa subjetividade e nosso jeito de nos relacionarmos com o mundo. Assim, um alfabetizado em

imagens conhece os mecanismos básicos de leitura e decodificação da linguagem visual.

Como seria a condição ou estado de letrado na linguagem visual? Seria fruto deste

primeiro contato, quando a pessoa já percebe que as imagens trazem mensagens, e tem condições

de interagir ativamente com elas. Para além disso, o letrado em linguagem visual tem a

possibilidade de apreender criticamente estas mensagens, com a capacidade de decidir quais

conteúdos quer reter. A partir do julgamento das imagens, que agora é capaz de realizar, esta

pessoa pode passar a saber usar as imagens transmitidas para uma melhor compreensão dos

mecanismos de manutenção da atual situação social, presentes nas imagens. O letrado em

linguagem visual tem a possibilidade de utilizar as imagens para compreender como sua posição

social é representada e qual a intencionalidade contida nesta forma de representação, o que

possibilita uma dissociação entre o estereótipo veiculado pela mídia e a experiência real dessa

condição. Ao atingir este nível de compreensão o indivíduo se torna capaz de desnaturalizar esta

forma de representação, entendendo que esta é formada a partir de uma visão de mundo

específica, que normalmente reproduz a ordem social. Se ficamos sabendo dos fatos que ocorrem

no mundo através dos meios de comunicação, que são na sua maioria meios visuais, ler as

imagens transmitidas por eles é uma forma de leitura do mundo. O letrado em imagens seria

aquele que possui os mecanismos de leitura da imagem, e pode utilizar estes conhecimentos para

ler a realidade a sua volta e compreendê-la.

A prática social com a linguagem visual surge como uma nova etapa na compreensão

desta linguagem, e se caracteriza pela interferência na produção de imagens e conseqüentemente

pela transmissão de uma visão de mundo diferenciada. A partir da leitura crítica da imagem do

mundo veiculada pelos meios de comunicação, a prática social implicaria na utilização desta

compreensão para a produção, estabelecendo um diálogo com a produção oficial, e produzindo

uma interferência que descentrasse a emissão de mensagens. A prática social com a linguagem

visual se coloca como o reverso do analfabetismo, por se caracterizar, não somente pelo aumento

da consciência com relação às informações contidas nas imagens, mas ao mesmo tempo, pela

interferência na produção de imagens. A apropriação da linguagem visual pela sua produção

crítica se coloca em contraposição a sua utilização pelo aparato, dentro do qual esta se torna um

veículo de adaptação.

Nesse sentido, podemos ver a compreensão da linguagem visual como voltada para a

compreensão e apropriação da cultura visual, que, segundo Hernández, refere-se a todas as

produções visuais da humanidade, historicamente acumuladas e em produção. Assim, este teórico

propõe o contato com a arte como uma das possibilidades de ampliação da compreensão da

cultura visual:

[...] a arte na educação para a compreensão tem como finalidade evidenciar a

trajetória percorrida pelos olhares em torno das representações visuais das

diferentes culturas para confrontar criticamente os estudantes com elas. Trata-se

de expor os estudantes não só ao conhecimento formal, conceitual e prático em

relação às Artes, mas também à sua consideração como parte da cultura visual de

diferentes povos e sociedades. Esse enfoque compreensivo trata de favorecer

neles e nelas uma atitude reconstrutiva, ou seja, de autoconsciência de sua própria

experiência em relação às obras, aos artefatos, aos temas ou aos problemas que

trabalham na sala de aula (ou fora dela).239

Aqui, Hernándes coloca o contato com a arte, como meio para desenvolver uma atitude

crítica frente ao mundo, pensando na “trajetória percorrida pelos olhares” como as diversas

visões de mundo que se cristalizaram em obras de arte no decorrer do tempo. O autor não toma a

experiência com a arte como uma experiência de simples apreciação das obras, como indicado

nos PCNs, mas toma as obras como documentos históricos legítimos, e assim, desmistifica a

fruição, afirmando-a como um processo de questionamento frente às obras.

Uma outra perspectiva da educação para a compreensão da cultura visual, como proposta

por Hernández, relacionada com a experiência estética, pode ser encontrada no pensamento de

Lanier:

239 HERNÁNDEZ, 2000, p. 50.

O primeiro ponto é que a experiência estética em geral, incluindo aqui um de seus

aspectos particulares, a experiência estética visual, já é desfrutada pelo indivíduo

antes que ele entre para a escola. Portanto, não a introduzimos para nossos alunos

mas a incrementamos a partir de algo que já está lá. O segundo, é que as artes

plásticas, que entre outros estímulos, provocam a experiência estética visual,

devem incluir hoje muito mais que o óleo em moldura dourada e o mármore sobre

o pedestal dos museus. Devem incluir artesanato e arte popular, em particular, e a

mídia eletrônica como cinema e televisão.240

Vincent Lanier aponta, em concordância com Hernándes, que a experiência com a arte

tem como objetivo uma compreensão aprofundada da realidade, e, portanto, não deve incluir no

seu currículo somente as obras de arte historicamente reconhecidas – que ainda assim, são

fundamentais para o processo – mas procura trazer a compreensão artística para o cotidiano dos

alunos; ou seja, que eles possam usar os conhecimentos adquiridos nas aulas de artes para ler seu

próprio universo. Esta leitura se dá pela apreensão de um vocabulário que se constrói pelo

contato com as mais variadas imagens, pois como afirma Barbosa:

O pensamento presentacional das artes plásticas capta e processa informação

através da imagem. A produção de arte faz a criança pensar inteligentemente

acerca da criação de imagens visuais, mas somente a produção não é suficiente

para a leitura e o julgamento de qualidade das imagens produzidas por artistas ou

do mundo cotidiano que nos cerca. (...) Temos que alfabetizar para a leitura da

imagem. Através da leitura das obras de artes plásticas estaremos preparando a

criança para a decodificação da gramática visual da imagem fixa e, através da

leitura do cinema e da televisão, a preparamos para aprender a gramática da

imagem em movimento.241

240 LANIER, Vicent. Devolvendo arte à arte-educação. In: BARBOSA, A. M. Arte-educação: leitura no subsolo. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1999, p. 43-55, p. 46 241 BARBOSA, 1994, p. 34.

Ana Mae Barbosa se refere aqui, à construção do pensamento visual relacionado com a

prática artística e a leitura de imagens, que articulados com a história da arte compõem a Proposta

Triangular, por ela formulada. Com estes três pontos, acredita-se que o aluno esteja habilitado a

entender: os mecanismos de construção da arte, pelo fazer arte; seja capaz de fazer julgamentos

críticos e estéticos, pela leitura de sua própria produção e, de qualquer imagem com a qual tenha

contato; e por fim, com a história da arte, possa contextualizar as produções artísticas e conhecer

o desenvolvimento da arte através do tempo, ou seja, entrar em contato com o conhecimento

historicamente construído da arte e assim entender melhor o pensamento de quem produziu a

obra de arte, o que significou para o momento histórico no qual foi produzida, e, que significados

assume em nosso momento histórico.

A proposta triangular se propõe a possibilitar que os alunos desenvolvam o pensamento

crítico sobre as imagens, pela constituição de um vocabulário específico que possibilite falar

sobre arte, e, portanto decodificar a gramática visual, com a qual as imagens são construídas, e

também ampliar a percepção estética dos alunos, ou seja, uma percepção profunda e crítica da

experiência estética visual. Assim, quando se é educado a olhar para a arte com esse olhar crítico,

aprende-se a olhar para todas as coisas do mundo com esse mesmo olhar crítico, esta é uma

habilidade que se desenvolve.

É por isso que um dos objetivos a que nos propomos com a educação para a

compreensão da cultura visual [...], é o estudo e a decodificação desses produtos

culturais mediáticos. Conhecimento que talvez não seja conveniente aprender na

escola, se o que se persegue é que os indivíduos respondam indefesos diante da

enxurrada mediática que lhes cai em cima.242

242 HERNÁNDEZ, 2000, p. 43

Hernándes levanta a questão da presença da indústria cultural na vida contemporânea e,

como já foi abordado, sua função para adaptação do indivíduo à civilização. A compreensão da

cultura visual pode ser uma forma de proporcionar aos alunos que não mais respondam indefesos

diante da enxurrada mediática da qual fala Hernándes. A cultura e a arte são fundamentais para a

humanidade, podemos dizer que a arte tem, de certa forma, o papel de representar o mundo de

uma forma diferenciada pela construção do novo, que contraposto à estandardização da indústria

cultural, pode possibilitar a percepção de outras formas de representação do mundo.

Pensando nestas questões, podemos lembrar da discussão sobre cultura de Marcuse, na

qual afirma que hoje temos a cultura assimilada pela civilização, o que faz com que seus

elementos sejam forçosamente utilizados como veículos de adaptação, mas podemos pensar nesse

projeto de humanização como a inversão dessa situação: a Civilização convertida em Cultura.

E de fato uma redefinição da cultura contrariaria as tendências mais potentes.

Significaria a libertação do pensar, do investigar, do ensinar e do aprender do

sistema existente de valores e modos de comportamento, assim como a

elaboração de métodos e de conceitos capazes de ultrapassar racionalmente os

limites dos fatos e dos ‘valores’ estabelecidos.243

E assim pensar na pacificação da existência, pois como o próprio Marcuse afirma: “A vida

como um fim é qualitativamente diferente da vida como um meio.”244 Esta percepção deve ser

levada em consideração desde o início do processo de formação.

243 MARCUSE, 1998, p.165. 244 Id., 1969, p.36.

CAPÍTULO IV A COMPREENSÃO QUE AS PROFESSORAS TÊM DA LINGUAGEM

VISUAL

4.1 O Processo da Investigação Empírica

A Pesquisa Empírica realizada para obtenção dos dados, teve como participante um grupo

de quatro professoras de uma escola de ensino básico localizada na região de Curitiba. A

proposta, a qual denominamos Vivência, aconteceu em três encontros na própria escola, com

duração de duas horas cada um e, as atividades foram escolhidas e organizadas de forma a

possibilitar que se compreendesse como estas professoras lêem e compreendem a linguagem

visual, bem como possibilitar uma reflexão sobre esta. As várias etapas da pesquisa

proporcionaram à pesquisadora, não somente a constatação de como as professoras se relacionam

com a linguagem visual, como também, a realização de um trabalho junto às professoras no

sentido de aprofundar a sua percepção e compreensão das imagens visuais. Todas as atividades

realizadas foram seguidas de conversas sobre as mesmas, para que fosse possível captar as

impressões imediatas das professoras com relação às atividades.

O trabalho com a linguagem visual seguiu um caminho de aproximação com o universo

das imagens, iniciando pelo preenchimento de um questionário, no qual as professoras foram

questionadas sobre suas preferências e hábitos ao assistir televisão. A opção por iniciar com o

questionário foi feita levando-se em conta que antes de ver imagens da mídia, falar sobre elas e

construir imagens, seria interessante que as professoras lembrassem como é o seu contato diário

com estas imagens e qual sua opinião, pois no preenchimento do questionário tiveram a

oportunidade de elaborar racionalmente suas opiniões. Outro motivo foi o de construir um ponto

de referência, baseado na racionalização e verbalização destes hábitos e preferências. A

comparação das respostas dos questionários com as falas emitidas durante a vivência, deixa claro

como alguns elementos são selecionados racionalmente para serem verbalizados, enquanto outros

requerem outro tipo de experiência para serem externados.

Depois de preenchidos os questionários, a filmadora foi ligada e foi solicitado às

professoras que verbalizassem suas respostas em uma entrevista coletiva, na qual cada uma

contou o que havia escrito, iniciando uma conversa entre todas as participantes.

A segunda atividade da vivência, no primeiro dia, consistia em assistir a uma cena da

telenovela Mulheres Apaixonadas, gravada no dia 18 de Setembro de 2003 da emissora Rece

Globo de Televisão. A escolha por esta telenovela se deu em função de ser a telenovela de maior

audiência no horário nobre na época. A trama da cena consistia em uma tentativa de

atropelamento, realizada por Giulia Gan, protagonista da cena, no papel de Heloísa; contra

Vidinha, personagem interpretada por Julia Almeida; a tentativa não foi bem sucedida e Heloísa

foi repreendida por seu marido Sérgio, interpretado por Marcelo Antony e por Lorena,

interpretada por Suzana Vieira, mãe da Vidinha. Somente uma das professoras já havia assistido à

cena, embora todas as outras soubessem o que havia se passado.

Depois de assistida a cena da telenovela, foi feita uma breve explicação sobre a

importância dos elementos visuais e sonoros para a construção do clima da cena, fundamental

para a compreensão da narrativa; neste caso um clima de suspense. Alguns termos foram

levantados e identificados na primeira parte da cena quando a Heloísa está no carro e observa a

Vidinha que ajuda sua mãe a estacionar o carro, momento no qual, aparentemente, ela tem a idéia

de atropelá-la. Os efeitos comentados foram: o tipo de filmagem em super-close, que capta os

olhos da atriz, os efeitos sonoros de respiração ofegante e música de suspense, a iluminação

precária, que transmite a sensação de penumbra, etc.

Ao fim da explicação, a pesquisadora convidou as professoras a se dirigirem a uma sala

de aula, onde foi realizada a próxima atividade. O motivo do deslocamento foi o de procurar um

ambiente mais reservado, já que a televisão se encontrava na sala dos professores, lugar no qual

existia um transito de professores, alunos e funcionários.

Na sala de aula, a pesquisadora propõe às professoras a construção de um roteiro em

duplas para a dramatização no encontro seguinte. Para a construção do roteiro, as professoras

receberam uma folha de papel com 4 temas que sugeriam quatro histórias diferentes. Cada dupla

deveria escolher um dos temas e, a partir dele, construir um roteiro para uma cena; pensar em um

momento da história e construir as falas, decidir quais personagens deveriam aparecer etc. Dadas

as instruções, as professoras iniciaram a construção do roteiro, no qual já poderiam ser incluídos

alguns dos elementos visuais comentados ao fim da novela (tipo de filmagem, iluminação, etc.).

O encontro terminou com o roteiro finalizado.

A construção e dramatização do roteiro foram pensadas no sentido de proporcionar às

professoras uma experiência com a produção audiovisual, já que o contato habitual com estas

produções acontece pelo pólo do espectador, do receptor, e não do produtor. Esta inversão de

papéis possibilitou que estas professoras saíssem do papel de espectadoras e consumidoras, e

assumissem o papel de produtoras e protagonistas de uma história criada e dramatizada por elas.

Levando-se em conta esta longa experiência com os produtos audiovisuais, era objetivo: a

produção, atuação e revelação das representações sociais que construíram enquanto espectadoras.

No segundo encontro, foram realizadas duas atividades, a realização e gravação da

dramatização e a produção de um ensaio fotográfico. Com os roteiros nas mãos, as professoras

ensaiaram a dramatização, que foi apresentada formalmente para a câmera depois de dois ensaios.

Ao término da gravação, a pesquisadora solicitou que as professoras definissem dois ou três

conceitos que resumissem a dramatização para, a partir deles, produzir um ensaio fotográfico.

De posse destes conceitos, as professoras saíram pela escola, acompanhadas pela

pesquisadora, procurando imagens que os traduzissem. Para a realização desta atividade a

pesquisadora levou uma câmera fotográfica e quatro cartões de papel preto com um orifício no

centro para ser utilizado como visualizador/visor. A proposta foi que selecionassem as imagens

com os cartões e depois as registrassem com a câmera. A escolha por fazer a atividade com

quatro cartões e uma câmera, foi feita para que as professoras tivessem tempo para olhar as

imagens antes de fotografar, pudessem pensar nas imagens no lugar de fotografar qualquer

imagem sem pensar sobre suas escolhas. Antes de sair, foi solicitado que tentassem escolher as

imagens com os cartões antes de as registrar com a máquina, prestando atenção aos pontos de

vista, às distâncias e ao enquadramento mais adequados para tirar as fotografias.

O ensaio fotográfico foi integrado à vivência com o intuito de incluir uma modalidade da

linguagem visual com a qual as professoras já tivessem um contato prévio, considerando que se

apropriariam desta linguagem com maior facilidade. A fotografia se mostrou o meio mais

adequado para realizar a ponte entre o papel de espectadoras da linguagem visual, habitualmente

assumido por elas, e o papel de produtoras, proposto pela vivência. A fotografia se coloca como

intermediária entre as duas posturas, pois ao mesmo tempo em que é uma produção de imagens

visuais, esta produção se dá pela captura de imagens através de um visor, não tendo as

professoras como protagonistas da cena registrada. Com o ensaio fotográfico foi possível realizar

a articulação entre os vários papeis assumidos por elas durante o processo da vivência, além da

articulação entre duas modalidades da linguagem visual, sendo uma das quais já experimentada

pelas professoras, e uma ainda não vivenciada até então.

No terceiro dia, a atividade programada foi para permitir que as professoras pudessem

recuperar todo o processo pelo qual passaram nos dois primeiros dias e neste último, para que

elas pudessem compreender a seqüência das atividades e perceber as ligações e, principalmente

para que pudessem falar sobre a linguagem visual a partir desta vivência.

A primeira atividade foi assistir à fita com as dramatizações gravadas e observar as

fotografias reveladas e ampliadas, para que entrassem em contato com os resultados de suas

produções. Com as fotografias nas mãos foi iniciada a primeira conversa sobre as atividades dos

encontros anteriores.

A partir das fotografias, a pesquisadora pediu que as professoras trilhassem o caminho

inverso ao que foi seguido durante as atividades: olhando para as fotografias, lembrassem dos

conceitos que cada uma representava, e refizessem a conexão desta imagem fotográfica com o

conceito. Em seguida pensar na relação entre os conceitos e a dramatização assistida por elas.

Neste dia, a pesquisadora insistiu em referir-se sempre à cena assistida e não à dramatizada,

realizada no encontro anterior, tentando focar a conversa na imagem televisiva assistida, como

um objeto que estava à sua frente.

Depois da conversa sobre as fotografias, os conceitos e as relações com a dramatização,

as professoras assistiram novamente ao vídeo com as dramatizações. Neste momento, foram

solicitadas a pensar na diferença que poderia existir entre a experiência de assistir a cena pela

televisão e a experiência presenciar a cena ao vivo, como aconteceu no encontro anterior.

Levando-se em conta que a experiência do encontro anterior poderia ser comparada à experiência

com uma dramatização teatral e, a deste encontro com a experiência de assistir a uma cena de

telenovela – com todas as implicações do recorte televisivo, temporal e espacial, ponto de vista

único e o distanciamento proposto pelo registro fílmico – tencionando a apreensão da

dramatização como um objeto videográfico.

A partir desta conversa foram questionadas sobre as escolhas feitas durante a construção

do roteiro, o caminho percorrido por elas para chegar à configuração final da cena que foi

assistida.

A próxima atividade foi assistir novamente à cena da telenovela Mulheres Apaixonadas

assistida no primeiro dia da vivência. A escolha por assistir novamente à cena, aconteceu por três

motivos: em primeiro lugar, para retomar o ponto a partir do qual se iniciou o trabalho com a

linguagem visual; em segundo lugar, para pensar em uma possível ligação entre a cena assistida e

as dramatizações; e, em terceiro lugar, para perceber como seria a experiência de assistir à cena

da novela, pela segunda vez e, após as professoras terem produzido um roteiro e dramatizado, ou

seja, terem entrado em contato com a produção de uma cena, e terem participado de discussões

sobre o assunto. Ao término da cena, as professoras foram questionadas sobre semelhanças e

diferenças entre a cena da novela e as cenas produzidas por elas.

Depois desta conversa, as professoras foram questionadas também sobre a presença da

mídia na escola, como elas percebem esta presença a partir do comportamento e das falas dos

alunos, e como elas trabalham com esta presença.

Para finalizar as conversas sobre a linguagem visual, a pesquisadora retomou todas as

formas de expressão trabalhadas na vivência (oral, escrita, corporal, visual), e questionou como

as professoras percebiam as linguagens, e, se percebiam diferenças entre a primeira e a segunda

vez que assistiram à cena de novela.

Para fechar a vivência, a pesquisadora solicitou que as professoras escrevessem em forma

de relato como foi a experiência da vivência para cada uma delas. Com o objetivo de que cada

uma registrasse as suas impressões individualmente, como uma reflexão particular sobre todo o

processo.

4.2 Resultados e Análise da Pesquisa

Partindo da leitura do material coletado em todas as fases da vivência, pudemos separar o

conteúdo em torno de alguns núcleos temáticos como resultado de um trabalho de análise. Estes

núcleos foram definidos levando-se em conta a reincidência em alguns assuntos/pensamentos, o

que os tornavam significativos para a compreensão das representações sociais externadas pelas

professoras.

Como um primeiro núcleo, podemos identificar as Verbalizações sobre o Outro,

emitidas em vários momentos e fases da vivência, a partir das quais podemos analisar qual é a

imagem formulada pelas professoras em relação aos vários outros que apareceram caracterizados

nas falas e comentários.

Como um segundo núcleo temático, as Verbalizações sobre a Telenovela, pois enquanto

assistiam à cena, tanto no primeiro dia da vivência quanto no terceiro dia, aconteceram conversas

que podem ser compreendidas sob a luz da discussão sobre o espectador realizada no capítulo

Sociedade e Imagens.

Observando as produções das professoras, tanto a dramatização quanto o ensaio

fotográfico, e as verbalizações emitidas durante o processo de produção e nas discussões sobre as

produções, identificamos aspectos que podem ser compreendidos como Dissociações entre

Forma e Conteúdo, quando analisamos o que foi feito e o que foi dito sobre o que foi feito.

Para finalizar a análise voltamos a atenção para os momentos nos quais percebemos uma

Dissociação entre Informação e Conhecimento, caracterizado pelos momentos nos quais as

professoras apontaram alguns fatos como negativos e, ao mesmo tempo, demonstraram uma

incapacidade para compreendê-los e explicitaram impotência para modificá-los.

1. Verbalizações sobre o Outro

Durante as atividades dos três dias da vivência, existiram momentos nos quais as

professoras contaram histórias que ilustravam seus pensamentos, ou que lembravam a partir das

atividades e assuntos discutidos. Com estas histórias podemos entender um pouco como estas

professoras atuaram em determinadas situações, e seu pensamento sobre as situações e as pessoas

envolvidas. Por exemplo, no primeiro dia, na entrevista coletiva sobre os questionários, quando

falavam sobre os programas aos quais não assistem e dos quais não gostam, a Professora 1 afirma

que o jornal Tribuna245 é um jornal que ela não gosta, não lê, pois trata de violência, mas que é

um jornal de grande aceitação pela população, o que ela justifica dizendo:

“classe d, e, f, g, h... é só a Tribuna que o pessoal lê, é a notícia do momento que

eles gostam, né bem...” (1)

Aqui a professora associa a preferência por determinados tipos de informação – como as

que aparecem no jornal impresso Tribuna, por exemplo – às pessoas pertencentes a determinadas

classes sociais: “d, e, f, g, h”. A conversa sobre as diversas classes sociais aparece em outros

momentos, nos quais as professoras definem características e comportamentos relativos às

pessoas provenientes das classes menos favorecidas. É possível estabelecer uma relação entre as

imagens caracterizadas pelas professoras nas várias manifestações sobre o assunto. Como na

história contada pela Professora 1 sobre uma situação que ela vivenciou anos atrás em uma escola

da qual foi diretora:

245 Jornal impresso que apresenta notícias policiais e é conhecido pela crueza com que expõem tragédias e cenas de violência explícita.

“... foi um conjunto habitacional de baixa renda que eles construíram, a escola

no meio, e aquele pessoal veio de invasão, veio de baixo da ponte, veio da casa

dos parentes, eles não tinham residência. Então tinha gente muito boa, que tinha

emprego e tal, e tinha outras pessoas que vieram da rua, que não tinham, não

sabia usar o banheiro, plantaram flor dentro do vaso, arrancaram vaso e

venderam, coisas desse tipo...” (1)

“[...] mas veja bem quem é essa clientela...” (1)

A caracterização dos moradores do conjunto habitacional feita pela Professora 1, mostra

quais características a professora considera relevantes para definir a “clientela” a qual a escola

servia. Ela divide os moradores em dois grupos opostos, o de “gente muito boa”, pessoas que

tinham emprego e o das “outras pessoas”, que vieram da rua, não sabiam usar o banheiro. A

Professora 1 acredita que esta divisão e caracterização são suficientes para esclarecer aos

ouvintes o tipo de pessoas com as quais ela estava trabalhando. Como se o fato de estar

empregado fosse suficiente para designar o caráter de alguém na atualidade, quando o

desemprego é comum e crescente; ou não saber usar o banheiro, como existe nos ambientes

urbanos, fosse suficiente para caracterizar uma pessoa “não boa”.

Nesta situação, percebemos o pensamento estereotipado da professora que tenta

caracterizar os habitantes do conjunto com algumas características que enquadram os moradores

em duas categorias distintas e opostas. Segundo Chochík, o pensamento estereotipado é

construído culturalmente e está fundado em uma fixidez do comportamento:

Isso porque a fixidez de um mesmo tipo de comportamento se relaciona com

estereótipos oriundos da cultura, que embora se diferenciem em cada objeto, não

se confundem com eles; é dizer: à aparente diversidade com que a roupagem dos

estereótipos culturais reveste os seus objetos, corresponde uma fixidez de

comportamento no preconceituoso. Esta relação não é direta, pois o indivíduo se

apropria dos estereótipos e os modifica de acordo com as suas necessidades.246

Assim, podemos inferir que o preconceito tem uma forte ligação com a cultura na qual se

desenvolve. Isso significa também que todas as pessoas que participam de uma mesma cultura

têm acesso a estes códigos, introjetando-os de forma mais ou menos intensa, dependendo das

condições nas quais se dá o seu processo de socialização, no qual ocorre, segundo Chochík, esta

introjeção. Mas como “[...] tanto o processo de tornar-se indivíduo, que envolve a socialização,

quanto o do desenvolvimento da cultura têm se dado em função da luta pela sobrevivência, o

preconceito surge como resposta aos conflitos presentes nessa luta.”247 O preconceito surge como

uma forma de defesa contra a violência da realidade estabelecida, como discutido no capítulo

Sociedade e Imagens, mas que se mostra como uma impossibilidade de flexibilizar os

comportamentos e conceitos sobre o mundo.

Em um outro momento, quando as professoras construíam os roteiros, aconteceu uma

discussão sobre o preconceito, a Professora 2 repreendeu as Professoras 3 e 4, dizendo que

estavam sendo preconceituosas na construção das falas para a dramatização:

“Professora 3 – ‘magora, ma-go-ra foi demais!’ [ri]

Professora 4 – ‘magora foi de mais da conta’

[...]

Professora 3 – ‘ó ele vindo aí, vamo priguntá’

Professora 2 – olhe aí você ainda fala que, que as empregada são negra né, olha

a discriminação aí

Professora 3 – o que? o que, fale de novo

Professora 1 – falou errado!

246 CROCHIK, 1997, p.12. 247 Ibid., p.11.

[...]

Professora 4 – está bom,

Professora 3 – duas favelada!

Professora 4 – então você vá

Professora 2 – e daí?

Professora 4 – vá lá e veja quantas falam corr...de outra forma

Professora 2 – não, não

Professora 3 – a [Professora 4] é professora!

Professora 4 – são raras exceções

Professora 2 – nossa, eu morava numa rua que todos falavam bem...

Professora 1 – agora você vai no Rio, na favela, você vai ver que os caras do

morro falam corretamente

Professora 3 – ah! Mas aí é diferente

[...]

Professora 1 – é, o linguajar do sul é diferente

Professora 3 – mas aqui, aqui...

Professora 4 – é que na verdade esse povo aqui, não que ele fala errado, é que a

maioria veio do interior então têm aquele linguajar do interior

Professora 3 – é o êxodo rural

Professora 4 – precisavam ter visto o cara que veio falar comigo hoje

Professora 3 – não é o carioca que vive lá, já é o neto que está lá numa favela, é

o êxodo rural

Professora 4 – depois eu conto o pai que veio falar comigo hoje de manhã, aquilo

merecia ser filmado [falando para a pesquisadora]. Aquilo não existe, sabe? você

não sabe se você ri ou se você chora”

Esta discussão é interessante, pois mostra um conflito que surge entre elas com relação à

imagem que as professoras fazem das pessoas que moram nas favelas, em algumas regiões.

Enquanto a Professora 2 afirma que é um preconceito mostrar estas personagens “falando

errado”, e que a experiência que ela tem, mostra que as pessoas que conheceu que moravam em

favelas “falavam corretamente”, as Professoras 3 e 4 afirmam que todas as pessoas que moram

em favelas “falam errado”, justificando com o fato da Professora 4 trabalhar nestes locais, e

portanto conhecer bem esta realidade.

No meio da discussão a Professora 1 faz uma intervenção dizendo que nas favelas do Rio

de Janeiro, os moradores “falam corretamente”, o que é acolhido por todas as professoras como

uma verdade. O que não fica claro é se esta constatação da Professora 1 nasceu de uma

experiência vivida dentro das favelas do Rio de Janeiro, ou do contato que ela teve por meio dos

meios de comunicação. Mas será que os habitantes das favelas do Rio de Janeiro falam

“corretamente”, segundo a norma padrão? Pois quando elas falam em “falar corretamente”, elas

estão se referindo a seguir a norma culta. Podemos supor que esta constatação nasceu do contato

com os meios de comunicação pela estrutura das conversas durante todo o processo da vivência;

enquanto todas as afirmações eram seguidas da sua comprovação por meio de histórias

vivenciadas, nesta ocasião, a afirmação foi justificada pelas outras professoras que se referiram à

constituição das favelas da região sul do país como fruto do êxodo rural, enquanto as favelas do

Rio de Janeiro são habitadas por pessoas que estão nos centros urbanos há gerações.

A afirmação da Professora 1 aconteceu em um momento no qual as professoras tentavam

eliminar a idéia de preconceito contra as classes menos favorecidas, introduzindo a informação

de que não são todas as pessoas que moram em favelas que “falam errado”, só as que habitam as

favelas do sul, mais recentes, e que portanto não tiveram um contato suficientemente prolongado

com os centros urbanos, que pudesse modificar seu “linguajar”; em oposição à situação do Rio

de Janeiro, onde, segundo as professoras, o contato prolongado com os centros urbanos

descaracterizou o “linguajar” que eles pudessem trazer quando sofreram o êxodo rural. Podemos

perceber que as professoras acreditam que o contato com os centros urbanos é “civilizatório”.

Mas mesmo com a tentativa de amenizar a atitude preconceituosa, elas ainda mostraram

fortemente um pensamento estereotipado e, o preconceito de classe e de região, medido pela

forma de expressão dos habitantes das favelas do sul e, pela constatação das oposições entre estar

mais próximos ou distante da configuração urbana. A discussão termina com uma afirmação da

Professora 4, sobre um pai que veio conversar com ela e que “merecia ser filmado”, ou seja, sua

imagem de não-pertencente aos padrões de civilidade, estabelecidos por ela, merecia ser

registrada, pois provavelmente o registro fílmico traria veracidade e confirmação àquela verdade.

Momentos depois, a Professora 4 conta a história do pai que “merecia ser filmado”:

“Professora 4 – aí o pai foi lá reclamar porque estavam batendo no filho dele e

ele não queria mais vir pra escola; mas eu nunca vi baterem, as inspetoras nem

conheciam o menino... sabe aquela coisa, ninguém viu, mas no fim fomos lá,

fizemos a reunião acalmamos os ânimos. Depois disse assim: ‘agora eu vou

falar, por que que eu queria chamar o senhor’, eu disse ‘ah seu filho é inseguro,

ele tem uma série de problemas, ele chega a ... ele enterra as unhas na palma da

mão, ele tem problema de fala..’ Aí o pai disse que o menino não tem problema

de fala, são as pessoas que não entendem o que ele fala

Professora 1 – o pai é muito autoritário?

Professora 4 – o pai é acho que acabou de vim lá do lugar mais distante, lá do

Chuí lá da.... sabe aquela coisa assim, não é que ele seja autoritário, ele não é...

não é a questão do pai ser autoritário, ele disse assim: ‘eu falo enrolado com ele,

porque não vou falar com ele como eu falo com você, ele sabe mais coisa..’ e...

‘olha seu filho está com dificuldade...’ ‘mas ele sabe mais coisa do que eu sabia

quando tinha 15 anos, eu não quero que meu filho seja médico’

Professora 3 – é difícil...

Professora 4 – ‘sabendo ler e escreve pra mim já está bom e se começar a dar

muito problema também tiro ele da escola ele fica em casa e fim de papo e quero

ver quem vai mandar ele vir pra escola’, eu olhei.... ‘sim senhor’; aí eu chamei a

pedagoga, ele repetiu toda história pra pedagoga de novo... bom eu fiz a minha

parte, até tentei argumentar

Professora 1 – vai tentar, vai ter que tentar fazer o máximo pelo menino porque a

família não...

Professora 3 – dentro de sala de aula e a maioria é assim

Professora 4 – mas olhe, esse foi assim, sabe aquele homem de bota e chapelão,

sabe, é bem assim... característica, aquela coisa que te chama atenção mesmo, eu

fiquei olhando... você vai fazer o que com uma criatura dessa?

Professora 1 – é muito difícil mudar...

Professora 4 – dá dó da criança, né”

Neste depoimento da Professora 4 podemos perceber que aconteceu um conflito entre o

posicionamento dela e o do pai, que veio à escola reclamar pois seu filho lhe disse que estava

sendo agredido pelos colegas, acusação que a Professora 4 julgou falsa, baseada no fato de

nenhuma das inspetoras ter presenciado as agressões; o pai estava preocupado com a integridade

física de seu filho; e a professora estava preocupada com os problemas de aprendizagem do

menino. O fato do pai não se preocupar com os problemas de aprendizagem ou julgar que não

existiam tais problemas, e a professora julgar que não existiam agressões físicas contra o menino,

bloqueou a comunicação entre eles; cada um manteve sua posição e os problemas da criança,

quer fossem quanto à sua integridade física ou quanto aos seus problemas de aprendizagem não

foram resolvidos. O problema de comunicação entre eles foi justificado pela professora como

resultante da proveniência do pai, que ela acredita ter vindo “lá do lugar mais distante, lá do

Chuí”, o que é reafirmado pela sua aparência bem “característica” de “bota e chapelão”: “você

vai fazer o que com uma criatura dessa?”. Mais uma vez ter vindo do interior e não estar

totalmente adaptado ao modo de vida urbano é motivo suficiente para atestar a falta de

inteligência e compreensão de uma pessoa. Os comentários das outras professoras em relação a

esta história foram os de que a Professora 4 deveria desconsiderar as colocações do pai e assumir

em sala de aula a postura que ela considera necessária, pois como a Professora 1 disse, ela não

pode contar com a família, que não tem condições de compreender estes problemas, ou ajudar a

solucioná-los. Outro ponto que pode ser levantado é o fato de que as inspetoras não terem

presenciado as agressões contra o menino, não significar que estas não tenham ocorrido, ou ainda

que o comportamento comum e aceito pelas inspetoras pode não ser visto dessa forma pelo

menino, que estava se sentindo agredido de alguma forma.

No terceiro dia da vivência, a Professora 4 faz novamente referência à história deste pai,

mas nesse dia, a história é vista por outro ponto de vista, mas não muito distante.

“Professora 4 – Eu tenho um pai da manhã que o menino dele está com muita

dificuldade, tem problema de fala uma série de coisas, mas ele disse assim:“meu

filho com 6 anos sabe mais do que eu sabia com 15, você está querendo muito do

meu filho” quer dizer, do ponto de vista dele, ele está com a razão

Professora 3 – a vivência dele é essa

Professora 4 – é essa!

Professora 2 – é a realidade de cada um né?

Professora 1 – o pai já tinha algum problema aos 15 anos

[todas riem]

Professora 4 – sério! O problema é que o homem tem 2 metros de altura daí a

gente ficou pensando se discutia ou não com ele

Professora 3 – não e depois até onde que ele pode ir

Professora 4 – até onde que a compreensão dele vai [...] e de repente também pra

expectativa de vida que ele tem pro filho dele, o filho dele não precisa ser muito

mais do que isso”

Neste momento as professoras assumem o relativismo para explicar a convivência entre

os pontos de vista do pai e da Professora 4, mas no relativismo, todas as posições são aceitas, não

questionadas e não necessariamente compreendidas. Assim, a Professora se coloca há uma

distância ainda maior do pai, pois mostra que o pai não tinha condições de compreender o que ela

estava falando para ele, porque dentro das suas possibilidades de compreensão, ele estava com a

razão, e não havia nada que a professora pudesse fazer para mudar essa situação. Da

impossibilidade de mudança, vem uma aparente condescendência com a opinião do pai, mas que

“já tinha algum problema aos 15 anos”, ou seja, ele não tem a inteligência suficientemente

desenvolvida para entender o que as professoras compreendem como sendo “o certo”, e assim

elas estabelecem um limite para a compreensão do pai: “até onde que a compreensão dele vai”,

porque dentro do que ele pode compreender, o filho dele não precisa ser muito mais do que já é, e

que pelo visto, é considerado “pouco” pela professora. As professoras mostram uma fixidez de

pensamento e a impossibilidade de compreender a realidade do outro, pois o motivo que levou o

pai a ir até a escola foram as reclamações do menino, esta era a sua preocupação.

Nesta conversa podemos perceber que as professoras usam o relativismo para explicar o

ponto de vista divergente do pai, mas como afirma Chochík:

Dentro do relativismo, a explicação preconceituosa tem o mesmo valor de sua

negação e, assim, as justificativas para se agredir o mais frágil podem ser

defendidas tanto quanto as justificativas para não fazê-lo. Neste sentido, a

liberdade dos pontos de vista não liberta o pensamento e já pode estar nos

remetendo a indivíduos com predisposição ao preconceito, uma vez que no

relativismo o objeto é percebido como o sujeito pode percebê-lo em função de

suas características e necessidades.248

O que faz com que as professoras aceitem formalmente os argumentos do pai, mas

mantenham o preconceito quanto às suas possibilidade de compreensão; cada um manteve seu

ponto de vista, e “respeitou” o do outro, mas os problemas da criança não foram resolvidos. Os

comentários das professoras mostram uma sensação de superioridade com relação ao pai, que não

concordou com a Professora 4, segundo elas, por não poder compreender o que ela estava

dizendo, ou seja: “[...] à onipotência – manifesta ou velada – pela qual o preconceituoso julga-se

248 CROCHIK, 1997, p.24-25.

superior ao seu objeto, corresponde a impotência que sente para lidar com os sofrimentos

provenientes da realidade.”249 O que fica muito claro nesta situação, na qual a professora tinha

intenção de conversar com o pai sobre os problemas que ela percebia na criança, mas as

preocupações do pai estavam voltadas para outra questão, que não diziam respeito à dificuldade

de aprendizagem da criança, ele veio à escola porque seu filho reclamou que estava sendo

agredido pelos colegas. Para o pai o que a criança estava aprendendo era suficiente, o que o

preocupava era a integridade física de seu filho.

Um outro ponto, que se refere ao preconceito e ao estereótipo está relacionado com a

imagem que a escola pública assume em nossa sociedade, uma imagem que é, segundo as

professoras, pejorativa, como podemos ver no comentário da Professora 2, enquanto contava a

história de “uma menina que veio de uma escola apostilada”, cujo pai veio reclamar, dizendo que

sua filha estava “errando mais” desde que mudou para a escola pesquisada, o que foi respondido

pela Professora 2:

“[...] ‘ela está errando mais porque ela está escrevendo mais [...] por isso

que ela está errando mais’ e no final do ano esse mesmo pai veio me

agradecer porque a [nome da aluna] que entrou na escola e a Talita que

saiu da escola era totalmente diferente, sabe? Então eles colocam o filho e

muitos pais, a gente sofre com criança porque muitos pais dizem: ‘ó meu

filho, agora, você saiu daquela escola boa por isso e por isso, agora você

vai pra aquela escola’, você vai pra aquela escola, então a criança já vem

[...] com aquela imagem que é aquela escola que porque aqui é pública

então ele pode tudo, porque não vai ser expulso, não vai ser convidado a

sair, e aos poucos você tem que ir fazendo muita coisa, muita coisa pra

249 CROCHIK, 2003, p. 13.

poder mudar a visão, muda muito mais fácil a visão da criança que do pai,

o pai demora mais.” (2)

Neste comentário da Professora 2, que foi reforçado pela outras professoras, podemos

perceber o preconceito que elas sentem dos pais e alunos com relação à escola pública, e ainda o

preconceitos das próprias professoras com relação às escola particulares, pois quando ela fala em

“escola apostilada”, ela está se referindo à má qualidade das escola particulares, nas quais as

crianças não escrevem, só recebem folhas para preencher e por isso sentem dificuldade quando

tem que escrever mais. Continuando esta discussão, a professora 4 conta sobre uma aluna sua que

está na mesma situação:

“muitas vezes você percebe assim até isso, bem isso que a [Professora 2]

falou, a criança que vem da particular vem com mais dificuldade do que a

que a gente tem em sala, pela concepção que se tem na escola particular.

Eu peguei uma menina no meio do ano com a mesma situação, você

pegava o caderninho dela, a [nome da aluna] que veio aqui hoje, você

pegava o caderninho dela da metade pra trás que é da outra escola só tem

folha colada, então quando a gente pegou ela aqui, quando ela entrou na

sala, não sabia fazer o formato de um texto!” (4)

Ou seja, elas afirmam e generalizam que a formação proporcionada pela escola particular

não é tão boa quanto a que elas oferecem ali na escola pública. Elas falam como se houvessem

dois grupos, um formado pelas escolas particulares e, outro, formado pelas escolas públicas;

apesar do preconceito que elas sentem da sociedade com relação à escola pública, afirmam que

não é verdadeiro, pois elas recebem crianças das escolas particulares que não receberam

orientações básicas, como “fazer o formato de um texto” por exemplo.

Para compreender a estereotipagem do pensamento das professoras, podemos recorrer aos

escritos de Chochík, no livro intitulado Preconceito250, e à discussão sobre a televisão dentro da

industria cultural do capítulo Sociedade e Imagens.

Como foi discutido acerca da indústria cultural, este pensamento estereotipado está

relacionado com a caracterização dos personagens da televisão, construídos com poucos

elementos que são marcantes e suficientes para defini-los como os tipos: o herói, o vilão, o

mocinho, o bom, o mau, o traidor, o vencedor, o vencido etc. Desta forma a percepção dos tipos é

automática e acontece em função de marcas que se repetem em vários programas e servem como

categorias dentro das quais se pode enquadrar as pessoas. Como afirma Vermelho o espectador se

identifica com os personagens pelo reconhecimento na tipologia: “[...] com o qual o espectador o

reconhecerá como um tipo e se identificará com esse ou com aquele personagem.”251 A

percepção estereotipada dos personagens serve como um guia para a percepção das pessoas com

as quais se convive, pois ao mesmo tempo em que as pessoas se espelham nestes personagens

para constituírem suas inúmeras características, identificam nos outros estas categorias

marcadamente, como se por alguns adjetivos fosse possível defini-las. Como afirma Adorno, a

realidade passa a ser olhada “pelos óculos da tv”; o que é reforçado por Bourdieu e Phillips,

quando comentam que a televisão acaba por definir a realidade e construí-la, a imagem passa a

ser uma parcela da realidade.

Segundo Chochík:

Não vemos a pessoa que é objeto de preconceito a partir dos diversos predicados

que possui, mas reduzimos esses diversos predicados ao nome que não permite

nomeação: judeu, negro, louco etc. [...] independentemente das inúmeras

250 CROCHIK, 1997. 251 VERMELHO, 2003, p.112.

características que a pessoa vítima do preconceito possua, a que passa a

caracterizá-la é o termo que designa o preconceito.252

A esta particularidade da característica preponderante da vítima do preconceito são

associados ainda outros atributos fixos que completam o estereótipo, pois a “classe” das pessoas

que pertencem a um ou outro estereótipo, é constituída por todas as pessoas que podem ser

agrupadas sob este nome e que, para o olhar preconceituoso, possuem um conjunto de

características comuns. Assim, ao se referir às pessoas que se mudaram para o conjunto

habitacional, a Professora 1 nomeou dois grupos que dividiam e comportavam todos os

moradores do conjunto habitacional: o de “gente boa” e “as outras pessoas”; ou os que não

sabiam “usar o banheiro”, e os que “possuíam um emprego”. Com estas duas categorias, ela

pretendia mostrar o “tipo de clientela” à qual a escola atendia.

Na separação entre as escolas particulares e as escolas públicas, a estereotipagem também

aparece; pelas histórias das duas crianças, foi possível que elas generalizassem que todas as

escolas particulares, “apostiladas”, não possibilitam uma boa formação aos seus alunos, enquanto

as escolas públicas, nas quais as crianças têm que escrever mais, esta formação é possível. Nesta

questão podemos ainda pensar em um preconceito que se desenvolve a partir do preconceito

sofrido, para amenizar a imagem de que a escola pública é “aquela escola, com aquela imagem”,

inverte-se “aquela imagem” para a escola particular; funcionando como um mecanismo de defesa

contra a violência sofrida.

A imagem pejorativa da escola pública atinge diretamente as professoras, como afirma a

Professora 3:

252 CROCHIK, 1997, p.17.

“agora existem escolas e escolas né gente, porque as pessoas... as escolas

são feitas de pessoas, então, aquela coisa né...”(3) [todas concordam]

“tanto a pública como a particular depende muito da mente de cada

um”(4)

“mas agora o particular lógico, eles têm medo de perder o emprego, que

da pública é menor, então é, são feito de pessoas, de compromissos, e de

valores e de ética, é por aí né?”(3)

Mas a relativização dos comentários termina com a consideração de que os professores

das escolas particulares “têm medo de perder o emprego”, o que os obriga a se submeter aos

ditames das escolas, ou seja, eles não têm liberdade para desenvolver seus próprios valores, o que

mantém a idéia pejorativa das escolas particulares.

Com estas verbalizações das professoras no decorrer da vivência podemos compreender

como o pensamento estereotipado e o preconceito estão presentes nas compreensões que estas

professoras têm da realidade, e como formatam as imagens criadas sobre o outro e determinam o

comportamento e a atitude das professoras.

2. Verbalizações sobre a Telenovela:

A cena da telenovela foi assistida duas vezes durante a vivência, e, cruzando as

manifestações que ocorreram no primeiro dia com as que ocorreram no terceiro dia, podemos

perceber que algumas opiniões se repetiram, algumas foram acrescentadas e, também, como a

experiência com a linguagem visual, possibilitada pela vivência, modificou a postura das

professoras.

Com estas manifestações podemos perceber um pouco como as professoras se relacionam

com a narrativa da telenovela, e como relacionam esta narrativa ficcional com a vida real,

constatando uma indissociabilidade entre o personagem e o sujeito/ator. Se relacionarmos estas

manifestações com as manifestações emitidas com relação à dramatização, percebemos ainda

uma indissociabilidade entre o eu e o personagem. Vejamos estas falas:

“essa eu assisti quando ela atropelou a outra...” (4)

“essa moça está precisando se tratar né?” (1)

“eu não assisto novela, essa cena eu assisti.” (4)

“Professora 1 – quem é a Vidinha?

Professora 3 – a Vidinha é uma menina que dá em cima do marido dela

[...] ontem beijou o marido da outra [...] na boca ainda!”

Estes comentários, retirados de uma conversa que acontece assim que a cena começa, no

primeiro dia, representam um momento no qual as professoras começam a entrar na narrativa,

situam os personagens, retomam momentos anteriores da narrativa e fazem referência à

informações que receberam dos outros meios de comunicação, como revistas de fofoca ou

reportagens sobre a vida dos atores. Quando a cena começa, existe um breve silêncio,

interrompido por um suspiro da Professora 3 que é comentado pela Professora 4:

“Professora 3 – Ah! Não tinha assistido!

Professora 4 – deve ser engraçado assistir você... ver você assistindo

novela”

Este é o primeiro de uma série de comentários das professoras com relação à filmagem,

pois apesar de estarem cientes de que a vivência seria registrada em fita de vídeo – o que foi

determinado no primeiro encontro quando foram acertados os dias e as participantes – em vários

momentos durante todo o processo, as professoras fizeram comentários sobre a filmadora e o fato

de estarem sendo filmadas, como se sentiam, o que pensavam sobre o assunto, etc. Neste

comentário a Professora 4 demonstra que tem consciência de que esta fita será assistida pela

pesquisadora, e a confusão de “assistir você... ver você” deixa claro que este “assistir” não se

refere à estar ao lado no momento no qual a Professora 3 assiste à novela, mas principalmente

“assistir” pela televisão a ela assistindo à novela.

No desenrolar da cena, as professoras continuam conversando e comentando as cenas,

muito envolvidas com a narrativa:

“Professora 2 – Mas se ela não se joga ela se machuca

Professora 3 – ela machucou o joelho tudo assim, mas eu matava se fosse

minha filha”

Estas demonstrações de envolvimento emocional são muito interessantes se pensarmos na

identificação com uma ou outra personagem. Em um primeiro momento, a Professora 3 mostra

uma certa identificação com a Heloísa, quando repreende o comportamento da Vidinha, “que dá

em cima do marido” da Heloísa, mas neste momento do atropelamento, quando elas discutem se

a Vidinha se machucou ou não, ela mostra uma identificação com a Lorena, mãe da Vidinha. Esta

questão entra em contato com a discussão sobre identificação no cinema de Aumont253, na qual

explica que o espectador não se identifica com um ou outro personagem durante toda a narrativa,

253 AUMONT, 1995.

mas se identifica com determinadas situações, ou tipos; no primeiro caso, com o papel de esposa,

e no segundo, com o papel de mãe.

Por outro lado, são feitos comentários que se referem à construção da novela, sobre as

escolhas da representação social de alguns personagens, por exemplo, como nesta manifestação

da Professora 3:

“A empregada continua negra” (3)

Neste comentário aparecem dois elementos: em primeiro lugar, a consciência da

professora de que esta situação se trata de um pesquisa, e que portanto, elas estão sendo

observadas, e nesse sentido, ela tem uma imagem a preservar, a de uma professora crítica que

consegue perceber a reafirmação do preconceito de raça, ainda presente na maioria das

telenovelas brasileiras; e em segundo lugar, um comentário que se coloca como um chavão

dentro das discussões de preconceito, o que pode ser visto como um pensamento estereotipado,

referente a como se comportar e ao que observar.

Na continuação da cena, a Heloísa aparece em seu apartamento, em uma cena longa que

mostra as expressões faciais da atriz em silêncio, com uma trilha sonora e uma iluminação baixa

que ajudam a criar o clima de loucura que se instaura na sala onde ela permanece até o fim da

cena. Durante esta cena, as professoras comentam o que ouviram falar que irá acontecer a seguir:

“Agora ela vai tentar se jogar da janela” (2)

A Professora 1 dá risada pensando que a Professora 2 está brincando, mas a Professora 2 e

a Professora 3, confirmam dizendo que é verdade. O que é interessante notar neste momento, é

que as duas professoras repetem a mesma frase 3 e 2 vezes respectivamente, a Professora 2

dizendo que sua tia havia lhe contado, e a Professora 3, dizendo que a empregada, que era

maltratada pela Heloísa, é quem a salva:

“coitada da minha tia que me contou” (2) [3 vezes]

“coitada da empregada que ela humilha o tempo inteiro que salvou ainda

ela” (3) [2 vezes]

As duas em uma fala cega, repetindo automaticamente a mesma frase como se ninguém as

estivesse ouvindo, com os olhos fixos no aparelho de televisão.

Deste momento de total imersão na narrativa, inicia outro momento com um tipo diferente

de imersão, as professoras discutem sobre a saúde mental da atriz Giulia Gan:

“Professora 1 – mas ela é louquinha na vida real

Professora 2 – eu também acho, eu acho que é ela que...

Professora 3 – eu não sei...

Professora 2 – eu não, acho que ela... ela é assim mesmo!

Professora 3 – Será?

Professora 2 – Louca sim!

Professora 3 – Ela é louca na vida real?

Professora 2 – Tanto que o Pedro Bial conseguiu tirar a guarda da...

Professora 1 – louquinha, louquinha [sinal de mais ou menos], mas agora

acho que ela está de volta”

Esta conversa evidencia uma confusão entre a vida real da atriz Giulia Gan e a sua vida

ficcional como Heloísa, é interessante notar que se retome esta conversa (logo que iniciou a cena

a Professora 1 comenta: “essa moça está precisando se tratar né?”) justamente em um momento

no qual a iluminação, a trilha sonora, a filmagem em super-close, e a expressão corporal e facial

da atriz constroem um clima de loucura e angústia. Conversa esta que será retomada pelas

professoras no último dia da vivência quando assistem novamente à mesma cena. Neste sentido,

podemos perceber um tipo diferente de imersão na narrativa, pois as duas vidas da atriz (ficcional

e real) se confundem nas revistas de fofoca, que transformam fatos isolados em partes contínuas

de uma narrativa que pode ser acompanhada pelos leitores. Mas a construção destas narrativas é

sempre fragmentada, formada por algumas cenas assistidas da novela, e pela leitura de alguns dos

fatos que aparecem nas revistas, as lacunas são então preenchidas pela imaginação acostumada a

completar, com continuidade, fatos isolados, como em uma história em quadrinhos.

Nesta discussão percebemos a confusão entre a atriz e a personagem; a personagem

Heloísa é caracterizada como louca na novela, tem um ciúme doentio do marido e por isso tem

algumas atitudes consideradas exageradas, assim, no momento em que ela aparece, as professoras

falam sobre ela como se ela fosse uma extensão da atriz Giulia Gan, que a representa. A atriz é

tida como louca por elas, e a justificativa da Professora 2, para garantir que ela seja “louca na

vida real”, é que o apresentador de televisão Pedro Bial, conseguiu “tirar a guarda da...”

provavelmente do filho deles. Mas obviamente um fato não justifica o outro, a vida das atrizes

contada nas revistas de fofoca é uma outra construção, e nem sempre corresponde ao que

realmente acontece. Mas para as professoras, as fofocas e a imagem da atriz representando uma

personagem louca, são suficientes para que elas acreditem que ela seja louca na vida real.

Esta discussão se inicia no primeiro dia, mas é retomada no último dia, mesmo depois que

a novela já havia terminado, com o mesmo enfoque, mas agora a confusão entre a realidade e a

ficção se dá em outro nível. A confusão entre atriz e personagem, é trocada pela confusão entre a

existência ficcional e real da personagem:

“Professora 2 – se você pensar bem nessa novela no final da... no último

dia, na cena dela, ela ainda ficou completamente maluca né?

Professora 3 – não!

Professora 4 – mas claro que sim

Professora 3 – claro que não

Professora 2 – mas claro que sim

Professora 2 – ela não melhorou um pouquinho se quer

Professora 3 – ah não, não, ela melhorou sim

Professora 2 – melhorou nada!

Professora 4 – ela só ficou dissimulada

Professora 2 – ela ficou dissimulada

Professora 3 – eu não concordo

Professora 2 – ela aprendeu a fingir

Professora 3 – não, vocês não acreditam nas pessoas gente, ah não!

Professora 2 – de jeito nenhum

Professora 3 – ah ela melhorou, melhorou, ele é que é doente também, não

pensem que é só ela é doente, os dois são doente

Professora 4 – acho que é mais doente quem fica discutindo isso

Professora 3 – porque olha bem, ele tomou parte de toda essa história aí, e

ele ainda fazendo ciuminho pra ela, não, ele é doente também, é igual ela”

Aqui as professoras discutem se, depois do tratamento que a personagem sofreu na

novela, ela “melhorou”, se curou, da loucura ou não. O capítulo ao qual as professoras se referem

é o último capítulo da novela, então a continuidade da loucura ou não, não é possível, pois a

ficção é interrompida e a construção da personagem também. A construção dos personagens de

filmes ou novelas se dá durante a produção, portanto a caracterização do personagem varia no

decorrer da narrativa, eles não têm um caráter definido, a unidade de caráter acontece na

percepção do espectador, quando lembra e retoma os fatos dos quais o personagem fez parte.

Quando a Professora 2 inicia a discussão dizendo que a personagem continuou louca a partir da

última cena, e as outras respondem e discutem a respeito, mostra que a narrativa da novela se

mantém em suspenso, com se continuasse se desenrolando nas cabeças das professoras, mesmo

depois de passado quase um mês do término da novela. Apesar da Professora 3 comentar que “é

mais doente quem fica discutindo isso”, se distanciando da imersão, sua afirmação é ignorada

pelas outras professoras.

Para entender esta confusão podemos retomar a discussão sobre identificação no cinema,

de acordo com Aumont. Dentro do processo de identificação que ocorre no cinema temos a

identificação cinematográfica primária e secundária. A identificação cinematográfica primária

seria a identificação do espectador com o sujeito do olhar, indispensável para que este assista ao

filme e compreenda qualquer produção filmográfica ou videográfica; se a identificação

cinematográfica primária não acontece, as imagens que aparecem na tela são literalmente não-

identificáveis e não passam de um desfile de sombras e cores. A identificação cinematográfica

secundária seria a identificação do espectador com a narrativa e seus personagens.

Como primeiro elemento levantado na identificação cinematográfica secundária, temos a

identificação com a narrativa, ou seja, no momento em que começamos a ouvir uma narrativa, em

qualquer situação, nos prendemos a ela. Podemos perceber isto neste caso, pelo fato de que esta

cena da telenovela foi assistida pelas professoras duas vezes durante o período da vivência, e

mesmo assim, nas duas vezes, assim que se iniciou a narrativa, as professoras se ligaram a ela e

prestaram atenção, ficaram envolvidas. E ainda, na segunda vez em que foi passada a cena para

as professoras, a novela já havia acabado, o que poderia ser um motivo para que elas não se

interessassem por este fragmento de narrativa já assistida e parte de uma história que já acabou.

No entanto, elas se prenderam à narrativa, a acompanharam até o final e mostraram o mesmo tipo

de envolvimento que na primeira vez, se manifestando ainda mais espontaneamente, talvez por já

estarem familiarizadas com a pesquisadora. Como foi discutido no segundo capítulo desta

dissertação, a narrativa desperta no espectador a sensação de que de alguma forma fala dele

também, como algo que lhe diz respeito profundamente, pois reproduz a estrutura edipiana, que

faz parte da constituição individual da personalidade já na primeira infância; segundo Aumont254,

este é um dos motivos pelos quais ocorre a identificação com a narrativa.

O segundo elemento da identificação cinematográfica secundária se refere à identificação

com os personagens, com os tipos representados. Os personagens não são indivíduos com um

caráter definido, eles constroem-se enquanto a novela avança, o que, no caso das novelas

brasileiras, está relacionado com as pesquisas de mercado realizadas com os espectadores que

assistem às novelas.

A interferência dos espectadores na construção dos personagens e na continuidade da

narrativa pode ser entendida a partir da discussão sobre a Indústria Cultural, na qual insistimos no

mecanismo denominado por Marcuse de falsa consciência, uma falsa compreensão da realidade

fundada em uma falsa liberdade de escolha. Este falseamento produz uma identificação do

espectador com a sociedade como um todo, e pelo controle das necessidades, vontades e desejos,

as escolhas dos consumidores são condicionadas pelas possibilidades ofertadas pela própria

indústria cultural, o que faz com que as opiniões coletadas nas pesquisas de opinião, estejam

conectadas com um número finito de possibilidades oferecidas de antemão pela própria indústria

da telenovela. Como afirma Marcuse:

Pois a cultura democrática dominante promove a heteronomia sob a máscara da

autonomia, impede o desenvolvimento das necessidades e limita o pensamento e

a experiência sob o pretexto de ampliá-los e distendê-los por toda parte. A

maioria dos homens usufrui de um considerável espaço para compra e venda, para

a busca de um trabalho e em sua escolha; podem expressar sua opinião e mover-

254 AUMONT, 1995.

se livremente – mas suas opiniões jamais transcendem o sistema social

estabelecido, que determina suas necessidades, sua escolha e suas opiniões. A

liberdade mesma opera como veículo de adaptação e limitação.255

A identificação com os personagens se dá na lembrança do espectador, ele reconstrói o

caráter dos personagens ligando as cenas que assistiu da telenovela; assim, os personagens

aparecem como dotados de um perfil psicológico relativamente estável e homogêneo. Esta

sensação é o que faz com que pensemos neles como pessoas reais, com os quais acreditamos nos

identificar.256 É a lembrança fragmentada das cenas assistidas e das notícias lidas nas revistas de

fofoca que comentam as novelas, que permitem que o perfil do personagem seja construído. Este

processo aparece claramente neste trecho da conversa entre as professoras, no qual se referem à

personagem como dotada de um perfil psicológico estável e homogêneo, o que levou as

professoras 2 e 4 a afirmar que ela não melhorou após o tratamento, enquanto a Professora 3

afirma que ela melhorou e ainda repreende as colegas dizendo “não, vocês não acreditam nas

pessoas gente, ah não!” ou seja, existe uma confusão entre as fronteiras da vida real e da vida

ficcional, a existência do personagem transbordou os limites entre a ficção e a realidade, ele é

visto como uma pessoa real que habita o espaço real.

Foi interessante que se tenha retomado a discussão, incluindo as novas informações dos

outros capítulos, como se a história da telenovela estivesse acontecendo, como se o que vimos na

televisão fosse um recorte desta história, que possui um antes e um depois. A noção de

continuidade que aparece aqui é um elemento narrativo utilizado nas telenovelas para conectar

um capítulo ao outro no decorrer dos dias, o que é introjetado pelas pessoas como um elemento

estrutural da narrativa, que gera uma ligação com a vida real. A noção de continuidade, aliada à

255 MARCUSE, 1998, p. 164. 256 AUMONT, 1995, p. 265.

noção de fora de campo, completam esta ligação por propor que mesmo que o fato não esteja

sendo transmitido pela televisão, ele pode estar se desenrolando no espaço fora de campo.

No primeiro dia, quando termina a cena, a Professora 4 realiza uma ruptura com a

narrativa, tentando analisar a ficção e a relação entre atores e personagens:

“Professora 4 – Como é que uma pessoa, um ator sai no final de um dia de

gravação como essa? Como é que elabora isso?”

Professora 1 – Eles estão exauridos.

Professora 3 – Só fazem isso

Professora 4 – Tem que trabalhar emocionalmente estas questões porque

você encarna o papel

Professora 3 – Ela quase se matou aí

[...]

Professora 1 – O que você falou, é uma agressão que eles sofrem e alguns

não conseguem se desligar do personagem depois que termina ali”

Nesta conversa, as professoras fazem uma ponte entre a conversa anterior, quando

discutem a saúde mental da atriz Giulia Gan, e a consciência de que estão assistindo a uma

representação, construída, na qual atuam profissionais. No entanto, os comentários das

professoras se referem a uma confusão entre ficção e realidade por parte dos próprios atores, pois

elas afirmam que os atores não conseguem se desligar dos personagens que representam, como se

eles não soubessem que a telenovela se trata de uma representação ficcional. Podemos ler esta

conversa como uma projeção das professoras nos atores, uma dificuldade sentida por elas para

diferenciar a ficção da realidade. Já que é parte da profissão de ator saber o limite entre a ficção e

a realidade, e entre as várias ficções vividas por eles, pois em alguns casos, os atores representam

vários papéis, trabalham em várias ficções ao mesmo tempo.

Por outro lado, no terceiro dia da vivência, enquanto as professoras assistiam à cena da

novela algumas manifestações mostram que depois de produzir a dramatização, o ensaio

fotográfico e discutir a linguagem visual, a postura das professoras frente à cena se modificou:

“Professora 1 – ah aquela tristeza [...] tenho uma reclamação a fazer, você

quando editou não botou o fundo musical adequado! [se dirigindo à

pesquisadora]

[todas concordam]

Professora 2 – é mas aí que está a grande diferença

[...]

Professora 4 – é a mesma história do Matrix

[...]

Professora 3 – na verdade dá uma tristeza na gente essa música

Professora 4 – não, e olhar com essa cara”

Nesta conversa percebemos uma atenção das professoras para com os efeitos especiais, ou

os elementos formais que constituem a cena, e os comentários podem ser vistos não tanto como

uma reclamação pelo fato da cena que elas fizeram não ter sido editada com efeitos especiais,

quanto um primeiro momento de distanciamento com relação à narrativa para perceber os

elementos formais que constroem o clima desta cena. Durante a construção do roteiro as

professoras foram solicitadas a pensar sobre efeitos especiais que pudessem ser incluídos, mas

sua compreensão formal ainda não possibilitava este distanciamento formal da dramatização,

estágio atingido aqui no final do terceiro dia da vivência. Esta compreensão formal mais apurada

foi manifestada ainda em outros momentos:

“Professora 4 – é a terceira vez que eu estou vendo essa cena e estou

achando ele meio... meio artificial

Professora 3 – ele é tão bonito que a gente nem percebe que ele é artificial

Professora 4 – a interpretação dele não está tão boa assim”

“Professora 4 – eu queria saber quem que assinou o apartamento [...] eu

fico olhando a decoração, eu faço coleção de revista de decoração”

“Professora 3 – olha o quadro que legal, mostrando bem abstrato assim

vermelho

Professora 4 – é a mesma cena né?”

Destas manifestações podemos ver que as professoras começam a perceber elementos que

não foram notados no primeiro dia: na opinião da Professora 4, o ator Marcelo Anthony não atua

tão bem quanto ela pensava, o que é reforçado pela Professora 3, que afirma que o fato dele ser

bonito é o que impediu que elas percebessem isso antes. No entanto, o que acontece, é que

aparentemente agora, a construção da cena está mais clara para elas, elas atingiram um nível

diferente de concentração ao assistir a cena, no qual o envolvimento com a narrativa não é total,

existe uma brecha para um certo distanciamento. Nesse sentido comentam ainda a decoração do

ambiente no qual acontece a cena, o que pode ser visto como uma atenção à visualidade, à

aparência do cenário. A última afirmação da Professora 4, na qual ela pergunta se esta é a mesma

cena assistida no primeiro dia, demonstra que ela está vendo esta construção de forma diferente, e

desta nova forma de apreender a produção videográfica surge a dúvida sobre a identidade das

duas experiências.

3. Dissociações entre Forma e Conteúdo

Durante a vivência as professoras produziram a dramatização e o ensaio fotográfico, duas

atividades que, junto com as conversas sobre estas produções, possibilitaram um aprofundamento

na compreensão da relação das professoras com a linguagem visual. Com estas produções foi

possível perceber, por uma expressão não-verbal, como as professoras articulam estas linguagens

com seus discursos.

Em seguida serão apresentadas as falas das dramatizações:

Dramatização 1:

“Professora 2 – eu vou usar a minha sacola, chegando do mercado, a

gente chega assim ó, pronto.

[Professora 1e 2 riem]

Professora 4 – a sacola anda junto com ela.

Professora 2 – filho faz isso, faz aquilo e o cara está estático ali

Professora 2 – o que aconteceu? brigou com alguém? bateu o carro? Está

doente?

Professora 1 – não

Professora 2 – o que que aconteceu?

Professora 1 – fui demitido

Professora 2 – ah!

Professora 1 – a firma faliu

Professora 2 – ah!

Professora 1 – E agora?

Professora 2 – E agora? Que vamos fazer?

Professora 1 – bom, Vamos ter que cortar tudo... boutique, festas,

academia...

Professora 2 – escola... [bem baixinho]

Professora 1 – festas

Professora 2 – natação [bem baixinho]

Professora 1 – tudo, tudo, tudo

Professora 2 – Tudo? Não tudo não, não, não... você tem que falar não

também... não... e a gente vai chorar agora...

Professora 1 – fim.

Professora 2 – pronto, estático”

Dramatização 2:

“Pesquisadora – então, tá, nós estaríamos então na frente do portão da

casa

Professora 4 – isso

Pesquisadora – as duas estão grávidas?

Professora 4 – as duas estão grávidas, as duas vizinhas conversando

Pesquisadora – Vizinha decidi largá o João

Professora 4 – ué, pro que? Eu acho até que ele era bão procê e pros

menino

Pesquisadora – era bom pra mim é bom tamém pras outra!

Professora 4 – não tô entendendo

Pesquisadora – sempre sabia que ele num era ninhum santo, magora foi

demais da conta

Professora 4 – O que aconteceu?

Pesquisadora – o Neco disse que viu ele com otra e a danada tá até

grávida, ih olha aí Neco vindo aí

Professora 4 – Xi acabei de lembrar da panela no fogo

[todas riem]”

Para compreender as dramatizações, é interessante pensar no momento em que os roteiros

foram construídos, no qual aparecem as escolhas feitas pelas professoras e o trajeto percorrido

por elas para chegar à configuração final da cena acima apresentada. Enquanto elas escreviam,

conversavam e comentavam as escolhas.

Para organizar as manifestações das professoras e realizar a ligação entre as falas e o

roteiro realizado, as conversas sobre as cenas serão divididas por duplas, em primeiro lugar, a

dupla formada pelas Professoras 3 e 4, que produziram a Dramatização 2, e em segundo, a dupla

formada pelas Professoras 1 e 2, que produziram a Dramatização 1.

Um momento interessante da construção do roteiro da dupla Professora 3 e 4, é no qual

elas definem o caráter da cena:

“Professora 3 – duas mulheres juntas conversando, pode ser um chá, ou

alguma coisa assim? Chá?

Professora 4 – pode ser

Professora 3 – não, vamos fazer uma coisa engraçada

Professora 4 – é, mais engraçado

Professora 3 – que você falou... vamos fazer diferente, a vizinha, as duas

vizinhas conversando [faz um sinal de uma e outra] ... o marido

Professora 4 – beleza! Já temos umas dez cenas aí

[...]

Professora 4 – a cena acontece no portão tem que ser no portão

Professora 3 – portão, não tem portão, é no barraco, na frente do barraco

Professora 4 – na porta

Professora 3 – o que elas estão fazendo? Vendo as crianças brincar na

rua, numa poça de água suja...

Professora 4 – ô, a atividade preferida deles é ficar olhando, vendo o

movimento da rua”

Neste trecho podemos perceber como aconteceu a escolha por dramatizar uma cena que se

passaria em uma favela, e ao mesmo tempo, que imagem estas professoras têm das pessoas que

moram em favelas, para os quais a atividade preferida é ficar vendo o movimento da rua e cuja

casa não tem portão. Retomando a discussão sobre o preconceito, podemos perceber que as

professoras têm uma imagem fixa de como é o comportamento e como são as casas onde moram

as pessoas que habitam as favelas. Esta imagem fixa possibilita que as professoras não tenham

dúvidas de como caracterizar os personagens e o ambiente da cena, pois são suficientes algumas

poucas características.

No segundo dia da vivência, depois de realizadas as dramatizações, acontece uma

conversa sobre a realização da cena na qual as professoras são questionadas sobre a escolha do

tema, a Professora 4 explica:

Professora 4 – ah, a gente pensou em fazer alguma coisa mais engraçada

não ficamos preocupadas muito assim com o por quê, a gente viu qual dos

três que a gente imaginou uma cena engraçada e foi aquela ali [...]

engraçada porque não era nenhuma das duas que está vivendo”

Podemos perceber que ela mostra uma escolha quase aleatória do tema, como se ela e a

Professora 3 tivessem escolhido o tema pela possibilidade de fazer uma história engraçada, mas

quando retomamos a construção do roteiro, percebemos que o critério de escolha foi o de uma

cena que tivesse menos personagens e pudesse ser representada somente pelas duas professoras, a

idéia de fazer uma cena engraçada veio depois, como uma segunda idéia para o roteiro.

“Professora 4 – esse a gente podia fazer esse aqui

Professora 3 – ahã, e esse?

Professora 4 – é que aqui ó, aqui precisa de mais personagens”

Se o critério fosse apenas o de um tema que possibilitasse a construção de uma cena

engraçada, elas poderiam ter escolhidos qualquer um dos temas, pois o elemento cômico é

exterior ao tema proposto.

Na última frase do trecho recortado anterior, a Professora 4 diz que a cena era engraçada

porque não era nenhuma delas que estava vivendo, esta afirmação que foi repetida por ela em

outras ocasiões, sempre confirmada pelas outras professoras, mostra que a Professora 4 sente um

estranhamento com relação à cena produzida por ela, que de certa forma vai contra a postura que

ela assumiu no questionário e nas discussões sobre a televisão, quando ela afirmou

categoricamente que não gostava e não assistia programas de auditório, sendo que, no entanto,

podemos perceber uma grande similaridade entre eles:

“programa de auditório no Brasil é um caso sério [...] difícil salvar

alguma coisa [...] tem aqueles programas apelativos [...] aqueles dito

jornalístico [...] sangue escorrendo pela tela aquilo também não dá, não

tem condição, na verdade se você olhar bem sobra pouca coisa na

televisão pra assistir”(4)

Com estes comentários, a Professora 4 afirma que não assiste a estes programas que

exploram a “desgraça alheia” como entretenimento, e afirma que só gosta de assistir ao noticiário

na televisão; mas o roteiro apresentado por ela e pela Professora 3, tem uma grande semelhança

com estes programas que ela diz não assistir. Mas que a Professora 3 confessa ver às vezes:

“Agora meu filho me chama pra assisti Ratinho [...] ‘venha ver mãe’ na

sala, ‘venha ver mãe, venha ver o que está acontecendo’. ” (3)

A semelhança entre a dramatização e os programas de auditório que a Professora 4 diz

não assistir, é percebida pela estrutura da cena que torna engraçada a “desgraça alheia”, estrutura

utilizada em muitos destes programas, nos quais são transmitidas as “Pegadinhas”, situações

desagradáveis às quais são expostas pessoas sem aviso prévio e que se caracterizam por infligir

constrangimento e susto pela gravação escondida de brincadeiras de mau-gosto, transformando a

“desgraça alheia” em entretenimento; ou então pela exposição de situações particulares e íntimas

de conflito entre casais, ou outros membros da família, sempre visando o entretenimento. Para

pensar a transformação da “desgraça alheia” em entretenimento vamos recorrer ao texto

“Educação após Auschwitz”257 de Adorno, no qual discute que o atual objetivo da educação

deveria estar voltado para que Auschwitz não se repita, e em meio a esta discussão fala um pouco

sobre a frieza das pessoas em nossa sociedade como um dos elementos que permitiram que

Auschwitz acontecesse, pela impossibilidade de identificação com o sofrimento alheio:

Aqui vêm a propósito algumas palavras acerca da frieza. Se ela não fosse um

traço básico da antropologia, e, portanto, da constituição humana como ela

realmente é em nossa sociedade; se as pessoas não fossem profundamente

indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, excetuando o

punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de

alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas

não o teriam aceito. [...] A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a

condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz

em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas.258

Esta incapacidade de se identificar com o sofrimento alheio, como resultado da frieza que

existe em nossa sociedade, pode ser percebida nestes programas de auditório, que transformam

em comédia a “desgraça alheia”, estrutura que foi reproduzida na dramatização das Professoras 3

e 4. A diferença que podemos perceber entre Auschwitz e os programas de auditório está no fato

de que nos programas de auditório, a indiferença que apareceu em Auschwitz é transformada em 257 ADORNO, Theordor. Educação após Auschwitz. In: Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995b. 258 Ibid., p. 133-4.

entretenimento, ou seja acontece um agravamento desta frieza e incapacidade de identificação

comentadas por Adorno. Esta frieza está relacionada com o preconceito no sentido em que ela se

aplica sempre ao “outro”, como afirma Adorno quando fala que a indiferença só não se aplica ao

punhado de pessoas com as quais se mantém um estreito vínculo.

Outro ponto que pode ser levantado com relação aos programas de auditório é a exposição

do privado que se torna público, e o interesse crescente dos espectadores pela vida íntima de

outras pessoas, como aparece nos reality shows259, cada vez mais freqüentes na televisão

mundial.

Quando questionada sobre a construção da solução para a cena, a Professora 4 afirma:

“é uma coisa bem de realidade, [...] é uma resposta que é.. comum de você

encontrar, a gente até estranha isso, mas se você vai numa comunidade aí

mais carente é comum você encontrar, até de repente as duas... quando eu

trabalhava na Vila Pinto, tinha uma família que eu atendia que morava o

marido, as duas esposas e os dez filhos, todos na mesma casa [...] então

quer dizer é uma coisa que parece muito distante mas na verdade não é”

(4)

A Professora 4 diz que a solução da cena foi baseada em fatos reais, situações que ela

presenciou, ela afirma que “a gente até estranha”, mas que é muito comum encontrar estas

“respostas” nesse mundo, percebido como “distante”, que é o mundo das “comunidades mais

carentes” das favelas. A professora diz presenciar estes fatos, mas marca uma distancia muito

grande entre “a gente” e as pessoas que moram em “comunidades mais carentes”, ou seja as

259 Reality Shows se refere aos programas que apresentam cenas supostamente reais vividas por um grupo de pessoas durante o período do programa, como por exemplo, Big Brother e Casa dos Artistas, apresentados respectivamente pelas emissoras Globo e SBT, nos quais um grupo de pessoas vive isolado em uma casa durante alguns meses, são filmadas 24 horas por dia, tendo algumas das cenas apresentadas ao público durante o programa.

pessoas que moram em favelas se constituem como o “outro” deste discurso, e o contato que ela

tem com eles não ameniza esta distância.

A afirmação de que retiraram suas idéias para o roteiro da vida real se mantém mesmo

quando a pesquisadora pergunta se as professoras lembram de ter visto alguma coisa nos meios

de comunicação que estivesse ligado aos temas das dramatizações:

“Professora 4 – acho que você não tava aí, a mãe do meu aluno... da nossa

história, até ontem um aluno veio comentar, ‘ah,o pai do fulano fugiu com

a vizinha’

Professora 1 – olha aí ó, inspirou-se”

Reafirmando que a construção do roteiro tem uma grande ligação com o que acontece na

vida real.

No último dia, com o intuito de recuperar este processo, são questionadas sobre a

construção do roteiro, as escolhas feitas para delimitação da cena, sobre o que responderam:

“Professora 3 – no começo a gente pensou em fazer uma classe média, um

chá, até meio chiquezinho né [Professora 4]? [...] e aí uma amiga contando

pra outra amiga que o marido estava traindo e aí... mas vamos fazer uma

coisa mais assim povão, uma coisa né? Aí que girou em torno daí até a

[Professora 2] falou: ‘mas vocês estão falando errado você está fazendo

falar errado, isso daí já é um preconceito’ daí a gente ‘não, a gente quer

deixar engraçado’

Professora 4 – daí a linguagem não é errada, é a linguagem do local

[...]

Professora 3 – estão acostumados a usar, que eles usam, se tornou uma

discussãozinha paralela, a respeito da linguagem ou não e do social, aí

entrou no social

[...]

Professora 4 – até depois quando você reproduziu o meu comentário, eu

fiquei pensando em uma questão de valores, nós achamos engraçada a

cena, mas, por que que nós achamos isso engraçado né? [se referindo à

questão colocada pela pesquisadora que lembrou que no segundo dia a

Professora 4 comentou que elas queriam fazer uma cena engraçada]

Professora 3 – porque eles falam errado!

Professora 4 – porque eles falam errado e tal, mas, de repente não teria a

menor graça se a cena estivesse acontecendo com a gente, seria trágica

Professora 3 – seria trágico, é

Professora 4 – quer dizer, porque a gente tinha certeza de que era uma

ficção, só era engraçado porque era ficção, [...] se fosse realidade não

teria graça

[...]

Professora 3 – foi engraçado o final que você deu como que a gente ía

terminar? [...] ai o fogo, o homem está vindo ai meu deus do céu o feijão

está queimando!

Professora 4 – sim, mas é engraçado porque era ficção, a gente sabia que

era ficção, a gente levou nesse sentido assim, não teve preocupação muito

com questão de realidade, a gente resolveu brincar mesmo”

Nesta conversa percebemos que a Professora 4 tenta justificar o elemento de

estranhamento que ela apontou no trecho anterior quando afirma que somente pôde achar a cena

engraçada porque não estava acontecendo com ela. Aqui podemos lembrar das influências

apontadas pela Professora 4 e a relação que ela diz estabelecer com a cena apresentada por ela.

Ao mesmo tempo em que ela afirma ter colhido as influências da vida real, de situações e fatos

que ela presenciou, ela afirma que a cena se tornou cômica porque estava muito claro para ela

que se tratava de uma ficção.

Quando a Professora 4 diz que a cena só foi considerada engraçada porque era ficção, ela

mostra uma postura de espectadora frente à realidade, pois este distanciamento da ficção,

possibilita uma visão de fora, ela não é afetada pela cena, apesar de afirmar que este tipo de

situação é muito comum na vida real, e que ela tem muito contato com pessoas que moram em

favelas, onde isto é muito comum.

Em outras palavras, se na ficção isto pode ser engraçado porque existe um distanciamento,

o da não-realidade, como ela se relaciona com estes mesmos fatos com os quais se depara na vida

real? Será que o fato dela se permitir achar esta cena engraçada num momento no qual ela

poderia escolher qualquer situação para representar, significa que pela ficção ela pôde aliviar a

tensão de conviver com estas cenas na vida real, ou será que a postura dela frente a estas cenas na

vida real também tem um caráter ficcional? Se lembrarmos da colocação de Adorno sobre a

frieza, e da colocação da professora de que “a gente até estranha” mas que é comum encontrar

estas situações em “comunidades mais carentes”, percebemos que, neste caso, o distanciamento

apontado pela professora é o distanciamento em relação ao outro, possibilitado pela frieza.

Para compreender esta questão podemos retomar mais uma vez a afirmação de Adorno de

que com a mediação da Indústria Cultural a realidade passa a ser vista pelos óculos da televisão,

ou seja, a realidade apresentada na televisão e a forma pela qual é apresentada, se tornam os

moldes para a relação com os momentos na vida real, os óculos da televisão, se referem à postura

de espectador frente à vida.

A postura de espectadora que parece ser assumida pela Professora 4 será compreendida no

final deste item, quando discutirmos como as professoras se sentiram com o fato de estarem

sendo filmadas.

Sobre os elementos que elas incluíram na cena para torná-la engraçada, as professoras

apontam o “falar errado” e o “sair correndo” com a desculpa de que a panela com feijão estava no

fogo, a pesquisadora insiste perguntando se existe mais algum elemento:

“Professora 3 – ela sair correndo pra fugir de uma situação, né

Pesquisadora – uhum, e essas coisas que fizeram essa história então ser

engraçada, fizeram com que a gente risse depois que foi feita a coisa?

Professora 3 – e daí também tem a noção de continuidade, dá uma noção

continuidade a cena. Não é uma coisa acabada, porque está chegando

alguém, porque alguém está saindo rápido, então aquilo fica no ar assim

que vai continuar”

Este elemento de “continuidade” que elas apresentam como sendo um elemento cômico, é

um artifício utilizado nas telenovelas com o intuito de prender a atenção do espectador

prorrogando o fechamento da cena para um próximo capítulo, e que foi absorvido por elas na

construção da cena. É um mecanismo tão presente na Indústria Cultural que se retomarmos as

manifestações sobre a telenovela, percebemos que mesmo depois de terminada a novela, na

segunda vez que a cena foi assistida, no terceiro dia da vivência, as professoras manifestaram a

idéia de continuidade da narrativa, imaginando o que estaria acontecendo na novela que já havia

acabado. Podemos ainda nos lembrar da discussão sobre a Indústria Cultural que se utiliza deste

mecanismo de prorrogação da promessa de felicidade, ou realização do desejo, como mecanismo

para prender o consumidor aos produtos culturais, prometendo e prorrogando a consumação.

A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e pela encenação, é prorrogada

indefinidamente: maldosamente, a promessa a que afinal se reduz o espetáculo

significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado deve se

contentar com a leitura do cardápio.260

O “falar errado” foi mantido na dramatização mesmo com a discussão que ocorreu

durante a construção do roteiro, na qual a Professora 2 repreende as Professoras 3 e 4 dizendo

que estão sendo preconceituosas, pois este elemento foi considerado como fundamental para

tornar a cena engraçada. Mas o “falar errado” é simplesmente um elemento de caracterização das

personagens. No entanto, podemos perceber que o elemento que fez com que todas rissem ao

término da dramatização foi a iminência do confronto entre a vizinha que traiu e o amigo que

testemunhou a traição, confronto que colocaria tudo a descoberto; acrescido da saída estratégica

da vizinha lembrando da panela no fogo. A estrutura da narrativa é o suspense, o medo de ser

surpreendido é aliviado pela saída estratégica; o riso nervoso é causado pelo alívio da tensão,

como afirma Adorno:

Rimos do fato de que não há nada de que se rir. O riso, tanto o riso da

reconciliação quanto o riso de terror, acompanha sempre o instante em que o

medo passa. Ele indica a liberação, seja do perigo físico, seja das garras da lógica.

O riso da reconciliação é como que o eco do fato de ter escapado à potência, o

riso mau vence o medo passando para o lado das instâncias que inspiram terror.

Ele é o eco da potência como algo de inescapável. Fun é um banho medicinal,

que a indústria do prazer prescreve incessantemente. O riso torna-se nela o meio

fraudulento de ludibriar a felicidade. [...] Rir-se de alguma coisa é sempre

ridicularizar, e a vida que, segundo Bergson, rompe com o riso a consolidação

dos costumes, é na verdade a vida que irrompe barbaramente, a auto-afirmação

que ousa festejar numa ocasião social sua liberação do escrúpulo. Um grupo de

pessoas a rir é uma paródia da humanidade. São mônadas, cada uma das quais se

260 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 131.

entrega ao prazer de estar decidida a tudo às custas dos demais e com o respaldo

da maioria.261

O que gerou o riso, neste caso, foi o alívio da tensão. Como explica Aumont, na narrativa,

o espectador pode ser levado a se identificar com personagens que, pelo seu caráter, não sentiria

simpatia, guiado pela estrutura a narrativa. “[...] é a situação (aqui, alguém que corre o risco de

ser surpreendido) e a maneira como ela é proposta ao espectador (a enunciação) que vão

determinar quase estruturalmente a identificação com este ou aquele personagem em determinado

momento do filme.”262 O que faz com que os espectadores sintam medo pela personagem e se

instale a tensão, e depois o alívio pelo seu triunfo.

Retomando a Dramatização 1, da dupla das Professoras 1 e 2, podemos pensar na

construção e discussões sobre o roteiro e dramatização delas:

“Professora 2 – tá e aí, e o pai vai ter que ter um chilique né porque

geralmente o pai...

Professora 1 – desilusão? estado de espírito?

Professora 2 – o que aconteceu? está doente? bateu o carro? O time

perdeu? Eu digo, esses dias o [nome do marido] chegou em casa irritado

irritado, tinha voltado da pescaria sabe? olhei pra ele: o que aconteceu?

Bater o carro não bateu porque não temos, gorou a pescaria? Hahaha, e

ele: “não”, eu disse: “tudo bem depois a gente se fala”, ele chega irritado

e desconta na gente tudo o que acontece lá fora ele desconta na gente,

sabe

[...]

Professora 2 – se fosse o filho que perdeu... ‘fui demitido!’... foi demitido

mas tem seguro desemprego! 4 meses [as duas riem]

261 ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 131-2. 262 AUMONT, 1995, p. 266; 268.

[...]

Professora 2 – fui demitido, bem, estamos na miséria, o que fazer, vamos

começar os cortes... primeira coisa que eles cortam é a escola particular

dos filhos

Professora 1 – Com certeza

Professora 2 – é sempre assim

Professora 1 – é que eu não consigo mexer na educação!”

Estes trechos da conversa entre as professoras mostram o ponto de partida e a estrutura da

narrativa. A partir deste ponto as professoras começam a construir os diálogos e a ambientação.

No roteiro da dupla das Professoras 1 e 2, a discussão sobre os cortes de gastos que serão feitos

pela família se torna o eixo da narrativa, e a discussão se a escola deve ser cortada ou não é o

foco principal. Momentos depois, a Professora 2 propõe que elas façam o contrário do que elas

acreditam que seja feito pela maioria das famílias:

“mas se a gente disser tudo contrário que esse povo quer?” (2)

No lugar de cortar a escola, ela propõe que se corte passeio e academia, deixando a

escola. O que é interessante notar nas falas da Professora 2 é a constante retomada de situações

vivenciadas por ela, o que ficou claro no exemplo acima quando ela conta o que passou com o

marido, e em seguida repete a mesma estrutura de diálogo no roteiro. Isto se repete quando ela

fala do desemprego, contando que sua filha perdeu o emprego meses antes e que recebeu o

seguro-desemprego, enfatizando que neste momento sua filha teve a idéia de parar de estudar,

coisa que a Professora 2 e seu marido não permitiram, fazendo vários sacrifícios para mantê-la na

faculdade.

Analisando a conversa entre as professoras no momento em que discutiam e criavam o

roteiro, pode-se perceber que cada escolha feita pelas Professoras 1 e 2 é conectada a momentos

vividos, principalmente pela Professora 2, que conta longas histórias para ilustrar as escolhas.

Este elemento é importante porque quando são questionadas, no encontro seguinte, sobre as

fontes de inspiração para os roteiros elas se referem exclusivamente aos fatos de suas vidas.

No início da dramatização a Professora 2 anda pela sala com duas sacolas nas mãos

dizendo que é assim que ela chega do mercado, mas no entanto ela está representando o filho. A

escolha dos personagens que apareceram na dramatização é muito interessante pois foram

escolhidos o filho e o pai como sendo as figuras consideradas mais importantes pelas professoras

para a caracterização da cena, mas desde o início aconteceu uma confusão sobre esta escolha.

Durante a construção do roteiro elas diziam que um dos personagens seria imaginário, mas que

estaria presente durante a conversa, em alguns momentos era o pai e em alguns momentos era o

filho, em nenhum momento a mãe foi colocada como personagem imaginário, no entanto, na

dramatização acontece uma inversão e quem não aparece na cena, nem imaginariamente, é a mãe.

Esta questão é relevante já que as duas são mulheres, a Professora 2 é casada e mãe, e a

Professora 1 trabalha com crianças há muitos anos, o que torna a opção por omitir a mãe

significativa, e, um elemento que dificulta a leitura da dramatização, pois não foi incluído

nenhum comportamento diferenciado que identifique o personagem como sendo pai, ou filho ou

mesmo a mãe. É uma conversa entre duas pessoas, na qual não se pode identificar diferença de

sexo ou idade. É claro que na leitura da dramatização não foi exigida, das professoras, qualquer

qualidade estética, o que está sendo levantado é a escolha por omitir a figura da mãe, personagem

mais próximo da vivência das professoras, substituída pelas figuras do pai e do filho.

É interessante levantar as diferenças entre as duas dramatizações quanto à formalização:

enquanto na Dramatização 2 aconteceu um pensamento formal, uma tentativa de caracterização

do personagens e ambientação da cena, na Dramatização 1, estas questões não foram pensadas

pelas professoras. Elas definiram um diálogo e o apresentaram, sem colocar nenhum elemento

formal que ajudasse na caracterização dos personagens, isto pode ser compreendido pela forma

como se relacionam com a linguagem visual, na qual a naturalização da forma impede que se

perceba sua construção formal, fundamental para ambientação e compreensão da Dramatização.

Assim, o pensamento das professoras estava focado no conteúdo do que seria apresentado e não

na forma como seria apresentado. O elemento que traz uma certa caracterização à cena é a

entonação das professoras e a forma drástica como é apresentada a questão ao filho, que mostra

um certo desespero quando sabe que serão feitos cortes nos gastos da família.

Durante a dramatização a Professora 2 fala bem baixinho para lembrar a Professora 1 de

coisas que estavam no roteiro e que ela havia esquecido, como educação e natação, o que vai

contra sua decisão de não cortar os gastos com a educação do filho. Este ponto é muito relevante,

pois durante a conversa sobre a dramatização no terceiro dia, a pesquisadora questionou sobre

esta escolha de incluir ou não a educação nos gastos a serem cortados, tomando como base o que

foi dito pelos personagens na dramatização, e elas se colocaram como tendo escolhido que a

educação não seria cortada. Outro elemento que pode ser lembrado é a repetição do diálogo que a

Professora 2 teve com seu marido, contada para a Professora 1 durante a construção do roteiro.

Quando questionada sobre a escolha do tema, a Professora 2 responde:

“Professora 2 – ai sei lá, a gente começou a conversar, conversar, ouvimos

o que elas iam fazer da vizinha, [todas riem] então não dava pra ser igual

[rindo junto com a Professora 1], não dava pra ser igual, daí resolvemos

fazer a família de classe média que é o que está mais em vista, mais

atuante

Quando a Professora 2 diz que escolheram a família de classe média porque é o que “está

mais em vista, mais atuante”, podemos nos questionar o que a Professora quis dizer com isso:

estar mais “em vista” significa aparecer mais na mídia? E “estar mais atuante”? Quando os

meios de comunicação tratam dos problemas da educação, é comum mostrarem as dificuldades

sentidas pela classe média para manter seu padrão, mostram como as mensalidades das escolas

particulares estão subindo, como os materiais estão caros, etc. será que é a isso que a Professora 2

está se referindo? Este tipo de atuação/reclamação?

A pesquisadora pergunta como foi dada a solução para a cena, e as professoras comentam

situações que influenciaram a construção do roteiro e do desfecho da cena:

“Professora 2 – ... e o caso do pai que perde o emprego, é... tudo é

cortado, né? principalmente, a escola, a primeira coisa que eles falam é

tirar a escola do filho: ‘vamos passar você pra uma escola pública’, como

se a escola pública fosse a pior das coisas. ‘Vamos tirar a natação, vamos

tirar não sei o que’, agora em nenhum momento ele lembrou em tirar o

cigarro, tirar o futebol...

Professora 1 – bebida, o futebol

Professora 4 – é uma questão de prioridades

Professora 1 – a revista educação tem uma reportagem sobre isso, que

enfoca muito bem, está certo que eu estava lendo e estava... [se referiu à

dramatização], porque a primeira... quando o cinto apertou, é essa

expressão que eles usam, a primeira atitude a tomar foi justamente tirar os

filhos das melhores escolas onde eles estavam, e colocá-los, ou numa

particular mais barata e com uma qualidade não tão boa, ou então

colocar na escola pública. ”

Na conversa entre a Professora 2 e a Professora 1 podemos nos perguntar de quem

exatamente elas estão falando: do personagem da dramatização, de alguém concreto ou das

pessoas em geral?

A Professora 1 fala de uma referência nos meios de comunicação, mas na continuação da

conversa, a pesquisadora pergunta às professoras se elas lembram de ter visto alguma coisa nos

meios de comunicação relacionado aos temas trabalhados por elas, antes ou depois de fazer o

roteiro e a dramatização, já que elas dizem que são temas tão cotidianos. E, apesar da Professora

1 ter comentado momentos antes sobre esta reportagem que ela leu em uma revista, na resposta à

pergunta, as professoras se referem a fatos que vivenciaram:

“Professora 2 – ao lado da minha casa tem uma panificadora que os filhos

estudam todos na escola particular, é, conversando com ela, com a dona

da panificadora, ela, o marido foi demitido e agora está só na

panificadora, ela mesmo disse pra mim, ‘olhe agora que o [nome do

marido] perdeu o emprego, acho que ano que vem’ ela tem um casal de

filhos gêmeos, ‘acho que ano que vem os gêmeos vão voltar pro [escola

pesquisada].’ Sabe? Então você veja, é uma coisa que acontece a menina

vai pro segundo grau, vai tentar Colégio Estadual e o menino vai, os

meninos, os gêmeos virão pro [escola pesquisada] onde fizeram o pré,

sabe”

Em resposta à pergunta sobre referências encontradas nos meios de comunicação, elas

contaram fatos vivenciados por elas, não fazendo nenhuma referência aos meios de comunicação,

como se por algum motivo, fosse mais adequado falar das influências da vida real.

Em um outro momento a pesquisadora questiona sobre as escolhas que elas fizeram

quanto aos cortes dos gastos, pois a Professora 1 que representava o pai na dramatização, diz ao

filho que serão cortados os passeios, a boutique e as festas, mesmo que a Professora 2 tenha

falado em voz baixa, escola e natação, o que se ouviu foi: os passeios, a boutique e as festas,

então se elas comentaram que o que elas conhecem e sabem que acontece é que o primeiro corte

recai sobre a educação, como foi esta escolha? É interessante levantar ainda que, apesar de ser o

pai a conversar com o filho sobre os gastos, boutiques e festas são elementos característicos do

universo feminino, relembrando aquela confusão sobre a idade e o sexo dos personagens.

“Professora 2 – ah pra gente ser um pouco diferente, porque assim que a

gente gostaria que fosse agido, porque a gente sabe que não é o que

acontece... e se você pensar bem, é, eu passei agora por uma parte dessa

[...] e foi isso que eu senti, que acho que muitas vezes não tem essa

necessidade ‘ah corta tudo’, seria muito mais fácil”

Para justificar a escolha por não cortar educação, a Professora 2 conta a história de sua

filha, que perdeu o emprego e a Professora 2 e seu marido fizeram muitos sacrifícios para mantê-

la na faculdade, que ela havia contado no primeiro dia enquanto as professoras construíam o

roteiro, reafirmando que elas não cortaram a educação na dramatização por saberem que é

possível manter a escola e por acreditarem que esta é importante, mesmo tendo cochichado para a

Professora 1 durante a dramatização “escola” e “natação”.

Quando questionadas sobre a construção do roteiro e as escolhas, afirmaram:

“Professora 2 – mas na realidade era bem dramático, mas que tivesse um

outro enfoque, coisa ligada na realidade que é o que acontece, e nós não

queríamos que o enfoque fosse cortar as prioridades como educação essa

coisa toda, lembra, que por isso que a gente falou em festa falou isso

porque nós usamos a realidade mas também um pouquinho pra fugir do

que [...] do que acontece pra ser um pouquinho diferente [...] é, no fundo

no fundo é pra que, pras pessoas quando acontecem isso com eles não

fizessem o óbvio que é cortar o principal e sim o supérfluo.

Professora 1 – é esperança de professora que a educação seja

considerada, porque na prática se você for conversar com as pessoas da

nossa comunidade e de outras comunidades, eles colocam o valor

educação como prioritário. É, raríssimas são as pessoas que dizem ‘não,

não precisa, meu filho não precisa mais estudar’ muito raro, seja na

classe a, b, c, d, e, f, g, h, agora, na classe média, que foi o que a gente

enfocou ali, o corte primeiro é na escola, porque a escola está muito cara

então o primeiro corte, e é um corte único, não precisa ficar escalonando

vou gastar mais, menos, não eu não gasto mais, então eu vou lá pra escola

pública

Desta conversa podemos perceber que as professoras fazem uma comparação entre o que

elas desejam que aconteça e o que percebem que acontece na vida real, usando a ficção para

alimentar a esperança, que é frustrada na vida real. Falando que, teoricamente, as pessoas com as

quais elas conversam afirmam a educação como prioridade, mas que normalmente o primeiro

corte recai sobre ela. Quando comparamos esta idéia com a história contada pela Professora 4

sobre o pai que disse que tiraria o filho da escola se ele continuasse a ser agredido pelos colegas,

de certa forma esta generalização feita pela Professora 1 é relativizada.

Como uma segunda atividade de produção, as professoras produziram um ensaio

fotográfico, que foi construído em duas etapas, em primeiro lugar as professoras foram

solicitadas a definir dois ou três conceitos que resumissem as dramatizações, para depois sair pela

escola procurando imagens que traduzissem estes conceitos. Sobre a escolha dos conceitos e suas

justificativas, as professoras disseram:

“Pesquisadora – quais você escolheu?

Professora 4 – compromisso e relações

Pesquisadora – por que você escolheu?

Professora 4 – porque hoje em dia essa questão está muito banalizada essa

questão do relacionamento, do afeto, aquela coisa: hoje eu não quero

mais, amanhã eu quero, então quer dizer é assim, você vê assim, cada dia

você encontra as pessoas com parceiros diferentes e a família também

acho que completava bem

Pesquisadora – e vocês?

Professora 1 – aqui: perda, prioridades e realidade. A realidade no

sentido do que está acontecendo, a perda que é o fato em si que é a perda

e o estabelecimento das prioridades

Professora 2 – nem sempre o que é prioridade é o que não é cortado [ri]...”

Estes conceitos representam as idéias-chaves que apareceram nas dramatizações depois de

serem apresentadas, uma elaboração das professoras depois de terem conversado um pouco a

respeito das dramatizações e, mostram como as professoras relacionam a dramatização com a

vida real.

Com os conceitos definidos, a pesquisadora e as Professoras saíram pela escola. Durante o

passeio pode-se perceber que as Professoras 1 e 2 usaram o cartão tranqüilamente e de forma

lúdica, enquanto a Professora 4 devolveu o cartão para a pesquisadora depois de tirar a primeira

fotografia. A Professora 2 estava muito envolvida com a atividade, explorando as possibilidades

de imagens que a escola proporcionava.

De volta à sala, a pesquisadora pergunta como foi a atividade, o que acharam, quais foram

as dificuldades, e as professoras respondem:

“Professora 1 – ah! legal. [...] Ainda mais gostei do trubisquinho aqui [se

referindo ao cartão utilizado como visualizador] Ah prioridade, prioridade

foi difícil

Professora 2 – foi difícil, porque, você vê teus conceitos quando você vai

fotografar você vê ele de diversas formas, qual é a realidade, que tipo de

realidade, não só aquela realidade ali [da dramatização]

Professora 4 – até porque a gente está num espaço limitado também de

imagens, tem algumas coisas que você complica pelo fato da

Professora 1 – não, e nós pegamos conceitos muito abstratos

Professora 4 – É o meu já ficou mais fácil

Professora 1 – por exemplo, compromisso eu pegaria algumas pessoas

dando a mão

Professora 4 – é vocês, o que que eu peguei, eu peguei a [nome da

secretária] trabalhando

Professora 1 – agora o abstrato, é mais fácil de traduzir, agora prioridade

realmente minha cabeça batucou [?] aqui claro educação é prioridade,

você pode traduzir por isso, mas até você traduzir por isso demora [...] a

imagem não fala

Professora 2 – a imagem quando você vai olhar bem como nós estávamos

comentando com ela, ali, a dramatização dela, dá pra ver de duas formas,

de diversas formas, depende do teu ponto de vista, e a imagem é assim,

quando você pega uma foto você pode tirar, nossa mil coisas de dentro

dela”

A princípio as professoras apontam que tiveram algumas dificuldades para encontrar

imagens que traduzissem os conceitos, a Professora 1 diz que os conceitos que definiu eram

muito abstratos, para depois dizer que “agora o abstrato, é mais fácil de traduzir”, num momento

em que conversando, encontra qual seria a sua prioridade, apontando ainda, que os conceitos

definidos pela Professora 4 eram mais “fáceis”.

Nesta conversa, a Professora 2 propõe o oposto levantado pela Professora 1, enquanto

uma não vê possibilidade de construção de discurso com a imagem, a segunda aponta que é

possível “tirar mil coisas de dentro dela”, dependendo do ponto de vista. A polissemia da

imagem existe, ela carrega muitos discursos articulados, que é o contrário do texto, como afirma

Barbero263, mas não se pode esquecer que existe uma imagem que está lá, e possibilita um

número finito de leituras e compreensões. Os dois extremos levantados pelas professoras

reafirmam a tese de Barbero, segundo a qual existe na escola uma antiga e pertinaz desconfiança

para com incontrolável polissemia da imagem, o que faz com que esta tente controlá-la tornando-

a ilustração do texto escrito ou acompanhada de uma legenda que a traduza.264 Pois se com a

imagem não é possível construir discurso, segundo a Professora 1, a legenda cumpre este papel.

Assim, o comentário da Professora 1 funciona como uma justificativa para sua dificuldade para

representar o conceito; dizendo que a imagem não fala, quer dizer que com uma imagem é difícil

articular um discurso. Já a Professora 4, considerou a tarefa relativamente fácil, encontrou

rapidamente 3 imagens que pudessem traduzir os seus conceitos, apesar de afirmar que a escola é

um espaço limitado de imagens, e que isso dificultou a atividade.

A partir desta conversa, a Professora 1 lembra-se de um programa que assistiu no canal

Futura, e o utiliza para falar sobre como a imagem pode transmitir mensagens:

“ontem passou um documentário sobre a experiência, do Bom Aluno,

quando é que surgiu e tal. Mas entre uma experiência e outra, que eles

estavam pegando experiências de todo Brasil, eles tem um vídeo-clipe da

Futura, mas são imagens de crianças, de jovens, jogadas assim, uma

montagem fabulosa, está escrito, não precisa você prestar atenção na

263 BARBERO. 2001. 264 Ibid., p.57.

música, no fundo, na letra, porque você está vendo a idéia que eles querem

te jogar, em relação à questão da educação, muito interessante” (1)

Neste depoimento sobre o programa, a Professora 1 fala de uma seqüência de imagens

que transmitem uma mensagem, a aparente contradição com a afirmação anterior – quando ela

diz que a imagem não fala – é desfeita se prestarmos atenção à forma como ela descreve esta

montagem.

Neste caso, diz que a montagem de imagens podia ser lida como um texto, não precisava

de legenda para que o espectador entendesse a mensagem que eles queriam transmitir, a

seqüência de imagens era suficiente para se compreender a narrativa, uma montagem didática.

Ela considera este dado positivo, mas pelo seu comentário, percebe-se que o conteúdo

transmitido estava tão amarrado pela seqüência narrativa, que não possibilitava qualquer tipo de

interpretação que ultrapassasse a mensagem que eles queriam transmitir, e quando ela diz que não

precisava “você prestar atenção na música, no fundo, na letra porque você está vendo a idéia

que eles querem te jogar”, ela mostra que o conteúdo era tão fechado, que a legenda era

desnecessária, e mesmo assim, existia essa legenda que reafirmava, confirmava a mensagem.

Essa colocação da Professora 1, somente aparentemente contradiz a afirmação anterior, pois para

ela, a imagem isolada de um contexto que lhe dê um significado pré-determinado por “outro”,

diante da qual ela é espectadora, ou sem uma legenda, não fala, mas quando faz parte de um

contexto dado pelo emissor da mensagem, amarrado e fechado, a imagem se presta à transmitir

mensagens. Quando ela teve que produzir um discurso com imagens, ela não soube por onde

começar porque a legenda que ela tinha na mão, que ela produziu sem saber exatamente que seria

uma legenda, não se prestava para essa função. Não facilitava e sim dificultava a tarefa de

produzir mensagens.

Ela mostra uma dificuldade para lidar com as imagens, contrapondo uma experiência fora

da ação docente (programa de televisão) a outra dentro (vivência). Fora da escola é espectadora,

lê, recebe as informações; já na escola, ela é docente, assume outro tipo de postura frente ao

discurso, pois tem que dominar, interpretar, o que mostra uma dicotomia entre a experiência

cotidiana e a experiência na escola.

No terceiro dia da vivência, quando as professoras receberam as fotografias tiradas no

encontro anterior, ficaram por um momento observando as fotografias, mostrando para as colegas

e conversando sobre elas. A Professora 4 reclama dizendo que não sabe mais tirar fotografias,

que as suas ficaram fora de foco, e separa a que considera que ficou boa (apêndice E, fotografia

03) das que considera que ficaram ruins (apêndice E, fotografias 01 e 04); a Professora 2 elogia

uma de suas fotos (apêndice E, fotografia 02), e a Professora 3, que não estava presente no

encontro anterior, pergunta qual era o objetivo da atividade. A pesquisadora responde à pergunta

aproveitando para relembrar o processo pelo qual elas passaram, falando que a partir do roteiro e

da cena, elas retiraram três conceitos que resumiam a história e que a partir destes conceitos,

saíram pela escola procurando imagens que representassem estes conceitos.

Com as fotografias nas mãos das professoras, a pesquisadora pediu que elas trilhassem o

caminho inverso: olhando para as fotografias, lembrassem dos conceitos que cada uma

representou, e refizessem a conexão destas imagens fotográficas, com os conceitos. As falas

sobre isso:

“Professora 2 – é, o ralo [apêndice E, fotografia 2] a gente usou como

perda. Porque...

Professora 1 – é ficou muito boa, olhe só os cascalhos aparecem

Professora 2 – é a fotógrafa é muito boa, tirou de pertinho pro ralo

aparecer bem grandão assim”

Esta conversa é muito importante porque revela um momento no qual as professoras

fazem comentários sobre a imagem que estão vendo, sem se referir ao que ela representa, dizendo

que a fotografia “ficou muito boa”, estão se referindo à beleza da imagem fotográfica e não à

beleza do ralo que está no pátio.

Professora 2 – é, lembra que nós usamos a realidade

Professora 1 – as crianças

Professora 2 – porque nós ouvimos uma zona que era dia de permanência,

uma bagunça toda, era na sala, eu abri a porta e bati a foto [apêndice E,

fotografias 9 e 10] eles nem sequer se tocaram que eu bati a foto [...]

porque era aquela realidade

Professora 4 – aquele momento desesperador

[todas riem]

Professora 2 – é... essa aqui e essa aqui, era além de ser família, era as

prioridades, prioridade aqui: prioridade família [apêndice E, fotografia

11] e aqui prioridade paz [apêndice E, fotografia 12] então por isso que

entrou, a outra era realidade

[...]

Professora 1 – bem cara de perda [apêndice E, fotografia 5] [...] perdi

toda...

[...]

Professora 2 – porque na realidade aqui também foi a gente, se foi...

lembra que estava chovendo e eu queria bater a fachada da escola, como

estava chovendo então eu bati “o logo” [símbolo da escola] porque é a

prioridade, prioridade enfocando educação [apêndice E, fotografia 7 e 8]

[colocar as fotos]

[...]

Professora 4 – o meu, eram dois conceitos: compromisso e... relação então

ficou essa daqui e essa daqui [apêndice E, fotografias 1 e 4] como relação

e essa [apêndice E, fotografia 3] como compromisso

Professora 1 – você não sabe o que você vai pagar de direitos de imagem

Professora 2 – autorais

[Professora 4 dá uma risada]

Professora 2 – é nós não precisamos pagar pro ralo

[todas riram]

Professora 4 – mas olha quantas crianças tem nessas fotos

Professora 3 – é vocês estão perdida viu

Professora 1 – mas das crianças a gente pegou autorização

Professora 2 – é, todinhas, está lá, autorização pra imagem”

Nesta conversa percebemos que elas retomam o momento no qual tiraram as fotografias,

lembrando os motivos que as levaram a escolher determinadas imagens, indicando qual imagem

representava qual conceito, para em seguida, a pedido da pesquisadora, retomarem a relação entre

os conceitos e a dramatização:

“Professora 2 – Por exemplo aquela foto lá dela, dessa aqui, o estado de

desânimo que ela está mostrando ali, desanimada aqui. [apêndice E,

fotografia 5] Assim ficou, por exemplo, a gente na hora que a gente soube

que o pai perdeu o emprego, e que ía ter que cortar tudo... então, ficou

uma sensação de perda da realidade que a gente tinha que enfrentar por

muita coisa; e até a prioridade, ali sendo prioridade educação e família

perdeu-se porque a gente fez como prioridade e sentiu na conversa que

nós tivemos do nosso texto, que não ía ser a prioridade, que educação não

ía ser então tem tudo...

Professora 1 – bem contrário, primeiro corte, sai da escola particular, vai

pra escola pública, que é o que a gente escuta aqui na escola”

Nesta explicação da Professora 2, percebemos a construção de um pensamento confuso

que inicia com a comparação do desânimo da secretária na fotografia (05, apêndice E) e o

desânimo sentido pela família na qual o pai perde o emprego; mas é interessante que quando ela

começa a falar da sensação de perda ela fale: “além dessa sensação de perda da realidade que a

gente tinha que enfrentar por muita coisa”, conectando a perda do emprego com a perda da

realidade, como se a mudança das condições financeiras da família ocasionasse uma mudança na

estrutura da família, que aparece quando ela diz que “educação e família perdeu-se”. Será que as

mudanças nas condições financeiras da família geram realmente a perda da família, da educação

e da realidade? Se pensarmos em uma sociedade, como a nossa, que se estrutura a partir do

emprego, a perda do emprego pode significar a perda do sujeito, do real, um sentir-se fora da

realidade, estereótipo que é reforçado pelas imagens das mídias. Questão que foi apontada pela

Professora 1 quando falava do conjunto habitacional, afirmando que existia “gente muito boa,

que tinha emprego” e as “outras pessoas”.

Em seguida a pesquisadora volta a pergunta para a Professora 4:

“Professora 4 – o meu acho que, tanto esta [apêndice E, fotografia 1],

quanto esta foto aqui [apêndice E, fotografia 4], as duas, a questão da

relação, que foi o enfoque ali, tanto a relação daquela falando do marido

da relação mulher com o marido, quanto da relação das duas, na verdade

é a relação de todos nós, de alguma forma você está estabelecendo

relações o tempo todo, você não vive isolado, agora essa aqui do

compromisso [apêndice E, fotografia 3] aí já fica uma coisa bem mais

subjetiva nesse caso, ao contrário do que tinha acontecido com vocês lá

[...] agora essa aqui fica muito subjetiva, porque que tipo de compromisso

eu estabeleço nessas relações, [todas concordaram] até expectativas de

cada um, eu posso estabelecer um tipo de compromisso e ela outro na

mesma relação

Professora 1 – é são as diferentes visões, com essa foto também a gente

pode falar em desapego, desânimo e tudo o mais, e outra pessoa pode

enxergar ‘não, ela está placidamente pensando, ela esta lá zen’? Então

depende da ótica de cada uma, da experiência de cada um, como essa

daqui está uma foto linda

Professora 4 – esse quadro é lindo

Professora 3 – ah esse é lindo

Professora 1 – esse está muito lindo mas a foto ficou bonita”

A Professora 4 pensa o conceito de relação que a fotografia representa como a relação que

as pessoas estabelecem entre si, que pode atingir diferentes níveis e acontecer de diferentes

maneiras. Mas quando entra no conceito do compromisso, afirma que é difícil fazer a relação do

conceito com a fotografia, porque o compromisso que se estabelece em cada relação é diferente, e

a representação do compromisso na fotografia parece subjetiva para ela, porque ela pensa no tipo

de compromisso que cada um estabelece dentro da relação, ligando-o com as expectativas de

cada um. Dessa forma, para ela, torna-se muito difícil representar toda esta idéia por meio de uma

fotografia.

Concordando com a Professora 4, a Professora 1 volta a falar de sua fotografia (05,

apêndice E,), que foi definida como representando a perda, na qual ela afirma que a interpretação

depende da “ótica” de cada um, usando o relativismo para indicar que não existe uma leitura

única. Nestes comentários, tanto da Professora 4 quanto da Professora 1, podemos ver uma

tentativa de controlar os significados propostos pela imagem, pois a imagem é aberta à múltiplas

interpretações, o que significa que não pode ser controlada, mas isso não quer dizer que, dentro

das possibilidades levantadas pela imagem, uma interpretação invalide a outra, e sim que

convivem. A escolha da imagem e a sua relação com o conceito, foram produzidas

subjetivamente, não pretendiam abarcar todas as possibilidades de leitura, e nem ser única

imagem possível. Assim, quando a Professora 4 afirma que a relação proposta por ela é muito

subjetiva, como um problema, ela está percebendo que não é possível controlar a imagem,

mesmo que tenha sido produzida por ela.

Podemos notar no fim da conversa que a Professora 1 retoma a fotografia 11(apêndice E),

dizendo que “está uma foto linda”, reafirmando que o quadro é lindo, mas que a foto ficou

bonita, esta é mais uma manifestação que mostra uma consideração formal sobre as fotografias,

tenta abordar o objeto que está em sua frente sem pensar na sua referência, o quadro pendurado

na parede. É importante ressaltar que foram feitas poucas considerações formais sobre os objetos

produzidos por elas, mesmo não ultrapassando o gostar ou não gostar, já tenta olhar para a

fotografia como um objeto independente, que é diferente do quadro do qual se originou.

Outra questão interessante a ser levantada se refere à pergunta feita pela pesquisadora

sobre as possíveis diferenças sentidas pelas professoras entre presenciar a realização da

dramatização ao vivo, como aconteceu no segundo encontro, e assistir pela televisão:

“Professora 1 – ah claro que é!

Pesquisadora – como que é?

Professora 1 – você tem uma imagem de você e aí quando vê pela tv é

outra...

Professora 4 – é engraçado você se observar...”

Nesta resposta podemos perceber que a Professora 1 se refere à diferença de auto-imagem

que ela tem, ou seja, quando ela pensa em si mesma, ela forma uma determinada imagem mental

de como ela é, mas quando ela se viu pela televisão, ela se percebeu de uma forma diferente, ou

seja, percebeu uma diferença entre o real e sua representação. O que pode ser comparado com a

conversa das professoras sobre a saúde mental da atriz Giulia Gan, na qual apareceu uma

completa confusão entre a vida ficcional e a vida real da atriz; aqui a Professora 1 sente a

diferença entre sua vida real e sua vida ficcional, sua experiência concreta e a mediada. Para

estimular que as professoras falassem mais a este respeito, depois destes comentários, a

pesquisadora retoma a pergunta especificando a questão, apontando elementos como: o ponto de

vista único da televisão e o recorte temporal e espacial; com relação a esta questão, a Professora 4

comenta:

“Professora 4 – eu até... assisti uma reportagem domingo sobre aquele

filme Matrix, sobre a produção do filme, aí até comentei com meu marido

que na realidade as pessoas que fizeram, só vão ter consciência do que

elas fizeram a hora que elas assistirem o vídeo, porque grande parte do

filme é feito por computador, é montagem, então quer dizer, aquela cena

isolada que ele fez, até não tem tanto efeito quanto quando colocada

dentro de um contexto; então eu acho que acontece mais ou menos isso, no

nosso caso não tanto porque na verdade foi exatamente isso que

aconteceu, exatamente isso que agente viu aqui.”

Aqui a Professora 4 deixa claro que, na sua opinião, o que pode produzir uma diferença

entre a experiência de assistir ao vivo e a experiência de assistir pela televisão, seriam os efeitos

especiais, a montagem feita por computador, que transformariam a dramatização em uma cena

com aparência totalmente diferente da que foi presenciada. Mas ela considera que no caso delas,

isso não aconteceu porque o que passou na televisão foi “exatamente” o que aconteceu no dia da

dramatização. O que poderia ser diferenciado, neste caso, não seria o conteúdo ou a aparência da

sala, das professoras ou do que elas disseram, mas a experiência de presenciar uma dramatização

ao vivo, ou ver sua reprodução pela televisão. Aqui podemos retomar o conceito de declínio da

aura, trabalhado nos capítulos anteriores, segundo o qual o modelo de relacionamento com o real

instituído na era industrial, modifica a relação das pessoas com a experiência. O costume com a

reprodutibilidade técnica das coisas e dos momentos, anula a diferença entre a reprodução e a

coisa mesma; ou seja, a experiência única vivenciada no segundo encontro tinha aura e

autenticidade, mas a possibilidade de experienciá-la, e aí diferenciar esta experiência da

experiência da reprodução da dramatização já não existe. Podemos pensar que os óculos da

televisão, como descrito por Adorno, formatam a percepção da realidade e, que a realidade

construída que aparece na tv, é tomada pela própria realidade, ou seja, como experiência com a

realidade.

Neste sentido podemos pensar na postura de espectador apontada na fala da Professora 4

indicada anteriormente. A postura de espectador pode ser compreendida quando analisamos a

questão da exponibilidade, ou seja, como as professoras se sentiram com a situação de serem

filmadas.

Desde o início do processo podemos perceber várias falas das professoras que fazem

referência à filmagem, como por exemplo, neste comentário da Professora 4 que se refere ao

momento em que a Professora 3 suspira de susto no instante em que a Heloísa tenta atropelar a

Vidinha, na cena da telenovela, no primeiro dia da vivência:

“deve ser engraçado assistir você... ver você assistindo novela”(4)

Neste comentário a Professora 4 enfatiza a situação de pesquisa que registra o susto e

comentário da Professora 3, pensando em como seria assistir à Professora 3 assistindo à novela, e

não estar ao seu lado enquanto assiste à cena.

Uma outra forma utilizada pelas professoras para falar sobre a filmagem da dramatização,

foi a referência às crianças:

“Professora 1 – só que nós devíamos trazer as crianças pra dramatizar”

“Professora 2 – é, eles dramatizariam numa boa”

“Professora 3 – ah gente! Que legal pra fazer com as crianças!”

“Professora 4 – ah não, para fazer com as crianças é legal...”

Os primeiros comentários, feitos no segundo dia da vivência momentos antes de ser

realizada a dramatização, mostram a apreensão das professoras para realizá-la; e os segundos,

feitos no terceiro dia logo depois de terem assistido à dramatização pela televisão, a constatação

de que esta é uma ótima atividade para realizar com as crianças. As professoras afirmam que as

crianças não têm medo de se expor, “eles dramatizariam numa boa”; e para reafirmar esta idéia,

a Professora 1 conta a história de uma professora da escola que estava fazendo um trabalho com

as crianças sobre as telenovelas, no qual a professora trazia cenas de telenovela e as crianças

interpretavam, mostrando o quanto as crianças gostam de fazer estas atividades. Aqui ainda

podemos pensar nas brincadeiras de faz-de-conta das crianças, nas quais elas inventam

personagens e entram no mundo da ficção sem medo de se “perder” ou confundir com este

mundo. Esta prática das crianças mostra que elas não confundem a ficção com a realidade,

entram e saem da ficção, e quando estão dentro, assumem o personagem por inteiro, criam vozes,

trejeitos, expressões faciais e corporais para caracterizar os personagens sem medo de que isso

possa causar qualquer tipo de mal-entendido, como serem julgadas pelas palavras ou atos do

personagem.

Em outros momentos, as professoras são mais diretas nas suas colocações conversando

especificamente sobre suas sensações ao serem filmadas, como neste comentário da Professora 1

que acontece em um momento em que a pesquisadora pergunta se elas querem fazer algum

comentário sobre a dramatização logo depois de realizada a gravação:

“não, o comentário que eu queria fazer é o seguinte: a gente é tão

espontânea, a gente fala tanto, todo mundo dá aula, você se expõem, mas

quando você está numa situação de formalismo com aquela bendita

câmera, e o fato de estar numa situação que não é real no sentido do

cotidiano do nosso trabalho, você muda, é engraçado.”(1)

Quando ela fala que na vida real ela é espontânea e se expõe, e que a presença da câmera

faz com que ela se iniba, ou “mude” como ela falou, ela demonstra o incômodo com a câmera

que permaneceu ligada durante todo o processo da vivência; o que fez com que ela permanecesse

atenta à câmera durante todo o processo, e de certo modo anulou a diferença entre atuar na

dramatização e participar da vivência. A diferença entre a vida real e a dramatização foi

enfatizada quando ela falou da “sensação de irrealidade”, mas essa sensação não foi direcionada

para a ficção, para a representação de um personagem que não era ela, mas para a situação de

pesquisa. Podemos perceber que ela viveu o personagem como se ele fosse uma extensão dela,

não entrando no jogo de faz-de-conta proposto pela ficção, no momento dadramatização. Ela se

sentiu julgada pelas coisas que disse enquanto personagem, porque aconteceu uma confusão entre

o personagem e ela mesma. Talvez o direcionamento da ficção para a situação de pesquisa gerado

pela presença da câmera, tenha feito a Professora 1 assumir um distanciamento com relação à

situação de pesquisa como um todo, e a preocupação com a câmera tenha dificultado seu

envolvimento com as atividades, e a diferenciação entre a atividade da dramatização e as outras,

que não exigiam representação.

O que é reforçado pela Professoras 4:

“é aquela coisa assim, até pela questão de convivência mesmo, esse é o tipo de situação

que a gente em sala de aula vive constantemente [...] você dramatiza e faz cena e não sei

o que [...] só que, você está lá com teus alunos de todo dia... quando chega assim, são

pessoas de um outro tipo de convivência você já se retrai” (4)

Estes comentários apareceram durante todo o processo, elas se referiam ao fato de

aparecer na frente da câmera, e ter este momento registrado. É interessante observar como

dramatizar na frente dos alunos não causa constrangimento, mas no meio das colegas e de uma

pessoa de fora, a situação se mostra embaraçosa. Aqui podemos pensar sobre o que significa estar

em frente à câmera e dramatizar, assumir um papel, construir este papel e apresentar. Por um lado

existe o fato de se tornar ator, ou atuante, assumindo a responsabilidade sobre a idéia expressada

perante as colegas e a pesquisadora. Para compreender esta situação podemos pensar na fala da

Professora 4, no momento em que é proposta a atividade do ensaio fotográfico:

“eu gosto de ficar atrás” (4)

Ou seja, não aparecer, ser espectadora dos fatos, não participar ou atuar, pois atuar

significa assumir a responsabilidade e agir, enquanto ficar a trás, significa assumir uma postura

de espectadora, que observa e julga. Como disse Adorno em relação aos personagens que

aparecem na televisão: “Os homenzinhos e mulherzinhas que se obtêm a domicílio tornaram-se

joguetes para a percepção inconsciente. Algo disso poderá recrear o espectador: ele os sente

como propriedade, da qual pode dispor e em relação à qual se sente superior.”265 Este

distanciamento proporcionado pela postura do espectador que olha para um cenário construído

em sua frente, em relação ao qual se sente superior, pode ser um dos motivos que levaram as

professoras à inconscientemente preferirem “ficar atrás”, ou se sentirem demasiado expostas

quando filmadas por terem que assumir este lugar dentro do cenário, onde as coisas acontecem. A

posição aparentemente mais confortável de espectadoras e a preferência por se colocar nesta

situação, não demonstra uma consciência com relação ao duplo ficção x realidade, mas uma

tendência a preferir não se colocar como foco de atenção ou atuação, é nesse sentido que

acontece a confusão entre a ficção e a realidade, pois sempre se colocam como que protegidas por

uma distância da relação direta com a realidade. A confusão entre a ficção e a realidade se dá por

uma permanência na postura de espectador que assiste a tudo, sempre de fora

A comparação entre as situações de dramatização que elas vivem nas salas de aula e a

dramatização proposta na vivência foi trazida ainda outras vezes no último dia, para justificar que

em sala de aula elas não têm problemas em dramatizar, o que as deixou inibidas na vivência, foi o

fato de não estarem em sala de aula e estarem com as colegas de trabalho e a pesquisadora e, com

a câmera registrando os encontros. Mas são duas situações muito diferentes, na sala de aula, ser

teatral para explicar conteúdos para os alunos é um recurso didático do qual as professoras

lançam mão, uma forma de chamar atenção dos alunos para determinados assuntos; na vivência

não se tratava de um recurso didático, era uma situação fora do cotidiano, de isolamento, de

pesquisa, da qual elas eram os sujeitos participantes e que sabiam que estavam sendo observadas.

Além disso, estavam participando de uma atividade com a qual não têm familiaridade, a

construção e dramatização de um roteiro e não uma improvisação espontânea. Na vivência foi

requisitado a elas que construíssem personagens e uma história e que depois apresentassem esta 265 ADORNO, 1987, p. 348.

construção às colegas, ou seja, assumissem esta construção como uma produção e interpretação

pessoal de um assunto.

Depois de assistir à cena, a pesquisadora pergunta como elas se sentiram assistindo à si

mesmas na televisão representando:

“Professora 2 – Horrível!

Professora 1 – ah, legal...

Professora 1 – revelações globais aqui!

Professora 2 – mas eu acho assim que você, você sabendo que está sendo

filmada, que está sendo... deixa você muito [...] bloqueada mesmo, inibida

[...] você faz qualquer coisa fora, por exemplo: você vai dar uma aula você

vira um palhaço lá na frente da sala e não está nem aí, agora se você

sente alguém que está te observando, aí você se inibe

Professora 1 – a palavra filmagem, fotografia e avaliação [...] já te

colocam em uma situação de irrealidade, você se coloca:‘ah vão me

observar, vão me julgar’

Professora 3 – você se sente exposto, vão me julgar de qualquer maneira

Professora 2 – e depois tem que pensar que não é o teu espaço não é tua

sala de aula [...] se você tivesse sendo filmada talvez dentro do contexto da

tua sala de aula com todos os teus alunos com tudo ía ser muito mais

natural.

Professora 3 – ah mas também tem outra gente, você está num papel,

representando [...] isso é uma coisa complicada pra gente, porque a gente

não é atriz, a gente não está fazendo...

Professora 4 – às vezes em sala de aula você até faz isso mas é espontâneo

Professora 3 – é mas aí você está com outra pessoa, você está num

diálogo, você está numa cena

Professora 4 – a diferença é assim: na sala da aula somos nós que criamos

a situação e aqui a situação nos foi colocada

Professora 3 – você está com outra pessoa e sendo filmada...

Nesta conversa entre as professoras podemos perceber que elas investigam porque

ficaram inibidas na hora da filmagem, a Professora 2 começa falando que saber que está sendo

filmada a deixa bloqueada e inibida, mas que no entanto, quando ela está em sala de aula, ela faz

até “palhaçadas” na frente dos alunos e isso não a incomoda.

A Professora 1 tenta justificar a inibição dizendo que as palavras: “filmagem, fotografia e

avaliação”, são palavras que inibem por proporem uma situação de “irrealidade”; mas podemos

pensar o que faz com que estas três palavras sejam colocadas em uma mesma categoria. A

palavra irrealidade pode ter o sentido de inadequação à realidade, será que é a essa sensação que

a Professora 1 se refere? Sensação de inadequação? Aparentemente estas três palavras não têm

uma ligação, mas dentro da vivência, por se tratar de uma situação de pesquisa, a filmagem se

colocou como a forma de registro, captando as vozes e as imagens das professoras, o que se

coloca como uma prova inegável das afirmações feitas por elas durante os encontros, encontros

que seriam analisados pela pesquisadora ao término da vivência, situação conhecida pelas

professoras; então, será que o medo expressado pelas professoras era de ser avaliada e ter suas

falas e comportamentos registrados e analisados pela pesquisadora? Será que é este o medo de se

expor que foi levantado pela Professora 4?

E se, como coloca a Professora 2, as filmagens fossem realizadas dentro da sala de aula,

será que haveria realmente mais naturalidade? Neste ponto a Professora 3 levanta uma questão

muito interessante, o fato de que atividade proposta – construir e interpretar um roteiro – é uma

atividade com a qual elas não estão familiarizadas, e que por isso não pode ser comparada com as

dramatizações feitas em sala de aula como recurso didático; afirmação que foi desconsiderada

pelas outras professoras. Interpretar um papel requer habilidades que elas não desenvolveram

durante suas vidas – ter freqüentado um curso de dramatização não era um dos pré-requisitos para

participar da vivência, nem foi fornecido à pesquisadora qualquer informação a respeito da

participação ou não de tais cursos – mesmo porque a qualidade estética das dramatizações não foi

levada em conta na análise. A pesquisadora partiu do pressuposto de que nenhuma das

professoras participantes tivesse qualquer experiência na arte da dramatização. Mas mesmo com

esta colocação da Professora 3, as professoras continuaram investigando o porquê de sua inibição

na dramatização, se em sala de aula elas geralmente dramatizam, concluindo que a diferença foi

de que em sala de aula a dramatização é espontânea e na pesquisa ela foi imposta. Mas mais

importante que a imposição de uma situação, devemos levar em conta que a dramatização

proposta não se tratava de uma improvisação realizada no interior da sala de aula; as professoras

construíram um roteiro e o representaram publicamente, ou seja, para aparecer na televisão; isso

significa que montaram um projeto que envolvia escolhas e um pensamento sobre estas escolhas,

e que de alguma forma revelaria a compreensão das professoras sobre os assuntos tratados.

Talvez assumir as idéias apresentadas publicamente foi o que causou medo.

A última atividade da Vivência foi escrever um relato sobre a experiência da vivência, no

qual aparece um elemento muito interessante com relação à compreensão que estas professoras

desenvolveram da linguagem visual. No relato, as professoras afirmam:

“A experiência foi muito interessante, no sentido de oportunizar a vivência

de +- 5 linguagens e a reflexão social sobre as mesmas.” (apêndice B,

relato 01)

“Foi uma experiência bem gratificante. Pude perceber como situações que

assisto na televisão, podem ser lidas de tantas formas.

Na maioria das vezes não percebemos quanto é difícil e complexa a

linguagem visual. Como podemos aproveitar todo esse mundo

“imaginário” para a nossa realidade. Quantos elementos importantes que

passei a perceber neste exercício e a importância da opinião do grupo a

respeito deste assunto.” (apêndice B, relato 02)

“Foi uma experiência interessante e ao mesmo tempo estimulante pois

além de ampliar meus conhecimentos foi um tema que fugiu do meu

cotidiano. Ampliei minha compreensão sobre o funcionamento de um

vídeo e os elementos que o compõe.” (apêndice B, relato 03)

“Foi uma experiência muito interessante. Serviu para mostrar uma outra

visão de como avaliamos o que vemos na televisão, o modo de

interpretação dos programas e cenas.” (apêndice B, relato 04)

Com estes depoimentos percebemos que as professoras notaram uma diferença na sua

compreensão da linguagem visual a partir das atividades da Vivência. Passaram a olhar as

produções da mídia com um certo distanciamento que possibilita uma apreensão formal, diferente

de seu contato anterior. No primeiro relato, a professora aponta a vivência das linguagens e a

reflexão sobre elas; no relato 02, percebemos que a professora se refere à linguagem visual, e não

à telenovela ou às fotografias, isso significa que existe uma compreensão de que nestas produções

existe uma linguagem que é comum. No relato 03, a professoras fala do vídeo, ou seja a

linguagem videográfica e as mudanças que sua compreensão sofreu com relação a este meio. E

no relato 04 a professora focou a interpretação do que é visto pela televisão.

4. Dissociação entre Informação e Conhecimento:

No decorrer da Vivência existiram alguns momentos nos quais as professoras colocaram

algumas situações e assuntos sobre os quais mostram um conhecimento informativo, ao mesmo

tempo em que se sentem impotentes, tanto na vontade de modificar as situações, quanto na

compreensão das suas causas. Por exemplo, no segundo dia durante a conversa sobre as

dramatizações, as professoras começam a falar sobre o desemprego e entram no assunto da perda

do poder aquisitivo:

“Professora 1 – o poder aquisitivo, até ontem nós estávamos vendo, quem

paga imposto de renda e todos nós pagamos, quem tem dois padrões paga,

pega a primeira faixa e paga, nós tivemos uma perda de 54%, por quê?

Com a inflação e com o congelamento da tabela nós estamos perdendo o

equivalente a 54% no nosso poder aquisitivo...

Professora 4 – basta ver há dois anos atrás eu pagava o financiamento do

meu apartamento tranqüilamente, hoje já é uma coisa que pra mim fica

muito caro, e eu não perdi o emprego nem nada ainda, meu poder

aquisitivo está caindo, tudo foi subindo

Professora 1 – é muito violento... não sei o que que vai acontecer...”

Nesta conversa percebemos que as professoras levantam o problema social da

desvalorização do dinheiro, mas as informações que a Professora 1 traz, são descontextualizadas,

pois não explicita de qual fonte retirou as informações, ou em comparação a qual data aconteceu

esta perda, o que indica que provavelmente ela leu estas informações em alguma revista ou viu

em algum noticiário de televisão, mostrando a constatação de um fato sem a compreensão

histórica deste fato. A forma como a Professora 4 se refere à situação que está vivendo,

demonstra que ela está assustada, pois percebe os resultados de uma situação social precária que

existe no país, e se sentindo vítima destes fatos, não busca uma análise mais profunda que

contextualize estes problemas sociais, se colocando como impotente frente a uma situação que

foge ao seu controle. A perda do poder aquisitivo é conseqüência de toda uma situação social que

vem se delineando há tempo, não é um fato que simplesmente aconteceu; para compreendê-la é

necessário uma retomada histórica, que aponte a origem deste problema social. O último

comentário da Professora 1 reafirma esta sensação de impotência e surpresa vivenciada por elas

com relação a esta informação.

Um outro momento que podemos analisar pensando nesta dissociação entre informação e

conhecimento é a conversa que acontece no final do terceiro dia da vivência, na qual a

pesquisadora questiona as professoras com relação à presença da mídia na sala de aula. Em um

primeiro momento as professoras comentam que existe uma presença muito forte da mídia:

“Professora 4 – às vezes esse é o único assunto [...] Por mais que você

tente puxar, tente fazer outras coisas assim, é o único assunto...

Professora 3 – é bem importante na vida delas”

“Professora 1 – é que a conversa com a mídia está substituindo a conversa

com os pais, não existe mais diálogo, todo mundo fica no seu isolamento

individual...

Professora 3 – projetando

Professora 1 – numa presença coletiva, mas num isolamento individual

tentando interagir com a televisão, é isso que está acontecendo.”

Nestes comentários, as professoras se referem, não só à presença da mídia na sala de

aula, apontando que os assuntos da mídia são muito importantes para as crianças, e que

dificultam o trabalho em muitas ocasiões; mas também fora dela, mostrando a percepção de que a

televisão produz um distanciamento entre os membros da família. Esta opinião levantada pela

Professora 1 pode ser relacionada com o comentário de Adorno sobre a televisão:

Aquela ‘proximidade’ fatal da televisão, que também é causa do efeito

supostamente comunitário do aparelho, em torno do qual os membros da família e

os amigos, que de outra forma não saberiam o que dizer uns aos outros, se reúnem

em mutismo, não só satisfaz um desejo diante do qual nada de espiritual se pode

manter que não se transforme em propriedade, como ainda obscurece a distância

real entre as pessoas e entre as pessoas e as coisas. Ela se torna o sucedâneo de

uma imediação social que é vedada aos homens.266

Nesta colocação de Adorno percebemos uma discussão muito próxima à que é apontada

pela Professora 1, quando fala que a conversa com a mídia está substituindo a conversa com os

pais, mas se lembrarmos do momento no qual as professoras assistem à cena de novela, podemos

notar que elas reproduzem este mesmo comportamento. Ainda que levemos em conta a situação

de pesquisa na qual elas se dispuseram a participar das atividades, o comportamento observado

das professoras não foi imposto pela situação de pesquisa, ele se deu naturalmente. Todas se

fixaram instantaneamente na cena de novela, e se nos lembrarmos de algumas conversas que

aconteceram neste momento, percebemos que os diálogos se tornavam dispersos, como no

momento no qual a Professora 2 comenta que a Heloísa vai se jogar pela janela, e depois do

comentário da Professora 1, a Professora 2 e a Professora 3 repetem a mesma frase 3 e 2 vezes

respectivamente, de forma automática e mecânica. Neste comentário da Professora 1, ela

demonstra a percepção do problema nas crianças, nos outros, não refletindo como ela própria

reproduz este comportamento.

Quando questionadas sobre como trabalhar com a presença da mídia na sala de aula,

afirmam:

266 ADORNO, 1987, p. 350.

“ah acho que a gente tem que aproveitar das boas coisas e das más coisas

que ela traz, e reverter pra dentro da sala de aula, dentro dos seus

conteúdos, dentro das suas implicações, e transformar isso, se é ruim

explicar o porque, se é bom dar uma aula em cima daquilo, mas trazendo,

já que é o tal negócio: se você não pode com ele alie-se a ele.”(2)

“e também mostrando a visão crítica da coisa você pode pegar uma

situação, colocar, eles trazem e você coloca a situação e ‘vamos ver o que

vocês acham disso’ e vamos procurar ver o outro lado da história; por que

que eles estão colocando isso, por que que está assim, então é um aliado,

pode ser um aliado”(3)

“e a televisão também tem bons programas, a gente tem que fazer com que

a criança perceba outros programas além daqueles que eles estão

habituados”(4)

Observando estas declarações das professoras, podemos ver que de alguma forma elas

sabem que é possível e necessário ir além da informação, mas ao mesmo tempo, não demonstram

nenhuma tentativa de realizar esta vontade, ou algum momento no qual tenham realizado; por

outro lado percebemos que existe uma grande semelhança entre as colocações das professoras e

as orientações dos PCNs com relação ao trabalho com a Mídia como tema transversal:

A qualidade da maior parte das programações é, sem dúvida, muito discutível.

Informações tendenciosas, tanto naquilo que é dito quanto naquilo que deixa de

ser dito; produções artísticas pouco elaboradas; incentivo ao consumo

desenfreado; valorização de atitudes violentas e discriminatórias. No entanto, a

mídia oferece a cada um, e não só aos jovens, a possibilidade de distrair-se de

suas preocupações, informar-se e até mesmo de resignar-se com as dificuldades

enfrentadas em face da enxurrada de tragédias alheias. Por isso, a estratégias de

alguns educadores de tratar a mídia como adversárias acaba funcionando como

um distanciamento entre esses e os alunos. A mídia pode ser uma grande aliada

no processo educacional: é importante aproveitar o conhecimento que ela propicia

e propor trabalhos de reflexão sobre as programações, incentivando um olhar

crítico. Do ponto de vista educativo, o problema não está no consumo, mas no

consumo passivo de tudo que é veiculado.267

Comparando as falas das professoras com as orientações dos PCNs, percebemos uma

grande similaridade, mas apesar das professoras terem introjetado estas orientações, não sabem

como lidar com os conteúdos que aparecem nas salas de aula. Esta consciência que elas

demonstram, da necessidade de trabalhar com a mídia, não é transformada em ação, porque

direcionam suas preocupações, enquanto educadoras, para seus alunos, não refletindo sobre a

necessidade de uma compreensão aprofundada de sua própria relação com a mídia:

“eu gostaria de acabar com os desenhos do Yu-Gi-Oh [...] que é uma

fixação dos meninos da minha sala que é uma coisa horrorosa, eles eu

acho que comem mexendo naquelas cartinhas, levantam mexendo

naquelas cartinhas tudo... fazem coleção, fazem campeonato...”(4)

A professora 4 se refere aos desenhos animados japoneses e aos brinquedos vinculados

aos desenhos, que se tornam, segundo a professora “uma fixação”, uma mania; são brinquedos

que possibilitam uma interação entre as crianças e os desenhos animados, já que a brincadeira é

imitar, com o brinquedo, as atitudes dos personagens do desenho. A professora demonstra uma

dificuldade de trabalhar com este conteúdo, pois diz que “gostaria de acabar com os desenhos do

Yu-Gi-Oh”. Este desabafo da Professora 4 mostra que por não saber como trabalhar esta

realidade com os alunos, sua vontade é de fazer esta realidade desaparecer. Ela percebe esta

267 BRASIL, 1998, p. 120 apud VERMELHO, 2003, p. 149-150.

situação como uma interferência no seu trabalho e não como, talvez, uma oportunidade de

realizar um trabalho com estes conteúdos da mídia, como orientam os PCNs.

Nos capítulos anteriores quando discutimos a pseudoformação, levantamos que uma de

suas características é a transformação dos conhecimentos em informações, que aprendidos e

ensinados por imposição são dissociados da vivência, e portanto impedem a construção do

conhecimento. Instrumentalizados, são vistos como indicações de como trabalhar, mas na

vivência real, na qual os problemas se apresentam e pedem uma compreensão profunda e

reflexiva, estas informações instrumentais de nada adiantam, não foram internalizadas como

conhecimentos e, se tornam apenas discursos.

O envolvimento das crianças com a mídia reflete o envolvimento de grande parte da

população, e a falta de consciência da própria situação vivenciada pelas professoras, provoca a

dificuldade para discutir com os alunos essa situação comum entre eles.

Quando questionadas sobre a influência da mídia no comportamento das crianças, todas

foram taxativas:

“as crianças que tem maior envolvimento com esse tipo de... [atividade

relacionada com os conteúdos da mídia] são as mais agressivas [...] é bem

direto isso, os meninos que tem mais relação com esse tipo de atividade

são os mais agressivos e sempre assim, são crianças assim que é natural

dar um chute, ‘ah se você gritou comigo, eu chuto você’, ah pronto”(4)

Neste comentário percebemos que a professora percebe que as mesmas crianças que tem

um maior envolvimento com estas atividades, ou seja, conversas sobre os produtos da mídia ou

brincadeiras com os brinquedos vinculados aos desenhos animados, mostram um comportamento

mais agressivo. Segundo Wartella; Olivarez; Jennings, falando da violência na programação

norte-americana, observa que “[...] o contexto em que a maior parte da violência é apresentada é

são; a violência raramente é punida no contexto imediato em que ela ocorre; e raramente resulta

em prejuízo observável para as vítimas.”268 O que descaracteriza totalmente o ato violento na

ficção, distanciando-o da sua realização na vida real, mostrando uma imagem distorcida dos atos

de violência. O que pode ser relacionado com a discussão sobre a frieza e a incapacidade de

identificação, levantada no núcleo de análise Verbalizações sobre o outro, no qual, a partir das

considerações de Adorno, foi trabalhado o problema do preconceito percebido nas falas das

professoras.

Wartella; Olivarez; Jennings ainda discutem a dessensibilização provocada pelo contato

com a mídia:

[...] o ato prolongado de ver violência na mídia pode levar à dessensibilização

emocional em relação à violência do mundo real às suas vítimas, o que, por sua

vez, pode levar a atitudes insensíveis em relação à violência dirigida a outros e a

uma probabilidade menor de agir em benefício da vítima quando ocorre

violência.269

O comportamento violento observado pela professora e a relação entre este e os conteúdos

da mídia, foram observados por inúmeros pesquisadores, aos quais se refere o texto citado, que

aponta considerações a partir de uma compilação de pesquisas sobre os conteúdos violentos dos

meios de comunicação e as crianças. Nas crianças a manifestação da dessensibilização, ou frieza,

como foi denominado por Adorno, se dá pela agressão física de umas contra as outras, no

entanto, quando nos lembramos da cena dramatizada pelas Professoras 3 e 4, a transformação da

268 WARTELLA, Ellen; OLIVAREZ, Ariana; JENNINGS, Nancy. A criança e a violência na televisão nos EUA. In: CARLSSON, Ulla; FEILITZEN, Cecília von (Orgs.). A criança e a violência na mídia. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 1999, p. 63. 269 Ibid., p. 67.

“desgraça alheia” em uma cena cômica, assume o mesmo caráter da incapacidade de

identificação com o outro.

Até então, as professoras só haviam comentado desta relação com a mídia percebida nos

meninos, o que levou a pesquisadora a questioná-las a respeito do envolvimento das meninas com

este universo:

“Professora 1 – é uma sexualidade acho mais...

Professora 4 – é uma sensualidade, é a questão do baton, da...”

“se você observar, se ficar até a hora do recreio e você observar o tipo de

dança das meninas... você já percebe! [...] e não se está fazendo uma

leitura do que essa dança provoca, do que essa dança significa, então as

meninas fazem os trejeitos, fazem os movimentos com o corpo, que elas

nem entendem o que representa”(1)

“agora o que eu já percebi mesmo na terceira e quarta série, é que as

meninas, elas não sabem o que fazer com essa sensualidade, aí elas

começam a bater pra pegar [e pega na Professora 2 imitando o

comportamento das alunas], só que elas não sabem como pegar [...] então

é uma forma de troca, mas só que é na agressividade, porque é a forma

que os meninos conhecem e que é o permitido, digamos assim entre aspas

[fazendo sinal de aspas], então essa parte é muito forte nas meninas mas é,

na realidade o que elas querem...”(3)

Com relação às meninas, o envolvimento com a mídia é percebido nas danças ensaiadas

na hora do recreio, que são danças imitadas dos grupos musicais que aparecem na televisão, que

trazem movimentos sensuais, como definem as professoras, e que na sua opinião, estimulam a

sensualidade das meninas em uma idade na qual ainda não estão preparadas para lidar com isso.

No comentário da Professora 1, ela afirma que não está sendo feita uma leitura das conseqüências

destas danças para as crianças, mas trabalhar estas questões não seria justamente fazer esta

leitura? Ao mesmo tempo elas notam violência no comportamento das meninas também, para

justificá-lo, relacionam as agressões das meninas contra os meninos, em função desta

sensualidade precoce.

“Professora 2 – e é uma parte também de agressividade das meninas, as

meninas também estão muito agressivas, muito mais agressivas do que

eram antigamente

Professora 1 – ah lógico!

Professora 2 – a gente vê nas crianças de quarta série, aquelas que se os

meninos falam... eles não precisam falar nada, assim, mas elas se acham

no direito de estapiar, de bater, de chutar, então está um negócio assim

que, chega na fila, você vê assim: ‘aqui não é o teu lugar!’ ‘claro que é

aqui!’ [empurra a Professora 3 imitando as meninas] ‘Sai daqui!

Professora ali ele está me chutando, professora ele está me batendo!’ mas

não, você vê que parte delas, delas também achar que podem tudo, que

elas podem tudo...”

Então a agressividade não está focada somente nos meninos, mesmo porque não são

somente eles que tem contato com programas violentos. A programação infantil é assistida por

todas as crianças e, se para as professoras, nos meninos parece mais direta a ligação entre os

desenhos animados violentos e as atitudes violentas, as meninas também tem contato com estes

conteúdos e suas atitudes também estão sujeitas a estas influências. Mesmo porque, a

dessensibilização não se dá exclusivamente pelo contato com conteúdos violentos da mídia, ela

acontece em decorrência de um processo mais complexo que se realiza na própria cultura, ligada

à frieza e à luta pela sobrevivência. Como apontado por Chochík, a fixidez do comportamento,

que caracteriza preconceito, se relaciona com os estereótipos oriundos da própria cultura, de onde

o preconceito surge como uma resposta aos conflitos presentes na luta pela sobrevivência. Em

outras palavras, a incapacidade de identificação com o outro está relacionada com o pensamento

estereotipado, e a violência infligida contra o outro, de uma maneira geral, com a luta pela

sobrevivência.

A sensação de impotência para lidar com o problema da mídia manifestada pelas

professoras, pode ser percebida nesta fala da Professora 1:

“a mídia [bate uma mão na outra] massificando... todos os sentidos, os sete

buracos da cabeça, os pais, aprovando, e como é que a escola, com os

recursos que tem, vai fazer frente a isso? É muito difícil, é muito

complicado. Não adianta falar com pai, mãe, porque a maioria é

conivente”(1)

Neste trecho percebemos que a professora se coloca como impotente frente à pressão que

se coloca na escola para resolver os problemas da relação das crianças com a mídia, porque ela

afirma que os pais não estão cumprindo o seu papel de orientação e interferência sobre o contato

das crianças com a mídia, o que, segundo a Professora 1, dificulta muito o papel da escola. Mas,

retomandos as orientações dos PCNs, estas não deveriam dar suporte e subsídios justamente para

esta questão? Estas professoras que mostram que conhecem as orientações, não deveriam estar

preparadas para trabalhar as questões da mídia com as crianças? Com estas colocações

percebemos que ler o que deve ser feito não é suficiente para que as professoras saibam lidar com

as mídias na escola. Retomando as palavras de Vermelho:

O fato de essa relação se dar em casa ou na escola, não muda a relação que esses

docentes estabelecem com essas mídias. Com isso, permanece inalterada a forma

de atuar subjetivamente nesses sujeitos, professores e alunos, e as mídias ou

qualquer atividade que venha a ser realizada com elas na escola reforçam, ao

invés de se contrapor, as experiências que esses sujeitos passam para além dos

muros escolares.270

Ou seja, tanto os professores quanto os alunos são carentes de compreensão crítica com

relação aos meios de comunicação, que não pode ser adquirida pela leitura de manuais, ela deve

ser experienciada e vivida cotidianamente. Neste sentido que a simples inclusão das mídias na

escola não proporciona muitos benefícios, pois a relação com a mídia permanece inalterada. Esta

compreensão crítica se constrói com base em leituras e experiências, pois deve se concretizar em

uma atitude crítica. Mas como afirma Vermelho, esta é uma questão política e não somente

pedagógica, pois, mesmo que a escola possa assumir em parte esta formação,

Não adianta um discurso pedagógico dessa natureza, numa sociedade que permite

a veiculação de programas infantis que lançam mão explicitamente de

mecanismos de erotização e de estímulo ao consumo irrefreado sobre nossas

crianças e adolescentes, com uma programação que predominantemente exalta o

corpo belo, com uma reprodução dos modelos do mundo fashion internacional.

Seria mais coerente se, aliado a essa política educacional, houvesse também uma

política de controle ao que é produzido e veiculado de programação infantil nos

canais de televisão.271

Assim, Vermelho levanta a necessidade de uma atuação social-política-econômica que

possa controlar os exageros da mídia. Pois mesmo os documentos dos PCNs que falam em uma

visão crítica das mídias, não especificam a que tipo de crítica estão se referindo, uma crítica real 270 VERMELHO, 2003, p. 147-8. 271 Ibid., p.150.

ou superficial? Pois se os professores devem estimular uma discussão crítica com os alunos, eles

precisam de elementos que permitam estas reflexões, precisam ir além da simples constatação de

que existe um problema272, como pudemos perceber nas declarações das professoras acima

citadas.

É necessário que as professoras mudem sua relação com a mídia, exerçam uma reflexão

profunda e constante sobre sua própria situação, para que possam de fato trabalhar esta questão

com seus alunos e possibilitar a construção do conhecimento. Retomando, pela reflexão conjunta,

a possibilidade de efetivação do projeto da educação para a autonomia e emancipação.

272 VERMELHO, 2003, p.151.

CAPÍTULO V CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo contribuir para a discussão sobre a formação dos

professores(as) da educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental, especificamente no

que se refere à importância da compreensão da linguagem visual. Uma tentativa de cruzar um

estudo sobre a situação do sujeito na sociedade contemporânea – que há algum tempo vem sendo

chamada de Sociedade das Imagens –, com o universo da educação, para investigar qual é a

compreensão que estes professores(as) tem da linguagem visual e, enfatizar a importância da

ampliação desta compreensão para a formação tanto dos professores(as) quanto de seus alunos.

Para tanto, partiu-se de um estudo teórico fundamentado na Teoria Crítica da Sociedade,

com teóricos da Escola de Frankfurt, que por ter orientação freudo-marxista possibilitou o

entrecruzamento da situação social e a do indivíduo de forma crítica. Neste estudo foram

levantadas questões sobre as várias formas presentes em nossa sociedade para a manutenção da

ordem, que significa a reprodução do sistema social. Vimos como os indivíduos, em nossa

sociedade, estão atrelados à estrutura social e como a cultura se transformou em veículo de

adaptação, pela sua subsunção à indústria cultural; situação que levanta vários questionamentos

no campo da educação quando vinculada às idéias de autonomia e emancipação.

Toda a discussão teve como eixo central a compreensão da linguagem visual, pois como

já foi citado, nossa sociedade é chamada Sociedade das Imagens, o que nos faz pensar a

linguagem visual como fundamental para a compreensão do mundo, principalmente se pensarmos

no mundo que nos é mostrado pelos meios de comunicação. Assim, tendo o campo das artes

visuais como o espaço no qual a linguagem visual é pensada e discutida, levantamos sua

fundamental importância para a compreensão de toda esta conjuntura.

Tendo estas diretrizes como ponto de partida, procuramos levantar questões sobre a

relação indivíduo-linguagem visual, especificamente com um grupo de quatro professoras de uma

escola de educação básica situada na região de Curitiba; para, a partir das experiências vividas

junto às professoras, pensar como esta relação aparece na compreensão que os sujeitos da

pesquisa têm da realidade. Ou seja, investigar como é a compreensão que estas professoras tem

da linguagem visual e como se apropriam desta, para perceber se e, como esta linguagem

influencia sua compreensão de mundo, e como é utilizada por elas em sala de aula. Sendo estas

professoras as mediadoras do processo de letramento, como discutido anteriormente, sua

compreensão da linguagem visual assume grande importância atualmente.

A pesquisa de campo, denominada Vivência, trouxe dados valiosos para compreendermos

melhor como se dá a relação das professoras com a linguagem visual, em particular aquelas

veiculadas pelos meios de comunicação. Tivemos como objetivo central, perceber como as

professoras lêem as imagens visuais e, ao mesmo tempo proporcionar um espaço de discussão

sobre estas questões, para verificar a possibilidade de interferir nesta realidade. No entanto esta

pesquisa não pretendeu esgotar as possibilidades de investigação desta relação, mas a partir da

seleção de um grupo de professoras, aprofundar a compreensão em um universo reduzido, mas

representativo.

Como discutimos nos capítulos anteriores, os meios de comunicação de massa surgiram

em decorrência das várias tecnologias de reprodutibilidade da imagem que se sucederam no

decorrer do tempo: fotografia, cinema, televisão, computador. Meios que possibilitaram a

produção em série de cultura visual e, seguiram um caminho em direção à meta de reproduzir em

uma imagem visual, a realidade sensível com a maior perfectibilidade possível. Estes meios de

representação, a serviço da Indústria Cultural, receberam ainda a função de introduzir nesta

duplicata do mundo o que se considerava adequado ao real, ou seja, trazer para perto das pessoas,

através dos produtos da indústria cultural, as palavras de ordem do aparato: regras, valores e

verdades, sem os quais dificilmente a ordem social se manteria.

Neste sentido podemos perceber que a nomeação Sociedade das Imagens tem uma

significação social de denunciar que a aparência de realidade transmitida pelos meios de

comunicação assume o significado de realidade; e que, como diz Bourdieu, acaba por construí-la

e determiná-la. Esta passa a ser considerada a realidade oficial, o que assume uma grande

complexidade se pensarmos que toda imagem visual é uma representação e, portanto, uma

construção que se realiza em uma transformação formal, ou seja, são imagens com aparência de

real, mas não são o real; são uma produção visual que tem um autor (mesmo que seja uma

equipe, e que sofra as interferências mais diversas), e essa autoria se refere a um ponto de vista, a

uma intenção. Se as imagens visuais que aparecem nos meios de comunicação são tomadas pela

realidade, e se constituem como a realidade oficial, a parcialidade de sua construção é

desconsiderada, e a apreensão formal desta construção é dificultada.

Segundo as discussões da estética, a leitura formal de uma imagem visual é fundamental

para a compreensão do seu conteúdo, pois, em uma obra de arte, por exemplo, o modo de formar

do artista (seu fazer, o modo como manipula a matéria) determina o conteúdo da obra, assim

como o conteúdo determina também seu modo de formar; estes dois aspectos têm uma relação

dialética na lógica de construção das obras de cada artista. Nestes termos, podemos compreender

que conteúdo e forma são idênticos, coincidem, ou seja, uma produção cultural é a formalização

de um conteúdo e só existe nestes termos. Assim, o agenciamento e controle manejados pela

Indústria Cultural agem justamente nesta identidade entre forma e conteúdo, pois para realizar a

difusão das produções culturais sob sua lógica, a Indústria Cultural realiza uma tradução destas

produções para a linguagem (modo de formar) dos meios de comunicação, que as põem em

circulação. A mediação feita pela Indústria Cultural é a padronização formal, pois seu modo de

formar é sempre igual, sempre a partir da mesma lógica de organização e formalização,

sacrificando neste processo de filtragem, a coincidência entre forma e conteúdo, própria das

produções culturais.

A repetição da estrutura formal faz com que esta seja naturalizada, a forma passa

desapercebida, absorvida inconscientemente, enquanto seu conteúdo é percebido como “puro”,

ou seja, a tela da televisão é vista como uma janela para o real, um canal de presentificação.

Nesse sentido a compreensão formal é um dos elementos fundamentais para a compreensão dos

conteúdos transmitidos pela Indústria Cultural, para a compreensão de suas produções como

construções.

O que se evidenciou com o material coletado foi que as professoras têm um grande

contato com os meios de comunicação, principalmente a televisão, mas que ao mesmo tempo

existe uma grande dificuldade para a compreensão formal deste meio, ou seja para apreender as

produções visuais videográficas como um objeto, observar e identificar os elementos formais que

as constituem. Esta compreensão exige do telespectador um distanciamento, para que se possa

apreendê-la como uma estrutura narrativa construída. O que foi percebido na vivência, pelo

contrário, foi um grande envolvimento das professoras com a narrativa, sem perceber suas

delimitações, o que gerou discussões nas quais eram confundidos personagem e ator, vida real e

vida ficcional.

Essa dificuldade de apreender formalmente os produtos da Indústria Cultural apareceu na

maior parte do processo da Vivência, sofrendo uma modificação no último dia, quando pudemos

perceber que toda a experiência vivida pelas professoras provocou uma certa mudança na sua

compreensão visual. Este dado é muito positivo, pois é resultado de todo o processo da vivência,

que, a partir das discussões e da produção visual e audiovisual, possibilitou que as professoras

iniciassem uma compreensão formal destes objetos, o que não foi possível no primeiro dia. Em

um primeiro momento, esta compreensão formal se deu com relação às fotografias, o que nos

levou a inferir que isto deriva do fato de ser a fotografia uma linguagem mais familiar e um

objeto que pode ser manipulado fisicamente; tornando-a uma boa alternativa para iniciar um

trabalho com a linguagem visual. Outro momento no qual as professoras apresentaram

compreensões formais, foi no último encontro, assistindo à cena da telenovela pela segunda vez.

A repetição da atividade, depois de terem sido feitas as produções e várias discussões sobre a

linguagem visual e audiovisual, abriu a possibilidade de um aprofundamento na compreensão das

professoras.

Mas apesar desses momentos, percebemos nas verbalizações das professoras, durante as

atividades, um pensamento estereotipado. Este pensamento aparece na caracterização das pessoas

e situações vividas ou dramatizadas, que é muito próxima à forma como, as pessoas e situações,

são caracterizadas nos meios de comunicação. As pessoas foram definidas como tipos

pertencentes a categorias distintas, sempre por oposição. O que pode ser percebido também nos

personagens dos programas de televisão e mesmo nas pessoas que aparecem em reportagens, que

são sempre caracterizados a partir de uma tipologia que os encaixa em um grupo: o bom, o mau,

o herói, o vilão, o trabalhador, o desempregado, o da classe média, baixa ou alta, o do campo, o

da cidade, o da favela, o professor de escola particular, o de escola pública, etc. Assim,

percebemos nas verbalizações das professoras uma reprodução desta forma de perceber e

caracterizar o outro, ou seja, a imagem que constroem para compreender o outro.

Dentro deste pensamento estereotipado pudemos perceber, em vários momentos, uma

atitude preconceituosa das professoras para com as pessoas sobre as quais falavam. O preconceito

pode ser visto, em alguns momentos, como uma forma de defesa contra um preconceito que

sofrem, o que faz com que se coloquem como uma categoria em oposição; ou como uma fixidez

de comportamento, uma forma de apreender o outro como ser distinto, não pelos vários

predicados que possui, mas como pertencente à outra categoria. O preconceito aparece em nossa

sociedade como um mecanismo de defesa contra a violência da estrutura social, que se realiza na

luta pela sobrevivência, e manifesta-se pelo pensamento dicotomizado que separa o mundo em

bem e mau, verdadeiro e falso, certo e errado, e exige tomadas de posição firmes e definitivas.

Esta operacionalização simplificadora foi percebida nas tomadas de posição das professoras, que

mostraram uma fixidez de comportamento, recorrendo ao relativismo quando sentiam que de

alguma forma deveriam aceitar a existência de pensamentos contrários aos seus.

A compreensão estereotipada do mundo permeou todas as conversas que aconteceram

durante a vivência, o que mostra que não é simplesmente a indivíduos preconceituosos que

estamos nos referindo, mas a uma predisposição ao preconceito, e a uma atitude preconceituosa

frente ao mundo. Se retomarmos o pensamento de Chochík, segundo o qual os estereótipos são

oriundos da cultura na qual os indivíduos se desenvolvem, esta predisposição não é exclusiva

destas professoras, mas generalizada e estabelecida como valor a ser transmitido e propagado

pela nossa cultura.

Podemos ainda estabelecer uma relação entre a atitude preconceituosa e a compreensão

que se tem das imagens veiculadas pelos meios de comunicação, nas quais a formalização dos

tipos humanos apresentados segue esta tendência de caracterização. A incapacidade de

decodificação dos elementos formais presentes nestas construções, gerada pela sua naturalização,

naturaliza esta tipologia na vida real, tornando-a um padrão de apreensão das pessoas com as

quais se convive.

Outra relação que podemos estabelecer entre o comportamento e a compreensão das

professoras e a lógica da indústria cultural se refere à instrumentalização dos conhecimentos, que

recebidos como receitas de como fazer são dissociados de sua vivência, transformados em

informações e traduzidos em termos operacionais e orientados ao comportamento.

Ao mesmo tempo em que as professoras traziam um discurso carregado de informações

sobre como, por exemplo, trabalhar a presença da mídia na escola, nos depoimentos sobre a sua

prática pedagógica mostraram não conseguir realizar estas idéias. Esta dificuldade pode advir do

fato de não terem vivenciado a aprendizagem do trabalho com a mídia, vivência que deveria

iniciar com a reflexão sobre sua própria relação com esta. Isso nos leva a supor que a leitura dos

manuais que indicam como trabalhar com as crianças, pode fazer com que elas projetem nestas

suas próprias dificuldades, e com isso dificultar um trabalho de formação para uma relação mais

autônoma com as mídias.

A partir destas reflexões é fundamental lembrarmos do conceito de pseudoformação,

como uma formação fundada em falsas verdades e falsos valores. Um dos aspectos da

pseudoformação, diz respeito à formação da subjetividade com base em uma cultura que

privilegia a absorção de informações, a partir das quais são constituídos os conhecimentos e a

compreensão do mundo sob a lógica da Indústria Cultural: operacionalizados e orientados ao

comportamento. Este processo transfere o objetivo de formação humana para aqueles

relacionados à manutenção de uma dada ordem social, tendo a aquisição de conhecimentos como

um meio e não um fim.

Nesse sentido podemos compreender que a leitura dos PCNs sobre como trabalhar a

presença da mídia na vida das crianças, não auxilia a prática pedagógica das professoras e ainda

descarta a vivência da compreensão da presença da mídia nas suas vidas. Se as professoras são

vistas e tratadas como meros instrumentos de ensino e não como educadoras em sentido global, o

que se requisita delas é simplesmente que desenvolvam mecanismos de transmissão de

conhecimentos-informações e não que vivenciem a construção de conhecimentos junto aos seus

alunos.

Este processo pode ser compreendido a partir do conceito de coisificação dos

conhecimentos e da própria profissão de ensinar, devido aos quais os conhecimentos não são

aprendidos/ensinados pela experiência, mas pela imposição, o que dá o caráter instrumental aos

cursos e aos conteúdos trabalhados nestes cursos.

A ligação entre a coisificação e a pseudoformação nos remete a influência da Indústria

Cultural na educação, que transforma a cultura em veiculo de adaptação, conhecimentos em

informações, experiências em pseudoexperiências e ensino em negócio. Como vimos no segundo

capítulo, a produção em série de cultura tem suas origens no modelo de relacionamento com o

real instituído na era industrial. O principal sintoma deste modelo é o declínio da aura, que pode

ser entendido como o declínio da própria cultura. Nada mais é distante e único, tudo pode ser

atualizado pelos meios de reprodução e, no entanto, o sujeito se distancia do real, pois o seu

contato com o real é mediado pelas reproduções; com a disseminação de cópias reproduzidas, já

não existe original, tudo pode ser adquirido por todos, e assim tudo se torna potencialmente

descartável. Esta capacidade de captar o semelhante no mundo é fruto de uma percepção

acostumada com a reprodutibilidade, o que faz com que consiga captar este semelhante, ou duplo,

até no fenômeno único. A aura é um elemento dos objetos e acontecimentos percebido pelo

sujeito, não existe em si, portanto o novo modelo de relacionamento com o real faz com que a

aura perca a importância, este é seu declínio, a possibilidade de experienciá-la continua no

original, o declínio acontece na percepção das pessoas, que não conseguem mais vivenciá-la.

A descartabilidade da cultura, do conhecimento e das experiências, tendencialmente tem

levado ao enfraquecimento do sujeito; a reversão desta situação, ou seja, o fortalecimento do

sujeito, só pode acontecer pela retomada da formação humana para a autonomia. Isso implica um

projeto de educação para emancipação que inicie pela desnaturalização dos processos de

adaptação e mecanismos de controle presentes em nossa sociedade, além de um trabalho de

decodificação da Indústria Cultural.

Retomando o foco deste trabalho, podemos pensar na desnaturalização das estruturas

formais das imagens veiculadas pelos meios de comunicação, como uma forma de desvendar as

estruturas formais disseminadas pela racionalidade tecnológica. Estruturas que atam o indivíduo a

uma rede complexa de relações, compromissos, deveres e desejos, todos ligados à estrutura

social, não permitindo que se vislumbrem possibilidades de saída.

Neste sentido é fundamental que os cursos de formação de professores atentem para o

problema da Indústria Cultural e sua relação com a linguagem visual, para proporcionar aos

futuros professores(as) condições de compreender, refletir e discutir sobre seu próprio

envolvimento com este universo, para que tenham subsídios para trabalhar estas questões junto

aos seus alunos.

Uma forma de realizar este trabalho é articular as artes visuais e a mídia, pois as artes

visuais são o espaço no qual a linguagem visual é discutida, pensada, questionada, é o meio pelo

qual os(as) professores(as) podem ampliar seu repertório de imagens visuais, abrindo sua

compreensão para além dos estereótipos veiculados pela mídia. É necessário que se tenha claro

que a linguagem visual não é utilizada somente pela Indústria Cultural, existe um universo de

produções que questionam e discutem essa realidade, tornando-se um terreno muito fértil para a

compreensão das linguagens utilizadas pela mídia.

As imagens veiculadas pelas artes visuais são diferentes das imagens veiculadas pela

Indústria Cultural porque são construídas dentro de um espaço de reflexão e criação do novo,

enquanto na Indústria Cultural o que acontece é a estandardização e a repetição.

Um trabalho muito mais significativo poderia ser realizado sobre a mídia se, ao invés de

problematizar a questão unicamente demonizando sua presença e ressaltando seus prejuízos para

o sujeito, a questão fosse problematizada transcendendo as discussões sobre os seus conteúdos

para pensar a relação entre este conteúdo e sua forma, buscando entender o que é esta linguagem,

como é utilizada, que conseqüências tem, como pode ser compreendida.

Assim, podemos perceber que a metodologia apresentada na pesquisa de campo desta

dissertação se mostrou um caminho para trabalhar a mídia com os(as) professores(as), pois,

apesar de ter acontecido em apenas três encontros, pudemos evidenciar uma certa mudança na

compreensão dos sujeitos da pesquisa com relação às produções apresentadas e trabalhadas.

A construção e dramatização do roteiro foram um meio para as professoras entrarem em

contato com a construção do produto audiovisual, atividade que teve resultados muito positivos,

mas pelo tempo destinado à pesquisa e, pela disponibilidade das professoras, não foi possível

explorar todas as possibilidades que oferecia. E ainda, para que as professoras-participantes

tivessem consciência do processo pelo qual passaram, seria necessário um trabalho mais longo,

com discussões mais aprofundadas e leitura de textos, utilizando as atividades da Vivência como

estimuladoras das discussões. Dessa forma, a Vivência, da forma como aconteceu, abriu a

possibilidade das professoras vislumbrarem uma compreensão diferenciada das produções de

telenovela.

Nos relatos que as professoras escreveram como última atividade, a percepção desta

mudança ocasionada pelo processo da Vivência, é descrita como uma nova forma de assistir à

televisão e compreender seus programas. A experiência com a linguagem visual ampliou as

possibilidades de compreensão e decodificação das produções trabalhadas, o que nos leva a

concluir que, ainda que pequeno, este resultado é excelente dentro das limitações deste trabalho.

Os dados da pesquisa nos indicam que é urgente trabalhar a linguagem visual com os

professores e as professoras da educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental, pois a

partir desta compreensão, poderão iniciar uma reflexão sobre as mídias junto às crianças e,

também, sobre sua própria relação com essas. Percebemos que eles(as) estão carentes desta

reflexão, pois sentem a presença da mídia, arriscam vinculá-la ao comportamento das crianças,

mas não tem subsídios nem conhecimentos para realizar um trabalho consistente.

Assim, este trabalho que buscou aprofundar a compreensão da situação do sujeito na

sociedade contemporânea, bem como da educação, dos(as) professores(as) da educação infantil e

das séries iniciais do ensino fundamental e, principalmente, da inserção da linguagem visual neste

ambiente e na vida destes sujeitos; abriu muitos outros questionamentos. A partir deste trabalho

podemos pensar, por exemplo, sobre a possibilidade de ampliação do repertório visual dos

sujeitos através do trabalho com as artes visuais; sobre as contribuições que os outros campos da

arte como a música, o teatro e a dança, possam trazer para o aprofundamento da decodificação da

estrutura da indústria cultural; sobre a efetivação do projeto acima proposto, que integre

discussões sobre a arte e os meios de comunicação na educação para a autonomia. Estas são

apenas algumas das direções para as quais este trabalho aponta, que abrem a possibilidade de

outros estudos e pesquisas que aprofundem a compreensão do fenômeno.

Desta forma, pensando na abertura de outros estudos e não no fechamento deste, é

necessário interromper estas reflexões, que marcam um ponto no processo de compreensão crítica

dos processos sociais e do indivíduo e que exploram a relação entre os vários campos do

conhecimento que nos permitem investigar as questões que nos inquietam continuamente.

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APÊNDICE A

PESQUISA: UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES: A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS INSTRUÇÃO INICIAL: Este questionário tem por finalidade a caracterização dos sujeitos da pesquisa, todos os campos devem ser preenchidos. Questionário:

1. Data de nascimento: ____/____/______

2. Sexo: F ( ) M ( )

3. Estado civil: __________________________________

4. Tem filhos: sim ( ) não ( )

5. Em caso afirmativo, indique quantos, e qual o sexo: _________________________

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6. Escolaridade _____________________________________________________________

7. Em qual nível/série atua ____________________________________________________

8. Tempo de experiência no magistério: __________________________________________

9. Em qual escola trabalha: ____________________________________________________

10. Quanto tempo, em média, assiste televisão por dia: __________________________

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11. Quais os programas que mais gosta? O que faz com que goste destes programas?

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12. Quais programas assiste com maior regularidade?

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13. O que leva você a escolher um programa de televisão?

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14. Que tipo de programas não gosta? O que nos programas lhe desagrada?

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15. Quais as propagandas que mais gosta? O que nas propagandas lhe agrada e desagrada?

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APÊNDICE B

PESQUISA: UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES: A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS RELATO INSTRUÇÃO INICIAL: Conte como foi esta experiência para você.

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APÊNDICE C

PESQUISA: UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES: A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS

RELATÓRIO Nº________

1. Data de entrevista/vivência:__________________________________________________

2. Lugar da e/v: _____________________________________________________________

3. Duração da e/v: das ___:___ às ___:___

4. Indicadores para identificar o entrevistado:______________________________________

5. Peculiaridades da entrevista:_________________________________________________

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APÊNDICE D

PESQUISA: UM IMPERATIVO NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES: A LEITURA CRÍTICA DAS IMAGENS TEMAS:

1. Uma família de classe média – pai, mãe, 1 filho(a), tem uma vida economicamente boa, o filho(a) estuda em uma escola particular, a mãe o pai trabalham. Um dia o pai perde o emprego. O que fazer?

2. Em uma casa de classe alta, começam a desaparecer coisas, objetos de valor. O que acontece? Como a família resolve esta situação?

3. Em uma família, um dos(as) filhos(as) tem um relacionamento escondido, a família começa a desconfiar e decidem fazer uma conversa em família para saber o que está acontecendo. Quem é essa pessoa, como resolver esta situação?

4. Em uma conversa entre amigas, uma delas conta que está se separando do marido. Porque ela está se separando, o que as amigas acham?

APÊNDICE E