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6 O lugar beuys
A pergunta pelo destino, pelo desatino, da civilização européia
tornou-se uma constante, uma veemente obsessão, desde 1945. A
contabilidade inicial do prejuízo do mais grave conflito até hoje registrado
constrangeu os estudiosos a revisarem suas anotações, antigas ou
recentes, sobre os contumazes embates europeus: por que este destino
tanto tempo falhado, por que esta porta aberta a tantas tragédias?,
pergunta Lucien Febvre.1 A tarefa ainda não encontrou termo: ações e
especulações sobre o assunto registram um crescimento geométrico.
Ainda hoje, praticamente todas as áreas do fazer humano exibem
reações, honestas ou cínicas, conscientes ou não.
Em um determinado trecho de suas emocionadas conferências
proferidas entre os anos de 1944-53, Febvre tentou esclarecer a
gravidade da questão: ... o problema da Europa ultrapassa a Europa, o
problema da Europa situa-se à escala planetária; o problema da Europa é
o problema do mundo.2 Tal afirmação alertava para a extraordinária
dimensão do tema, para a urgência do momento, para o destino da
civilização, enfim. E, de certo modo, esta é uma das perguntas incluídas
pela tese: quem estava, poderia estar, alheio a um problema de alcance
planetário? As palavras de Lucien Febvre ainda são necessárias:
... Portanto, antes do mais, há duas tarefas, dois dados fundamentais: [a primeira é] a política (que arrasta a economia e é arrastada pela economia), [a segunda é] a cultura e a civilização; duas tarefas, e ainda é muito, é mesmo esta dualidade que faz a gravidade do problema. ... Vamos dizendo, nós, homens de boa vontade e belas intenções, vamos desolados com tudo o que se tem passado nestes anos, sangrando de todas as feridas do mundo, esgotados, esvaziados por estas sangrias, vamos dizendo: “Sejamos bons europeus!” Sim, temos toda a razão. Sejamos bons europeus. Mas vejamos as coisas a nu. Quem aproveita com isso? Primeiramente, nós, pessoalmente, individualmente. Nós que assim nos alargamos, que adquirimos maior amplitude, uma maior abertura de ângulo em relação ao todo, grandes alegrias de espírito. E talvez a comunidade receba daí qualquer coisa, por nosso intermédio. Mas...ser um bom europeu não é um fim. É um meio. Ser um bom europeu
1 FEBVRE, Lucien. A Europa. Gênese de uma civilização. p. 91. 2 Idem, p. 322.
137
quer dizer (se não quer dizer nada) ser um bom portador de um ideal. Sim, mas está lá, o nosso ideal não é necessariamente o dos outros. O nosso ideal de europeus não é de fato o ideal dos não europeus. (...) 3
Mais tarde, distante, um outro importante pensador – Eric Hobsbaum
– menos emocionado, resumiu a questão: Sintomaticamente, o século XX
caracterizou-se por um deslocamento do prestígio da visão racional e
científica para as considerações intuitivas, sobre os descaminhos do
mundo, explicitando o permanente esforço sempre renovado de entendê-
lo.4
6.1 Arte em ação Enquanto no outro lado do Atlântico Jackson Pollock trabalhava na
direção de uma arte essencialmente americana, não muito após o fim da
Segunda Grande Guerra surge numa Europa ainda arrasada o
“fenômeno” Joseph Beuys incluindo-se enfático e fisicamente na
operação artística.
Em 1962, Beuys conhece o coreano Nam June Paik e, em fevereiro
do ano seguinte, já apresentava na Alemanha, junto ao grupo Fluxus – no
Festum, Fluxorum, Fluxus –, o seu primeiro environment: Sibirische
Simphonie, 1ª Satz (Sinfonia siberiana – 1º movimento). O próprio artista5
estimava que tal acontecimento, considerada a sua primeira Aktion
importante, já retinha a essência de suas futuras atividades, ao mesmo
tempo em que alcançava a compreensão ampliada do que o Fluxus
poderia ser. O adjetivo “siberiano” introduziu alguns dos parâmetros
fundamentais na arte de Beuys: espaço, temperatura e questões políticas.
Já se encontravam também presentes três dos elementos para sempre
importantes em sua obra: a lousa, a lebre morta e o piano.
Iniciando com a música do francês Erik Satie – Sonnerie de la Rose
+ Croix – para interligar espiritualmente todos os presentes, a exibição
prossegue com o artista estendendo um linha entre algumas plantas
3 Idem. p. 323. 4 HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve século XX. p. 12. 5 Neste capítulo, os termos “artista” e “arte” são especialmente impressos em intálico para obter uma melhor articulação no texto uma vez que Joseph Beuys recusa para si o título de “artista”“ e a definição tradicional de” arte” para suas realizações.
138
dispostas sobre a tampa do instrumento e a lebre morta pendurada de
ponta-cabeça na lousa – “energia”. Em seguida, instigando a audiência a
repetir uma série de sentenças escritas na lousa, ao lado do cadáver do
animal – “intuições desaparecidas“ –, o artista arranca-lhe o coração.
Como em todas as ocasiões, Joseph Beuys estava abençoado por seu
chapéu de feltro – confeccionado em lã de cordeiro, bem claro –, e
assessorado por seu casaco de pescador.
O episódio torna-se um pouco mais claro se soubermos que Eurasia
(outro movimento da Sinfonia siberiana) é a pátria mítica do artista: “zona
de trânsito de grandes migrações humanas e animais” – e assinala a
reunião de dois blocos opostos no coração da Alemanha. E ainda, os
animais são seres que podem “ir além”, que mantêm uma estreita
“conexão com o além” (literal e figurativamente), transitam da Europa à
Ásia, ignorando convenções, inconscientes das distâncias. Por fim, a
lousa significa disciplina, e as plantas, a natureza, a lebre morta, o fim de
práticas vitais.
Assim, veremos que o peso existencial exigido pelos compromissos
artísticos de Beuys não se afinava inteiramente com o tipo de arte
requerido por Maciunas. Porém algumas premissas libertárias o
mantinham unido ao grupo. Sua poética move-se desde os fragmentos do
romantismo e do expressionismo, passa pelo construtivismo,
redimensiona o experimentalismo e ultrapassa a arte conceitual, já que o
seu fazer “artístico” não visava tão somente evidenciar conceitos, mas,
acima de tudo, fustigá-los.
Ocupadíssimo durante a Segunda Grande Guerra, Joseph Beuys
anotou em seu Curriculum vitae, Curriculum operis 1964, o clima artístico
imediato à catástrofe: 1945, Cleves, exposição de frio. Não perdera
tempo, no ano seguinte, outra anotação já indicava o hiumor que
governaria sua existência: 1946, Cleves, exposição quente.6 Desta data
em diante será esta a arte7 mais ativa em meio aos escombros do
momento e mesmo durante os próximos anos: a matéria-prima foi
6 BEUYS, Joseph. Centre Georges Pompidou, pp. 249-250. 7 Também o termo “arte” será sempre aqui citado com as mesmas ressalvas feitas para a palavra “artista”, já explicitadas na nota anterior.
139
garimpada em sua biografia. Suas peças também assimilaram diversos
elementos do cotidiano e prepararam uma disposição diferenciada de
tratar a arte e a vida via arte-vida. Beuys vai discutir em público o
constrangimento de cada indivíduo, a condição de carrasco e vítima de
todos: sua biografia é especialmente colada à história alemã e, por que
não dizer, à européia.
Auxiliado pelos materiais mais banais, cutucando os valores mais
íntimos, o artista ostentava um comportamento agressivo, até. Para os
incautos, tal modo de agir não passava de um “vale-tudo”, uma farsa
destinada ao entretenimento dos bobos, endereçada aos piegas
romanticistas que pesavam nos ombros daqueles que se esforçavam para
reconstruir a nação. Joseph Beuys foi considerado, é ainda hoje, “mais
um idiota avariado pela guerra exposto ao delírio público, afiançado por
um idêntico lapso esquizóide de alguns fracos sobreviventes”.
Atenta a qualquer postura judiciosa que prejudicasse a reconstrução
de sua imagem e, quem sabe, prenunciando o radical “politicamente-
correto” que vitimaria um pouco mais tarde os EUA, a Alemanha deste
momento se mostrou “condescendente” ao fenômeno Beuys, ao “calo
cultural” produzido pela guerra, a sua própria esquisofrenia? Ora, quem se
arriscaria a condenar uma possível vanguarda após o Reich de Hitler
banir artistas e queimar suas supostas “obras degeneradas”?
Militante por excelência, Beuys foi uma eminência expulsa (com
sucesso poético), em 1972, da Staatliche Kunstakademie von Düsseldorf
– segundo o próprio, uma rede empresarial de cultura – , onde ocupava o
cargo de professor de “escultura monumental” desde 1961. Culpadas
foram as lições que reuniam as suas nada ortodoxas convicções didático-
revolucionárias acerca das afinidades entre criatividade e um
(re)aprendizado sociopolítico. E porque o saber deveria ser democrático,
o número de alunos teria de ser irrestrito – Demokratie ist lustig (A
democracia é engraçada) intitula o registro iconográfico desta Aktion
nacional: a fotografia de seu despejo público em meio à policiais.
Um ano depois, o artista institui a Internationale Freiuniversität
(Universidade Internacional Livre). Em 1967, já havia fundado o Büro für
direkte Demokratie (Organização para a Democracia Direta), advogando a
140
tese de que a democracia representativa não democratizava, defendendo
a necessidade de se adotar um sistema no qual os cidadãos pudessem
conduzir a sociedade sem delegar a sua soberania sobre qualquer
assunto, por meio de constantes votações.
6.2 O lugar histórico de beuys A pergunta pelos valores contemporâneos é originária: o homem
moderno fora alijado dos conceitos de verdade, unidade e fim8 que
sustentavam o mundo. A contradição a que se vê lançado – suportar o
que não se pode negar – é a tensão que ambienta as vanguardas do
início do século XX. Ampliada pelo mal-estar da Primeira Grande Guerra,
a agonia intensifica-se com a Segunda, quando o homem perde de todo a
convicção de ser o dono absoluto de seu destino. Aos artistas restou
escolher entre uma resoluta participação política ou a evasão para a
América. Como bom espécime da raça, Joseph Beuys decide-se pela
primeira opção.
Este artista alemão vai refletir sobre a ruptura do homem consigo
mesmo, com a sua dignidade: sua obra é o modo de evidenciar
esteticamente o enfrentamento dessa situação de crise, ausência ou
ainda transposição de valores históricos. Beuys não compactua e, menos
ainda, suporta com indiferença tal condição. Pelo contrário, vê a
necessidade de uma nova orientação, mesmo política, para a arte. Sua
obra, então, confunde-se com o homem/artista, uma vez que é nele, como
homem contemporâneo, que nasce a questão que vai objetivar-se em
Aktionen, em environments que efetivam sua própria vivência estética.
Como um vidente, Beuys parece alertar-nos que quando a vida se torna
de todo consciente, a arte desaparece.
Tal transubstanciação arte-artista resulta de um pleno
entrelaçamento com o mundo, é produto de uma completa adesão às
circunstâncias de sua vida. Beuys trata as contradições e as
ambigüidades da atualidade, por assim dizer, com as mesmas armas do
real, gerando controvérsias de ordem moral quanto às suas condutas. O
8 NIETZSCHE, Friedrich. “Sobre o niilismo”. In Os Pensadores. p. 381.
141
que é um paradoxo, considerando-se que o artista/homem prima
justamente pela honesta compatibilidade de suas posturas sociais e
realizações artísticas, tornando impossível distinguir ação e paixão.
A reivindicação de uma nova função para a arte pronunciada por
Beuys tem seu precedente em Marcel Duchamp, para quem arte é antes
uma reflexão, um procedimento conceitual, quase uma ética.9 Paulo
Venâncio Filho reconhece no ready-made do francês o limite da arte,
acrescentando ainda que, além do ready-made, ou tudo se transforma em
arte ou a arte desaparece.10 Ora, o pathos estético beuysiano segue
justamente a direção da união de todas as artes humanas. O
expressionismo gerara, de certo modo, uma continuidade aos ideais
wagnerianos de arte total, levando-se em conta que reunira as mais
variadas realizações artísticas em torno de motivações singulares e,
pode-se dizer que Beuys vai retomá-lo no momento em que suas
operações estéticas tomam um intenso caráter multimídia, dilatando
extremamente seu alcance.
Joseph Beuys não pregava a autonomia da arte, mas insistia
justamente na sua não-diferença com o mundo, demonstrando uma
inteligência atualizada, conhecia a sua materialidade. Também recusara a
definição de arte no seu stricto sensu, posto que isto significaria
praticamente um retorno decadente ao academicismo. O que o artista
desejava era a compreensão de um Conceito ampliado de arte,
distanciado dos critérios e protocolos auto-referentes anteriormente
exigidos.
Há muito que a arte fazia parte dos objetos auto-reflexivos,
autotélicos – uma simples reunião de signos –, significantes e significados
que, não se importando com as relações homem-mundo, era decodificada
apenas pelo próprio métier. E só conheceria outra função com Beuys e
mesmo com o norte-americano Andy Warhol, após o segundo pós-guerra,
quando certas disposições amadureceram. Os impulsos que estavam por
detrás da abstração e da art pour l’art não eram apenas de caráter
estético e a arte teve por vezes de assumir estratégias de sobrevivência.
9 VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp. p. 9. 10 Idem. p. 72.
142
Mesmo a percepção da realidade há muito deixara de ser apenas um
simples captar para se tornar uma função ativa.
Beuys, um legítimo herdeiro do romantismo e do expressionismo
alemão, instalou um tipo de atividade artística sincrônica com a
(des)ordem vigente, que perguntou pelo (não)significado da existência
contemporânea e por suas seqüelas. Recusou o culto da arte como ofício
sagrado ou destino inspirado do gênio, ou ainda como a atividade de pura
e simplesmente agregação de materiais. Renunciando ainda à categoria
de intelectual, sua obra efetiva tão somente sua experiência de homem
europeu por condição e conseqüência. Doravante, a obra de arte não se
definirá por um estilo mas, acima de tudo, por um modo de enfrentar a
realidade, isto é , por um modo de ser – o artista deve ocupar uma
posição central na sociedade: deve questioná-la.
Evocando mitos apenas a título de análise histórica, Joseph Beuys
assume o papel de vate trazendo tensões primevas para o presente. O
estranhamento violento deste embate não ameniza as exasperações, mas
almeja comover para que tais sofrimentos não se calem. A familiaridade
dos signos mitológicos não consola, pede, isto sim, reação ou
transcendência para a aventura existencial contemporânea, um resgate
espiritual para a miserabilidade humana.
O fato plástico assim engendrado vai vibrar sua instabilidade,
inquietação, e sugere guardar poderes ou atributos paraestéticos a serem
desvendados, não nos poupando de uma grande reflexão.
Problematizando as mais novas questões ou mesmo as antigas, lá estão
estampadas permanentes ameaças de catástrofes, tragédias imanentes,
sugestões por vezes apocalípticas que não permitem contemplação
desinteressada: pedem reconciliação e entendimento. Lá encontramos
também inúmeras perguntas sobre uma série de acontecimentos
ocorridos na pátria de Schelling, Beethoven e Goethe.
A arte de Beuys deve ser constrangedora e chocante para induzir os
observadores a saírem de uma contumaz atitude de total passividade
receptiva, transfigurando-se em um autêntico coro trágico. Suas
realizações apresentam momentos sobre os quais se pode pressupor
uma onipotência de quem atua com a certeza de poder construir um
143
mundo melhor, onde a arte e o homem-artista tornar-se-iam parte de um
projeto de civilização. A tripla reivindicação função-crítica-reconstrução
para a arte é tradicionalmente um pedido da angustiada Alemanha desde
a sua unificação e Beuys é alemão par excellence. Com ele vemos o
retorno do anseio romântico de totalidade e a arte voltando a responder
pela cultura.
Joseph Beuys vai, assim, reposicionar a envergonhada Alemanha do
segundo pós-guerra, novamente em evidência no circuito internacional de
arte e cultura, posto ocupado hegemonicamente, desde a ascensão do
nazismo, pelos EUA. Daqui por diante a arte não poderá ser o que foi até
então e muito menos o homem europeu. A atividade artística deverá ser
ordenada, construída de tal forma que seja resposta imediata à dispersão
– objetos ansiosos, problemáticos por excelência.
Tais questões ultrapassaram os limites morais básicos, tais licenças
extrapoéticas encostaram-se aos fundamentos éticos na medida em que
perguntam pelo que será da arte em uma sociedade que permitiu o
genocídio. Outro nó a se resolver será o do fracasso reformista e o dos
ideais social-democratas pretendidos inicialmente pela Bauhaus, que
previam uma sociedade sem classes, não obstante privilegiaram o artista
incumbido da tarefa de projetá-la.
6.3 A crise européia Já nos referimos às semelhanças entre o pensamento de Edmund
Husserl e o de Joseph Beuys – ambos parecem alertar constantemente
sobre a confusão que afeta as relações de método e de conteúdo entre as
ciências da natureza e as do espírito que se tornam insuportáveis. O
fracasso das tentativas de nos aproximarmos do espírito acirra o duro
embate com o real que temos diante dos olhos, desgovernado e
desprovido de sentido: um “irracionalismo” como culto da liberdade do
espírito. A perda da espiritualidade, isto é, da autocompreensão do
espírito, significa a perda da totalidade e uma conseqüente ameaça de
barbárie objetivista.
Conferimos isto com a obra denominada Capri-Batterie (1985), na
qual Beuys coloca lado a lado uma laranja e uma lâmpada, apontando a
144
“oposição” “natureza” x “luzes” via semelhança formal. Critica,
simultaneamente, o “esclarecimento” que teria distanciado o homem da
sua própria natureza e afirma a “luminosidade” da fruta. A peça traz a
suspeita do artista de que a alta incidência do mal-estar que caracteriza o
nosso tempo como a Era da Ansiedade seja produto de um possível
fracasso da mitologia e do ritual em funcionar efetivamente em nossa
civilização.11
O experimentalismo de Joseph Beuys vai deixar evidente a sua
ruptura com alguns conceitos do passado – sua obra é “projeto”, e
“futuro”, o alvo do empreendimento. A experimentação visa sempre
verificar a existência – o “ser” da arte. À maneira de Husserl, Beuys não
parte da própria idéia ou conceito de arte para verificá-la, assim como o
pensador não parte da noção de natureza ou de um determinado conceito
de lógica para fazer sua filosofia científica. Beuys procura não somente
“alterar velhos limites”, mas também aponta outros.
Em Difesa della natura, environment de 15/5/1984, Beuys vai
encarnar o pastor, aquele que guiava a tribo de nômades, sempre em
movimento (Bewegung), aqui substituída por homens urbanos, europeus
ou não, incluindo vários artistas, seus contemporâneos, ou alunos como
Anselm Kiefer, Jörg Immendorf, Palermo, A. R. Penck, Georg Baselitz ou
Nam June Paik, entre outros, assim como estudantes e militantes.
A atuação de Beuys lembra a de um xamã, o guardião das tradições
de um povo, uma espécie de sacerdote não entronizado oficialmente e
dotado do poder de comunicação entre as forças superiores e inferiores.
O xamã era o intelectual que tinha o poder de prever situações
ontológicas. As associações que o consideravam guia espiritual não
nutriam a idéia de verdade absoluta, não eram monoteístas, e menos
ainda concebiam um Estado ocidental.
O registro fotográfico da Aktion Kukei, Akopee – Nein! , Braunkreuz,
Fettecken, Modellfettecken (1964) pode esclarecer o curto-circuito
provocado pelo artista: lá está a imagem de um homem de olhar firme –
no “horizonte” –, com a mão direita levantada – “guiando” – e a esquerda
11 Joseph Campbell. As máscaras de Deus. Mitologia primitiva. p. 84.
145
empunhando um “amuleto”. O “visionário” sangra pelo nariz como
resultado natural de um grande esforço, da pressão exigida por sua
missão. As questões do artista são, óbvio, mais pertinentes à estética do
que à religião como temos em conta – reverência, temor, adoração e
obediência: a persona, o estado de “transe” é, de fato, mais um recurso
poético beuysiano, um sintoma de quem vive a aventura contemporânea
com uma lucidez aguda.
Cumpre esclarecer que o happening pôs em convulsão os presentes
a tal ponto que Beuys foi agredido, fisicamente inclusive, causando o
sangramento. O episódio foi “aproveitado” pela performance, caindo feito
uma luva no final das contas. Incorporado, como vimos, ao tipo dramático,
também comprovou a eficiência de sua linguagem: o guia espiritual, o
artista, o professor, curiosamente, estava entre estudantes – ensinando a
reagir. Nada escapava a sua arte ampliada: o espaço da apresentação
era o Instituto de Tecnologia, situado em Aachen (ou Aix-la-Chapelle),
cidade de Carlos Magno. E a data da Aktion, 20 de julho de 1964,
marcava os vinte anos do atentado sofrido por Adolf Hitler nesse mesmo
local.
Joseph Beuys assume então o encargo de “educar o povo“. Aliás,
diga-se de passagem, uma atitude tipicamente germânica, a de supor que
pode e deve ensinar o mundo a viver. O que nos reenvia para as lições de
F. Schiller acerca d`A educação estética do homem, que, não por acaso,
encontra eco nas Aktionen de Beuys: Todo homem individual, pode-se
dizer, traz em si, quanto à disposição e destinação, um homem ideal e
puro, e a grande tarefa de sua existência é concordar, em todas as suas
modificações, com sua unidade inalterável.12
A mobilização dos espectadores é ponto positivo. O longo período
de tolerância chegara ao fim. As autoridades passaram a intervir com
truculência. E, foi-se o tempo em que a sociedade desviava sua atenção
dos episódios estranhos, que sopravam um não sei o quê sobre
mesquinharia, soberba, inércia, dentre outras sugestões incômodas. Até
quando seria possível conviver com os flagrantes de Joseph Beuys,
12 SCHILLER, F. A educação estética do homem. p. 32.
146
manter o pacto de silêncio na condição de ocorrências próprias a um
neurótico de guerra – e quem não era? Daí o sucesso do esforço e
persistência de Joseph Beuys.
E outra vez cabe aqui recordar Marcel Duchamp em uma declaração
sobre a importância das relações que afetam o espectador e o artista, o
indivíduo e a coletividade: o artista não cumpre sozinho o ato de criação,
porque é o espectador que estabelece o contato da obra com o mundo
exterior decifrando e interpretando suas qualificações profundas e, desse
modo soma sua própria contribuição ao processo criador.13
Beuys vai confrontar natureza, civilização moderna & dinheiro na sua
célebre Aktion denominada I like America and America likes me,
executada em maio de 1974. O artista se fecha durante três dias em uma
galeria de Nova York (René Block) junto a um coiote – animal deificado
pelos índios norte-americanos –, que constantemente urinava em um
exemplar sempre atualizado do Wall Street Journal, publicação
especialmente dirigida ao público que lida com operações financeiras. O
artista vai polemizar com a ciência, a economia e a tecnologia, que, ao
performarem um grande salto qualitativo desde o final do século passado,
somaram-se às oportunidades ofertadas pelas duas grandes guerras e
identificaram-se fortemente com o poder político.
A pedagogia criativa de Beuys, sua eloqüência verbal e artística
colocam-se frontalmente contra o “silêncio” de Marcel Duchamp. O artista
francês é criticado duramente em uma Aktion intitulada Das Schweigen
von Marcel Duchamp wird überwertet (O silêncio de Marcel Duchamp está
sendo superestimado) de 11 de novembro de 1964, na qual o alemão
afirma que o artista francês estancara no exato momento em que estava
por desenvolver uma importante e verdadeira teoria da arte. Discordando
do conceito de “antiarte” desenvolvido por Duchamp, já que o considera
apenas estagnação e não exatamente um conceito, Beuys imagina-se, de
certa forma, continuador de sua obra. Vai concordar, no entanto, no que
tange à contestação da arte reconhecida pela sociedade como digna de
valor, mas, ao contrário do francês que não nutria ambições didáticas,
13 VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp. p. 75.
147
pretende corrigi-la. À bicicleta de Duchamp – La roue de bicyclette (1913)
–, que não vai a lugar algum, Beuys contrapõe a sua arte-veículo que
pretende a todos alcançar.
As realizações de Beuys constituem formas visíveis desta mesma
filosofia que prega a necessidade de uma radical mudança de condição
social feita à base de transformações espirituais. O ser humano, assim,
seria alavancado a uma etapa superior de vida na qual o talento criativo, a
autodeterminação e a restauração do equilíbrio e da harmonia teriam
papéis fundamentais em uma nova sociedade renascida do caos. O
artista pede a concentração de todos na direção de um estágio espiritual
elevado, tão aguardado para o terceiro milênio, consoante a antroposofia
de Rudolf Steiner. Liberdade e criatividade são noções inseparáveis em
Joseph Beuys:
Quando o homem permite que a sua vida se converta em algo desértico e vazio, por perder sua relação com o supra-sensível, não somente destrói dentro de si mesmo algo cuja morte no final pode levar ao desespero, ou então pela sua própria debilidade chega a ser um estorvo para a evolução de todo o seu entorno.14
O uso recorrente de materiais provenientes das abelhas nas
realizações de Beuys alude a uma sociedade que transforma
coletivamente, através do trabalho organizado e democrático, o caos em
ordem, materiais maleáveis em esculturas funcionais ou em esculturas
cristalinas como as produzidas por aqueles insetos. Outra vez mais
assinala-se a influência do pensamento antroposófico de Steiner. Este,
em artigo intitulado Über Bienen (Sobre abelhas, 1923), descreve a
exemplaridade da sociedade das abelhas, chegando mesmo a propô-la
como modelo a ser empregado pelos homens. O homem deve ser
glorioso no seu poder e beleza, jamais atuando irascivelmente para a sua
autodegeneração.
Em Wie man dem toten Hasen die Bilder erklärt (Como explicar arte
a lebres mortas), Aktion de 1985, Beuys fala da irrelevância da
explanação sobre a arte (os homens sabem mesmo o que é arte?) e,
14 STEINER, Rudolf, citado por SEYMOUR em Beuys, Klein, Rothko. Profecia y transformación. p. 28.
148
pedindo uma nova racionalidade advinda das atividades do espírito, elege
o mel e o ouro como elementos que inspiram os sentimentos de
transformação e mistério na sua criação e origem. Imagina que através
deles a inteligência possa ser regenerada.
O emprego de materiais orgânicos como a gordura e o mel deve-se
ao caráter instável dessas substâncias naturalmente caóticas e
indeterminadas. Influenciáveis pelo calor e pelo frio, permanecem em
contínuo processo de transformação. Através delas, o artista sonda o
conceito que produz formas, procurando fazer refletir sobre a matéria
anterior à forma, ou melhor, antes de ser in-formada. A matéria, vista
desta maneira, é pura potencialidade a ser percebida, assim como as
nossas, observadores. A obra visa à pulsação mais íntima do material e
isto fica bem exemplificado em Stuhl mit Fett (Cadeira com gordura,
1963). A cunha decidida pela gordura pressionada contra o ângulo gerado
pelo encontro do encosto com o assento da cadeira designa uma força
que dá forma ao indeterminado, bem como desafia a disciplina imposta
pelo objeto civilizado “cadeira”. O transtorno da matéria exibe a densidade
e a qualidade do que está jogo: a arte agora é meio e fim. Beuys lida com
um tipo de arte que evoca o mito como uma chamada à ordem espiritual:
deseja o espírito tomando consciência de si.
O equilíbrio, segundo Beuys, deve ser conquistado já que inexiste na
realidade: para tanto, sugere o modelo do equilíbrio ecológico. Isto é fazer
o que o artista chamava de “escultura social”, produto de uma forma de
pensamento que privilegia a intuição, dignificando-a como a mais alta
forma da razão – denken ist Plastik (pensar é esculpir) – resumia,
questionando as operações da razão. O modelo de sociedade proposto
por Beuys é uma empresa coletiva/não-coletiva como organismo de uma
humanidade composta de indivíduos que estão relacionados ao mesmo
tempo em que separados, na qual cada um é chefe de si mesmo e,
portanto, de sua liberdade – todo homem tem um sol dentro de si – sem
abrir mão das inter-relações.
Se todo procedimento é formalizador, todos produzimos formas,
portanto somos todos artistas desde sempre. Como Duchamp, Beuys
torna-se um dispositivo artístico e ambos vão concordar uma vez mais
149
sobre as inter-relações afetadas pela arte: Todos através de Duchamp
faziam arte. Estavam implícitos em seus procedimentos uma supressão
de si mesmo enquanto indivíduo particular e a manifestação de impulsos
anônimos e coletivos.15 Por sua vez, Beuys afirmava constantemente que
Jede Menschen ist ein Künstler – todo homem é um artista (versão
contemporânea de todo homem é um poeta, de Novalis?).
Há, sem sombra de dúvida, algo do âmbito do incompreensível na
obra de Beuys, uma certa impenetrabilidade, embora o artista apresente
freqüentemente imagens ou relíquias do seu processo de criação – veja-
se as Vitrines. Associados a lembranças autobiográficas, onde o passado
se faz presente pedindo futuro, os materiais recorrentes que emprega
tornam-se autênticos talismãs: vida e obra são ferramentas para a
consagração da existência humana. Lidando com um modo de evidência
estética que rompe com o belo-contemplação e que emancipa o escultor
da forma. Beuys usa materiais miseráveis, banais, e até indignos –
gordura, feltro, cobre, sangue, ossos, enxofre, animais mortos ou vivos,
mel etc, ou seja, não-civilizados. A matéria efêmera, deformante, afronta a
clássica eternidade do mármore – à sua nobreza, afere-se o material de
consumo rápido, refugos da sociedade.
A busca pela alta espiritualidade é característica germânica: um
instrumento constante de sua luta – veja-se Goethe, Grimm,
Schopenhauer e, principalmente, Wagner, que tão bem entendera a
grandeza das formas simbólicas, e ainda toda a exaltação do romantismo
alemão. Beuys fala-nos sobre a capacidade de transformar a vida
cotidiana em espiritualidade através da inteligência transformadora do
homem que tudo pode desenvolver, o Belo e o Bem: transformações que
devem contribuir para a evolução do homem e de sua obra.
Como no antigo paganismo de sua gente, o homem é o verdadeiro
herói e Beuys está interessado na sua soberania: pensar é digno de reis –
ou seja, cada um deve procurar sua própria racionalidade. O animalis
homo foi substituído pelo sapiens e assim pode criar os meios
necessários para gerar limites – a religião, a cultura filosófica e a política,
15 VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp. p. 22.
150
por exemplo – e assim todos, e não só os mais fortes, garantiriam espaço
de sobrevivência, mas agora é a sua própria racionalidade que demonstra
falência de organização e emprego. Beuys pergunta simultaneamente
pelos condicionadores culturais e pelos valores dispostos para além da
faculdade racional.
A biografia de Beuys é, sem dúvida, fons et origo de seus insights.
Apenas a privação e o sofrimento podem abrir a mente do homem a tudo
que está escondido dos outros.16 O artista, ao participar de uma espécie
de ritual primitivo de “renascimento” junto aos tártaros,17 tem o corpo e a
mente transtornados pela dor, momento que será sempre presentificado
através de adereços, roupas ou pinturas, assemelhando-se ao processo
ritualístico de iniciação xamanística. Em Badewanne (Banheira, 1960),
Beuys exibe simultaneamente seu nascimento e renascimento, as feridas
psíquicas e físicas decorrentes destes fatos, como também alude às
cicatrizes da Alemanha e mesmo da Europa.
O homem que passa pelas provações torna-se, de certa forma,
“mais forte que a morte”, alcançou a “cura” e “poderes” através da arte.
Doravante terá que transmitir a experiência aos seus. Ao evocar e
organizar energias vitais semelhantes àquelas que Beuys necessitou, fez
a arte (re)adquirir, desta maneira, predicados terapêuticos. Assim, é
possível enxergar os seus materiais como puro potencial enérgico em
repouso. É legítimo afirmar que a afinidade de Beuys com o primitivo e
com mítico resulta de um êxtase dionisíaco no qual o religioso é
substituído pelo profético ou mágico, tornando-o intermediário entre
microcosmos e macrocosmos. A mitologia atuaria portanto no registro de
um mesocosmos.
A atividade artística de Beuys é plena de símbolos, porquanto a arte
em “conceito ampliado” tem uma natureza energética em completa inter-
ação com o mundo. Pretendendo a reconquista dos valores históricos, o
artista imagina que a arte possa vir a ser obra da própria verdade,
incorporando-a ele mesmo, Beuys. Suas obras, em essência, submetem- 16 CAMPBELL , Joseph. As máscaras de Deus. Mitologia primitiva. p. 56. 17 Em 1940, Joseph Beuys tornou-se piloto da Luftwaffe. No inverno de 1943, em uma missão na Criméia, sua aeronave foi abatida. Gravemente ferido, foi socorrido pelos tártaros, aliados dos nazistas, que empregaram métodos primitivos na sua recuperação.
151
se às suas próprias experiências de mundo. Consoam ao modus
operandis duchampiano, cuja obra máxima Grand verre consiste em um
somatório de experiências de caráter existenciais do próprio artista,18
assemelhando-se a um totem, pois totens são espécies de árvores
genealógicas de parentesco humano e animal, real e mítico.19 Tanto o
francês como o alemão dispõem de uma mitologia individual que servirá
de fundamento a um conhecimento universal.
6. 4 Obra e mitologia O mito, “linguagem genética de um povo”, é carga de vida antes de
se tornar cultura, civilização ou história. A poética do mito faz um povo
distinguir-se da natureza, reverenciando-a. Beuys vai dizer que o mítico
significa o segredo não declarado da vida. Ele é agora o trouvadour que
nos revela o mundo oculto pelo cotidiano e o espetáculo do qual
participamos sem perceber. Ela [a mitologia] nos ilude com a ressonância
de um sentido profundo, sempre escondendo e jamais exprimindo
esclarece Schelling, e acrescenta ainda que o atrativo próprio reside no
fato de ele [o conto] nos simular ou mostrar à distância um sentido que
continuamente se retrai e o qual somos obrigados a confessar sem, no
entanto, poder alcançá-lo.20 Este sentido potencial do mito é semelhante à
verdade; pertence aos hábitos de tempos melhores, livre do terror
religioso, num ateísmo alegre e ingênuo. Os mitos devem pertencer à
ordem natural e não ao sobrenatural como nas Escrituras: as
representações que se associavam à natureza há muito se obscureceram,
tornando-se tão somente religiosas.
O artista não prega uma funcionalidade para o mito, e sim a eficácia
deste estímulo, não permitindo a repressão de seus impulsos. A idéia
encarnada torna-se símbolo. Assim é com os mitos, assim é com a arte
de Beuys – mensagem cifrada de significações abstratas e concretas
simultaneamente próximas e distantes. O artista procura os significados
atemporais que estranhamente vão concordar com o aqui e agora. O
18 VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp. pp. 45-46. 19 Idem. p. 60. 20 SCHELLING F. W. J.. Introdução à filosofia da mitologia. p. 74.
152
maravilhoso torna-se natural porque os deuses, intervindo nos assuntos
humanos, pertencem ao mundo real deste tempo e concordam com a
ordem das coisas acreditada, sintonizando-se com as apresentações que
lhe pertencem.21 Através dos mitos, temos a possibilidade de considerar
sobre a existência, suas causas e conseqüências, paradoxos e
ambigüidades, trazendo novas possibilidades para o real. Assim é que o
prazer espiritual, mítico ou religioso, assemelha-se ao prazer estético
desinteressado.
O romantismo há muito havia alterado a visão clássica do
“verdadeiro”, passando a aceitar a noção de “sentido”, incorporando-o aos
conteúdos culturais através da análise simbólica. O pensamento
romântico pretendia compreender a totalidade das significações e os
códigos não apreensíveis pela ratio valorizada pelo classicismo. Para se
dar conta do oculto, o homem do romantismo necessitava de um modelo
transcendental de pensamento – uma espécie de reorganização dos
sinais de estímulos antiqüíssimos.
O símbolo e suas traduções, interpretações ou decodificações,
constituía, então, o método romântico de ver a existência. O arquétipo
ajudará a mentalidade desses homens na análise dos conteúdos
culturais, a sua busca de sentido na mitologia, para a formação de
modelos explicativos históricos. A mitologia, desde o romantismo,
consiste, então, em um conjunto imagético, em um agrupamento de
símbolos concebidos de forma a possibilitar uma leitura transcendente do
sentido da vida: símbolos que devem inter-agir formando incessantemente
conexões para propalar seus efeitos de verdades.
A idéia de totalidade compreendia sujeito e objeto, natureza e
espírito, nada teria sentido isoladamente. A arte para Schelling, por
exemplo, ocupa posição privilegiada uma vez que a inteligência estética é
formalizadora, criadora de mundos. A obra de arte dá acesso ao Absoluto
porque nela se anulam oposições e se exprime a identidade dos
contrários. Na filosofia de Schelling, o sentido do mito não é exterior a ele,
não deve ser procurado fora dele, o registro das decodificações
21 Idem, sobre os contos de Goethe.
153
mitológicas é o da tradução ou de desvelamento. Não sendo alegoria,
segundo o próprio pensador, ele é uma tautegoria: A mitologia não é
alegórica: ela é tautegórica. Para ela, os deuses são seres que existem
realmente, que não são uma outra coisa, que não significam outra coisa,
mas que significam somente aquilo que eles são.22
Nos desenhos de Joseph Beuys figuram o oculto, imagens
ostensivamente primitivas, parcela de irracionalidade humana camuflada
pelo racionalismo da era moderna. São projetos para futuras Aktionen
que, por sua vez, são também projetos. Estes papéis resultam de um
processo artístico que são parte da experiência de imprimir exprimindo
transcendentalmente o sagrado e, na seqüência, guardam manchas que
celebram forças primordiais. Trata-se de entidades quase orgânicas,
proteiformes, por vezes indiscerníveis e que têm urgência em reconciliar o
homem com a sua realidade circundante.
O primitivo xamã transfigura-se em artista, no nível mais alto do
desenvolvimento civilizatório: interpenetrando passado e futuro, ambos
cumprem papel pedagógico na sociedade (já foi comentado que as lousas
negras eram os verdadeiros quadros de Beuys), mostrando que tanto a
intuição quanto o conhecimento são dádivas sagradas. Formando
espaços de interesse estético, os desenhos de Beuys constituem
manifestações do espaço mágico divino, convites para que se
experimente a coligação de natureza, arte e vida, como em uma caverna
neolítica.
Observando por este ângulo, o desenho é uma linguagem auxiliar
para o rito vital. As manchas pictóricas, em sua maioria negras ou sépias,
são irredutíveis. Rudimentares, provocam a leitura apoiada nos registros
pré-culturais que não se deixam apreender intelectualmente e que
atingem tão somente a alma desavisada, inspirando os desejos mais
humanitários, atávicos mesmo, familiares à consciência de grupo.
Suprimindo a idéia de individualismo, caracterizam uma sofisticada
sabedoria arcaica. O vocabulário é elementar, com imagens de uma
significação ampliada, abertas ao questionamento constante pelo
22 F. W. J. Schelling. “Introdução”. Os Pensadores. [V. nota 8]
154
indivíduo comum: o Leitmotiv é o homem e a sua origem – kosmos, ou
seja, a matéria-prima do mito. São pensamentos, rabiscos que falam ao
homem ainda indistinto do kosmos, participante no seu próprio devir ou
mesmo da sua eterna Gestaltung. Pálidas pistas para antigas e íntimas
expectativas.
As configurações teriomórficas, de extraordinária plasticidade,
surgem carregadas de referências históricas, de significados mitopoéticos
ou puramente autobiográficos. Por vezes parecem autênticos símbolos
existenciais, signos abertos, racionais e sempre relacionais. Podem,
também, apresentar veados, renas, hienas, raposas e ainda o chacal
(cuja índole e forma assemelham-se ao do coiote americano)
provenientes da floresta germânica, imagética de tradição regional.
Surgem figurados em traços rarefeitos que passam a idéia da delicadeza
do sentido buscado, a fragilidade da identidade que se dissolve a todo o
momento para se recompor no instante seguinte. Reúnem imagens
fugidias e esquálidas de uma parte da memória mística do mundo,
existem em algum lugar e aspiram a reatualização de uma experiência
anterior: melancolia e êxtase alternam-se numa única imagem.
A fluidez dos traços e a debilidade dos contornos dos desenhos de
Beuys transmitem tão somente significados – inexistem propriamente
conteúdos –, estrutura primária a ser desvelada pelo espírito desarmado e
somente por este, posto tratar-se apenas de alusões fragmentadas e
difusas. Puros elementos ritualísticos e, por isso mesmo, originários,
guardam o caráter formal da inconsistência racional, são intuições em
estado bruto: material escondido na base do caráter.23 O animal ali
configurado é o alimento. E esta é a forma de manipular os deuses
ocultos nos objetos naturais através de seus símbolos.
A possibilidade de uma interpretação das manchas ou das
anotações aparentemente acidentais de Beuys parece, à primeira vista,
por demais pessoal. Porém a suposta subjetividade do artista se pretende
a mesma do seu povo, povo da terra, das intempéries e lutas ou dos bons
tempos dos anseios românticos. São, ao fim e ao cabo, “idéias étnicas”
23 Götz, Adriani. Drawings, objects and prints. p. 12.
155
(Völkergedanke) tangíveis em imagens, reconhecíveis universalmente
porque são manifestações locais das “idéias elementares”
(Elementargedanke) da humanidade,24 nunca vivenciadas em estado
puro.
As suas cores são terra, preta, orgânica, pigmentos primários,
matéria-prima (Urstoff) mesmo de vida, (re)apresentação pura, que não
detém a plasticidade da substância, antes atua antropologicamente para a
afirmação de um espaço real, de caráter fortemente antiurbano,
conjurando o espírito da terra (Erdgeist), sem guardar qualquer
consideração pelo tradicional efeito estético.
O aspecto eternamente provisório e experimental de suas obras
reflete a maleabilidade que Beuys espera e deseja alcançar para uma
estrutura social alternativa –um pedido para que se dê atenção aos sinais
nebulosos enviados pela intuição humana. Sempre aguardando
intercomunicações de energias vitais, apostando no eterno prevalecer
sobre as tendências destruidoras e mortais. O informe e o etéreo parecem
propor o direito à liberdade intuitiva: porém são formas de precisão
apenas impressionistas e, no entanto, extremamente eloqüentes que,
contraditoriamente, prescindem de comentários, já que sempre foram de
alguma forma identificadas, sentidas e até temidas. Estas formas são
apenas indícios de situações. Apelando para o déjà vu da mente, trata-se
de imagens primárias (urtümliches Bild). São conteúdos sem formas fixas,
conservando o aspecto de inacabados, surgem constantemente em
transformação, como o homem e os materiais de suas argumentações
artísticas.
Inexiste qualquer vestígio do Belo mediterrâneo, suas cores ou seu
erotismo, posto que o trabalho de Beuys é um reendereçamento do
Romantismo: são seqüências pictóricas simbólicas ou condensações
sintáticas25 que se remetem sempre à Alemanha em um curioso processo
autogerador do espírito germânico. Temos, isto sim, uma metáfora da
beleza contemporânea que concorda com Kenneth Baker ao descrevê-la 24 CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus. Mitologia primitiva. p. 40, citando Adolph Bastian (1826-1905) que por sua vez foi fonte para Jung no desenvolvimento da idéia dos arquétipos. 25 GÖTZ Adriani. Drawings, objects and prints. p. 35.
156
como sendo da ordem de uma beleza latente, isto é, um medo de perder
a realidade crua de nossa existência,26 identificada nos traços robustos
que eventualmente marcam graficamente a presença do homem/artista,
mais um indivíduo privado de sua própria integridade, apenas um
fragmento de realidade não-industrial.
Os objetos de Beuys carregam uma concentração de verdade
interior somente apreensível de maneira sinestésica, uma vez que são
aspectos táteis, sensoriais, de fenômenos que pedem a
transubstancialização da realidade em fé, sem consentir alternativa. É
este complexo energético e pulsante que mostra o indizível e traz à luz a
função simbólica e que, à maneira da mitologia, faz a transmissão das
formas pela qual a Forma-das-formas sem forma pode ser conhecida.27
Paradoxalmente são objetos numênicos que, embora reconhecíveis, não
permitem outra apreensão do seu nexo que não seja através dos
sentidos.
Beuys vai estimular a sensibilidade e a percepção dos homens para
além dos cinco sentidos biologicamente conhecidos, acrescentando a
eles os sentidos vital, o espacial, o temporal, o cinético, o estático e ainda
o térmico. Por exemplo, a obra Das Rudel (O bando, 1969), na qual é
possível verificar que o bando, composto de cerca de 20 trenós-animais,
cada qual carregando um rolo de feltro (para aquecer), gordura (para
alimentar) e uma lanterna (para guiar), está em permanente movimento,
ou seja, parece sair incessantemente do automóvel-ambulância. O artista
dispôs com tamanha precisão os objetos que é constante a impressão de
estarem em permanente movimento: transmitem, assim, o sentido de
urgência, atitude perfeita de um grupo de resgate de emergência, pronto
para intervir, invadir ou escapar.
Também em Pligh (Transe, 1958-85), muito embora o título seja
complementar, como em toda a produção de Beuys, é possível
experimentar, graças à monumentalidade da obra, de proporções
arquiteturais, sensações que vão, contínua e alternadamente, do temor ao
conforto pleno. O feltro enrolado, disposto em colunas, envolvendo
26 BAKER, Kenneth. “Um uso para o belo” in. Revista Gávea nº 2. p. 105. 27 CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus. Mitologia primitiva. p. 57.
157
totalmente o ambiente, a sonoridade do instrumento sufocada pelo
mesmo material, admite conotações simultâneas tanto de material de
isolamento (solidão, abandono), como de proteção (calor). A
impossibilidade de apreender o sentido, colocar um conceito final no
logos, é semelhante à realidade, é o arrebatamento da pura experiência
inefável unicamente oferecida pelo sublime contemporâneo, incapacidade
de expressão, perda de si mesmo.
6.5 Logos e diálogos A obra de Beuys é falante, nunca pára de falar, procura uma via de
acesso à verdade, corporificando-a mesmo. Deste modo, seria lícito dizer
que o que Beuys faz é Instalação Verbal, com a qual busca argumentar
sobre o fracasso de um mundo que sobrevive a si próprio. A obra é o
veículo para um diálogo com o homem, para que se efetive o resgate
espiritual por ele aguardado. É sua própria voz que fundamenta espaços,
isto é, in-forma, é abertura de sentido e, portanto, ação/verbo. O espaço e
o espaçar vêm a ser a mesma coisa – possibilidades de sentido que
dizem os aspectos irredutíveis na relação homem/mundo, pois se dão ao
mesmo tempo (não há apropriação de um pelo outro – sujeito x objeto). O
sentido, assim definido, deve ser entendido como origem (possibilidade)
do homem/mundo. Se o espaço é sentido, então ele logos – linguagem –
fenômeno originário do homem de habitar em meio ao sentido. A
linguagem vai sempre se efetivar porque o homem é o ser-sentido – e é
seu originariamente o ser uma provocação (diá-logos).
O que se reivindica para a atividade artística beuysiana como um
todo é que ela seja da ordem de um lugar/espaçar, doação de sentido
para quem a experimenta. Nas sábias palavras de Martin Heidegger:28 o
espaçar instala o livre, que se abre para o homem estabelecer-se e
habitar. A “obra” de Beuys é, portanto, doação de lugares – possibilidade
de sentido.
A criação se dá a partir da palavra, da formulação do nome. O
discurso de Beuys torna-se assim escultura em franca oposição à
tridimensionalidade da escultura clássica. O artista afirmava 28 HEIDEGGER, Martin. “Arte e Espaço”. In Arte e Palavra nº 2. p. 93.
158
constantemente que a linguagem é para mim a primeira forma de
escultura, cujos princípios, desde o tempo do Grupo Fluxus, são sociais,
nunca puramente estéticos. Com o grupo, Beuys atuou entre 1962 e 1965
em diversas Aktionen, nas quais os materiais utilizados eram de origem
estritamente existencial, jamais mercadorias consumíveis. Como base de
pensamento, o Fluxus encontra no movimento de Heráclito a sua
motivação, e nos materiais não ortodoxos e até mesmo rejeitados pela
sociedade a simplicidade e a flexibilidade com que pretendiam arquitetar
uma mudança na consciência visando a uma nova engenharia social,
liberta de dogmas ou de cânones preestabelecidos.
Assim como os materiais, rejeitados são os próprios homens, agora
abandonados à própria sorte. Fluxus pensa na arte dialogando com o real
e o espaço não mais como uma entidade geométrica fechada, mas como
dimensão de vida. Arte e artista tornam-se modelos de comportamento
(ou de persuasão?) estético em contraposição às normas de coação: daí
a ostentação pública da operação artística, a improvisação de
acontecimentos espetaculares, a participação física nas Aktionen, e, no
caso muito particular de Beuys, a linguagem tornando-se elemento
fundamental. Acrescentando, pode-se dizer, uma quarta dimensão à
escultura, na qual os gestos são as formas e o comportamento, o
conteúdo. O entusiasmo, a imaginação e sensibilidade são suas
heranças, suficientes e legítimas, legadas pelo romantismo.
Buscando equivalência entre arte e mundo, seu logos é antes
político, que vai se evidenciar plasticamente. O discurso, a palavra, a
linguagem como um todo são partes integrantes e indissociáveis de sua
obra. Como na época das religiões antediluvianas, quando o sacrifício
adquiria condição de linguagem, ou ainda nos tempos da barbárie
teutônica, quando a brutalidade selvagem instauraria o reino dos homens
livres. Para os povos primitivos, a arte não tinha o caráter de atividade
individual, ao contrário, era justamente coletiva, transmissão, irradiação
de cultura e liberação de forças políticas – aproximando-se, desta forma,
do pedido de Beuys no seu “conceito ampliado de arte”. O artista funde
teoria de arte com o próprio fazer, desejando ocupar uma posição central
na sociedade, deixando a arte de ser expressão dela mesma, para atuar
159
em um co-pertencimento arte-vida, estendendo suas fronteiras e sua
abrangência, rompendo em definitivo com o projeto do Modernismo.
Ora, forçar os limites da arte é por si só ampliá-la. A emergência de
Beuys como artista se prende justamente ao caráter autêntico da sua
obra, que, ancorada em uma experiência pessoal e intransferível, não é
conscientemente controlável. O mito vai possibilitar a sintonia entre o
pessoal e o universal, na tentativa de estabelecer dia-logos plásticos.
Descrente da arte como objeto, ela se transforma em puro ato poético, a
integridade de suas realizações é a verdade do vivido, verdade biográfica
e geográfica. Crê, isto sim, na sua própria experiência pessoal e no seu
relacionamento com o mundo, como ramificações biomórficas. O artista
chegava mesmo a impregnar de odores suas mãos e suas vestes para
demarcar lugares, à maneira dos animais. A Aktion, como o ritual, é
mitologia vivificada, qualificação de ambiente.
Assim como já o era para Marcel Duchamp no início do século, a
arte não tem mais um fim em si e será Beuys que levará a cabo, mais do
que qualquer outro artista, o processo de desestetização iniciado pelo
francês, colocando-a antes a serviço, para que possa ela mesma dialogar
com a sociedade, usando-a, portanto como linguagem, que comunica,
critica o passado e projeta o futuro. É arte feita “para” e “na” sociedade. A
sua esteticidade será, portanto intrínseca ou não será.
O Belo com Beuys será uma emanação do Ser, a irradiação do
desvelamento do Ser.29 O desvelamento aqui é a persuasão de uma obra
que discursa e, desta forma, remete a arte para uma estrutura
verdadeiramente espiritual. O descompromisso assim gerado é de tal
grandeza que o artista jamais propôs investir contra o sistema artístico
vigente. Não era esta a sua questão central, e sim o homem e a sua ética
do fazer visando a uma possível reconstrução da existência através de
modelos de procedimentos que o valorizem. O homem agora deve ser tal
qual o demiurgo de Platão que não é onipotente: faz o kosmos tão bem
quanto possível e tem de competir com os efeitos contrários da
29 BAKER, Kenneth. “Um uso para o Belo”. In Revista Gávea nº 2. p. 103, citando Martin Heidegger.