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cadernos metrópole ISSN 1517-2422 cidade, cidadania governança democrática Cadernos Metrópole n. 21 pp. 1-283 1º semestre 2009

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cadernos

metrópole

ISSN 1517-2422

cidade, cidadaniagovernança democrática

Cadernos Metrópole n. 21pp. 1-283 1º semestre 2009

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Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999SemestralISSN 1517-2422

1. Áreas Metropolitanas - Periódicos. 2. Sociologia urbana - Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. II. Grupo Pronex “Metrópole: Desigualdades Socioespaciais e Governança Urbana”

CDD300.5

Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP

Periódico indexado na Library of Congress – Washington

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cidade, cidadaniagovernança democrática

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PUC-SP

Reitor Dirceu de Mello Direção

Miguel Wady Chaia

Conselho Editorial Ana Maria RapassiBader Burihan Sawaia (Presidente) Bernardete A. GattiCibele Isaac Saad RodriguesDino PretiMarcelo FigueiredoMaria do Carmo GuedesMaria Eliza Mazzilli PereiraMaura Pardini Bicudo VérasOnésimo de Oliveira CardosoScipione Di Pierro Netto (in memoriam)Vladimir O. Silveira

Coordenação EditorialSonia Montone

Revisão de portuguêsSonia Rangel

Revisão de inglêsCarolina Siqueira M. Ventura

Revisão de espanholVivian Motta Pires

CapaRaquel Cerqueira

Rua Monte Alegre, 971, sala 38CA05015-001 São Paulo - SPTel/Fax: (11) 3670.8085 [email protected] www.pucsp.br/educ

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cadernos

metrópole

Adauto Lucio Cardoso (UFRJ)

Aldo Paviani (UnB)

Alfonso X. Iracheta (El Colegio Mexiquense)

Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ)

Ana Fani Alessandri Carlos (USP)

Ana Lucia Nogueira de Paiva Britto (UFRJ)

Ana Maria Fernandes (UFBA)

Andréa Catenazzi (Univ.Nac.de General Sarmiento-ARG)

Anna Alabart Villà (Universidad de Barcelona-ESP)

Arlete Moysés Rodrigues (Unicamp)

Brasilmar Ferreira Nunes (UnB)

Carlos Antonio de Mattos (PUC/CHI)

Carlos José C. G. Fortuna (Univ.de Coimbra-POR)

Cristina Lópes Villanueva (Univ. de Barcelona-ESP)

Edna Maria Ramos de Castro (UFPA)

Eleanor Gomes da Silva Palhano (UFPA)

Erminia T. M. Maricato (USP)

Félix Ramon Ruiz Sánchéz (PUC/SP)

Fernando Nunes da Silva (Inst. Sup. Técnico/POR)

Geraldo Magela Costa (UFMG)

Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (PUC/SP)

Heliana Comin Vargas (USP)

Heloísa Soares de Moura Costa (UFMG)

Jesús Leal (Univ. Complutense de Madri-ESP)

José Antônio Fialho Alonso (FEE)

José Machado Pais (Univ. de Lisboa-POR)

José Marcos P. da Cunha (Unicamp)

José Maria C. Ferreira (Univ. Téc. de Lisboa-POR)

José Tavares Correia Lira (USP)

Leila Christina Duarte Dias (UFSC)

Luciana Corrêa do Lago (UFRJ)

Luís Antonio Machado da Silva (Iuperj/Ucam)

Luís Renato Bezerra Pequeno (UFCE)

Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes (UFBA)

Maria do Livramento M. Clementino (UFRN)

Marília Steinberger (UnB)

Nádia Somekh (Univ.Presbiteriana Mackenzie)

Nelson Baltrusis (Univ. Católica do Salvador)

Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ)

Ralfo Edmundo da Silva Matos (UFMG)

Ricardo Toledo Silva (USP)

Roberto Luís de Melo Monte-Mór (UFMG)

Rosa Maria Moura da Silva (Ipardes)

Rosana Baeninger (Unicamp)

Sarah Feldman (USP)

Sérgio de Azevedo (UENF)

Suzana Pasternak (USP)

Tamara Benakouche (UFSC)

Vera Lucia Michalany Chaia (PUC/SP)

Wrana Maria Panizzi (UFRGS)

CONSELHO EDITORIAL

EDITORESLucia BógusLuiz César de Q. Ribeiro

SecretariaRaquel Cerqueira

Projeto gráfi co e Editoração eletrônicaRaquel Cerqueira

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Colaboradores deste número

Ilza Leão – UFRN

Marcelo J. P. Paixão – UFRJ

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sumário

Apresentação9

dossiê: cidade, cidadania governança democrática

Elementos para uma sociologiados espaços edifi cados em cidades:o “Conic” no Plano Piloto de BrasíliaBrasilmar Ferreira Nunes

13Elements for the sociologyof constructed spaces in citi es:

the “Conic” in Brasília’s Pilot Plan

Por um novo enfoque teóricona pesquisa sobre habitaçãoErmínia Maricato

33Defending a new theoreti calframework in housing research

53Metropoliti cs: an analysis of someglobal metropolitan experience

Demandas sociais e ocupação do espaçourbano. O caso de Brasília, DFAldo Paviani

75Social demands and urban space occupati on. The case of Brasília, Federal District

Metropolíti ca: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globalesÓscar A. Alfonso R.

93Cultural heritage urban policiesand counter-revanchism: Old Recife

and the Historic Area of the City of Porto

Políti cas urbanas de patrimonializaçãoe contrarrevanchismo: o Recife Anti goe a Zona Histórica da Cidade do PortoRogério Proença LeitePaulo Peixoto

105Housing policy in central areas:rhetoric versus practi ce

Políti ca de habitação nas áreas centrais: retórica versus práti caMariana Fialho Bonates

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Fundamentos da confi ança: associati vismo, insti tuições políti co-administrati vas e capital social na Região Metropolitana de Porto AlegreMarcelo Kunrath SilvaSoraya Vargas Côrtes

131Public spaces: newsociabiliti es, new controls

O confronto do Orçamento Parti cipati vo com as tradições representati vas em São PauloPaulo Edgar da Rocha Resende

155 The foundati ons of trust: civic engagement, politi cal-administrati ve insti tuti ons and social

capital in the Metropolitan Region of Porto Alegre

Parti cipação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis?Cáti a Wanderley LubamboFlavio Cireno Fernandes

173The confrontati on between Parti cipatory Budget and representati ve traditi ons in São Paulo

Espaços públicos: novassociabilidades, novos controlesLuciana Teixeira de Andrade Juliana Gonzaga JaymeRachel de Castro Almeida

197Parti cipati on and territory management:where are the favorable conditi ons?

219Regularizati on of urban sett lementsand sustainability

A construção da esfera públicano planejamento urbano. Um percursohistórico na cidade de SantosLuiz Antonio de Paula Nunes

233Public sphere constructi onin urban planning. A historical

path in the city of Santos

Regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidadeManoel Teixeira Azevedo Jr.

247The constructi on of public power as privatespace in the city of Diadema (1983 to 1996)

Grupos de catadores autônomos na coleta seleti va do município de São PauloMarina Pacheco e SilvaHelena Ribeiro

Groups of independent scavengers in theselecti ve collecti on of the city of São Paulo

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A construção do poder público como espaço privado na cidade de Diadema (1983 a 1996)Joana Darc Virgínia dos Santos

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Apresentação

O Cadernos Metrópole n. 21 reafi rma o caráter interdisciplinar do periódico, reu-nindo trabalhos de cientistas sociais e planejadores urbanos num debate sobre os temas da cidadania e da gestão democrática da cidade. Esses temas, cada vez mais caros às dis-cussões contemporâneas sobre as cidades, envolvem, por sua vez, a análise das formas de sociabilidade e das relações de confl ito que se estabelecem e se reproduzem com as transformações do território e das relações de poder.

No contexto dessas preocupações, o texto de Brasilmar Ferreira Nunes busca compreender a relação entre o espaço construído e a sociedade na cidade de Brasília, mostrando como a capital federal moldou-se às necessidades de seus habitantes e como os espaços edifi cados – e sua transformação – interferem nos padrões de sociabilidade, alterando o uso dos espaços e resignifi cando territórios. Tomando como referência o Plano Piloto de Brasília e o seu Setor de Diversões Sul – SDS/Conic, o autor discute a re-lação espaço construído-sociedade, demonstrando que a cidade, em sua dinâmica, altera as propostas originais do planejamento, adaptando-se às necessidades de seus habitantes e às formas de sociabilidade cotidianamente estabelecidas. Ainda sobre o caso de Brasília recaem as preocupações de Aldo Paviani, cujo texto analisa as demandas não atendidas de moradores de certas áreas do Distrito Federal por serviços de saúde pública, educa-ção, transporte e habitação. Segundo o autor, alguns encaminhamentos se fazem neces-sários para que o poder público adote políticas globalizantes, superando ações isoladas, paternalistas ou clientelistas, pois somente “a visão da totalidade ampliará o acesso de-mocrático ao espaço da cidade por parte dos urbanistas, cidadãos e construtores da vida urbana”.

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apresentação

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Outra questão central no debate sobre a gestão da cidade e da cidadania refere-se ao défi cit habitacional e às pesquisas sobre habitação. Contribuindo para esclarecer pon-tos importantes da discussão, o texto de Ermínia Maricato aponta – a partir de cuidadosa revisão bibliográfi ca – que a maior parte das pesquisas sobre habitação, embora forneça um quadro importante sobre a carência de moradias, a segregação, a exclusão social e as políticas institucionais, aborda prioritariamente a esfera do consumo “ignorando a centralidade da produção na determinação do ambiente construído”. Maricato discute, ainda, o impacto da globalização na provisão de moradias e incentiva os pesquisadores brasileiros a enfrentarem o desafi o de realizar estudos que venham suprir as lacunas apontadas.

Ampliando o debate para o caráter e a dimensão internacionais da metropolização, Óscar Alfonso destaca que a maior parte da literatura recente se concentra mais na ne-cessidade de atuar sobre o fenômeno metropolitano do que de compreendê-lo. A partir de um exame crítico de alguns casos concretos, seu artigo analisa, de modo comparativo, os desafi os enfrentados por aglomerações metropolitanas da Europa, da América Latina e da América do Norte – na busca por alternativas que favoreçam a adoção de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento metropolitano.

Os resultados de outro estudo comparativo entre áreas metropolitanas são apre-sentados no trabalho de Rogério Proença Leite e Paulo Peixoto, questionando os pro-cessos de patrimonialização de centros históricos implantados em áreas degradadas do Recife Antigo, no Brasil, e na Zona Histórica da Cidade do Porto, em Portugal. O argu-mento central do trabalho apoia-se na constatação de que “após o período de apogeu das intervenções urbanas, que agem como um elixir para os problemas de uma realidade decadente, ocorre uma contrarrevanche exacerbada por um sentimento de reconquista do espaço que aniquila as perspectivas depuradoras dessas operações” e contribui para a avaliação das políticas urbanas de enobrecimento. Trata-se de trabalho instigante que convida à refl exão acerca das consequências de algumas políticas de intervenção que, mais do que revitalizar, propõem a mudança do uso dos espaços enobrecidos.

Mariana Fialho Bonates também contribui para a discussão sobre a reabilitação de áreas centrais analisando programas de intervenção habitacional nos centros de cidades brasileiras de médio e grande porte. A partir do estudo de situações concretas, a autora lembra que a ideia de conjugar a política habitacional com a política de preservação dos sítios históricos de áreas centrais não é recente e levanta hipóteses que explicariam por que os recursos do Programa de Arrendamento Residencial (PAR) têm sido aplicados, em sua grande maioria, em obras de construção de novos conjuntos habitacionais e não na reabilitação de edifícios abandonados ou degradados.

O texto de Luciana Teixeira de Andrade, Juliana Gonzaga Jayme e Rachel de Cas-tro Almeida aborda o tema das mudanças no uso e o declíneo dos espaços públicos das grandes cidades, em detrimento dos espaços semipúblicos ou privatizados. Partindo do estudo das formas de sociabilidade observadas em algumas praças de Belo Horizonte, as autoras demonstram que, apesar de ainda serem bastante utilizadas como espaços

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públicos, seus frequentadores buscam, preferencialmente, a relação entre iguais, repro-duzindo nos espaços públicos a segregação socioespacial observada na cidade.

Problematizando o argumento de que a proliferação de organizações sociais seria uma condição necessária para a geração de confi ança e, consequentemente, de capital social, o texto de Marcelo Kunrath Silva e Soraya Vargas Côrtes estabelece um diálogo crítico com a obra de Robert Putnam. A partir dos resultados de survey sobre Cultura Política na Região Metropolitana de Porto Alegre, procuram demonstrar que tal argu-mento não tem sustentação e ressaltam a necessidade de incorporar a dimensão político-institucional às análises do associativismo, mostrando que não existe uma relação direta entre o associativismo e a confi ança em instituições políticas.

A análise de instrumentos de participação direta da cidadania, como o Orçamento Participativo, podem representar, segundo Paulo Edgar da Rocha Resende, uma grande inovação no processo de tomada de decisões de governos locais, ampliando a inclusão de sujeitos políticos e a justiça na distribuição territorial/social dos investimentos públicos. A partir da avaliação do funcionamento do Orçamento Participativo do Município de São Paulo, entre 2001 e 2004, o autor discute as razões pelas quais o Orçamento Participa-tivo, muitas vezes um efi caz mecanismo de participação cidadã nos rumos das cidades, sofreu contingenciamentos e, consequentemente, perdeu peso no cenário decisório da maior metrópole brasileira.

Na mesma linha de refl exão proposta por Resende, o texto de Cátia Wanderley Lubambo e Flavio Cireno Fernandes aborda a questão da participação e da gestão terri-torial focalizando, mais especifi camente, a capacidade de atuação de Conselhos e Fóruns no sentido de infl uenciar decisões e ações públicas. A partir de estudo comparativo de dois Programas de Governo – em municípios localizados em Pernambuco e Santa Ca-tarina –, discutem as condições, expectativas e limitações da implantação de estruturas de gestão territorial, destacando a infl uência dos atores políticos locais e de suas bases eleitorais.

Manoel Teixeira Azevedo Junior, arquiteto e urbanista, apresenta, na sequência, outra discussão de extrema relevância para todos os que pensam e exercem a gestão do território em centros urbanos. O autor discute os programas de regularização de assen-tamentos informais ou de loteamentos irregulares apontando a importância dos instru-mentos de política urbana do Estatuto das Cidades para a reversão das várias formas de ilegalidade urbana e a universalização do direito à cidade.

Analisar as formas de participação da sociedade civil no planejamento urbano da cidade de Santos, no período compreendido entre os anos de 1945 e 2009, é o obje-tivo do artigo de Luiz Antonio de Paula Nunes. Seu estudo revela como a construção e institucionalização de espaços políticos e a criação de comissões e conselhos conduziu à ampliação da participação popular no planejamento urbano no transcorrer do período estudado, mudando de acordo com o pensamento urbanístico as ferramentas e os cená-rios políticos.

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A participação popular, agora no Município de Diadema, na Região Metropolitana de São Paulo, é também o objeto do estudo da historiadora Joana Darc Virginia dos San-tos. A mobilização da população por melhores condições de vida, em especial no que se refere à infraestrutura, ocupou lugar de destaque ao longo de três mandatos consecuti-vos de prefeitos do Partido dos Trabalhadores (1982-1996), reunindo experiências com resultados bastante heterogêneos e que são analisados pela autora em sua investigação sobre os atores envolvidos.

Em complementação aos textos do dossiê, a cidade de São Paulo volta à cena com o texto de Marina Pacheco e Silva e Helena Ribeiro sobre os catadores autônomos de materiais recicláveis. Após a apresentação de informações sobre a importância da coleta seletiva e a dimensão do problema do lixo na cidade de São Paulo, as autoras elaboram algumas hipóteses explicativas para a não inclusão de parcela signifi cativa dos catadores no Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura Municipal de São Paulo. Essas hipóteses apontam, entre outros fatores, para as difi culdades de organização e gestão dos grupos de catadores e para a ausência de uma ação sistematizada da Prefeitura Municipal de São Paulo no sentido de incentivar a participação dos catadores no Programa de Coleta Seletiva ofi cial. A questão da gestão urbana é novamente colocada, aliando-se à da sus-tentabilidade urbana e aos desafi os que se colocam para a conquista da cidadania.

Ainda que se considerem as especifi cidades das abordagens, o caráter interdiscipli-nar das discussões propostas e as peculiaridades dos estudos de caso, os artigos reunidos neste número apontam, de modo inequívoco, para as conquistas obtidas pelas novas formas de participação e para as mudanças geradas pelos novos instrumentos de gestão no âmbito dos processos de governança democrática.

Lucia BógusLuiz César de Q. Ribeiro

Editores científicos

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Elementos para uma sociologiados espaços edifi cados em cidades:o “Conic” no Plano Piloto de Brasília

Brasilmar Ferreira Nunes

ResumoO presente artigo procura discutir a relação do espaço construído e sociedade tomando como referência o Plano Piloto de Brasília e o seu Setor de Diversões Sul – SDS/Conic. Partindo da existência de múltiplas determinações na dinâmica da cidade, procura analisar a relação entre os usos de um centro comercial na área tombada de Brasília, o perfi l dos seus usuários que em princípio se chocam com a proposta original de um ambiente mais sofi sticado. Pro-cura mostrar que a cidade, enquanto um fenô-meno dinâmico, modifi ca propostas originais do planejamento e se adapta às necessidades de seus habitantes, numa estreita relação es-paço e sociedade, de tal maneira que sociabili-dades heterogêneas se articulam com espaços construídos heterogêneos. Mostra ainda que o Conic contribui para tornar a área tombada do Plano Piloto uma área urbana, na perspectiva sociológica: variada, densa e socialmente hete-rogênea.

Palavras-chave: Brasília; Conic; edifí-cios urbanos; sociabilidades urbanas; espaço construído e sociedade.

AbstractThis paper tries to discuss the relationship between constructed space and society, using as reference the Pilot Plan for Brasília and its Setor de Diversões Sul (SDS-Conic – South Entertainment Sector). Starting from the existence of multiple determinations in the city’s dynamics, we try to analyze the relations between the uses of a commercial center in the listed area of Brasilia and the characteristics of its users which, in principle, collide with the original proposal for a more sophisticated environment. Also, we try to show that the city, as a dynamic phenomenon, modifi es the original planning proposals and adapts to its inhabitants’ needs, in a narrow space/society relation, in such a way that heterogeneous sociabilities articulate with heterogeneous constructed spaces. Finally, we try to show that the Conic contributes to make the listed area of the Pilot Plan an urban area, in the sociologic perspective: varied, dense and socially heterogeneous.

Keywords : Bras í l i a ; Conic ; urban constructions; urban sociability; constructed space and society.

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Apresentação

A sociologia urbana que se produz no Brasil vem se debruçado com insistência sobre pro-cessos sociais que ocorrem nos espaços das cidades, chamando atenção para aspectos os mais diversos e variados. Entretanto, curio-samente e com raras exceções, o estudo de vínculos sociais determinados pelo espaço construído – praças, imóveis residenciais, industriais, comerciais, áreas de circulação, etc. – não prioriza o projeto em si, mas o considera como um suporte onde as práticas sociais ocorrem. Particular mente os imóveis, os edifícios, são vistos como cenários e não tratados como artefatos que interferem nas interações que neles possam ocorrer.

Podemos lembrar alguns títulos que mais se aproximam desse recorte: o de Gil-berto Velho (1989), analisando um edifício em Copacabana no Rio de Janeiro, ainda na década de 1980, ou ainda, o excelente es-tudo de Paola Berenstein-Jacques sobre a arquitetura das favelas nos morros cariocas. Nesses trabalhos, observamos com detalhes como o ambiente construído é não apenas o cenário, mas muito mais do que isso, in-terfere diretamente nas modalidades de vínculos e práticas sociais que aí ocorrem.

Curiosamente, a sociologia urbana pouco tem contribuído para esse debate, pois somos os que menos se interessam pe-lo desenho do ambiente construído ou pela proposta de intervenção no espaço oriunda dos escritórios de arquitetura. Essa assertiva é mais instigante ainda se nos dermos conta de que os profi ssionais da arquitetura e até mesmo os que, por razões diversas, impro-

visam suas habitações prescindindo de um projeto, sempre levam em conta o elemento humano que dele irá usufruir. Entretanto, as questões associadas à prática de constru-ção, especialmente a arquitetura, é comple-xa e de difícil discernimento, evoluindo per-manentemente em função de vários fatores, mesmo se o resultado dessas práticas tenha implicações diretas em nossos ambientes de vida. Aspecto corriqueiro, pois a arquitetura é expressão da própria cultura, além do que, toda ela, mesmo as privadas, tem implica-ções na qualidade dos espaços públicos.

Pressupomos que essa relativa ausência de interesse advém do lugar que o “territó-rio” e o “espaço” ocupam nas análises so-ciais, embora sua presença na esfera teórica seja uma constante entre autores consagra-dos do campo sociológico.1 De fato e ape-sar de tudo, os tratamos (o território e o espaço) invariavelmente como cenário, raras vezes como agente. A discussão é exten-sa e profícua; difi cilmente se esgotaria nos quadros de um artigo. Porém, vale lembrar alguns aspectos que podem contribuir para esse debate e introduzir o nosso caso em análise neste texto que se propõe uma ava-liação dos usos que se faz de um edifício em pleno Plano Piloto de Brasília, cidade ícone da arquitetura moderna no século XX.

Algumas considerações teóricas como apoio

A sociologia parte do pressuposto de que sociedade é interação social por meio da qual os seres humanos se ligam uns aos

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outros; através desses elos transformam co-letivamente o meio natural, dando-lhe uma função e um sentido. Dessa maneira, o meio natural se transforma e refl ete diretamente a estrutura social da qual ele é o suporte. Assim, todo e qualquer território explorado ou habitado traz em si as marcas das ativi-dades humanas que nele se desenvolvem.

Se levarmos esse argumento para o espaço da cidade, podemos constatar as di-ferentes formas que assumem os ambientes construídos em razão das modalidades e atividades humanas que neles se implantam. Durkheim (1987) argumenta que os subs-tratos físicos da vida social devem ser con-siderados como maneiras de ser que “são maneiras de fazer consolidadas” que refl e-tem níveis diferenciados de cristalização da vida social. Ambientes residenciais, indus-triais, comerciais, de lazer e de circulação trazem em si valores funcionais, estéticos e econômicos inerentes aos seus interessa-dos. Portanto, “cada unidade arquitetônica integra um sistema que não é nunca neutro, já que carregado de funcionalidades, méto-dos estruturais e a própria fisicidade das formas distribuídas no espaço” (Coulquhon, 1991, apud Duarte, 2002, p. 152). Esta-mos então em pleno contexto da multidisci-plinaridade, pois esse sistema é tratado por Durkheim como parte da morfologia social, tal qual a população, as estruturas políticas e jurídicas, todas elas mais do que refl exos, são sintomas da realidade social, um fator ativo que pesa sobre o movimento dos pro-cessos sociais. Assim, embora Durkheim se interesse mais pelas instituições sociais do que propriamente a cidade, suas análises trazem subentendida uma problemática do espaço, o que nos leva a deduzir que quando

pensamos, portanto, a cidade estamos nos referindo a um ambiente ao mesmo tempo material e humano.2

Essa discussão, que, aliás, avança muito além do que aqui se apresenta, foi tratada por diferentes correntes do pensa-mento, especialmente os arquitetos, uma categoria socioprofissional diretamente envolvida com a produção física/funcional da cidade. Os modernistas, por exemplo, chegaram à radical imagem da cidade como “instrumento de trabalho” e as casas como “máquinas de morar”, ao ponto de Le Cor-busieur argumentar que os projetos de uma colher ou de uma cidade partiam de um mesmo problema de design industrial.3 Daí a se chegar à ideia de que a heterogeneida-de que caracteriza sociológica e fi sicamente a cidade pode ser sintoma do caos urbano seria um passo.

As polêmicas que caracterizam esse de-bate é de difícil síntese. Podemos, entretan-to lembrar o estudo de Jane Jacobs (1991) que criticando a visão dos modernistas, considera a cidade um laboratório (aliás, tal qual a produção de Chicago já o fazia, es-tudando as relações sociais urbanas) e que muitas vezes as soluções para problemas urbanos podem estar sendo apontadas pelas próprias características de tais sítios e não necessariamente em debates intelectuais. Segundo a autora, não é exatamente “caos” o que explicaria a complexa diversidade de ambientes que se encontram em uma me-trópole; ao contrário, estaria aí o seu maior potencial. Aliás, argumento que vai encon-trar respaldo em Durkheim, para quem a divisão do trabalho é tanto mais complexa quanto maior for a densidade populacional de uma sociedade4 (ou cidade, diria eu).

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Duarte (2002, p. 150) sintetiza com justeza esse fenômeno quando escreve:

De uma forma ou de outra as cidades

vão se destruindo e se reconstruindo,

de acordo com valores culturais, econô-

micos e tecnológicos. Essas destruições

e reconstruções respondem ao que aqui

se tem chamado de matrizes espaciais,

isto é, há uma interrelação dos sistemas

que ativam a sociedade e formam uma

matriz que, boa parte das vezes em si-

lêncio, transfi gura a cidade.5

De imediato, fi ca patente que a cidade – a sua estrutura física e social – é um fenôme-no dinâmico que se modifi ca continuamente em função de modifi cações nos elementos que compõem a sua matriz constitutiva. Aos efeitos sobre o espaço construído de varia-ções nas dimensões sociais, políticas, econô-micas, culturais e tecnológicas se somam a própria determinação do espaço, suas res-trições e seus potenciais. Além do mais, as características do lugar se agrega às iden-tidades de seus usuários, de tal forma que podemos falar numa simbiose entre o ser e o estar em algum lugar. Ser carioca ou ser candango, por exemplo, remete a uma representação não só cultural mas também territorial.

Essas questões são pertinentes à nossa intenção de refl etir sobre um edifício cons-truído no Plano Piloto de Brasília, a partir de uma concepção de espaço urbano presente nos autores, tanto do plano urbanístico da cidade (Lúcio Costa) quanto de seus monu-mentos mais importantes (Oscar Niemeyer). Referimos-nos ao Conic, um complexo de lojas e escritórios situado na confl uência das Asas com o Eixo Monumental em Brasília.

Algumas características de Brasília e do Conic

O exemplo escolhido aqui é interessante por várias razões, inclusive pelo fato de estarmos tratando de uma área do Plano Piloto que foi priorizado com destaque no projeto original da capital do país, aquela que na concepção de seu idealizador deve-ria se consolidar como um boulevard nos moldes de cidades europeias. Já se discutiu bastante sobre a elevada dose de utopia que estava presente na proposta vencedo-ra para a nova capital. Claro que, sendo na época um território praticamente vazio, os arquitetos (tanto Lúcio Costa como os demais concorrentes no concurso para o projeto para a nova capital) puderam expor muito de suas concepções sobre urbanismo e cidades. A ausência de resistências sociais à implantação de qualquer um dos proje-tos – inclusive aquele vencedor – favorecia a livre imaginação.6

A racionalidade do projeto de Lúcio Costa tinha pressupostos curiosos, no sen-tido de que imaginava a possibilidade de um novo homem naquele espaço novo, portan-to a relação espaço e sociedade claramente demarcada. Além disso, Brasília, sendo capi-tal político-administrativa da nação, iria ser habitada sobretudo pela burocracia estatal que, no Brasil, goza de certas condições pri-vilegiadas ante os percalços da conjuntura econômica: emprego estável e salários re-lativamente compensadores, além, é claro, das vantagens que advêm da condição de funcionário público. Poder-se-ia, portanto, imaginar esse novo homem, na medida em que as condições de sua existência material estariam garantidas de antemão.

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Entretanto, é impossível supor um espaço urbano socialmente homogêneo, mesmo se o seu desenho e a sua arquite-tura possam ser padronizados. A dimensão cultural daquilo que chamamos de matrizes espaciais não cabem num modelo único de homem, tendo que se adequar às hetero-gêneas modalidades de existência social. De fato, foi o que ocorreu no Distrito Federal: um crescimento populacional acima de qual-quer previsão, composto por migrantes de diferentes origens socioeconômicas e cultu-rais, polarizados por um Plano Piloto (Bra-sília) que se apresenta hoje como uma exce-ção numa área urbana com elevada dose de heterogeneidade. De um lado, um território planejado segundo critérios racionais e, de outro, um universo onde imperam as leis do mercado, com aquele ar caótico que caracte-riza as periferias urbanas brasileiras.

Interessa-nos nessa discussão ressaltar o elevado peso simbólico que Brasília detém, praticamente absorvendo toda e qualquer representação do universo urbano do Distri-to Federal externa ao seu Plano Piloto. Ali se implantaram as representações governa-mentais, seus edifícios e monumentos, além de concentrar a maciça oferta de trabalha formal no Distrito Federal. O cruzamen-to das Asas Norte e Sul com o Eixo Monu-mental é a área onde circula diariamente a população oriunda das cidades satélites que trabalha no Plano Piloto. O Conic, portanto, é um lugar privilegiado pela sua acessibili-dade, justamente porque a implantação da rodoviária urbana na área contribui para a paulatina mudança do padrão de usuário

desse espaço, particularmente nos chama-dos “Setores de Diversão”.

Temos então um cenário peculiar: área de moradia de famílias de altas rendas que lhe dá um caráter socialmente homogêneo, o Plano Piloto é também local de trabalho de diversas categorias socioprofissionais, além é claro do funcionalismo de baixo es-calão, moradores das cidades satélites. Essa mistura faz desse cruzamento onde se situa o Conic uma das áreas “urbanas” de Brasília, justamente pela heterogênea composição de atividades e grupos sociais que ali transitam. O boulevard imaginado por Lúcio Costa é, portanto, o principal centro comercial do Plano Piloto.

Trabalha nos edifícios do Conic uma população aproximada de 10.000 pessoas e circulam pela sua área cerca de 150.000 pessoas por dia. De fato, o Conic disputa com o Conjunto Nacional (aproximadamen-te 500.000 pessoas/dia) o maior número de pessoas diárias nas suas dependências. Evidentemente, esse afluxo nesse espaço está diretamente ligado à presença da rodo-viária urbana com ônibus e outros tipos de transportes coletivos que unem a Esplanada a todo o Distrito Federal. Mesmo se a clas-se média do Plano e dos Lagos não tem o hábito de circular pelo Conic, não se deve menosprezar o seu potencial de atração de pessoas. Ora, a presença de atividades de prestação de serviços no edifício é exclusiva-mente pela sua localização privilegiada, que é o grande trunfo do Conic.

O desenho a seguir permite visualizar es-se núcleo central a que estamos nos referindo.

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LEGENDA

1- Praça dos Três Poderes 2- Marco da Bandeira 7- Panteão da Liberdade e da Democracia 5- Palácio do Itamarati 9- Catedral45- Museu Nacional de Brasília32- Biblioteca Nacional de Brasília10- Teatro Nacional

12- Torre de TV11- Funarte13- Planetário (desativado)14- Clube do Choro15- Centro de Convenções16- Complexo Esportivo do DF17- Memorial dos Povos Indígenas18- Memorial JK

Fonte: Iara Martorelli: O projeto “Artes Visuais” da Funarte – CEAD/UNB – Brasília – 2008.

FunarteFunarte

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Cidade ainda em fase de consolidação, Brasília vive ainda um surto de construção na sua área central, onde estão se implan-tando edifícios comerciais de alto luxo, ho-téis e shoppings centers justamente nesse polo central. A área vem se transformando paulatinamente numa área de alto padrão de consumo e do terciário sofi sticado (con-sultorias, comércio, clínicas médicas, etc.) afastando para mais distante atividades me-nos “nobres”. Os primeiros centros comer-ciais (Setor de Diversão Sul – Conic e Setor de Diversões Norte – Conjunto Nacional) vão perdendo status perante os novos que se implantam nos arredores. Há, portanto, um movimento de valorização de novos es-paços da cidade e desvalorização de outros, manifestos no perfi l do consumidor médio que os frequenta.

A inauguração do Conic se deu por vol-ta de 1967, ou seja, sete anos após a inau-guração da nova capital, sendo o primeiro edifício voltado para a Esplanada dos Minis-térios. Foi batizado informalmente de Conic a partir do nome da construtora pernambu-cana que o edificou, com seu nome numa enorme placa durante a obra, terminando por se fi xar na memória dos passantes co-mo uma das referências da área. Na época, Brasília contava com poucos habitantes, a maioria moradores do Plano Piloto (ainda em fase de implantação) e algumas poucas cidades satélites (eram quatro: Taquatinga, Ceilândia, Sobradinho, Núcleo Bandeirantes e atualmente são vinte e duas). De fato, a burocracia do Estado que vinha se instalando em Brasília ainda era em pequeno número: os órgãos públicos e as embaixadas foram chegando devagar, alguns deles resistindo à mudança, enquanto outros permanecem até hoje na antiga capital, Rio de Janeiro.

As superquadras mais antigas, da Asa Sul (108, 308, 208, 408 e as vizinhas), além de algumas outras esporádicas, não conseguiam tirar o sentimento de um gran-de canteiro de obras que ainda hoje sur-preende o mais desprevenido visitante da cidade. Assim, na época, o Conic era de fato longe e de difícil acesso, não exercendo um papel de centro de diversões cotidianas e ro-tineiras tal qual havia imaginado o seu idea-lizador. Como iremos observar mais à fren-te, o edifício vai assumindo funções que se alternam com a consolidação do projeto da nova capital, em cada momento funcionando de forma integrada à vida da cidade.

Mesmo assim, apesar de nunca ter se transformado naquilo que foi planejado, logo após sua inauguração, o Conic atraiu embaixadas ainda em fase de implantação na cidade com suas sedes em construção. Essa presença atraía restaurantes e lojas mais sofi sticadas, quase que concretizando a proposta original para o edifício. A histó-ria mostra que, na medida em que as em-baixadas constroem suas sedes e transfere dali todas as atividades de rotina, o Conic experimenta rapidamente um processo de esvaziamento de suas funções e muda de-vagar o uso de suas instalações. Começam a aparecer clubes noturnos, bares pouco sofi sticados, dando início à degradação da área, na medida em que afasta a classe mé-dia do Plano e é esquecido pelas autorida-des locais.

Etnografi a do Conic7

Chegamos ao Conic no período da ma-nhã para dar uma explorada no prédio,

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caminhando pelas suas galerias comerciais procurando observar o ritmo de pessoas da área. Sábado, dia de nossa visita, de fato é um dia de menor movimento. O comércio funcionava, mas se sentia que o ritmo era um pouco mais lento, diferente dos demais dias da semana, de segunda às sextas-feiras, quando funcionam as empresas e os escritó-rios nos andares superiores. O desenho da área térrea, pela entrada da luz do sol no seu interior, aproxima-se daquele que se imagina para pequenas e antigas cidades: passagens, algumas amplas, outras estreitas, que dão em pequenas praças a céu aberto, pequenos becos, esquinas, portanto onde o cruzamen-to pode dar origem ao inesperado. O lugar, apesar de não apresentar lixos ou detritos espalhados pelas vias, não transmite aquele ar acético típico dos shoppings centers do Plano Piloto. Há projetos para transformar as pistas de pedestres mais parecidas àque-las dos shoppings, com a colocação de pisos em cerâmica ou granitos, talvez procurando atrair uma clientela de gosto mais dentro dos clichês típicos da classe média brasiliense.

Uma primeira sensação que vem quando se caminha por suas ruelas é a diversidade de comércio, com a presença marcante de algumas atividades em particular. Assim, en-trando pela ala norte do Conic, no nível da rua, são inúmeros os comércios de óculos, tanto para venda como para reparação. En-tre uma e outra, esporadicamente, encontra-se um bar ou um boteco sem muita sofi sti-cação, com suas mesas e cadeiras de fórmica ou plástico, sem uma harmonia aparente. Observa-se também um número importante de salões de cabeleireiros, manicuras ou de estética em geral. Estes eram os mais pro-curados naquela hora da manhã, entre nove e onze horas, com clientelas em todos eles.

Além dessas atividades comerciais, o térreo do Conic apresenta, ao longo de suas ruelas e caminhos, ares de um verdadeiro centro comercial, com atividades as mais variadas, tais como lojas de discos, roupas, sapatos, instrumentos musicais, fotos, foto-cópias, papelaria, etc. Cabe destaque a sim-plicidade das lojas, sem nenhuma preocupa-ção em parecerem sofi sticadas, numa clara indicação de que a clientela que para lá se dirige está procurando mercadorias cuja ne-cessidade vem antes de um status ou pres-tígio oferecido por comércios que trabalham com marcas ou grifes.

Chama a atenção, ainda, a existência de livrarias especializadas em ciências sociais, medicina e direito na ala sul do imóvel, além de um cinema com shows de strip tease e fi lmes pornográfi cos (funcionando a partir do meio dia indo até altas horas da noite) ao lado de centros religiosos de cultos evan-gélicos. As livrarias são de excelente quali-dade, com obras representativas de cada área acadêmica que trabalham. Visitei com mais cuida do a que oferece obras de ciências sociais e pude comprovar a excelente quali-dade do acervo disponível, além do elevado domínio dos últimos lançamentos pelo seu proprietário. Destaca-se, inclusive, a erudi-ção do mesmo, que não só está ciente dos últimos títulos no mercado como emite opi-niões de obras e autores com bastante co-nhecimento de causa.

A distribuição do comércio pela área do imóvel obedece à lógica de localização de atividades comerciais em sítios urbanos tradicionais. Assim, há uma concentração de atividades em áreas próximas segundo a na-tureza do serviço ou do produto ofertado: lojas de materiais óticos situam-se na entra-da norte do imóvel, as livrarias, na entrada

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sul, no centro espalham-se as roupas, discos, calçados, etc. num diversificado ambiente comercial que indica uma lógica locacional no prédio. Os restaurantes se concentram mais aos fundos, onde também podem ser encontrados alguns estabelecimentos espe-cializados, tais como instrumentos musicais, livrarias religiosas, sedes de partidos políti-cos e fotocopiadoras. A frente para a praça externa aparece como uma espécie de vitrine daquilo que está espalhado pelo interior do imóvel, ou seja, materiais fotográfi cos, óti-cas, roupas, livros e os bares um pouco mais sofi sticados. Essa calçada faz claramente o papel de uma rua tradicional de cidade, tal-vez uma das poucas do Plano Piloto.

O subsolo do edifício tem ar de espaço semiabandonado: muitas lojas fechadas, va-zias, algumas situadas em becos com pou-ca luminosidade, aliás, uma das particula-ridades de inúmeros edifícios da primeira fase da cidade. No geral, o subsolo trans-mite uma sensação de difícil acessibilidade e em outros momentos foi o lugar preferido por marginais. O mesmo pode ser deduzido quando se olha para a lateral sul do prédio ou a parte detrás do imóvel. Nesta há um estacionamento e serve também para car-gas e descargas de mercadorias. Essa parte detrás é, curiosamente, a de maior visibi-lidade para quem olha o Conic a partir do Setor Comercial Sul ou do Hotel Nacional, ou mesmo descendo o eixo monumental em direção à Esplanada dos Ministérios. Uma visibilidade esteticamente comprometedo-ra pois o bric-a-brac dos anúncios comer-ciais transmite a impressão de um imóvel sujo, sem regras ou administração. Claro que essa impressão é reforçada pela arqui-tetura clean do Setor Hoteleiro ao lado ou mesmo pela perspectiva da plataforma da

rodoviária, vista por quem desce o eixo em automóveis ou ônibus.

O comércio que se encontra no Conic atende a uma clientela absolutamente he-terogênea. Nota-se perfeitamente a convi-vência de indivíduos de diferentes estratos sociais, fato de rara constatação no Plano Piloto, onde vive uma classe média padroni-zada no estilo de ser, vestir e se comportar em áreas coletivas. O que se percebe é que ali os moradores das satélites se sentem fa-miliarizados com a disposição e padrão das lojas, e a possibilidade de se apropriarem do espaço sem a sensação de estarem invadindo um território privado. Essa sensação, visível nos shopping centers mais sofi sticados da ci-dade (Pátio Brasil, Brasília Shopping, Liberty Mall e em menor escala no próprio Conjun-to Nacional) fi ca completamente diluí do no Conic, que transmite uma imagem de área multisocial onde um indivíduo morador do Plano Piloto convive com aquele das satéli-tes, frequentando ambientes comuns.

A frequência de certos estabelecimentos do edifício é, no entanto, claramente, deter-minada pelo status social. Por exemplo, nos cabeleireiros, o que se percebe é uma clien-tela mais popular, o mesmo pode também ser observado em alguns bares, restaurantes ou igrejas ali existentes. Porém, nas lojas de tênis, materiais de esportes radicais (skates, rollers, discos, etc.), a clientela é mais he-terogênea, com indivíduos de aspecto típi-co dos frequentadores dos shoppings mais sofi sticados. Nestes, as rodas de jovens na porta ou alguns transeuntes que param nas vitrines indicam um território particular de “tribos” urbanas que se autoidentifi-cam por um padrão similar de consumo, de vestimenta, de gosto, enfi m, de estética no seu sentido mais amplo. É um território

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aparentemente democrático, onde o que une os que ali estão é o interesse comum por certos produtos e marcas vendidas nas lojas, defi nindo certos espaços do Conic pelas ca-racterísticas de seus frequentadores.

As livrarias especializadas e a loja de partituras musicais – “uma das mais completas do país”, segundo o seu proprie-tário – têm uma clientela exclusiva: um am-biente calmo, tranquilo como deve ser um lugar de leitura e de pesquisa em acervos. A loja de instrumentos e partituras musicais já apresenta uma clientela maior, mas o am-biente é peculiar, com pessoas conversando em voz baixa, vestidos de maneira tradicio-nal sem ostentação, com gestos contidos, traduzindo uma clientela com certo grau de sofi sticação, habituados talvez a frequentar ambientes similares em outros centros.

Circulando pelo Conic, pudemos obser-var a presença de pessoas notáveis de Bra-sília, entre profi ssionais liberais, professores universitários e indivíduos com seleto gosto musical procurando material original nas li-vrarias e nas lojas especializadas (disco e de instrumentos e partituras musicais). Para os boêmios, pessoas ligadas direta ou indireta-mente à atividade artística, funciona ali um teatro e uma escola de arte dramática. Este é, sem dúvida, um aspecto particular de um edifício urbano que foge aos padrões tradi-cionais dos edifícios da administração federal na Esplanada ou mesmo de shoppings cen-ters de Brasília, frequentados quase exclu-sivamente pela classe média. Se agregarmos ainda a possibilidade de convivência com diferentes perfi s de pessoas atraídas ainda pela diversidade de seu comércio, o Conic

não deixa de ter o seu charme garantido. Isso, sobretudo, porque os frequentadores do Conic fazem dali um lugar para estar e não apenas para passar, como é usual em shoppings.

Um acontecimento curioso foi a che-gada dos evangélicos na área. Inicialmente, houve uma proposta do Bispo Macedo para comprar o Cine Atlântida, uma das melhores salas de cinema da cidade. De fato, o cine-ma, como todo o conjunto, é tombado pelo IPHAN, mas o espaço estava fi cando ocioso justamente pela fuga dos espectadores. O governo do DF encaminhou então à Câmara Legislativa uma consulta sobre as possibili-dades de a Igreja Universal adquirir o Cine Atlântida numa área do Plano projetada pelo Lúcio Costa. O parecer da Câmara Legisla-tiva foi positivo, sob o argumento de que atividades religiosas podem ser entendidas como teatro, uma diversão do povo, não fe-rindo as recomendações do projeto original do Plano Piloto e do edifício. Mesmo se não concordássemos com a designação de arte às cerimônias religiosas, do ponto de vista formal, é diversão, é encontro, é interação. Não há, portanto, incompatibilidade com o projeto de Lúcio Costa.8 Por outro lado, a presença dos fiéis no Conic praticamente não interfere em nada na rotina do edifício: chegam, oram e partem sem olhar para o lado. É um público que não consome, não se diverte, não se envolvendo com a vida do imóvel. Mas acaba sendo a única razão para o Conic estar nas residências de milhões de brasileiros diariamente, pois as cerimônias que ali acontecem são televisionadas em ca-deia nacional.

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A invisibilidade do concreto

Compreender essa diversidade de tipos so-ciais que aí circulam pode ser um exercício interessante para analisar os efeitos do pro-jeto de Lúcio Costa para o Plano Piloto de Brasília. Saindo do Conic na pequena praça que se situa à sua frente, nos damos conta de que, enquanto morador do Plano Pilo-to, que passa em automóveis algumas vezes por semana vindo da Asa Norte em direção à Asa Sul, o prédio parece invisível. Curioso que, enquanto o Conjunto Nacional chama a atenção pelo movimento diurno ou pelos néons noturnos, o Conic não tem registro nenhum na nossa memória. Sinto-me in-capaz de descrevê-lo enquanto transeunte rotineiro do lugar. Tudo se passa como se olhássemos sem vê-lo. É um edifício que, situado na área mais privilegiada do dese-nho da Esplanada – com exceção é claro dos monumentos do Estado –, consegue ser completamente invisível ao olhar dos tran-seuntes, motorizados ou pedestres. Só mui-to recentemente foram instalados anúncios em néon que se destacam, sobretudo pa-ra quem vem do Congresso Nacional, pela Esplanada dos Ministérios em direção ao cruza mento dos eixos.

Podemos supor dois aspectos que po-dem estar na base de compreensão daque-la sensação de invisibilidade que o edifício transmite. Por um lado, um senso estético hegemônico no Plano que não consegue in-corporar nos seus parâmetros alguns prin-cípios de uso do espaço, sobretudo quan-do vem expresso por indivíduos ou grupos considerados “exteriores” ao que se toma

por bom-gosto. Certamente, o submun-do que o Conic representou passou a ser a ferida exposta da cultura asséptica que prevalece no Plano Piloto, que, fora esse edifício, talvez só possa ser encontrada em alguns bares tradicionais redutos da boemia da cidade. Mesmo naqueles onde uma van-guarda da cidade faz ponto, o Conic sempre foi visto como “muito mais maldito”, mui-to mais transgressor. E isso, mesmo hoje, quando, com a chegada das igrejas evangé-licas, o lugar passou de profano a sagrado, com requintes de bom comportamento por parte dos fi éis frequentadores dos templos aí localizados.

Por outro lado, é a própria localização do edifício, uma extensão do Setor Comer-cial Sul, que como tudo no Plano Piloto pa-rece tão longe, mesmo quando está “logo ali”. O Conic só se torna uma exceção quan-do olhado ou da Esplanada, ou do Tea tro Nacional, ou até mesmo do Conjunto Nacio-nal. Do contrário, ele é apenas uma prolon-gação do Setor Comercial Sul em direção à rodoviária, benefi ciando-se de uma quanti-dade enorme de pedestres, consumidores em potenciais, que fazem o trajeto cotidia-no de ida e volta ao Setor Comercial Sul nas suas rotinas de trabalho. A maioria habitan-te das cidades satélites, comerciantes, pro-fi ssionais liberais, bancários, camelôs, jorna-leiros, fl anelinhas, auxiliares de escritórios, office boys, enfim, uma multiplicidade de tipos humanos e atividades que terminam por serem os verdadeiros responsáveis para que o Plano Piloto adquira um ar de espaço urbano, que aliás causou admiração a Lúcio Costa quando visitou Brasília em fi ns dos anos 80.

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O imaginado e o acontecido com o Conic

É interessante ressaltar que, com todas as restrições que porventura se possa fazer ao edifício, ele é patrimônio da humanidade, tanto quanto os demais imóveis de porte que aparecem no projeto original da cidade. Nesse aspecto, talvez seja essa a única razão pela qual não tenha ainda sido demolido, co-mo de tempos em tempos se cogita.

Na proposta original de Lúcio Costa, es-te “Setor de Diversões Sul” estaria seleciona-do para abrigar livrarias, cafés, boates e ou-tras atividades que pudessem vir a preencher as necessidades de lazer da futura população do Plano. É interessante esse aspecto pois, embora se tenha tido a intenção de diversi-fi car os grupos sociais que viriam habitar a cidade planejada, os equipamentos de lazer propostos se dirigiam, em tese, para pa-drões sofi sticados de consumo, numa clara ambivalência daquilo que a proposta conti-nha. De fato, esse Setor de Diversões é ima-ginado como algo sofi sticado, para atender padrões também sofi sticados de consumo.

A tentativa de se reproduzir um padrão de uso do espaço próximo de um Quartier Latin, onde diferentes grupos de funcioná-rios, estudantes, comerciantes, profi ssionais liberais se encontram denota uma intenção de reproduzir algo sofi sticado que, fora a democracia dos espaços das praias urbanas do Rio de Janeiro, não corresponde à cultura de lazer da classe média urbana do país. De qualquer forma, a existência de um teatro, de uma escola de arte dramática, de livrarias de diferentes especialidades – científicas, religiosas, etc. – de cinemas (hoje cedendo lugar a templos evangélicos), dentre outras

modalidades de comércio, que poderia ser privilégio de consumidores mais exigentes, não foi sufi ciente para evitar que, devagar, o uso do imóvel fosse cada vez mais se po-pularizando. A esse discurso inicial que pla-neja uma área com um certo uso para um grupo com um certo padrão de exigência e de estética se impregnou a imagem estigma-tizada que o Conic apresenta hoje perante os moradores do Plano Piloto.

Essa imagem estigmatizada se apresen-ta em duas dimensões: por um lado, pelo estado de conservação do imóvel, abaixo dos padrões dos shoppings da cidade; por outro, pelo perfi l médio dos frequentadores do lu-gar, no geral. Curioso que o Setor Comer-cial Sul (SCS), ao lado, não provoca tanto mal-estar, mesmo porque, compondo-se de diferentes edifícios, o uso e o porte é muito superior ao do Conic e a sua apropriação é absolutamente absorvida pelos moradores do Distrito Federal. Certamente essa absor-ção se dá também pelo próprio desenho das ruas e dos imóveis que compõem o SCS que integra também aqueles espaços “invisíveis” do Plano Piloto, em torno do qual passamos quotidianamente ser vê-lo, ao contrário, portanto, do Conic este sim, situado num lugar de passagem obrigatório para quem circula no Plano Piloto, detentor de uma vi-sibilidade evidente.

O processo de degradação do edifício e arredores

Num primeiro momento, o fato de se ter um edifício estigmatizado no centro do

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Plano Piloto de Brasília, em si, não é uma questão original. Todas as grandes cidades do mundo apresentam áreas desvalorizadas, justamente em locais que, pela sua antigui-dade, já contam com infraestrutura urbana praticamente completa. É, aliás, essa a razão pela qual a onda de renovação urbana tem sido observada em praticamente todas as grandes cidades do mundo ocidental nestas últimas décadas. Paris, Nova York, Barcelo-na, São Paulo, Salvador, Recife, dentre ou-tras, passam por processos de gentrifi cação de seus espaços degradados, atraindo uma classe média endinheirada e intelectualizada que valoriza justamente a estética e o con-forto dos velhos imóveis de outros tempos. Apesar de tímida, a tentativa de renovação do Conic vai na mesma direção,

Entretanto, fi ca sempre uma questão inquietante: por que edifícios ainda recentes, situados em áreas privilegiadas da cidade, gozando de facilidade de acesso e de uma infraestrutura completa e adequada se dete-rioram com tanta rapidez? É verdade que o Plano Piloto tem alguns edifícios com carac-terísticas de degradação precoce, mas todos eles nunca antes ocupados efetivamente. São muitos deles projetos inacabados, que se transformam em ruínas antes mesmo de terem sido inaugurados.

Mas o Conic é diferente. Aqui é, de fato, um imóvel em pleno uso, com uma inserção específi ca na vida da cidade e que pode ser considerado como um dos mais eclé ticos imóveis do Plano Piloto, pela di-versidade de usos e de frequência. Se rom-permos com a imagem de shopping center como aquele lugar superprotegido, fechado, sem visibilidade externa, o Conic pode ser considerado um shopping center tal e qual os demais. Talvez até mesmo uma proposta

de centro comercial e de diversões que foge aos padrões similares oriundos dos modelos norte-americanos, além de sua originalidade arquitetônica, dada as características climá-ticas do Planalto.

Poderíamos também formular uma ou-tra questão: por que o Conic se deteriora, enquanto o Conjunto Nacional, de seu lado e com várias semelhanças de usos, guarda sua imagem? Mesmo se levarmos em conta que o público que frequenta o Conjunto Nacio-nal seja também diversifi cado por origem e renda (característica, aliás, inevitável, pois a localização no cruzamento dos eixos e sobre a rodoviária urbana induz a isso), o edifício tem muito dos princípios arquitetônicos pa-dronizados para shopping centers. A exceção são lojas com abertura para as calçadas exter-nas, mas que, por arranjos de fácil execução, voltaram-se para o interior do prédio. Fora isso, é um shopping com diversidade de usos e de frequência dos mais movimentados da cidade com condições semelhantes ao Conic. Não deixa de ser, portanto, uma questão que se coloca quando se pensa nos caminhos que seguiram um e outro edifício.

Uma das causas dessa diferença pode ser atribuída ao modelo de gestão adotado em ambos. Enquanto o Conjunto Nacional foi adquirido por um grande grupo que o transforma naquilo que ele é hoje, subme-tendo-o a uma única administração, o Conic é formado por 13 edifícios, logo, 13 con-domínios, com 1.700 proprietários, cada qual com sua parcela de poder na defi nição dos rumos do imóvel. Há cerca de dez anos atrás foi criada uma Prefeitura do conjunto para centralizar a administração do prédio, com a função prioritária de acabar com o estigma de área perigosa e para normatizar as áreas degradadas. A primeira função foi

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praticamente cumprida: cria-se uma delega-cia de polícia dentro do edifício e restringe-se o tráfi co de drogas e prostituição. Pode-mos, mesmo sem parecer enfáticos, consi-derar que hoje o Conic é uma das áreas mais seguras dentro do Plano Piloto.9 Entretan-to, o estigma permanece. As razões disso só poderiam ser encontradas na lógica de fi xação de pré-conceitos no imaginário dos habitantes da cidade que se enraízam e se espacializam. O espaço urbano é a concre-tização do imaginário social que se constrói no histórico cotidiano e o Conic permanece ainda como lugar pouco nobre. De qualquer forma, com a retirada de marginais que ali tinham suas bases, devagar o Conic vem se transformando através de remodelação de aspectos do projeto original,10 numa pro-cura de resgate de sua primeira proposta. Isso signifi ca que enquanto o Conic não for transformado esteticamente segundo pa-drões usuais dos shoppings vizinhos ele per-manecerá um “corpo estranho”, separado, mas funcionalmente necessário, limitado que está àquela racionalidade do Plano Piloto.

Por outro lado, é essa diferenciação no uso ante os demais imóveis da área que pa-rece constituir o ponto de apoio mais impor-tante do argumento segundo o qual não se pode considerar a área da Esplanada dos Mi-nistérios esteticamente unifi cada. Entretan-to, vale ressaltar ainda o potencial de área alternativa que o Conic contém. Se, por um lado, conforme destacado acima, a multipli-cidade de proprietários difi culta a gestão do imóvel nos moldes que ocorrem em outros shoppings centers, por outro, essa condição pode ser um trunfo que o diferencia das ex-periências similares no Plano. Sim, porque o Conic vem, devagar, se tornando uma área alternativa dentro do Plano Piloto, numa

clara diferenciação entre o organizado e o racional cartesiano que é o Projeto de Lúcio Costa; de fato, por se tratar de uma área anárquica, caótica, enfi m urbana, e graças a essa indefi nição, uma área com maior li-berdade de uso, o edifício começa a seduzir uma gama de artistas, arquitetos, poetas, cineastas, etc., atraídos justamente por es-ta “irracionalidade” e este ar de pretensa “marginalidade”. Na verdade, uma área que aparece quase que como um gueto dentro do Plano Piloto.

Um “gueto” ao inverso no Plano Piloto

A ideia de “gueto” urbano vem da obra de Wirth, quando trata das características so-cioculturais do bairro judeu de Chicago na primeira metade do século XX. Conforme o próprio Wirth destaca, o gueto foi, na ori-gem, um lugar de Veneza, um de seus bair-ros, onde se estabeleceu a primeira comuni-dade judaica. Transformou-se, ao longo do tempo, numa instituição reconhecida pelo costume e defi nida pela lei. Os dicionários da língua portuguesa defi nem gueto como “bairro em qualquer cidade, onde são con-fi nadas certas minorias por imposições eco-nômicas e/ou raciais”.

Tanto a defi nição de Wirth como aque-la do dicionário não poderiam se adequar à caracterização do Conic como um gueto. Um olhar mais apressado diria mesmo que é o oposto, dada a diversidade de tipos urbanos que o frequenta e que terminam por dar-lhe sua identidade. Entretanto, visto no contex-to do Plano Piloto, especialmente na Espla-nada dos Ministérios, no qual ele se insere,

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ele aparece justamente como uma exceção ao padrão estético e funcional da área. Nes-te sentido, e apenas neste, ele aparece como um espaço singular que abrange não apenas os tipos sociais, mas também a sua própria arquitetura interna que vai sendo criada e recriada sem a rigidez legal da Esplanada. Aí sim ele é singular; uma singularidade que se acentua dada a “distância” do Setor Co-mercial Sul. Aí ele pode ser visto como um gueto, um corpo estranho a uma classe mé-dia moradora do Plano Piloto, com a dife-renciação nos tipos sociais e no uso ante os demais imóveis da área.

Permanece sempre a pergunta do por-que numa área tão privilegiada o “povo bra-sileiro”11 tomou conta daquele espaço. Uma das possíveis explicações pode estar no gru-po que está por detrás da construção dos prédios do Conic. Brasília foi um eldorado para as construtoras quando da edifi cação da cidade nos anos 50. Além das grandes empresas nacionais que se responsabiliza-ram pelas obras dos edifícios públicos, pe-lo sistema viário e mesmo pelos blocos dos apartamentos funcionais, outras empresas regionais também fi zeram fortuna naquele momento.12 Talvez por razões de economia ou por valores culturais e estéticos, ou mes-mo porque a cidade que se construía naquele momento, não tinha ainda como exigência a ostentação de luxo e sofi sticação como atual-mente ocorre, o fato é que o visual do pré-dio é simples, sem ostentação. Fica evidente quando o olhamos que seus idealizadores não tiveram a estética como diretriz. Aliás, se olharmos os prédios por eles construídos no Plano Piloto, certamente, eles estariam classifi cados entre os que apresentam uma arquitetura sem estilo, numa caricatura de um modernismo caboclo: construções que

envelheceram e perderam o charme muito rapidamente.

A dinâmica social do edifício

Há um consenso entre os frequentadores usuais do Conic, mais particularmente entre os comerciantes que têm lojas no edifício, de que se trata de um dos lugares mais seguros do Plano Piloto, incluindo o Setor Comercial Sul e o próprio complexo Gilberto Salomão no Lago Sul área nobre da cidade. Esse argu-mento pode encontrar princípio de realidade, sobretudo se levarmos em conta a presença de um batalhão da polícia militar com uma delegacia dentro do próprio conjunto edifi ca-do: fala-se num efetivo de 500 homens que se revezam dia e noite na vigília do prédio e arredores, o que inviabiliza qualquer con-vívio com criminosos de qualquer estirpe. Claro que não estamos aqui considerando o trabalho das prostitutas que ali fazem ponto noturno, não causando nenhum transtorno maior aos frequentadores do lugar, inclusive os evangélicos e suas famílias. Entretanto, o Conic hoje tem uma imagem estigmatizada, principalmente junto à classe média tradicio-nal do Plano Piloto, resquício de um período em que a situação beirava o descontrole. Po-demos considerar três fases na vida do edifí-cio a partir de sua inauguração.

Numa primeira fase, o edifício atraía as embaixadas estrangeiras que tinham ali seus escritórios de representação, os pro-fi ssionais liberais, partidos políticos, etc. A localização privilegiada facilitava a preferên-cia, que se manteve enquanto as sedes ofi -ciais das representações diplomáticas foram

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sendo construídas. Naquele momento, o local era frequentado pela alta burocracia do Estado, tinha lojas e restaurantes condi-zentes com os frequentadores, um retrato que se aproximava muito daquele imagina-do por Lúcio Costa. Esse público com poder de compra estável e de elevado padrão cer-tamente atrai diferentes atividades para a área, particularmente aquela que se instala na segunda fase do edifício.

Nessa fase segunda, o local é invadi-do pela prostituição, pelo crime, tráfego de drogas, num período de decadência, respon-sável pela imagem que o edifício carrega até os dias atuais. Essa imagem se alastra com uma certa facilidade, talvez pela situação do imóvel dentro do Plano Piloto e a sen-sação de invisibilidade que ele transmite aos passantes pelas suas calçadas e ruas que o circundam. É essa ambivalente situação es-pacial – visibilidade e invisibilidade – aliada a um desenho interno que, tentando repro-duzir ruas e becos de sítios urbanos tradi-cionais, termina por ser funcional às trans-gressões que ali se desenrolavam. Se consi-derarmos que a sociedade não deixa de ser um mecanismo de introjeção de valores e comportamentos, muitos deles restringindo a própria natureza humana, podemos tam-bém assumir que espaços de transgressão sempre existiram nas cidades na história. A funcionalidade da prostituição – “a mais an-tiga profi ssão do mundo” –, as drogas, que funcionam como mecanismos de escape, ou de vícios, enfi m uma série de práticas que são reprimidas socialmente, mas que a so-ciedade arruma sempre uma forma de per-mitir a sua existência é regra geral em áreas de elevada densidade populacional. Claro que os espaços urbanos para práticas trans-gressoras nunca são definidos de forma

legal ou tranquila, mesmo se em passado recente era comum nas cidades brasileiras reservar uma de suas áreas onde se concen-travam as prostitutas (a zona); hoje essas zonas estão praticamente desaparecidas. É de se supor que nos anos sessenta e setenta a cidade tinha um mercado razoável para o sexo, na medida em que as pessoas chega-vam, desenraizadas, descoladas de vínculos mais estreitos e, sobretudo, com salários fi -xos que permitiam alguns “excessos”. Uma parcela da burocracia vai encontrar na ofer-ta das prostitutas do Conic uma facilidade enorme para se satisfazer e, em sendo um negócio, pode-se argumentar que há uma racionalidade econômica na opção por aque-le território.13

Atualmente, podemos considerar como sendo a terceira fase do Conic. Cria-se a sua prefeitura atendendo demanda dos comer-ciantes e profissionais que ali trabalham, instala-se uma delegacia, há uma debanda-da do crime e do tráfego. Essa terceira fase pode ser considerada a “onda política” com a presença da sede de diferentes partidos e, portanto, frequentado rotineiramente pelos dirigentes e militantes. Alguns estabeleci-mentos comerciais (livrarias, teatro, lojas especializadas, alguns bares) atraem profes-sores universitários, aposentados (no Plano Piloto é importante a presença de aposenta-dos), profi ssionais liberais que, ao lado dos candangos das satélites, fazem do lugar um ponto de referência, de encontro. De forma que, hoje, entre o estigma de lugar decaden-te e a procura de um charme de vida urbana que raramente se encontra no Plano Piloto, o Conic vive sua nova fase.

Poderia estar aí um dos trunfos da rea -bilitação ou da inserção do Conic no Plano Piloto nos moldes que foi pensado por

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Lúcio Costa. Para os moradores da cidade, uma das maiores carências são as áreas de convívio coletivo que escape aos jardins e áreas verdes. Ou seja, aquilo que falta nas grandes cidades brasileiras, Brasília tem em quantidade, porém não dispõe, por exem-plo, de “botecos” um velho hábito urbano do país, que foi completamente esquecido, talvez pela trivialidade do fato. Áreas onde seja possível tomar um cafezinho, utilizar um banheiro, sentar numa mesa para um aperitivo, uma conversa. Lazer em Brasília são bares e restaurantes, a maioria deles formais o sufi ciente para exigir um certo ri-tual de frequência. Difi cilmente são lugares onde se vai espontaneamente. Pois o Conic é justamente isso. Com uma localização pri-vilegiada, pensado justamente para ter es-tas características de uso, sem a assepsia de shoppings com seus insistentes apelos de consumo. Aqui se vê que a parcela criativa do urbanista foi pensada, o que faltou foi a criatividade das pessoas que para cá vieram, obviamente com as exceções de praxe.

Espaço de exceção, espaço de outras sociabilidades

Toda a discussão sobre o estigma que carac-teriza o Conic é no fundo um olhar de fora sobre o edifício. Há na cidade indivíduos que frequentam rotineiramente o lugar, fazem dali um ponto de encontro entre amigos, de conversas, compras, enfi m, fazem dele um lugar urbano de multiusos. Para a rotina de Brasília, onde o ato de andar à pé só se faz nos fi ns de semana, quando se caminha pelas superquadras ou pelos parques, fi cou

uma sensação curiosa e familiar ao mesmo tempo. De fato, a cidade tem gente, tem um movimento. No fundo, é ali que a Esplanada é mais cidade.

Na verdade, podemos nos perguntar se seria o caso de intervir para alterar ou ordenar o espaço coletivo do edifício? Cla-ro que se olharmos pelo lado da arquitetura não oficial do Plano Piloto, especialmente da Esplanada, o Conic é sem dúvida o maior monumento histórico da cidade. O fato de os arquitetos da nova capital não terem tido nenhuma preocupação com populações fo-ra do núcleo do poder, do governo, fez do Conic o contraponto entre o ofi cial e o não ofi cial na estética do Plano Piloto: a antíte-se daquilo que é a regra geral para o Plano Piloto. Talvez seja o único edifício de uma área tombada pela Unesco que, de tempos em tempos, alguém propõe demolir. Cau-sam pouca reação propostas dessa natureza, mas servem para reunir um grupo de inte-lectuais, arquitetos, artistas, comerciantes e frequentadores do Conic num grupo de refl exão para traçar o futuro do edifício e protegê-lo das ameaças de destruição. Tudo está indicando que intervenções seriam sim-plesmente para consolidar o papel atual do Conic construído em décadas de existência que se confunde com a própria história da cidade. Será nesse confronto entre o “ódio” que o Conic provoca em uns e o “amor” que desperta em outros que o futuro do edifício está sendo tratado.

Os clássicos da sociologia, Simmel à frente, trataram a metrópole como um “fato civilizatório” na medida em que ela simboli-zava a forma geral da modernidade. Nisbet (1984, p. 381) argumenta que a metrópo-le joga no pensamento de Simmel o mesmo papel que a democracia para Tocqueville, o

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capitalismo para Marx e a burocracia para Weber. Foi ele o primeiro que fez da gran-de cidade o lugar por excelência no qual se exprime a lógica social da sua época. Com os avanços do capitalismo e com a globali-zação, podemos afi rmar que essa é uma as-sertiva cada vez mais evidente. Não se pode perder de foco o fato que a heterogeneidade da metrópole termina encontrando nela um ambiente adequado à existência de grupos e tipos urbanos singulares e com menores possibilidades de controle. Garantindo a uni-dade na diversidade, a metrópole termina por se constituir como a síntese civilizatória dos tempos modernos, ambiente propício ao aparecimento de formas originais de socia-lização. Mais uma vez temos que recorrer a Simmel para recuperar o seu argumento de generalização da moeda na metrópole, fenôme no que permite o aparecimento de tipos originais no ambiente da grande cida-de (o indivíduo blasé, o estrangeiro, o re-servado), resultando na diferenciação social típica da modernidade. É interessante essa tipologia simmeliana, pois não se trata aqui de classifi car os indivíduos que frequentam o Conic como excluídos ou algo parecido. A di-versidade de tipos humanos e de atividades econômicas poderia dar margens a tensões no convívio diário. Mas tudo está indicando que há códigos informais de convívio e as pessoas terminam por não interferir no es-paço uma das outras. Certamente, a imagem de uma área caótica que se sente quando ali estamos tem muito da programação visual do comércio ali existente e do contraste com o desenho racional da maioria dos edifícios do Plano Piloto.

Assim, não se trata de um recorte eco-nômico simplesmente, mas sim de formas de sociabilidade distintas. O que procuramos

mostrar para o caso do Conic é que socia-bilidades heterogêneas induzem ao apare-cimento de ambientes (estéticas) também heterogêneos, mesmo em espaços pensados para serem homogêneos, como é o Plano Piloto. A área escolhida pode ser lida então como um espaço de possibilidades de novas modalidades de uso da cidade por indivíduos e grupos que não estavam contemplados no seu projeto original, apontando fi ssuras no seu espaço físico.14 Há aqui estreita relação entre ambiente construído e seus usos: fre-quentar o Conic é elemento identifi catório do lugar social do indivíduo, exigindo na sua análise elementos científi cos e metodológi-cos que dialoguem com um certo número de disciplinas, tais como a arquitetura, a eco-nomia, o urbanismo em torno de questões sobre a racionalização, a concentração, a di-visão do trabalho.

Já é consensual entre os estudiosos do urbanismo modernista no Brasil da segun-da metade do século XX que a cidade era a síntese de um projeto de sociedade. Brasília, sob essa perspectiva, aparece como a unida-de central (a city) física e social, cujo espaço construído é denso, com funções econômi-cas (terciárias) vitais. Ela se liga às cidades satélites, relativamente autônomas, mas se mantém como sede das atividades econômi-cas, do emprego formal, com uma autono-mia interna. Essa centralidade física e social polariza os seus arredores e deve, portanto, garantir espaços de sociabilidades que esca-pam àquela hegemônica oriunda da cultura burocrática de uma cidade-Estado. Na verda-de, ela cumpre assim seu papel de metrópo-le, na medida em que garante a existência de tipos urbanos peculiares da grande cidade: em outras palavras, o “estrangeiro” tem seu território de existência garantido no Conic.

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Notas

(1) Ver, por exemplo, Georg Simmel, Max Weber e Pierre Bourdieu, para fi car apenas entre os consi-derados referências em nosso campo de trabalho. Isso para não falar no geógrafo, Prof. Milton Santos, que insiste de forma recorrente em sua obra sobre a importância do espaço na constru-ção das relações sociais.

(2) O que, aliás, foi a perspecti va dos intelectuais da Escola de Chicago na primeira metade do século XX que tratavam a cidade e suas áreas como “zonas morais”. Park (1976), Chapoulie (2001).

(3) Com a evolução da tecnologia e a expansão do setor terciário da economia onde hoje o lugar de trabalho é cada vez menos dependente da localização da unidade produti va e onde o trabalho em casa ganha cada vez mais importância, não se pode negar que o debate sobre os argumen-tos dos modernistas ganham novos elementos.

(4) É em razão disso que ele introduz a noção de “ambiente” e faz das variações do ambiente um fator decisivo para compreender por que a solidariedade mecânica se torna ultrapassada e deve ser substi tuída pela solidariedade orgânica. A esse respeito, ver Jean Remy (1995).

(5) A ideia de matriz uti lizada pelo autor é “a organização de paradigmas de várias disciplinas que formam uma predisposição para a apreensão, compreensão e construção do mundo” (Duarte, 2002, p. 23).

(6) Não iremos aqui reproduzir essa discussão, de resto inúti l, pois a cidade de Brasília se implantou e se consolidou com todas as limitações que porventura possa se constatar no projeto apresentado.

(7) Na elaboração desse tópico, ti ve a companhia de Naraina Kujimian, então bolsista de PIBIC. Em certa medida, procuramos seguir as orientações de Howard Becker (2008) sobre pesquisa, fa-zendo uma leitura minuciosa do coti diano do edifí cio para situar o leitor no contexto do objeto analisado.

(8) Nas palavras de um de nossos entrevistados: “É polêmico, mas se respeitarmos a liberdade de culto e de crença, a Igreja Universal é hoje o teatro do absurdo mais importante do mundo”.

(9) Após o período de auge, quando de sua inauguração, o Conic sofre um processo de decadência que transforma o lugar num ponto de tráfi co de drogas, prosti tuição e mendicância. A Prefeitu-ra trouxe então o Batalhão da Polícia Militar, afugentando os indesejáveis. Hoje não se fala mais em quadrilhas de trafi cantes agindo no Conic e a área é uma das mais seguras do Plano Piloto.

(10) Liderados principalmente pela arquiteta Flavia Portella, que redesenha o projeto do Conic e pro-põe várias intervenções no seu desenho fí sico.

(11) Expressão de Lúcio Costa referindo-se à população que tomou conta da rodoviária e arredores de Brasília. Ver Costa (1987).

(12) Na construção do Conic estão três dos grandes empresários pioneiros construtores de Brasília: Venâncio, Baracá e o Karim Narrote.

Brasilmar Ferreira NunesDoutor em Sociologia pela Université de Picardie – França. Professor Ttitular de Sociologia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq (Rio de Janeiro, Brasil)[email protected]

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(13) Argumentos semelhantes podem ser aplicados para o tráfego de drogas, que se benefi cia do mercado consumidor do Plano Piloto.

(14) É interessante isso, pois hoje já se pode constatar que essas “fi ssuras” no projeto original estão ampliando seus territórios dentro da área, sobretudo na Avenida W3, onde a ocupação dos imó-veis por pessoas e ati vidades que fogem ao padrão hegemônico no Plano está cada vez mais evidente, num claro sinal de que a cidade é um produto coleti vo em movimento. Ver Luis Felipe Castelo (2007).

Referências

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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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Por um novo enfoque teóricona pesquisa sobre habitação

Ermínia Maricato

ResumoO texto constata que a maior parte das pesqui-sas sobre habitação se dão no contexto da esfe-ra do consumo, dimensionando-o e qualifi can-do-o. O Estado e as políticas públicas ocupam um papel central no conjunto desses trabalhos. Embora eles forneçam um quadro importante sobre a carência de moradias, a segregação ter-ritorial, a exclusão social e as políticas institu-cionais ignoram, frequentemente, a centralida-de da produção na determinação do ambiente construído. Em especial, chamam a atenção a produção acadêmica sobre arquitetura e urba-nismo que ignora a construção e a produção sobre tecnologia que ignora o trabalho. Essas características estão nas raízes da formação da sociedade brasileira – desprezo pelo trabalho, distanciamento entre discurso e prática. É pre-ciso reorientar o enfoque teórico da pesquisa sobre habitação.

Palavras-chave: habitação; teoria; constru-ção; trabalho.

AbstractThis paper shows that most studies on housing are carried out in the context of consumption, by dimensioning and qualifying it. The State and public policies play a central role in these studies. Although they provide an important picture of the lack of housing, territorial segregation, social exclusion, and institutional policies, they often ignore the central role played by production in defi ning the constructed environment. In particular, attention is drawn to the academic production on architecture and urbanism that ignores construction and the technology production that ignores labor. These features are at the very roots of Brazilian society – disdain for work, and a gap between discourse and practice. It is imperative to change the theoretical framework of housing research.

Keywords: housing; theory; construction; work.

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Teoria aos pedaços: a ausência das determinações gerais1

No início deste trabalho, queremos chamar a atenção para uma questão de ordem teó-rico-metodológica: o estreitamento do cam-po das pesquisas e da produção acadêmica sobre o tema da habitação no Brasil, domi-nadas principalmente pelas abordagens do consumo – défi cit, carência, má qualidade, tipologia, formas de ocupação do domicílio e do espaço – e da política habitacional prati-cada pelo Estado.

Deve-se reconhecer que tal produção intelectual contribuiu para o conhecimen-to da situação de precariedade habitacional existente e dos desvios nas políticas públi-cas, que se revelaram incapazes de sanar a carência das camadas mais pobres da popu-lação. No entanto, ela não contribuiu para desvendar uma leitura mais ampla sobre a produção da habitação ou mais propriamen-te da estrutura de provisão de habitação, dos interesses e dos agentes envolvidos.2 A relação de estudos e autores utilizados para representar essas tendências dominantes na produção técnica e acadêmica não pretende ser exaustiva mas apontar alguns pioneiros nos temas abordados.3 Não se pretende ainda fazer uma crítica a essa produção in-telectual que compõe os autores citados na relação inicial (ao contrário, reconhecemos a importância desses estudos), mas sim desta-car a predominância da esfera do consumo e do Estado como temas dessa produção acadêmica e a ausência de abordagens his-tórico-estruturais que permitam reconhecer a permanência ou a inovação nas determina-ções dessa parcela do ambiente construído.

De fato, o foco nas carências habita-cionais e nos défi cits de moradia tem sido a forma predominante dos órgãos públicos tratarem a questão da habitação, por meio de consultores contratados, como um pro-blema quantitativo e mais recentemente, nos anos 90, também qualitativo.4 Os levanta-mentos promovidos pela Finep, em "Inven-tário da ação governamental no campo da habitação popular”, fi nalizado em 1979, e a posterior publicação de Habitação popular: inventário da ação governamental (Finep, 1985), constituem um importante cadastro de documentos e bibliografi a que compro-vam o que afi rmamos aqui.

Carência habitacional, periferização, segregação urbana são temas recorrentes que têm sido bem desenvolvidos, tanto nas análises dos planos urbanísticos que têm iní-cio com as “reformas urbanas” implemen-tadas no começo do século XX quanto nas análises da moradia e condições de vida da classe trabalhadora no Brasil industrial, in-cluindo ainda a abordagem das dramáticas e generalizadas condições de periferização, “guetização”, ilegalidade e favelização carac-terísticos da chamada era da globalização.

As reformas urbanas que pretenderam dar às cidades brasileiras, na República re-cém-proclamada, a imagem de progresso e modernidade visavam afastar o fantasma da presença da escravidão recente, deslocando populações pobres de áreas centrais, e re-cuperar espaços para o mercado imobiliário. Estudos com esse sentido foram desenvol-vidos, dentre outros autores, por Sevcenko (1984), Andrade (1992), Leme e outros (1999).

Os cortiços, como forma prioritária (e privada) de moradia da massa trabalha-do ra pobre no início do século XX, foram

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analisados por PMSP-Sebes (1975), Vaz (1986), Villaça (1986 e 1999), Ribeiro (1991), Reis Filho (1994), Bonduki (1994), Piccini (1999), Kohara e Caricari (2006), entre outros.

Importantes estudos sobre a reprodu-ção da classe operária ou proletariado ur-bano que incluíram a formação da periferia com a predominância do transporte sobre rodas, a autoconstrução, os loteamentos ile-gais, a partir dos anos 1930 e 1940, foram feitos por Sampaio (1972), Ferro (1972), Lemos e Sampaio (1976), Maricato (1976 e 1979), Bonduki e Rolnik (1979), Vallada-res (1980), Santos (1980), Bogus (1981), Mautner (1991) e Souza (1999). A terra tem sido reconhecida como elemento central do processo de exclusão e segregação urba-na, mas também tem sido frequentemente abordada segundo o enfoque da carência e fortemente relacionada à legislação.5

As favelas, uma forma variante daquela referida acima, mereceram atenção especial dos pesquisadores cujas cidades convivem com o fenômeno há mais tempo. Talvez o pioneiro e paradigmático estudo sobre fave-la seja o clássico Sobrados e mocambos, de Gilberto Freyre; no entanto, a produção de autores cariocas destaca-se pela abundância. Desde meados do século XX, os estudiosos da cidade do Rio de Janeiro dedicam im-portantes estudos às favelas cariocas, co-mo mostra Lícia do Prado Valladares em seu livro Repensando a habitação no Brasil (Valladares, 1982). Ver ainda a síntese feita por Suzana Pasternak em sua tese Favelas e cortiços no Brasil: 20 anos de pesquisas e políticas (Pasternak, 1993).

Estudos mais recentes abordam novas formas de segregação socioespacial da po-pulação. Eles se referem tanto aos crescen-

tes núcleos de pobreza nas áreas centrais abandonadas pelo capital imobiliário, e que são objeto de planos ofi ciais de “renovação”, “reforma” ou “reabilitação” (ver Silva, 2000 e 2007) quanto à heterogeneidade trazida à periferia ampliada por uma nova forma de ocupação do solo, pelos condomínios fecha-dos de alta renda (ver, por exemplo, Caldei-ra, 2000; Marques e Torres, 2005).

O impacto da reestruturação produtiva capitalista e das políticas neoliberais é reco-nhecido como determinante desse espraia-mento que “dilui” a cidade ou a metrópole na região, mas esse impacto pode ser visto também como determinante do aumento da precariedade habitacional e urbana pelos au-tores Observatório das Metrópoles (2005) e Davis (2006).

As análises das políticas públicas de habitação engendradas pelo Estado per-mitiram o desvendamento do seu caráter de agente ativo do processo de segregação territorial, estruturação e consolidação do mercado imobiliário privado, aprofunda-mento da concentração da renda e, por-tanto, da desigualdade social. Tais análises foram desenvolvidas por Bollafi (1975), Serran (1976), Azevedo e Andrade (1982), Maricato (1987), Arretche (1994), Draibe (1994), entre outros. Na extensa produção de livros, documentos e relatórios contrata-dos pelo Ministério das Cidades, a partir de sua criação em 2003, é possível encontrar dados atualizados sobre todos esses assun-tos, incluindo o tema recém-adotado na es-fera governamental federal: regularização fundiária de habitação de interesse social.

Apesar do número signifi cativo de es-tudos críticos sobre o assunto, é notável o desconhecimento do quadro geral da produ-ção e distribuição da habitação, que estamos

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aqui denominando provisão da habitação, formado pelas diversas tipologias resultan-tes de diferentes arranjos entre: o fi nancia-mento, a construção, a promoção, a comer-cialização, a participação da força de traba-lho e o lugar ocupado pela propriedade da terra no contexto da regulação instituída (e praticada de forma discriminatória no Brasil e em toda América Latina) pela legislação de uso e ocupação do solo. O arranjo resultante do encontro desses agentes envolve, eviden-temente, muitos conflitos. Como conflito básico, podemos citar o interesse daqueles que precisam de uma moradia para viver e aqueles que lucram com sua provisão. Mas outros confl itos internos e externos a esse arranjo ou a esses agentes podem aparecer. Por exemplo: confl itos entre promotores e construtores, confl itos entre a força de tra-balho e os construtores, confl itos entre to-dos os agentes que compõem o capital imo-biliário e a política macroeconômica. Enfi m, estamos tratando de antagonismos que po-dem acontecer ou não, dependendo de uma dada correlação de forças defi nida histori-camente e dos arranjos que podem ocorrer entre esses agentes (Harvey,1982).6

Num dos poucos momentos em que constatamos a mobilização dos trabalhado-res da construção civil contra os baixos sa-lários e as péssimas condições de trabalho, em diversas capitais brasileiras, o que acon-teceu no fi nal dos anos 70 e início dos 80 (quando a construção civil estava a todo o vapor), foi possível acompanhar as mudan-ças signifi cativas na organização do trabalho no canteiro de obras, além do atendimento das reivindicações (Valladares, 1982). Infe-lizmente, esse movimento de mudança não se sustentou devido ao drástico recuo nos investimentos públicos a partir de 1983.

Iniciava-se um longo período de ajuste fi scal e corte nos gastos públicos com aumento do desemprego (Maricato, 1988).

Toda família precisa de uma moradia. Todos moram em algum lugar, ainda que seja numa mansão em condomínio fechado ou num barraco sob um viaduto. O estoque de moradias é resultante dos diferentes ar-ranjos existentes no interior do conjunto formado pelo mercado privado, pela pro-moção pública e pela promoção informal (o que inclui ainda arranjos mistos) em dife-rentes situações históricas de uma dada so-ciedade. A estrutura de provisão de mora-dias se refere à construção, manutenção e distribuição de um estoque, que se forma a partir de diversas formas de provisão de ha-bitação: promoção privada de casas, aparta-mentos ou loteamentos, promoção pública de casas ou apartamentos, autoconstrução no lote irregular ou na favela, autopromo-ção da casa unifamiliar de classe média ou média alta, loteamento irregular, entre ou-tros. Apenas essa abordagem ampla, que toma a moradia como um produto social e histórico, pode explicar o desaparecimento de certas formas de provisão em algumas cidades. É o caso das vilas populares ou carreiras de pequenos sobrados resultantes da ação de um pequeno promotor, nas pri-meiras décadas do século XX, nas cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, que desa-pareceriam na segunda metade do século (Ribeiro, 1996).

Produtos semelhantes podem resultar de diferentes formas de provisão da mora-dia. Uma casa de alvenaria em uma favela pode parecer idêntica, visualmente, a uma casa de alvenaria em um loteamento regular, mas a participação do componente terra é, em geral, muito diferente: num caso, a terra

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é invadida (embora a partir dessa primeira ação ela possa ser vendida informalmente) e no outro ela é comprada, sendo objeto de um contrato de compra e venda registrado em cartório. A condição jurídica é diferente, embora possa apresentar muitas variantes, dependendo da condição de propriedade da terra que é vendida ou invadida.

As diversas formas de provisão da moradia (o que inclui a moradia de alu-guel, obviamente) constituem um conjunto contínuo e interdependente: se o mercado é muito restrito às camadas de mais altas rendas, como acontece no Brasil, e o inves-timento público é escasso, a produção in-formal fatalmente se amplia, pois, como já foi destacado, todos moram em algum lu-gar. A abordagem da promoção pública ou das políticas públicas, isoladamente, como é tradição em nosso meio acadêmico, impe-de a compreensão sobre sua inserção nessa estrutura geral de provisão das moradias, prejudicando o entendimento da realidade e a formulação de propostas. Não há como responder às demandas de moradia da po-pulação de baixa renda (ainda que hipoteti-camente exista interesse governamental) se o mercado não responde às necessidades da classe média.7 No Brasil, a classe média não tem sido atendida pelo mercado privado, especialmente a partir do recuo dos inves-timentos do Sistema Financeiro da Habita-ção, a partir de 1980. A consequência da falta de resposta à necessidade de moradia da classe média, a partir dessa data, é o acirramento da disputa com as camadas de baixa renda pelo acesso aos subsídios públi-cos. Considerando-se que esses subsídios ti-veram uma queda drástica, tornou-se lugar comum encontrar domicílios com famílias de classe média em favelas.

Tecnologia que ignora o trabalho, arquitetura e urbanismo que ignoram a construção

A precariedade das pesquisas na área de ha-bitação não se esgota nessa ausência de uma visão de conjunto; na medida em que igno-ram a provisão (produção e distribuição), ainda que de uma forma específi ca de mora-dia, incorrem também em equívocos. Vamos lembrar algumas ausências no escopo de trabalhos que terminam por comprometer sua cientifi cidade.

O estudo da técnica e da tecnologia da construção frequentemente ignora a orga-nização e o processo de trabalho, como se estes fossem irrelevantes para o nível de produtividade. Nos estudos sobre tecnologia da construção ignora-se, frequentemente, o papel da terra e da renda fundiária na deter-minação do atraso na construção civil.

Faz parte do senso comum a ideia mis-tifi cada, também presente em grande parte da produção acadêmica, de que materiais de construção “milagrosos” tornarão a constru-ção de casas muito mais barata e efi ciente. Nilton Vargas tem desenvolvido experimen-tos paradigmáticos em canteiro de obras desde início dos anos 80, reafirmando a centralidade do processo de trabalho e da condição urbana ou mais propriamente da renda fundiária e do acesso a um pedaço de terra urbanizada, para defi nir os patamares da produtividade na construção.8 É de 1983 a primeira formulação dessas ideias publica-das em livro (Vargas, 1983). Porém, como se constata em grande parte dos estudos financiados pela Finep sobre tecnologia de construção, esse autor permanece bastante

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ignorado. As forças produtivas não incluem apenas máquinas, equipamentos, novas fon-tes de energia, novos materiais, novos pro-cessos químicos ou eletrônicos, mas também a organização do trabalho. Apenas para dar um exemplo, o taylorismo promoveu um avanço signifi cativo na produtividade indus-trial americana a partir da reorganização do processo de trabalho baseado no estudo de “tempos e movimentos”. A especialização que permitiu avanços significativos na in-dústria manufatureira se baseou na divisão do trabalho. Lembremos que boa parte dos canteiros de obras ignoram, no Brasil e no princípio do século XXI, grande parte dessas conquistas que datam do início do século XX.

A tradição marxista explica como a produção material da vida parece ser orien-tada – por meio da ideologia – pela esfera do consumo, das necessidades, das ideias. Um universo de símbolos cumpre a função de mascarar as relações sociais baseadas na exploração e apropriação do excedente de riqueza criado na produção. Mas, no Brasil, é preciso reconhecer algumas especifi cida-des que tornam essa constatação ainda mais radical. A tradição escravista que marca a história do país, e de profundo desrespeito com o trabalho manual, também explica por que o ensino e as pesquisas na área de en-genharia abstraem as relações de trabalho dos estudos sobre tecnologia. Há muito de ideológico e pouco de científi co em boa par-te dessa produção acadêmica marcada pelo preconceito. Não raramente, o canteiro de obras, com todos os desencontros e as ten-sões decorrentes das relações de trabalho (cujo paradigma está na parceria mestre de obras e engenheiro), é pouco conhecido por pesquisadores que escrevem sobre tecnolo-gia de construção habitacional.

Além disso, os estudos que têm como objeto o urbano, a habitação, o financia-mento e a terra, raramente incorporam o tema da construção em seu escopo. É muito comum, nos estudos sobre o urbano, igno-rar-se a construção, abstraindo-se assim as relações entre capital (fixo e variável) e o processo de trabalho. A desconsideração da construção como eixo da realização da arqui-tetura e da cidade foi criticada por diversos estudiosos no Projeto de Pesquisa “A crise na produção da habitação popular – tendências de rearticulação do processo produtivo”.9 Essa também foi a polêmica que alimentou a interlocução de Sérgio Ferro10 em relação ao texto de Vilanova Artigas, “O Desenho”.11 Portanto, a crítica materialista, de inspiração marxista, à abordagem da arquitetura como produto de ideias ou do desenho não é nova entre nós. Embora ambos os textos sejam bastante festejados, a centralidade da polê-mica é bastante ignorada pela produção aca-dêmica e profi ssional. O papel ideológico do projeto como ferramenta para a exploração e a dominação desse modo de produção, e sua capacidade de encobrir essas relações de classe são destacados por Ferro, que vai ao canteiro de obras para encontrar a lógica do processo – do produto e de sua distribuição – e também, portanto, do projeto ou desenho.

Outro equívoco digno de fi gurar nes-sa lista, pela constância com que é repeti-do, refere-se aos estudos ou à prática do planejamento urbano que tem a pretensão de controlar as cidades pela regulação le-gal, ignorando as determinações presentes na produção social ou material do espaço e na disputa pelos lucros, juros, rendas e salários que ela engendra. A prática do ur-banismo é profundamente ideológica – e vale dizer, pouco científi ca e mistifi cadora

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da realidade – e frequentemente ignora os confl itos presentes na produção da cidade, tomando-a como um palco ou arena que apenas dá suporte às relações sociais, ainda que elas possam ser tomadas como confl i-tuosas (Arantes et al., 2000).

A dispersão do conhecimento já produ-zido no Brasil, constantemente suplantado por supervalorizadas referências estrangei-ras, já foi constatada por conhecidos estu-diosos da sociedade brasileira, como Celso Furtado, Florestan Fernandes e Roberto Schwarz, entre outros. Somos estrangeiros em nossa própria pátria e frequentemente nos vemos diante de uma história virtual. Estamos sempre recomeçando.

Para resumir, é rea lmente sur-preen den te que um setor que absorve historicamente 6% da PEA e que é respon-sável por 13,5% do PIB nacional (relativo ao setor de construbusiness, sendo 8% da construção propriamente dita) esteja au-sente da maior parte dos trabalhos sobre o urbano e a habitação. Em particular, é notável a ausência do tema do trabalho, nos estudos sobre tecnologia, como já foi mencionado.12

O lugar da construção nas pesquisas sobre moradia

A ideia de que novos materiais ou novos mé-todos construtivos possam resolver ou cons-tituir a principal alavanca para a solução de problemas habitacionais é dominante há dé-cadas, tanto nas instituições promotoras de políticas públicas quanto nas pesquisas so-bre a construção civil ligada à produção de moradias. Essa ideia é dominante também

na mídia, que de tempos em tempos apre-senta experiências de casas construídas com materiais reciclados, como garrafas de plástico, ou renováveis, como bambu, que prometem um barateamento definitivo e sustentabilidade.

Não se pretende negar a importância das pesquisas com novos materiais ou novos usos para velhos materiais, especialmente em se tratando da reutilização de rejeitos industriais, fundamental para diminuir seu descarte e os impactos sobre o meio am-biente. A Antac – Associação Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído – tem se detido nesse tema. O que se critica aqui, entretanto, é a ignorância dos demais fato-res que são determinantes na produção da carência habitacional.

Por diversas vezes o Banco Nacional de Habitação (BNH) promoveu a construção de canteiros de obras com protótipos de edi-fícios destinados à habitação apresentando novos materiais de construção, novas tecno-logias, novos equipamentos ou novas máqui-nas. O primeiro grande seminário que apre-sentou uma extensa mostra de protótipos se deu em Salvador, em 1978, que levou o título de “Simpósio sobre o Barateamento da Construção Habitacional”. O Brasil esta-va no momento de maior investimento em habitação de toda sua história e era notável a pressão das empresas de construção pesa-da e das empresas estrangeiras, detentoras de patentes sobre novas tecnologias e pro-cessos construtivos, para entrar no setor de edifi cação residencial nacional de promoção pública.13 Vale lembrar que os anos 70 fi ca-ram conhecidos como do “milagre brasilei-ro”, em que as altas taxas de crescimento do PIB contribuíram muito com a manutenção do Regime Militar, fortemente apoiado pela

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classe média. Entre 1968 e 1973, o PIB cresceu 11,5 % ao ano impulsionado prin-cipalmente pela construção civil (Maricato, 1987).

Outros dois seminários, acompanhados da apresentação de protótipos subsidiados pelo BNH, deram-se na cidade de São Paulo: um no Jardim São Paulo (1985) e o outro em Heliópolis (1987). Após 1980, entre-tanto, com o impacto do ajuste fi scal sobre a economia nacional, os contratos do BNH para o fi nanciamento de moradias têm uma queda drástica. Até 1983, constata-se um movimento de construção de moradias sob promoção pública ainda signifi cativo graças aos contratos assinados em anos anterio-res. A maior parte dessa produção seguiu modelos muito criticados em trabalhos aca-dêmicos: a localização sempre distante das áreas já urbanizadas alimentou um mercado fundiário desorganizador do uso sustentável do solo urbano e as construções frequente-mente deixaram a desejar do ponto de vista de conforto ambiental.

Durante vários anos, portanto, o pa-radigma de avanço tecnológico esteve rela-cionado a novos processos, novos materiais ou novos componentes. Foram fomentadas tentativas de industrialização de componen-tes, experiências de moldagem de concreto armado in loco, propostas de utilização de novos materiais como solo cimento, madei-ra mineralizada, palha de arroz prensada, resíduos de processos industriais, estrutura metálica, entre outros.

Segundo Vargas, após todas essas ex-periências, podemos afi rmar que, entre nós, a alvenaria armada tem se mostrado ainda como tecnologia construtiva de melhor de-sempenho – no que se refere a custo, qua-lidade e produtividade – e que, portanto,

as barreiras ao aumento de produtividade, diminuição de custos e ampliação de acesso não estariam aí.14 Além de apontar as difi -culdades que persistem no planejamento e gestão do processo de trabalho e nos de-mais fatores que disputam a renda fundiária urbana, Vargas lembra que a indústria da construção tem características específicas em relação às demais indústrias e nela a im-ponderabilidade é muito alta.

Em seu mestrado, desenvolvido na Coppe/ UFRJ em 1979, e depois reedita-do como capítulo de livro já citado, Nilton Vargas explicita, em primeiro lugar, as ca-racterísticas específicas da indústria da construção, que a diferenciam das demais indústrias: é manufatura, mas também tem máquinas pesadas características da grande indústria. Além disso, os lucros da atividade de construção ligada à indústria imobiliá-ria não são apropriados apenas pelo capital produtivo, mas também por outros capitais, em especial os fi nanciadores, os promotores imobiliários e os proprietários da terra ou imóveis. Na medida em que os lucros não provêm apenas das atividades produtivas, mas também de atividades fortemente es-peculativas, a produtividade no processo de produção passa a não ser central para ampliar os ganhos. A partir dessas conside-rações e tendo em vista características que embasam o poder na sociedade brasileira, como o patrimonialismo e a captação de rendas imobiliárias, conclui-se facilmente o porquê de o mercado privado no Brasil ser tão elitista e restrito ao produto de luxo (Instituto Cidadania, 2000).

Agregando às argumentações expostas algumas formulações de outros autores, po-demos, muito resumidamente, defi nir essa tese da seguinte forma:15

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1) A indústria da construção tem carac-terísticas diferenciadas do conjunto das indústrias.

● Cada projeto é único (mesmo quando padronizado) porque cada terreno é único, o que difi culta a reprodutibilidade.

● O processo de produção é marcado pela sucessão e não pela simultaneidade. A cada obra, as equipes que se sucedem são des-montadas. Há difi culdade para a capacitação contínua do trabalhador e a rotatividade no emprego é alta.

● No fi m de cada empreendimento, a uni-dade de produção é desmontada ou, na me-lhor das hipóteses, deslocada.

● O processo de produção depende das condições climáticas. As chuvas, por exem-plo, podem paralisar a produção.

● Em que pese o avanço das análises geo-técnicas, o subsolo pode apresentar ocor-rências inesperadas, exigindo a interrupção da produção e representando despesas não previstas.

2) Os ganhos não são provenientes apenas da atividade produtiva, portanto, não existe um apelo para a racionalidade industrial.

● Na provisão habitacional, o capital pro-dutivo não ocupa o lugar central, como no restante das indústrias. A moradia é uma mercadoria especial. Além do capital de construção, o processo produtivo inclui um fi nanciamento ao consumo (habitação é um dos bens mais caros de consumo privado e como uma mercadoria especial exige um fi nanciamento específi co), um capital de in-corporação e um agente especial – o pro-prietário de terra – de quem depende uma condição básica para produção. Cada novo

empreendimento exige que uma nova parce-la de terreno seja assegurada.

Os proprietários têm uma espécie de mo-nopólio sobre a terra e a liberam para a construção após cobrar um preço para isso, e esse preço depende da localização. A le-gislação urbanística também infl ui no preço da terra.

● A propriedade fundiária e imobiliária constitui um objeto de valorização. Fortunas podem ser amealhadas sem que, necessa-riamente, haja envolvimento de um capital produtivo no terreno objeto de valorização. Uma malha de expedientes jurídicos e de registros cerca a propriedade da terra, que pode, dessa forma, funcionar como objeto de disputa de rendas, oferecendo obstáculo à produtividade na construção. O acesso à terra urbana é profundamente excludente a grande parte da sociedade e constitui freio ao aumento da produção.16

● Outra barreira à provisão de moradias está na legislação urbanística excessivamen-te detalhista e na legislação ambiental, que tornam lentos os processos de aprovação dos projetos, característica reforçada pela fragmentação presente na gestão urbana e pelas características cartoriais do patrimo-nialismo brasileiro.

Habitação, confl itos e Estado

Ainda que reconhecendo as carências apon-tadas anteriormente, é notória a centra-lidade do papel do Estado no processo de produção e distribuição da moradia, e é nele que se concentra a maior parte dos estudos

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e pesquisas. O Estado pode participar dire-tamente na produção, como também pode fi nanciar e contratar a construção. Ele é ain-da, em geral, o agente regulador da terra, das relações trabalhistas, das regras do fi -nanciamento privado, além de poder promo-ver a implantação da infraestrutura e abrir novos espaços para o investimento imobiliá-rio privado em acordo com proprietários de terra. A construção de novas centralidades urbanas, como resultado de um pacto entre o capital imobiliário e a aplicação dos fundos públicos, tem também sua face simbólica, marcada pelo luxo e distinção, e ocorre em praticamente todas as grandes cidades.

A atuação do Estado responde ao nível dos conflitos entre os diversos interesses em jogo na disputa pelos ganhos já citados: salários, rendas, juros e lucros. De tal dispu-ta participam inclusive os usuários de clas-se média ou até de baixa renda, enquanto proprietários privados que também se apro-priam de alguma renda com a valorização de seus imóveis. Essas lutas e confl itos de-fi nirão as mudanças ou não na estrutura de provisão da habitação.17

Além de Michael Ball (1978, 1981 e 1986), outro autor que adota uma visão menos determinista e economicista sobre a produção do espaço, ao enfatizar a esfera da política, é David Harvey, para quem a produção do espaço é consequência de for-tes confl itos e do confronto de tendências, resultantes de tensões e contradições ine-rentes ao sistema (Harvey, 1982). Para o autor, os principais confl itos que emergem nesse processo envolvem:

[...] 1) uma facção do capital que pro-

cura a apropriação da renda, quer di-

retamente (como os proprietários de

terra, as empresas imobiliárias, etc.)

ou indiretamente (como os intermediá-

rios fi nanceiros ou outros que investem

em propriedades simplesmente visando

uma taxa de retorno); 2) uma facção do

capital procurando juros e lucro atra-

vés da construção de novos elementos

no meio construído (os interesses da

construção); 3) o capital "em geral" que

encara o ambiente construído como um

dreno para o capital excedente e como

pacote de valores de uso e com vistas

ao estímulo da produção e acumulação

de capital; 4) a força de trabalho que

se utiliza do ambiente construído co-

mo um meio de consumo e como meio

de sua própria reprodução. (Harvey,

1982, p. 6)18

Modernização conservadora: a informalidade como ardil

No Brasil, como nos demais países perifé-ricos, os confl itos em torno da provisão da moradia foram relativamente esvaziados graças a um ardil responsável por grande impacto social e territorial: a provisão infor-mal da moradia. A maior parte da população urbana “se vira” para garantir moradia e um pedaço de cidade, combinando o loteamento irregular ou a pura e simples invasão de ter-ra, com a autoconstrução.19 Essa forma ile-gal e pré-moderna de provisão da moradia esvaziou o confl ito e contribuiu para o bara-teamento da força de trabalho, especialmen-te durante o período de maior crescimento industrial. Sabemos todos as consequências predatórias dessa produção de grande parte do espaço urbano, seja para essa população,

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para o meio ambiente, ou para a cidade como um todo. O exemplo mais dramático e gigantesco de ocupação pobre, ilegal e ambiental/socialmente predatória, está na ocupação das áreas de preservação dos ma-nanciais ao sul da maior metrópole paulista, onde aproximadamente 1milhão e 700 mil de pessoas vivem nas bacias dos reservató-rios de água Billings e Guarapiranga. Mas os governos, e seus diversos órgãos com poder de polícia sobre o uso e a ocupação do solo, simplesmente ignoraram esse processo du-rante muitos anos.

O confl ito sobre a provisão da moradia foi, portanto, deslocado: a cidade hegemô-nica continua sendo construída sob regras do urbanismo e do mercado modernos, para uma população restrita. Resta para grande parte da população o deslocamento para fo-ra da cidade (legal ou formal), a ocupação de áreas inadequadas, e, frequentemente, ambientalmente frágeis.

Não são apenas as leis de uso e ocupa-ção do solo ou os planos urbanísticos que não são observados nos bairros ilegais. Ne-nhuma legislação aí é aplicada e a resolução de confl itos obedece à “lei” do mais forte. A presença do Estado pode se restringir à troca de favores pontuais com finalidade eleitoral. De um modo geral, o Estado está ausente e esse vazio é ocupado por um po-der paralelo (Maricato, 1996).

Mesmo contando com um mercado pri-vado excludente, por meio do qual a mer-cadoria moradia é acessível a apenas 30% da população, é preciso reconhecer sua sig-nifi cativa dimensão, equivalente à população da Itália (aproximadamente 56 milhões de pessoas). O signifi cativo crescimento econô-mico (7% ao ano entre 1940 e 1979) e a industrialização do país, sem distribuição de

renda, durante décadas de intensa migração para as cidades, geraram vários paradoxos, como a imposição do consumo de bens mo-dernos antes que as necessidades básicas (alimentação, saúde, higiene, educação, ha-bitação) fossem atendidas.20

A urbanização em países periféricos como o Brasil, que acompanha o proces-so de industrialização com baixos salários, apresenta várias características que a dife-rencia da urbanização nos países capitalistas centrais. Francisco de Oliveira considera o terciário extensivo e descapitalizado, que muitos autores entenderam como “inchado” na comparação com o chamado primeiro mundo, uma parte intrínseca desse processo de acumulação que combina o arcaico com o moderno (Oliveira, 1972).

A evolução da provisão da habitação popular desde o fi nal do século XIX, com a emergência do trabalhador livre, mostra a tendência de eliminar dos salários a parcela referente ao pagamento da moradia. É evi-dente que essa condição é predatória à força de trabalho. A construção da casa nos fi ns de semana durante horário de descanso, o longo tempo despendido nos transportes defi cientes (que está relacionado à ocupa-ção precária da periferia) e a ausência de serviços urbanos fundamentais contribuem para desgastar a força de trabalho. A queda do crescimento econômico, verifi cada a par-tir dos anos 80, o aumento do desemprego, o recuo das políticas públicas, foram alguns dos fatores que radicalizaram o quadro aqui descrito, como veremos adiante.

A importância da propriedade fundi-ária numa sociedade patrimonialista como a nossa explica, em boa parte, essa gigan-tesca exclusão territorial ou segregação. Como é sabido, há uma estreita relação

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entre propriedade patrimonial e poder econômico, político e social na história do Brasil. A elite brasileira se apropriou de vastas áreas de terras devolutas por todo território nacional, recorrendo a um sem número de ardis relacionados a fraudes nos registros de terra (Costa Neto, 2006). Além disso, essa mesma elite cercou-se de uma imensa teia de organismos e buro-cracia (além da ajuda do judiciário) para impedir que a maior parte da população, especialmente os trabalhadores pobres, ti-vesse acesso à propriedade fundiária. O la-tifúndio permanece intocável durante todo o período de modernização e industrializa-ção do país, apesar das polêmicas alimen-tadas pela proposta liberal de substituição dos escravos pela colonização branca du-rante o século XIX. A privatização de ter-ras devolutas ainda é uma prática vigente em pleno início do século XXI.

Como aconteceu em outros momentos da história do país, o Brasil conta, a partir da promulgação do Estatuto da Cidade, em 2001, com uma legislação bastante avança-da, que regulamenta a função social da cida-de e da propriedade. O Estatuto da Cidade restringe, objetivamente, o direito de pro-priedade. Pode-se dizer que o direito à mo-radia é absoluto, já que previsto na Consti-tuição Federal, e o direito à propriedade não o é. No entanto, a implementação da lei está enfrentando muita difi culdade, reafi rmando uma característica da sociedade brasileira: de que a lei se aplica de acordo com as cir-cunstâncias (Maricato, 1996).

Aqui também constatamos nossas di-ferenças em relação ao capitalismo central, em que as reformas sobre a terra urbana foram feitas no fi nal do século XIX ou come-ço do século XX para fortalecer a atividade

produtiva de construção, em detrimento dos ganhos rentistas.

O impacto da globalização na provisão de moradias

Com o fi m do welfare state houve um recuo generalizado dos investimentos em habita-ção, revelando um colapso no volume de moradias produzidas. Nos países capitalistas centrais, o espetacular movimento de cons-trução que se seguiu à segunda guerra mun-dial minimizou fortemente a carência habita-cional. Apesar das características específi cas desse processo em cada país, alguns aspec-tos podem ser generalizados:21

Período pós-guerra – produção fordista:

● produção em massa, grande volume de unidades habitacionais;

● investimento público garante mercado solvável, com forte subsídios;

● investimento em infraestrutura, grandes projetos de renovação urbana ou construção de cidades novas;

● Estado intervém no mercado de terras ou cria uma agência de terra;

● promoção da habitação de aluguel social;

● modernização da produção – pré-fabri-cação, investimentos em capital fi xo, gran-des canteiros;

● grandes sindicatos conferem poder à força de trabalho nos confl itos;

● queda na especialização da força de tra-balho, imigração visando o barateamento.

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Com a reestruturação produtiva e o

início das políticas de cunho neoliberal, a

produção subsidiada de moradias pelo Es-

tado teve uma queda drástica. O patrimô-

nio público formado por extensos conjuntos

habitacionais foi transformado com a ven-

da em patrimônio privado. E novas regras,

mais adaptadas a uma solução de mercado,

foram impostas. Apesar dos movimentos

sindicais, que com prolongadas greves ten-

taram se opor aos ganhos conquistados com

o Welfare State, as reformas foram imple-

mentadas, atingindo inclusive o mundo do

trabalho e com isso enfraquecendo o poder

sindical. Um resumo das características que

provisão de moradias assumiu na Europa e

nos Estados Unidos com a reestruturação

produtiva já pode ser diagnosticado nos anos 70:

Período pós-1970 – reestruturação capitalista global:

● queda nos investimentos públicos, que-da no volume de construção;

● difi culdades com fi nanciamentos, difi -culdades com terra;

● aumento da taxa de juros;

● fl exibilização na produção, terceiriza-ção, queda no investimento de capital fi xo, fortalecimento do planejamento do canteiro, gerenciamento de fl uxos e controle contábil;

● ênfase nos componentes leves para montagem;

● enfraquecimento do poder sindical, de-semprego, contrato por tarefas;

● projetos de menor porte, perdas da economia de escala;

● fl exibilização na provisão – diversidade de tipologias, fragmentação da demanda e da localização, ênfase nos aspectos especu-lativos;

● novos mercados priorizam reformas, renovação e manutenção;

● fortalecimento da casa própria ;

● fl exibilização do trabalho, formas indi-retas de emprego.

No Brasil, como nos demais países do capitalismo periférico, com seus diversos graus ou características de evolução ou in-volução, o recuo nas políticas públicas e o baixo crescimento econômico, a partir dos anos 80, tiveram consequências dramáticas devido à herança histórica de desigualdade e informalidade. Apesar de não contarmos com estudos sobre o impacto detalhado da globalização na produção do ambiente cons-truído, podemos afirmar que o aumento de favelas cresceu radicalmente a partir da queda do financiamento habitacional, por volta de 1981. O IBGE mostra que enquan-to a população brasileira cresceu 1,9% ao ano entre 1980 e 1991, e 1,6% ao ano en-tre 1991 e 2000, a população moradora de favelas cresceu, respectivamente, 7,65% e 4,18%. O município de São Paulo tinha ape-nas 1,2% da população morando em fave-las em 1970. Em 2005, São Paulo registra 11% da população em favelas, ambos dados da Prefeitura Municipal. Com a débâcle do BNH e aumento do desemprego, o mercado privado formal também apresentou queda signifi cativa (Castro, 1999).

Além da constatação do impacto ne-gativo da chamada globalização e das po-líticas neoliberais na piora na qualidade da moradia urbana no Brasil, pouco pode-mos avançar no detalhamento sobre suas

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consequências nos processos produtivos, como mostra o estudo de Ball e outros (1988) para a Europa e Estados Unidos. Esse exemplo mostra como a orientação adequada da pesquisa acadêmica pode nos conduzir para uma compreen são mais am-pla e científi ca da realidade. Não dispomos de conhecimento que permita caracterizar as mudanças na estrutura de provisão da moradia, sua evolução e adaptação à nova (des)ordem internacional. Esse desconhe-cimento fragiliza o esforço na defi nição de políticas para o enfrentamento de proble-mas tão graves como, por exemplo, os que as nossas metrópoles apresentam.

Se insistimos em fazer essa abordagem teórica e metodológica, é para incentivar os pesquisadores brasileiros a esse desafi o. E, apesar de parte da refl exão aqui feita ter se inspirado em autores que pensaram o capi-talismo central, nossa convicção é de que as assimetrias entre os países centrais e peri-féricos são essenciais, acentuaram-se com a globalização e não podem ser ignoradas

quando se buscam alternativas de solução para a nossa realidade.

Por fi m, um alerta necessário. A par-tir de 2005, os investimentos na área de habitação foram ampliados, tanto para o mercado privado quanto para a promoção pública. Com o PAC – Plano de Aceleração do Crescimento –, lançado pelo Governo Fe-deral em 2007, essa tendência será reforça-da pela previsão de investimento de R$106 bilhões. Considerando-se que as principais fontes de recursos são onerosas – aliás, as mesmas que alimentaram o Sistema Finan-ceiro da Habitação: SBPE e FGTS – e que os recursos para subsídios são diminutos, é previsível que as camadas de mais baixa ren-da difi cilmente sejam atendidas na propor-ção necessária. Entretanto, o movimento na produção de moradias tende a aumentar, o que já é visível, na segunda metade da déca-da iniciada em 2000, com repercussões na estrutura de provisão de moradias. Esse é mais um motivo para adotar um novo enfo-que na pesquisa sobre habitação no Brasil.

Ermínia MaricatoArquiteta e Urbanista pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Professora Titular da área de Planejamento Urbano do Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Coordenadora da Co-missão de Pesquisa e Membro do Conselho de Pesquisa da Universidade de São Paulo (São Paulo, Brasil)[email protected]

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Notas

(1) Este trabalho foi inspirado no texto de Michael Ball, Housing analisys: time for a theoretical refocus. Apesar do lapso de tempo que nos separa da redação do arti go citado, que é de 1986, sua críti ca à produção acadêmica sobre o tema da habitação ganhou mais importância com o passar do tempo.

(2) "A estrutura de provisão de habitação descreve um processo histórico dado desti nado a prover e reproduzir a enti dade fí sica casa, focalizando os agentes sociais essenciais a esse processo e a relação entre eles" (Ball, 1986, p. 158).

(3) Para uma bibliografi a extensiva dos pioneiros no estudo da habitação no Brasil urbanizado, ver Valladares, 1982.

(4) Os conceitos de Défi cit Habitacional Quanti tati vo e Défi cit Habitacional Qualitati vo envolveram vários pesquisadores durante a década de 1990. Tais defi nições estão explicitadas nos estudos sobre o Défi cit Habitacional no Brasil elaborados pela Fundação João Pinheiro, a pedido do go-verno Federal, a parti r de 1995 (Fundação João Pinheiro, 2004).

(5) Do Congresso do IAB de 1963, quando a proposta de Reforma Urbana foi aprovada no documento fi nal, até o Estatuto da Cidade em 2001 e a Campanha de Planos Diretores Parti cipati vos, pro-movida pelo Ministério das Cidades em 2006, o tema da terra tem sido recorrente e a bibliogra-fi a por demais extensa para ser tratada aqui. Dentre os pioneiros que relacionaram a terra com a esfera da produção e do mercado ver Brandão (1980) e Lefèvre (1979). Uma parte da produ-ção do Lincoln Insti tute of Land Policy também segue essa orientação.

(6) Não trataremos aqui do tema dos movimentos sociais urbanos e de sua bibliografi a, pois nos inte-ressa concentrar a atenção nos confl itos presentes na esfera da produção stricto sensu. Não se desconhece a relação entre a “práxis espacial”, conceito lefevriano, e a produção da cidade em seu conjunto, mas entendemos que esses confl itos têm sido mais constantemente abordados do que aqueles que queremos destacar aqui.

(7) Vamos convencionar como classe média as famílias cujos rendimentos mensais estão situados en-tre 5 e 12 salários mínimos. O défi cit habitacional está concentrado fortemente entre 0 e menos de 5 s.m., perfazendo um total de 92% (Fundação João Pinheiro, 2004).

(8) Até mesmo a endêmica corrupção presente nas obras públicas, fato ligado especialmente ao fi nanciamento de campanhas eleitorais, não pode ser aspecto desprezado nas pesquisas aca-dêmicas no Brasil quando se estudam produti vidade e custo da habitação. Essa observação foi feita por Vargas em encontro internacional da BISS – Bartt let Internati onal Summer School – na cidade do México em 1987.

(9) O projeto citado foi apresentado ao BNH em 1986, exatamente no ano de sua mal explicada exti n-ção, que o inviabilizou. Parti ciparam dele os professores Jorge Oseki, Nilton Vargas, Paulo César Xavier Pereira, Suzana Pasternak, Yvonne Mautner sob a coordenação de Ermínia Maricato.

(10) Iniciado entre 1968 e 1969, “O canteiro e o desenho” seria concluído em 1975 e fi nalmente pu-blicado em 1979.

(11) O texto citado (Arti gas, 1975), publicado originalmente pelo GFAU, foi apresentado pelo profes-sor em março de 1967 como Aula Inaugural da FAU-USP.

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(12) O processo de trabalho, grande ausente na produção intelectual brasileira sobre habitação, tem sido considerado como elemento-chave para a compreensão da produção do ambiente cons-truído pela BISS – Bartt let Internati onal Summer School – sediada na University College London. Ver a respeito seus Proceedings.

(13) Na primeira metade dos anos 70, os recursos do BNH desti nados a obras de infraestrutura ur-bana foram ampliados, enquanto que a construção de moradias perdeu espaço no orçamento. Esse movimento deveu-se, provavelmente, ao poder de infl uência das empresas de construção pesada. A parti r de 1976, o movimento se inverte. Ver a respeito Maricato (1987).

(14) Palestra proferida na FAU-USP, dia 29/3/2007.

(15) Os autores consultados para a construção desse quadro, além de Nilton Vargas, foram Lojkine (1977), Topalov (1974), Lipietz (1988), Harvey (1982), Ball (1986), Ball e outros (1988). Dentre os autores nacionais que abordaram a produção e ou a provisão da moradia levando em conside-ração a construção, além de Vargas, estão: Ferro (1972), Oseki (1982), Maricato (1984), Pereira (1984), Tavares (1989), Mautner (1991), Ribeiro (1996) e Castro (1999). O professor Celso M. Lamparelli introduziu essa abordagem teórica no Curso de Pós-Graduação da Escola de Enge-nharia de São Carlos ainda na década de 70.

(16) Não podemos esquecer que mesmo atuando como freio ao aumento da produção devido à dis-puta por rendas imobiliárias a propriedade da terra não consti tui uma irracionalidade ao modo de produção capitalista como argumentaram alguns autores. É ela que permite a apropriação dos lucros na produção da moradia assim como a propriedade dos meios de produção permitem a apropriação dos lucros industriais (Marti ns, 1983).

(17) Segundo Ball, a predominância de um agente sobre os outros no processo de produção somente será identi fi cada a parti r de análises específi cas sobre realidades concretas. Nesse senti do, Ball discorda das teses defendidas por intelectuais franceses, como Topalov (1974) e Lojkine (1977), sobre a supremacia determinante do promotor imobiliário ou do capital fi nanceiro sobre a pro-visão das edifi cações (moradias, comércios, serviços). No Brasil, o papel dos ganhos renti stas fundiários e imobiliários (proprietários de terra e incorporadores) têm uma predominância sig-nifi cati va, como veremos adiante.

(18) No mesmo texto Harvey lembra que a propriedade da moradia pode dividir e opor trabalhado-res, pois aqueles que a possuem interessam-se pela valorização do seu imóvel e os que não a possuem interessam-se pelo seu barateamento.

(19) Não temos os dados rigorosos sobre a produção informal da moradia (favelas, loteamentos ile-gais e corti ços) nas cidades brasileiras e sabemos que o IBGE subdimensiona a medição da mo-radia “subnormal”. Alguns estudos, entretanto, permitem afi rmar que estamos diante da maio-ria ou de aproximadamente metade dos domicílios nas grandes cidades: Andrade (1998); Castro e Silva (1997), Souza (1999).

(20) Maricato e Pamplona, 1977

(21) Ver a respeito Ball et al. (1988).

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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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Metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales*

Óscar A. Alfonso R.

ResumenLos desafíos que enfrentan las aglomeraciones metropolitanas no se limitan a la consecución de unos logros que les permita ascender en algún ranking de ciudades globales. La mayor parte de las zonas metropolitanas de Europa, América Latina y Norteamérica tienen en común la búsqueda de una institucionalidad para afrontar tales desafíos, contando con que las autonomías heredadas de la descentralización administrativa y fi scal generalmente interfi eren en tales propósitos. En éste trabajo se realiza un examen crítico de estas tres experiencias en materia de metropolítica, esto es, de una institucionalidad que facilite la coordinación interjurisdiccional de políticas para afrontar los problemas y proponer nuevas alternativas de desarrollo metropolitano.

P a l a b r a s C l a v e : me t ropo l i z a c i ón ; gobernabilidad metropolitana; segregación metropolitana.

Abstract

The cha l l enge s t ha t me t ropo l i t an agglomerations face are not limited to an attempt to obtain a position in the ranking of global cities. Most of the metropolitan areas of Europe, Latin America and North America search for an institutional framework to address these challenges, taking into account that the autonomies inherited from the administrative and fi scal decentralization usually interfere in such purposes. This work examines critically these three experiences in light of metropolitics, that is, an institutional framework that facilitates inter-jurisdictional coordination of policies to tackle the problems and propose new alternatives for metropolitan development.

Keywords: metropolization; metropolitan governance; metropolitan segregation.

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Salvo contadas excepciones, la mayor parte de la l iteratura reciente sobre metropolización en el mundo gira en torno de la necesidad de actuar, más que de la necesidad de comprender el fenómeno. Por regla general, el fenómeno se conecta con el discurso sobre las ciudades-región globales que, a la manera de un nuevo paradigma, propició desde comienzos de la década de 1990 una avalancha de investigaciones que intentaba descifrar localmente – cuando no ajustar – el contenido teórico propuesto por Saskia Sassen, de manera que a la lista original de tres ciudades (Tokio, Londres y Nueva York), se fueron incorporando paulatinamente otras ciudades occidentales

hasta el punto de que los geógrafos más prestantes propusieron los “ranking” de ciudades a la manera del fút bol rentado (Cuadro 1): París y Frankfurt entraron a la “primera división”, mientras que Chicago, Los Ángeles, Milán, Hong Kong y Singapur “cayeron” a la “segunda división” por fuerza de la mayor capacidad anotadora de las primeras, es decir, la acumulación de funciones globales. La tercera y la cuarta división aparecen más densamente pobladas de ciudades que compiten entre sí para ascender en el rentado de las ciudades globales, mientras que en las de más baja jerarquía al parecer todo está por hacer.

Cuadro 1 – Ranking de ciudades globales – 2002

Por funciones globales y puntuaciónPrimera división 1) Londres, 2) París, 3) Nueva York, 4) Tokio, 5) FrankfurtSegunda división 6) Chicago, 7) Hong Kong, 8) Los Ángeles, 9) Milán, 10) SingapurTercera división 11) San Francisco, 12) Sydney, (13) Toronto, 14) Zurich, 15) Bruselas,

16) Madrid, 17) Ciudad de México, 18) São Paulo, 19) Moscú, 20) SeúlCuarta división 21) Ámsterdam, 22) Boston, 23) Caracas, 24) Dallas, 25) Dusseldorf,

26) Ginebra, 27) Houston, 28) Yakarta, 29) Johannesburgo, 30) Melbourne, 31) Osaka, 32) Praga, 33) Santiago de Chile, 34) Taipei, 35) Washington,36) Bangkok, 37) Beijing, 38) Roma, 39) Estocolmo, 40) Varsovia, 41) Atlanta, 42) Barcelona, 43) Berlin, 44) Buenos Aires, 45) Budapest, 46) Copenhague, 47) Hamburgo, 48) Estambul, 49) Kuala Lumpur, 50) Manila, 51) Miami,52) Minneapolis, 53) Montreal, 54) Munich, 55) Shangai

Candidatas a ciudades globales (por evidencia de funciones globales y orden alfabético)Fuerte evidencia Auckland, Dublín, Filadelfi a, Helsinki, Luxemburgo, Lyon, Mumbai (Bombay),

Nueva Delhi, Rio de Janeiro, Tel Aviv y vienaAlguna evidencia Abú Dhabi, Atenas, Birmingham, Bogotá, Bratislava, Brisbane, Bucarest,

Stuttgart, Ciudad Ho Chi Minh, Cleveland, Colonia, Detroit, Dubai, El Cairo, Kiev, La Haya, Lima, Lisboa, Manchester, Montevideo, Oslo, Rótterdam, Ryad, Seattle y Vancouver

Fuente: Globalization and World Cities (GaWC), Loughborough University, Leicestershire, UK, 2002. Tomado de Alfonso (2006, 55).

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Durante los seis años subsiguientes se publ ic i taron otros rankings que, aunque no decían mayor cosa sobre el desarrollo, continuaron erigiéndose en pauta publicitaria de los nuevos modelos de organización de la geo grafía global. Los criterios y las metodologías para su elaboración se modificaron a merced de la voluntad del promotor, mediando en ocasiones las opiniones de connotados académicos pero, al fin y al cabo, sólo opiniones desprovistas de una teoría que de cuenta sistemáticamente del fenómeno y de sus vinculaciones internas. El más reciente de estos se presenta en la Cuadro 2, para cuya elaboración fueron consultados, según la fuente, varios académicos, entre ellos la promotora de la idea pionera. Lo cierto es que tal idea tiende a banalizarse al punto de dejar de lado aspectos centrales de la refl exión de la autora como la tendencia a la desvalorización del trabajo en el mundo globalizado. Según Foreign Policy, el ranking consideró 24 indicadores distribuidos en cinco áreas: actividad de negocios, capital humano, el intercambio de información, actividad cultural y el compromiso político. Por fuerza de los nuevos criterios, Frankfurt es relegada al lugar 21º que en el ranking de 2002 era ocupado por Ámsterdam que ahora ocupa el lugar 23º, y su 5º lugar es ahora ocupado por Hong Kong, mientras que las cuatro ciudades en el tope se han mantenido allí rotando los tres primeros lugares entre ellas ante el ascenso de Nueva York. No obstante la variabilidad de criterios empleados para la elaboración de los ranking, el hecho de que las jerarquías de Nueva York, Londres, París y Tokio no sufran mayores alteraciones mientras que del quinto lugar hacia bajo ocurra un

gran fl ujo de entrada y salida de ciudades indica, de una parte, la descomunal amplitud alcanzada por la jerarquía funcional de las primeras y, además, las dificultades para que otras alcancen su nivel reconocidas los rasgos concentrativos del orden global en curso.

Según estos criterios, no todas las aglomeraciones metropolitanas poseen los atributos para erigirse como ciudades-región globales, de manera que populosas zonas metropolitanas ni siquiera son consideradas en el ranking por su actividad cultural o por el compromiso político. Esto ocurre en los Estados Unidos con Filadelfi a (8,5 millones de habitantes), Dallas (5,8), Detroit (5,8), Houston (5,1), la conurbación binacional San Diego-Tijuana (4,6) y Phoenix (3,7), por ejemplo, mientras que en América Latina ocurre algo semejante con Lima-El Callao (8,5), Santiago de Chile (6,2), Belo Horizonte (4,6), Guadalajara (4,0), Monterrey (3,6), Medellín (3,4) y Montevideo (1,7). Zonas metropolitanas igualmente populosas e inclusive algunas de menor tamaño poblacional que las anteriormente mencionadas, han acumulado un conjunto de atributos globales como para escalarse en el ranking. En los Estados Unidos son Washington, San Francisco, Toronto, Boston, Atlanta y Miami, mientras que en América Latina ocurre con Bogotá y Caracas.

La necesidad de actuar viene tomando cuerpo en el discurso de la gobernanza metropolitana, desde donde se proclama que su quehacer es el diseño de políticas públicas orientadas a resolver los problemas de las zonas metropolitanas y a promover el desarrollo, proviniendo la mayor parte de los problemas de la denominada “fragmentación

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Cuadro 2 – Ranking de ciudades globales – 2008

Posición general Ciudad Población

Posición según dimensiónCentro de negocios

Capital humano

Centro de información

Centro cultural

Compromiso político

1 Nueva York 18,7 1 1 4 3 22 Londres 7,6 4 2 3 1 53 París 9,9 3 11 1 2 44 Tokio 35,5 2 6 7 7 65 Hong Kong 7,3 5 5 6 26 406 Los Ángeles 12,2 15 4 11 5 177 Singapur 4,5 6 7 15 37 168 Chicago 8,8 12 3 24 20 209 Seúl 9,5 7 35 5 10 1910 Toronto 5,2 26 10 18 4 2411 Washington 4,3 35 17 10 14 112 Beijing 10,9 9 22 28 19 713 Bruselas n.d. 19 34 2 32 314 Madrid 5,2 14 18 9 24 3315 San Francisco 3,4 27 12 22 23 2916 Sydney 4,5 17 8 27 36 4317 Berlín 3,3 28 29 12 8 1418 Viena 2,2 13 31 29 11 919 Moscú 10,8 23 15 33 6 3920 Shangai 12,6 8 25 42 35 1821 Frankfurt 3,7 11 43 19 13 3422 Bangkok 6,7 18 14 23 41 1323 Ámsterdam 1,2 10 38 25 12 5624 Estocolmo 1,8 25 33 13 16 2725 México D. F. 19,2 34 23 32 9 1126 Zurich n.d 30 20 8 31 5427 Dubai n.d. 21 19 14 44 4428 Estambul 10,0 32 13 34 43 829 Boston 4,4 37 9 35 33 5030 Roma 2,6 31 30 30 15 2231 São Paulo 18,6 16 36 31 27 2332 Miami 5,5 33 21 26 39 2133 Buenos Aires 13,5 40 16 43 25 1234 Taipei 2,5 20 49 21 30 1535 Munich 2,3 29 27 49 18 3636 Copenhague 1,1 36 41 16 42 2837 Atlanta 4,5 38 24 39 21 3238 El Cairo n.d. 48 28 17 45 1039 Milán 4,0 24 42 41 28 3740 Kuala Lumpur 1,4 22 46 40 49 3841 Nueva Delhi n.d. 47 50 20 46 3542 Tel Aviv 3,1 51 45 38 17 3143 Bogotá 7,8 46 26 51 34 2544 Dublín n.d. 41 39 48 30 48

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57de intereses y de actores dentro de la metrópoli” (Lefebvre 2004, p. 6), algo común a todas las grandes ciudades. Tal vez lo común en medio de tal fragmentación sean ciertas pretensiones de políticos e investigadores casuales que imaginan un mundo compuesto por individuos que han perdido su ideología, sus relaciones de pertenencia a las que se denomina como cultura y, especialmente, sus pasiones. Los enfoques unificadores de los proyectos metropolitanos no están en capacidad de lidiar con la diversidad y, por esa misma razón, la premisa homogeneizante de partida que generalmente se impone como la visión compartida de futuro es, en el fondo, una imposición de la visión de algún grupo de interés mimetizado en las sugestivas

metodologías de la planeación estratégica que se adoptan de acuerdo a la ocasión y que conllevan, en ocasiones, la socialización con los actores metropolitanos.

Es notable la popularidad que han adquirido los ranking de las ciudades globales como también lo es su escasa ut i l idad para orientar in ic iat ivas de desarrollo metropolitano. Los exámenes cualitativos están a la orden del día, siendo la pretensión de este trabajo sólo la de indicar algunas pautas de análisis que no compiten con ningún ranking, sino que alientan otro tipo de búsquedas como, por ejemplo, la de las formas que adopta la institucionalidad metropolitana en medio de la variedad de problemas y desafíos de dichas aglomeraciones.

Posición general Ciudad Población

Posición según dimensiónCentro de negocios

Capital humano

Centro de información

Centro cultural

Compromiso político

45 Osaka 11,3 54 32 45 29 5146 Manila – 43 48 47 38 2647 Rio de Janeiro 11,6 44 47 50 22 4648 Yakarta – 42 40 36 51 4149 Bombay 18,8 39 37 53 52 5250 Johannesburgo 3,4 45 55 37 48 4551 Caracas 3,3 52 54 44 55 4252 Guangzhou 3,9 49 53 54 50 3053 Lagos 11,7 58 56 46 60 5354 Shenzhen 1,3 50 59 57 56 4755 Cd. Ho Chi Minh 5,1 55 52 58 53 5856 Dacca 13,1 59 51 55 54 4957 Karachi 12,2 56 57 52 59 5558 Bangalore 6,8 53 44 60 57 6059 Chongqing 5,1 60 60 56 47 5760 Calcuta 14,6 57 58 59 58 59

Cuadro 2 – Ranking de ciudades globales – 2008

Fuente:Revista Foreign Policy, november/december 2008 y www.citymayors.com

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La cuestión europea

Las invest igac iones rec ientes sobre metropolización en Europa se han enfocado fundamentalmente al estudio y a las propuestas de gobernanza para las zonas circundantes a las capitales nacionales, en el entendido que de esa característica se desprenden otras como la primacía poblacional y política que ejercen sobre el resto de la confi guración social e, inclusive, sobre otras zonas del mundo occidental; adicionalmente, el núcleo metropolitano dispone de una estructura pol í t ico-administrativa de notable complejidad en relación con el resto de ciudades que en determinado momento favorece su liderazgo administrativo metropolitano (Lefebvre, 2004, p. 8).

La noción del proyecto metropolitano en Europa y en Canadá se ha arraigado entre los proponentes de las reformas institucionales territoriales que buscan transformar la organización del sistema de actores como en el caso de Greater London Authority, de la Communauté Métropolitaine de Montréal, del Área Metropolitana de Lisboa, de la Comunidad Autónoma de Madrid, de la VRS de Sttutgart, mientras que hacia 2002 estaban en proyecto la Cittá Metropolitana de Milán, Roma Capitale, el fortalecimiento de la CRIF de París y la fusión de dos entes con Berlín, mientras que ni en Barcelona, Toronto y Manchester se detectaron algún tipo de iniciativas en curso (Lefebvre, 2004, pp. 13-14). De manera que en Europa y en Canadá la cuestión es la confi guración del “proyecto metropolitano” que, en síntesis, recoge las siguientes características:

• El promotor del proyecto debe ser identificable. Puede ser el líder político (Londres) de la metrópoli o de un grupo político. Este elemento es importante, puesto que la dimensión de un proyecto metropolitano requiere de liderazgo para avanzar, esto es, el proyecto metropolitano necesidad de alguien que de la dirección, la orientación, la visión.

• El proyecto metropolitano debe disponer del apoyo de una estructura política. Para avanzar, para materializarse, para que las decisiones se tomen, se requiere de un soporte institucional. Tal apoyo puede provenir de diferentes lugares dependiendo de la naturaleza del proyecto metropolitano (reforma institucional y/o plan estratégico), de la c iudad central , del organismo gubernamental metropolitano cuando exista (Londres) o de una estructura creada para este fi n (Barcelona).

• El proyecto metropolitano necesita una estructura técnico-administrativa para proveer las necesidades materiales y de personal para dar forma a las ideas y la visión del proyecto. Esta estructura puede estar en el órgano de gobierno metropolitano (Londres), en la ciudad central (Roma) o en una estructura ad hoc (Barcelona).

• La movilización de la sociedad civil es fundamental ya que da legitimidad al proyecto metropolitano (lo que deja de ser un proyecto tecnocrático) y crea una imagen (que es un proyecto de todo el territorio). Esta movilización puede tomar diversas formas, de una actividad de movilización general (Barcelona) a las formas más institucionalizadas (Montreal).

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• La existencia de un documento palpable que sintetice el proyecto metropolitano, constituye el símbolo y la prueba de su existencia. Su existencia hace que el proyecto metropolitano sea tangible. Este documen to puede adoptar diversas formas, un documento único (Manchester), un conjunto de documentos estratégicos (Londres), una sucesión de documentos y actividades (Barcelona).

• Por último, el Metropolitano debe en algún momento producir medidas concretas para ponerla en práctica. En el caso de las ciudades estudiadas se encontró que en raras ocasiones el proyecto metropolitano puede avanzar sin tales medidas, en algunos casos porque este tipo de acciones son demasiado recientes, pero esas premisas son un buen comienzo (Lefebvre, 2004, p. 15: traducción libre del autor).

La cuestión del modelo Barcelona amerita una refl exión más precisa; aún está en ciernes un debate a fondo. Mientras que para Capel (2006, p. 1)

[...] plantear el problema del modelo

Barcelona es debatir la forma como

se ha de realizar el urbanismo y los

mecanismos que se ponen a punto

para organizar la participación de los

ciudadanos,

para Bohigas el modelo existe como metodología, esto es, como “método de utilizar los instrumentos urbanísticos y de planificación” (Bohigas, citado por Capel 2006, p. 3) que, en el plano metropolitano, se han concretado en dos principios: el de la reconstrucción de la ciudad existente en lugar de la expansión y el de la

compacidad y continuidad urbana en ligar de la suburbialización; que, no obstante de ser compartidos por los agentes de la estructuración metropolitana, han tenido alcances limitados, pues la expansión, además de no haber logrado contenerse, por el contrario, se ha intensifi cado (Capel, 2006, p. 4).

En la tradición europea parece darse por hecho que el proyecto metropolitano por s í mismo goza de la capac idad aglutinadora y la legitimidad que derivaría de la gobernanza. De hecho, el empleo recurrente de la palabra actor es consistente con una visión de esta naturaleza, en la que el proyecto metropolitano aparece como el guión a representar por los personajes puestos en la escena metropolitana. No hay lugar a la innovación ni a la sorpresa, pues se idealiza un mundo de certezas en el que la diversidad se diluye en el crisol del proyecto metropolitano.

El prestigio de los políticos europeos entre la opinión pública metropolitana y entre ellos mismos parece ser algo notable, pues en la condición del promotor identificable radica buena parte del éxito del proyecto metropolitano. Ese prestigio se pone en juego para cooptar al resto de actores quienes, en principio, se someten al liderazgo del promotor y a su visión metropolitana. Si un proyecto metropolitano implica la coordinación de políticas en la que los agentes son los alcaldes elegidos popularmente y los cabildos municipales que ejercen la vigilancia y el control político, la vinculación al proyecto les implica necesariamente ceder parte del poder que les fue restituido con la descentralización. Por tanto, si el liderazgo surge del núcleo urbano principal, la desconfianza de los

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gobernantes de los municipios involucrados en el proyecto acerca de sus verdaderas intenciones da generalmente al traste con las iniciativas de institucionalización de acuerdos y de formas mancomunadas de intervención.

El órgano metropolitano de toma de decisiones es la arena de la disputa política y su diseño institucional requiere de refl exión y de un gran tacto pues, de un lado, el reconocimiento de la diversidad y del hecho de que las autonomías se ponen en juego no pueden encajarse en un modelo por exitoso que haya sido y, del otro, esas mismas autonomías municipales se esgrimen ante cualquier asomo de autoritarismo de la ciudad central que procure la subordinación de los municipios menores a los designios del núcleo urbano principal. Imaginen un programa metropolitano de inversiones con recursos públicos escasos que implique el desarrollo secuencial de las iniciativas. Si el presupuesto metropolitano ha sido configurado con arreglo a la importancia poblacional o funcional de los entes territoriales involucrados, el alcalde del núcleo urbano principal querrá que las decisiones de asignación presupuestal se tomen a prorrata de los aportes y, en ese momento, el proyecto metropolitano habrá fenecido pues a los demás alcaldes les incomoda su posición como agentes minoritarios. Si las decisiones se toman a razón de un voto de las mismas características por cada ente territorial, el alcalde mayor se retirará porque sentirá vulnerada su condición de aportante mayoritario.

¿Cuál es la alternativa para mantener la unidad y la cohesión del organismo de decisiones metropolitanas? Seguramente que hay varias, pero el punto de partida

es necesariamente la identificación de las áreas de intervención metropolitana estatal que exigen de la coordinación de políticas y, seguidamente, de un pequeño haz de proyectos de inversión pública metropolitana en el que se tenga la claridad de que una intervención en el área de influencia inmediata del núcleo urbano principal le reporta beneficios a los municipios metropolizados y viceversa. Es decir que, en primer lugar, la incorporación de proyectos locales encubiertos bajo una supuesta infl uencia metropolitana cuando en realidad no la tienen, es el principal detonante de los desacuerdos entre las autoridades políticas que confl uyen en los órganos metropolitanos y, en segundo lugar, lo es el desmedido poder de decisión que un acuerdo institucional le pueda otorgar al representante político del núcleo urbano principal.

En relación con la estructura técnico-administrativa es obvio todo proyecto metro politano la requiere; sin embargo, lo que realmente trascendente son sus funciones y las capacidades requeridas del personal para conformarla. Las ejecutorias del nivel local son bastante diferentes de las del nivel metropolitano en tanto la coordinación de entes territoriales para la regulación fi scal y ambiental, la gestión de las iniciativas de política y la financiación de la prov i s ión de b ienes púb l i cos metropolitanos. Los traslados horizontales del personal de las administraciones locales o regionales al organismo metropolitano trae más desventajas que ventajas pues, de un lado, su vinculación secular con los grupos políticos locales hace que esos cuadros sean requeridos allí, mientras que en el organismo metropolitano se requiere de un personal con capacidad de

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desprenderse de los atavismos de la política local para cualificar su gestión con una visión supralocal, esto es, metropolitana, de la intervención estatal. Tal estructura, además, tiene que ser de carácter público pues, de un lado, es inconcebible que organ i smos de l Es tado promuevan organizaciones privadas o mixtas para que realicen las labores que en otro caso el los mismos debían hacer. En otras palabras, unos organismos públicos que promuevan entidades de derecho privado serían el equivalente a la exacerbación de una gobernanza que destituye de facto al funcionario público por incompetente.

¿Qué se entiende por movilización de la sociedad en torno a un proyecto metropolitano? Hay una tendencia a satanizar la participación ciudadana en foros y cabildos cuando se trata de legitimar las decisiones que los técnicos del organismo metropolitano proponen pues se da por descontado que las decisiones ya han sido tomadas y que los participantes están siendo manipulados. Sería útil entonces invertir el fl ujo de la participación, es decir, la gente opina y el técnico procesa. Pero, más allá de las discusiones procedimentales que, de hecho, se tornan trascendentes en algún momento del proyecto metropolitano, la cuestión es si en verdad es posible que este cuente con el respaldo ciudadano. Ese respaldo proviene del convencimiento de que las ejecutorias que se proponen, así no estén dentro de la jurisdicción local, sí favorecen el desarrollo y contribuyen a resolver. La tarea no es nada fácil pues cuando se tiene la idea de que la intervención favoreció al vecino, la población local se siente excluida del proyecto metropolitano, situación que es explotada en épocas electorales por los

candidatos locales. Luego la movilización de la sociedad se deriva de la inclusión metropolitana y se alcanza, de nuevo, con las iniciativas de coordinación de políticas y los proyectos públicos de inversión que involucren a la mayor porción de la población de la zona metropolitana.

El contrato público metropolitano es un contrato que tiende a ser completo en tanto los acuerdos que le dieron origen tengan un horizonte temporal relativamente claro y, por lo demás, no muy extenso. Esto es así pues reduce la incertidumbre. Ante condiciones fiscales cambiantes, el establecimiento de metas regulatorias y de inversión pública por etapas es una estrategia flexible que ofrece alternativas a los potenciales candidatos a los cuerpos colegiados y administraciones locales. Una etapa puede llevar más de un período político pues su fi n es el mismo en el que se realice el objeto del contrato metropolitano, y sólo hasta que se culmine se puede dar paso a la siguiente etapa. Es posible que allí se vuelva a surtir una negociación que puede ser tediosa, pero que es infranqueable. Pero, dadas las ejecutorias de la etapa precedente, el espíritu del momento podrá modifi carse a favor de la continuidad del planeamiento metropolitano previsto o en detrimento de este.

Las acciones emblemáticas son cada vez más decisivas para los proyectos metropolitanos. La firma periódica de acuerdos de voluntades entre los gobernantes de los entes territoriales involucrados en el proyecto metropolitano va en contra de la movilización ciudadana que este exige, si tal renovación de acuerdos no se acompaña de alguna ejecutoria cuyo rédito social y político será aún mayor si se trata de subsanar

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alguna omisión flagrante que, además, concierna a algún proyecto incluyente. Hay una tendencia a pasar por alto los principios de escasez y de proporcional idad al momento de suscribir o renovar los acuerdos metropolitanos que, en lo fi scal y fi nanciero son decisivos. Por otra parte, las ejecutorias físicas son más reputadas que las de política como la coordinación del tratamiento fi scal metropolitano a la inversión productiva o la misma regulación ambiental, siendo en ocasiones más perentorias las últimas, de manera que el contrato y su gestión están en capacidad de subsanar tal malentendido.

La claudicación de una porción de la autonomía local a favor de un organismo metropolitano es, sin lugar a dudas, uno de los principales obstáculos para el avance del proyecto metropolitano, pues pone en juego una parte signifi cativa del modelo territorial de Estado y de la reproducción política. Si hay algún proyecto a analizar en este sentido, es el de la cuestión autonómica regional en España y, en particular, la de Madrid (Zárate, 2003, p. 286). La adaptabilidad de Madrid a las transformaciones planetarias ocurridas con la globalización, a sus exigencias, parece estar supeditada a la promoción de la autonomía. En efecto, la Comunidad Autónoma de Madrid ha sido relanzada al escenario global a partir de su incorporación a la Unión Europea y de las intervenciones que a través del planeamiento regional le permitieron superar ciertos rezagos tecnológicos que afectaban su desempeño económico, siendo la rápida conversión del aparato productivo diseñando para el consumo de masas hacia la producción flexible uno de los rasgos dominantes de la nueva economía regional ibérica, pues involucra no sólo a Madrid

sino a la capital lusitana, Lisboa, y al puerto de Valencia. Al nivel intraurbano, hoy ya se habla de la homogeneización de los paisajes y de la destrucción de los valores culturales enraizados en el pasado, mientras que la periferia asiste también a un relanzamiento de su n ive l de v ida por fuerza de intervenciones deliberadas para contener las “deseconomías de la macrocefalia madrileña” (Zárate, 2003, p. 288).

Los problemas de sociabi l idad y habitabi l idad no son extraños a una Comunidad en plena expansión económica. Los barrios de extranjeros han aflorado dejando sus improntas culturales en el medio urbano, lo que ha generado una contra-reacción racial dirigida a la diáspora latinoamericana y china, especialmente. El avance de la terciarización de la economía encuentra su principal manifestación socioespacial en el incremento notable en los precios del suelo urbano que acarrea también un incremento en los costos residenciales, de manera que la localización de las oficinas tiende a refluir del centro hacia la periferia de la ciudad, justo en el borde que conecta a Madrid con su entorno metropolitano inmediato (Zárate, 2003, p. 290). El fenómeno de la suburbanización ha irrumpido en los entornos rurales con peculiar ímpetu. Las segundas residencias son poco diferenciadas, de manera que la homogeneización de los productos inmobiliarios traduce el ambiente impersonal de un tipo de ocupación excesivamente denso (Zárate, 2003, p. 296). La ocupación ilegal del suburbano sur contrasta con el desarrollo formal de la zona norte. Es notable la ambigüedad de las edifi caciones ya que además de la ilegalidad que viene acompañada generalmente de la fragilidad

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constructiva, la proliferación de piscinas parece ser el rasgo distintivo de unos habitantes esporádicos que claman por esparcimiento.

Luego de 25 años de creada la Comunidad Autónoma de Madrid, al parecer el modelo de organización metropolitana de Madrid ha sido desbordado y se requiere de uno nuevo que promueva un orden territorial más amplio en lo social, y más extenso en lo territorial. El modelo post-fordista le ha impreso un peculiar dinamismo a la economía madrileña, con lo que el nivel del ingreso de las familias ha mejorado tanto que se están haciendo factible nuevas demandas por suelo suburbano para diferentes usos en la post-metrópoli. Las mejoras en las condiciones de accesibilidad regional están permitiendo la expansión del umbral metropolitano. La ciudad región es la opción más proclamada por académicos y por políticos ibéricos en los últimos años. La interacción cotidiana es cada día más intensa, siendo el trabajo el motivo que detona el mayor número de movimientos al interior del espacio metropolitano de la CAM. En esto, los subsidios de transporte – el bono transporte madrileño – han desempeñado un papel importante que favorece las interacciones, dado que muchos trabajadores de la capital residen en Castilla-La Mancha, por ejemplo.

La cuestión latinoamericana

Los procesos de metropolización en América Latina guardan estrecha relación con la forma de articulación de cada nación a las esferas mundiales de la acumulación de

capital y, por tanto, tienen una dimensión histórico-social que hacen de tal fenómeno un hecho social diacrónico pues, en efecto, algunas formaciones sociales en las que se detectó de manera temprana algún avance de la metropolización han experimentado cierto rezago en relación con la profundización de la metropolización en otros lugares del subcontinente latinoamericano. En general, el modo de acumulación industrial de tipo fordista que exige un gran contingente de fuerza de trabajo y que es sostenible con altas tasas de desempleo urbano, promueve la aglomeración de actividades en ciertos lugares y una elevada concentración de población en estos, de manera que las disfuncionalidades atribuibles a la macrocefalia urbana están correlacionadas positivamente con el devenir histórico del desarrollo industrial de mediana y gran escala. Por su parte, el modo comercial de acumulación de capital no exige tal aglomeración como sí varias aglomeraciones con interacción fuerte en razón de los fl ujos de mercancías. La primera ciudad de las formaciones sociales articuladas al modo comercial de acumulación de capital no alcanza a tener la importancia relativa de la primera del modo industrial.

Con el advenimiento de las pautas de producción y circulación de mercancías post-fordistas, se demandan nuevas localizaciones. El consumo de espacio por las familias no es su mismo espacio de consumo como anota Rainer Randolph. El deterioro en la distribución personal del ingreso acarrea nuevas formas de segregación socioespacial, siendo la residencia en conjuntos cerrados la forma predilecta de aislamiento de las capas de ingresos altos de la población, justificada socialmente bajo el discurso

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setentero de la inseguridad urbana. Cuando esas formas residenciales se dispersan en el medio metropolitano, reproducen los esquemas generales de segregación a una escala espacial mayor que, de hecho, se agudiza cuando se sustituyen usos rurales por usos residenciales suburbanos. Los condominos cerrados son la exégesis de aquella práctica de cerrar vías por los vecinos para producir un barrio cerrado en el que los intrusos tienen prohibi da la entrada pues son clasificados como peligrosos por los residentes. Los estructuradores urbanos captaron rápidamente esta práctica e innovaron vertical y horizontalmente sus productos residenciales para ofrecer seguridad bloqueando la entrada de los intrusos.

Lo que está en juego no es propiamente la seguridad personal pues cuando el crimen organizado entra en acción, los afectados – notoriamente los residentes de los conjuntos cerrados – recurren a la justicia formal, pues la seguridad privada no asume responsabilidad alguna sobre los hechos. En medio de esa contradicción, lo que se esclarece es que el espíritu de diferenciación de los citadinos encuentra en el espacio metropol itano – notoriamente en el suburbano – los lugares propicios para sus prácticas de aislamiento que, por lo demás, son prácticas de orden primario en tanto se realizan con miembros de la familia o con colegas rutinarios del trabajo o del estudio, pero en escasas ocasiones con los vecinos. Por tanto, a las zonas metropolitanas más dinámicas de América Latina, les es inmanente la diferenciación y la exclusión socioespacial que se materializa, de un lado, por las desigualdades en la provisión de bienes públicos metropolitanos y, del otro,

por el uso ineficiente del suelo urbano y suburbano.

La accesibilidad metropolitana en la zona metropolitana de Buenos Aires hacia comienzos del presente siglo, analizada a partir del indicador TDI que sintetiza la oferta Transporte Integral (automotor y ferroviario) en relación a indicadores sociodemográficos (Staffa, 2007, p. 13), muestra que los municipios con menor accesibilidad metropolitana son los más alejados de la capital, los de menor densidad relativa y que cuentan con los mayores niveles de pobreza. Para los analistas argentinos, el efecto de las defi ciencias en la provisión de las condiciones de accesibilidad metropolitanas es el incremento en los traslados a pie; pero esas largas caminatas lo que hacen es inhibir el acceso del ciudadano que reside en los lugares de menor accesibilidad relativa al resto del medio metropolitano. Cuando la accesibilidad urbana queda supeditada a la combinación de modos de transporte, el entorno metropolitano asume la forma de un bien club, esto es, un entorno que solamente es accesible para quienes detenten la disponibilidad a pagar sufi ciente.

Pero, sin duda, hay algo más detrás de la dinámica económica metropolitana que origina sorpresas para los que no advierten las anticipaciones del orden urbano y metropo l i tano que es tán realizando los estructuradores formales. Seguramente que Berazategui es más deprimido socialmente que Tigre, pero el estructurador metropolitano produjo un nuevo orden desde el momento en que anticipó la demanda en condominios cerrados y se apropio del paisaje del delta, en proximidades a la represa, de manera que las mejoras en la provisión de la accesibilidad

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65metropolitana a Nordelta produjo tal incremento en los precios del suelo habitable que Berazategui debió quedar ahora mucho más alejado socialmente del resto del medio metropolitano y, con igual o peor suerte, todos aquellos partidos que le anteceden en el ordenamiento del Cuadro 3.

En el plano institucional, Buenos Aires se refunda desde 1994 cuando por mandato constitucional la emergente institucionalidad metropolitana se erige como un nuevo centro de poder sumándose a los precedentes: la Nación, la Provincia y el Municipio (Sabsay et al., 2002, p. 52). El alcance de su autonomía está aún por esclarecerse y, coetáneamente, el deslinde de sus funciones con la Nación, de manera que la naturaleza jurídica de la ciudad de Buenos Aires, sus funciones y, en relación con la cuestión metropolitana, su capacidad

para la creación de regiones, se intenta clarifi car para dar paso a los convenios con los municipios y la provincia. Hoy en día se reconoce que tanto la Constitución Nacional Argentina como la de la provincia no restringe de manera alguna la participación de Buenos Aires en la configuración de regiones (Sabsay et al., 2002, p. 60).

Esa noción de ciudad integrada en el ámbito metropolitano, en su dimensión ambiental, que deriva en acuerdos con otras jurisdicciones de la estructura ecológica común, es fundamental para la armonización y promoción de las bases territoriales de un orden metropolitano. Pero las otras jurisdicciones potencialmente participantes también se debaten en torno a la disyuntiva de su carácter autónomo o autárquico, es decir, entre su capacidad para autoregularse, autogobernarse y autoadministrarse delante

Cuadro 3 – Accesibilidad integral relativaen la Zona Metropolitana de Buenos Aires – 2000

Município Factor TDIEsteban EcheverriaGeneral SarmientoFlorencio VarelaMorenoLa MatanzaQuilmesMerloAlmirante BrownBerazateguiL. de ZamoraG. de San MartínTigreMorónLanúsSan FernandoSan IsidroAvellanedaTres de FebreroVicente López

32384046485153576774778494

119124175193195308

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de unas competencias territoriales o, simplemente, de autoadministrarse caso en el cual las competencias le son delegadas por el ente provincial y, por tanto, están expuestas a alguna restricción originada en la entidad que las otorga. La autonomía, por su parte, deviene de un mandato constitucional. En relación con la cuestión metropolitana

[...] el artículo 124 faculta a las

provincias a conformar regiones para

el desarrollo económico y social, no

existiendo norma expresa respecto a la

facultad de los municipios de participar

en esquemas de regionalización. (Sabsay

et al., 2002, p. 68)

Esas l imitaciones inst itucionales para la configuración metropolitana, esto es, para una modificación a los modelos territoriales de Estado, son muy comunes en los países hispanos de América Latina. En el caso colombiano, el interés de las autoridades bogotanas y del Departamento de Cund inamarca para organ izarse alrededor de una Región Administrativa y de Planificación Especial, implicó llevar a cabo una reforma constitucional que, cundo se logró, fue declarada inconstitucional por vicios de procedimiento en el trámite en el Congreso de la República. El antecedente institucional y político es la Ley 128 de Áreas Metropolitanas que promueve un desbalance al otorgar un gran poder decisorio al núcleo urbano principal, factor que desalienta a los gobernantes del área circundante a Bogotá para conformar el Área Metropolitana en esos términos.

En Brasil, que hoy por hoy cuenta con 5.564 municipios, parecen existir medios más expeditos para la confi guración

institucional metropolitana. Según el Observatório das Metrópoles, desde 1974, sea por leyes federales o estatales, en Brasil se han conformado “24 regiones metropolitanas y 3 regiones integradas de desarrollo económico, que acogen a 79,1 millones de personas, el 46% de la población brasileña, siendo notable la primacía paulista que con 39 municipios posee alrededor de 19 millones de habitantes, y la carioca en donde residen 11 millones de personas, en contraste con otras de menor calado como la Región Metropolitana del Sudeste de Maranhão que acoge a 324 mil habitantes de ocho municipios o la Región Metropolitana de Macapá donde residen 435 personas en dos municipios”.

Hay al menos tres convencimientos detrás de tal dinámica de la institucionalidad metropolitana. El primero tiene que ver con el reconocimiento del fenómeno en sí mismo, es decir, que el municipio tiene una dinámica local insoslayable pero que, por fuerza de la metropolización, es superada por una de mayor calado y cobertura regional. El segundo es que la institucionalización de la metropolización trae más ventajas, como el incremento del poder de negociación ante los gobiernos federal y estatal, que desventajas, como la supuesta pérdida de la autonomía; y, por último, que un buen diseño normativo federal o estatal promueve la institucionalización de la metropolización cuando no crea mayores desequilibrios, sino que los acota.

No ob s t a n t e l a e x i s t e n c i a d e signifi cativas aglomeraciones metropolitanas en el mundo que no han entrado en la tónica de la economía en red, el potencial económico de las mismas es indiscutible. Sólo en 15 de las 27 regiones metropolitanas brasileñas se

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concentra el 62% de la capacidad tecnológica del país y el 55% del valor agregado que generan las firmas exportadoras (De Queiroz, 2008, p. 1), de manera que el sistema urbano así confi gurado se reconoce como el principal activo para hacer frente a las nuevas tendencias de la acumulación global del capital. Sin embargo, en algunos medios se discute la supuesta decadencia de las metrópolis brasileñas y, de forma paralela, cierto auge de ciudades medias, siendo uno de los principales indicadores de tal fenómeno la desindustrialización detectada desde mediados de los ochenta y que implicó, por ejemplo, la contracción de la hegemonía industrial paulista estimada en 15 puntos porcentuales de la participación de São Paulo en el empleo industrial brasileño.

Pero tal contracción no implicó un retroceso semejante en la producción industrial, lo que sugiere que lo que está ocurrien do es un agudo proceso de reestructuración industrial que se ha logrado a costa de una elevación en la productividad media del trabajo, consistente con una elevación del grado de mecanización de los procesos fabriles. De hecho, entre 2002 y 2005 la participación metropolitana en el PIB pasó del 51,6 al 53,3% (De Queiroz y Martins, 2008, p. 4) mientras que la participación en la población también ha aumentado hasta situarse, en 2007, en 39,2%.

De manera que una ciudad media o intermedia, como se acostumbra a denominar a aquellas ciudades localizadas en esas franjas de la jerarquía poblacional y económica de la red de ciudades, puede detentar un crecimiento notable pero marginal a la luz del sistema urbano en su conjunto. Situación bien diferente es la que

afrontan las ciudades de esta naturaleza pero que, además, se localizan en un ámbito metropolitano, esto es, ciudades catalizadoras de tal crecimiento poblacional o económico que hace plausible una bifurcación metropolitana que, de conjunto, sí está en capacidad de modificar la estructura jerárquica de la red de ciudades y, por tanto, el patrón de ocupación del territorio de la formación social en cuestión.

Esa bifurcación metropolitana puede ocurrir por varias razones, principalmente a las que atañen a la forma de operación de los mercados inmobiliarios y de trabajo. En el caso de la Zona Metropolitana de Ciudad de México como en Barranquilla, las bifurcaciones están ocurriendo en razón de políticas sobre el mercado del suelo urbano. Ciudad de México, subdividida en 16 delegaciones, conforma con otros 41 municipios la segunda zona metropolitana más populosa del mundo con sus 18,8 millones de habitantes, sólo precedida por la conurbación asiática Tokio-Yokohama-Kawasaki que cuenta con cerca de 33,3 millones de habitantes. La bifurcación del crecimiento poblacional urbano hacia Nezahualcóyotl, Ecatepec y Chimalhuacán ha sido motivada en buena parte por la “restricción a la construcción de nuevos fraccionamientos en el Distrito Federal” (Carrasco y Andrés, 2007, p. 4), medida que detonó la ocupación irregular de terrenos en al oriente del Valle de México. En Soledad, conurbado de Barranquilla en el Caribe colombiano, la tasa de formación de hogares supera a la del núcleo metropolitano como resultado de la confluencia de al menos dos fenómenos. El acelerado crecimiento inmob i l i a r io forma l exper imentado

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recientemente en Barranquilla para acoger a familias de ingresos altos y medios-altos del resto del Caribe que han optado por cambiar de lugar de residencia y, de manera coetánea, las facilidades urbanísticas que ofrece Soledad para acoger a la población desplazada por los violentes de la Sabana Interior Caribeña, y que otrora se dirigían a lugares como Cantaclaro en Montería, por ejemplo.

El resultado de las bifurcaciones metropolitanas de esta naturaleza es la confi guración de municipios metropolizados de carácter monoclacista, en los que la política social local no es sostenible. En el plano de la institucionalización de la metropolización con la que se pueda hacer frente de manera conjunta a los desafíos poblacionales y sociales como los mencionados, en Barranquilla no se ha avanzado mucho mientras que en Ciudad de México se configuró en 2005 la Zona Metropolitana de Ciudad de México en la que, además de las 16 delegaciones y 40 municipios conurbados, se incorporaron otros 18 que se encuentran en el área de infl uencia inmediata del núcleo metropolitano y demás conurbados, que revisten las cualidades para ser conurbados en el futuro próximo. Esa anticipación institucional es tan proactiva en términos políticos y desea ble en el plano social que podría ser una excelente alternativa para proyectos metropolitanos como el de la expansión madrileña pues, además de reducir los costos en que incurre la intervención pública en la construcción de un nuevo ámbito metropolitano para la coordinación de políticas, facilita el diseño de políticas de bordes metropolitanos con la participación activa de los entes territoriales involucrados.

La cuestión anglosajona

La estructura jerárqu ica de la red estadounidense de ciudades, como pocas en el mundo, goza de una notable estabilidad, especialmente por la relativa ausencia de volatilidad de la población en su territorio, aún en medio de la supremacía económica, poblacional y dotacional del eje atlántico frente al eje de desarrollo del pacífico. El cosmopolitismo de su ciudad primada, Nueva York, es reconocido universalmente como el más acrisolado, fuente de mezclas raciales y etarias insospechadas que hacen de la afi rmación de la personalidad urbana una práctica en la que cotidianamente sus residentes refuerzan la superioridad intelectual que se irradia por causa del efecto metrópoli. La diversidad poblacional, cultural y económica que acogen sus cinco distritos – Manhattan, Brooklyn, el Bronx, Queens y Staten Island – los diferencian y los cohesionan a la vez, contradicción de la que emergen sus principales rasgos distintivos como metrópoli global a la cabeza de la red mundial de ciudades. La estabilidad secular de la tarifa del transporte masivo (un token por cualquier cantidad de estaciones por US$1,25) ha sido uno de los principales factores que han detonado la expansión de su influencia inmediata hacia New Jersey y Connecticut. La otra es el elevado nivel de precios que caracteriza al real estate neoyorquino desde sus orígenes cuando los grandes especuladores inmobiliarios – los Astor, Beckman o Vanderbilt (Charyn, 1998, p. 28) – acumularon inmensas fortunas al calor del hacinamiento crítico de los residentes de comienzos del siglo XIX “que algunos vieron en ella una amenaza

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para el hogar americano” (Charyn, 1998, p. 32). Medio siglo más adelante, la “Capital del Mundo” comenzará a acoger la herencia de todos los tiempos y de cualquier lugar del universo:

El día de la llegada de los inmigrantes

a Nueva York era lo más parecido que

se puede encontrar en este mundo al

Juicio Final, en que uno es digno o no

de entrar al Paraíso… Ellis Island se

convirtió rápidamente en uno de los

arquetipos de Nueva York, en la “isla

de las Lágrimas”, donde a menudo

se separaban las familias, donde los

inmigrantes debían pasar por un

doloroso crisol, donde los cuerpos

eran marcados con t iza, recibían

nuevos nombres y nuevas identidades,

y al fi nal se precipitaban en el caos del

Nuevo Mundo, a la búsqueda de nuevos

recursos para subsistir. (Charyn, 1998,

p. 36)

Las grandezas neoyorquinas de hoy en día, Wall Street, los museos metropolitanos, la red de metro con el mayor número de estaciones del mundo, el legado de angolquinos e iroqueses en Broadway o la edifi cación en altura, por ejemplo, contrasta con la persistencia de antivalores, siendo el más notorio el de la segregación racial mistificado en Harlem. Por otra parte, a esas grandezas se accede por mecanismos de mercado: el alcalde Bloomberg afi rmó

[...] no vamos a subsidiar a ningún

individuo o empresa para que venga

aquí a Nueva York. Cualquier empresa

que necesite subsidio no la necesitamos

aquí, sólo queremos corporaciones,

empresas que quieran radicarse en

lugares de alta calidad. (Harvey, 2006,

p. 4)

Otras zonas metropolitanas detentan rasgos distintivos acuñados por lustros y que en la actual idad les confieren alguna preeminencia en la formación social anglosajona: Boston-Cambridge es reconocida como núcleo tecnológico, educativo y arquitectónico, Washington-Baltimore por ser la ciudad pensada para acoger los núcleos gubernamentales del poder y sus acti vidades de apoyo y San Diego-Tijuana por ser la fuente de la nueva hispanidad que se extiende por el eje de desarrollo del pacífi co. Pero, por diferentes razones, en estas preeminentes zonas metropolitanas no es fácilmente discernible la “mítica dicotomía del declinio urbano y la prosperidad suburbana que conlleva el declinio social y económico que se detiene en las fronteras de la ciudad central” (Orfi eld, 1999, p. 1) como si ocurre en las zonas metropolitanas de la Región de los Lagos o en las del noreste estadounidense.

Tal declinio, por lo tanto, es atribuible también a los viejos trabajadores que en la actualidad conforman las capas de ingresos medios que residen en los suburbios y en las ciudades satélites en las que las agencias de servicio social atienden un fl ujo creciente de personas dolientes del stress urbano. En el mismo sentido, el empobrecimiento persistente de las zonas deprimidas estadounidenses se desenvuelve en medio de una fi scalidad precaria caracterizada por bajísimas tasas impositivas que no proveen los recursos necesarios para atender la demanda de escolaridad y de otros servicios públicos (Orfield, 1999, p. 1) originada,

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en muchos casos, por “una suerte de carrera armamentista en la que todas las localidades ofrecen incentivos, pues temen los resultados de no hacerlo” (Clarke et al., 1999, p. 59). El resultado de mediano plazo consiste en la contracción de la base tributaria local sin una respuesta efi caz en la creación de empleo local y una ampliación de la demanda insatisfecha de bienes y servicios públicos que termina por deprimir aún más el medio, generalmente suburbano, de lo que estaba antes. Del otro lado, del de las empresas benefi ciarias de las desgravaciones y subvenciones, estas se confi guraron como una renta corporativa cuya obtención no conllevó costos ni riesgo alguno y a la que, por tanto, difícilmente renunciarían.

La expansión suburbana y la polarización social, la violencia homicida y la segregación son cada vez más frecuentes en los medios metropolitanos. Las zonas suburbanas metropolitanas son fragmentadas para alojar a las clases trabajadora, media y alta. La primera opta por residir en proximidades a los emplazamientos industriales de manera que los trayectos cotidianos del lugar de residencia al sitio de trabajo sean factibles de realizar caminando. La clase media localiza su residencia en proximidades a lugares de tránsito pesado, de fl ujo de carga, conformando barrios de trabajadores. La clase alta reside en barrios de donde han sido removidas las familias de las otras dos clases y que gozan de atractivos ambientales (Orfield, 1999, p. 22). Cada clase ocupa su lugar confi gurando un orden metropolitano amparado en una estructura radial de redes de transporte y en las innovaciones residenciales de los estructuradores metropolitanos para

salvaguardarlo, mimetizadas bajo el lema de la seguridad personal.

Los private communities se abrieron paso en el medio suburbano desde mediados de los setenta. Por entonces se detectaron 340.000 residencias en private communities, mientras que hacia 1990 se estimó en 5,9 millones de personas los residentes en esta pauta de ocupación suburbana. En general los estructuradores metropolitanos ofrecen un paquete que incluye la seguridad física, la garantía de tener vecinos semejantes, algunas facilidades recreacionales y un diseño que integra alamedas y ciclopaseos. A cambio se exige del residente una elevada cuota de administración y manutención del condominio, su vinculación a una asociación de vecinos y el pago periódico de las cuotas de afi liación y sostenimiento y el cumplimiento de un conjunto de reglas. Cuando estas se endurecen, la sujeción de los residentes a las mismas da lugar a los gated communities. Fairfax County en Reston, Virgnina y Howard County en Columbia, Maryland, son casos emblemáticos de estas modalidades. Algunos de sus elementos distintivos se han emulado en Nordelta en la Zona Metropolitana de Buenos Aires, Barra de Tijuca en Río de Janeiro y Alphaville en São Paulo y Curitiba. Sujeción a reglas como la de que en el condominio no pueden habitar personas menores de 18 años ni mayores de 55 o la obligación de remitir previamente a la administración las hojas de vida de los invitados a una reunión para que ella autorice o no su presencia, son sólo algunas de ellas.

Levy (1997, p. 98) se pregunta: “si cree mos en la elección maximizadora del consumo en vestuario y automóviles, por

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qué no en condominios como estos?” Y responde: “porque son la destrucción del Edén de la integración” que “trasciende a un problema de diseño físico” y que tiene implicaciones sociales en materia de segregación socioespacial metropolitana. “Las elites han optado por el aislamiento, pagan por él generosamente y de buen grado”, apunta Bauman (1999, p. 32) para quien las reglas de los gated communities cumplen la función de poner en evidencia los patrones de normalidad de las personas que entonces podrán residir en un condominio al que se le prohíbe la entrada al resto de personas que deben quedar aislados temporalmente, configurándose de esa manera un orden a la manera anglosajona que se irradia hoy por todo el mundo:

La expe r i en c i a de l a s c i udades

norteamericanas analizadas por Sennet

apunta a un elemento común casi

universal: la suspicacia, la intolerancia

de las diferencias, la hostilidad hacia

los forasteros y la ex igenc ia de

separarlos y desterrarlos, así como

la obsesión histérica, paranoica, por

“la ley y el orden”, tienden a alcanzar

su más alto grado en las comunidades

más uniformes, las más segregadas

en cuanto a raza, etnia y clase social,

las más homogéneas. (Bauman, 1999,

p. 64)

La polarización regional y su expansión en los Estados Unidos tienen diferentes man i fes tac iones soc ioeconómicas y espaciales: concentración de la pobreza en ciertos grupos poblacionales y su mayor incidencia entre los niños y mujeres cabeza de familia, defi ciencias de ingreso,

de escuelas públicas y, en general, de acceso a la educación, escalada del crimen, infraestructuras precarias, disparidades fiscales y discriminación laboral, por ejemplo. Las principales diferencias están en la intensidad con que se presentan estos fenómenos en las diferentes zonas en expansión.

P a r a l o s i n v e s t i g a d o r e s d e T h e M e t r o p o l i t a n A r e a R e s e a r c h Coporporation – MARC, las soluciones metropolitanas se articulan en tres ejes: a) equidad; b) crecimiento prudente; y, c) reformas estructurales metropolitanas. Al primer eje le conciernen las políticas tributarias, especialmente las que conciernen a los usos del suelo. Minnesota es pionera de tales medidas pues aún preservando la autonomía local se logró mejorar la provisión local y estatal de servicios públicos con base en acuerdos entre jurisdicciones (Orfield, 1999, p. 46). La discusión de la equidad metropolitana que involucra diferencias entre el núcleo metropolitano, los municipios metropolizados y entre ellos en su conjunto es, obviamente, muy compleja, pero lo que la hace más compleja es no discutirla. Los resultados han conducido a la eliminación de la competencia tributaria intra-metropolitana y, más aún, a la adopción de políticas como la del Tax Increment Financing. El tercer mecanismo es el de la planeación del uso del suelo, cuyo objetivo principal es el de evitar la ocupación de bajas densidades y la toma de decisiones sobre la infraestructura metropolitana que evita la expansión de estas características. Otras medidas complementarias han sido la equidad escolar en las que el Estado complementa los fondos para garantizar el acceso universal teniendo en cuenta el

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esfuerzo tributario local, la revisión de las transferencias y la reinversión en antiguas comunidades cuya revitalización genere una ampliación de la base tributaria.

Las políticas de control al crecimiento, como en el caso de Grand Rapid en Michigan, intentan intervenir el crecimiento en los márgenes buscando que no se agudice la segregación y empeore la contaminación y el consumo de energía, entre otros males que encarecen la vida para el conjunto de los residentes de la zona metropolitana. El modelo de planeación del suelo de Oregon es el más comúnmente asimilado en estas localidades, siendo el Estado el que promulga los lineamientos de usos del suelo aplicables a todas las jurisdicciones, las pautas de crecimiento de la ciudad central de los municipios metropolizados, las metas en vivienda y, de manera coherente, los planes de transporte, agua y saneamiento, parques e infraestructura educativa (Orfi eld, 1999, p. 52).

L a s r e f o r m a s e s t r u c t u r a l e s metropolitanas, por su parte, conciernen al papel de las Organizaciones Metropolitanas de Planea miento y a su composición y a su legitimidad en la perspectiva de la toma de decisiones que infl uyen en el futuro de la región metropolitana. En el caso de los private and gated communities se ha visto como los estructuradores metropolitanos privados se convierten en los verdaderos planeadores mientras que las OMP asumen un rol pasivo, el de consejeras de los cuerpos legislativos, al paso que inmensas zonas carecen de control de uso del suelo,

de zoneamiento, las áreas de desarrollo se

autonomizan de las ciudades, la inefi ciencia

económica de usos del suelo es notable y

otras áreas entran a ser replanificadas.

Los Utility Advisory Board (UAB) y Urban

Cooperation Board (UCB) son los acuerdos

entre jurisdicciones que han permitido

retornar a la gobernabilidad metropolitana:

en el primero se establecen los umbrales y

las reglas de la expansión metropolitana,

mientras que en el segundo se acuerda la

fi scalidad para ser empleada en los proyectos

de inversión física (Orfi eld, 1999, p. 56).

Refl exiones fi nales

Var iadas a l ternat ivas para afrontar

los desaf íos de las ag lomerac iones

metropolitanas son factibles de aprehender

de los estudios cualitativos, difícilmente

resumibles en algún ranking de experiencias

ex i tosas . De hecho , e l imborrab le

aprendizaje de los fracasos tiene la potencia

transformadora de los comportamientos que

alienta la búsqueda de nuevas alternativas. L a s z ona s d ep r im i d a s d e l mundo desarrollado aún experimentan alternativas institucionales para resolver los problemas comunes a las jurisdicciones integradas en alguna dinámica metropolitana, mientras que en América Latina las innovaciones institucionales ocurren otro tanto pero en medio de un creciente reconocimiento de que la defensa de las autonomías heredadas de la descentralización administrativa y fi scal no pueden convertirse en obstáculo a la concertación de políticas metropolitanas. Ant i c ipac iones como en e l caso de México y difusión de la institucionalidad metropolitana como en Brasil son casos emblemáticos de acuerdos que facilitan tal coordinación. La efi cacia de las soluciones

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Óscar A. Alfonso R.Doctor en Planeamiento Urbano y Regional por el Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Economista con estudios de maes tría en la Universidad de los Andes. Docente Investigador de la Universidad Externado de Colombia (Bogotá, Colombia). [email protected]

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Nota

* Este trabajo fue realizado con el apoyo de la Secretaría Distrital de Planeación de Bogotá, D. C. Agradezco los comentarios y sugerencias de Humberto Molina, Carolina Méndez, Johann Julio y del lector anónimo de la revista Cadernos Metrópole.

propuestas a los desafíos metropolitanos radica, en buena medida, en la originalidad de las alternativas las que, por su parte, provienen de los diagnósticos adecuados, de la apropiación crítica de las experiencias

metropolitanas globales y, sin duda, de la capacidad innovadora de los cuadros de las organizaciones metropolitanas de planeamiento, los tres pilares de la metropolítica.

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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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Demandas sociais e ocupação do espaço urbano. O caso de Brasília, DF*

Aldo Paviani

ResumoA cidadania tem apresentado demandas e se manifestado em diversos campos, sobretudo quanto à atuação governamental, lacunosa em setores importantes como saúde pública, desenvolvimento educacional, transportes co-letivos, políticas habitacionais, etc. Ao avaliar a urbanização, profissionais analisam essas demandas em termos de como territórios, com características especiais, são demarcados e apropriados. A demarcação para reservas estratégicas ou para povoamento é efetivada pelos cidadãos, pelos atores públicos e econô-micos. Os territórios demarcados para o fu-turo são vistos, na atualidade, como “vazios” urbanos (terras desocupadas ou vagas) e são objetos da ação dos incorporadores imobili-ários, que lucram com terras valorizadas, em prejuízo das populações urbanas excluídas. Ao fi nal, sugerem-se medidas para a democratiza-ção do acesso aos bens e serviços socialmente constituídos.

Palavras-chave: demandas sociais; uso da terra urbana; políticas urbanas; urbanização; Brasília.

AbstractCitizenship has made demands and expressed itself in different sectors of our society, mainly regarding the government’s action, as it has been less active in public services such as public health, educational development, public transportation, housing policies, etc. When professionals evaluate urbanization, they analyze these demands in terms of the way in which territories with special characteristics are demarcated and appropriated. Territorial demarcations for strategic reserves or for population are carried out by the citizens, by state agencies, and by economic agencies. Territories demarcated for future use are actually seen as urban “voids” (vacant areas) and are objects of speculation by real estate agencies that aim to profit with valuable areas, to the prejudice of the excluded urban populations. This paper suggests actions that can be taken in favor of the democratization of access to goods and services that were created in favor of the population.

Keywords: social demands; urban land use; urban policies; urbanization; Brasília.

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“Cabem, pelo menos, duas perguntas em um país onde a fi gura do cidadão é tão esquecida. Quan-tos habitantes, no Brasil, são cidadãos? Quantos nem sequer sabem que o são?”

Milton Santos: “Há cidadãos neste país?”O Espaço do Cidadão, 1987

Introdução

Procura-se analisar e entender como a socie-dade, por seus agentes, apropria-se do ter-ritório e o organiza para o desempenho de inúmeras atividades necessárias ao ser hu-mano. Assim, ao estudar o ambiente rural, como as atividades no campo, enfatizam-se o uso da terra para cultivos, a criação de ga-do, exploração de madeiras e também ex-tração mineral. Igualmente, há preocupação de como se deixam glebas de reserva para proteger o ambiente natural, as matas cilia-res, os rios e a fauna necessários à sustenta-bilidade. Por isso, é importante entender os riscos e as vulnerabilidades do ambiente em que se ocupa a terra, sobretudo em tempos de grande pressão mundial por alimentos. Pressão intensa que pode transformar cam-pos e fl orestas em territórios degradados e inóspitos.

No ambiente rural e fl orestal importa: a) entender as vulnerabilidades do ambien-te em que se cultiva a terra e partir para a sustentabilidade; b) identifi car as ações que transformam terras férteis em ambientes

estéreis e arenosos; c) pensar a Amazônia e os Cerrados como biomas gigantescos e importantes territórios de reserva para as futuras gerações; d) preservar o espaço amazônico da cobiça (nacional e internacio-nal) é dever do Estado, das empresas e de todo brasileiro.

Quando urbanistas, geógrafos e arqui-tetos avaliam o ambiente urbano, pesquisam como territórios, por vezes com característi-cas especiais, são demarcados e apropriados. A demarcação para reservas estratégicas ou para povoamento é efetivada pelos ha-bitantes (urbanitas), pelos agentes estatais (planejamento urbano) e pelos agentes eco-nômicos (incorporadores imobiliários, em-preiteiras, etc.). Os territórios demarcados para usos futuros são vistos, na atualidade, como “vazios” urbanos (terras desocupadas ou vagas) e são vulneráveis por conta dos ataques de agentes econômicos que visam lucros imediatos com terras valorizadas. No ambiente urbano, as análises se voltam pa-ra territórios com características especiais, p.ex., reservas estratégicas para povoamen-to futuro. Nem sempre os espaços urbanos

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são objeto de políticas públicas abrangentes com visão não imediatista. As ações para modifi car territórios e aglomerados urbanos ocorrem com uma conjunção de forças.1

Poderíamos utilizar, em âmbito na-cional, a teorização de Milton Santos para o caso brasileiro, em termos da “dinâmica territorial”, quando trata da “dissolução” da metrópole brasileira:

Pode-se dizer, no caso do Brasil, que,

ao longo de sua história territorial, as

tendências concentradoras atingiam

numero maior de variáveis, presentes

somente em poucos pontos do espaço.

Recentemente, as tendências à disper-

são começam a se impor e atingem

parcela cada vez mais importante dos

fatores, distribuídos em áreas mais vas-

tas e lugares mais numerosos. (Santos,

1993, p. 89)

Milton Santos explicitou que há for-ças presentes nas grandes cidades capazes de gerar concentração, que podem levar à verticalização e forças de dispersão que pro-piciam horizontalização, isto é, “as horizon-talidades serão os domínios da contiguidade, daqueles lugares vizinhos reunidos por uma continuidade territorial” (1994, p. 16), es-paços da solidariedade. Esses movimentos, no interior da dinâmica urbana, são conco-mitantes e não-concorrentes, pois cada qual toma para si um naco do território: a disper-são com alargamento das periferias propicia a dissolução do tecido urbano para limites cada vez mais amplos, enquanto que as for-ças concentradoras buscam comprimir ativi-dades e serviços em estritos territórios dos centros metropolitanos, ocupando o espaço aéreo, ganhando as alturas com arranha -

céus e valorizando a terra dos núcleos cen-trais. Tanto a verticalização quanto a hori-zontalização são fruto de processos mais amplos de modernização e globalização, que têm na metrópole espaços de excelência.

De acordo com Souza (2008, p. 43):

Como essa modernização é territorial-

mente seletiva, logo socialmente seletiva

também, ela deixa de fora dessa forma

muitas empresas capazes de utilizá-la,

excluindo a participação de boa parte da

economia urbana e da população.

Como esses movimentos modificam a es-trutura urbana, a continuada valorização da terra central exige um terceiro movimento, a contenção ou preservação de espaços li-vres, que denomino “reservas estratégicas para o futuro”. Não se deve ocupar todo o território, deixando-se espaços para mais adiante.

Em resumo, as forças e os movimentos perceptíveis pela geografi a urbana são, em primeiro lugar, o espraiamento horizontal ou horizontalização de suas periferias por assentamentos para habitações subnormais, de baixa renda (favelas). Há também em-preendimentos imobiliários (condomínios fechados); em segundo lugar, o crescimento vertical ou verticalização pela construção de edifícios de múltiplos pisos para habitação ou para escritórios, clínicas e outros servi-ços; em terceiro lugar, um movimento de contenção ou barramento, que visa, de um lado, deixar áreas de reserva para usos fu-turos ou estoque de terras para a especula-ção imobiliária e, de outro, conter ações es-peculativas do mercado imobiliário,2 como se verá a seguir. Todas essas ações podem se efetivar simultaneamente.

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Ocupação do espaço nas grandes cidades

No caso de agentes estatais, os estoques de terra ou grandes áreas sem utilização (áreas desocupadas ou “vazios urbanos”) que visam necessidades de expansão em demanda efe-tiva da sociedade. Há demandas induzidas, provocadas por uso intensivo do aparato da propaganda por parte de empreendedores privados. Raras são as grandes cidades bra-sileiras em que o ente municipal ou estadual, ao longo do tempo, fez previsões para suas necessidades futuras de terras para equipa-mentos ou serviços públicos. Nesse caso, há duas saídas: uma a desapropriação de pro-priedades privadas, como acontece na aber-tura de novas avenidas ou construção de escolas e hospitais; a segunda ação liga-se à improvisação e mesmo acordo com entida-des privadas ou órgãos federais que incluem permutas ou convênios de mútuo interesse. Em todos os casos, os movimentos no inte-rior da metrópole envolvem alargamento de sua periferia com a necessidade suplemen-tar de obras viárias, extensão de redes de sanea mento básico e de energia elétrica.

Por sua vez, o alargamento horizontal de cunho empresarial e a verticalização mui-tas vezes pouco têm a haver com a deman-da efetiva por parte da população. Obras em condomínios “fechados” nas periferias metropolitanas são movimentos imobiliá-rios que induzem à ocupação da terra e a lotea mentos. Neles se propagam os privilé-gios ambientais do empreendimento (par-ques, jardins e lagos artificiais ou mesmo piscina e áreas destinadas a esportes). Es-ses empreen dimentos destinam-se às clas-ses média e alta. Em alguns casos, essa

horizontalidade assistida por arquitetura, engenharia e paisagismo serve de argumen-to para que, ao correr das obras iniciais, os empreendedores efetivem vendas que tor-nem seguro o negócio. Na fase de procura de segurança com conforto ambiental, raros são os empreendimentos que fracassam, apesar (ou por causa) dos altos custos que pesam no orçamento dos compradores. Não há previsão de controle emergencial desses empreendimentos no caso de contaminação por parte da grande crise imobiliária ameri-cana de 2007/2008.

Há inúmeros exemplos de condomí-nios de porte que vingaram sob a bandeira da segurança, embora esta não seja tarefa do Estado, mas dos expandidos “serviços de vigilância” de cunho privado. Então, a pos-sível vulnerabilidade da segurança interna do condomínio é suprida por vigilantes ar-mados, guaritas, câmeras de vídeo, cercas eletrificadas e cães ferozes. Nem sempre esses itens têm amparo legal, mas servem de vitrine para a divulgação na imprensa de páginas inteiras de anúncios para atrair compradores. Os construtores omitem o fato de que as terras destinadas ao condo-mínio são ou não circundadas por favelas. Essas, no Brasil, tornaram-se sinônimos de ausência do Estado e, portanto, presa fácil de atividades ilegais, contravenção, tráfi co de entorpecentes e de criminalidade.

A favela, por sua vez, é a outra face do alargamento do espaço metropolitano. Disseminadas às dezenas no espaço das metrópoles brasileiras, as favelas ocupam largas porções da periferia urbana. As ca-racterísticas essenciais do favelamento são: a pobreza, o predomínio de habitações pre-cárias,3 o desalinho do arruamento a falta de esgoto, de encanamento hidráulico, de

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escolas, hospitais, isto é, falta dos serviços do estado. Tornam-se o lugar dos periferi-zados, dos desassistidos, pobres, discrimi-nados e excluídos. Em muitas cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre, Re-cife, São Paulo e outras, a periferização pa-rece incontrolável e cria a imagem de dois ambientes: o centro, com bairros “nobres” e a periferia. Nos primeiros, não faltam os equipamentos e serviços de primeiro mun-do; na periferia, as carências são tantas que clamam por serviços humanitários, sobre-tudo de ONGs e entidades religiosas ou da “assistência” coatora da bandidagem e de milícias ilegais, de solução complicada em razão dos habitantes aderirem ao sistema (facilidades) imposto.

Qual o desempenho do Estado com ini-ciativas de contenção? Ultimamente, alguns administradores estabelecem ações de con-tenção pela via legislativa. Prefeitos e gover-nadores abrem debates sobre planos direto-res urbanos e mesmo diretrizes urbanísticas de cunho pontual, por vezes assistencialista e populista. Além da contenção e normatiza-ção de usos, examinemos cada um dos agen-tes e seu papel na dinâmica urbana.

Dinâmica urbana no Distrito Federal – atores

Logicamente, a atuação dos agentes não se dá de forma estanque. Apenas para destacar as ações de cada um deles, vamos analisá-los de forma itemizada. No mundo real, Estado e empresas imobiliárias ou Estado e cida-dãos e ainda agentes imobiliários e compra-dores podem atuar de forma associada, con-veniada, licitada ou mesmo por “termos de

ajustamento de conduta” (TACs). Vejamos a atuação dos segmentos:

1 – Estado: é representado, no caso brasileiro, em âmbito municipal, estadual e federal (isolada ou conjuntamente). E, de acordo com as competências administrati-vas, o poder público é exercido por secre-tarias municipais, ministérios federais ou secretarias estaduais. Igualmente têm seu papel as câmaras municipais, as assembléias legislativas e o congresso nacional. Há ain-da, no Judiciário, competências diversas que vão do juiz de comarca até o Supremo Tri-bunal Federal e suas instâncias intermediá-rias – todas com alguma responsabilidade na aplicação das leis ou no julgamento de demandas judiciais.

No caso das três esferas executivas, a atuação se dá por um grande leque de iniciativas, por vezes submetidas a políti-cas públicas sobre, por exemplo, o uso da terra urbana. Cabe ao executivo se anteci-par à depredação do ambiente, as agressões especula tivas com a imposição de posturas. Estas obedecem a uma infi nidade de medi-das como portarias, decretos, leis de uso da terra, leis orgânicas, planos diretores e programas ligados à habitação, aos trans-portes, à segurança pública, à educação, etc. Alvarás, permissões, termos de ajustamento de conduta, editais de concorrência são utili-zados para controlar e normatizar a vida co-letiva e a fl uidez do cotidiano dos habitantes das cidades e de uma dada região.

O extinto Banco Nacional da Habitação (BNH) era responsável por todas as inicia-tivas de construção de casas populares. O BNH desempenhava um grande papel no atendimento às demandas por habitação por parte das classes menos favorecidas. Esse banco foi perdendo essa característica,

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passou a atender demandas da classe média e foi extinto antes que se apurassem gra-ves problemas de ordem fi nanceira e admi-nistrativa. Hoje, parte do papel do extinto BNH é desempenhado pela Caixa Econômica Federal, sem a amplitude do banco, e pelo Ministério das Cidades.

No caso do DF, o governo tem, desde a transferência da capital, um papel proe-minente na organização do espaço (Paviani, 2007, p. 1). Para isso, por anos a fi o, man-teve desapropriações e um invejável estoque de terras como um dos principais instru-mentos para a organização do território. Diferentemente de outros estados e muni-cípios, Brasília detinha esse grande trunfo em mãos dos governadores do DF. Paula-tinamente, todavia, esse estoque de ter-ras públicas foi sendo reduzido por vendas com licitações pela Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap). Com isso, empresas e moradores aumentaram sua participação no “loteamento ofi cial”. Além disso, alguns programas do Governo do Distrito Federal (GDF)4 como o Proin (visando à atração de indústrias), o Prodecon (Programa de De-senvolvimento Econômico do DF), Pades (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Econômico e Social do DF) e o PRODF (be-nefi ciando empresas em diversos “polos” – informática, vestuário, etc.) e a criação de “assentamentos semiurbanizados”, foram reduzindo o patrimônio imobiliário do go-verno. Assim, ao projetar Taguatinga, em 1958, o governo local defl agrou um proces-so de interminável criação de cidades-satéli-tes – todas visando proteger o Plano Piloto de ocupações ilegais, irregulares e informais (favelas), as denominadas “invasões”.5 Des-fecha, ao mesmo tempo, o polinucleamento urbano e a periferização com segregação

socioespacial. Em 1987, foi assim descrita essa atuação na qual

O Governo do Distrito Federal (GDF)

tem uma ação indireta (sic) importante

na periferização, na medida em que fe-

chou seu espaço urbanizado ou mantém

as construções de casas populares em

ritmo lento. (...) o GDF atua como uma

força de empurrão: o esquema relativa-

mente fechado de terras públicas para

fi ns urbanos e o mecanismo imobiliário

ensejaram um movimento de empurrão

para além dos limites do Distrito Fede-

ral de considerável contingente de po-

pulação de baixa renda, seja em terre-

nos legalizados pelo esquema especula-

tivo, seja em terras invadidas (favelas).

(Paviani, 1987, p. 38)

O governo Roriz, além de criar inúmeros assentamentos, hoje Regiões Administrati-vas, alterou profundamente a destinação da Área Complementar nº 1 (AC1) do PEOT – em Águas Claras.6 Em projeto urbanístico de 1983, a AC1 deveria abrigar atividades dentro de um programa de descentralização dos congestionados centros do Plano Piloto e Taguatinga. Com a alteração do projeto, Águas Claras foi destinada apenas para mo-radias com edifícios que chegam a 30 anda-res. Com a proximidade das muitas obras, criou-se um bairro congestionado, diverso dos demais assentamentos do DF, em que predominam lotes unifamiliares. Ademais, a mudança de destinação bloqueou a pos-sibilidade de descentralização de atividades e serviços do Plano Piloto para a grande área de Águas Claras, prevista no plano de 1983. Assim, haveria aproximação das ati-vidades para localidades populosas como

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Taguatinga, Ceilândia e Samambaia, conjun-to que, em 2000, atingia mais de 750.000 habitantes, conforme censo do IBGE.

Na atualidade, o governo Arruda tem ação direta e forte em todas as iniciativas de uso da terra: propôs novos bairros co-mo a expansão do Sudoeste; a licitação para venda de terrenos do Noroeste (para o qual encomendou a um escritório de urbanismo e arquitetura um projeto que inclui habitações em superquadras para abrigar cerca de 40 mil habitantes e comércio local). Projetam, ainda, o bairro do Catetinho e os setores Quaresmeira, Guará III e Jóquei Clube. Além dessas iniciativas, o setor privado, por sua vez, projeta condomínios de luxo no local do demolido estádio de futebol “Pelezão". Tanto no caso de Águas Claras, do gover-no anterior, como no atual com o Noroeste, Catetinho e outros, há uma clara associação do aparelho do Estado com os empresários do setor imobiliário e da construção civil.

Analisando-se as diversas atuações dos últimos 20 anos, fi ca clara a intenção de va-lorizar o Plano Piloto, mantê-lo elitizado,7 abrindo espaço apenas para fi ns residenciais e impossibilitando o uso da terra para a ge-ração de novos postos de trabalho, a não ser trabalho esporádico da construção civil (que poderá sofrer o “efeito cascata” da cri-se imobiliária americana e depressão econô-mica globalizada). Com a associação público-privado abrem-se amplas possibilidades para alargar atitudes de especulação imobiliária.

Ao mesmo tempo, as instituições esta-tais atuam para o preenchimento de terras desocupadas (em que se utiliza erronea-mente o termo “vazios” urbanos). Fecham-se as possibilidades para espaços livres pa-ra usos futuros. Ademais, condenam-se os habitantes da capital a sacrifícios impostos

por engarrafamentos no trânsito, que sur-girão no futuro, pela insistência em aglo-merar, no Plano Piloto, novos e populosos bairros. Antecipam-se a congestão e o caos no trânsito,8 comuns às demais metrópoles brasileiras.

2 – Empresariado. Melhor seria usar o termo no plural, pois se trata de um agen-te multifacetado e mutante. Multifacetado porque abriga comerciantes e industriais, passando por diversas categorias empre-sariais, do ramo imobiliário, da construção civil, corretores, advogados e profi ssionais liberais apoiadores de atividades privadas.9 E é um agente mutante e híbrido porque circula nas diversas esferas públicas dos três poderes, especialmente do poder executivo, detentor de verbas e dos instrumentos le-gais que regem a vida social, econômica e política. Além do caráter híbrido, os cons-trutores de moradias e imobiliárias atuam no DF e nos municípios goianos por mais de três décadas. Há exemplos em Luziânia, Santo Antonio do Descoberto e Águas Lin-das. Em Luziânia, a explosão dos loteamen-tos deu origem a novos municípios – Cidade Ocidental, Novo Gama e Valparaízo, cujos vínculos com Brasília os fazem participar, funcionalmente, da Área Metropolitana de Brasília (AMB).10

Ao estudar novas territorialidades e gestão do território, no DF e nos municípios do vizinho estado de Goiás, Ignez Ferreira avaliou que

A ocupação dessa área periférica come-

çou com o parcelamento privado das

terras, nos municípios limítrofes ao DF,

colocando no mercado grande quanti-

dade de lotes em locais sem infraestru-

tura, vendidos em pequenas prestações

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e longos prazos. Esses empreendimen-

tos encontraram mercado na demanda

das classes mais pobres, que viram na

compra do lote e na autoconstrução a

oportunidade de livrar-se do aluguel

nos fundos de lote e nas áreas consoli-

dadas do DF. (1999. p 141)

A falta de políticas públicas de médio e longo prazo para atender à demanda re-primida provocou a ocupação de terras no DF, por vezes ao arrepio de leis ambientais. Esses assentamentos privados são mais co-nhecidos como “condomínios irregulares ou ilegais”. Nesse caso, ferem a legislação porque ocupam áreas de proteção ambien-tal (APAs) – margem de córregos e matas ciliares. Contam-se às centenas e, presente-mente, o GDF tenta identifi car quais desses condomínios podem ser “regularizados”. Todavia, lucram grileiros e especuladores que, ocupando terras de outrem (do gover-no federal, distrital ou de outros proprietá-rios), serão benefi ciados, apesar do malfeito contra a natureza ou contra a propriedade privada. Por isso, o século XXI já se inaugu-rou há quase uma década e a estrutura do território se mostra incompleta sob o ponto de vista legal, administrativa e fi scal, pois há moradores que pagam IPTU e demais taxas de urbanização e outros não pagam por se constituírem em condomínios ainda não re-gularizados. Mesmo assim, alguns desses já contam com serviços da Companhia de Ele-tricidade de Brasília (CEB) e da Companhia de Águas e Esgoto (CAESB).

Em resumo, criaram-se, na área me-tropolitana, espaços polinucleados com núcleos esparsos no território, simplesmen-te porque os modelos de povoamento são repetitivos dentro e fora do DF. Notam-se,

nos dias correntes, algumas tentativas do GDF em modifi car esse modelo, a partir de iniciativas que vão, pouco a pouco, costu-rando e emendando o tecido urbano com novos núcleos capazes de, no futuro, não apresentarem espaços intercalares. Em outras palavras, a conurbação começa a se materializar em diversos pontos, como exemplo, a junção de Taguatinga-Ceilân-dia; Taguatinga-Samambaia, Plano Piloto-Cruzeiro (Velho e Novo)-Octogonal-Setor Sudoeste e por aí vai com outras iniciativas do poder público associadas à do setor imo-biliário. Acaba-se reproduzindo, aqui, o po-voamento contínuo, em “manchas de óleo”, compactando-se a cidade. No futuro, será uma grande mancha urbana, assemelhada a qualquer grande cidade do país, deixando para trás e sem retorno a fama de “cidade planejada”, embora os ufanistas tendam a assim considerá-la.

Oliveira examina a lógica do setor pri-vado e sua relação com o poder de decisão política:

Os mecanismos do mercado imobiliário

são estruturadores espaciais de com-

provada efi ciência e muito mais o são

quando aparecem despolitizados, numa

relação aparentemente neutra entre

comprador de um pedaço de terra ou

uma moradia, que têm preços dife-

rentes e localizações diversas dentro

da cidade. (...) O mercado imobiliário,

cujo fulcro é o espaço urbano enquanto

objeto de apropriação e individualizado,

como ponto de referência para a com-

pra e venda, num lote ou numa casa

será por nós encarado como relação en-

tre classes sociais. (...) As práticas e as

relações sociais do mercado imobiliário

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decorrem da existência de classes com

decisão política e com prerrogativas pa-

ra delimitar o espaço a ser construído

e classes sem tal decisão e sem essas

prerrogativas; as primeiras estão no

comando dos aparelhos do Estado, nos

centros decisórios; as segundas estão

fora, nas periferias. (1987, pp. 128 e

129)

Por isso, em muitas metrópoles, quan-do o Estado, por suas instituições, não abarca a totalidade das demandas sociais por mais moradia, melhor infraestrutura e mais investimentos em obras, o setor pri-vado se faz presente para ser mais do que um coadjuvante. Alguns empresários serão capazes, com a colaboração de legisladores, “oferecer” projetos que atendam algumas demandas, bem como apresentar capacida-de de executar obras, por seu equipamento operacional ou de seus associados e prepos-tos. Nos anos 70 e 80, essa era a tônica do empresariado quando atuava nos “conjuntos habitacionais”, sob o patrocínio do BNH ou quando tomava iniciativas com “loteamentos abertos”.11 Prevê-se incremento de o setor privado envolver-se cada vez mais com a coisa pública, em especial com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que acumula cerca de R$504 bilhões para in-vestimento em infraestrutura até 2010, se-gundo divulga a mídia e o portal do governo federal.12

3 – O cidadão. O agente cidadão é, por vezes, denominado morador, inquilino, mutuário ou usuário da moradia. Em ou-tro trabalho, avaliou-se que se trata de um agente-paciente13 da urbanização por suas características especiais. Assim,

O morador se constitui em paciente (do

processo de periferização), na medida

em que é expulso do DF, onde não tem

acesso à terra e à habitação; se trans-

figuraria em agente no momento em

que, de posse da terra/habitação, passa,

ele próprio, a transacionar, transferin-

do “direitos”, construindo barracos, e

os vendendo, alugando e subalugando,

etc. Além disso, algumas vezes o mo-

rador atua como intermediário, uma

espécie de agenciador, encaminhando

amigos e parentes à imobiliária, parti-

cipando com essas ações de todo o jogo

de periferização e especulação imobiliá-

ria. (Paviani, 1989, p. 44)

Passados 30 anos da pesquisa realizada na localidade de Pedregal (ou Parque Estrela Dalva VI), avaliamos que o agente morador não mudou seu perfi l. O que deve ter mu-dado é o contingente de “agentes-pacientes” da urbanização, em vista das ações do GDF, dos incorporadores imobiliários e corre-tores. A partir de 1988, com a nomeação do governador e eleição de deputados pa-ra Câmara Distrital, as instituições públicas passaram a barganhar apoio político e troca de favores tendo como moeda terrenos nos diversos “assentamentos semiurbanizados” que se multiplicaram no DF.

Milhares de “sem teto” e inquilinos de fundo de quintal foram aquinhoados com terrenos em Santa Maria, Samambaia, Re-canto das Emas, Riacho Fundo, Paranoá, Itapuã e extensões de glebas para moradia em outras cidades-satélites. No governo Cristovam Buarque, extinguiu-se a denomi-nação cidade-satélite, passando os núcleos à denominação ofi cial de “cidade”, embora não

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tenham sede municipal nem sejam assim tra-tadas pelo IBGE. Nesses assentamentos, de início, o comodato ou o direito à moradia, tornou o imóvel inalienável. Com o passar do tempo e a falta de fi scalização, os “direi-tos” eram passados por procuração ou sim-plesmente o comodato era “vendido”, com o que a moradia ou o terreno eram trans-formados em dinheiro para usos diversos. Com isso, até os dias de hoje, há terrenos que passaram por diversos “proprietários”, ocasionando problemas de posse para fi ns de “regularização” da propriedade, causan-do acúmulo de processos, e de trabalho, nos tribunais do DF.

Além dos assentamentos ofi ciais, o mo-rador aderiu aos condomínios, regulares e irregulares (por vezes denominados “lotea-mentos clandestinos”), que somam mais de quinhentos, dando um nó na regularização fundiária. No caso dos condomínios, os três agentes confl uem para tomar posse da terra, de forma legal ou não, sendo difícil para o Ministério Público encontrar quem foi induzido, de boa ou de má fé, a ocupar terras de outrem como se fosse proprieda-de legítima.14 Dos quinhentos condomínios existentes, apenas algumas dezenas podem se habilitar à regularização. Os demais terão suas contendas judiciais encaminhadas aos juizados, não se tendo previsão sobre qual dos contendores terá ganho de causa – os moradores, os proprietários ou o GDF. Em todo o caso, vale lembrar a Lei 6.766, de 1979 que, em seu Art. 50, inciso I, reza:

Constitui crime contra a Administração

Pública: dar início, de qualquer modo,

ou efetuar loteamento ou desmem-

bramento do solo (sic) para fi ns urba-

nos, sem autorização do órgão público

competente ou em desacordo com as

disposições desta Lei ou das normas

pertinentes do Distrito Federal, Estados

e Municípios.

Apesar da lei, a ocupação de terras e a ilegalidade foram constantes ao longo dos anos 80 e 90. Em razão desses desmandos fundiários, a Câmara Legislativa do DF (CL-DF) instituiu a “CPI da Grilagem”, em 1995. Após 135 dias de trabalho, a CPI produziu um documento com 528 páginas, contendo recomendações e chegando, nas conclusões, a enumerar a prática de 20 delitos e res-pectivas punições, que vão desde (item 1) a “falsifi cação, em todo ou em parte, de docu-mento público, ou alteração de documento público verdadeiro...” a (item 20) “punir ad-ministrativamente, via processo de sindicân-cia, os servidores públicos que participaram de alguma forma de grilagem de terras ou implementação de parcelamentos ilegais no DF” (CLDF, 1995). Passados 13 anos des-sa CPI, nenhuma medida estancou a grila-gem ou a ocupação ilegal de terras, nem se anunciou a punição em massa de possíveis responsáveis por loteamentos irregulares. Segundo Malagutti,

Em 1995, quando foi efetuado o úl-

timo levantamento oficial, chegou-se

ao número quase inacreditável de 529

empreendimentos cadastrados. (...)

Mesmo considerando que, após minu-

ciosa análise dos 529 empreendimentos

cadastrados, o GDF tenha inviabilizado

297 deles, sobrando 232 loteamentos

para análise das possibilidades de regu-

larização. Desses, 144 são parcelamen-

tos urbanos e 88, rurais. (1999, pp.

57 e 58).

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Nota-se que não é por falta de legis-lação que a questão fundiária não se resol-veu até os dias correntes. Em 1999, a CLDF promoveu um levantamento sobre a questão local das terras com a meta de “solucionar defi nitivamente os problemas relacionados à questão fundiária do DF”, chegando a le-vantar 33 leis, um decreto e uma emenda à Lei Orgânica como referência ao documento elaborado (CLDF, 1999, pp. 24 a 27).15

Outras demandas

Ao longo da construção da capital, mas, sobretudo, na fase de estrutura e consoli-dação, surgem importantes demandas no setor habitacional, de transportes públicos e de geração de atividades descentraliza-das, isto é, pressionando para privilegiar as cidades-satélites. Vejamos, separadamente, essas demandas.

a) por ampliação dos postos de trabalhoNos dias correntes, segundo a Pesqui-

sa de Emprego-Desemprego do Dieese, o desemprego atingiu 216 mil pessoas, em outubro de 2008.16 Em termos relativos, o dado preocupante do desemprego é a taxa de 16% da população economicamente ati-va, de 1.348.000 pessoas. A taxa média de desemprego das metrópoles estudadas pelo Dieese é de 13,4%. No caso do DF, signifi -ca que a saída para a sobrevivência mantém em atividades informais um enorme contin-gente de trabalhadores, que se ocupam com biscates, “faz tudo”, coleta de materiais usa-dos, comércio de rua, etc. Outra saída foi “ofi cializar” a “Feira dos Importados”, tam-bém denominada “Feira do Paraguai”. Para centenas de camelôs, que ocupavam pontos

estratégicos, como a rodoviária urbana, o GDF construiu uma “Feira Popular”, ainda em implantação e alvo de constantes recla-mações, pois se localiza distante da circula-ção de pedestres, justamente nas proximida-des da rodo-ferroviária, a dez quilômetros da antiga ocupação.

Por isso, há quase 20 anos, a questão da “lacuna de trabalho”17 é preocupação das autoridades e, sobretudo, dos desemprega-dos. A respeito, não há, no horizonte per-ceptível, nenhum projeto para mudar esse quadro, mesmo porque, com o tombamento da cidade como “Patrimônio Cultural da Hu-manidade”, a mudança do perfi l de ativida-des, com a atração de indústrias, p.ex., está fora de cogitação.

b) por transportes de massa efi cientesOutra lacuna que se perpetua é a ine-

fi ciência dos transportes coletivos, agrava-da pelo uso maciço do automóvel particu-lar. Pode-se afi rmar que há um verdadeiro “caos no trânsito do DF”.18 Ressalte-se que, ao elaborar o plano piloto para Brasília, Lú-cio Costa, inovou ao traçar vias, avenidas e eixos sem cruzamentos. Por isso, nos pri-mórdios e até início de 1970, não havia semáforos no DF. Um dos primeiros foi no contorno a noroeste da rodoviária urbana, visando conter o tráfego no Eixo Monumen-tal proveniente da rodoferroviária até a Es-planada dos Ministérios. Em fi ns de 1960, o trânsito era tranqüilo, havia poucos au-tomóveis e muitos funcionários públicos fa-ziam o trajeto casa-trabalho e vice-versa em ônibus fretados. Estacionar em ministérios, no Congresso e no Palácio do Planalto era acessível. O trafego do Eixo Monumental e do Eixo Rodoviário assemelhava-se ao de cidade do interior. Ir ao recém-inaugurado Conjunto Nacional e ao Setor Comercial Sul

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não preocupava porque as vagas eram su-fi cientes nos estacionamentos. Outra época, por certo sem retorno.

c) por melhoramento no trânsitoA urbanização, o incremento popu-

lacional e a falta de planejamento urbano acabaram com a regularidade do fl uxo de veículos, a fl uidez e a segurança no trânsi-to. O passar dos anos, a entrada de novos automóveis, a reduzida frota de ônibus e a diminuição das linhas e equipamento da TCB (Transporte Coletivo de Brasília) agra-varam o ir e vir. As avenidas W-3, Norte e Sul ganharam sinais de trânsito e foram interligadas; as vias receberam placas in-dicativas de limite de velocidade. A frota de automóveis particulares, o aumento do número de motoristas e a falta de respeito às leis de trânsito começaram a deixar víti-mas fatais nas pistas: acidentes aumentam exponencialmente. Contam-se centenas de mortos no trânsito, anualmente; os feri-dos lotam hospitais, as clínicas ortopédicas prosperaram, assim como as clinicas de ra-diologia. Proliferam as agências funerárias e comércio paralelo, por vezes provocando escândalos como o da administração de ce-mitérios, ora sob CPI na Câmara Legislativa. Aumenta a dor dos que perdem familiares em atropelamentos e acidentes com carros, motocicletas e ônibus. A Justiça Itinerante, bem como a Polícia Militar e bombeiros são chamados para atender acidentes ou mes-mo para indiciar responsáveis por atrope-lamentos, mortes e danos materiais. O caos e a violência no trânsito elevam o temor de sair à rua ou de atravessar na “faixa de pe-destres”, antes muito respeitada por todos, verdadeiro símbolo da educação e cidadania no trânsito de Brasília. Advogados especia-lizam-se em assuntos jurídicos de trânsito

e aumenta o número dos que defendem e tornam impunes os causadores de aciden-tes com vítimas. Consolida-se a prática de pagar fi ança e ganhar as ruas novamente, mesmo quanto os atropelamentos causam mortes.

O Detran parece surgir como um vigi-lante do asfalto. Mas suas primeiras medi-das se ligam ao rendoso trabalho de multar. Tem instalado centenas de radares (pardais) em todas as vias do DF. Estabelece um con-fuso elenco de velocidades conforme as vias: no Eixo Monumental com várias pistas em cada sentido, a velocidade máxima é de 60 km/h. No Eixo Rodoviário (verdadeira auto-estrada, com passagens subterrâneas para pedestres), o limite é de 80 km/h. Nas L-2 Norte e Sul, 60 km/h. No setor de embai-xadas e em outros pontos, 70 km/h; as vias paralelas do Setor de Embaixadas demarcam 80 km/h, com barreiras eletrônicas com li-mite de 60 km/h e alguns pardais. 50 km/h é a velocidade máxima de vias W-4, Sul e Norte19. Nessas, repletas de pardais, a ve-locidade é de 50 km/h. As vias que possuem barreiras eletrônicas têm velocidade reduzi-da para 50 km/h e alteram a velocidade de 60 km da mesma via. Como os motoristas não se dão conta desse cipoal, nem se preo-cupam em observar as placas de advertên-cia, o volume de multas é enorme, chegando a mais de R$ 50 milhões em 2007, segundo divulga a mídia local. Sabe-se, vagamente, que esses recursos se destinam à “melhoria das condições de tráfego”, entre elas a “edu-cação para o trânsito seguro”. Mas ainda é nebulosa a destinação do que é arrecadado em multas. Quando são realizadas campa-nhas de educação nas escolas o investimento é bem aceito, mas seus efeitos somente sur-girão em 10 ou 15 anos...

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Pode-se perguntar: o que é desejável em vista dessas constatações? A população possui diversas metas para o trânsito, entre elas o aumento do número de empresas de ônibus e respectivas linhas, a melhora das pistas, a vigilância constante dos agentes nas ruas, a educação para um trânsito segu-ro que se estenda para todo o DF e não ape-nas para o centro da cidade, o Plano Piloto de Brasília. Todavia, a medida mais urgente é a licitação para as novas empresas, pois a atual cobertura não atende muitos itinerá-rios, sendo lacunoso o transporte em certas horas do dia e da noite. As novas empresas farão desejável concorrência umas às outras, desbaratando o cartel existente. A compe-tição dessas empresas trará a redução das tarifas, hoje as mais elevadas do país. A ida ao trabalho no Lago Sul, por exemplo, por parte de morador de Planaltina (percurso de 55 km) custa-lhe R$12,00 ao dia, pois deve utilizar quatro transbordos, ida e volta, ao custo de R$3,00 ao bilhete.

Por isso, a agenda para disciplinar o trânsito deve contemplar ações tais como:

1 – Redução das tarifas ou uso de bilhete intermodal de integração (ônibus-metrô);

2 – A presença constante e educativa de agentes de trânsito nas ruas;

3 – Aumentar o valor das multas para os que dirigem embriagados e com excesso de velocidade;

4 – Substituir, paulatinamente, o asfalto por pistas cimentadas, menos vulneráveis à erosão no período das chuvas. Com a mu-dança, as pistas apresentarão menos bura-cos, com queda no número de acidentes e de danos nos veículos;

5 – Construir ciclovias em todos os núcleos urbanos do DF em que a topografi a favore-ça os que circulam em duas rodas;

6 - Instalar a “onda verde”, a partir de semáforos sincronizados eletronicamente. Com essa medida, o percurso de diversas avenidas se fará sem interrupção, mantida a velocidade sinalizada. Nesse caso, p.ex., se poderá percorrer as avenidas W-3 Sul e Norte sem interrupções, rodando a 60 km/h. No esquema atual, passa-se um se-máforo aberto, encontrando-se o seguinte fechado, rodando à velocidade estabeleci-da. Eleva-se o tempo perdido e, sobretudo, aumenta-se o gasto com combustíveis, tor-nando o deslocamento lento, caro e ener-vante. Além disso, acontecem congestiona-mentos em qualquer das vias e a qualquer hora do dia, por não ter sido instalada a onda verde.

No período chuvoso, é comum a ocor-rência de engarrafamentos em diversos pontos da cidade por motivo de alagamen-to das pistas. Os alagamentos se devem ao fato de que a rede de captação das águas da chuva ter sido implantada nos primórdios da capital, estando, portanto, ultrapassada. Para evitar mortes nas pistas, são corretas as medidas para reparar os estragos cau-sados pelo período das chuvas. Essas oca-sionam danos na capa asfáltica, sobretudo naquelas vias em que a camada é fi na, sendo destruída pelas primeiras enxurradas. Em muitos casos, melhor seria substituir o as-falto por vias cimentadas, como é usual em muitos países europeus e em alguns estados americanos. Vias cimentadas possuem maior durabilidade e evitam que o asfalto seja da-nifi cado ou destruído facilmente. O asfalto tem exigido remendos constantes e, uma vez reposto, o asfalto rugoso torna a ro-lagem desconfortável, quando não provoca danos na suspensão dos veículos pelos des-níveis que apresenta.

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As mudanças e os ajustamentos bene-fi ciarão os mais pobres, que se deslocam de grandes distâncias. Constata-se que são os empobrecidos que arcam com os maiores custos para ir e vir ao trabalho, ao médico, à escola, às compras e à procura de serviços no Plano Piloto. Portanto, facilitar o desloca-mento dos habitantes das cidades-satélites é dar-lhes condições de cidadania, pela demo-cratização dos meios de transporte. O uso de sistema multimodal evitaria o pagamento de duas ou mais tarifas para ir ao trabalho num percurso como o de Ceilândia ao Plano Piloto, de algo como 30 km. Aumento da frota de ônibus e maior efi ciência do trem suburbano (metrô) retirariam milhares de automóveis e motos das ruas. As ações pre-conizadas levam à melhora na fluidez do tráfego, reduzirão o consumo de combustí-vel, o número de pontos de estrangulamen-to e os engarrafamentos de veículos. Ainda faltaria ampliar as vagas nos estacionamen-tos, verdadeiro gargalo no centro da capital. Há anos se debate a construção de garagens subterrâneas, mas sem resultados práticos. Outra questão que é pouco observada é a das condições de trabalho dos operadores de ônibus. Geralmente, o motorista enfrenta o calor e o ruído do motor instalado na frente do veículo. Houve greve dos rodoviários pa-ra que as empresas adquirissem ônibus com motor na parte traseira do veículo e direção hidráulica. Além disso, a questão salarial pe-sa no humor dos operadores, nem sempre preparados de forma conveniente no trato dos passageiros, sobretudo dos idosos e defi cientes, os denominados “cadeirantes”, que demandam tempo para o embarque e desembarque. A agenda das empresas deve-rá ser modifi cada nesse item, pois a popula-ção de Brasília dá sinais de envelhecimento e

necessita de transportes públicos adequados à idade e às necessidades de cadeirantes e defi cientes físicos. Por fi m, ênfase também deve ser dada ao combate da violência no interior dos ônibus: assaltos ao cobrador e passageiros exigem segurança e policiamen-to para evitar atos delituosos com mortos e feridos.

Em resumo, a aspiração de todos é evi-tar o caos no trânsito do DF e desmistifi car a ideia apregoada de que o brasiliense é um ser possuidor de “cabeça, tronco e rodas”. Por certo, algo que pertence ao folclore dos primeiros tempos de Brasília, mas que po-derá se perpetuar, pois, em 2008, foi ultra-passada a marca de um milhão de automó-veis no DF.

À guisa de conclusão

Como se percebe, a ação dos estruturadores do espaço urbano prossegue sem obstáculos. Ao ser concluída uma etapa de obras, sur-gem problemas de diversas ordens, quando não demandas judiciais, contendas e escân-dalos. Também se pode anotar o caráter solidário desses agentes estruturadores no território. A ação de um agente irá corres-ponder à atuação dos outros dois. Esses atuarão separada ou conjuntamente. E é justamente o caráter sistêmico sobre o es-paço que acabará gerando a manutenção das estruturas existentes ou a modifi cação delas ao longo do processo, sempre obtendo vantagem o agente mais estruturado, isola-damente ou em parcerias.

Por fim, alguns encaminhamentos se fazem necessários para as iniciativas gover-namentais, oferecendo um rol que não se

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esgota nele mesmo, porque assume muitas outras vinculações, na medida em que se avança no processo de urbanização. Entre muitas, aventam-se as seguintes sugestões:

a) Políticas globalizantes, nas quais de-vem ser abandonadas ações pontuais, isola-das, paternalistas e clientelistas. A visão de totalidade ampliará o acesso democrático ao espaço da cidade por parte dos urbanitas, cidadãos e construtores da vida urbana;

b) Geração de atividades, sobretudo aquelas que absorvem mão-de-obra com qualifi cação baixa e média. A tendência do mercado é absorver pessoal qualifi cado nos estratos mais altos com uso de tecnologias, o que também ocorre no setor público, no comércio, na produção industrial e nos ser-viços. A tecnologia acaba impactando nega-tivamente na geração de postos de trabalho para os estratos médios e baixos da força de trabalho, além de provocar lacunas de tra-balho de forma crescente;

c) Projetos de médio – longo prazo (urbano-regionais), que não se circunscre-vam apenas às áreas metropolitanas, mas que atendam as populações de centros ur-banos menores, geralmente expulsores de mão-de-obra;

d) Programas educacionais nos diferen-tes níveis, inclusive para o combate ao anal-fabetismo e analfabetos funcionais. Somente a educação poderá retirar as áreas periféri-cas do atraso e da ignorância, que incapaci-tam o desenvolvimento pessoal, profi ssional e coletivo da massa populacional;

e) Combate aos desperdícios que fazem jogar no lixo alimentos, materiais recicláveis

(papel, plástico, vidro e restos de materiais de construção). Evitar desperdício de verbas públicas em obras infi ndáveis ou que sejam levadas a cabo sob manipulação e/ou cor-rupção, aí incluído o nepotismo;

f) Construir sistemas de proteção aos riscos e vulnerabilidades, que se materia-lizam na violência urbana e rural, fome, pobreza, desemprego, criminalidade, anal-fabetismo, pedofi lia e corrupção. Esses ele-mentos, contidos em nossa realidade crua e que pesam em demasia sobre a população pobre, excluídos e periferizados.

Para encerrar, o Juramento da juven-tude ateniense, serve como elemento ético e de refl exão, vindo de um tempo em que a cidade não oferecia as facilidades, oportuni-dades e riscos dos dias correntes.

Nunca traremos desgraça à nossa Cida-

de, por nenhum ato de desonestidade

ou covardia, nem jamais abandonare-

mos nossos companheiros sofredores.

Lutaremos pelos ideais e pelas coisas

sagradas da cidade, isoladamente ou

em conjunto. Respeitaremos e obedece-

remos às leis da Cidade e tudo faremos

para respeito e reverência naqueles que,

estando acima de nós, inclinem-se a

reduzi-las a nada. Lutaremos incessan-

temente para estimular a consciência do

cidadão pelo dever urbano. Assim, por

todos esses meios, transmitiremos es-

sa Cidade, não menor, porém maior,

melhor e ainda mais bela do que nos

foi transmitida. (Apud Patrick Geddes,

1994)

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Aldo PavianiLivre-Docente/Doutor em Geografi a Urbana pela Universidade Federal de Minas Gerais; geó-grafo – bacharel e licenciado em Geografi a e História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Professor Titular da Universidade de Brasília, aposentado, Pesquisa-dor Associado do Departamento de Geografi a e do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais (NEUR/CEAM) da Universidade de Brasília. Organizador de obras da Coleção Brasília da Edi-tora UnB. Cidadão Honorário de Brasília - Câmara Legislativa do DF. Professor Emérito pela Universidade de Brasí[email protected]

Notas

(*) Ampliado de Políti cas territoriais e dinâmica urbana, trabalho apresentado na Semana de Exten-são da UnB, em 2 de outubro de 2008, mesa Vulnerabilidade, risco e estrutura de oportunidades na cidade.

(1) Ver trabalho de Paviani (1989a, pp. 41-45).

(2) Essas ações, aparentemente contraditórias, fazem parte da mediação do governo quando trata de atender demandas, de um lado, e, de outro, de aprovar EIAS e RIMAS necessários à abertura de novas áreas urbanas.

(3) Michel Rochefort, tratando da pobreza urbana, no período industrial das metrópoles, destaca que “todos os países, mesmo na cidade de Paris, ti veram uma fase que os franceses chamaram de bidonvilles, quer dizer favelas, de zonas hoje denominadas de habitat precário” (2008, p. 31).

(4) Breve avaliação desses programas encontra-se em Paviani (1997, pp. 116-146).

(5) De longa data, a imprensa e o governo qualifi cam como “invasores” os moradores pobres que ocupam lotes públicos ou parti culares com “loteamentos informais” (favelas). Como são con-siderados “invasores”, devem ser “erradicados”. Esses termos pejorati vos e preconceituosos foram ofi cializados com a “Campanha de Erradicação de Invasões” (CEI), implantando-se a Cei-lândia com cerca de 82.000 habitantes moradores das favelas do IAPI, Vilas Tenório, Esperança, Sara Kubitschek, Morro do Querosene, Morro do Urubu, desconsti tuídas em 1971 para formar a nova cidade-satélite.

(6) Ver de Paviani, O “Projeto Águas Claras”: Planejamento desperdiçado em Brasília (1989a, pp. 73-98).

(7) Os novos bairros destinam-se à classe média alta, pois, o metro quadrado deverá ficar entre R$6.000,00 e R$10.000,00, com o que um apartamento de três quartos, no setor Noroeste, com 100 m2, poderá custar entre R$600.000,00 a R$1.000.000,00 a unidade.

(8) Tema abordado no arti go Caos no trânsito urbano do Distrito Federal. Disponível em: <htt p://www.vitruvius.com.br/> - Minha Cidade, Ano 8, v. 11, jun. 2008, p. 223.

(9) Ver Corrêa (1989, p. 12).

(10) Sobre a Área Metropolitana de Brasília, ver Paviani (1994, pp. 27-40).

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(11) Ver pesquisa sobre a “visão do agente imobiliário” (Paviani, 1987).

(12) Disponível em: <htt p://www.brasil.gov.br/pac/>, acessado em 25/11/2008.

(13) Ver a visão do morador em Paviani (1987, p. 44).

(14) Episódio envolvendo um cartório de notas na falsifi cação de tí tulos de propriedade, por ora oca-sionou o afastamento do tabelião e uma morosa batalha jurídica nos tribunais, conforme noti -ciado na imprensa de Brasília.

(15) Para interessados na questão fundiária do DF, ver Malagutti (1996).

(16) Ver PED/DF, disponível em: <htt p://www.dieese.org.br>, acessado em 2/12/2008.

(17) A lacuna de trabalho foi defi nida como “a ati vidade-não-gerada ou nos postos de trabalho que não aconteceram ou, mesmo que foram subtraídos do mercado de trabalho”. Ver Paviani (1991, pp. 115-142).

(18) Ver nota 8.

(19) Em Brasília, prati camente não há logradouros públicos com nome de pessoas. Assim, L-2 signifi ca a 2ª via a leste do Eixo Rodoviário; a avenida W-3 é a 3ª, a oeste do referido Eixo.

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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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Políticas urbanas de patrimonializaçãoe contrarrevanchismo: o Recife Antigoe a Zona Histórica da Cidade do Porto*

Rogério Proença LeitePaulo Peixoto

ResumoEste artigo pretende discutir alguns aspectos das políticas urbanas de enobrecimento, tendo como referentes empíricos o Bairro do Recife e a zona histórica do Porto (Portugal). O argu-mento central é que, após o período de apogeu das intervenções urbanas, que agem como um elixir para os problemas de uma realidade deca-dente, ocorre uma contrarrevanche exacerbada por um sentimento de reconquista do espaço que aniquila as perspectivas depuradoras des-sas operações. Esse trabalho, desenvolvido no âmbito de uma pesquisa comparada entre reali-dades urbanas brasileiras e portuguesas, ques-tiona esses processos de patrimonialização de centros históricos procurando relevar a volubi-lidade desses processos.

Palavras-chave: cidades; patrimônio cultu-ral; enobrecimento urbano.

AbstractThis article discusses some aspects of urban policies of gentrification, based on the following empirical references: the Neighborhood of Recife and the historic area of Porto (Portugal). The central argument is that, after the apex of urban interventions, which act as an elixir for the problems of a decaying reality, there is a counter-revanchism exacerbated by a sense of space recovery that annihilates the perspectives to improve such operations. This work, developed in the scope of a research study that compares Brazilian and Portuguese urban realities, questions such processes that transform historic centers into cultural heritage, trying to reveal their volubility.

Keywords : c i t ies; cultural her itage; gentrifi cation

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O poder redentor do patrimônio

As funções e o estatuto do patrimônio no contexto da vida urbana de cidades que, pelo seu ethos, se representam e são re-presentadas como históricas, convertem os processos e as intervenções patrimoniais em uma espécie de nova realidade alegóri-ca das cidades. Essa realidade alegórica evi-dencia a promessa redentora de, através de complexos processos de patrimonialização,1 reconstruir as imagens das cidades, e sobre-tudo de suas zonas históricas, em busca da superação de um incontornável processo de declínio. Esse processo de patrimonialização implica diferentes níveis de intervenção dife-renciada, com fortes repercussões, tanto na infraestrutura urbanística e arquitetônica, quanto na formatação dos usos dos espaços enobrecidos (Ferreira, 2005) .

Uma primeira repercussão desse pro-ces so se faz sentir na materialização de uma ideia de espaço público ordenado, higie nizado e minimizado de seus aspectos conflituais, que faz com que a cidade seja imaginada e transformada a partir da rein-venção de um seu passado (Zukin, 1995). Nessa perspectiva, o patrimônio é cada vez mais apresentado como a expressão mate-rial de uma ideia pacífi ca de espaço público, construído com base em uma suposta ideia de passado comum e de tradições compar-tilhadas. Sob forma fi gurada da imbricação entre consumo e lazer, os centros históricos alvo de requalifi cação são uma alegoria desse espaço público idealizado, supostamente per-dido, que urge recuperar. As intervenções mais voltadas para um urbanismo intensivo têm ocorrido nos locais onde uma ideia de

patrimônio se pode juntar a uma ideia de espaço público para ser potenciada como atração turística e de lazer (Sennett, 1998; Fortuna, 2002).

De forma semelhante, há consideráveis repercussões na promoção de uma anima-ção crescente, enquadrada pelo consumo visual e pelo turismo urbano, e por formas de expressão de um patrimônio imaterial, que pretende sugerir ideais de cidadania e de participação cívica. Nesse plano, o es-paço recuperado se apresenta como uma nova plataforma de pendor artístico capaz de gerar signifi cados sociais e culturais, co-mo se o visual fosse a condição fundadora de novas e enriquecedoras sociabilidades. Também se observam alterações na con-cretização de representações destinadas a funcionar como imagens de marca das cidades e como expressões metonímicas que convidam a tomar a parte, ordenada e embelezada, pelo todo e a difundir noções abstractas de centralidade e de qualidade de vida. Nesse plano, o patrimônio funcio-na como alegoria, dado que o esplendor e a qualidade urbanística dos espaços em que ele se exibe, as cores garridas das fachadas recuperadas, frequentemente contrastando com o resto da cidade que as envolve, tor-nam os bens investidos de um valor patri-monial numa espécie de obra de arte que representa ideias abstratas de qualidade de vida e de funcionalidade. Neste âmbito, fun-cionam como imagem metonímica da cida-de, convidando a tomar a parte, ordenada e embelezada, pelo todo.

O patrimônio e as suas representações que emergem no contexto desses processos de patrimonialização podem ser caracteriza-dos como uma invenção cultural que procura legitimar e naturalizar um determinado tipo

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de discurso sobre a vida urbana. A busca e a aquisição de um estatuto patrimonial pelos centros históricos do Recife e do Porto são, assim, experiências paradigmáticas do com-plexo percurso contemporâneo das políticas urbanas.

Numa primeira confi guração histórica, os centros históricos constituem um com-ponente estrutural e funcional da vida ur-bana. Condensam as primeiras experiências de uma cultura urbana (Simmel, 1997) e tornam-se espaços de destaque na economia política das cidades. Numa segunda fase, geralmente perdem sua importância socio-econômica, sendo estigmatizados e susci-tando progressivamente a emergência de uma sentida tomada de consciência relativa à sua desvalorização social. Numa terceira etapa, reclamam e adquirem uma identidade patrimonial (Arantes, 2000), inserindo-se novamente no centro das políticas urbanas. É nessa fase que ocorrem a reinvenção do patrimônio e a construção de uma nova ima-gem da cidade, mediante políticas intensivas de revitalização e enobrecimento urbano.2 Espaços antes considerados degradados passam a ter seu atribuído valor patrimo-nial ressaltado e se transformam em foco nodal de intensivas políticas urbanas e ma-ciços investimentos público e privado. Com seus espaços higienizados e embelezados, a cidade adentra a concorrência intercidades (Fortuna, 1997) com renovada perspectiva, tendo seus patrimônios transformados em mercadoria. É nessa passagem da segunda para a terceira etapa que a ideia patrimonial emerge em meio às transformações urbanas advindas dos processos de enobrecimento.

Mas é também nessa fase que, to-mando aqui o caso concreto das duas re-alidades propostas para análise (Recife e

Porto), se consuma uma quarta e nova fase observável, caracterizada por uma espécie pós-revanchismo patrimonial. A expressão revanchismo, aplicada aos processos de gentrifi cation, é conhecida nos estudos ur-banos para designar uma espécie de vin-gança tardia, mas efi caz, da cidade, que de-marca espaços, segrega usuários e expulsa moradores indesejados (Smith, 1996). A operação lembra as políticas de higienização urbana das cidades portuárias, típica do ur-banismo haussmaniano. O que resulta desse ambíguo processo de embelezamento estra-tégico – para usar mais uma vez a feliz ex-pressão de Walter Benjamin (1997) –, é a não menos conhecida espetacularização da cultura em geral, e do patrimônio material e imaterial, em particular.

A quarta fase, aqui chamada de pós-revanchista, é gerada no auge do contexto de patrimonialização e de suas vulnerabili-dades, e encerra um desfecho inevitável e indesejado para gestores e capital. Sugesti-vamente, esse pós-revanchismo sinaliza, por outro lado, uma abertura da cidade àqueles que não tinham espaço nas políticas de eno-brecimento. Contudo, o alto preço por essa curiosa e tardia “inclusão social” é a volta desses espaços a condições de esvaziamento e deterioração crescentes.

O papel do patrimônio e da requalifi cação urbana na concretização de novas centralidades

Encarados como repositórios e como pro-pulsores de atividades culturais diversas, os

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centros históricos, ao concentrarem as ini-ciativas patrimonialistas, tornam-se objeto de uma idealização no âmbito das políticas urbanas e de processos de patrimoniali-zação. Na medida em que alimentam com frequência uma visão predominantemente culturalista da cidade, vertida em campa-nhas de criação e de difusão de imagens, os centros históricos, sustentando-se em operações de patrimonialização e de requa-lificação urbana, tornam-se uma espécie de hipercentro das cidades. Verdadeiro re-ceptáculo de investidas distintas, do campo político ao técnico, passando pelo associa-tivo e pelo empresarial, esse espaço, que muitos, através das políticas de reabilitação urbana, pretendem tornar a mais falada, a mais estudada, a mais animada ou a mais colorida das confi gurações urbanas, parece constituir-se como o novo foco, em busca de uma certa centralidade cultural. Mais do que um centro, que muitas vezes já não são, por ganharem uma visibilidade superior àquela que têm no desenrolar da vida quo-tidiana das urbes, os centros históricos são, no contexto do investimento plástico que neles é feito, um hipercentro das cidades, na medida em que, virtualmente, se cons-tituem como um ponto de convergência de intervenções urbanas diversas destinadas a um certo mediatismo. Os casos do Bairro do Recife e da Ribeira do Porto, enquanto paroxismos de processos de patrimoniali-zação, encaixam-se nesse modelo de desen-volvimento das políticas urbanas (Peixoto, 2006; Leite, 2007).

Dos centros históricos, pretende-se ca-da vez mais que não sejam apenas um mero lugar nem um centro. Mas sim que se tor-nem num hiperlugar e num hipercentro, na medida em que têm de ser simultaneamente

um lugar, uma apropriação e uma prática coletiva de formas de sacralização ou de es-pectaculosidade. Mais do que remeter para a esfera íntima ou para práticas quotidianas, o hipercentro exige um investimento coleti-vo que reveste um caráter mais ou menos sagrado, mais ou menos venerável, mais ou menos festivo, mais ou menos extraordiná-rio. Nessa medida, procurando contrastar com o seu papel recente e com o seu en-torno urbanístico, os centros históricos são alvo de intervenções destinadas a torná-los protótipos da vida urbana e são mediatiza-dos como lugares exemplares. Por essa via, enraizados numa iconografia patrimonial, acabam por preencher a função de imagem profética de um futuro diferente para a ci-dade de que fazem parte, participando no desígnio maior de qualquer comunidade. Ou seja, a capacidade em criar e em man-ter lugares de centralidade que possam ser propostos aos locais e aos estranhos como lugares a admirar e a venerar.

Nesse contexto, em posições extrema-das que atravessam as políticas de reabili-tação, parece consolidar-se a ideia que para ser belo ou atrativo, e consequentemente mediático, é preciso sofrer. Seja o sofrimen-to inerente às posições estéticas e políticas daqueles que defendem que a função dos centros históricos é preencher o lugar que as ruínas ocupam na formação e no fun-cionamento da memória coletiva, atuando como uma espécie da “beleza do morto” de que nos fala de Certeau (1996). Seja o sofrimento relativo às transformações plás-ticas que, para promover um certo sentido estético, transfi guram lugares e objetos tor-nando-os como que irreconhecíveis e alvo de críticas profundas por parte dos puristas da preservação.

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Tendo por referência as imagens di-fusas que irradiam desse hipercentro, não deixa de ser pertinente questionar a tensão marcante que enquadra muitas das inter-venções atuais nos centros históricos. Es-sa tensão, nem sempre fácil de identifi car, decorre da colisão entre imagens idea li-zadas do passado (o que se pensa que fo-ram) e imagens idealizadas do futuro (o que se pensa que devem ser). Tensão que faz emergirem projetos opostos ou alterna-tivos e, por vezes, inconciliáveis. E que, não sendo ultrapassada pelo confronto com a realidade mais ou menos recente e presente dos centros históricos se constitui como um obstáculo intransponível a uma intervenção sustentável nas áreas urbanas antigas, na medida em que será sempre um contras-senso reabilitar indo contra aquilo que exis-te. Nessa medida, não é despiciendo notar que as intervenções nos centros históricos, na sua globalidade, e no caso concreto das duas realidades urbanas retidas para análise, e não obstante o forte pendor retórico que as envolve, participam mais da produção re-presentacional e imagética que anima a pro-moção local que propriamente de uma polí-tica urbanística claramente orientada para a reabilitação, como o evidencia o surgimento de processos de revanchismo. Evidencia-se, por essa via, o risco de as campanhas de promoção local fi carem excessivamente prisioneiras de imagens sem conteúdo. Em contextos em que o marketing das cidades, movido por uma linguagem hiperbólica e alimentando fenômenos de escalada, parece estar a adquirir uma preponderância cres-cente, substituindo-se ou sobrepondo-se à ação política, à intervenção técnica e à cria-ção artística e cultural.

O processo de patrimonialização do Bairro do Recife

Para o aspecto central da análise aqui pro-posta, é fundamental destacar que o Bairro do Recife, ao longo dos seus mais de 400 anos de existência, já experimentou o apo-geu e a decadência quase absolutos – em termos de centralidade econômica, relevân-cia arquitetônica e visibilidade cultural –, em pelos menos três grandes momentos da sua história. O primeiro momento se deu quan-do da própria fundação do Povoado dos Ar-recifes (século XVI) e depois, já com a pre-sença do Mauricio de Nassau (século XVII), quando a sede do governo holandês foi edifi cada no vizinho bairro de Santo Anto-nio, deixando o bairro do Recife a amargar uma posição política secundária. O segundo, quando o bairro foi quase todo demolido e reconstruído no melhor estilo da Paris de Haussmann, ainda no auge da economia açucareira de Pernambuco (início do século XX) para, em seguida, presenciar quase seu despovoamento e, uma vez mais, a perda da sua relevância para outras áreas da cidade (sobretudo no pós-guerra até os anos 80 do século XX). Por fi m, após amargar várias décadas de quase total abandono, o bairro “ressurge” nos anos de 90 como um dos mais emblemáticos, importantes e impac-tantes processos de enobrecimento urbano do Brasil (Leite, 2007)

A fase mais aguda desse processo de patrimonialização se deu entre 1989 até aproximadamente 2001, época em que se deu o enobrecimento do Bairro. Nesse perío-do, o bairro teve suas feições arquitetônicas

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e funcionais bastante alteradas, com a trans-formação de antigos casarões em animados pubs e sofisticados restaurantes. As ruas, palco de espetáculos teatrais, shows mu-sicais e exposições artísticas, tornaram-se boulevards para as famílias de classe média da cidade. Rotinas antes impensáveis devi-do à má fama de local perigoso, o portuário bairro foi se transformando em opção de lazer seguro e entretenimento para a popu-lação, foco do turismo internacional e palco de grande visibilidade pública para eventos políticos.

O processo de patrimonialização foi in-tenso, tanto no que se refere ao patrimô-nio imaterial quanto material. O primeiro foi caracterizado por um agudo processo de retradicionalização do bairro, median-te a apresentação espetacular de folguedos da cultura popular pernambucana, a exem-plo de tradicionais grupos de maracatus. A patrimonialização edifi cada por sua vez foi tão profunda que, pela primeira vez na his-tória das políticas de preservação no Brasil, um bairro em estilo eclético foi reconhecido como patrimônio nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, a despeito da discutível relevância arquitetônica do bairro para os cânones pa-trimoniais e preservacionistas brasileiros.

Foi nesse bairro haussmanniano do Brasil que o Plano de Revitalização do Bair-ro do Recife veio a ser colocado em prática, tendo como fundamentação uma proposta de restauração do patrimônio edifi cado ar-ticulada à ideia de intervenção urbana na forma de um empreendimento econômico. Afi nado com os pressupostos do chamado market lead city planning, o plano tinha três objetivos principais: 1) transformar o Bairro do Recife em um "centro metropolitano re-

gional", tornando-o um polo de serviços mo-dernos, cultura e lazer; 2) tornar o Bairro um "espaço de lazer e diversão", objetivan-do criar um "espaço que promova a concen-tração de pessoas nas áreas públicas criando um espetáculo urbano"; 3) tornar o Bairro um "centro de atração turística nacional e internacional". Esses objetivos sinalizavam, desde o início, o quanto a proposta estava voltada ao incremento da economia local, pretendendo tornar o Bairro do Recife um complexo mix de consumo e entretenimen-to. De igual modo, a noção de um espaço de "espetáculo urbano", que iria caracterizar todo o plano, é um indicador importante da presença de uma política de gentrifi cation.

Tudo parecia perfeito, após a implan-tação do Plano de Revitalização, com o an-tigo centro histórico transformado em festa permanente, numa imbricada relação entre consumo e entretenimento, cultura e merca-doria; até que um fantasma voltou a rondar a bem-sucedida experiência de enobreci-mento no Brasil. Aos poucos, o movimento de pessoas se arrefece, bares e restaurantes fecham suas portas; a arrecadação cai; lenta e gradualmente, seus espaços vão decaindo, perdendo visitantes, saindo da agenda cultu-ral da cidade. Com a ausência de ação con-tinuada do poder público, os espaços físicos vão se deteriorando, o patrimônio edifi cado vai perdendo suas cores e, para surpresa dos desavisados, a antiga área, parecendo cumprir seu histórico ciclo vital, volta quase a ser o que era antes: espaço de vidas coti-dianas, sem muita visibilidade pública e sem a espetacularização do seu patrimônio e das rotinas sociais.

Em 2006, cinco anos após a fase mais intensa da “revitalização” do bairro, pouco restou das sociabilidades que caracterizaram

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a efervescência cultural do processo. Mais uma vez, o local experimentava o vazio das suas ruas e do seu belo patrimônio material quase às escuras.

O processo de patrimonialização do centro histórico do Porto

O fato mais marcante do centro histórico do Porto reside na circunstância de, em apenas três décadas, ter passado repentinamente de objeto disfuncional e de alvo de uma política de demolição a objecto de exibição e alvo de uma política de protecção patrimonial (Pei-xoto, 2006).

O “Plano Director de Robert Auzelle” para a cidade do Porto defendia, como tantas outras soluções de planeamento ur-bano de inspiração haussmaniana, “a mera demolição do Barredo (zona hostórica mais densa)”, o que motivou o primeiro estudo de recuperação da parte antiga da cidade pelo arquiteto Fernando Távora.3 Apresen-tado em 1969, esse estudo deu origem, em 1974, à constituição de um organismo pú-blico especializado para o levar a cabo – o CRUARB (Ramos, 1995, p. 539), cuja ação viria a ser preponderante para que, apenas 35 anos depois do plano Auzelle, em 1996, a área a demolir fosse elevada à condição de patrimônio mundial pela Unesco.

A deterioração que ocorre no centro histórico do Porto a partir do século XIX, agravada pela segregação espacial motivada pela urbanização crescente da cidade, pelo aumento demográfico derivado da indus-trialização e pela concentração da população

mais desprovida de recursos no Bairro histó-rico da Sé, ao passo que a burguesia emer-gente se fi xava nas novas zonas da cidade (como a Foz), atinge limites de ingoverna-bilidade que suscitaram “evidentes” soluções de tábua rasa. Nessas circunstâncias, porque quanto mais deteriorado um lugar se encon-tra mais ele tende a concentrar e a ampliar os problemas verdadeiramente prementes que existem numa cidade e na sociedade, o centro histórico do Porto criou, certamen-te, mais que qualquer outro em Portugal, condições de difícil implementação de uma política de reabilitação.

No Porto, a política de reabilitação e de requalificação urbana teve como pano de fundo os movimentos de moradores e o Serviço Ambulatório de Apoio Local – SAAL. Em 1969, a comunidade que dá signifi cado à zona histórica é mencionada como estan-do impregnada de um valor histórico a pre-servar (Rocha et al., 1985) e a constituição do Comissariado para a Renovação Urba-na da Área da Ribeira-Barredo (CRUARB) constitui-se como um marco decisivo no lançamento da política local de reabilitação urbana ancorada numa retórica patrimonial. Essa política, na formulação legislativa do diploma que a enquadra, é projetada, em re-lação à sua zona mais nobre, com receios de enobrecimento da zona histórica e de centri-fugação da população aí residente. “Consi-derando a urgente necessidade de conduzir efi cazmente o processo de renovação urba-na da zona da Ribeira da Cidade do Porto” afi gura-se igualmente premente “assegurar que a população trabalhadora que há mui-to habita essa zona nas piores condições de alojamento e exploração não venha a ser de-la deslocada por força da valorização da pro-priedade e da zona decorrentes da própria

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operação em tempo planeada” (Rodrigues, 1999, pp. 40-41). Em 1980, segundo da-dos do INE, nos 3.200 edifícios existentes no centro histórico do Porto residiam cerca de 20.000 indivíduos, numa assinalável mé-dia de 6,25 por edifício. Esse desiderato de evitar a saída de residentes não foi contudo concretizado, uma vez que cerca de 800 re-sidentes foram deslocados para o Bairro do Aleixo, gerando-se entre eles, contrariamen-te ao que muitas vezes se procura evidenciar quando se insiste que as operações de rea-lojamento desta natureza são sempre feitas contra a vontade dos próprios, sentimentos contraditórios.

Como lembra Gaspar Pereira, “as ope-rações de renovação urbanística, levadas a cabo na zona central da cidade, em especial as que atingem as zonas mais densamente povoadas do centro histórico, onde se con-centravam populações pobres”, têm efeitos perversos e não antecipados. Isso porque “contribuem para agravar as carências ha-bitacionais, conduzindo quer a uma sobreo-cupação do miolo da cidade antiga não atin-gido pelas demolições, quer à centrifugação de famílias pobres para a periferia” (Pereira apud Rodrigues, 1999, p. 16).

Acresce que, desde cedo, por outro la-do, de modo a procurar tornar menos densa uma confi guração urbana atulhada, se ma-nifestam contornos de uma renovação sele-tiva que pretende ver-se travestida de uma prática de reabilitação integrada que, pelo menos retoricamente, valoriza o conjunto histórico constituído pelo habitat residen-cial e pela comunidade local. Essa política se orienta, assim, para o enobrecimento do espaço público e para o florescimento de condições que favorecessem as práticas ur-banas de lazer e de consumo. Por isso mes-

mo, não é despiciendo nem inaudito notar que à zona da Ribeira, palco da cultura do consumo visual, tenha sido conferida uma prioridade em termos de reabilitação e de requalifi cação. Como lembra, de resto, um dos técnicos envolvidos nas operações de re-qualifi cação:

Se edifícios muito degradados sobre

que pretendíamos operar não revelas-

sem valor patrimonial sufi cientemente

positivo ou se a sua presença e recons-

trução signifi casse aumento de densida-

de construtiva, nociva à vida das popu-

lações, o Mestre [Arquitecto Viana de

Lima] propunha, sem hesitação, o seu

apeamento em favor do espaço aberto

que proporcionasse o estar lúdico e a

circulação facilitada (…). Ainda hoje, e

já sem a presença directa do Mestre,

soluções urbanísticas deste tipo foram

reutilizadas, como no Largo da Viela

do Anjo, onde, à custa da demolição

de algumas construções em ruína, foi

conseguido um espaço urbano aberto

de grande qualidade arquitectónica, no

interior da densa malha medieval da Sé,

sem as descaracterizar, antes valorizan-

do-as. (Moura, 2001, pp. 106 e 108)

Ainda que nunca tenha sido assumido pelos poderes locais que a reabilitação urba-na empreendida no centro histórico do Por-to tivesse sido inicialmente motivada pelo ímpeto em ver o centro histórico tombado patrimônio mundial, a verdade é que esse objetivo se vai consolidando com a matura-ção do processo de reabilitação.

Retendo uma ideia de António Firmino da Costa (1999), segundo a qual as zonas onde a reabilitação e a requalifi cação urba-nas ocorrem são “socialmente constituídas

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como objetos de reabilitação urbana”, mes-mo antes das operações dessa natureza te-rem início, vale a pena relevar que, frequen-temente, essas operações se resumem a pouco mais que esse processo de construção social (com uma amplitude limitada que di-fi cilmente ultrapassa os discursos políticos) e que essa é, recorrentemente, uma queixa difundida pelos técnicos envolvidos. Mesmo não sendo o caso, porque confi gurou uma interessante operação de reabilitação e de requalificação urbanas, tornado, por isso mesmo, ainda mais pertinente este argu-mento, a verdade é que, obtido o estatuto de patrimônio mundial (não obstante faltar reabilitar uma grande porção do edifi cado e requalifi car uma parte do espaço público na área Ribeira-Barredo, e de a intervenção na mais densifi cada zona do Bairro da Sé levar apenas 8 anos de realização), o CRUARB enfrentou um processo de extinção a partir de 2005, o que evidencia a volubilidade dos processos de patrimonialização.

Conclusão: do enobrecimento ao contrarrevanchismo

As experiências urbanas das cidades do Re-cife e do Porto guardam similitudes impor-tantes num quadro analítico comparativo. A retórica e a prática inerentes aos processos de patrimonialização, a prazo, por estarem sujeitas a opções políticas, às vicissitudes dos investimentos públicos e a fenômenos de moda, podem ser geradoras de efeitos de revanchismo (neste caso, contrarrevanchis-mo, se entendermos que o próprio processo

de patrimonialização foi uma revanche da cidade aos usuários e moradores “indeseja-dos”).

Nessa medida, não é assim tão fora do vulgar constatar que os processos de patri-monialização retroagem sobre eles mesmos, levando a que os efeitos positivos que gera-ram, em face dos objetivos que perseguiam, retrocedam no sentido que levavam e se en-caminhem para situações qualitativamente inferiores àqueles que prevaleciam à época de sua implementação. Nesses casos, tudo se passa como se a intervenção patrimonial, como tantas vezes acontece nas operações de enobrecimento, viesse gerar num deter-minado espaço uma situação contra natura que acaba, uma vez esmorecida essa inter-venção, não só por se normalizar, mas tam-bém por se refi nar, no sentido em que tende a concentrar e a atrair exponencialmente os fenômenos expurgados pelos processos de patrimonialização.

No Porto, a extinção do Comissariado para a Renovação Urbana da Área da Ribei-ra-Barredo (CRUARB) e da Fundação para o Desenvolvimento da Zona Histórica (FDZH), que foram as duas instituições que desen-volveram uma intervenção sistemática de reabilitação e de requalifi cação urbanas, não deixam potencialmente de enquadrar fenô-menos de revanchismo ligados aos proces-sos de patrimonialização. A ausência dessa intervenção não só significa o retomar de uma dinâmica de decadência, travada pela existência dos processos de requalifi cação e de patrimonialização, como a legitima numa lógica fatalista que acaba por a acelerar a um ritmo muito mais intenso.

Mas esse fenômeno de revanchismo é de natureza complexa e, unidimensional-mente considerado, não deixa de evidenciar

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posições marcadamente ideológicas. O que leva a que seja profícuo questioná-lo na sua complexidade.

No caso do Porto, a extinção do CRUARB e da FDZH é recorrentemente jus-tificada por não terem sido levadas a um ponto ótimo as operações de enobrecimen-to urbano e por essas instituições terem limitado esse enobrecimento a interven-ções de requalificação do espaço público. Designadamente, na retórica legitimadora do novo instrumento financeiro-jurídico-urbanístico (as Sociedades de Reabilitação Urbana), critica-se o fato de o CRUARB ter apostado numa reabilitação de qualidade, e impossível de generalizar a toda a cidade, para realojar em casas “luxuosamente” re-cuperadas uma população residente de bai-xos recursos. Com a agravante – se releva – de essa população, que paga ao município rendas ajustadas à sua baixa renda mensal, não ter recursos, nem os permitir gerar, para fazer face, a médio prazo, às despesas de manutenção das intervenções realizadas. Por isso, um enobrecimento generalizado e mais ousado é defendido como estratégia mais adequada para evitar fenômenos de revanchismo em que os processos de patri-monialização se vejam hipotecados por eles próprios.

No caso do Bairro do Recife, o enfra-quecimento das atividades do Escritório de Revitalização do Bairro do Recife acompa-nhou a diminuição progressiva de investi-mentos. Ancorado, sobretudo, em uma con-cepção de consumo e entretenimento, típico dos processos denominados gentrifi cation para visitação, o processo de enobrecimen-to do Bairro do Recife não se alicerçou em políticas residenciais, embora se soubesse, desde as primeiras iniciativas do Plano de

Revitalização – Bairro do Recife, que essa dimensão era fundamental para o retorno e manutenção de certas atividades desejadas.

Em decorrência de sua incontestável importância, um dos aspectos mais discuti-dos nas políticas de enobrecimento tem sido justamente a dimensão residencial desses empreendimentos. Entende-se que, sem essa característica, faltaria a esses projetos uma das suas principais bases de sustenta-ção, capaz de gerar certas rotinas cotidianas de serviços que são essenciais à manutenção do curso de uma vida regular. Contudo, o caso do Recife repete uma tendência que tem sido quase um padrão no Brasil: o de não incorporar políticas habitacionais nos projetos de “revitalização”. Nem na forma de melhoria das condições de vida das po-pulações mais pobres, que em geral habitam essas áreas centrais das cidades (em sua maioria, regiões portuárias), nem na forma de novos empreendimentos imobiliários.

Somada a ausência de investimentos residenciais, e tendo ou não o plano de “re-vitalização” apoio da administração pública, existe uma dimensão cotidiana da questão, relacionada à delicada equação da comunica-bilidade política expressa nos usos e contra-usos desses espaços que podem contribuir para a fragilidade das relações sociais e vul-nerabilidade desses espaços enobrecidos. Nesse caso, há de se considerar a presença continuada e persistente de contrausos nos espaços enobrecidos, e suas ressonâncias sobre os processos interativos (estruturado-res de identidades mediante a atribuição de sentidos aos lugares) entre os distintos gru-pos envolvidos nos usos desses espaços.

Por fi m, é nesse sentido que a relação entre enobrecimento e o revanchismo que lhe subjaz traduz-se de dois modos distintos.

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Na vingança que as antigas dinâmicas com-batidas pelos processos de patrimonializa-ção, aproveitando o enfraquecimento destes últimos, exercem, retomando e alastrando sua importância. Mas também na incapa-

cidade das operações de preservação, que existem para reagir a um enobrecimento generalizado, em se manterem sustentáveis num contexto de igual afectação de recursos a todas as operações de requalifi cação.

Rogerio Proença LeiteProfessor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Fede-ral de Sergipe (Sergipe, Brasil). Pesquisador 2 do [email protected]

Paulo PeixotoProfessor e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universi-dade de Coimbra (Coimbra, Portugal)[email protected]

Notas

(*) Texto produzido no âmbito das pesquisas da Rede Brasil-Portugal de Estudos Urbanos (CPLP/MCT/CNPq e CAPES-FCT). Uma primeira versão deste arti go foi apresentada na 26ª Reunião Bra-sileira de Antropologia – ABA, Bahia, Brasil.

(1) Referimo-nos aos processos de patrimonialização para dar conta de um movimento de duplo alcance. Por um lado, e na sua essência, os processos de patrimonialização se referem a inter-venções de natureza patrimonial e predominantemente técnica que visam, acima de tudo, ob-ter, através de uma operação de tombamento formal, um estatuto patrimonial. Por outro lado, lateralmente, os processos de patrimonialização se referem a operações de natureza diversa (arquitetônica, paisagísti ca, urbanísti ca, políti ca, cultural, comercial, etc.) cujos objeti vos, inde-pendentemente de um reconhecimento formal, assentam na exacerbação de um patrimônio ou do valor patrimonial de um objeto, para efeitos de consumo visual, turísti co ou sustentação de um mercado urbano de lazeres.

(2) O enobrecimento, nobilitação, ou gentrifi cati on (termo inglês correntemente uti lizado na gíria da reabilitação urbana), dá conta da substi tuição da população residente por outra de estratos so-ciais mais elevados na sequência de processos de conservação e de restauração de determinado espaço urbano, remetendo numa visão mais redutora para a qualifi cação do espaço

(3) A haussmanização refere-se a uma políti ca de demolição, levada a cabo em Paris por Georges-Eugène Haussmann, na segunda metade do século XIX, que pretende intervir no espaço urbano de modo a controlar, disciplinar e higienizar os comportamentos, assim como a criar referências e marcadores do espaço através da monumentalização.

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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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Política de habitação nas áreascentrais: retórica versus prática*

Mariana Fialho Bonates

ResumoEm 1999 foi criado o Programa de Arrenda-mento Residencial (PAR) que, dentre suas atri-buições de construção de novos conjuntos habi-tacionais, também passou a promover a mora-dia nos centros urbanos, através da reabilitação de antigos edifícios. Sendo assim, várias cida-des passaram a elaborar estudos de viabilidade em prédios abandonados, no entanto, poucos foram efetivados. O fato é que a ação do PAR em reabilitação é ainda muito tímida ante a sua outra modalidade – de construção de novas moradias –, benefi ciando poucas edifi cações em algumas cidades. Assim, este artigo tem por objetivo compreender o potencial de utilização do PAR para a reabilitação das áreas centrais das cidades brasileiras. Os procedimentos de pesquisa adotados incluíram revisão bibliográ-fi ca, pesquisa documental e pesquisa de campo, visando levantar as características do PAR, bem como as características quantitativas e qualita-tivas dos imóveis reabilitados pelo programa.

Palavras-chave: centros urbanos; política habitacional; PAR; reabilitação de edifi cações; características da produção.

AbstractIn 1999, the Housing Leasing Programme (Programa de Arrendamento Residencial – PAR) was set up to build dwellings for low income people. PAR was not, at fi rst, allowed to construct dwellings in peripheral areas, only in areas already equipped with infrastructure, occupying empty land (a problem which is very common in Brazilian cities). In addition to new housing, the programme also targeted on the rehabilitation of old buildings in city centres. Thus, several municipalities developed new projects and applied for funds from PAR to rebuild degraded residential buildings. However, few of these projects have been completed. This paper aims at analyzing PAR as a potential tool in the rehabilitation of city centres via housing revitalization.

Keywords: city centre; housing policy; housing leasing programme; rehabilitation of buildings; housing production.

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Introdução

Muito tem mudado na economia internacio-nal em seguida à crise do fordismo e com a emergência do modelo de acumulação fl e-xível, refl etindo no desenvolvimento urba-no, sobretudo a partir da década de 1990, quando se consolida um novo modelo com base no planejamento estratégico, que tem os centros de cidade como um dos espaços privilegiados de intervenção.1 Segundo Del Rio (2001),

[...] a globalização da economia tem

acirrado a competição entre cidades

na atração de novos investidores e na

construção de novos mercados, o que

faz destacar os diferenciais urbanísticos

e, consequentemente, um cuidado cada

vez maior na busca da qualidade para

os modelos e processos.

Isso significa que investir na reabilitação urbana das áreas centrais é destacar o di-ferencial do local para a economia mundial, motivo pelo qual essa temática está inserida nas agendas políticas de muitas cidades.

No entanto, o que significa o termo reabilitação urbana no contexto do planeja-mento estratégico? De acordo com a Carta de Lisboa de 1995, a reabilitação urbana é entendida como

[…] uma estratégia de gestão urbana

que procura requalifi car a cidade exis-

tente através de intervenções múltiplas

destinadas a valorizar as potencialida-

des sociais, econômicas e funcionais,

a fi m de melhorar a qualidade de vida

das populações residentes; isso exige o

melhoramento das condições físicas do

parque construído pela sua reabilitação

e instalação de equipamentos, infraes-

truturas, espaços públicos, mantendo a

identidade e as características da área

da cidade a que dizem respeito. (Apud

Vasconcellos e Mello, 2006, p. 59)2

O processo de reabilitação das áreas centrais, que segue um modelo interna-cional, materializa-se no espaço urbano tentando viabilizar duas vertentes. Uma vertente é a reabilitação por meio da espe-tacularização e da atividade turística, inves-tindo, sobretudo, em espaços públicos e em infraestrutura, procurando potencializar as identidades do local; a outra vertente está voltada para a promoção da moradia nas áreas centrais. Para Silva (2006, p.15), inclusive, “a política habitacional […] apa-rece em vários casos como o grande mo-tor da reabilitação”, que eventualmente se desenvolve em conjunto com um processo de gentrifi cação social (esta, muitas vezes, mesmo não sendo planejada).

No entanto, a ideia de conjugar a políti-ca habitacional com a política de preservação dos sítios históricos, onde, em geral, locali-zam-se as áreas centrais, não é recente. A “Recomendação de Nairóbi”, de 1976, rela-tiva à salvaguarda dos conjuntos históricos e de sua função na vida contemporânea, suge-ria, entre outras coisas, a compatibilização entre a política habitacional e a salvaguarda do patrimônio arquitetônico:

O regime de eventuais subvenções

deveria ser, consequentemente, esta-

belecido e modulado sobretudo para

facilitar o desenvolvimento de habita-

ções subsidiadas e de edifícios públicos

através da reabilitação de construções

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antigas. […]. Além disso, uma parte

sufi ciente de créditos previstos para a

construção de habitações sociais deve-

ria ser destinada à reabilitação de edifi -

cações antigas.

No Brasil, a partir da década de 1990, a questão da reabilitação das áreas centrais se destaca, sendo duplamente infl uenciada pelo cenário internacional do planejamento estratégico, como também pelo processo de degradação e de deterioração dos centros urbanos e sítios históricos. Segundo Silva (2006), essa degradação e deterioração é resultado de um longo processo histórico que envolve a descentralização das elites do núcleo central, devido à construção de no-vos bairros residenciais, de novos centros comerciais (como os shoppings centers), etc., levando ao surgimento de novas cen-tralidades na cidade. Alia-se a isso a política habitacional do Banco Nacional de Habitação (BNH – 1964-1986) que, com a utilização de recursos do Fundo de Garantia por Tem-po de Serviço (FGTS), difundiu um modelo de implantação periférica dos seus conjun-tos, contribuindo na extensiva expansão ho-rizontal de muitas cidades.

Todos esses fatos levaram a um pro-cesso de evasão da população residente e de abandono de parte das estruturas físicas dos centros urbanos. Por outro lado, as estrutu-ras que não foram abandonadas passaram por outro processo: o de transformação de uso e de perfi l social, ou seja, passaram, de prioritariamente residencial, pertencente às elites, para uma área comercial e residencial das camadas populares. Além disso, as áreas centrais caracterizam-se na contemporanei-dade pela atividade informal e pela estigma-tização como lócus de violência urbana.

Em contraste com as unidades abando-nadas nas áreas centrais, dados da Fundação João Pinheiro (2005) revelam um défi cit de mais de sete milhões de habitações no país. O que se verifi ca, portanto, é que, mesmo diante do signifi cativo défi cit habitacional, há um descompasso entre a produção de novas moradias fi nanciadas pelo governo e a subu-tilização de aproximadamente seis milhões de unidades fechadas, inclusive, nos centros. Todo esse quadro é, em grande parte, fruto de uma política habitacional voltada para a construção de novas moradias e de uma po-lítica de preservação focada no tombamento de monumentos.

Numa tentativa de conjugar tais ques-tões, a priori independentes, a reabilitação das áreas centrais no Brasil tem buscado o tema da habitação como centralidade de várias ações, realizadas pelos governos mu-nicipal, estadual e federal. Além disso, a rea-bilitação das áreas centrais consiste em um item quase obrigatório nos planos estratégi-cos governamentais. Assim, algumas ações vêm sendo viabilizadas por meio do Pro-grama de Arrendamento Residencial (PAR), criado em 1999. Esse programa se destaca pela construção de conjuntos habitacionais preferencialmente localizados em vazios urbanos, ou seja, não se refere unicamen-te à reabilitação de edifícios, embora tam-bém possa atuar para esse fi m. No entanto, como será visto, sua intervenção nas áreas centrais é ainda bastante incipiente, com al-gumas poucas ações nas principais cidades brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador, etc. Não obstante, trata-se de um programa inovador, pois refl ete uma nova forma de intervenção da política pública brasileira, diferentemente de períodos anteriores, quando não havia

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políticas voltadas para as áreas centrais, apenas instrumentos, nem sempre efetivos, para a preservação do patrimônio histórico. Também se diferencia no rol das políticas habitacionais pela diferente forma de aces-so à moradia – o arrendamento – quando a historiografi a foi marcada pela difusão da casa própria.

Enfim, tendo como pano de fundo a questão das políticas habitacionais, este ar-tigo visa compreender o potencial de utili-zação do PAR para a reabilitação das áreas centrais. O artigo está estruturado em três partes. A primeira procura identificar e discutir as políticas públicas para as áreas centrais, tendo a habitação como foco; a segunda parte se refere à caracterização do PAR e, a terceira parte discute os aspectos quantitativos e qualitativos da ação do PAR na reabilitação.

As políticas públicas para as áreas centrais: habitação como foco

É na década de 1980 que o processo de de-gradação e de deterioração dos centros ur-banos passa a ser discutido de modo mais intensivo no Brasil. O fato é que, inicialmen-te, a tônica da discussão girava mais em tor-no da preservação do patrimônio edifi cado, das ações e dos instrumentos para esse fi m. De acordo com Vargas e Castilho (2006), a partir da década de 1990 a questão da rea-bilitação das áreas centrais se destaca (in-fl uenciado pelo cenário internacional do pla-nejamento estratégico), tendo a habitação como centralidade de muitos debates.

Para Rolnik e Botler (2004), foi a par-tir do ano 2000 que, no âmbito do gover-no federal, a Caixa iniciou a implantação do Programa de Revitalização de Sítios His-tóricos (PRSH), e o Ministério da Cultura implantou o Programa Monumenta. Cada qual apresentava características distintas: enquanto o último estava mais direcionado para atividades de restauro em edifi cações localizadas dentro do perímetro dos sítios históricos tombados pelo Instituto do Patri-mônio Histórico, Artístico Nacional (IPHAN), o primeiro visava reabilitar imóveis vazios, transformando-os em uso habitacional. En-tretanto, esses imóveis vazios eram loca-lizados em perímetros defi nidos dentro de áreas protegidas como patrimônio e não ne-cessariamente aqueles tombados. Ainda se-gundo Rolnik e Botler (ibid.), o PRSH atuou baseando-se na formação de parcerias, so-bretudo com o governo francês e tentando disponibilizar financiamentos através do PAR, conforme citação abaixo:

Sem um fundo específico de financia-

mento, contando apenas com recursos

do Programa de Arrendamento Fami-

liar – PAR – a Caixa viabilizaria algumas

ações de reabilitação, agregando recur-

sos da lei federal de incentivo à cultura,

via renúncia fi scal, para complementar

os custos da recuperação de imóveis

históricos que abrangem obras de res-

tauro que por isto ultrapassam os te-

tos de fi nanciamento estabelecidos pelo

PAR. (Ibid.)

No entanto, o PAR não é voltado espe-cifi camente para a reabilitação de áreas cen-trais; trata-se de um programa de habitação do governo federal, que tem a reutilização

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da antigas estruturas para o uso habitacio-nal como apenas uma de suas frentes de ação, como será explicado mais adiante.

Já em 2003, quando se iniciou o go-verno do presidente Luiz Inácio Lula da Sil-va, foi criado o Ministério das Cidades para tratar da questão urbana, e, dentre outros, o Programa de Reabilitação de Áreas Ur-banas Centrais. Este têm como principal objetivo:

[…] por meio da recuperação do esto-

que imobiliário subutilizado promover o

uso e a ocupação democrática e susten-

tável dos centros urbanos, propiciando

o acesso à habitação com a permanên-

cia e a atração de população de diver-

sas classes sociais, principalmente as de

baixa renda; além do estímulo à diver-

sidade funcional recuperando atividades

econômicas e buscando a complementa-

riedade de funções e da preservação do

patrimônio cultural e ambiental. Esses

objetivos são parte integrante de uma

nova política urbana baseada nos prin-

cípios e instrumentos do Estatuto da

Cidade. (Brasil, 2005, p.18)

Na prática, o programa visa, através da promoção técnica, do apoio fi nanceiro e da divulgação de experiências, fomentar a realização de Planos Locais de Reabilitação de Centros, financiados com recursos do Orçamento Geral da União (OGU). Na ques-tão habitacional, atualmente, além do PAR, outros programas de habitação são passíveis de fi nanciar a reabilitação de imóveis na área central para uso residencial: o Crédito Soli-dário, o Pró-moradia, o Apoio à Produção de Habitação, o Imóvel na Planta, o Carta

de Crédito Associativo, o Crédito Individual, a Resolução nº 460, isto é, quase todos os programas que compõem a Política de Habi-tação do governo federal, com recursos do FGTS e de outras fontes (ibid.).

Além de aumentar as linhas de fi nancia-mento para promover o repovoamento do centro, o Ministério das Cidades está ten-tando viabilizar a moradia nas áreas centrais através da alienação ou disponibilização de imóveis vazios ou subutilizados pertencen-tes à União, ao INSS, e à Rede Ferroviária Federal (RFFSA), para serem doados para as prefeituras, principalmente, para que estas também possam tentar viabilizar, por meio de parcerias, a moradia nesses imóveis doados.

Verifi ca-se, portanto, crescentemente, um número de ações do governo federal na tentativa de reabilitar as áreas centrais tendo a habitação como foco da sua inter-venção. Os governos estaduais e municipais também vêm promovendo experiências nes-se campo, principalmente, por meio de par-cerias o governo federal. Por exemplo, se-gundo Gonçalves (2006), em São Luís-MA, entre 1991 e 1994, iniciou-se um Projeto Piloto de Habitação para o centro, com a re-cuperação de apenas um sobrado para mo-radia de uma população de renda mais baixa ou sem renda, mas que não logrou o suces-so esperado, pois não atingiu a “sustenta-bilidade desejada”. Diferentemente, entre 1996 e 1999, foi criado o Subprograma de Promoção Social e Habitação do Governo do Estado do Maranhão (PPSHGM), fi nanciado com recursos do governo estadual, federal e do Banco Interamericano de Desenvolvimen-to (BID). Em resumo, esse programa teve o seguinte perfi l:

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[…] como público alvo funcionários

estaduais que não possuam imóvel pró-

prio e que morem afastados da área de

trabalho, do Centro Histórico de São

Luís. A aquisição do imóvel é feita atra-

vés de uma prévia inscrição desses fun-

cionários e, posteriormente, é feito um

sorteio para entrega dos apartamentos.

O contrato é estabelecido na forma de

aluguel dos apartamentos, no qual os

moradores devem respeitar as nor-

mas de preservação e conservação do

imóvel, sendo fi scalizados e orientados

por técnicos do Programa. (Gonçalves,

2006, p. 48)

O contrato acima assinalado tem ca-racterísticas próprias de um arrendamento residencial, uma vez que os moradores têm a opção de poder comprar o apartamen-to após um período 10 anos morando no imóvel. As prestações mensais, descontadas da folha de pagamento do servidor, serão contabilizadas como parte do pagamento, segundo indicado por Gonçalves (ibid.). Ain-da segundo essa autora, até 2004, haviam sido entregues 5 imóveis, totalizando 38 unidades habitacionais e 18 lojas, e ainda estavam em processo licitatório outros 4 imóveis com 29 novas moradias e 16 lojas. Tal proposta do governo estadual é inte-ressante para essa discussão, uma vez que, embora pouco mais antigo, trata-se de um fi nanciamento muito parecido com a forma operacional do PAR, que fi nanciou apenas um imóvel no caso da capital maranhense, como se verá adiante.

Além desta, a prefeitura do Rio de Ja-neiro tem o Programa Novas Alternativas, que se desenvolve tendo por base recursos municipais, bem como recursos federais.

Neste caso, destacam-se os programas Carta de Crédito Associativo e o PAR, que já fi nanciaram várias obras no centro ca-rioca – totalizando uma média de 119 uni-dades e mais 10 lojas em vários imóveis – destacando-se do ponto de vista quantitati-vo no cenário nacional (Heloui, 2008).

Outra cidade que também se destaca com a experiência isolada de um programa municipal para a reabilitação do seu cen-tro é São Paulo, com o Programa Morar no Centro, que promoveu a reforma de al-guns edifícios por meio do PAR. Esse pro-grama foi implementado durante a gestão de Marta Suplicy, entre 2000 e 2003, e se tratava de um conjunto integrado de inter-venções municipais coordenadas pela Secre-taria de Habitação e Desenvolvimento Urba-no (SEHAB). Além do PAR, atuou através de uma série de programas habitacionais, utilizando-se de recursos próprios, como o Locação Social, o Bolsa Aluguel, a Moradia Transitória e o Programa de intervenção em cortiços. No entanto, esse programa muni-cipal não teve sua continuidade assegurada na gestão seguinte.

Além de São Luís, Rio de Janeiro e São Paulo, outras cidades também apresentam políticas ou planos locais de reabilitação em áreas centrais, em que a habitação tem pa-pel de destaque, e que, muitas vezes estão associadas ao PAR. No entanto, essas ações, junto às ações federais, são ainda muito in-cipientes, podendo-se afi rmar que

A ausência de uma política nacional de

reabilitação e a fragmentação das ar-

ticulações em torno do tema permitiu

apenas o aparecimento de um formato

voluntarioso de ação, sem que se alcan-

çasse a consolidação de uma estrutura

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de programa capaz de balizar uma

relação “contratual”, como normal-

mente requer um programa federal de

políticas públicas, entre as esferas do

governo – federal, estadual e municipal.

(Rolnik e Botler, 2004)

Em outras palavras, assiste-se a um conjunto de ações pouco articuladas que, de fato, não vêm alcançando o resultado esperado de reabilitar as áreas centrais. Nesse cenário, o PAR entra como um dos programas habitacionais mais visados para fi nanciar o uso residencial na área central, motivo pelo qual vamos tentar entendê-lo um pouco melhor a partir de uma análise baseada nos documentos (leis e normativos da Caixa) que regem o seu funcionamento, em informações obtidas junto à Caixa e le-vantamento de campo em alguns conjuntos do PAR.

O programa de arrendamento residencial – a caracterização

O PAR e sua respectiva fonte de recur-sos, o Fundo de Arrendamento Residencial (FAR),3 foram criados em 1999, durante o segundo mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e assegurado pelo governo Lula. Trata-se de um programa ha-bitacional do governo federal que funciona como um leasing, a priori, por um período de 15 anos,4 com opção de compra ao fi nal do prazo contratado. Entretanto, recente-mente, em maio de 2007, foi promulgada uma lei que possibilita a transformação do programa em um fi nanciamento convencio-

nal depois de cinco anos de arrendamento.5 Não obstante, o principal objetivo do pro-grama é:

Atender, sob a forma de arrendamento

residencial, à necessidade de moradia

da população de baixa renda, concen-

trada nas capitais e regiões metropoli-

tanas defi nidas para o Programa e, nos

municípios com população urbana supe-

rior a 100 mil habitantes, com opção

de compra ao fi nal do prazo contrata-

do, por meio da aquisição de unidades

habitacionais a serem construídas, em

construção, concluídas ou em reforma e

recuperação de empreendimentos (nor-

mativo da Caixa-PAR, 2006, p. 7).6

Diante do tipo de acesso à moradia – o arrendamento residencial ou leasing habita-cional –, o PAR consiste em uma diferente alternativa à casa própria: é uma política da casa própria, sem a casa ser própria, pois a Caixa é a proprietária fi duciária do imó-vel durante o período do arrendamento. Na verdade, esse programa foi uma forma de fi nanciamento encontrada pelo governo fe-deral para tentar minimizar o problema da inadimplência. Como o arrendatário não é o proprietário da habitação, fi ca mais fácil para a Caixa reaver o imóvel caso ele atrase duas parcelas de qualquer uma das taxas de sua responsabilidade (taxa de arrendamento ou taxa condominial), pois o atraso de 60 dias no pagamento fica definido como quebra contratual. Salienta-se que o prazo máximo de inadimplência estipulado pelo programa vai de encontro à própria Lei do Inquilinato, que permite até 90 dias de atraso.

Além da particularidade de se tratar de um leasing, no conjunto de programas de

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fi nanciamento tradicionais da casa própria, o PAR se diferencia dos demais programas de habitação por vários motivos, sobretudo, pelos operacionais, mas também pela sua forma de produção no espaço urbano, atuan-do em duas frentes de ação no combate ao problema habitacional no país. Assim, como se observou na citação acima, o programa atua, por um lado, na construção de novas unidades unifamiliares ou multifamiliares, em condomínios fechados ou loteamentos; e, por outro lado, na recuperação ou na refor-ma de antigos edifícios, preferencialmente localizados nas áreas centrais. Para ambas as modalidades existem recomendações locacio-nais e tipológicas, normatizando o programa de necessidades e a localização dos conjun-tos. Por exemplo: conforme o Normativo da Caixa-PAR (2006), o programa de necessi-dades básico é composto por dois quartos, banheiro, sala e cozinha em 37m², exceto nos projetos de reabilitação, em que as nor-mas são mais fl exíveis e específi cas.7

O fato é que, seguindo a tradição das políticas da casa própria de produção de novas moradias, o PAR vem adotando mais a primeira vertente em detrimento da rea-bilitação de antigas estruturas. Assim, de modo geral, a produção através do PAR se caracteriza, sobremaneira, pela construção de novos conjuntos habitacionais semiver-ticalizados (até 4 ou 5 pavimentos, depen-dendo da região em que está inserido) e de pequeno porte (aproximadamente 160 uni-dades, conforme recomendado pelo próprio programa).

A princípio, seguindo as recomenda-ções do normativo do programa, esses con-juntos foram preferencialmente implantados em vazios urbanos localizados na malha da

cidade, em áreas dotadas de infraestrutura e serviços,8 com o objetivo de evitar a sua implantação em locais longínquos e sem in-fraestrutura, como normalmente ocorria com o modelo empreendido pela política do BNH. Todavia, muitas das características acima assinaladas vêm se transformando, sobretudo desde 2003, quando têm sido produzidos conjuntos mais horizontalizados, organizados na forma de loteamentos (sem condomínios) e inseridos em áreas mais pe-riféricas das cidades, provocando, inclusive, a distorção da proposta inicial do programa de implantar na malha urbana.9 Em suma, a localização dos conjuntos do PAR era, em essência, um dos principais diferenciais do programa.

A preocupação de se produzir habita-ções no tecido urbano, em locais dotados de infraestrutura, favorece o objetivo de reabilitar as áreas centrais, uma vez que são locais que apresentam tais característi-cas, além de uma série de outras qualidades como a concentração de atividades comer-ciais, de serviços, transportes públicos, etc. Em relação a isso, Amorim e Dufaux (2005) afi rmam que:

Em um momento de evidente redução

da renda familiar da classe média bra-

sileira, a oferta de moradia econômica

nas áreas urbanas centrais pode atrair

aquela camada da população que deseja

reduzir seus gastos mensais, seja pela

diminuição do compromisso do orça-

mento familiar com a moradia (redução

do preço de aluguel, taxa condominial

e impostos municipais) e transporte,

ou para aqueles que buscam outro es-

tilo de vida, no qual a relação com o

espaço público seja mais presente e a

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proximidade com o centro de comércio

e de serviços desejável.

Outra característica de fundamental im-portância é o valor pré-fi xado do valor máxi-mo das unidades – em geral inferior ao valor estabelecido no mercado imobiliário, pois é basicamente o valor industrial da construção do imóvel. Esse valor é, ainda, variável em função do tipo de especifi cação dos mate-riais de construção – especifi cação “padrão” ou especifi cação “mínima” – e da localização no território brasileiro. Em suma, em 2007, os valores variavam entre R$30.000,00 e R$40.000,00; especifi camente para requa-lificação de áreas centrais ou recuperação de sítios históricos, o valor pode chegar até R$40.000,00 para os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, e R$38.000,00 para os demais estados (Portaria nº 493/2007).

Assim, buscou-se defi nir valores máxi-mos para a aquisição dos imóveis a fi m de atender a um público-alvo com menor capa-cidade de pagamento. De modo semelhan-te, a taxa de arrendamento também é pré-fi xada e mais barata, podendo corresponder a 0,7% ou 0,5% do valor de aquisição do imóvel (a depender do público-alvo, se PAR 1 o PAR 2, respectivamente),10 isento de valorização imobiliária. O valor da taxa de arrendamento é corrigido anualmente ten-do-se por base apenas a correção anual da Taxa de Referência (TR). Com esse índice, o valor da taxa de arrendamento variava na faixa aproximada dos R$ 200,00, em 2008, o que é, inclusive, muitas vezes, inferior a uma taxa de aluguel com as mesmas condi-ções de habitabilidade e de localização.

Enfi m, essas condições especiais, so-bretudo em relação à operacionalização do programa, como o fato de o imóvel ser de propriedade fi duciária da Caixa, contribuem na requalificação de imóveis degradados nos centros urbanos para fins habitacio-nais, uma vez que o ramo da construção civil continua privilegiando a construção de novas moradias populares em terras mais baratas, ou seja, mais periféricas. A relativa baixa taxa de arrendamento dos imóveis é também outro fator fundamental para es-timular o uso residencial da população de menores rendas no centro, já que aquelas faixas de maiores rendimentos não têm in-teresse nessas áreas da cidade – exceto em casos que passaram por um processo de gentrifi cação social como ocorreu em No-va York, no Soho, por exemplo. Isso tudo signifi ca que para requalifi car o centro com moradia, é importante a forte intervenção e o subsídio do Estado, como o PAR vem pro-movendo. As características quantitativas e qualitativas dessa produção do PAR na reabilitação das áreas centrais será melhor desenvolvida a seguir. Os dados apresenta-dos na próxima seção tiveram por base um levantamento realizado em sites da internet (preferencialmente os oficiais da Caixa e das prefeituras) e publicações da Prefeitura de São Paulo. Também foram utilizados da-dos obtidos por meio de pesquisa de cam-po na Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP), na Prefeitura Municipal de Natal (PMN) e entrevista com César Ramos11 so-bre o desenvolvimento do PAR no Brasil, destacando-se, em particular, a questão da reabilitação das áreas centrais.

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O programa de arrendamento residencial – a ação

Entre 1999 e meados de 2005, o programa financiou a construção de 177.150 novas moradias em 1.223 novos conjuntos habita-cionais, sendo, nesse universo, uma pequena parcela relativa à reabilitação de edifícios nas áreas centrais. De acordo com dados forne-cidos pela Caixa (Gerência em Natal), em abril de 2008, complementados por Castro (2006), em relação à reabilitação de áreas centrais, foram fi nanciadas 1.425 unidades em 26 edifícios, localizados nas principais capitais brasileiras – São Paulo, Rio de Ja-neiro, Salvador, Porto Alegre, etc. – e tam-bém em Pelotas, conforme identifi cado na Tabela 1. Além dos empreendimentos discri-minados, podem-se citar, ainda, aqueles que estão em processo de avaliação ou licitação como foi encontrado nas cidades de João Pessoa e Natal. Salienta-se que, em muitos casos, a reforma de edifícios pelo PAR está associada a uma política local, seja do gover-

no estadual ou municipal, formando parce-rias com o governo federal e visando uma reabilitação urbana nos sítios históricos.

A partir desta tabela, é possível perce-ber que os edifícios localizados em São Paulo e em Porto Alegre têm maiores proporções, possibilitando a distribuição de um maior número de unidades habitacionais, ao passo que no Rio de Janeiro e em Salvador as edi-fi cações têm menor porte, tendo uma média inferior de unidades por empreendimento. São Luís, Pelotas, Belém e Recife, por sua vez, possuem exemplos isolados na cidade.

Todavia, a principal constatação apon-tada pelos dados quantitativos é que a atua ção do PAR na reabilitação de áreas centrais vem se desenvolvendo ainda muito lentamente, contemplando poucas cidades, especialmente quando comparada com a produção global desse programa. Segundo César Ramos, alguns exemplos de reabilita-ção só foram possíveis mediante a formação de parceiras, sobretudo com os governos municipais e, no caso de São Paulo, especi-fi camente com os movimentos sociais. Essas parcerias foram importantes na medida em

Tabela 1 – Financiamentos concedidos de reabilitação habitacional12

Cidade Operaçõescontratadas

Nº de unidades contratadas

Média de unidades por edifício

São PauloRio de JaneiroSalvadorPorto AlegreSão LuísPelotasBelémRecifeTotal

76541111

26

7097041

30916

1406656

1.425

101118

7716

140665654

Fonte: Levantamento realizado na Caixa (2008) e Castro (2006). Elaboração da autora.

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que o custo de reforma é ainda muito alto ante o valor máximo estipulado para as uni-dades do PAR (até R$ 40.000,00).

Em São Luís, por exemplo, foi necessá-ria a parceria entre os recursos do FAR e da Lei Rouanet13 para viabilizar a reabilitação de um imóvel que foi inaugurado em 2005, conforme informações obtidas da Caixa (2008).14 Esse imóvel – um casarão com três pavimentos – transformou-se em um residencial de pequeno porte, contendo 16 unidades habitacionais (uh) com um quarto apenas.

De modo semelhante, na capital baiana, a atuação do PAR foi viabilizada com o au-xílio da Lei Rouanet, por meio do programa estadual RemeMorar15 e parceira da ONG Moradia e Cidadania. Os cinco imóveis rea-bilitados (e inaugurados em 2005) eram do tipo casarões – tombados pelo patrimônio histórico – que apresentavam de um (tér-reo) a dois pavimentos, resultando em re-sidenciais de pequeno porte, com unidades de aproximadamente 40m², como o imóvel da rua Deraldo Dias (15 uh); três imóveis na rua Joaquim Távora (com 4 uh ou 12 uh cada); e um na rua Ribeiro Santos, (6 uh)16 (Figuras 1, 2 e 3).

Essa tipologia de reabilitar casarões em residenciais de pequeno porte também é comum no Rio de Janeiro, cujos edifícios reabilitados se caracterizam por poucos pa-vimentos. Segundo Castro (2006), os seis imóveis reabilitados são: Residencial João Homem Ladeira (5 uh), na Saúde; Residen-cial Laurinda (5 uh) e Residencial André Luiz (5 uh), ambos na Rua do Livramento (Gam-boa), Residencial Joaquim Silva (26 uh); Residencial João Caetano (6 uh), na Rua do Teatro; e Residencial Senador Pompeo (23 uh), sendo os três últimos localizados no

Centro.17 Destes, destaca-se o último, por se tratar de um antigo cortiço, com cerca de 120 anos e atualmente tombado pelo Pa-trimônio Cultural do Município (Figuras 4 e 5). Além disso, apresenta a particularidade de conjugar o uso residencial com duas lo-jas, caracterizando-se como de uso misto.18

Em Belém, o PAR Justo Chermont apresenta uma tipologia diferenciada daque-la observada em São Luís, Salvador e Rio de Janeiro. Caracteriza-se por um edifício de 11 pavimentos, totalizando 66 unidades ha-bitacionais. Cada qual é composta por quar-to, banheiro, sala, cozinha e área de serviço, distribuídos em 39m².19

Na capital gaúcha, a tipologia dos qua-tro edifícios reabilitados foi parecida com a da capital do Pará. Os imóveis são pre-dominantemente verticais (acima de sete pavimentos), resultando em residenciais com maior número de unidades, como o Edifício Sul América (78 uh); o Residen-cial Umbu (123 uh); o Edifício Bento Gon-çalves e Charrua (80 uh); e o Residencial Arachã (28 uh).20 Anteriormente, alguns desses edifícios foram residenciais, outros foram hotéis. O Edifício Sul América, por exemplo, cuja construção foi concluída em 1938, antes de ser reabilitado pelo PAR, era um edifício residencial com 26 aparta-mentos para famílias ricas da cidade. Com a reabilitação (2003) passou a comportar unidades habitacionais com um dormitório e áreas oscilando entre 22 e 37m².21 Já o Edifício Bento Gonçalves e Charrua, cujas reabilitações foram inauguradas em 2004, contém apartamentos com dois quartos e áreas maiores, variando entre 42,62m² e 55,91m².22 De modo mais diversificado, o Residencial Umbu (2004), antigo hotel, apresenta tipos diferentes, variando entre

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Figura 1 – Rua Deraldo Dias

Fonte: Castro, 2006

Figura 3 – Ribeiro Santos nº 56Figura 2 – Joaquim Távora nº 11

Fonte: Castro, 2006.

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Fonte: http://www.rio.rj.gov.br/habitat/novas_alt.htm. Acesso em 28/1/2009.

Figura 4 – Senador Pompeosituação anterior

Figura 5 – Senador Pompeosituação reabilitado

Figura 6 – Residencual Umbu, na cidade de Porto Alegre–RS

Fonte: Castro, 2006.

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o kitchenette (32 unidades), um ou dois dormitórios (45 e 46 unidades, respectiva-mente). Como consequência, a área média das habitações também varia de 34,56m² a 54,06m²23 (Figura 6).

Foi na capital paulista, contudo, que os projetos de reabilitação das áreas centrais por meio do PAR se desenvolveram mais enfaticamente (muitos em consonância com o programa do governo municipal – Morar no Centro). Para viabilizar a produção de moradias pelo programa no centro, fez-se necessário o estabelecimento de algumas parceiras com a SEHAB, além da colabora-ção dos movimentos sociais:

Para conseguir atender à população de

mais baixa renda, a SEHAB negociou

com o governo federal recursos especí-

fi cos para subsídios ao PAR, além de ter

proposto diversos incentivos fi scais ao

programa. Vale notar que, em alguns

casos, a SEHAB subsidia parcial ou to-

talmente o custo de compra do imóvel,

para que o custo final da reabilitação

seja mais acessível à população de baixa

renda. Além disso, para adequar o PAR

à realidade específi ca da área central de

São Paulo, a SEHAB elaborou, em co-

laboração com os movimentos sociais

do centro, um conjunto de propostas

para melhorar seu desempenho quanto

às exigências de qualidade, de custos

e de prazos. (Prefeitura de São Paulo,

2004a, p. 31)

Segundo Maleronka (2005), até 2003, foram reformadas pelo programa 464 uni-dades em cinco edifícios: Fernão Sales (54 uh), Olga Benário Prestes (84 uh), Rizkallah Jorge (167 uh), Maria Paula (75 uh) e Edifí-cio Labor (84 uh). Além destes, destacam-se

o antigo Hotel São Paulo (152 uh) e outro imóvel com 93 uh (Joaquim Carlos), confor-me listado por Castro (2006).

O primeiro edifício reabilitado na capi-tal paulista – e, inclusive, no país – foi o Fernão Sales (Maleronka, 2005). No en-tanto, segundo Maleronka (ibid., p. 77), merece especial atenção o edifício Rizkallah Jorge, de 17 pavimentos, que é “propa-gandeado afora como o grande exemplo de PAR-Reforma bem-sucedido. Este edifício foi construído na década de 1940 e passou por usos diversos antes de ser recuperado pelo PAR. Com a recuperação, o edifício passou a abrigar 167 novas unidades do tipo estúdio, contendo sala/dormitório, co-zinha americana com área de serviço inte-grada e banheiro, distribuídos em uma área privativa média de 30m². Salienta-se, ain-da, a recuperação da fachada, tombada pelo Patrimônio Histórico (Condephaat – Con-selho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), bem como o piso e as paredes em mármore car-rara do saguão, e os pisos de taco, os quais, em conjunto, conferiram uma aparência de melhor padrão construtivo, como pode ser observado nas Figuras 7 e 8. Por fi m, esse edifício foi entregue em 2003 para famílias indicadas pelo Movimento para a Moradia no Centro (MMC).24

No final de 2006, foi entregue o an-tigo Hotel São Paulo, também constru-ído na década de 1940. Esse edifício, que foi um hotel, passou a abrigar em seus 21 pavimentos, famílias ligadas ao Movimen-to do Fórum dos Cortiços (Moradia Popu-lar no Lugar de Hotel) (Figura 9). As suas unidades habitacionais também apresentam tipos diferentes, 27 apartamentos do tipo kitchenette, 103 com um quarto e 22 com

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Figura 7 - Fachada frontal do edifício Rizkallah Jorge

Figura 8 – Apartamento do tipo estúdio do Rizkallah Jorge

Fonte: http://cury.net/par02.htm (acesso em: 11-4-2008).

Figura 9 – Antigo “Hotel São Paulo”, na capital paulistana

Fonte: Prefeitura Municipal de São Paulo (2004c)

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Figura 10 – Conjunto de casasda Rua São Suassuna

Figura 11 – Casarão 27da Rua João Suassuna

Fonte: Acervo da autora, 2006.

Figura 12 – Planta baixa do 2º pavimento da proposta de reuso para o casarão 27

Fonte: Levantamento na PMJP, 2006.

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dois quartos, com áreas variando entre 25,70 e 49,81m².25

Por fi m, segundo Castro (2006), ou-tras cidades vêm sendo alvo de estudos de viabilidade para reabilitação de edifícios, destacando-se: Fortaleza, Natal, João Pes-soa, Maceió, Aracaju, Belo Horizonte, Vitó-ria, Cuiabá, Teresina e Olinda.

João Pessoa, até junho de 2007, apresentava oito imóveis em processo de licitação, embora a tentativa de reabilitar edifícios pelo PAR já vem sendo feita des-de 2004 (Figuras 10 a 12). Segundo o se-cretário de Habitação, João Azevedo,26 o Ministério Público promoveu uma ação con-tra os proprietários dos casarões para que estes recuperassem seus imóveis que esta-vam abandonados e em estado avançado de degradação. Como os imóveis eram deten-tores de elevados débitos com a prefeitura – referentes ao IPTU ou de outra natureza –, os proprietários negociaram a retirada das dívidas em troca da doação dos imóveis ao governo municipal.

Após essa etapa, previu-se a reabi-litação e a reutilização das casas por meio dos recursos do FAR, para serem destina-

das preferencialmente ao uso habitacional dos funcionários da própria prefeitura.27 O projeto de reabilitação prevê cinco unidades habitacionais em cada casarão (total de 80 uh), e estas são compostas por dois quatros em uma área oscilando entre 40m² e 60m², como pode ser visto na Figura 12.

Importante mencionar que, em 2001, em consonância com as características loca-cionais do programa, o PAR ocupou um va-zio urbano próximo ao centro da cidade de João Pessoa, com a construção do Residen-cial Tambiá. De modo semelhante, seguin-do os parâmetros do programa de implan-tar nos vazios urbanos, inseridos na malha urbana dotada de infraestrutura, na capital do Rio Grande do Norte, em 2001, o PAR implantou no bairro contíguo ao seu centro histórico, Rocas, o Residencial Ribeira I e o Residencial Ribeira II (Figuras 13 e 14).

Todavia, a tentativa de reutilização de antigos edifícios no centro da capital poti-guar vem encontrando sérias dificuldades que impedem a concretização do fi nancia-mento. As principais difi culdades são: 1) fal-ta de imóveis adequados ao uso habitacio nal e, ao mesmo tempo, disponíveis para venda

Figura 13 – Residencial Tambiá,em João Pessoa

Figura 14 – Residencial Ribeira I,em Natal

Fonte: Acervo da autora, 2005. Fonte: Acervo da autora, 2006.

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ou para doação; 2) a compatibilização en-tre o custo máximo preestabelecido para a reabilitação e a quantidade de unidades habi tacionais em cada empreendimento; e 3) empresas construtoras interessadas em participar do processo. Estas não demons-tram qualquer interesse nesse tipo de proje-to, por se tratar de uma reforma com pou-cas unidades e que demandaria um investi-mento de maior risco, uma vez que o valor de avaliação da Caixa é baixo (pois é valor de mercado e, geralmente, esses centros encontram-se degradados), e o PAR não permite suplementação de recursos, caso o orçamento previsto inicialmente não corres-ponda à realidade da obra executada.28

Figura 15 – Antigo Hotel Central e possível edifícioa ser fi nanciado pelo PAR, na cidade do Natal-RN

Fonte: Prefeitura Municipal do Natal, 2007.

Apesar disso, a Prefeitura Municipal do Natal instituiu em 2004 uma lei criando o programa ReHabitar (Lei nº 5567, de 2 de julho de 2004), como forma de estimular preponderantemente a produção de mora-dias para a população de baixa renda nos bairros históricos da Ribeira e da Cidade Alta. Em consonância com essa “política” municipal, a prefeitura comprou e desapro-priou, em 2005, um edifício na Ribeira, – o antigo Hotel Central –, desenvolvendo, em seguida, um projeto com 8 apartamentos (alguns com um quarto, outros com dois) para serem financiados pelo PAR (Figura 15).29 Com essa mesma finalidade, tam-bém desenvolveu um projeto de reuso

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habitacional para uma outra edifi cação que foi doada pela GRPU30 e localizada no mes-mo bairro – o edifício Valparaíso – preven-do seis unidades habitacionais, com um (2 uh) ou dois quartos (4 uh).

Enfi m, depois de um período de apro-ximadamente dois anos, muitos projetos de reforma elaborados e revisados, e mui-ta negociação com construtoras e a agên-cia financeira, em junho de 2007, ambas as propostas de reuso estavam em fase de avaliação na Caixa. Porém, no fi nal daquele ano, as duas construtoras haviam desistido e iniciou-se, novamente, a busca por novos interessados.

Esses dois últimos casos – João Pessoa e Natal – exemplifi cam algumas difi culdades enfrentadas pelas cidades brasileiras para a reabilitação de suas estruturas nas áreas centrais, motivo pelo qual ainda são poucas as intervenções do PAR no cenário nacional.

Conclusão

Em particular para cidades de médio e gran-de porte, a reabilitação das áreas centrais é hoje um item de destaque nas agendas do poder público, infl uenciadas por uma fi lo-sofi a típica do planejamento estratégico. A partir da década de 1990, a esfera munici-pal, com a especial ajuda do governo fede-ral, vem ampliando a sua atuação através da elaboração de planos de reabilitação, perímetros de reabilitação integrada (PRI), projetos urbanos predominantemente para espaços públicos e reuso de antigas edifi ca-ções. No entanto, o que se verifica é que a reabilitação de antigas estruturas é tra-tada apenas como “obras complementares”,

integrantes de um Grande Projeto de De-senvolvimento Urbano (GPDU),31 que causa impacto na área central. A reforma da Es-tação da Luz e seu entorno é um dos mais signifi cativos exemplos encontrados em São Paulo; a obra do Largo do Teatro na capi-tal potiguar e outras ações mostram que os projetos urbanos vêm sendo executados.

Por outro lado, a reabilitação de edifí-cios para uso residencial encontra difi culda-des para se viabilizar. Alguns exemplos citados ao longo deste trabalho até o fi nal de 2008 não haviam sido concretizados ainda. Primeiro: as ações do PAR volta-das para habitação nas áreas centrais são poucas. No entanto, pode-se dizer que se trata de uma ação inovadora, uma vez que procura atender concomitantemen-te ao problema do défi cit habitacional em contraposição aos domicílios desocupados, além de se preocupar com a reabilitação das áreas centrais, que são particularmente ca-racterizadas como ambientes degradados e abandonados, apesar dos inegáveis valores culturais que oferecem para a cidade. Ade-mais, o PAR apresenta uma formatação que facilita o acesso à moradia da população de menores rendas a um menor custo. Talvez seja pelo próprio modelo operacional dife-renciado – o arrendamento residencial –, que possibilita ao PAR mais facilidade pa-ra atuar em relação aos demais programas habitacionais do governo federal nas áreas centrais, todos, porventura, seguindo o modelo tradicional da política da casa pró-pria. Sendo assim, a medida de transforma-ção do arrendamento em fi nanciamento (Lei nº 11.474, de 15 de maio de 2007) pode ser considerada um problema futuro para esse tipo de intervenção, uma vez que fa-talmente surgirá uma série de difi culdades

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de ordem administrativa (gestão) e condo-minial do imóvel. Amorim e Dufaux (2007, p. 14) citam, ainda, como problemas para a atuação do PAR nas áreas centrais a li-beração de recursos para edificações de uso misto, já que o programa se destina ao uso estritamente residencial – apesar dis-so, o Residencial Senador Pompeo, no Rio de Janeiro foi excepcionalmente fi nanciado mesmo tendo o uso misto. Também se po-de dizer que é necessário haver uma maior promoção do programa no sentido de via-bilizar a reforma das unidades, incluindo a criação de novas parcerias com governos ou outras instituições interessadas em incenti-var o desenvolvimento do PAR, bem como mais subsídios.

Outras dificuldades enfrentadas na rea bilitação de antigas estruturas nas áreas centrais passam, em especial, pela questão fundiária, uma vez que a maioria dos imó-veis é de propriedade privada, outros são objetos de espólio, etc. Há também a indis-ponibilidade de edifi cações adequadas para se transformar em uso habitacional multi-familiar e o desinteresse dos empresários do ramo da construção civil, devido ao alto custo de se reformar antigas estruturas, ante a capacidade de pagamento da popu-lação de mais baixa renda e do valor pre-estabelecido pelo PAR (até R$40.000,00, em 2007). Maleronka (2005, p. 69) indi-ca, ainda, a dificuldade do tempo de via-bilização das obras e de que “são comuns os casos de terrenos apresentados à CEF cuja escritura não confere com o real ou de proprietários que desistem do negócio no decorrer do processo por julgar que o valor avaliado de seu imóvel não é justo”. Porém, possivelmente, a questão mais im-portante talvez seja a falta de uma política e

recursos específi cos para a reabilitação das áreas centrais no rol das políticas urbanas do país. O que se verifi ca é a alocação de es-forços, recursos e de programas de outras políticas para a reabilitação.

Apesar desses entraves, os poucos imóveis reabilitados no Brasil servem como exemplo do que se deve vislumbrar como política pública urbana. Muitos foram os ganhos com cada reabilitação, dos quais se podem citar: 1) a restauração de imóveis tombados pelo patrimônio histórico, 2) a ocupação de estruturas abandonas, garan-tindo sua função social; 3) enfrentamento do déficit habitacional; 4) diversidade de soluções arquitetônicas, 5) requalifi cação de zonas degradadas, em oposição à dis-persão centrífuga pela expansão das fron-teiras urbanas, etc. Quanto à tipologia reabilitada, percebeu-se uma variedade de tipos edifi cados, desde sobrados, casarões, até edifícios de vários pavimentos. A varie-dade também está presente na organização espacial das novas moradias do tipo kitche-nette, com um ou dois dormitórios, além de variadas áreas privativas, embora te-nham predominado as unidades de meno-res dimensões, em função de necessidade de “comportarem o número máximo pos-sível de unidades habitacionais ao invés do número ideal” (Maleronka, 2005, p. 72), chegando, inclusive a produzir soluções projetos inadequados.

Verifi cam-se, assim, aspectos positivos com a reabilitação dos edifícios nos centros das cidades para uso residencial, a despeito das difi culdades mencionadas e da peque-na representatividade numérica das ações. Sendo assim, a reabilitação é uma forma de intervenção que pode vir a crescer e tra-zer benefícios para a dinâmica das áreas

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Mariana Fialho BonatesArquiteta e urbanista pela Universidade Federal da Paraíba. Mestre em Arquitetura e Urba-nismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Foi chefe do Setor de Patrimônio Histórico, Arquitetônico e Arqueológico da Prefeitura Municipal do Natal entre 2007 e 2008. Professora do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Rio Grande do Norte, Brasil)[email protected]

Notas

(*) Trabalho previamente apresentado no Arquimemória 3, em Salvador-BA, no dia 9 de junho de 2008. Agradecimento ao Prof. Dr. Márcio Moraes Valença pela leitura inicial e perti nentes co-mentários.

(1) Sobre planejamento estratégico, ver Vainer (2000).

centrais e a preservação do sítio histórico, através da provisão de habitação, unindo os objetivos econômicos do planejamento estratégico com os sociais. No entanto, pa-ra que isso aconteça é preciso rever alguns aspectos característicos do PAR, como já mencionado, para que ele continue atuando nessa frente de ação.

Mais do que ilustrar casos do PAR, em especial, este artigo conclui com uma refl e-xão direcionada para a política habitacional brasileira. Além de programas habitacionais e recursos, no caso da reabilitação das áreas centrais, é necessário pensar em uma políti-ca de locação social (como o programa mu-nicipal de Locação Social de São Paulo, mas que não logrou o sucesso esperado), uma vez que a predominância das ações estatais sempre esteve voltada para a casa própria,

até mesmo o PAR. Reabilitar o centro e en-frentar o problema habitacional são tarefas muito árduas, em que são necessárias so-mas vultosas de capital em grandes inter-venções governamentais para a aquisição dos imóveis, a reforma e a construção das unidades habitacionais até a posterior ma-nutenção e conservação dos imóveis. É o caso das vilas militares, que são efi ciente-mente produzidas e geridas pelo poder pú-blico, por meio de uma política de locação (moradias funcionais), motivo pelo qual são bem preservadas e conservadas no contexto atual das cidades, destacando-se como pon-tos de cristalização no cenário urbano. Ou-tros exemplos de política de locação social bem-sucedidos são também encontrados em países europeus, como Inglaterra, Fran-ça, Suécia, entre outros.

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(2) Quanto à reabilitação de edifí cios, ela pode ser entendida como “toda a série de ações empre-endidas com vista à recuperação, à benefi ciação de um edifí cio tornando-o apto para o seu uso atual. Seu objeti vo consiste em resolver as defi ciências fí sicas e as anomalias construti vas, am-bientais e funcionais acumuladas ao longo dos anos, procurando ao mesmo tempo uma mo-dernização e uma benefi ciação geral do imóvel sobre o qual incide – atualizando as suas insta-lações, equipamentos e a organização dos espaços existentes, melhorando o seu desempenho funcional e tornando esses edifí cios aptos para a sua mais completa e atualizada reuti lização” (Cabrita, et al. apud Moreira, 2008).

(3) Fundo que alimenta o programa, composto com recursos onerosos (como o FGTS) e não-onerosos.

(4) Para maiores detalhes a respeito das característi cas do PAR, ver Bonates (2007).

(5) A Lei nº 11.474, de 15 de maio de 2007, possibilita a desimobilização das unidades da Caixa em favor da opção dos arrendatários, antes do fi m do contrato.

(6) Embora o objeti vo classifi que o público-alvo como “baixa renda”, o programa atende, na verdade, aquele segmento da sociedade mais conhecido como de renda média baixa.

(7) De acordo com o manual de especifi cações técnicas mínimas, uma proposta de regionalização elaborada para manter um mínimo de qualidade quanto à construção dos conjuntos, a área mí-nima pode ser até 33m² para as unidades construídas na região Sul do país.

(8) Para maiores detalhes a respeito das característi cas arquitetônicas e urbanísti cas da produção do PAR, ver Bonates (2007).

(9) Ver Bonates (2008).

(10) Inicialmente, o programa foi desti nado a atender a população com renda variando entre 3 e 6 salários mínimos, podendo chegar até 8. Em 2007, a faixa de renda atendida passou a ser, em geral, até R$1.800,00 (aproximadamente 4,7 s.m., considerando-se o salário mínimo da época – R$380,00); até R$2.100,00 (5,52 s.m.) nos casos de reforma de edifí cios em centros históricos; e, até R$2.800,00 (7,36 s.m.) nos casos de profi ssionais da segurança pública (Portaria nº 493, 2007). O PAR 1 atende a uma população com faixa de renda variando entre 3 e 8 salários míni-mos, enquanto o PAR 2 atende a uma população com rendimentos de até 4 salários mínimos, aproximadamente.

(11) Entrevista semiestruturada realizada com César Ramos, gerente de Projetos do Ministério das Cidades, no I Seminário Internacional das Cooperati vas Habitacionais, realizado no Hotel Blue Tree Park, em Natal-RN, entre os dias 28-2-2007 e 1-3-2007. A entrevista ocorreu no segundo dia do evento.

(12) De acordo com Castro (2006), há um imóvel em Recife, porém não foi identi fi cado na Caixa a sua forma de fi nanciamento.

(13) Lei federal de incenti vo à cultura.

(14) Informações obti das de Elisabeth Silva, arquiteta da GIDUR-RN, no dia 9-4-2008.

(15) O Programa RemeMorar é executado pelo governo do Estado da Bahia através da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia, Conder/Sedur.

(16) Mais informações disponível em:<htt p://www.projetorememorar.com.br/index.html> e <htt p://www.conder.ba.gov.br/webnews/news/noti cia.asp?NewsID=705>. Acesso em: 30-1-2009. Cas-tro (2006) também foi uma fonte uti lizada.

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BONATES, M. F. (2007). Ideologia da casa própria... sem casa própria. O Programa de Arrendamento Residencial na cidade de João Pessoa-PB. Natal-RN: UFRN. Dissertação. Centro de Tecnologia, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

(17) Esses dados foram também confrontando com os dados quanti tati vos fornecidos pela Caixa em 2005 (GIDUR-PB).

(18) Disponível em: <htt p://www.rio.rj.gov.br/habitat/novas_alt.htm> e <htt p://www.rio.rj.gov.br/habitat/morcentro.htm>. Acesso em: 11-4-08.

( 1 9 ) D i s p o n í v e l e m : < h t t p : / / w w w 1 . c a i x a . g o v . b r / i m p r e n s a / i m p r e n s a _ r e l e a s e .asp?codigo=6304253&ti po_noti cia=13>. Acesso em: 11-4-08.

(20) Disponível em: <htt p://www2.portoalegre.rs.gov.br/demhab/default.php?reg=2&p_secao=80>. Acesso em: 11-04-08.

(21) Disponível em: <htt ps://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release.asp?codigo=2401272&ti po_noti cia=0>. Acesso em: 11-04-08.

(22) Disponível em: <htt p://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release.asp?codigo=4802021&ti po_noti cia=0>. Acesso em:11-04-08.

(23) Disponível em: <htt p://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release.asp?codigo=4901935&ti po_noti cia=0>. Acesso em: 11-06-2007.

(24) Disponível em: <htt p://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release.asp?codigo=1701102&ti po_noti cia=0> e <htt p://cury.net/par02.htm> Acesso em: 11-04-08.

(25) Disponível em: < htt ps://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release.asp?codigo=6405349&ti po_noti cia=>. Acesso em: 11-04-08.

(26) Entrevista realizada no dia 24 de abril de 2006.

(27) Durante a realização da entrevista com o secretário de Habitação, João Azevedo, no dia 24 de abril de 2006, o prefeito Ricardo Couti nho entrou na sala em que ocorria a entrevista e expres-sou tal vontade.

(28) No Recife, também foi constatado tal desinteresse, segundo Amorim e Dufaux (2005).

(29) Podemos citar, ainda, outras ações da prefeitura em consonância com a reabilitação das áreas centrais, como a Lei de Operação Urbana de 1997, revalidada em 2007 por mais seis anos.

(30) Gerência Regional do Patrimônio da União.

(31) Em relação a esse tema, ver Sanchez, et al. (2004).

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política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática

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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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Espaços públicos: novassociabilidades, novos controles*

Luciana Teixeira de AndradeJuliana Gonzaga Jayme

Rachel de Castro Almeida

ResumoA bibliografi a que trata das mudanças nos es-paços públicos das grandes cidades aponta para o seu declínio e para a caracterização da con-temporaneidade como dominada por um indivi-dualismo exacerbado que prioriza a vida entre iguais em espaços vigiados e privatizados ou nos chamados espaços semipúblicos, como os shopping centers. No entanto, um olhar mais atento sobre a cidade pode contrariar essas teo rias. Este artigo refl ete sobre essa discussão a partir de uma pesquisa que abordou as for-mas de sociabilidade em algumas praças de Belo Horizonte, constatando que há transformações signifi cativas na forma de interagir nos espaços públicos das cidades, por exemplo, uma busca cada vez maior pela convivência entre iguais – o que revela que a segregação socioespacial que se observa na cidade é reproduzida nos seus espaços públicos. Apesar dessas mudanças, po-rém, percebeu-se que esses espaços ainda pos-suem grande vitalidade.

Palavras-chave: espaços públicos; cidades; praças; sociabilidade; segregação socioespacial.

AbstractThe bibliography that deals with changes in the public spaces of great cities points to their decline and to the characterization of contemporaneity as dominated by a great individualism that prioritizes life among equals in watched and privatized spaces or in spaces known as semi-public, such as shopping malls. However, a closer look at the city might contradict these theories. This article refl ects on this discussion, starting from a survey that approached the sociability forms in some squares in the city of Belo Horizonte, showing that there are signifi cant transformations of the way of interacting in the public spaces of cities; for instance, an increasing search for conviviality among equals – which reveals that the social-spatial segregation that is observed in the city is reproduced in its public spaces. Despite these changes, however, it was observed that these spaces still have great vitality.

Keywords: public spaces; cities; squares; sociability; social-spatial segregation.

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A literatura que trata das recentes mu-danças nos espaços públicos das grandes cidades aponta para várias transformações, que incluem desde os casos extremos de pri-vatização de ruas e praças, como ocorre nos condomínios fechados (Caldeira, 2000; An-drade, 2003) e nas favelas e bairros domi-nados pelo tráfi co de drogas (Souza, 2000), bem como o uso de gradis no perímetro de praça como estratégia para a vedação e possibilidade de cerceamento desses espaços (Serpa, 2003) até uma retração do convívio nos principais espaços públicos da cidade em troca da convivência em espaços semipúbli-cos, como os shopping centers. Essas mu-danças têm gerado diversas interpretações. Uma delas, talvez a mais difundida, detecta o declínio dos espaços públicos e o domínio do tempo presente por um individualismo exacerbado que prioriza a vida entre iguais em espaços vigiados e privatizados (Sennett, 1988; Davis, 1993; Augé, 1994; Serpa, 2003 e 2007).

Algumas pesquisas empíricas sobre a convivência nos espaços públicos das gran-des cidades, porém, revelam realidades mais complexas.1 E, ainda que as formas de usu-fruir e interagir nos espaços públicos tenham sofrido signifi cativas alterações – em grande parte decorrentes de um generalizado senti-mento de insegurança –, é possível afi rmar que alguns espaços públicos mantêm grande vitalidade.

A partir de uma pesquisa em praças de Belo Horizonte, percebeu-se uma mudan-ça nas formas de sociabilidade nos espaços públicos, motivada principalmente por um forte sentimento de insegurança e uma alte-ração na sociabilidade cotidiana decorrente dos modos de vida urbana contemporâneos.

Além disso, a apropriação desses espaços difere conforme os grupos sociais. Os es-tratos mais altos optaram pela vigilância constante dos espaços públicos próximos às suas residências, por meio da contratação de segurança privada e de pressão sobre o executivo municipal para a tomada de me-didas destinadas a difi cultar a presença dos mais pobres e a desvalorização imobiliária do local. Também adotaram comportamen-tos mais vigilantes nos espaços públicos e privilegiaram os semipúblicos. Os grupos de menor poder aquisitivo continuam fre-quentando os espaços públicos tradicionais, como os do centro da cidade, e os espaços próximos às suas residências, em geral mal cuidados pelo poder público e abandonados até mesmo pela polícia, fato que muitas ve-zes os transforma em ponto de consumo e tráfi co de drogas, especialmente à noite. Durante o dia, continuam a abrigar uma so-ciabilidade típica dos bairros populares, co-mo o encontro entre vizinhos, sejam jovens, crianças ou adultos.

Este artigo focaliza os espaços públi-cos, mais do que a esfera pública, entendida como espaço de representação. É comum que esses termos apareçam como intercam-biáveis, mas a distinção é necessária para os objetivos deste trabalho. Interessa aqui o espaço público como espaço físico da cidade (e estamos tratando aqui especifi camente de praças) em que ocorrem interações de um determinado tipo, diferente das interações que têm lugar nos espaços privados. Rogé-rio Proença Leite, por exemplo, diferencia espaço urbano de espaço público, afi rman-do, com Habermas e Arendt, que o espaço urbano só se torna público quando é investi-do de signifi cação.

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Quando as ações atribuem sentidos de

lugar e pertencimento a certos espa-

ços urbanos, e, de outro modo, essas

espacial idades incidem igualmente

na construção de sentidos para as

ações, os espaços urbanos podem se

constituir como espaços públicos: lo-

cais onde as diferenças se publicizam

e se confrontam politicamente (Leite,

2002, p. 116).

Assim, o espaço público vai além da rua, porque só se torna público a partir das ações que dão sentido a determinados es-paços e também são infl uenciadas por eles. A reflexão feita aqui, então, não se volta para a dimensão da esfera pública como “espaço” – não necessariamente físico – de expressão da vida pública, próprio de uma sociedade democrática, como as câmaras e assembléias, os conselhos, as associações e os movimentos populares. Embora essa distinção preliminar seja importante, cabe registrar que tais dimensões não são exclu-dentes, até porque o espaço público man-tém suas qualidades de esfera pública. Mas trata-se aqui de priorizar a investigação dos tipos de sociabilidade e de controle existen-tes nos espaços públicos da cidade, onde se desenrola a vida cotidiana de seus cidadãos.

A vida pública e a intimidade não po-dem ser pensadas de forma estática, já que mudam consoante o contexto. De acordo com Sennett (1998), os domínios público e privado devem ser vistos como fenômenos evolutivos, na medida em que modificam com o tempo. Assim, vida pública e intimi-dade não devem ser vistas necessariamen-te como contraditórias, mas como comple-mentares e, além disso, como aponta Matta (1997, p. 55), tal oposição também não é

absoluta, especialmente no Brasil, antes, de-veria ser pensada dinâmica e relativamente. Em suas palavras:

[...] na gramaticidade dos espaços bra-

sileiros, rua e casa se reproduzem mu-

tuamente, posto que há espaços na rua

que podem ser fechados ou apropria-

dos por um grupo, categoria social ou

pessoas, tornando-se sua “casa” ou seu

“ponto”. (Ibid.)

Para as Ciências Sociais, os espaços públicos interessam como lugares que propiciam cer-to tipo de interação em princípio diferente das interações observadas nos espaços pri-vados.2 Neles se espera um tipo específi co de interação e uma disposição a se subme-ter a determinadas situações sociais, como expor-se a diferentes pessoas (uma vez que se trata de um espaço aberto a todos) e a certas convenções, como respeitar o direito do outro ao uso desse mesmo espaço. Nos espaços públicos, as diferenças sociais e as hierarquias são temporárias e relativamen-te suspensas, porque ali todos têm direitos iguais no que se refere ao uso e à apropria-ção do espaço.

Enfi m, os espaços públicos, como com-preendidos pelos cientistas sociais, são lu-gares de convivência que expressam estilos de vida (Giddens, 1997), relações de poder (Lofland, 1985, Hansen, 2002) e formas de apropriação por distintos grupos sociais, sendo, portanto, lugares segmentados e identitários. São ainda lugares representati-vos da vida e da história das cidades, lugares simbólicos, característica essa mais explícita nos espaços das áreas centrais.

O que melhor defi ne esses espaços é a sua natureza de abertos a todos. Defi nição

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típico-ideal no sentido weberiano, uma vez que os espaços das cidades contemporâneas possibilitam várias situações intermediárias, como os shopping centers, as ruas controla-das por segurança privada, os parques pú-blicos que cobram a entrada, entre outras. Além disso, por meio de pesquisas empíricas é possível notar as restrições sociais a es-sa dimensão típico-ideal, na medida em que elas revelam como os encontros nos espa-ços públicos são mediados por relações de poder, estilos de vida, segmentações e, em muitos casos, segregações (Kaztman, 2001) e que o encontro entre estranhos nem sem-pre é desejado (Lofl and, 1985).

A questão mais relevante, porém, é que todo espaço público é construído so-cialmente. Essa dimensão já fora destacada por Simmel (1939) em sua sociologia do espaço, pois as formas de sociabilidade e de apropriação dos espaços públicos, além de se transformarem constantemente, expres-sam processos sociais mais gerais de uma sociedade em um determinado tempo e lu-gar. Como espaço construído socialmente, é também lugar de confl itos entre os diferen-tes grupos sociais, além de espaço de po-der, de afi rmação de um grupo sobre outro (Hansen, 2002). Suas formas de apropria-ção evidenciam restrições que, apesar de não formais, são tão ou mais efi cazes. Um espaço ocupado preferencialmente por um grupo de alto poder econômico e simbóli-co, por exemplo, constrange a permanência de pessoas de baixa renda. Espaços ocupa-dos preferencialmente por jovens não são muito convidativos aos idosos e vice-versa. Esses exemplos demonstram que a abor-dagem dos espaços públicos pelo foco das interações e apropriações pelos diferentes grupos revela tensões e confl itos que não

se restringem à simples separação entre o público e o privado.

A abordagem do conflito e do poder inerentes às apropriações sociais dos espa-ços públicos remete a outra questão rele-vante no estudo das praças: até que ponto a segregação residencial existente na cidade se repete nos espaços públicos? E, ainda, segue uma mesma lógica ou aponta para confl itos de outra natureza?

As praças são os espaços públicos es-colhidos para essa abordagem uma vez que estão mais intimamente ligadas à vida coti-diana, o que permite apreender a diversida-de social característica das grandes cidades. Os encontros nas praças e a sua intensidade não se dão por acaso. O planejamento des-ses espaços, seus equipamentos e sua ma-nutenção pelo poder público ou pelos mora-dores são elementos que precisam ser con-siderados, assim como a natureza da praça, se lugar histórico e simbólico da cidade, se praça de bairro ou mesmo simples rotatória para carros.

Este texto tem como objetivo discutir as formas de sociabilidade nos espaços pú-blicos, a partir de uma pesquisa realizada na cidade de Belo Horizonte durante os anos de 2004 e 2005 sobre as sociabilidades, os confl itos e as formas de apropriação das praças. Não se trata de um conjunto homo-gêneo de lugares e sociabilidades. Há as pra-ças de bairros, com uma sociabilidade bas-tante local. Há as dos espaços centrais, luga-res de passagem para um grande número de pessoas, mas também de sobrevivência para outros. Suas rotinas alteram-se segundo as horas do dia e os dias da semana. Os usos nos fi ns de semana são, na maioria delas, bastante distintos dos usos nos dias de se-mana, assim como o público. A intervenção

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do poder público e das associações de mora-dores são também fatores que infl uenciam os seus usos e apropriações.

Praças de Belo Horizonte

Belo Horizonte é uma cidade planejada, cujo projeto foi elaborado por uma equipe, co-ordenada pelo engenheiro Aarão Reis. Se-guindo uma concepção higienista, o projeto adota um modelo de cidade fechada, defi ni-da pelo desenho e com extrema importância dada à circulação, especialmente de veículos (Guimarães, 1991).

As praças tiveram um papel importante no planejamento de Belo Horizonte. Mar-cam os cruzamentos das principais avenidas e ruas, assim como suas extremidades. Al-gumas, como a Praça da Liberdade, tiveram seu lugar cuidadosamente escolhido. Es-sa praça, construída a partir de elaborado projeto urbanístico e paisagístico, situa-se no ponto mais alto da cidade planejada e é cercada pelo palácio do governo e suas se-cretarias. Fora da área planejada e em bair-ros mais tradicionais, as praças continuaram a ocupar um lugar central, muitas vezes na frente de uma igreja. Mas, na maioria dos bairros, principalmente nos mais novos, elas deixaram de ocupar os espaços nobres e centrais. Nesses bairros, é comum encon-trar praças que são simples rotatórias ou se situam em partes íngremes e de difícil apro-veitamento. A regional Centro Sul – que compreende a área planejada da cidade mais os bairros do seu entorno – é a mais nobre e concentra o maior número de praças. Em Belo Horizonte, após a descentralização da administração municipal, as praças passaram

a ser administradas pelas regionais, que se dividem em nove.

Além da maior concentração de praças na regional Centro Sul, as diferenças entre áreas centrais e periféricas também apare-cem quando se comparam os equipamentos e a manutenção. As praças da regional Cen-tro Sul são as mais bem cuidadas e também as que mais contam com adoção por empre-sas,3 o que contribui para seu melhor estado de conservação. Segundo dados de março de 2002, 321 praças eram adotadas. Entre essas, 128 (40%) se localizavam na regio-nal Centro Sul.

Na década de 1990, foram projeta-das e construídas em Belo Horizonte duas grandes praças – Praça JK e Praça da Bar-ragem Santa Lúcia – em lugares bastante significativos socialmente, pois fronteiras entre bairros de classe média alta e favelas. Considerando os seus projetos, ambas re-cuperam a tradição, ainda que modifi cada, das primeiras praças da cidade: são lugares amplos, com projetos bem elaborados e que contemplam diversos usos. Diferem das pra-ças originais principalmente por seus usos atuais. Se antes as praças eram lugares de contemplação, de footing e de encontros, hoje, as mais frequentadas, como no caso dessas duas praças, são as que possuem pistas para caminhadas e/ou equipamentos para exercícios físicos. Outra peculiaridade dessas duas praças é que, situadas em áreas de transição entre a população de alta renda e a residente em favelas, seus projetos pre-viram atividades que atendem às demandas socioculturais desses dois grupos.

Quatro praças foram escolhidas para análise neste artigo: a Praça JK, situada no bairro Sion e a Praça Lagoa Seca, localiza-da no bairro Belvedere, ambas na regional

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Centro Sul, uma terceira situada em um bairro de classe média baixa na regional Norte, aqui denominada Praça X4 e a mais recente de todas, denominada ofi cialmente Área de Esporte e Lazer da Via Expressa, que se localiza no bairro Coração Eucarísti-co, na regional Noroeste.

Todas essas quatro praças são bem posteriores à origem da cidade, e se loca-lizam no anel externo à área planejada, no interior da Avenida do Contorno. Não são, portanto, praças centrais, mas todas são muito utilizadas pelos moradores. As duas primeiras com capacidade de atrair não ape-nas os moradores da sua proximidade, mas também dos bairros vizinhos, já as outras duas têm como público os moradores do seu entorno.5

A Tabela 1 apresenta uma classifi cação mais precisa da condição socioeconômica dos moradores dos bairros no entorno das pra-ças pela unidade do IBGE denominada área de Ponderação ou AED (Área de Expansão

Demográfi ca),6 que reúne um conjunto con-tíguo de bairros.

A Praça JK situa-se na AED Cruzeiro/Anchieta e Sion, onde também se localiza a Vila Acaba Mundo, com 1.295 habitan-tes ou 3% da população total da AED. Já a Praça da Lagoa Seca está localizada na AED Mangabeiras/São Bento/Papagaio, em que a população do Aglomerado do Morro do Pa-pagaio (um conjunto de favelas) representa 43,45% dos domicílios dessa AED. Essa in-formação é importante para a interpretação dos dados, pois, enquanto na AED da Praça JK mais de 70% das famílias têm rendimen-to médio superior a dez salários mínimos, na AED Belvedere há uma concentração nos extremos, ou seja, uma maior desigualdade, pois 36,58% das famílias recebem menos de dois salários mínimos mensais, enquanto 41,47% têm rendimento médio mensal su-perior a dez salários mínimos.

Na AED correspondente ao bairro on-de se situa a Praça X, 76,57% das famílias

Fonte: IBGE, Censo de 2000, dados trabalhados pelo Observatório das Metrópoles, Metrodata, http://web.observatoriodasmetropoles.net/

Tabela 1 – Percentual de famílias por classede renda mensal do responsável em salários mínimos

AED/Bairros7 Regional/Praça Até 2 SMEntre 2 e 5 SM

Entre 5 e 10 SM

Acima de 10 SM

Total

Cruzeiro/Anchieta/Sion (Acaba Mundo)

Centro Sul(Praça JK)

4,54 7,11 16,40 71,95 100

Mangabeiras/São Bento/Papagaio (Belvedere)

Centro Sul(Praça Lagoa Seca)

36,58 15,49 6,45 41,47 100

João Pinheiro – Dom Cabral – Coração Eucarístico

Noroeste(Área de Esporte e Lazer

da Via Expressa)26,11 22,87 23,72 27,30 100

Bairros não identifi cados

Norte(Praça não identifi cada)

41,77 34,80 16,65 6,79 100

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têm rendimento mensal menor do que cinco salários mínimos. Nesse sentido, enquanto para a Praça JK 70% dos responsáveis têm rendimento médio mensal acima de dez salá-rios mínimos, na Praça X menos de 7% dos responsáveis atingem esse patamar de rendi-mento. Na AED João Pinheiro-Dom Cabral, onde se localiza a área de Esporte e Lazer Via Expressa, há uma distribuição mais uniforme entre os rendimentos médios mensais.

Para chegar a essas quatro praças foi realizada uma pesquisa empírica em uma amostra das praças de Belo Horizonte em três regionais, selecionadas a partir da aná-lise do Índice de Vulnerabilidade Social/IVS.8 A escolha dessas três regionais se deu pela constatação de que a partir delas é possí-vel se obter uma boa amostra da situação do município. A Regional Centro-Sul possui UPs com o menor índice de vulnerabilidade social, mas também apresenta grande de-sigualdade. A Regional Norte revela-se, em geral, como uma área de alto índice de vul-nerabilidade social e a Regional Noroeste apresentaria a maior heterogeneidade, já que há quase todas as faixas do IVS – com exceção da menor, abundante na Centro-Sul – em suas Unidades de Planejamento.

O primeiro passo da pesquisa consistiu em um mapeamento, por meio de um tra-balho de campo, em todas as praças dessas três regionais. O objetivo desse mapeamen-to foi conhecer as condições físicas da praça, seus usuários, assim como os seus usos mais freqüentes.

Já os estudos de caso consistiram em observações e entrevistas com seus usuá-rios, buscando conhecer os usos e apropria-ções desses espaços, assim como os confl i-tos e as possibilidades de interação entre os conhecidos e estranhos.

A Praça JK

A Praça JK, ofi cialmente denominada Par-que JK,9 situa-se entre os bairros Sion e a Vila Acaba Mundo.10 Ali era um córrego que foi aterrado no fi nal da década de 1980. No início da década de 1990, foi elaborado um projeto para a construção de uma praça no local, mas sua execução iniciou-se apenas na segunda metade dessa década. Nesse in-tervalo, o espaço foi apropriado e cuidado pelos moradores da Vila Acaba Mundo em associação com uma moradora do Sion.

No fi nal da década de 1990, o projeto da praça, depois de apresentado às comuni-dades de moradores do bairro Sion e da Vila Acaba Mundo, foi executado. A praça con-ta com equipamentos de ginástica, amplos espaços para lazer e duas pistas para cami-nhada. Seus jardins estão constantemente floridos e são cuidados por uma empresa privada que participa do programa “Adote o Verde” da Prefeitura Municipal e, em tro-ca, faz sua propaganda no local. Seus fre-quentadores são os moradores do Sion e da Favela Acaba Mundo e moradores de outros bairros – especialmente da zona sul – pois, além das muitas possibilidades de lazer para crianças e adultos, o local oferece, frequen-temente, diversos eventos culturais.

A Avenida Bandeirantes, que dá acesso à praça para os moradores do Sion e para os que vêm dos outros bairros, é uma das prin-cipais vias da região, com trânsito intenso e comércio variado.

A Praça JK é ainda contornada por uma via de trânsito local, que permite o acesso à favela. Nas suas duas laterais há residências com alto padrão de acabamen-to (casas de um lado e prédios de outro).

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Ao fundo vê-se a favela e, atrás da favela, a Serra do Curral.

Entre os equipamentos da Praça JK destacam-se as duas pistas de caminhada, aparelhos para ginástica, um campo de fu-tebol, uma piscina de areia e várias áreas li-vres em forma de círculos. Essas qualidades permitem que nela se reúnam pessoas de di-ferentes estratos sociais e idades. A diversi-dade social é garantida pela presença da fa-vela, pois os outros frequentadores são dos bairros próximos, todos de classe média.

As crianças de classe média, sempre acompanhadas de babás ou de parentes mais velhos, fi cam, as mais novas, em um círculo menor da praça, situado no centro e, as mais velhas, no círculo maior próximo à Avenida Bandeirantes. Ali andam de bicicle-ta, patins ou jogam bola. As crianças resi-dentes no Acaba Mundo usam principalmen-te a parte da praça mais próxima de suas casas. Em geral estão desacompanhadas. Os meninos brincam no campo de futebol e as meninas preferem as barras de ginásti-ca do círculo próximo à favela, onde fazem malabarismos. Ao contrário das crianças de classe média que levam brinquedos para as praças, as crianças da favela raramente o fa-zem. Elas caminham pela praça, brincam nas barras de ginástica e algumas pedem dinhei-ro perto da barraca de cocos ou se oferecem para vigiar os carros.

Na visão da presidente da associação dos moradores da Vila Acaba Mundo, a falta de brinquedos na praça limita o seu uso pe-las crianças da Vila:

[Deveria ter] um balanço, um escorre-gador para as crianças usarem, porque só tem barras de ferro para fazer gi-nástica, musculação (...) a criança tem

que ter o brinquedo para utilizar o espaço, quando a criança não tem, ela não brinca, brincar de quê? (Entrevista, agosto de 2004).

A presença de adolescentes e jovens é mais rarefeita, a não ser próximo às barras, fazendo ginástica. O grupo maior é compos-to por adultos e idosos que fazem caminha-das em duas pistas paralelas, uma no senti-do horário e outra no sentido anti-horário, o que possibilita vários encontros. Esse gru-po é formado exclusivamente pelos estratos médios.

O lugar mais frequentado pelos adul-tos da favela é uma escada que dá acesso à praça e se localiza bem em frente à vila. Alguns usam também o campo de futebol. No fi m de semana é possível vê-los com seus fi lhos em brincadeiras, mas é na escada que se concentram e de lá observam o movimen-to da praça.

Atrás dessa escada, entre a favela e a praça, e no ponto mais alto desta, é comum ver um policial. Segundo alguns entrevista-dos, ele oferece uma sensação de segurança para os que caminham na praça. Outros dois policiais costumam rondar a praça a cavalo.

As entrevistas realizadas com os usuá-rios da praça revelaram diferentes percep-ções da segurança. Os moradores da Vila se mostram menos preocupados, até porque circulam diariamente pela praça, o que fa-vorece a intimidade com o local. As pessoas mais inseguras são os moradores do Sion e de outros bairros que se sentem ameaçadas pela presença da favela e dos seus morado-res na praça, como relatou uma ex-usuária, agora freqüentadora da Praça da Lagoa Se-ca. Ela costumava caminhar na Avenida Ban-deirantes, mas não na Praça JK, por temer

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a favela. Outros têm uma opinião oposta e reagem ao que consideram estigmatização da população favelada. O mais recorrente, porém, é um comportamento controlado. As pessoas sabem da ocorrência de alguns crimes, porque presenciaram ou ouviram falar e, por isso, tomam certas precauções, como não carregar bolsas e celulares e evi-tar determinados horários em que a praça fi ca mais vazia e sem policiamento.

Segundo dados da Polícia Militar, em 2003 foram registrados vinte crimes na praça, conforme a Tabela 2.

O medo e a distância social perpassam as relações entre os moradores da Vila e os do Sion e de outros bairros. Ambos os gru-pos frequentam a praça, mas em espaços separados. As duas áreas mais próximas à favela – o campo de futebol e um dos cír-culos com barras de ginástica – são de uso quase exclusivo dos seus moradores. Já a parte mais próxima à Avenida Bandeiran-tes – três grandes círculos, um deles con-tendo outro conjunto de barras de ginás-tica – é ocupada predominantemente pelos estratos médios, assim como as pistas de

caminhada. O que se observa é que a praça divide-se em duas, com predominância dos usuários dos estratos médios.

Esse confi namento dos moradores da Vila na parte da praça mais próxima às suas moradias se estende a uma pequena praça, da Carioca, que divide em dois braços a rua que dá acesso à favela. Durante as férias de julho de 2004, essa rua era intensamente utilizada pelos moradores para um improvi-sado jogo de basebol com pedaços de pau e garrafas pet. Jogadores e público se concen-travam num espaço de seu uso exclusivo, em contraste com o lazer das crianças de classe média, que inclui brinquedos fabricados e raramente envolve várias crianças.

Sobre as relações dos moradores do Acaba Mundo com a praça e com os outros usuários, as entrevistas não revelam inte-gração. Há o argumento de que a praça é deles, afi nal foram eles que inicialmente cui-daram da praça. E, como disse uma garota, “eu moro quase aqui dentro”. A Tia Magda, uma moradora do Sion, é uma importante mediadora entre os moradores da Vila e os do Sion e outros bairros. Quando do plantio

Tabela 2 – Ocorrências registradaspela Polícia Militar na Praça JK durante o ano de 2003

Tipo de crimeManhã

(6 às 12h)Tarde

(entre 12 e 18h)Noite

(entre 18 e 24h)Madrugada

(entre 24 e 5h)Total

Roubo a mão armada consumado a transeunte

2 – 5 – 7

Roubo consumado a transeunte

3 4 1 2 10

Roubo tentado a transeunte – 1 – – 1Homicídio consumado – 1 – – 1Homicídio tentado – 1 – – 1Total 5 7 6 2 20

Fonte: Crisp/PMMG.

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de árvores com as crianças da Vila, ela ten-tava incutir-lhes o sentimento de que aquele lugar também lhes pertencia, como forma de enfrentar o preconceito dos outros mo-radores. Segundo seu depoimento,

[...] quando iniciaram o plantio das ár-vores os moradores do Sion tratavam de forma preconceituosa os moradores da Vila, achavam que eles não tinham mais do que a obrigação de cuidar da praça,

ideia que se vinculava à tradição do trabalho manual por despossuídos. Mas dessa inicia-tiva fi cou a percepção de que a praça é um espaço que lhes pertence. Desse movimento surgiu o Projeto Querubins, cujas ofi cinas de arte e esportes – música, capoeira, futebol etc. – atendem a 160 crianças e jovens en-tre seis e 18 anos. Segundo o depoimento de um voluntário do Querubins, “o projeto nasceu na praça”.

Não é possível saber como seriam as relações dos moradores da Vila com a praça sem essa mediação, mas, mesmo conside-rando que ela contribuiu para o sentimento de que a praça é deles, suas relações com os outros usuários são apenas de copresença no espaço ou então de prestação de servi-ços.11 Uma moradora da Vila descreve assim os moradores do Sion:

Muita gente sem educação, a gente traz os meninos para brincar e os ricos pu-xam as crianças deles para não brincar com as nossas, tem muito preconceito.

As crianças aparecem em vários depoi-mentos porque, em muitas situações, geral-mente em contextos sociais mais igualitários,

são elas que propiciam a aproximação entre os frequentadores, mas nesse caso o que chama a atenção é justamente a recusa dos moradores dos outros bairros em interagir de forma igualitária com as crianças que, em princípio, não deveriam ameaçar os frequentadores dos bairros. Não é que não exista interação, mas o seu conteúdo é de recusa ou de distanciamento, como mostra o depoimento da presidente da associação da Vila Acaba Mundo.

Eu acho que os ricos olham muito pa-ra os moradores da Vila com cara de dó, de medo. Vêem um menino sujo, já pensam: têm que dar as coisas (...). Eu acho que deveria mais procurar co-nhecer a história, saber um pouco, con-versar e até sentar com a criança, bater um papo com ela, perguntar alguma coisa sobre a vida dela, dos pais delas, assim tentar ajudar. (Entrevista, agosto de 2004)

Ao dar seus brinquedos aos moradores da Vila, os do Sion reafirmam a distância que os separa.

Uma situação rara e interessante regis-trada pela pesquisa foi o encontro entre três crianças: Leandro, Victor e Rhavi, que brin-cavam na praça. Reproduzimos aqui o relato da pesquisadora que abordou essas crianças:

Parei para conversar com três garotos

que brincavam, dois com aparência mais

humilde, um se chamava Victor e o ou-

tro Leandro e disseram morar no Acaba

Mundo. O Leandro era bem tímido, já

o outro era mais falante. O mais arru-

mado se chamava Rhavi e disse morar

nos EUA. Quando vem ao Brasil, duas

vezes por ano, fica num apartamento

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em frente à praça. Perguntei a idade

dos garotos. Rhavi tinha 13 anos, os

outros dois 12 anos. Perguntei se res-

ponderiam a um questionário, mas só

Leandro e Rhavi aceitaram. O outro fi -

cou inseguro, pois achava que teria que

escrever. Os dois garotos que moram

no Acaba Mundo estão cursando a 4ª

série e Rhavi está na 8ª. A desigualdade

não impedia esses garotos de brinca-

rem. Rhavi andava de patins e os outros

corriam. Mas os três riam muito juntos.

Isso me chamou a atenção porque pela

primeira vez vejo uma interação entre

moradores da favela e um morador do

Sion. Rhavi parecia gostar muito das

brincadeiras e me disse ter acabado de

conhecer os dois garotos. (Diário de

campo, 9 de agosto de 2004)

Além da diferença de escolaridade, as respostas dos dois à entrevista contrastam no conteúdo e na fl uência. Rhavi, que rara-mente frequenta a praça, tem muito mais fl uência e argumentos. Já as frases de Lean-dro são sempre curtas. Quando pergunta-dos sobre quais espaços da praça mais fre-quentam, Leandro respondeu a quadra de futebol e Rhavi as duas primeiras áreas (as mais próximas da Avenida Bandeirantes). E quando perguntados sobre as partes que não frequentam, as respostas novamente se opuseram: Rhavi disse não frequentar a quadra “porque sempre tem gente jogando” e Leandro não frequenta “a primeira parte da praça”. À pergunta se a praça tinha a “ca-ra” do bairro e se era importante para Belo Horizonte, Rhavi se concentrou nos aspec-tos espaciais. Acha que a praça não tem a cara do bairro (ele pensa no Sion) “porque o bairro é muito fechado, há prédios por

todo lado e a praça é aberta”, mas acha que a praça é importante para a cidade “por-que é um lugar que tem árvore e é aberto”. As respostas de Leandro, diferentemente, se concentravam nos aspectos sociais e da sobrevivência. Para ele a praça não tem a “cara” do bairro (ele pensa na Vila) porque “não parece nada com a Vila”. E acha impor-tante a praça para Belo Horizonte “porque aqui a gente acha garrafa e vendemos”.

Praça da Lagoa Seca

A Praça da Lagoa Seca localiza-se, como a Praça JK, na regional Centro Sul, mas no bairro Belvedere III, uma terceira e polêmica etapa do loteamento de uma área localiza-da na divisa do município de Belo Horizonte com o município de Nova Lima, junto à Serra do Curral. O Belvedere I e II, exclusivamente residenciais e unifamiliares, correspondem às duas primeiras etapas desse loteamen-to iniciado em 1979 com a subdivisão de uma área em 900 lotes. Neste mesmo ano, inaugurou-se o primeiro shopping center da cidade, o BH Shopping, nas proximidades do bairro.

Fugindo aos parâmetros convencio-nais de aprovação de loteamentos pelo po-der público municipal, o Belvedere III teve seu projeto aprovado na Justiça, um pouco antes da promulgação da nova Lei de Uso e de Ocupação do Solo de Belo Horizonte. O principal interesse dos loteadores e das construtoras era conseguir para esse último parcelamento parâmetros de ocupação mais permissivos. Nessa década, o Belvedere I e II já estavam praticamente ocupados, sendo considerados, juntamente com a região da

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Pampulha e o bairro Mangabeiras, os bair-ros de residências unifamiliares mais nobres da cidade. Paralelamente, o BH Shopping se fi rmava como o principal shopping da cida-de e cresciam, no município vizinho de Nova Lima, os condomínios fechados. Ou seja, a implantação do Belvedere III ocorreu num período de extrema valorização da região e os interesses imobiliários conseguiram se sobrepor ao poder público municipal e à rea ção contrária da sociedade, desencadea da pelos moradores do Belvedere I e II, pelos ambientalistas e demais associações envolvi-das no planejamento da cidade (Rodrigues, 2001).

Atualmente, o que se vê é um cenário contrastante. Numa parte do bairro, um conjunto de residências tem a Serra do Cur-ral ao fundo e, na outra parte, ergue-se um “paliteiro de torres” e só por suas frestas – cada vez mais estreitas – pode-se ver a serra, tombada pelo Patrimônio Histórico do Município de Belo Horizonte. O que pre-domina são os edifícios residenciais, mas há também os comerciais, com salas e peque-nos shopping centers voltados para as ruas. Seus moradores têm alto poder aquisitivo. Segundo dados da Câmara de Mercado Imo-biliário (CMI), o Belvedere é o bairro com o preço do metro quadrado mais alto da cida-de: “O preço médio do metro quadrado para apartamentos prontos no Belvedere é de 3 mil reais. Para empreendimentos comer-ciais, o valor é de 1,5 mil reais e, quando o assunto é casa, o custo do metro quadrado chega a 350 reais” (Especial Encontro, Mer-cado Imobiliário, junho de 2004).

Em decorrência de sua aprovação pe-culiar, não foi destinada ao bairro nenhuma área pública de lazer e de encontro. A solução encontrada pelos loteadores e construtoras

foi o aproveitamento de uma área denomi-nada Lagoa Seca, entre as ruas Juvenal de Melo Senra, Elza Brandão Rodarte e Vicente Guimarães. Em dois de seus lados, a praça é rodeada por edifícios exclusivamente resi-denciais, em outro lado por edifícios com lo-jas para a rua e, na quarta lateral, separada por um jardim em aclive, uma pista de rola-mento e pelo BH Shopping. Suas dimensões e forma são de um quarteirão, só que não ocupado. A intenção dos seus criadores era de que essa área contribuísse positivamente para a valorização do bairro e dos imóveis. Mas, como o bairro, essa é uma praça atípi-ca. Sua área permanece como privada, mas seu uso é público, ainda que bastante seleti-vo. Quem a planejou, executou e atualmente cuida da sua manutenção é a Associação dos Amigos do Bairro Belvedere (AABB).12

A área livre e útil da antiga Lagoa Seca consiste apenas em uma pista de aproxima-damente três metros de largura. No seu in-terior há um grande espaço livre, mas sem condições de uso, seja pela declividade do terreno, seja pelo córrego de água poluída. Na temporada de chuva essa área é inun-dada. Resume-se, portanto, a uma pista de caminhada em volta de uma área mais baixa e livre. Na pista não há bancos nem outros equipamentos de lazer.

Durante os dias da semana, suas pis-tas são intensamente ocupadas por pessoas que fazem caminhadas. Alguns se exercitam acompanhados por um personal trainer. O grupo que caminha e corre abrange várias faixas etárias. A maioria dessas pessoas está acompanhada, raras são as que andam ou correm sozinhas. Trata-se, portanto, de um exercício físico, mas também de uma forma de sociabilidade. Os horários de pico são os do início da manhã e do fi nal da tarde. No

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domingo, uma das ruas que contorna a pra-ça é fechada, o que permite que também as crianças usufruam desse espaço com patins, bicicletas, velotrol ou skate. Trata-se de um grupo muito homogêneo socialmente: todos são brancos, vestem-se com roupas próprias para caminhada e, pela aparência, são pes-soas dos estratos altos, o que condiz com o perfi l dos moradores do bairro. Não se nota a presença de pessoas de outros estratos so-ciais. Como se pode ver, é um lugar bastan-te seletivo em relação aos usos e estilos de comportamento.

Uma usuária, moradora do bairro vizi-nho de Buritis, vem a essa praça porque a considera “mais segura e mais bem frequen-tada”, e descreve seu público como “pessoas que gostam de se mostrar com roupas de ginástica (...) há um desfi le de corpo e de moda”, além de ser “um ponto de encontro para outros programas”.13

Um aspecto importante para a compre-ensão dos signifi cados dos espaços públicos contemporâneos é a participação das asso-ciações de bairro, principalmente de bairros de classe alta. No Belvedere, as associações são muito ativas, a ponto de uma delas ter defi nido e executado o projeto da praça e atualmente cuidar da sua manutenção. É a associação que contrata os cinco funcionários que cuidam do jardim interno e da limpeza das calçadas e é também ela que arca com os custos da iluminação da praça, conforme o depoimento do presidente da Associação dos Amigos do Bairro Belvedere (AABB):

Nós é que fizemos tudo, aí era um buraco. Tudo que você está vendo no Belvedere fomos nós que fi zemos, a as-sociação do bairro, o plantio de todas as árvores, nós aterramos a praça, nós

plantamos a grama em volta dela, fi-zemos o passeio, fi zemos a iluminação de bolas externas, que é diferente da Cemig, o dela é de poste de concreto, os nossos são de ferro, aquelas bolas mais charmosas, e pagamos a conta de luz também. (Entrevista, setembro de 2004)

Uma moradora explicou a ausência de bancos na praça como uma tentativa de evi-tar a permanência de pessoas indesejáveis, o que o presidente da associação confi rmou:

A ausência de bancos foi uma decisão nossa. Ela partiu do princípio: a praça vai ser uma praça de lazer, para criança andar no sábado e domingo, de velo-cípede, brincar e as pessoas andarem. Porque o primeiro banco que nós colo-camos, no domingo veio uma família, infelizmente de uma menor posição social no país, veio da favela com sete mulheres e dez meninos, trouxeram cachaça, deu polícia e já deu confusão. A associação partiu de uma premissa: ou é o nosso espaço ou é o espaço que nós não vamos ser donos, e o banco vai nos tirar o direito de dizer: “Aqui é a nossa convivência, o nosso encontro”. Todo mundo se conhece aí, se encontra, então foi nesse ponto aí que nós não colocamos bancos (...) cada um tem o seu limite de fi car em pé ou sentado no meio-fi o, então cada um encerra o seu limite e vai embora. (Entrevista, setem-bro de 2004)

O estatuto ambíguo de praça – proprie-dade privada e uso público – também se faz presente na forma como a associação assu-miu a sua manutenção. O que inicialmente

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poderia ser visto como uma participação da associação na gestão dos bens públicos, na verdade, vai bem além, uma vez que a as-sociação se sente proprietária desse espaço, como se constata na fala do seu presidente. Daí a ambiguidade: culpa-se o poder público por sua ausência, mas é essa ausência que permite, como nos condomínios fechados (Andrade, 2001), uma gestão privada dos espaços públicos. Por outro lado, o poder público, que há tempos vem transferindo para o setor privado a gestão e manutenção de diversos bens públicos, exime-se de in-tervenção nos processos de privatização de bens públicos.

Ela [a associação] é dona da praça. Ela quem faz tudo, ela quem manda, ela quem limpa, ela quem a administra, por ausência do poder público (...). A omis-são deles nos leva a fazer tudo, e eles sabendo que a omissão deles e o nosso trabalho é importante para eles, é um bom relacionamento, eles não falam nada e nós fazemos a nossa parte. É como se fosse uma subprefeitura, com autonomia completa. Nós plantamos o que a gente quer, tudo do jeito que nós queremos, plantamos a grama como plantamos as áreas verdes. (Entrevista, presidente da associação, setembro de 2004, grifo nosso).

Uma grande preocupação dessas asso-ciações é a manutenção do valor dos imóveis do bairro, o que está intimamente ligado à conservação de uma alta qualidade de vida no local, traduzida, atualmente, pela segu-rança e exclusividade. A praça, além ser um bem raro na cidade, é muito utilizada para as atividades físicas, o que concorre para a

valorização do bairro, como argumenta o presidente da associação:

Se isso fosse um buraco, como você vende os prédios da praça? A Líder [construtora] vendeu todas as unidades dela ali rapidinho (...). Eles investem numa publicidade muito barata. (Entre-vista, setembro de 2004)

As associações investem ainda na segu-rança pública e privada do bairro e da praça. A AMBB construiu o posto policial do bairro e as outras duas associações – Associação dos Comerciantes e dos Amigos do Belvede-re – doaram para a polícia um carro e uma moto. Além disso, toda mudança que cause impacto no bairro – modifi cação no senti-do do trânsito para realização de uma obra, instalação de um hipermercado, construção de um conjunto de prédios, entre outras – conta com a participação ativa da associação. Certas atividades comerciais consideradas indesejáveis também são evitadas. Segundo o presidente da associação:

Nós não deixamos colocar uma faixa no bairro. Se você quiser vender algu-ma coisa por aí, em cinco minutos nós cortamos as faixas, porque é proibido por lei. Nós não deixamos camelô aqui dentro. Não deixamos o cara vir ven-der jornal, revista na praça, camisa no bairro, roupa. A associação vai, interfe-re, chama a polícia e briga pelo direito. (Entrevista, setembro de 2004)

Assim as associações garantem que o bairro, apesar do adensamento e dos pro-blemas de trânsito, mantenha o preço mais alto do metro quadrado da cidade. Esse tipo

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de associativismo recebeu de Emilio Duhau a denominação “comunitarismo defensivo” e o seu resultado a “condominização da cidade”:

De este modo, por una parte se observa el despliegue de un seudo comunitaris-mo defensivo (y as veces muy agresi-vo) que en las áreas de clase media se expresa a través de reivindicaciones en torno de la defensa del entorno urbano inmediato, buscando la protección del valor de la propiedad, el control de las externalidades urbanas y la exclusividad de los espacios residenciales en tanto que dispositivo de distinción, a través de instrumentos como los planes de usos del suelo, y de lo que podríamos denominar como creciente “condomini-zación de la ciudad”. (Duhau, 2001)

Se a apropriação da Praça da Lagoa Seca como local de caminhada visa ao cuida-do com o corpo e com a saúde, também po-de ser percebida como a celebração de um estilo de vida e a manutenção de contatos sociais. Essas práticas revelam que tanto a praça como espaço público, quanto o cuidar do corpo, não podem ser pensados isolada-mente, fazem parte de um complexo de re-lações sociais em que lugar, estilo de vida, formas de sociabilidade e controles sociais se defi nem de modo bastante específi co. O que se percebe é que não se caminha em “qualquer lugar”, tampouco se caminha de “qualquer maneira”, há uma preparação pa-ra isso que inclui o investimento em roupas, tênis e demais acessórios, símbolos troca-dos durante as caminhadas e nos pontos de encontro.

Esse estilo de vida é reforçado pela As-sociação dos Amigos do Belvedere, que, em

recente campanha publicitária, lançou o se-guinte slogan para o bairro: “Você vai des-cobrir o que é viver com estilo”.

Praça X

A Praça X localiza-se na regional Norte, em um bairro com características populares. Conforme a Tabela 1, 41,77% de seus mo-radores ganha até dois salários mínimos. Sua forma é triangular e com desníveis que conformam três ambientes distintos. O ní-vel mais baixo é a área mais sombreada da praça, com árvores altas. Ali há um pequeno teatro de arena e bancos em forma semicir-cular e em “s”. Também nesse nível há uma cabine de apoio da Superintendência de Lim-peza Urbana – SLU – do município. Apesar dessa cabine, não há lixeiras na praça.

No nível intermediário há uma quadra poliesportiva com arquibancadas e cercada por um alambrado. Durante as observações, os frequentadores a usavam apenas para jo-gar futebol. No nível mais alto há três mesas para jogos – com tabuleiros de dama e xa-drez pintados –, bancos ao redor das mesas, um banco semicircular e alguns canteiros com árvores médias. Entre os desníveis há escadas.

As observações mostraram que a pra-ça é muito mal conservada. A grama não é podada, a tela do alambrado está arrebenta-da em várias partes e o lixo se espalha pelo chão em toda a sua extensão. A má conser-vação da praça parece não ter relação com ações de vandalismo, mas com o desgaste devido ao uso ao longo do tempo. O único sinal de vandalismo foi encontrado nas pi-chações, principalmente nos bancos.

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A praça é contornada por três ruas, com alguns estabelecimentos comerciais fe-chados, exceto uma sorveteria e uma ofi -cina. As casas, como os bancos da praça, estão pichadas. Seus frequentadores são os moradores do bairro e o que eles procuram é o que se pode chamar de lazer na praça. As crianças soltam pipa e correm, os ado-lescentes jogam futebol, há casais de namo-rados e muita gente fi ca ali apenas conver-sando. Não há nenhum comércio no interior da praça. Outro aspecto particular nesse es-paço são pessoas que fi cam nas calçadas em frente à praça – na porta de suas casas –, conversando, brincando ou apenas obser-vando. É comum encontrar um senhor que coloca uma cadeira diante de sua casa e fi ca ali observando a praça. Vez por outra ele toca saxofone, o que dá a impressão de que as calçadas também fazem parte da praça. Enfim, a praça e seus arredores abrigam um tipo de sociabilidade mais tradicional, típica de bairros com relações de vizinhança mais consolidadas.

Um aspecto que chamou a atenção nessa praça foi a presença constante de um grupo de adolescentes – predominantemen-te homens –, que normalmente se senta em torno das mesas de jogos para conversar, jogar baralho e, principalmente, fumar ma-conha. Esses jovens frequentam a praça há aproximadamente dois anos14 e a maior par-te deles está desempregada e não estuda. Foram entrevistados dez jovens, entre os quais apenas dois estudam e três trabalham, em todos os casos no emprego informal. Um ajuda o pai, que é pedreiro, “quando há serviço”; outro é catador de papel e vigia carros; e outro trabalha com o tio num bar: “Meu tio tem um bar (...) e eu fi co lá aju-dando ele”. Todos são moradores da região

e o fato de ali fumarem maconha não causa grande reação nos outros frequentadores. Apenas uma entrevistada reclamou, já os outros frequentam a praça sem se importa-rem com a presença desses jovens.

Em geral esses jovens vão ali apenas durante o dia, porque dizem que à noite a praça é muito perigosa. Como afirma um entrevistado: “Eu venho só de tarde e venho de noite às vezes. (...) fica mais cheio, os caras mais barra pesada”. Em todo o perío-do de observação não se viu nenhum poli-cial na praça. Uma senhora que a frequenta relatou-nos que, embora nunca tenha sofri-do ou presenciado qualquer tipo de violência ali, não se sentia segura, já que não havia a presença da polícia. Sobre isso dois adoles-centes respondem: “Segurança não tem aqui não, eu nunca vi polícia aqui”. “Eu nunca vi polícia aqui. Ouvi falar uma vez que veio po-lícia à noite, mas os caras circulou”.

O mal estado de conservação e a ausên-cia de ocorrências policiais (durante o ano de 2003, não foi registrada nenhuma ocorrên-cia na praça) são indicadores da ausência do poder público, que, na perspectiva dos ado-lescentes, é um aspecto positivo, pois torna a praça segura para “fumar um”. Mas, para a maioria dos moradores, inclusive o grupo de adolescentes, torna a praça inacessível, porque perigosa no período noturno.

Como se percebe, as estratégias de controle dessa praça são inteiramente di-ferentes das duas primeiras. A Praça JK é vigiada por policiais militares e a Praça da Lagoa Seca, por segurança privada, além de gerida por associações de moradores. Na praça da região Norte, diferentemente, não há controle pelo poder público, tampouco por segurança privada. Os próprios usuários evitam a praça quando está muito vazia e,

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principalmente, no período noturno, quando é ocupada por um grupo que os moradores, provavelmente por medo, não identifi cam bem, mas dizem ser perigoso.

Área de Lazer e Esporte Via Expressa

Inaugurada em 27 de junho de 2004, a Área de Lazer da Via Expressa é conhecida pelos seus frequentadores como Praça da Via Expressa ou Praça dos Skatistas. Situada no canteiro central da Via Expressa, avenida de intenso fl uxo de carros, seu formato é triangular e, antes de ser praça, havia ali um lote vago. Fechada por uma cerca de aproxi-madamente dois metros de altura, seu aces-so se dá por um grande portão situado num dos vértices do triângulo. Paralela à cerca, uma pista de cooper asfaltada contorna a praça. Mais internamente, num dos lados do triângulo, há uma pista de bicicross – de areia e com uma elevação – circundada por uma área gramada. No lado oposto dessa pista, ocupando todo um lado do triângulo, há uma pista de skate, com rampas de con-creto e barras de ferro, que também servem para a prática do esporte. Há outra pista de skate, de concreto, em formato abaulado. Há ainda bancos em semicírculo, um bebe-douro e aparelhos de ginástica.

A história dessa praça, embora recen-te, é emblemática para a refl exão sobre os usos de espaços públicos na contemporanei-dade, entre outros motivos por ser gradea-da e fechada ao público durante a noite. A praça abre às seis da manhã e fecha às dez da noite.

Situada na regional Noroeste e próxi-ma a uma vila – Vila São Vicente – e a três bairros – Coração Eucarístico, Minas Brasil, Padre Eustáquio – a Praça da Via Expres-sa é um espaço público cuja gerência cabe não só à prefeitura de Belo Horizonte, mas também ao Conselho Permanente de Usuá-rios – CPU – composto por 13 entidades, entre associações de moradores – do bairro Coração Eucarístico e da Vila São Vicente –, de skatistas e de comerciantes. Percebe-se aqui o associativismo, como na Praça da La-goa Seca, mas numa parceria formal com o poder municipal e, nesse caso, a distância em relação à Praça da Lagoa Seca é gran-de, já que esta é um espaço privado com uso público e mantido por associações de bairro. Aqui, diferentemente, trata-se de um espaço público mantido pela prefeitura em parceria com entidades abrigadas num conselho. Na portaria que formaliza a ges-tão da Área de Lazer, essa parceria torna-se clara:

O Secretário Municipal de Esportes (...)

resolve:

Artigo 1º – O Equipamento Esportivo

será gerenciado de forma comparti-

lhada entre a Secretaria Municipal de

Esportes, a Secretaria Municipal da

Coordenação de Gestão Regional No-

roeste e o Conselho Permanente de

Usuários – CPU, cujos membros serão

eleitos por votação em assembléia e

que terá a função de organizar e fis-

calizar o agendamento das atividades

a serem realizadas no local, através da

normatização assinada pelas partes.

(Portaria 003/2004. In: Belo Hori-

zonte, 2004).

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Embora haja uma gestão compartilha-da, as entrevistas com alguns usuários da praça revelaram que eles desconhecem esse fato. Perguntados se sabiam quem cuidava da praça, alguns diziam que não sabiam e outros afi rmavam ser a prefeitura.

Nas pistas de skate há grafi tes e picha-ções e numa delas se lê: “It’s just skate, but I like it”. Os grafi tes foram executados com a permissão da prefeitura com o objetivo de evitar as pichações, uma vez que os pichado-res não costumam pichar sobre grafi tes. No entanto, nos outros espaços não grafi tados havia pichações.

Constatou-se a existência de dois grupos muito distintos de usuários da praça. De um lado, os skatistas, jovens entre 14 e 18 anos, predominantemente homens (vez ou outra é possível ver uma ou duas meninas, na mesma faixa etária, andando de skate) e, em geral, de classe baixa, dado que a maioria dos jo-vens entrevistados em dias de semana resi-dia na favela próxima à praça. De outro lado, adultos – homens e mulheres – que usam a pista de cooper e parecem, ao menos pela forma de vestir, pertencer a um estrato so-cial mais elevado. Nos fi ns de semana há tam-bém crianças acompanhadas de adultos, que levam bicicleta, patins ou skate e, nos dias de semana, adolescentes com uniforme escolar.

Nos dias de semana, a praça é frequen-tada majoritariamente por moradores dos bairros vizinhos e, nos fins de semana, por pessoas de diferentes regiões de Belo Hori zonte e Contagem. Em conversa com os usuá rios de bairros mais distantes, per-cebeu-se que estavam ali porque passaram pela avenida em outra ocasião e viram a praça ou porque fi caram sabendo de uma nova praça em Belo Horizonte com equipa-mentos para a prática do skate.

Quando os pesquisadores de campo15 iniciaram a observação nessa praça, havia uma faixa em que os moradores da Vila São Vicente agradeciam ao prefeito e a uma ve-readora a construção da praça. Embora a faixa iniciasse com os “moradores da Vila São Vicente”, a assinatura era: “Skatistas da região”. A vereadora revelou-nos, em con-versa por telefone, que o projeto surgira de demandas de diferentes grupos da região, entre os quais os skatistas, algumas associa-ções de moradores e de comerciantes. Ainda segundo ela, o fechamento teria sido deci-são dos usuários representados pelo Comitê Permanente de Usuários (CPU).

A maioria dos usuários entrevistados desconhecia o motivo do fechamento da praça, mas imaginava que seria uma estra-tégia contra a ação de vândalos. Um fun-cionário da prefeitura relatou-nos que os moradores pediram que a praça fosse fe-chada para evitar esse tipo de ação. O que nos parece, entretanto, é que o fechamento da praça, análogo à ausência de bancos na Praça da Lagoa Seca, seria uma estratégia para evitar a presença de pessoas “indesejá-veis”. Outra hipótese é que ofereceria prote-ção para brinquedos como bolas ou mesmo skates não caírem na via pública. Mas essa proteção não justifi ca o fechamento à noite. Portanto, a hipótese que nos pareceu mais plausível é a de evitar que os moradores de rua, que se concentram na Via Expressa e nos seus viadutos, façam da praça um local de moradia ou pelo menos de pernoite.

Tanto a Praça X como a Praça da Via Expressa têm a presença marcante de jo-vens. Ainda que os desta última sejam mais jovens, com idade variando entre 14 e 18 anos e todos os entrevistados estudam e al-guns já trabalham. Diferenciam-se também

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por apresentarem um perfi l mais reivindica-tivo e participativo.

Considerações fi nais

Como dito no início deste artigo, o modo de apropriação de algumas praças em Belo Ho-rizonte parece sugerir que as refl exões re-centes que apontam para a morte do espaço público devem ser relativizadas. Entretanto, há que se considerar signifi cativas mudanças nas formas de apropriação dos espaços pú-blicos e de sociabilidade entre seus usuários. As praças são hoje muito mais utilizadas pa-ra os exercícios físicos, ainda que certos va-lores e estilos de vida sejam explicitados por meio desses usos. Não se trata, portanto, de simples voyeurismo ou de participação passiva, como disse Sennett (1988). Outro aspecto dessas recentes transformações é o cuidado com a segurança, presente no com-portamento dos usuários, nas ações das as-sociações de bairro, do poder público, das empresas privadas e dos grupos de usuá-rios. Nota-se também um comportamento mais segregacionista.

As praças são bastante frequentadas, mas busca-se cada vez mais a convivência entre iguais e a segregação socioespacial que se observa na cidade é reproduzida nos seus espaços públicos. Ou seja, não há uma recusa à praça, mas uma recusa em interagir com as diferenças. Dessa forma, uma das qualida-des dos espaços públicos, a possibilidade do encontro com o diferente, vem sendo evitada pelos novos usuários dos espaços públicos.

Por fi m, é interessante analisar a ação do poder público nessas quatro praças. Na Praça JK, o projeto elaborado pelo poder

público tentou contemplar o uso, ainda que segmentado, dos diferentes frequentadores, o que garante hoje a presença – ainda que com poucas possibilidades de interação – dos dois grupos, os de classe média e os mora-dores da favela. Na Praça X, o que se nota é o abandono por parte do poder público. Essa praça carece de cuidados mínimos, co-mo limpeza, colocação de lixeiras e até mes-mo a ação da polícia. Apesar das insistentes afi rmações de que não é um lugar seguro à noite, nenhuma ocorrência foi registrada no local, durante todo o ano de 2003. Isso con-trasta com as duas outras praças da regional Centro Sul – Praça JK e da Lagoa Seca – on-de a presença da polícia (pública ou privada) é mais efetiva. Nessa última, a situação é atí-pica: trata-se de um espaço de uso público, mas cuja gestão é privada. Em consequên-cia, é um lugar extremamente segregado. Já no caso da Área de Lazer e Esportes Via Expressa, o poder público, pressionado pelas demandas dos moradores, opta pelo fecha-mento do espaço público. E, ainda que sua constituição tenha contado com a participa-ção de várias entidades, ele desafi a uma ou-tra dimensão tão cara aos espaços públicos: a natureza de espaço aberto a todos.

De todo modo, o que se constatou é que as quatro praças investigadas são muito frequentadas. Assim, como pensar em mor-te ou renúncia aos espaços públicos? É evi-dente, como revelado em todo o texto, que, num contexto de exacerbação da criminali-dade urbana nas grandes cidades, há, por um lado, maior controle da frequência e das interações nos espaços públicos e, por outro lado, a intensifi cação das interações entre iguais, mas as pessoas continuam se apro-priando e interagindo nos espaços públicos das grandes cidades.

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Luciana Teixeira de AndradeSocióloga pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Professora do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Minas Gerais, Brasil)[email protected]

Juliana Gonzaga JaymeCientista Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Antropologia e Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Professora da Pontifícia Univer-sidade Católica de Minas Gerais, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e dos cursos de Publicidade e Propaganda e Serviço Social (Minas Gerais, Brasil)[email protected]

Rachel de Castro AlmeidaArquiteta Urbanista pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Doutoranda e Mes-tre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Coordenadora da equipe de tutoria da Associação Internacional de Educação Continuada (Minas Gerais, Brasil)[email protected]

Notas

(*) Uma primeira versão deste arti go foi apresentada no XXVIII Encontro Anual da Anpocs, no grupo de trabalho Metrópoles: segmentação, sociabilidade e cidadania. A pesquisa que deu origem a este trabalho foi fi nanciada pelo Fundo de Incenti vo à Pesquisa da PUC Minas e o trabalho de campo contou com a decisiva parti cipação de Heloísa Helena de Souza e Jeremias Farias Abbud, alunos do Curso de Ciências Sociais da PUC Minas.

(1) Ver o trabalho de Leite (2004) sobre o histórico bairro do Recife. Sobre os usos do espaço público em Belo Horizonte, ver Almeida (2001); Teixeira (2003); Gois (2003).

(2) Alguns grupos fazem dos espaços públicos espaços da privacidade, quando, por exemplo, os transformam em local de moradia, como aponta Araújo (2004, p. 10): “A construção de mora-dias improvisadas explicita (...) a presença da esfera privada em locais públicos, trazendo um novo recorte para pensarmos as fronteiras entre público e privado”.

(3) Trata-se do Programa Adote o Verde da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. “Parceria entre a administração municipal e a iniciati va privada e a comunidade em geral, com o objeti vo de viabi-lizar a implantação e, principalmente, a manutenção de parques, praças, jardins, canteiros cen-trais de avenidas e demais áreas verdes públicas da cidade. É responsável, hoje, pela manuten-ção de cerca de 300 espaços verdes do município” (site da PBH, acessado em agosto de 2004).

(4) Nessa praça um grupo de jovens consome regularmente maconha. Eles parti ciparam da pesquisa com a condição, proposta por nós, de que não seriam identi fi cados. Por isso o bairro e a localiza-ção precisa da praça não são revelados e a denominamos Praça X.

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(5) Sobre as praças centrais e suas relações com o plano original da cidade ver Arroyo (2004).

(6) Cada AED – também denominada área de ponderação – compreende um conjunto de bairros cujo número varia segundo as suas respecti vas densidades populacionais.

(7) A identi fi cação dos bairros que compõem cada AED privilegiou os nomes dos bairros maiores e mais conhecidos, como forma de facilitar a sua identi fi cação. Ver Metrodata, Observatório das Metrópoles. htt p://web.observatoriodasmetropoles.net/

(8) Optamos por uti lizar o Índice de Vulnerabilidade Social para a escolha das Regionais a serem pesquisadas por permiti r identi fi car espacialmente as áreas de maior e menor vulnerabilidade social em Belo Horizonte (Nahas, 2002).

(9) Devido à sua dimensão, a prefeitura a classifi ca como parque, mas aqui é considerada como praça por ter forma e usos similares às praças, e, especialmente, porque seus frequentadores a cha-mam de praça.

(10) Em Belo Horizonte, as favelas são denominadas vilas pelo poder público e em muitos lugares es-sa denominação é também empregada pelos moradores, que a preferem devido às conotações negati vas do termo favela. Neste texto usaremos ora uma, ora outra denominação.

(11) Além de vigiarem os carros, em alguns eventos os moradores da Vila são contratados como segu-ranças. Sobre as difí ceis relações entre estratos sociais diferentes, mas que vivem próximos, ver Ribeiro et al. (2004).

(12) Na região existem três associações. A mais anti ga é a Associação dos Moradores do Bairro Bel-vedere (AMBB), que reúne os moradores do Belvedere I e II. Com a aprovação do Belvedere III surgiram mais duas associações: a Associação dos Amigos do Bairro Belvedere (AABB) e a Asso-ciação dos Comerciantes do Belvedere.

(13) Como esse espaço não existe ofi cialmente como praça, até porque praça é um espaço de domí-nio público, não foi possível, nos registros de crimes da Polícia Militar, isolar aqueles referen-tes ao local. O que se tem são registros dos crimes ocorridos nas ruas que contornam a praça. Segundo esses dados, em 2003 foram registrados aí três crimes: um roubo à mão armada de veículo automotor, um roubo à mão armada a transeunte e um roubo a transeunte.

(14) Todos os garotos entrevistados disseram na época (2004) frequentar a praça há um ou dois anos. Numa pesquisa anterior nessa mesma praça, durante o ano de 2000, não foi registrada a pre-sença desse grupo.

(15) Jeremias Abbud, estudante do curso de Ciências Sociais e Júlia Guimarães Mendes, estudante do curso de Jornalismo, ambos da PUC Minas.

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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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Fundamentos da confi ança: associativismo, instituições político-

administrativas e capital socialna Região Metropolitana de Porto Alegre*

Marcelo Kunrath SilvaSoraya Vargas Côrtes

ResumoO objetivo deste artigo é estabelecer um diálogo crítico com a perspectiva atualmente dominante no debate sobre os fundamentos da confi ança e do capital social, baseada na obra de Robert Putnam. Nesse sentido, o artigo problematiza o argumento de que a proliferação das orga-nizações sociais seria uma condição necessária e, especialmente, sufi ciente para a geração de confiança e, por consequência, capital social. Com base nos dados de survey sobre Cultura Política na Região Metropolitana de Porto Ale-gre, realizado pelo Observatório das Metrópo-les, o presente artigo identifi ca a inexistência de uma relação direta entre envolvimento as-sociativo e níveis de confi ança em instituições políticas. Buscando responder a esse aparente paradoxo, sustenta-se a necessidade de incor-porar a dimensão político-institucional à análise sobre os fundamentos da confi ança, rompendo com uma abordagem exclusivamente centrada no associativismo.

Palavras-chave: associativismo; instituições; confi ança; capital social.

AbstractThis paper critically examines an approach to the foundations of trust and social capital that is inspired by the very infl uential work of Robert Putnam. It discusses the argument that the spread of civil organizations is a necessary and suffi cient condition for building up trust and, as a consequence, social capital. Through the analysis of a survey’s data on Political Culture in the Metropolitan Region of Porto Alegre, the paper identifi es the lack of a direct relationship between civic engagement and levels of trust in political institutions. Facing what seems to be a paradox, the paper sustains that to properly understand the foundations of trust, the analysis must take into account the political-institutional dimensions rather than focusing only on civic engagement.

Keywords: civic engagement; institutions; trust; social capital.

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Introdução

Assiste-se, na última década, à emergência de um aparente consenso entre amplos seg-mentos da comunidade científi ca e membros de instituições diversas (Estado, organismos internacionais, ONGs, etc.) em torno da cen-tralidade das organizações da sociedade ci-vil na geração de confi ança e solidariedade, constituindo o capital social que permitiria a superação de diversos problemas sociais e políticos relacionados à pobreza, ao sub-desenvolvimento, à consolidação da demo-cracia, à qualidade do desempenho gover-namental. Fundado na generalização – e, muitas vezes, simplifi cação – do argumento de Robert Putnam, que identifi ca na desi-gualdade de capital social o fator explicati-vo para as diferenças entre o desempenho institucional e o desenvolvimento econômico do Norte e do Sul da Itália, esse aparente consenso gerou não apenas uma fértil lite-ratura acadêmica, mas também um amplo conjunto de programas e políticas voltados à produção de capital social a partir do estí-mulo às práticas associativas.

O objetivo deste artigo é estabelecer um diálogo crítico com essa perspectiva, problematizando o argumento de que a proliferação das organizações sociais seria uma condição necessária e, especialmente, suficiente para a geração de confiança e, por consequência, capital social no sentido atribuído por Putnam a esse conceito.1 Com base nos dados do survey sobre Cultura Política na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA),2 desenvolvida no âmbito do Observatório das Metrópoles, o presente ar-tigo identifi ca a inexistência de uma correla-ção direta entre envolvimento associativo e

elevação dos níveis de confi ança, contrarian-do, assim, o consenso apontado anterior-mente. Buscando responder a esse aparente paradoxo, sustenta-se a necessidade de in-corporar a dimensão político-institucional à análise sobre os fundamentos da confi ança, rompendo com uma abordagem exclusiva-mente centrada no associativismo.3

Para desenvolver a análise, o artigo apresenta a seguinte estrutura: na próxima seção, é feita uma sintética apresentação dos argumentos de autores que problematizam a perspectiva atualmente dominante na lite-ratura sobre confi ança e o capital social, a partir da defesa da incorporação da dimen-são político-institucional; na seção seguinte, são analisados os dados sobre o envolvimen-to associativo na RMPA; posteriormente, são apresentados os dados sobre os níveis de confi ança entre a população pesquisada; na seção que segue, são analisadas as ava-liações dos entrevistados sobre o desempe-nho dos atores e instituições político-admi-nistrativos; por fi m, o artigo conclui com o argumento de que o baixo nível de confi an-ça observado tende a ser melhor explicado pela interpretação dos entrevistados sobre o contexto político-institucional no qual os pesquisados estão inseridos do que pelo en-volvimento no tecido associativo local.

Fundamentos da confi ança: bringing the political institutions back in4

Robert Putnam, especialmente a partir da análise desenvolvida no livro Comunidade

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e Democracia, estabeleceu uma perspecti-va que se tornou, ao longo da última déca-da, um dos principais focos de interesse de cientistas sociais. Tal perspectiva, que adota diversos elementos da análise de Alexis de Tocqueville em A Democracia na América, pode ser sintetizada da seguinte forma: a configuração associativa, na medida em que é a fonte da confiança e das normas que constituem o estoque de capital social de uma determinada sociedade, possui um efeito determinante no desempenho das ins-tituições e, no limite, na defi nição dos níveis de desenvolvimento dessa sociedade. Dessa forma, Putnam e os adeptos dessa perspec-tiva tendem a estabelecer uma correlação direta entre níveis de confi ança e confi gu-ração associativa (em geral, operacionaliza-da quantitativamente enquanto número de associações e volume de fi liações); ou seja, quanto maior o número de associações e o volume de fi liados a elas, maiores os níveis de confi ança (e, assim, de capital social).

Apesar de obscurecidos pela grande repercussão e aceitação da perspectiva de Putnam, especialmente entre agências de desenvolvimento e organismos fi nanceiros internacionais, alguns autores têm proble-matizado os fundamentos dessa perspectiva a partir de diversos argumentos. Neste ar-tigo, o interesse concentra-se naqueles au-tores que têm confrontado a relação causal unidirecional que Putnam institui entre con-fi guração associativa, níveis de confi ança e desempenho político-institucional.

Um dos autores que confronta de ma-neira mais direta e contundente essa abor-dagem unidirecional é Omar Encarnación, no livro que tem o sugestivo título The Myth of Civil Society. A partir da fundamentação empírica oferecida pela análise dos processos

de redemocratização na Espanha e no Brasil, esse autor sustenta a necessidade de inver-ter o sentido da relação causal estabelecida por Putnam, defendendo que os níveis de confi ança tendem a ser determinados menos pela configuração associativa do que pela confi guração e desempenho das instituições político-administrativas.5 Para ele, deve-se esperar que a confi ança social, as redes de reciprocidade e outros componentes do ca-pital social fl oresçam em contextos no qual o sistema político é efetivo e bem institucio-nalizado. Nas sociedades em processo de de-mocratização, o contexto

[...] político-institucional inclui um go-

verno que seja comprometido com os

valores e práticas da democracia, um

confiável e coerente aparato estatal e

partidos políticos com profundas raízes

na sociedade. Estas condições provêm

as melhores perspectivas para o bem-

estar geral da sociedade, tanto em ter-

mos de estabilidade política quanto em

termos de desenvolvimento econômico,

que, por sua vez, proporciona o funda-

mento ideal para o aumento da capaci-

dade dos indivíduos confi arem uns nos

outros e se engajarem em esforços de

colaboração no apoio da democracia.

Tais condições também facilitam a con-

fi ança no sistema político, um requisi-

to crítico para as instituições políticas

executarem com sucesso a integração

da sociedade em torno do projeto de

democratização e oferecer aos atores

sociais meios efetivos de representação

política. Em contraste, nós devemos es-

perar que a formação de capital social

seja minada, senão completamente pa-

ralisada, por instituições políticas inefi -

cientes ou precariamente desenvolvidas.

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De fato, as formas mais negativas de

capital social (por exemplo, desconfi an-

ça e cinismo) são prováveis de emergir

deste contexto político. (Encarnación,

2003, pp. 8-9)

Segundo Encarnación, o processo de redemocratização brasileiro ofereceria um dos melhores exemplos para sustentar a crítica ao modelo analítico de Putnam, na medida em que seria um caso no qual se combinaria um expressivo crescimento e complexifi cação do tecido associativo com um marcante decréscimo dos níveis de con-fi ança interpessoal e institucional.6 A res-posta para esse resultado se encontraria no precário desempenho das instituições político-administrativas brasileiras no perí-odo. Para ele, apesar da existência de sinais de uma fl orescente sociedade civil, de um impressionante nível de engajamento dos cidadãos em grupos voluntários de quase todos os tipos e propósitos, o capital social é pouco disponível no Brasil. O Brasil é “um verdadeiro deserto” no que se refere ao indicador empírico básico de capital: a con-fi ança social. O autor relaciona isso à pobre performance dos governos brasileiros no período pós-transição e o declínio institu-cional que afl igiu o sistema político do país nas últimas décadas (ibid., p.12).

Outro autor que aborda criticamente o argumento de Putnam é Sidney Tarrow, que destaca que a “falta da agência do Estado no livro Comunidade e Democracia é uma das maiores falhas do seu modelo explicativo” (1996, p. 395). Para Tarrow, o apego de Putnam a uma perspectiva comprometida com a concepção da vida associativa como fonte única de capital social, precedendo e determinando o desempenho institucional,

lhe impossibilitou apreender, na sua análise da história italiana, o decisivo impacto das distintas conformações institucionais do Norte e do Sul da Itália na estruturação da vida associativa em cada uma dessas regiões. Como salienta o autor,

[...] o caráter do Estado é externo ao

modelo, sofrendo os resultados da inca-

pacidade associativa regional, mas sem

responsabilidades pela produção desta.

(…) nós podemos fi car satisfeitos com

a interpretação da capacidade cívica co-

mo um produto local no qual o Estado

não desempenhe nenhum papel? (Ibid.,

p. 395)

Da mesma forma que Encarnación e Tarrow, Sheri Berman também responde negativamente a esse questionamento. Ba-seando-se na análise da crise da República de Weimar e ascensão do nazismo na Ale-manha, Berman demonstra que, ao contrá-rio do “círculo virtuoso” estabelecido pelos tocquevillianos – entre os quais, Putnam – o mero crescimento do associativismo não pode ser tomado como um indicador de au-mento dos níveis de confi ança ou de vitalida-de das instituições democráticas. No proces-so analisado, ao contrário, a autora mostra que o crescimento associativo se vincula di-retamente ao declínio da confi ança e à crise institucional, sendo um dos mecanismos que possibilitou a ascensão do Partido Nacional-Socialista ao poder. Assim, conclui a autora,

O caso alemão deveria nos tornar cé-

ticos sobre vários aspectos da teo-

ria neotocquevilliana. Em particular,

o desenvolvimento político alemão

levanta questões sobre aquilo que,

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recentemente, tornou-se praticamente

um senso comum, qual seja que existe

uma relação direta e positiva entre uma

rica vida associativa e uma democracia

estável. Sob certas circunstâncias, o

caso é claramente o oposto: o associa-

tivismo e as perspectivas da estabilida-

de democrática podem, de fato, estar

inversamente relacionados. Além disto,

muitas das consequências do associati-

vismo enfatizadas pelos pesquisadores

neotocquevillianos – fornecer habilida-

des políticas e sociais aos indivíduos,

criar vínculos entre os cidadãos, facili-

tar a mobilização, diminuir os obstácu-

los à ação coletiva – podem ser direcio-

nados tanto para fi ns antidemocráticos

quanto democráticos. Talvez, assim,

associativismo deva ser considerado

uma variá vel politicamente neutra –

nem inerentemente bom nem ineren-

temente mal, mas, antes, cujos efeitos

dependem do amplo contexto político.

(Berman, 1997, pp. 426-427)

Partindo dessas problematizações ao modelo analítico de Putnam, este artigo cri-tica a desconsideração da dimensão político-institucional nas análises sobre confi ança, na medida em que as instituições constituem um fator determinante na estruturação das representações e práticas dos agentes so-ciais. Como salienta Boschi (1987, p.19),

As instituições organizam a experiên-

cia diária dos indivíduos, dando forma

aos ressentimentos e defi nindo as de-

mandas e metas de ação. Também são

um determinante implícito das formas

eventualmente assumidas pelo protesto,

no sentido de que é a vida institucional

que agrega e dispersa as pessoas.

Nesse sentido, adota-se a hipótese de que os níveis de confi ança estão mais rela-cionados às avaliações da população sobre o desempenho dos atores e instituições políti-co-administrativos do que ao envolvimento associativo. Assim, em contextos nos quais a avaliação do campo político-institucional é predominantemente negativa, o nível de confi ança da população, independentemente da inserção associativa, tende a ser baixo. Nesses contextos, de fato, o envolvimento associativo pode se constituir menos em um indicador ou fonte de confi ança e mais em um mecanismo de autoproteção ante um ambiente interpretado como ameaçador.

Atuação sociopolítica e inserção associativa na RMPA

Para caracterizar o nível de envolvimento associativo da população da RMPA, esta seção utiliza dois conjuntos de informações disponibilizados pela pesquisa: o que trata da participação dos entrevistados em ações sociopolíticas e outro sobre a participação dos entrevistados em associações.

Conforme pode ser observado na Ta-bela 1, a experiência de atuação sociopolítica dos entrevistados, indicada pela a assinatura de petições e, especialmente, abaixo-assina-dos é a alternativa de ação mais difundida na RMPA: 37,7% deles já o fi zeram (289 em 768). Essa forma de ação, caracterizada pelo seu baixo custo para os participantes e pelo baixo risco envolvido, apresenta uma longa tradição na região, sendo empregada tanto por movimentos reivindicativos quanto

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pelas redes de clientela política. Em segundo lugar, com presença na trajetória de quase um quarto dos entrevistados (178 em 768), encontra-se a participação em comícios ou reuniões políticas, indicando o envolvimen-to mais ou menos intenso de um segmento signifi cativo dos entrevistados com a política partidária.

Com um percentual um pouco menor, próximo a 20% (147 em 768), encontra-se a participação em manifestações. Mesmo que esse valor, em termos absolutos, possa ser avaliado como baixo em relação ao total de entrevistados, não pode ser desprezado o fato de quase um quinto dos entrevistados ter tido alguma experiência de participação em manifestações. Dado o custo, em geral, expressivo desse tipo de ação coletiva e os riscos inerentes a tais ações, esses percen-tuais podem ser considerados como relevan-tes. Esse dado exige relativizar a interpreta-ção sobre a existência de uma aversão gene-ralizada ao envolvimento em ações coletivas entre os brasileiros,7 indicando que, em certas conjunturas, uma parcela expressiva

dessa população apresentou as condições e disposições para inserir-se em processos de mobilização.

Outro aspecto que confere destaque ao percentual de participantes de manifestações e o torna relativamente elevado é a compa-ração com os contatos diretos com políticos. Na medida em que a política brasileira é re-tratada como sendo fortemente marcada por práticas clientelistas, poder-se-ia se esperar uma signifi cativa disseminação de relações diretas entre políticos e cidadãos, uma vez que esses contatos seriam os canais privile-giados para a mediação clientelista dos inte-resses sociais junto ao poderes públicos. No entanto, os dados mostram que os contatos diretos com políticos têm uma presença re-lativamente pequena entre os entrevistados, tendo sido uma ação já praticada por apenas 13,2% dos mesmos (101 em 768).

O envolvimento associativo dos en tre-vis tados está relacionado, primeiramente, à importância da religiosidade na conformação do tecido associativo da RMPA. Conforme pode ser observado na Tabela 2, a inserção

Tabela 1 – Experiência de ação social e política – RMPA – 2007

Tipo de açãoNunca fez Fez NS/NR

Entrevistados Entrevistados EntrevistadosNº % Nº % Nº %

Assinar uma petição ou abaixo-assinadoParticipar num comício ou reunião políticaParticipar em manifestaçãoBoicotar produtos por razões políticas, éticas e ambientaisContatar político ou alto funcionário do EstadoDar dinheiro ou recolher fundo para causas públicasParticipar num fórum através da internetContatar/aparecer na mídia

449561603619634653645677

58,573,178,580,682,685,183,988,1

289178147107101967952

37,723,219,213,913,212,510,3

6,7

3029184233194439

3,93,82,35,54,32,55,75,1

Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.

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em organizações de caráter religioso consti-tui-se na principal opção de associativismo, sendo essa a única forma de pertencimen-to associativo que é ou já foi experimenta-da por mais da metade dos entrevistados (54,6%, 419 em 768). Cerca de 30% dos entrevistados têm ou tiveram participação em organizações desportivas/recreativas/culturais (30,6%, 235 em 768) e em sin-dicatos/associações profissionais (27,6%, 212 em 768). Ou seja, quase um terço dos entrevistados possuía experiência de envol-vimento nesses tipos de organizações so-ciais. Além disto, aproximadamente 20% responderam ter experiência de participação em outros tipos de associações voluntárias (22,2%, 171 em 768) e em partidos polí-ticos (21,4%, 165 em 768). No conjunto dos entrevistados, apenas 26,2% (201 em 768) declararão não possuir nenhum tipo de experiência associativa, o que indica que aproximadamente três quartos da popula-ção pesquisada têm ou teve algum tipo de engajamento associativo.

Os dados obtidos na pesquisa mostram, então, que a população da RMPA se carac-teriza por uma experiência de envolvimento sociopolítico e associativo que não pode ser desconsiderada. Ao contrário, observa-se

que um volume signifi cativo de entrevista-dos apresenta algum tipo de inserção asso-ciativa e, em menor grau, de participação em ações políticas e/ou reivindicativas. Tais informações tendem, assim, a sustentar a interpretação de senso comum que identi-fi ca a RMPA como um espaço social carac-terizado por uma tradição de organização e mobilização social e política, constituindo um contexto associativo propício, segundo o argumento de Putnam, à geração de al-tos níveis de confi ança e, assim, de capital social.

A desconfi ança generalizada

Contrariamente ao resultado esperado a partir do modelo analítico de Putnam, os dados da pesquisa Cultura Política na RMPA apontam para um contexto de baixíssimos níveis de confiança, tanto em relação às instituições como em termos das relações interpessoais.

No que se refere à confi ança nas ins-tituições,8 predomina a avaliação negati-va sobre a intencionalidade dos agentes

Tabela 2 – Pertencimento associativo por tipo de associação – RMPA – 2007

Tipo de associaçãoNunca pertenceu Pertence ou pertenceu NS/NR

Entrevistados Entrevistados EntrevistadosNº % Nº % Nº %

Igreja ou grupo religiosoGrupo desportivo, recreativo ou culturalSindicato, grêmio ou associação profi ssionalOutra associação voluntáriaPartido político

331517546532595

43,167,371,169,377,5

419235212171165

54,630,627,622,221,4

18161065

8

2,32,11,38,51,1

Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.

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governamentais. Na Tabela 3, observa-se que mais de 55% dos entrevistados ava-liam que os governantes tendem a agir de forma incorreta, enquanto menos de 30% concordam que os integrantes dos gover-nos tenderiam a agir com correção. Ou se-ja, para a maior parte dos entrevistados, os agentes públicos são, por princípio, objeto de desconfi ança.

Essa interpretação é corroborada pela preponderância entre os entrevistados da

visão de que a atuação dos políticos é mo-tivada principalmente pela busca de vanta-gens pessoais. A Tabela 4 mostra que pra-ticamente 80% dos entrevistados conside-ram que a obtenção de vantagens pessoais é a razão básica para a atuação política dos políticos e não o interesse público. Assim, além de não atuarem corretamente, a maior parte dos indivíduos envolvidos na política institucional é vista como sendo movida por interesses egoístas.

Tabela 3 – Concordância com a afi rmação “Pode-se confi arque as pessoas do governo farão o que é certo” – RMPA – 2007

Nível de concordânciaEntrevistados

Nº %Concorda totalmenteConcorda em parteNão concorda nem discordaDiscorda em parteDiscorda totalmenteNS/NRTotal

7213910315527524

768

9,418,113,420,235,83,1

100,0

Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.

Tabela 4 – Concordância com a afi rmação “A maior parte dos políticos está na política para obter vantagens pessoais” – RMPA – 2007

Nível de concordânciaEntrevistados

Nº %Concorda totalmenteConcorda em parteNão concorda nem discordaDiscorda em parteDiscorda totalmenteNS/NRTotal

45615849483918

768

59,420,66,46,25,12,3

100,0

Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.

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Essa mesma avaliação sobre o predo-mínio de uma lógica “predatória” é encon-trada nas opiniões dos entrevistados so-bre a natureza das relações interpessoais. A Tabela 5 mostra que mais de 70% dos entrevistados consideram a principal inten-ção das pessoas, ao se relacionarem umas com as outras, é a busca de vantagens e não o estabelecimento de relações em que procura ram ser justas.

Nesse sentido, não é surpreendente que esses mesmos entrevistados destaquem a necessidade de adotar uma postura de precaução nas relações interpessoais. Aqui, novamente, quase 70% das respostas apon-tam para a necessidade de tomar cuidado

em relação aos outros indivíduos, indicando claramente a presença de uma desconfi ança generalizada que também está presente na relação com as instituições político-adminis-trativas.

Não há, portanto, uma relação direta entre configuração associativa e níveis de confi ança. Conforme caracterizado na seção anterior, a RMPA apresenta uma população com signifi cativa experiência de envolvimen-to associativo, mas essa experiência, para-doxalmente – de acordo com a prescrição do modelo de Putnam –, não tem se constituído numa fonte efetiva de confi ança e, assim, de capital social. De fato, os níveis de confi an-ça não apresentam variações signifi cativas

Tabela 5 – Frequência com que as pessoas tentarão tirar vantagemou serem justas nas relações com outras pessoas – RMPA – 2007

FrequênciaEntrevistados

Nº %Tentarão tirar vantagem sempreTentarão tirar vantagem às vezesSerão justas às vezesSerão justas sempreNS/NRTotal

2393051216736

768

31,139,715,88,74,7

100,0

Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.

Tabela 6 – Confi ança interpessoal – RMPA – 2007

Confi ançaEntrevistados

Nº %As pessoas quase sempre são de confi ançaAs pessoas algumas vezes são de confi ançaAlgumas vezes todo o cuidado é poucoQuase sempre todo o cuidado é poucoNS/NRTotal

5815625827125

768

7,620,333,635,33,3

100,0

Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.

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quando se diferenciam os entrevistados em termos da experiência associativa prévia; ou seja, os níveis de confi ança institucional e in-terpessoal tendem a ser relativamente simi-lares (baixos), tanto entre aqueles que têm experiência associativa quanto entre aqueles que não têm.

Decifrando o “paradoxo”: desempenho institucional e (des)confi ança

Ante a incapacidade do argumento de Putnam oferecer uma interpretação adequa-da para os dados sobre confi ança coletados na pesquisa Cultura Política na RMPA, re-corre-se, nesta seção, aos argumentos apre-sentados pelos críticos da perspectiva de Putnam, no sentido de comprovar sua sus-tentabilidade empírica no contexto em foco. Nesse sentido, busca-se apreender a avalia-ção dos entrevistados sobre o desempenho dos atores e instituições político-adminis-trativos e, especialmente, se essa avaliação pode ser correlacionada9 aos baixos níveis

de confi ança identifi cados entre a população pesquisada.

Um primeiro indicador para anali-sar a avaliação política dos entrevistados refere-se à forma como estes percebem o grau de abertura dos governantes para a participação da população. Conforme pode ser observado na Tabela 7, praticamente dois terços dos entrevistados (62,9%, 483 em 768) avaliam que suas opiniões, o que eles pensam, interessam pouco ou não são de nenhum interesse para os governantes. Essa informação, isoladamente, poderia expressar uma declaração de incompetência política por parte dos entrevistados. Mas, como 53,3% (409 em 768) desses mesmos respondentes afi rmam ter algo a dizer so-bre a ação governamental, essa suposição não se confi rma. Ou seja, os entrevistados se autoavaliam como cidadãos dotados de competência para opinar sobre assuntos re-lativos à gestão pública e capacitados para contribuir com a ação governamental, mas têm sua participação desestimulada ou mes-mo bloqueada, pelo menos em parte, pela ausência de interesse dos governantes nesta participação.

Tabela 7 – Concordância com as afi rmações “Eu acho queo governo não liga muito para o que as pessoas como eu pensam” e“Não tenho nada a dizer sobre o que o governo faz” – RMPA – 2007

Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.

Nível de concordância

Eu acho que o governo não liga muito para o que pessoas como eu pensam

Não tenho nada a dizer sobreo que o governo faz

Entrevistados EntrevistadosNº % Nº %

Concorda totalmenteConcorda em parteNão concorda nem discordaDiscorda em parteDiscorda totalmenteNS/NRTotal

31317090806550

768

40,822,111,710,48,56,5

100,0

–10010687

14926066

–13,013,811,319,433,98,6

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Juntamente com essa avaliação de que os governantes são pouco permeáveis à participação dos cidadãos, a visão nega-tiva sobre os atores político-institucionais se expressa no conceito dos entrevistados sobre diferentes aspectos do desempenho da administração pública. Nesse sentido, a Tabela 8 mostra que 54% dos entrevista-dos (415 em 768) afi rmam que os admi-nistradores públicos apresentam pouco ou nenhum comprometimento em servir ao público. Isso reafi rma – de outro modo, ao particularizar a atuação dos administrado-res públicos – o predomínio da opinião de que os políticos estão voltados principal-mente para o atendimento de interesses particulares.

Essa avaliação de que na administra-ção pública predominam as orientações particula ristas é reforçada por dois outros indicadores. O primeiro deles se refere ao acesso dos cidadãos aos serviços públicos. Como a Tabela 9, para quase três quartos dos entrevistados (73,8%, 567 em 768) o acesso e/ou a qualidade dos serviços pú-blicos é mediada por relações pessoais. Ou seja, ao invés dos princípios universalistas e igualitários de cidadania instituídos no orde-namento jurídico, a maioria dos entrevista-dos considera que o acesso a bens e serviços públicos municipais e a qualidade do trata-mento a eles dispensado pela administração municipal depende de critérios particularis-tas baseados em vínculos interpessoais.

Tabela 8 – Avaliação sobre o comprometimentoda administração pública em servir as pessoas – RMPA – 2007

Nível de comprometimentoEntrevistados

Nº %Muito comprometidaDe alguma forma comprometidaPouco comprometidaNada comprometidaNS/NRTotal

10922730910617

768

14,229,640,213,82,2

100,0Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.

DependênciaEntrevistados

Nº %Defi nitivamente simProvavelmente simProvavelmente nãoDefi nitivamente nãoNS/NRTotal

2842831036830

768

37,036,813,48,93,9

100,0

Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.

Tabela 9 – Tratamento dispensado pelo serviço público municipala uma determinada pessoa, se ele depende de quem ela conhece – RMPA – 2007

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O segundo indicador refere-se à avalia-ção da população pesquisada sobre a presen-ça de corrupção na administração pública. A Tabela 10 mostra que 67% dos entrevista-dos (515 em 768) consideram que muitos ou todos aqueles que atuam na administra-ção pública estão envolvidos em corrupção. Assim, para a maioria dos entrevistados, a corrupção não constitui um desvio de con-duta eventual de um ou outro governante ou funcionário público, mas sim um procedi-mento institucionalizado na estrutura e fun-cionamento da administração pública.

Por todas essas avaliações negativas, não é surpreendente o escasso interesse que a maioria dos entrevistados diz ter em rela-ção à política (65,4% responderam ter pou-co ou nenhum interesse pela política), um campo marcado por condutas moralmente condenadas e, ainda, pouco permeável aos interesses daqueles destituídos dos recursos que garantem o acesso aos bens e serviços públicos. Apresentando um baixo interesse pela política, descrentes do interesse dos go-vernantes por suas opiniões e avaliando ne-gativamente a atuação dos administradores

públicos, seria esperado que os entrevista-dos apresentassem o baixo nível de confi an-ça – especialmente em relação às institui-ções político-administrativas – identifi cado anteriormente.

Um argumento que poderia ser uti-lizado para problematizar essa conclusão seria a inversão do sentido da explicação: ao invés de tomar o desempenho político-institucional como gerador do desinteres-se e da desconfi ança, ver o desinteresse e a desconfi ança como fatores preexistentes que explicariam o desempenho – ou a ava-liação da população sobre o desempenho – político-institucional. Ou seja, uma parte do argumento de Putnam poderia ser retoma-da, aquela que considera que o desempenho institucional é determinado pelos estoques de capital social previamente existentes.

De fato, esse é um argumento relati-vamente constante na literatura que trata da cultura política dos setores populares no Brasil, seja nas vertentes clássicas da Cultura da Pobreza e da Teoria da Margi-nalidade, seja em abordagens mais recentes dos estudos sobre Transição Democrática

Nível de envolvimento em corrupçãoEntrevistados

Nº %Ninguém envolvidoPoucos envolvidosAlguns envolvidosMuitos envolvidosTodos envolvidosNS/NRTotal

1962

15726225315

768

2,58,1

20,434,132,9

2100,0

Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.

Tabela 10 – Envolvimento com corrupçãona administração pública brasileira – RMPA – 2007

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(Perlman, 1981; Moisés, 1995). Apesar de suas diferenças, essas abordagens tendem a compartilhar a concepção de que parcelas signifi cativas da população – especialmente os segmentos ditos de “baixo refi namento político”, ou seja, aqueles de menor renda e menos escolarizados – apresentam um de-sinteresse inerente pela política, uma visão cínica da realidade e, no limite, um desape-go em relação aos valores e condutas que defi niriam uma cultura política democrática. Tal linha de argumentação, em muitos ca-sos, acabou levando ao ponto de vista “eli-tista” criticado por Zaluar (1994, p. 69), segundo o qual

[...] o atraso do sistema político brasi-

leiro passa sutilmente a ser entendido

(...) não como o resultado da desigual-

dade aberrante e do autoritarismo ne-

cessário para mantê-la, mas como um

efeito perverso da existência de massas

empobrecidas, que não têm ideias nem

meios de ação política modernos. Os

pobres passam a ser vistos, por este

prisma, como inimigos inconscientes da

democracia.

Os dados coletados na pesquisa, no entanto, não oferecem suporte a esse ar-gumento de que a população brasileira se-ria politicamente desinteressada, uma vez que os entrevistados valorizam, em diver-sas respostas, distintas formas de partici-pação política. Nesse sentido, por exemplo, 60% dos entrevistados defi niram o direito

de “votar sempre nas eleições” como mui-to importante. Com maior adesão ainda entre entrevistados, encontram-se as op-ções relacionadas ao direito de participar diretamente do processo de discussão e decisão das ações governamentais: as al-ternativas “políticos escutarem os cidadãos antes de tomarem as decisões” e “dar às pessoas mais oportunidades de participar nas decisões de interesse público” obtive-ram uma avaliação de “muito importante” entre 77,3% e 72,5% dos entrevistados, respectivamente. Tais resultados indicam claramente que os entrevistados valorizam tanto a consulta aos cidadãos como o en-volvimento direto destes no processo de tomada de decisões.

Outro dado que contesta a visão gene-ralizada (inclusive entre os entrevistados) sobre o predomínio de um desinteresse pela política pode ser observado na Tabela 11: praticamente a metade dos entrevistados (48,4%, 374 em 768) afirmou que seria provável ou muito provável sua ação contra a aprovação, pelo Congresso Nacional, de uma lei considerada injusta. Apesar do pos-sível viés existente na pergunta, na medida em que a defi nição de algo como injusto já é um elemento central para a emergência de ações de contestação (Moore Jr., 1987), essa informação indica uma disposição para mobilização em defesa daquilo que os entre-vistados consideram justo, mesmo tratando-se de uma instituição bastante distanciada da vida do cidadão comum como é o Con-gresso Nacional.

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No entanto, o que importa destacar é o predomínio, entre os entrevistados, de um sentimento de que é improvável ou muito improvável que os membros do Congresso Nacional deem atenção a suas reivindicações (59,6%, 458 em 768). Na medida em que a ação política depende não apenas de um sen-timento de injustiça, mas também de uma crença na possibilidade de que esta ação se-ja efi caz para modifi car a situação injusta,10 os dados ajudam a explicar os signifi cativos obstáculos institucionais ao desenvolvimento de maiores níveis de confi ança entre a popu-lação em análise.

Conclusões

Com base nos dados da pesquisa Cultura Política na RMPA, realizada pelo Observa-tório das Metrópoles, o presente artigo demonstrou a ausência de sustentação em-pírica para a generalização do argumento que parece ter assumido uma posição de

verdade incontestável entre segmentos de pesquisadores e membros de agências de desenvolvimento; qual seja: que o associa-tivismo seria a fonte básica da confi ança e, assim, de capital social.

Ao contrário dessa relação causal direta e unidirecional entre associativismo e con-fi ança, os dados coletados entre a população da RMPA mostram um resultado aparente-mente paradoxal (do ponto de vista do ar-gumento acima): níveis relativamente altos de envolvimento associativo e, ao mesmo tempo, níveis muito baixos de confi ança in-terpessoal e político-institucional.

A análise mostra, por outro lado, que se sustentam os argumentos daqueles au-tores que, críticos do enfoque de Putnam, defendem a hipótese de que a confi guração e o desempenho político-institucional são fatores fundamentais para a determinação dos níveis de confi ança em um determinado contexto social. Nesse sentido, os dados da pesquisa indicam uma forte correlação entre o baixo nível de confi ança manifestado pelos entrevistados e a avaliação extremamente

Tabela 11 – Probabilidade de ação contra lei injusta em votaçãono Congresso Nacional e probabilidade de esta ação receber

atenção do Congresso Nacional – RMPA – 2007

Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.

Nível de probabilidadeAção contra lei injusta Atenção do Congresso Nacional

Entrevistados EntrevistadosNº % Nº %

Muito provávelProvávelImprovávelMuito improvávelNS/NRTotal

1492232677653

768

19,429,034,89,96,9

100,0

5318529516372

768

6,924,138,421,2

9,4100,0

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negativa dos mesmos sobre os atores e ins-tituições político-administrativos.

Esses resultados não devem ser vistos, no entanto, como suportes para a adoção do ponto de vista de que a confi guração asso-ciativa é irrelevante na análise da confi ança. Tal postura representaria a repetição, de forma inversa, do mesmo equívoco cometi-do por aqueles que desconsideram a impor-tância das condições político-institucionais. Retomando a citação de Berman no início deste artigo, o que se sustenta é a inexis-tência de um sentido pré-estabelecido nor-mativamente na relação entre confi guração

associativa e confi ança. Nessa perspectiva, ao contrário, a forma como a confi guração associativa incide sobre os níveis de (des)confi ança seria condicionada pelo contexto político-institucional.

Na medida em que este argumento estiver correto, observa-se que um dos de-safi os centrais da consolidação democrática no Brasil encontra-se menos na ampliação do tecido associativo11 e mais na constru-ção de instituições político-administrativas mais acessíveis, efi cazes e transparentes (e, assim, confi áveis) para todas/os cidadãs/ãos brasileiras/os.

Marcelo Kunrath SilvaMestre em doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Departamento de Sociologia, Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Rio Grande do Sul, Brasil)[email protected]

Soraya Vargas CôrtesDepartamento de Sociologia, Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Fe-deral do Rio Grande do Sul (Rio Grande do Sul, Brasil)[email protected]

Notas

* O presente arti go foi elaborado durante realização de pós-doutorado no Watson Insti tute for Inter-nati onal Studies/Brown University. Agradeço ao CNPq e à UFRGS, que propiciaram as condições para esta ati vidade.

(1) De fato, o conceito de capital social apresenta diversas e contrastantes defi nições. Não é objeti vo deste arti go, no entanto, inserir-se nesta discussão conceitual. Neste senti do, aceita-se aqui a perspecti va de Putnam (1993, 1996), para quem a confi ança é o componente central do capital social, visto como um bem público. Para esta discussão conceitual, ver Lin (2001), Portes (2000), Burt (2005).

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(2) Este survey foi realizado no período de 18 de março a 16 de abril de 2007, entrevistando 768 habi-tantes da RMPA, sendo 384 moradores do município de Porto Alegre e 384 moradores de outros municípios que integram a RMPA. Para uma análise sobre os limites dos dados de survey para análise de capital social, ver Foley e Edwards (1999).

(3) A literatura brasileira referente às dinâmicas associati vas, seja na vertente dos estudos sobre movimentos sociais, seja nas análises que adotam a abordagem da sociedade civil, tende a estar marcada por uma visão dicotômica das relações entre Estado e organizações sociais. Para uma críti ca aos limites analíti cos dessa perspecti va e uma defesa de uma abordagem relacional, ver Silva (2006; 2007)

(4) O título desta seção é uma alusão ao já clássico trabalho de Evans; Rueschemeyer e Skocpol (1985).

(5) Esse argumento, na verdade, possui uma longa linhagem. Talvez o mais clássico exemplo seja o trabalho de Norbert Elias (1993), que mostra a relação entre “civilização dos costumes” (que envolve, entre outras aspectos, o aumento nos níveis de confi ança) e construção dos Estados Nacionais europeus. Para o autor, a geração da confi ança necessária para o estabelecimento de relações sociais “civilizadas” dependeu, entre outros fatores, da construção de um contexto insti tucional específi co corporifi cado pelo Estado moderno.

(6) Neste arti go, pelos limites do material empírico disponível, não foram claramente diferenciadas as especifi cidades da confi ança interpessoal e da confi ança insti tucional. Para uma críti ca a essa falta de diferenciação na literatura sobre capital social, ver Smith (2006).

(7) Como destaca Santos (2006, p. 180) “O custo do fracasso das ações coleti vas pode ser bastante elevado, com signifi cati va deterioração do status quo dos parti cipantes, circunstância sufi cien-temente ameaçadora para deprimir o ânimo reivindicante dos mais necessitados. Ser pobre, no Brasil, é uma condição associada à altí ssima taxa de aversão ao risco e à opção por estratégias conservadoras de sobrevivência”.

(8) Moisés (2005) criti ca uma apreensão unidimensional da confi ança insti tucional, diferenciando cinco níveis de confi ança políti ca. Pelas limitações do material disponível para análise, não foi possível atender às disti nções analíti cas propostas pelo autor.

(9) De fato, os dados disponíveis não possibilitam analisar os mecanismos explicati vos da correlação entre desempenho insti tucional e níveis de confi ança. Assim, o presente arti go se limita à tenta-ti va de demonstração empírica de tal correlação, sem abordar sua explicação causal. Para uma disti nção entre correlação e explicação causal, ver Dessler (1991).

(10) Como salientam McAdam; McCarthy e Zald (1999, p. 26), existe um elemento mediador entre oportunidade, organização e ação, a saber, os signifi cados comparti lhados e conceitos por meio dos quais as pessoas tendem a defi nir sua situação. Resulta imprescindível que as pessoas, pelo menos, se sintam afetadas negati vamente por uma situação determinada e acreditem que a ação coleti va pode contribuir para solucionar esta situação. Faltando alguma dessas duas per-cepções, resulta altamente improvável que as pessoas se mobilizem, ainda que contem com a oportunidade de fazê-lo (destaque nosso).

(11) Estudos recentes (IBGE; IPEA; ABONG; GIFES, 2008) mostram um signifi cati vo processo de cresci-mento do associati vismo no Brasil.

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fundamentos da confi ança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA

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O confronto do OrçamentoParticipativo com as tradições representativas em São Paulo

Paulo Edgar da Rocha Resende

ResumoInstrumentos de participação direta da cida-dania como o Orçamento Participativo podem representar grande inovação na tomada de de-cisões de governos locais, favorecendo a trans-parência nas instituições, a inclusão de novos sujeitos políticos e a justiça social na distribui-ção de investimentos públicos. O alcance dessa participação, conduzida pelo Estado, terá sem-pre o limite estipulado pelo formato das insti-tuiçoes liberais e os interesses dos líderes que controlam essas instituições políticas. Neste artigo, são analizados como e por que o Orça-mento Participativo da Prefeitura Municipal de São Paulo (2001-2004) sofreu determinados contingenciamentos. Os resultados da pesquisa apontam como principais fatores as estratégias eleitorais e de governabilidade tomadas pelo partido e líderes políticos, as alianças de gover-no, a diversidade do perfi l de líderes políticos, as disputas por infl uenciar o orçamento público e o clientelismo enraizado nas práticas políticas locais.

Palavras-chave: democracia participativa; instituições liberais; governo local; cidadania; empoderamento.

AbstractInstruments of direct citizen participation, such as the Participatory Budget, may represent a big innovation in the local governments’ policy-making. Usually, they work by favouring more transparency in the political institutions, the inclusion of new political subjects and more social justice in the distribution of public resources. The scope of this participation, conducted by the State, will always be limited by the design of liberal institutions and the interests of leaders controlling these political institutions. This article discusses how and why the Participatory Budget of São Paulo’s municipal government (2001-2004) suffered certain constraints. The research results point to the electoral and governability strategies taken by the political party and leaders, the governmental alliances, the diversifi ed profi le of political leaders, the competition to shape the public budget and the clientelism rooted in local political practices, as the main causal elements.

Keywords: participatory democracy; liberal institutions; local government; citizenship; empowerment.

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Introdução

Os instrumentos de participação cidadã en-frentam enormes desafios e contradições nas instituições políticas liberal-representa-tivas. Ao mesmo tempo em que grupos po-líticos no estado conseguem abrir espaços para aumentar a infl uência dos cidadãos nas decisões políticas, essa abertura é obtida somente de forma dosada e controlada. O formato liberal das instituições estatais e os interesses dos líderes políticos que chegam através da representação a controlá-las são os fatores fundamentais que, de maneira deliberada ou não, limitam um “empodera-mento” mais amplo e radical dos cidadãos na política institucional.

Experiências de participação têm nas ultimas duas décadas se diversifi cado e di-fundido por governos locais de diversos paí ses do mundo. O Brasil, muitas vezes ti-do como referência pela fama que ganhou o Orçamento Participativo (OP) no municí-pio de Porto Alegre, foi palco de um dos maiores desafi os já visto à participação ins-titucional, ao desenvolvê-la no orçamento público de uma cidade com as dimensões e complexidades que representam São Paulo (Oliveira et ali., 2001). Apesar de notáveis resultados positivos que evidenciavam os esforços da Coordenação que administrava o programa, o OP de São Paulo encontrou limitações bastante importantes ao seu de-sempenho descentralizado e à efetividade de suas decisões.

Esses limites não foram causados por falhas metodológicas ou por falta de com-promisso político daqueles que o desenvol-veram, senão pelo programa estar ausen-te do planejamento central de atuações da

Prefeitura. Tal ausência deu lugar a estra-tégias eleitorais e de governabilidade to-madas pelo Partido dos Trabalhadores (da então prefeita Marta Suplicy, 2001-2004) e líderes locais, que envolveram alianças com quase todos os partidos presentes na Câmara Municipal e resultou no acesso de enorme diversidade de líderes políticos a cargos executivos. Com isso, o clientelismo esteve longe de ser erradicado, os projetos de consolidação de força política do partido ganharam prioridade e a participação fi cou relegada ao segundo plano no planejamento da cúpula governamental.

Neste trabalho, são apresentados re-sultados de pesquisa desenvolvida, em ní-vel de mestrado, sobre as particularidades do caso de São Paulo, embora entendemos que entraves à participação são intrínsecos a qualquer contexto local de instituciona-lidade liberal-representativa. O que não signifi ca inexistência de enorme variedade de resultados no desempenho de mecanis-mos institucionais de participação cidadã (Wampler, 2003). Apesar de que todas as experiências são limitadas, caso contrário estariam substituindo grande parte dos agenciamentos representativos das deman-das sociais, esses limites se constituem de modo diferenciado e em aspectos distintos da relação Estado-sociedade, conforme as especifi cidades locais. Ao cartografarmos a relação entre governantes e governados, estamos especialmente atentos às possibili-dades de liberdade dos cidadãos, que tor-nam sempre plausíveis a imprevisibilidade das linhas de fuga, dos fl uxos das múltiplas vias, que escapam das somas, consensos, acordos e linhas duras previstas e postula-das pelos liberais (Deleuze e Guattari, 1988; Foucault, 2003).

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Temos consciência de que ao enfocar os obstáculos político-institucionais detec-tados no Orçamento Participativo de São Paulo, são deixados de lado outros impor-tantes fatores que também podem incidir negativamente no desempenho de um ins-trumento participativo, como os relativos ao contexto cultural, social e econômico. A opção aqui é por identifi car aqueles elemen-tos no âmbito da própria estrutura estatal, que abrem e circunscrevem oportunidades de participação direta dos cidadãos nas de-cisões político-institucionais.

A participação desafi ando o liberalismo

Desde o princípio, o sistema político liberal caracterizou-se mais pela salvaguarda de interesses e direitos privados e individuais, como a propriedade e a segurança, que pela promoção de interesses públicos e coletivos. Buscou-se assegurar em primeiro lugar que os indivíduos pudessem estar pacifi camen-te separados e atuando por conta de seus interesses pessoais, para que pudesse ad-mitir que se unissem e lutassem em defesa da comunidade, da justiça ou da cidadania (Barber, 1984). O formato das instituições políticas, com seus dispositivos constitu-cionais e o monopólio estatal da violência, o testifi ca. O sistema de democracia liberal estabilizou a tensão entre democracia e ca-pitalismo através da

[...] prioridade conferida à acumulação

de capital em relação à redistribuição

social e pela limitação da participação

cidadã, tanto individual, quanto coletiva,

com o objetivo de não “sobrecarregar”

demais o regime democrático com de-

mandas sociais que pudessem colocar

em perigo a prioridade da acumu-

lação sobre a redistribuição. (Santos e

Avritzer, 2005. pp. 59-60)

De fato, para autores liberais da teoria de-mocrática contemporânea, a participação cidadã, se nutrida e maximizada, pode pôr em perigo a estabilidade do sistema, dimi-nuir o consenso nas normas e enfraquecer a poliarquia.1

A abertura dos governos locais à par-ticipação cidadã representa uma inegável ampliação dos espaços de prática cidadã e da própria democracia. Essa ampliação es-tá desafi ando uma reconstituição das ante-riores margens do sistema políticos no que diz respeito à participação cidadã: limites no “empoderamento” de cidadãos e de líderes políticos para que as bases das quais de-pende seu funcionamento não sejam altera-das. Nessas bases, fundamentais do Estado liberal, não se incluem a participação ativa e constante dos cidadãos no poder político, denominada por Benjamin Constant – um dos pais intelectuais do liberalismo – liber-dade dos antigos, em referência à democra-cia ateniense. O liberalismo seria a fundação da liberdade dos modernos, também deno-minada liberdade negativa, que é a liberdade individual de fazer tudo o que não afete a liberdade do outro em não fazer o que não é de sua própria vontade (Berlin, 1969). Tal liberdade se afi rma na autonomia individual em agir sem interferências externas. O que o sistema político tenta possibilitar pelo Es-tado mínimo e a segurança provida por suas instituições a um desfrute pessoal e pacífi co de bens privados (Bobbio, 1989).

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Autores precursores do liberalismo, co-mo Constant e mais contemporâneos como Berlin, entendem que a liberdade negativa é contraditória com a liberdade positiva, entendida como a capacidade individual de autogovernar-se. Se aceita interferências ex-ternas, desde que decididas de baixo para ci-ma, a partir desses indivíduos comuns. Para esses autores, a existência de uma liberdade impossibilitaria a existência da outra. O que fez com que a participação dos cidadãos no Estado se constituísse como a mínima ne-cessária para evitar a concentração de poder dos mandatários governamentais, ao invés de se ampliar com objetivos de maximizar o autogoverno (Bobbio, 1989; Macpherson, 1978). O confl ito está justamente no que se entende como a fi nalidade última da partici-pação cidadã.

As lutas pela ampliação e cumprimento efetivo dos chamados direitos fundamen-tais de primeira, segunda e terceira geração tem sido incessantes nos últimos 150 anos. Hoje, com amplo reconhecimento formal desses direitos em diversos países, ainda se podem encontrar elementos no Estado e na sociedade que impedem uma efetivação real desses direitos. A respeito da ampliação dos direitos civis e políticos, de primeira ge-ração, por exemplo, verifi ca-se que apesar da existência de líderes políticos dispostos a ceder espaços aos cidadãos na tomada de decisões, a cúpula do partido em que esses líderes se apóiam frequentemente está mais preocupada com sua concentração de poder e o fortalecimento de suas lideranças. Não se trata de conspiração contra a participação. É apenas condicionamento às regras do jogo, em que a sobrevivência político institucio-nal depende de disputas eleitorais e alianças com partidos, grupos sociais e econômicos.

Nesse jogo político, os mecanismos de par-ticipação entram pela transversal e ganham dimensão restrita o sufi ciente para não con-turbar o funcionamento do sistema.

Há questões sobre as quais a participa-ção política difi cilmente conseguirá alcançar. Os considerados inalteráveis e invioláveis direitos fundamentais do homem – a vida, a segurança, a propriedade privada – são garantidos constitucionalmente. Assim tam-bém são os demais elementos fundamentais para garantir a limitação do poder estatal: o controle do poder executivo pelo legislativo; o controle judiciário do parlamento sobre a constitucionalidade das leis; a descentra-lização estatal com relativa autonomia ante o governo central e um poder judicial inde-pendente do poder político (Bobbio, 1989).

Tomando a democracia em sua acepção liberal, método de prevenção do abuso de poder – através de eleições para controle de líderes –, a participação direta pode ser remédio complementário à participação in-direta, eleitoral. Mas quando atribuímos à democracia um signifi cado mais amplo, de igualdade não somente formal e jurídica, como também econômica e social, reconhe-cemos que essas igualdades democráticas só seriam alcançáveis pela maximização da participação cidadã a todas as questões que afetam ao povo como coletivo. Nesse caso, o obstáculo a superar é a própria existên-cia constitucional do Estado Liberal, que mantém uma distribuição desigual da pro-priedade, é incapaz de possibilitar igualdade de oportunidades entre todos os cidadãos e tenta pacifi car essa desigualdade através do monopólio da violência em mãos do Estado (Macpherson, 1978; Poulantzas, 1981).

Como visto, o sistema político vi-gente se compõe de elementos liberais e

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democráticos, e que, apesar de complemen-tários em muitos sentidos, ambos os ele-mentos têm diferencias que podem chegar a ser antagônicas. O confl ito da participação nesse âmbito se estabelece não somente com a forma tradicional na qual vem fun-cionando o sistema político, senão com os próprios fundamentos, apresentados mais acima, pelos quais o sistema se constitui. Esse desdobramento nos permite concluir que os limites políticos à ampliação da par-ticipação se deriva principalmente de or-dem estrutural, com efeitos no formato das instituições e nos interesses de líderes polí-ticos. É evidente que essas determinações não são absolutas, apesar de predominan-tes. Não só as instituições podem ser refor-madas para se adaptar às exigências de uma democracia participativa, como também os próprios líderes partidários não se unifi cam todos em torno de uma única racionalidade pré-determinada pelas práticas e normas institucionais.2 Se não fosse assim, não ha-veria experimentos participativos que desa-fi assem as rotinas liberal-representativas de fazer política. Nosso foco é buscar ilustrar com o Orçamento Participativo de São Pau-lo como essas consolidadas rotinas colocam freios às inovações de proximidade Estado-sociedade.

A aposta pela participação cidadã

Levando em conta a complexidade social, as especifi cidades de grupos minoritários, as carências da população de baixa renda e a defi ciência na representação de seus interes-ses, o distanciamento entre representantes

e representados, tudo com a consequente apatia pela democracia, verifi ca-se a urgên-cia de incorporar mais efetivamente a socie-dade às decisões políticas (Barber, 1984; Santos e Avritzer, 2005).

A baixa participação e a iniquidade so-

cial estão de tal modo interligadas que

uma sociedade mais equânime e mais

humana exige um sistema de mais par-

ticipação política. (Macpherson, 1978,

p. 98)

Com o envolvimento dos cidadãos na elaboração de políticas públicas, muitos governos locais têm encontrado soluções para melhorar a qualidade da democracia e dos serviços públicos, facilitando a atenção aos fragmentos da sociedade historicamen-te menos atendidos e com mais demandas acumuladas (Fung e Wright 2003). Com a participação, a identifi cação de problemas sociais tem sido mais ajustada à realidade, permitido maior transparência e controle da cidadania aos governos locais, gerando relações de proximidade e confiança. Es-tão sendo concedidos novos direitos aos cidadãos, com ampliação da liberdade e da responsabilidade, maior justiça social na distribuição de recursos públicos e fortale-cimento do espírito cívico e cooperativo nu-ma cidadania crescentemente ativa (Abers 2001; Avritzer, 2002; Baiocchi, 2005). Com a democracia participativa, os cidadãos deixam de ser meros receptores e passam a ser importantes protagonistas das políti-cas públicas (Oliveira et ali., 2001). Como adequação, os instrumentos de participação direta demandam novas rotinas adminis-trativas, visando a compatibilizá-los com as instituições representativas.

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Entre os diversos mecanismos de em-poderamento e participação,3 o Orçamento Participativo se destaca por transferir aos ci-dadãos o poder de decidir sobre o tema mais relevante da administração municipal: o orça-mento para investimentos públicos em obras e serviços. A disputa entre atores políticos, sociais e econômicos pelo poder de infl uen-ciar o orçamento municipal já é tradicional-mente elevada. Transferir aos cidadãos esse poder intensifi ca ainda mais a concorrência e a complexidade da composição do proces-so orçamentário. Em uma cidade como São Paulo – com enormes desigualdades sociais e complexas interações entre interesses pú-blicos e privados, além de intensas disputas por espaços e afi rmações de poder –, esses instrumentos oferecem enorme potencial de reinventar a esfera pública, equilibrando o acesso ao poder entre diferentes grupos sociais e de atender mais efi cientemente aos que necessitam mais atenção e investimen-tos governamentais (Oliveira et ali., 2001; Santos e Avritzer, 2005).

Executado anualmente entre 2001 e 2004, o processo do Orçamento Participa-tivo de São Paulo baseou-se na realização de assembléias simultâneas em todos os dis-tritos municipais, para as quais a população era convidada a participar propondo obras e serviços e elegendo delegados com mandato imperativo. As propostas mais votadas, de todas as regiões e setores de investimento municipal, eram analisadas pelo governo quanto à viabilidade técnica e hierarquizadas de acordo com critérios de justiça social.4 O procedimento de análise, negociação com o governo e ponderação entre propostas eram acompanhados pelos dois níveis de repre-sentantes populares – delegados, através do Fórum de Delegados, e conselheiros,

através do Conselho do Orçamento Partici-pativo (CONOP), instância máxima de deci-são popular do OP – eleitos nas assembléias e fóruns distritais e municipais. O processo se concluía em cada ano com a elaboração do Plano de Obras e Serviços, que se inseria na Lei Orçamentária Anual indicando os re-cursos a serem investidos pela Prefeitura no ano seguinte. A Lei era efetivada depois de aprovada pela Câmara Municipal, em sessão em que os conselheiros do CONOP tinham enorme disposição em assistir e pressionar os vereadores pela aprovação integral das propostas do OP .

A São Paulo de Marta, contextualizada

A perversa desigualdade na distribuição de direitos e recursos públicos

A desigualdade social em São Paulo tem proporções gigantescas e o desequilíbrio territorial na distribuição de infraestrutu-ras e equipamentos públicos entre centro e periferia é alarmante. A metrópole pode ser considerada uma das cidades mais comple-xas do mundo atual, pelos abismos existen-tes entre misérias e luxos, autoritarismos e libertações, organização espacial altamente planejada e auto-organização desordenada, mestiçagens étnico-culturais e higienizações sociais. Um dos maiores cenários de desi-gualdade econômica e de direitos políticos, sociais e culturais.

Enquanto a cidade produz quase 10% do PIB nacional6 e dispõe dos melhores

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hospitais e universidades do país, moder-nos complexos arquitetônicos e centros com tecnologias de ponta, nas áreas peri-féricas faltam as mais essenciais infraestru-turas urbanas. Desde asfalto, esgoto e ca-nalização de córregos até hospitais, escolas e pontos de ônibus. Apesar da enorme ca-rência por investimentos públicos nas áreas periféricas, a segregação espacial entre centro-periferia não é um retrato perfeito da distribuição de riqueza e bem-estar en-tre áreas da cidade. A partir dos anos 90, “os diferentes grupos sociais estão cada vez mais próximos, mas separados por muros e tecnologias de segurança, tendendo a não interagir, embora próximos” (Bógus e Pasternak, 2006, p. 26)

A pobreza de uma parte da população que está justo ao lado da riqueza produzida pelos grandes negócios e serviços especia-lizados, é terreno fértil para a prática po-lítica clientelista. Além das precárias con-dições de vida, o baixo nível de instrução educacional da maior parte dessa população facilita que se tornem vítimas de promes-sas de candidatos a cargos políticos. Entre tantas carências, a realização de qualquer obra já costuma ser uma grande realização na percepção de muitos cidadãos margi-nalizados, o que desperta o interesse pela manipulação em determinados pseudo-representantes. As decisões no Orçamento Participativo tendem a corrigir o destino dos investimentos públicos com bastante efi cácia e precisão de onde está localizado o problema e quais são os mais urgentes. Pesquisas recentes7 têm confi rmado a ca-pacidade redistributiva desses mecanismos, que melhoram os gastos públicos e permi-tem maior acesso a direitos fundamentais a populações marginalizadas.

Precário histórico de participação

No que diz respeito ao histórico da participa-ção no município de São Paulo, se destacam os conselhos gestores de políticas públicas. Esses órgãos estáveis se caracterizam pela precária efetividade e devolução das deci-sões tomadas e pela seleção das entidades sociais participantes. Em comparação com os Orçamentos Participativos, pode-se con-cluir que a segmentação do debate reivin-dicativo por temas específi cos impede uma visão geral da administração pública nos participantes e inibe a integração planejada das políticas municipais, já que os órgãos são setorizados (Tatagiba, 2004). Os con-selhos gestores acabam funcionando mais como órgãos técnicos para auxiliar o gover-no na tomada de decisões que como canais de interlocução dos cidadãos para transmi-tir suas demandas para a Prefeitura, o que se pode concluir por a participação estar dirigida a entidades, ao invés de a cidadãos individualmente, e pelo elevado nível educa-tivo e de renda dos conselheiros (Coelho e Veríssimo, 2004).

A autonomia dos conselhos ante o go-verno também era prejudicada pelo fato de que os presidentes de mais da metade dos conselhos ativos na cidade de São Paulo, durante o governo de Marta Suplicy, eram designados pelo responsável político da res-pectiva Secretaria do executivo municipal.8 Com o Orçamento Participativo, os conse-lhos ganharam nova funcionalidade, inte-grando a partir do segundo ano representa-ção no CONOP e participando da elaboração do Plano de Obras e Serviços.

Antes da gestão de Marta, a única tentativa pós a redemocratização que ten-tou desenvolver outros instrumentos de

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participação cidadã foi do governo de Luiza Erundina, também do PT, entre os anos de 1989 e 1992. Os espaços de participação descentralizada, chamados Núcleos Regio-nais de Planejamentos, foram executados nas 20 Administrações Regionais e tinham a tarefa de elaborar o Orçamento Público do ano seguinte. O projeto acabou sendo desestruturado pela Prefeitura em apenas 18 meses depois do início de suas ativida-des. Como alternativa, a então prefeita pôs em funcionamento um programa centrali-zado de audiências públicas sobre o orça-mento municipal que não obteve grande adesão por parte dos cidadãos e carecia de potencial deliberativo (Couto, 1995; Sán-chez, 1997).

Há vários motivos que explicam o fra-casso daquela tentativa de gestão participa-tiva descentralizada no primeiro governo do PT no município. Um dos principais proble-mas teria sido que a equipe de governo de Erundina estava presa a uma visão tecnocra-ta da gestão pública, sem ânimos para de-senvolver um programa de participação ver-dadeiramente aberto e “empoderado”.9 Mas também se verifi cou certa ausência de racio-nalização dos interesses dos distintos movi-mentos sociais participantes com as necessi-dades distritais e municipais, que difi cultou uma coordenação conjunta das demandas sociais com o planejamento (Kowarick e Singer, 1994). Faltou a estruturação de um órgão que implementasse metodologias par-ticipativas que fossem capazes de coordenar os procedimentos administrativos do gover-no local com as propostas dos cidadãos nas Administrações Regionais. Evidenciou-se um confl ito de competências entre os Secretá-rios Municipais de áreas temáticas – Educa-ção, Saúde, Habitação, etc. – e os dirigentes

responsáveis por áreas territoriais – as Ad-ministrações Regionais – na canalização das pressões dos movimentos organizados para a efetivação das políticas públicas municipais (Dias, 2006).

Rolo compressor em chaves políticas

A coalizão montada pela Prefeita Marta Su-plicy foi composta inicialmente pelo PT, PC do B, PCB e o minúsculo PHS, constituindo uma frente na Câmara Municipal com 19 ve-readores, que logo se acrescentou dois mais do PSB. No primeiro ano eram três partidos na oposição: PMDB, PP e PSDB. A partir do segundo ano, só se manteve o PSDB (ibid.). A construção do poder petista em São Paulo foi impressionante em termos de governa-bilidade. Em 2004, nada menos que 78% dos vereadores formavam parte de sua base aliada, o que signifi ca 46 de 55 represen-tantes políticos no legislativo. Com isso, a Prefeito conseguiu aprovar a maior quanti-dade de projetos do executivo em 15 anos: 57% dos submetidos à Câmara. Ao mesmo tempo, os projetos de autoria dos próprios vereadores obtiveram aprovação de somen-te 16,8% entre 2001 e 2003.10

Considerando que São Paulo é o maior colégio eleitoral do país e sua importância também se constitui pela potência na produ-ção econômica e intelectual, com efeitos na opinião pública de grande parte do país, as eleições municipais são fundamentais para os interesses nacionais dos partidos políticos. Além dos votos, do apoio da imprensa e dos formadores de opinião, há também as cola-borações fi nanceiras das empresas às cam-panhas eleitorais. Vale lembrar que os últi-mos dois presidentes da República tiveram

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a metrópole como base política. Construir um governo forte no município não garante o sucesso de uma candidatura para âmbito nacional, mas colabora com a construção de apoios efi cazes. Isso signifi ca que as políticas interpartidárias de fortalecimento político desenvolvidas no município têm grande pro-babilidade de fazer parte de uma estratégia mais ampla de alcançar o poder federal.

Práticas e instituições brecando a participação

O Orçamento Participativo de São Paulo foi especialmente vigoroso no que diz res-peito aos âmbitos temáticos sob delibera-ção popular;11 aos privilégios concedidos à participação dos mais marginalizados12 e na formação/qualifi cação de delegados e con-selheiros, eleitos para negociar com o go-verno13 (Sánchez, 2004b). Por outro lado, a experiência teve importantes limitações, como a escassa divulgação do programa e de suas realizações,14 o limitado alcance da convocatória de participantes,15 baixa exe-cução das propostas aprovadas em algumas áreas16 e pequeno volume de recursos alo-cados17 (Bello, 2007; Resende, 2008).

Para decifrar as causas dos proble-mas apontados acima, foi necessário veri-fi car a interação do programa formal de participação com as principais instituições representativas locais. Considerando como variável independente os interesses eleito-rais e de permanência no poder e como va-riável dependente a potencialidade da par-ticipação cidadã, identifi camos que essas instituições – o partido político à frente da administração da Prefeitura, o executivo e

o legislativo municipal – deveriam ser ana-lisadas nos seguintes elementos: a) Relação da cúpula e dos quadros do partido com o programa de participação; b) Dimensão e importância do programa dentro das atua-ções da Prefeitura e c) Admissão ou inter-ferências das demais forças políticas e ato-res legislativos do município no programa de participação. Com isso, encontramos na exploração do Orçamento Participativo de São Paulo quatro efeitos resultantes da in-tegração entre inovação participativa e tra-dição representativa, que impossibilitaram desenvolvimento mais amplo e eficiente da participação cidadã. O quinto elemento apresentou potencial de prejudicar o pro-grama, mas foi evitado pelos acordos de aliança partidária.

1) Subordinação do programa de partici-pação cidadã a estratégias de visibilidade e apoio político;

2) Clientelismo, como canal de endereça-mento de demandas dos cidadãos;

3) Política de alianças e coalizão de governo, com a contraparte de cargos do executivo;

4) Perfi l heterogêneo de líderes do governo;

5) Interesse de vereadores pela composi-ção do orçamento público.18

Estratégias de visibilidade e apoio político

As estratégias políticas, com finalidades eleito rais ou de aquisição/afi rmação de po-der, adotadas pelo partido que administra-va o governo local, foram um dos principais elementos de obstrução político-institucio-nal do potencial de alcance do Orçamento

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Participativo de São Paulo. Consideramos a forma como atuações determinadas por lideranças do PT repercutiram na experiên-cia, debilitando-a em diversos âmbitos e possibilitando a ocorrência de elementos limitadores, que desenvolveremos nos pró-ximos tópicos.

Muitas das estratégias políticas adota-das nas instituições representativas fogem das regras formais estabelecidas e são con-formadas de acordo com os contextos de balança de poder, de redes políticas (policy networks), e interesses determinados dos atores. Blanco formula duas questões cru-ciais para entender os componentes ex-plicativos a que nos referimos: Por que os políticos valorizam a participação? Por que, por exemplo, sem ter a obrigação legal de fazer Orçamentos Participativos, fazem tal programa? (Blanco et ali., 2005). A questão ganha relevância quando levamos em conta, por exemplo, resultados de estudos demons-trando que os instrumentos de participação cidadã têm efeitos incertos nas eleições (An-duiza et ali., 2005). À diferença de outras políticas públicas, colocar em funcionamento instrumento de participação, independente-mente do grau de sua efi ciência e efetivida-de, não parece ter grande impacto eleitoral a favor do partido que lidera o município.

Entender os motivos que podem fa-zer com que um líder ou um grupo político ponha em funcionamento um instrumento de participação nos ajuda a compreender o porquê de não fazê-lo. À nossa leitura, os mesmos motivos para não fazer participa-ção servirão também para aproximar-nos a uma explicação de por que são postos limi-tes nos instrumentos participativos. A pes-quisa conduzida por Blanco (Blanco et ali., 2005,) detectou três grandes razões pelas

quais é mais provável o surgimento dessas experiências de inovação democrática:

1) Razões de perfil ou de trajetória da participação cidadã. Estão relacionadas com a estrutura social da organização e da lógica subjetiva dos promotores da par-ticipação. Dividem-se em duas categorias: a) organização que promove: concepção ideológica da democracia, composição social do partido, organização interna do partido; b) pessoa que promove: concepção pessoal de democracia, experiência política, trajetó-ria político-associativa, formação pessoal.

2) Razões estruturais ou de contexto. De-pendem das condições “ambientais” propí-cias para o surgimento de novas oportuni-dades de participação política no município: tamanho do município, características socio-econômicas, correlação de forças políticas, sistema de partidos, cultura participativa e associativa da população, antecedentes par-ticipativos, existência de instituições que promovem, estimulam ou assessoram a participação;

3) Razões estratégicas ou instrumentais. São compostas pelos interesses dos atores políticos que põem em funcionamento a participação: a) reforçar-se politicamente buscando obter créditos eleitorais, criando alianças e cumplicidade com os movimentos sociais; reforçar-se dentro da Prefeitura ou equipe de governo ou alterar o balanço de poder na sociedade; b) melhorar a toma-da de decisões para legitimar publicamente decisões já efetivadas, para deslocar as res-ponsabilidades à cidadania, para mediar con-fl itos entre coletivos sociais opostos ou para aumentar a efi ciência das decisões.

Algumas dessas razões estratégicas ou instrumentais, especialmente as relacionadas

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com a possibilidade de obtenção de benefí-cios próprios, são utilizadas por autores do âmbito das teorias de rational choice, como Navarro (1999), para explicar os problemas de origem política da participação cidadã di-reta. Para esse autor, a única variável inde-pendente capaz de explicar o fenômeno são os interesses dos partidos e líderes políticos locais em fortalecer-se no poder. O limite dessa perspectiva se manifesta em restringir a diversidade de lógicas possíveis que justifi -quem a atitude, seja em prol ou em contra, desses atores políticos aos instrumentos de participação. Não apenas são mais diversos os interesses que podem afetar a participa-ção, senão que os próprios impulsores são mais complexos e nem sempre se compõem de atores unitários e movidos sob uma única razão, como veremos mais abaixo no caso de São Paulo.

Nossa perspectiva vai mais ao encontro da que assimilamos de Blanco: o impulso e o empenho de atores políticos para implemen-tar e fortalecer programas de participação estão determinados pela combinação de ele-mentos do contexto histórico, institucional, político, social e cultural; das circunstâncias estratégicas desses atores e também de seus perfi s político-ideológicos. Combinando es-ses fatores entre si e entre os diferentes líderes políticos no governo local, se condi-cionará o resultado do programa de partici-pação cidadã.

No caso de São Paulo, foram detecta-das atuações centralizadoras da cúpula do PT, com perspectivas de fortalecer-se no poder e construir bases de apoio para futu-ras eleições – particularmente as presiden-ciais de 2002 e as municipais de 2004 –, que acabaram reduzindo a importância do Orçamento Participativo no processo de

decisões da Prefeitura (Wampler, 2003). Essa conclusão pode ser constatada a partir de: a) troca de lideranças durante a cam-panha eleitoral – de Félix Sánchez, da De-mocracia Socialista, para Rui Falcão, mais próximo da Prefeita e dos líderes do campo majoritário; b) insignifi cante infraestrutura dada para o começo dos trabalhos do OP em 2001; c) status de Coordenadoria e não de Secretaria para sua administração; d) centralização e decisão técnica para inves-timentos de grande visibilidade, como os CEUs;19 e) ampla política de alianças, que implicava o apoio de quase todos os parti-dos àquela gestão e ao PT nas eleições mu-nicipais seguintes (Resende, 2008).

É evidente que essas atuações do partido foram determinadas com base no contexto social, político e econômico de São Paulo naquele momento e pelo perfi l político-ideo lógico de líderes da tendência majoritária. Também podemos deduzir que esses líderes visavam à concentração de po-der e ao êxito eleitoral. Entretanto, permi-tiram o funcionamento e até o crescimento do poder de infl uência do Orçamento Parti-cipativo, apesar das limitações. O que a aná-lise nos permite é visualizar a complexidade na qual um setor do partido e da prefeitura empregou forças no programa, enquanto a cúpula o aceitava com reservas. Está claro que a execução do OP foi baseada em moti-vações diversas as quais não parecem incluir o fortalecimento do poder próprio daqueles que o conduziram. Seus entraves ocasiona-dos pela cúpula até que poderiam ser en-tendidos dessa forma, embora uma maior divulgação do processo de participação e apoio para sua execução tivessem elevada capacidade de trazer benefícios eleitorais sob a bandeira da efi cácia e modernização

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da administração pública. O mais provável é que, devido ao perfi l ideológico dos líde-res da cúpula do PT e da Prefeitura de São Paulo e considerando seus vínculos sociais, a preferência tenha sido pelas alianças com setores mais conservadores da sociedade e do espectro político. Esses setores apresen-tam sérias resistências aos instrumentos de ampliação democrática, por oferecerem o risco de desviar o foco das decisões políti-cas da classe mais privilegiada – onde seus vínculos mais fortes estão constituídos –, em direção aos estratos sociais de mais bai-xa renda, podendo afetar privilégios, inves-timentos e status-quo.

A cultura clientelista e a busca personalista por votos

O clientelismo como prática política se constitui quando o controle dos cidadãos às estruturas governamentais é limitado ou inexistente, facilitando o uso privado de recursos públicos. Quando entendido co-mo apoio em forma de voto pelo cidadão ao representante político que lhe concedeu benefícios privados, sua existência só é pos-sível em governos representativos (ver Leal, 1986). Apesar da ampla utilização de agen-tes captadores de votos, estes raramente conseguem a realização dos investimentos públicos prometidos à sua clientela (Whi-taker, 1992).

É importante lembrar que, no Bra-sil, práticas de clientelismo derivaram de relações “político-pessoais”, em que o “ci-dadão-cliente” estava preso ao “coronel” ou líder local por laços extraeconômicos de fi delidade.20 Foi sustentado, sobretudo,

pela dependência de enormes contingentes populacionais de baixa renda e marginaliza-dos aos recursos e investimentos estatais, o voto direto em listas abertas, o voto obri-gatório e a opacidade das instituições polí-ticas (Faoro, 1958; Leal, 1986; Carvalho, 1997). Na cultura urbana no Brasil, a prá-tica se confi gurou como “processo de incor-poração das massas populares na política, sob o controle das classes economicamente dominantes” (Kowarick; Camargo et ali., 1976, p. 108).

O clientelismo é inimigo direto dos ins-trumentos de participação cidadã, enquanto esses instrumentos atuam suprimindo tais práticas de favoritismo nas instituições pú-blicas. A incompatibilidade entre ambos é inequívoca, dado o confl ito imanente entre interesses privados e interesses públicos, entre “homens naturais” e “homens artifi -ciais”,21 entre instituições políticas opacas e instituições políticas permeáveis ao controle e infl uência direta dos cidadãos. Os efeitos do clientelismo nas mesmas estruturas ad-ministrativas que o Orçamento Participativo são percebidos principalmente na concor-rência pela canalização de demandas sociais aos investimentos públicos. Muitos cidadãos e líderes comunitários recebem incentivos para confi ar suas petições em diálogos pri-vados e bilaterais com líderes políticos, em troca da mobilização de votos para seus “padrinhos”. Como consequência, o orça-mento público municipal pode acabar tendo parte de sua composição baseada em méto-do personalista (Resende, 2008).

Em São Paulo, durante o período es-tudado, essas práticas que pervertem a fi nalidade pública das instituições governa-mentais acabaram desestimulando cidadãos

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a participar das assembléias do OP, e fez com que as subprefeituras tivessem dois ti-pos concorrentes de demandas a atender:22 de vereadores aliados, que transmitiam as demandas de comunidades em que tinham laços pessoais com movimentos e líderes comunitários, e as decididas por cidadãos, através de assembléias do OP (Resende, 2008). Além disso, nos dois últimos anos da administração, a Secretaria Municipal de Habitação incorporou militantes da UMM, União dos Movimentos de Moradia, em seu quadro de funcionários, facilitando que ti-vessem canal exclusivo para encaminhar demandas à Secretaria (Cavalcanti, 2006). O clientelismo está tão consolidado no mu-nicípio que Rizek chega a questionar “se a experiência do OP, por suas fragilidades e apesar de ter se confrontado com as prá-ticas clientelistas, não acabou por ter de administrar aquilo que escapou dessas prá-ticas” (2007, p. 146).

Independentemente da centralidade que faltou ao Orçamento Participativo no governo municipal, o clientelismo desesti-mula a ação coletiva, a organização e a mo-bilização social. Em meio àquelas práticas, os laços entre indivíduos se estabelecem em torno do acesso a um líder, ao invés de bus-cas por cooperação horizontalizada (Abers, 1998). Como já mencionado, entre partici-pação e práticas clientelistas, estabelece-se relação de soma zero, em que o êxito de um corresponde ao fracasso do outro. Como exemplo, a pesquisa da autora demonstra que o Orçamento Participativo de Porto Ale-gre pôde evitar o clientelismo de áreas mais pobres da cidade, com o fortalecimento da sociedade civil e a mobilização dos cidadãos para novas arenas reivindicativas.

As políticas de alianças e coalizões de governo

No agigantado multipartidarismo brasileiro é quase impossível governar sem a formação de alianças, como em geral ocorre na maio-ria dos países de democracia representativa multipartidária. Embora no presidencialismo o chefe do executivo não dependa de apro-vação do legislativo para a posse do cargo, resulta praticamente fundamental a obten-ção de apoio de maioria dos parlamentares para a obtenção de uma governabilidade ra-zoável. Nos sistemas parlamentaristas com mais de dois partidos, essas coalizões são condições quase imprescindíveis para a exis-tência do executivo. Para a própria demo-cracia, alianças e governos de coalizão são importantes recursos para evitar o excesso de poder dos representantes executivos, funcionando como espécie de contrapeso. As alianças geralmente podem ser defi nitivas, enquanto durar o mandato, ou temáticas, por projetos ou tipos de projetos (Dodd, 1976; Laver e Schofi eld, 1990).

As trocas de apoios partidários ou de parlamentares por cargos no executivo é prática comum nos legislativos brasileiros. Permite melhores perspectivas para a go-vernabilidade, embora colabore com a exis-tência de práticas clientelistas. Os partidos mais suscetíveis a alianças por cargos são aqueles cujo fi siologismo torna imprescin-dível a permanência no governo.23 Além de pouco aptos a permanecerem na oposição, estes partidos costumam carecer de vínculos amplos com movimentos sociais.

Com o objetivo de obter sólida go-vernabilidade na Prefeitura de São Paulo e apoios para as eleições seguintes, a cúpula

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do Partido dos Trabalhadores fez acordos com quase todos os partidos com represen-tação na Câmara Municipal. A coalizão per-mitia aos legisladores designar pessoas de confi ança para cargos políticos do executivo municipal, sobretudo nas subprefeituras. Is-to gerou problemas na execução descentra-lizada do programa participativo, afetando a convocação de participantes, a organização de assembléias, a execução de obras atribuí-das às subprefeituras e certa permissividade às práticas clientelistas de vereadores alia-dos. Também foi verificado que determi-nados vereadores pressionavam os subpre-feitos para executarem obras e serviços de interesse da comunidade com que tinham vínculos. A atitude prejudicou uma maior atenção dos órgãos descentralizados às pro-postas do OP e seccionou o compromisso do representante político com toda a cidade (Resende, 2008).

Considerando que muitos indicados pelos vereadores a ocupar cargos públicos não tinham afinidade com a tendência da prefeita, já que de outro modo não seria necessário “comprar” o apoio do parlamen-tar através de cargos, a efi ciência na gestão da máquina pública fi cou seriamente com-prometida com as alianças. O Orçamento Participativo, como programa de inovação da prática democrática, que rompe com a tradição política e requer importantes mu-danças nas atuações e concepções de ges-tão pública, foi efetivamente obstaculizado, por sua execução ser dependente do poder de decisão dos contemplados com cargos. Mesmo havendo setores do governo que promoveram a participação, buscando neutralizar oposições de membros da coa-lizão, a inovação encontrou resistência em setores da Prefeitura administrados por

representantes resistentes a um maior en-volvimento da cidadania em decisões impor-tantes (ibid.).

Soluções plausíveis para conciliar o Or-çamento Participativo com as coalizões polí-ticas seriam a concessão de cargos para seto-res que não afetem a participação, assim co-mo a submissão do acordo de coalizão à não debilitação de nenhum aspecto do programa participativo. Isso demandaria compromisso maior da cúpula da prefeitura com o OP e organização institucional que permitisse aos líderes do executivo municipal garantir os setores da administração envolvidos na par-ticipação cidadã. Entretanto, o custo político de limitar o poder de infl uência de aliados necessita uma dupla consideração que le-ve em conta aos interesses estratégicos, a correlação de forças, os objetivos do instru-mento de participação, o compromisso com a cidadania e suas demandas mais urgentes e a disposição em superar as práticas políti-cas predominantes.

A heterogeneidade da equipe de governo

É importante destacar que a falta de con-senso ao programa participativo na equipe de governo não é gerada apenas pela ampla aliança interpartidária. A própria composi-ção social do partido que controla a Prefei-tura pode resultar em grande diversidade de perfi s ideológico-administrativos na equipe de governo, que, em muitas ocasiões, pro-voca notável heterogeneidade no desenvol-vimento das políticas públicas. Em grandes estruturas administrativas, o problema exige especial organização institucional, ou de au-toridade dos líderes, para evitar que aliados

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deixem de se comprometer com a política participativa.

Na realidade, a heterogeneidade da equipe de governo, seja ocasionada pela aliança ou pelos quadros do partido, pode causar obstruções. Entretanto, considera-mos que programas como o Orçamento Par-ticipativo são especialmente mais sensíveis, devido a três fatores: a) o programa, muitas vezes, é posto em funcionamento sem uma lei que o regulamente; b) é um dispositivo de composição e defi nição transversal a di-versos ou a todos os setores de atuação mu-nicipal; c) os ocupantes de cargos públicos eletivos buscam muitas vezes contar com estratégias pessoais de canalização de de-mandas cidadãs, mantendo laços personalis-tas com movimentos sociais e organizações comunitárias. O encarregado de um setor, com elevada capacidade de investimentos da Prefeitura, independentemente de que seu partido seja líder do governo ou aliado, naturalmente terá expectativas de usar seu poder para decidir onde investir parte do di-nheiro público que lhe cabe administrar. O enfrentamento com o programa participati-vo será claro, além disso, se seu perfi l e o contexto sociopolítico de sua área adminis-trativa não lhe motivar a métodos de deci-são participativos.

Em São Paulo, durante o período es-tudado, a heterogeneidade de líderes do PT ocupando cargos mais altos do executivo municipal afetou o modo com que propos-tas aprovadas pelos cidadãos no OP fossem efetivadas. Algumas secretarias, como a de Educação, buscavam executar quase a tota-lidade das propostas. Outras, como a Secre-taria de Saúde, em algumas ocasiões, sele-cionava propostas que correspondiam com o que já havia sido decidido como prioritário

pelos técnicos. A Secretaria de Habitação concedia maior atenção a canais paralelos de participação, como o Conselho Municipal de Habitação, onde havia grande presença de associações com laços estreitos com o secre-tário. Este e outros setores, como meio-am-biente, transportes e segurança, deixaram de executar grande parte ou a totalidade das propostas aprovadas pelo Orçamento Participativo (Resende, 2008; Bello, 2007; Rizek, 2007).

É evidente que o esforço para garantir o bom funcionamento da participação não depende somente da aceitação de técnicos e líderes do governo sobre determinado projeto. Depende, principalmente, de que a cúpula do executivo esteja sufi cientemente empenhada em potenciar o programa. Es-se empenho deve ser refl etido desde a for-mação do governo, com seleção de líderes administrativos preparados e comprome-tidos com a participação, até a formatação institucional das instâncias na qual o OP se insere.24

Confl ito do OP com o Legislativo: a disputa pelo orçamento

O interesse de vereadores pelas emendas à Lei Orçamentária é bastante notável no sistema político brasileiro, visando a per-mitir a reeleição. Com isso, os vereadores de grandes cidades se vêm obrigados a empreender estratégias eleitorais durante seu mandato no legislativo. Muitos mantêm contatos estreitos com comunidades que lhes podem render votos, buscando benefi -ciá-las com investimentos e demonstrando aos moradores seu poder de infl uência na administração pública municipal. Quando

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o executivo abre brechas, os vereadores se apropriam de bairros e fazem com que a Prefeitura execute obras e serviços que lhes poderão proporcionar benefícios elei-torais. Quando o executivo não concede es-se poder ao vereador, de qualquer forma, o parlamentar ainda pode propor emendas ao orçamento público, com a fi nalidade de exibi-las à sua base eleitoral. O não cumpri-mento da emenda pelo executivo mostrará a falta de compromisso não do vereador com a comunidade, mas sim da Prefeitura (Whitaker, 1992).

Ainda que pareça legítimo e recomen-dável que um vereador, como representan-te político do legislativo, busque auscultar demandas de cidadãos diretamente nas comunidades, o afã de beneficiar-se elei-toralmente pode comprometer a efi ciência administrativa. O planejamento estratégico do município pode acabar sendo substituído pela fragmentação do território em áreas de infl uência de vereadores. “A racionalida-de político-social tende a se submeter à ra-cionalidade político-eleitoral, seja na pers-pectiva individual do vereador, seja den-tro de uma estratégia político-partidária” (ibid., p. 28). O resultado é que vereadores deixem de ser representantes do povo para se tornarem “delegados dos interesses de certas áreas da população (bairros, cate-gorias profi ssionais, grupos étnicos ou re-ligiosos, etc.)” (Kowarick; Camargo et al., 1976, p. 109).

As relações entre Orçamento Participa-tivo e a Câmara dos Vereadores são “inevi-tavelmente tensas”, porque “o OP cria um estorvo ao exercício das práticas tradicio-nais de clientelismo” e introduz “critérios públicos, objetivos e impessoais de toma-da de decisão a respeito da distribuição de

recursos públicos” (Pontual, 2005, p. 112). Entretanto, há medidas possíveis para que a relação com o Legislativo seja mais saudá-vel, como, por exemplo, permitir que parla-mentares participem de todo o processo do OP, sem que desfrutem do direito de voto ou que o Conselho Municipal do Orçamento Participativo (CONOP) tenha representante da Câmara Municipal.

Formalmente, o papel do legislador é “a produção de leis, a discussão dos temas e prioridades da cidade, assim como a apro-vação, o acompanhamento e a fi scalização da execução orçamentária” (ibid., pp. 112-113). De acordo com Pontual, alguns verea-dores do PT estariam dispostos a analisar a proposta orçamentária, composta pelo Conselho do OP, e ao encontrar algum de-sacordo, a discutiria e sugeriria alterações aos cidadãos participantes. É necessário destacar que o diálogo entre vereadores e conselheiros do OP pode resultar levemente difi cultoso. Muitos dos participantes do OP mais politizados e independentes demons-tram ter receios de perder a autonomia por suas decisões e serem cooptados por repre-sentantes políticos.

Na Prefeitura de São Paulo adminis-trada pelo PT de Marta Suplicy, a equipe da hierarquia mais alta do governo resol-veu parcialmente a questão da confl itividade dos vereadores com o OP a través da ampla política de alianças. Os cargos no executivo viabilizados pelas alianças eram em troca do total apoio de vereadores às propostas de lei do executivo. Os legisladores seguiram pro-pondo emendas ao orçamento, elaborado pelo CONOP e por órgãos do executivo, mas já sabiam que suas alterações não seriam implementadas pelas Secretarias centrais da Prefeitura. As emendas, nesse caso, tinham

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objetivo apenas fi gurativo, com a função de serem exibidas nas comunidades em que possuíam mais vínculos. A essas comunida-des, como já comentado anteriormente, se buscava benefi ciar através de pressões dire-tas às subprefeituras para execução de obras e serviços pequenos (Resende, 2008).

Conclusão

Os limites político-institucionais à participa-ção em São Paulo, gerados pela democracia liberal-representativa, como a centralização de decisões na cúpula do partido, as coali-zões de governo e o clientelismo, embora não sejam intrínsecos ao funcionamento de democracias liberais, são gerados pela pró-pria lógica de funcionamento desse sistema político. A disputa eleitoral para seleção de representantes políticos para cargos majori-tários e proporcionais é sua dinâmica funda-mental e concentra grande parte de interes-ses de políticos profi ssionais. Mas não são apenas os interesses de poder de represen-tantes políticos que determinam seus com-portamentos no governo. É necessário con-siderar, fundamentalmente, a cultura políti-ca em que estão inseridos, as regras das ins-tituições políticas em que atuam, a ideologia político-administrativa, o desenvolvimento histórico que compõe suas preferências, as-sim como os laços que possuem com grupos organizados da sociedade e o nível associati-vo e reivindicativo dos cidadãos.

Diferente da corrupção, que é claro desvio de condutas, a centralização de deci-sões em cúpulas e as práticas personalistas de busca de apoios eleitorais são compor-tamentos, até certo ponto, aceitáveis por

diversos setores da sociedade brasileira e caracterizados como estratégia política. Ao mesmo tempo em que as democracias liberais pretendem que a maioria dos cida-dãos tenha parte de seus interesses repre-sentados em governos eleitos, provocam também a falta de representação de ou-tros cidadãos com baixa capacidade de in-fl uência. Esses cidadãos, ou minorias, são potenciais vítimas de promessas e favores de caráter clientelista. Mas não são apenas vítimas. Aqueles grupos organizados que preferem o caminho mais curto de acesso ao poder, para encaminhar suas demandas, constituem-se em importantes coagentes do clientelismo.

Desenhos institucionais como os do sis-tema político brasileiro, de eleições em listas abertas, conseguem facilitar a existência de práticas políticas em que interesses pessoais de permanência no poder se sobrepõem ao bem comum. Seguramente, reformas no de senho das instituições políticas poderiam mudar ou suavizar esses confl itos. Mas não se pode afi rmar que eliminariam qualquer conflito de interesses entre cidadãos, dis-postos a participar diretamente de decisões, e representantes com receios de ceder o po-der obtido pelas eleições. Em nossa perspec-tiva, as regras formais das instituições polí-ticas não podem ser analisadas isolando-as de práticas dos atores, pois aquelas só são relevantes para os cidadãos, pelo uso que se faz delas. Ainda que os confl itos possam ser suavizados por gestão pública efi ciente e atenta a essa questão, seu aparecimento seguirá eminente.

É importante enfatizar que não consi-deramos que a participação cidadã seja in-compatível com o sistema liberal-represen-tativo. Mas sim que o fl uxo desse sistema

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político, de reprodução por via eleitoral, tem elevada capacidade para gerar práti-cas políticas que são contraditórias com uma ampla e efetiva participação direta de cidadãos nas decisões públicas. O que não signifi ca que essas tensões possam ser eli-minadas por determinados formatos insti-tucionais e práticas políticas coerentes com a participação. Significa que, paradoxal-mente, são obstáculos fundamentais para a intensifi cação ou radicalização da prática democrática, ao mesmo tempo em que se constituem em instituições imprescindíveis para a existência dos instrumentos de de-mocracia participativa.

Os elementos de confl ito entre a parti-cipação e a dinâmica das instituições liberal-representativas, que revelamos a partir do caso de São Paulo, não são absolutos nem exclusivos, mas servem para comprovar a existência desse tipo de confl ito. Com isso não queremos dizer que os instrumentos de participação não devam ser desenvolvidos ou aperfeiçoados. Ao contrário, os atores polí-ticos, interessados em pôr em funcionamen-to um avançado instrumento de participação poderão levar em conta esses obstáculos. O que oferece condições de favorecer a arti-culação dos elementos necessários para po-tenciar essas experiências, assim como para reformar as instituições representativas, de forma que possibilite uma mais radical am-pliação dos espaços democráticos.

O número crescente de experiências participativas prova que é possível conciliar participação com representação. Os efeitos positivos dessas experiências na sociedade demonstram que são recomendáveis à ges-tão pública. Aperfeiçoam o sistema repre-sentativo e ampliam espaços de prática ativa da cidadania. Muitas dessas experiências,

entretanto, estão em fase germinal e neces-sitam empenho de representantes políticos e de cidadãos, assim como pesquisas cien-tífi cas, para que se fortaleçam como instru-mentos importantes de tomada de decisões políticas.

Se for correta a máxima de La Boétie, “cada povo tem o governo que merece”, dependerá mais dos cidadãos que da classe política, que haja ágoras, em que todos pos-sam participar direta ou semidiretamente de decisões que afetam a todos. A pressão da sociedade organizada e de indivíduos autô-nomos tem que ser suficientemente forte para que esses espaços de empoderamento sejam abertos e potencializados. Estaria a maioria dos cidadãos preparada e interessa-da em forçar os governos a abrirem espa-ços em que possam participar ativamente de suas decisões mais relevantes? A pergunta se faz mais relevante se consideramos que a maioria nem sequer confi a ou acredita no sistema, basta ver as pesquisas mais recen-tes do Latino-barômetro.25 Estará o desti-no de nossos governos condenado ao que a cultura liberal provocou na maioria dos cidadãos, apatia política e desinteresse pela comunidade? É evidente que a história ainda não terminou. As experiências de Orçamen-to Participativo podem representar o início de uma fase em que os governos vão se tor-nando cada vez mais abertos e próximos aos cidadãos. Dependerá das pressões da socie-dade para evitar que esses instrumentos se tornem mais uma ferramenta legitimadora de decisões já tomadas, docilizando possí-veis contrariedades.

O grande desafio para os instrumen-tos de participação dos cidadãos nas deci-sões políticas é lograr que as forças de fl uxo bottom -up sejam no mínimo paritárias às

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forças estatais, de ordem top-down. Ou, aludindo a Deleuze e Guattari (1988), que as estruturas “arbóreas” da burocracia es-tatal sejam pouco a pouco carcomidas pelas redes “rizomáticas” de criação e ação política coletiva. A democracia participativa, em sua modalidade de instrumentos institucionais de participação cidadã, apesar de seu poten-cial de transformação social e da prática po-lítica, parece se constituir mais no âmbito do porvir previsível e retilíneo, ainda que por linhas fl exíveis, que do devir transgressor e imprevisível foucaultiano (Foucault, 1979 e 2003). Isso se deve principalmente por ser posta em prática e controlada a partir do Estado, dentro de uma ordem institucional dominada de checks and balances, em que se evita qualquer excedente de poder popu-lar que possa desestabilizar a ordem do sis-tema estabelecido.

A democracia liberal, mesmo integran-do dispositivos participativos aos represen-tativos, está sempre disposta a determinado limite de incorporação da vontade popu-lar. Dimensão que uma democracia radical, muito além dos Orçamentos Participativos, tende a romper. A expectativa que busca-mos alimentar com a participação e incidên-cia direta dos cidadãos no Estado é que essa participação saia do plano administrativo, da organização procedimental, e maximize a afi rmação plano político horizontalizado até a imprevisibilidade da consistência democrá-tica. O que envolveria diversos aspectos da vida cotidiana, sem carecer de uma institu-cionalidade limitadora. As incertezas de tal cenário trazem riscos, mas também a pos-sibilidade de radicalização da democracia, desconstruindo, em algum grau, a separa-ção entre Estado e sociedade.

Paulo Edgar da Rocha ResendeBacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, possui Diploma de Estudos Avançados em Ciências Políticas pela Universidade Autônoma de Barcelo-na e é Doutorando em Políticas Públicas e Transformação Social nessa mesma universidade. Bolsista do programa de Formação de Professores Universitários (FPU) do Ministério de Ino-vação e Ciências da Espanha, colabora como pesquisador no Instituto de Governo e Políticas Públicas (IGOP) (Barcelona, Espanha)[email protected]

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Notas

(1) Nos referimos sobretudo a Dahl (1956), Sartori (1962), Schumpeter(1966) e Hunti ngton, Crozier e Watanuki (1975). Para uma críti ca a esses autores desde uma perspecti va parti cipati va, ver, entre outros: Pateman (1970) e Macpherson (1978).

(2) Para uma elaborada críti ca ao racionalismo individualista e à teoria de Rati onal Choice, ver Shapiro e Green (1994).

(3) Para uma ampla ti pologia de instrumentos de parti cipação, ver OIDP, 2007.

(4) Esses critérios serviam para priorizar a distribuição de obras e serviços entre os 96 distritos, pon-derando por: a) porcentagem da população do distrito que parti cipou das assembléias; b) popu-lação total do distrito e c) carência distrital do serviço ou equipamento público.

(5) Sobre as dinâmicas de funcionamento e os signifi cados do Orçamento Parti cipati vo de São Paulo, ver Sánchez (2004a) e para versões mais extensas Sánchez (2004b) e Dias (2006).

(6) Fonte: IBGE, “Posição ocupada pelos 100 maiores municípios em relação ao Produto Interno Bru-to”, 2003.

(7) Marquetti (2003); Campos, Marquetti e Pires (2007).

(8) Sobre a composição social dos conselhos gestores na cidade de São Paulo, ver Tótora e Chaia (2004).

(9) De acordo com Félix Sánchez, em entrevista concedida a Dias (2006, p. 42).

(10) Para efeitos de comparação, a quanti dade de projetos submeti dos pelo executi vo municipal foi quase o dobro da prefeitura do Rio de Janeiro no mesmo período. Sobre o poder adquiri-do pelo executi vo do Governo Marta, ver Valor Econômico, 29/09/2004: “Rolo compressor de Marta é recordista de aprovação na Câmara” (htt p://clipping.planejamento.gov.br/Noti cias.asp?NOTCod=152999) acessado em 13/11/2007.

(11) Saúde e Educação no primeiro ano e todas as áreas de investi mento municipal em seu terceiro e quarto ano de funcionamento.

(12) Os chamados “segmentos sociais vulneráveis” ti nham a seguinte facilidade para eleger delega-dos: um delegado eleito por cada voto para pessoas com defi ciência; um delegado por cada três votos para população indígena e pessoas em situação de rua; um delegado para cada cinco votos para os segmentos de mulheres, população negra, jovens, idosos e gays, lésbicas, bisse-xuais e transgêneros (GLBT). Crianças e adolescentes eram representados através de processo exclusivo denominado OP Criança. Todos os demais adultos eram eleitos pela proporçao de um delegado para cada vinte votantes nas assembléias territoriais deliberati vas.

(13) A formação de delegados, conselheiros e técnicos do governo era realizada através de cursos, seminários e ofi cinas preparatórias.

(14) Por falta de apoio da cúpula da Prefeitura, a divulgação do programa fi cou a cargo da Coordena-doria do Orçamento Parti cipati vo, ao invés da Secretaria de Comunicação, que costumava ser a normal encarregada da tarefa.

(15) A chamada para parti cipações era realizada pela Coordenadoria do OP e seus órgãos descentra-lizados em subprefeituras. Além de faixas nas ruas, boleti ns periódicos, carros de som, anúncios radiofônicos e folhetos nas subprefeituras, a parti r delas se contatavam os cidadãos telefonica-mente para divulgar a data e local das assembléias.

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(16) Com a exceção das áreas de saúde e educação, que obti veram índices superiores ao 70%, todas as demais ti veram um índice de execução cujo topo, segundo números ofi ciais, foi de 56% da área de habitação até o ano de 2004.

(17) De acordo com a Prefeitura, em 2003, foi desti nado ao OP de São Paulo 7,7% do orçamento municipal. Em estudo independente (Bello, 2007), para o ano de 2004, as cifras confi áveis per-mitem esti mar esse valor em 3,91% do total do município.

(18) Esse elemento teve seus efeitos limitados no Orçamento Parti cipati vo de São Paulo, pela políti ca de coalizão adotada pela Prefeitura.

(19) Centros Educacionais Unifi cados. Grandes empreendimentos arquitetônicos com ensino primá-rio, fundamental e médio. Foram elaborados pela equipe do governo, que também determinou que seriam instalados em bairros de elevada exclusão social. Aos parti cipantes do OP apenas coube defi nir em quais bairros seriam instalados o equipamento, com base nas

(20) Está, portanto, correlacionado com categorias amplamente trabalhadas pela literatura brasileira, como o coronelismo e o patrimonialismo.

(21) Categorias hobbesianas para designar, respecti vamente, indivíduos com atuações que visam a atender a interesses próprios e indivíduos que atuam visando ao interesse público.

(22) As subprefeituras ti nham um limite orçamentário que lhes permiti a certa autonomia ante os ór-gãos centrais da prefeitura, na execução de pequenas obras e serviços.

(23) Sobre as moti vações dos parti dos na formação de alianças, ver Budge e Laver (1986) e Laver e Schofi eld (1990).

(24) Sobre formatos insti tucionais políti co e administrati vos da parti cipação cidadã, ver Ramió e Sal-vador (2007).

(25) Disponível em: htt p://www.lati nobarometro.org

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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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Participação e gestão territorial: ondese encontram as condições favoráveis?

Cátia Wanderley LubamboFlavio Cireno Fernandes

ResumoDiscute-se institucionalmente a gestão do território, a partir da experiência recente do Brasil, em nível federal e em nível estadual, com o foco na participação social. A análise traz refl exões sobre os fatores político-ins-titucionais que determinam a capacidade de atuação de conselhos e fóruns, na perspec-tiva de infl uenciar as decisões e ações públi-cas. Sugere ainda um debate sobre aborda-gem territorial onde se considere a infl uência que os atores políticos locais e suas bases eleitorais exercem no processo. Ao final, expectativas e limitações são apresentadas, delineando-se as condições favoráveis e des-favoráveis à implantação de estruturas de gestão territorial, levantadas a partir do es-tudo comparativo entre o Programa Governo nos Municípios, em Pernambuco e o Projeto Meu Lugar, em Santa Catarina.

Palavras-chave: território; gestão pública; descentralização; participação social.

AbstractThe conceptual and institutional questions of territory management are discussed based on the recent experience in Brazil, in the federal and state levels, focusing on social participation. The analysis refl ects on political and institutional factors which determine the performance capacity of councils and forums, in the perspective of influencing decisions and public actions. The article also approaches the influence of local political actors and their electoral bases on the process. Expectations and limitations are presented and favorable and unfavorable conditions to the implementation of territory management structures are delineated. These conditions were verifi ed in a comparative study between Programa Governo nos Municípios (Program Government in Municipalities), in Pernambuco and Projeto Meu Lugar (Project My Place), in Santa Catarina.

Keywords: territory; public management; decentralization; social participation.

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Introdução1

O presente trabalho explora as condições que favorecem a implantação de políticas públicas de âmbito territorial, quando se desenham modelos de natureza participati-va. A questão da gestão territorial se coloca hoje como um dos grandes desafi os das po-líticas públicas brasileiras, fato atestado pela ocorrência, nos últimos quinze anos, de um número considerável de políticas proposito-ras de uma integração do território2 como forma de gerar desenvolvimento. Dentro desse contexto, a concepção de território é compreendida como um processo que envol-ve práticas e processos decisórios estraté-gicos e a implementação de ações públicas, independentemente de fronteiras político-administrativas pré-defi nidas pela estrutura federativa. Ou seja, de um lado, a gestão territorial aparece como um mecanismo de alocação ótima de recursos, e, de outro, co-mo um fórum privilegiado de participação para a população.

Levando em consideração as concep-ções expostas, resolvemos, preliminarmen-te, realizar uma refl exão sobre o tema, com base em duas dimensões distintas. A primei-ra, moldada por uma visão mais voltada à efi ciência, vê o território como uma forma de otimização da alocação dos recursos em seus mais variados sentidos. Essa aborda-gem vem sendo defendida, tanto por razões econômicas, de racionalidade na distribuição dos recursos, quanto por razões políticas, de controle e accountability,3 confi gurando os territórios como locus específico para rea lizar a junção dos interesses.

Tomando por referência essa concep-ção, evidenciamos a análise das barreiras e facilitadores institucionais à implantação efetiva de uma política nacional de orde-namento territorial, a partir de questões sugeridas pela Ciência Política, como a in-fl uência que os atores políticos locais e suas bases eleitorais exercem no processo, ou seja, a conexão eleitoral e a estrutura fede-rativa, balizadores importantes da formu-lação e implementação de políticas públicas no Brasil.

A segunda dimensão situa a participa-ção no centro do debate e a concebe como uma forma de empoderamento da comuni-dade, bem como uma forma de aumentar o capital social. Desse modo, a participação se transforma numa das molas mestras do desenvolvimento local sustentável, em con-traposição aos processos exógenos e verti-calizados de desenvolvimento.

O artigo está dividido em três partes: na primeira, realizamos uma breve revisão da literatura recente sobre o tema; a se-gunda parte traz informações e questões, no âmbito da institucionalidade criada na perspectiva de uma abordagem territorial, para o planejamento de ações públicas no país. Na última seção é discutida a existência de condições favoráveis à implementação de políticas de cunho territorial, quando se leva em conta a importância do recorte cultural e político previamente constituído nas regiões. São considerações formuladas a partir do estudo comparativo entre o Programa Go-verno nos Municípios, experimentado em Pernambuco, no período de 1999 a 2002 e o Projeto Meu Lugar, em implementação, em Santa Catarina.

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O PGM, implantado na gestão Jarbas Vasconcelos, foi apresentado à população como um instrumento de gestão pública par-ticipativa com o objetivo principal de discutir com os atores locais as prioridades de in-vestimento para cada Região de Desenvol-vimento (RD) do Estado. Um dos objetivos do programa foi demonstrar a importância da descentralização das ações e da potencia-lidade das regiões, com vistas ao que foram realizadas plenárias de discussão abertas com o público convidado, inicialmente em cada uma das dez, posteriormente em cada um das doze Regiões de Desenvolvimento, em que foi dividido o território do estado. Ver Lubambo e Coelho (2005).

O Programa de Descentralização San-ta Catarina é uma experiência mais recente, implantado a partir de 2002. A ideia da des-centralização do governo capaz de promover desenvolvimento regional e um ambiente de cooperação e governabilidade originou um modelo básico a partir da constituição dos Conselhos de Desenvolvimento Regional, vinculados às Regiões de Desenvolvimento (30), com as Secretarias de Desenvolvimen-to Regional então criadas para mediar entre as demandas locais e o Governo Estadual. (Governo de Santa Catarina. Disponível em: http://www.sc.gov.br/ Acesso em 28 de ja-neiro de 2008).

Vale a pena salientar que este trabalho dá início a uma agenda de pesquisa, na qual as categorias analíticas – gestão territorial e participação – mostram-se imbricadas com relação aos seus resultados e à cadeia de causalidade dos fenômenos. Nesse eixo ló-gico, as teorias ou modelos ausentes de seu desenvolvimento permanecem como uma meta de investigação.

Gestão territorial e participação política: questões centrais

Ao falarmos de gestão territorial, falamos de um espaço para a consecução de obje-tivos, especialmente nas políticas públicas. Ao defi nir território, o Ministério da Inte-gração Regional defi ne o território como

[...] o espaço da prática. Por um lado

é o produto da prática espacial: inclui

a apropriação efetiva ou simbólica de

um espaço, implica a noção de limite –

componente de qualquer prática – ma-

nifestando a intenção de poder sobre

uma porção precisa do espaço. (SDR/

MI/IICA, 2006a)

Essa forma de defi nição ultrapassa as bar-reiras do território como defi nidos no fede-ralismo brasileiro, podendo o conceito ser aplicado a uma unidade menor que o muni-cípio, igual ao município, maior que o muni-cípio, igual a partes de um grupo de municí-pios em estados distintos, etc.

Uma iniciativa de gestão territorial no país impõe uma reconstrução do terri-tório pré-existente, através de projeto de lei enviado ao Congresso Nacional. Uma série de problemas previsíveis e não pre-visíveis, inerentes ao processo político-ad-ministrativo, acaba decorrendo dessa ini-ciativa, uma vez que interesses de mais de um ente federativo estarão envolvidos. As questões difi cultadoras da implantação de uma política de gestão territorial referem-se, sobretudo, à possibilidade de mudança na distribuição das recompensas entre os

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atores do sistema político, até então razoa-velmente estável e articulado, estabelecidas nas oportunidades de realocação dos inves-timentos no território.

Iremos inicialmente ancorar a discus-são no conceito das arenas políticas, confor-me discutido por Löwi (1964,1985). Nesse contexto, iremos discorrer sobre os princi-pais fatores determinantes da estruturação das arenas, bem como sobre a tipologia de políticas. Em seu trabalho, Löwi divide as políticas (policy arenas, no original) em qua-tro tipos fundadores: as políticas distributi-vas, redistributivas, regulatórias e constitu-tivas. Dentro dessa perspectiva, cada uma das arenas políticas acarreta características e comportamentos próprios por parte dos atores.4

As políticas distributivas são descri-tas por Frey (2000) como políticas carac-terizadas por um baixo grau de confl ito e alto grau de inclusão, onde um grande nú-mero de pessoas é benefi ciado com recur-sos de baixo poder de transformação. Em oposição a estas, as políticas redistributivas se caracterizam pela alocação de recursos entre grupos distintos da sociedade, co-mo classes sociais e grupos específi cos. Já as arenas das políticas regulatórias, estas se referem à atuação de determinados se-tores da sociedade, em larga escala grupos de atividades econômicas e sua relação com o Estado, o que gera certa indeterminação dos graus de confl ito entre elas, dependen-tes de fatores como grau de competição e diferença na adaptação às novas regras. O último tipo de arena é a das políticas cons-titutivas, e especificamente se refere ao tema tratado. As políticas constitutivas são políticas que modifi cam as regras do jogo, questões ligadas ao desenho ou à estrutura

de funcionamento do governo que refl etem a distribuição de poder e autoridade entre organizações na burocracia governamental. Essas políticas geram com isso estruturas de incentivos próprias, diferentes das estrutu-ras previamente existentes. Ainda segundo Frey (ibid., p. 224):

A política estruturadora diz respeito à

própria esfera da política e suas insti-

tuições condicionantes (polity) refere-se

à criação e modelagem de novas insti-

tuições, (...), de cooperação e de con-

sulta entre os atores políticos.

Dessa forma, a geração de uma nova política constitutiva, como a de gestão ter-ritorial, leva à defi nição ou modifi cação das regras do jogo político, no qual “em geral costuma-se discutir e decidir sobre modi-fi cações do sistema político apenas dentro do próprio sistema político-administrativo” (ibid., p. 225). Ou seja, os atores que irão defi nir as modifi cações desse tipo de arena são, nesse caso específico, entes federati-vos, uma vez que o ordenamento territorial irá modifi car a estrutura de alocação e re-passe de recursos do Governo federal para com estados e municípios e, por conseguin-te, reorganizará os interesses políticos nes-ses territórios.

Em se tratando desse tipo de arran-jo, no Brasil, pelo menos dois impactos são esperados: o primeiro deles diz respeito à chamada “conexão eleitoral”, em que a liga-ção entre o deputado e o eleitor/município se dá através de um sistema complexo de recompensas pela apresentação de emendas individuais de orçamento, que envolve apoio ao executivo, eleição de deputados e manu-tenção do poder político nas prefeituras.5 O

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processo descrito por Ames (1995, 2003) dá conta de um sistema de recompensas em que o deputado que “traz obras” para um determinado município, através de emendas individuais do orçamento, tem sua recom-pensa através da sua reeleição. Especifi ca-mente Ames cria uma tipologia de deputa-dos por suas estratégias eleitorais, e como estratégia, os dois tipos das categorias dos deputados “dominantes” tendem a usar o município como conexão para os eleitores.6 Noutra vertente, Cain, Ferejohn e Fiorina (1987) apostam em uma conexão persona-lizada, onde o eleitor identifi ca seus repre-sentantes diretamente, através das obras que o “seu deputado” trouxe através de uma conexão personalizada. Pereira e Rennó (2001) testam as hipóteses de ambos e com algumas ressalvas, afi rmam que “os interes-ses locais prevalecem na arena eleitoral por-que as demandas locais parecem ter impacto mais forte no sucesso eleitoral”. Com isso, a execução de emendas legislativas se tor-na central no processo de governo brasilei-ro, onde o executivo federal usa a liberação de emendas ao orçamento para “dirigir” as votações de projetos de seu interesse, utili-zando tais emendas como moeda de troca (Pereira, 2000).

A hipótese da “conexão eleitoral”, quando analisada com relação à constituição de uma política de gestão territorial, pode levar a uma perda de poder dos deputados e dos prefeitos, em relação aos municípios. Como já apontado por Arretche (2004), no Brasil inexistem pesquisas conclusivas acer-ca do efeito dos partidos sobre as relações verticais da federação (no caso, estado e municípios), mas continua prevalecendo cer-to consenso a respeito da positividade das alianças para o estreitamento das relações

federativas. Nessa perspectiva, acreditamos que a implantação de um programa de des-centralização política demande uma com-posição de interesses entre atores políticos municipais, de modo a viabilizar tal progra-ma no âmbito dos vários projetos eleitorais. Essa hipótese analítica será conduzida no es-tudo mais adiante.

Como segundo ponto de partida, nesta revisão de literatura, será feita uma análise das considerações correntes sobre participa-ção política e a emergência de processos que levem ao empoderamento das comunidades e ao aprimoramento dos instrumentos de accountability.

Atualmente, há um debate sobre a im-portância dos processos participativos no contexto de algumas experiências de gestão territorial em distintos espaços do país. Nes-sa perspectiva, busca-se analisar os elemen-tos e as condições que interferem e favore-cem a articulação, nos diversos níveis, entre os fóruns e conselhos criados e entre estes e os agentes responsáveis pela distribuição dos benefícios, por programas que anun-ciam o desenvolvimento como resultado da gestão territorial.

Os conselhos de representação da so-ciedade civil tornaram-se um componente essencial do desenho institucional das políti-cas públicas no Brasil. Os conselhos difundi-ram-se de tal maneira que é rara uma políti-ca pública cujo mecanismo regular de opera-ção não conte com pelo menos um conselho cuja existência se deva a uma exigência da legislação. Para as mais diversas políticas e nos três níveis de governo, tornaram-se umas espécies de elemento constitutivo de seu desenho institucional.

Como resultado da generalização da exigência dos conselhos (Abramovay, 2001;

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Melo, 2003), observa-se a emergência de instâncias desta natureza também para as políticas e programas de desenvolvimen-to territorial. Ou seja, a inclusão de me-canismos de participação política para as experiên cias de gestão territorial não surgiu por qualquer manifestação espontânea da sociedade civil. São, antes, como requisitos de programas na maioria das vezes fi nancia-dos por agências internacionais7 e pelo go-verno federal. A exigência da participação da comunidade benefi ciária no fi nanciamento e manutenção do projeto fi gura entre as re-comendações8 de muitos dos programas de desenvolvimento, como pressuposto de que produziriam os incentivos necessários à ge-ração de capital social e, por consequência, desenvolvimento econômico local (Tendler, 2000).

Ainda que se reconheçam relativos ga-nhos advindos de estratégias de participação nas decisões alocativas dos programas, ins-piradas na teoria do capital social, uma ges-tão territorial envolve uma política de natu-reza distributiva (Löwi, 1964), isto é, que aloca benefícios de modo desagregado para distintas regiões e localidades, e, pela condi-ção participativa, representados por atores sociais também diversos. A identifi cação de elementos indicativos de como articular a ação das instâncias colegiadas para a gestão territorial, de forma mais integrada e coo-perada nos recortes municipais, estadual e federal revela-se, desse modo, em uma con-tribuição à consolidação e aperfeiçoamento das práticas associadas a esse tipo de pla-nejamento e de execução de programas de desenvolvimento.

A maior parte do debate público no país tem abordado as transformações institucio-nais no plano da descentralização da gestão

que vem ocorrendo por duas vias principais: em primeiro lugar, pela ampliação da par-ticipação nas decisões públicas através de mecanismos de consulta que envolve a po-pulação diretamente, mediante a instituição de fóruns e plenárias locais9 e, em segundo lugar, pelo fortalecimento dos mecanismos de controle de acompanhamento de gestão territorial, mediante a criação de instâncias de deliberação e consulta10 que aglutinam representantes dos interesses diretamente envolvidos, como também de entidades da sociedade civil, provedores de serviços e clientelas.

Contudo, a despeito da quase unani-midade em torno dos efeitos positivos da descentralização decisória, a instituição dos Orçamentos Participativos, dos Conselhos Setoriais, dos Fóruns de Discussão ou de outros Mecanismos de Controle Social ainda não se fi rmou como um fator imprescindível para o melhor desempenho da gestão. Ou seja, tem-se afi rmado que tais experiências se constituem num efetivo fortalecimento da capacidade governativa nas diversas ins-tâncias, mas até que ponto essa capacidade se constitui num patrimônio cívico (capital social) ou se evidencia, circunstancialmente, conforme as singularidades políticas de cada gestão? Além disso, como atestar a associa-ção dessas inovações com os níveis de em-poderamento da sociedade local?

Conforme o próprio debate teórico atu-al sugere (Lubambo, Coelho e Melo, 2005 e Arretche et alli, 2006), difi culdades maio-res ao empoderamento surgem na mesma medida em que se expressa a resistência da sociedade à participação. Essa resistência apresenta-se, principalmente, como resulta-do de uma herança cívica desfavorável, ain-da presente em muitas regiões e localidades

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do país, como os pequenos municípios do Norte e do Nordeste brasileiro. Por um la-do, assiste-se a uma reduzida credibilidade no Estado, abalada por uma sucessão de go-vernos descomprometidos com o bem-estar da população e, por outro, a uma ausência de experiências locais de associativismo (bai-xo capital social). Expressam-se os limites das burocracias acostumadas aos antigos modelos e resistentes a estratégias de reen-genharia institucional por parte do Estado. De modo similar, reconhecem-se limites contidos na representação e na participa-ção popular intermediada por associações de qualquer espécie, sobretudo por aquelas oriundas de mudanças institucionais, como os modelos programáticos com nítida orien-tação governamental. Independentemente da discussão sobre a efi cácia dessas tais ins-tituições/associações, a participação/repre-sentação da população requer um preparo para enfrentar os problemas mais simples da ação coletiva. Além disso, até que pon-to essa institucionalidade recém-criada tem inibido a manutenção das práticas políticas tradicionais? É possível falarmos em hibri-dismo de perfi s políticos?

Institucionalidade para o território: o que há de novo no país?11

É digno de nota o esforço interministerial recente no processo de concepção, formu-lação e construção participativa da Políti-ca Nacional de Ordenamento Territorial. A ideia que marcou a concepção da PNOT foi orientada pela necessidade de instituir um

Ordenamento Territorial, no sentido regu-latório, distintamente do sentido do desen-volvimento territorial. A inexistência de uma tradição dessa abordagem regulatória no planejamento, em nível nacional, reforçou a oportunidade da iniciativa. Não signifi ca des-considerar a notoriedade de ações pontuais, como, por exemplo, a ação coordenada pe-lo Ministério de Meio Ambiente, com suas unidades de conservação, a do Ministério de Desenvolvimento Agrário, com sua proposta de “territórios de identidade”, e a iniciativa do Ministério da Integração, com a proposta da Política Nacional de Ordenamento Terri-torial.12

Essa prerrogativa foi possibilitada com a instituição da Constituição de 1988. O sentido regulatório está na base de uma arena constituinte e também redistributiva, diferentemente da formulação de propostas de desenvolvimento regional que se referem a uma arena mais ou menos neutra. O pro-cesso correspondeu a uma sucessão de eta-pas. Na primeira fase, houve um Seminário Inicial em 2003, coordenado pela Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional e Reordenamento Territorial do Ministério da Integração, do qual resultou um Termo de Referência que serviu de base a uma li-citação para contratação de uma equipe de consultores.13 Existe uma articulação estrei-ta com o Ministério da Defesa por razões de soberania, uma vez que a proposta também focaliza ações na Amazônia, nas áreas de fronteiras e na costa litorânea.

Na segunda fase, o objetivo foi elaborar do Documento-Base. Houve uma divisão do trabalho em seis estudos: experiências inter-nacionais; experiências nacionais; aspectos fundiários; padrão de ocupação do território; logística, cada qual sob a responsabilidade

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de um consultor. Essa fase foi marcada pela discussão ampliada nas Unidades da Federa-ção. Foi chamado à discussão o Conseplan (Conselho Nacional de Secretários Estaduais do Planejamento) que apoiou a realização de quatro seminários regionais em Belém; Reci-fe; Florianópolis e Goiânia. A sociedade civil, através de suas entidades mais representati-vas de empresários, trabalhadores e outros grupos, também foi convocada em cada um desses lugares. O último momento de incor-poração de propostas e ideias aconteceu no Seminário Nacional de Ordenamento Terri-torial, em novembro de 2006.

Na fase de elaboração da Proposta Final, foi constituído o Grupo de Trabalho Interministerial (Ministério da Defesa, MDA, Minas e Energia, Ministério da Agricultura, Cidades, MDS, Ministério da Integração, sob a coordenação da Casa Civil), com a missão de apresentar uma proposta, em forma de projeto de lei, ao Congresso Nacional. Sob a coordenação da Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional e Reordenamen-to Territorial do Ministério da Integração, acontecem os trabalhos de discussão, com a fi nalidade de aprovação da proposta.14

No âmbito do MDA, a ênfase foi dada na proposta elaborada para a territorializa-ção. O conceito foi explicado como sendo uma ampliação da concepção sobre áreas regionais para a defi nição de territórios, a partir das identidades (Perico e Ribeiro, 2005). Foram evidenciados três elementos centrais:

1) A montagem de um mapa de “ter-ritórios de identidade”. O estudo foi de-senvolvido entre 2003-2004 com base na proposta do IBGE para as microrregiões geográficas e ajustado pela metodologia da OCDE para os critérios de ruralização

(densidade demográfi ca e população média por município). Das 550 regiões, aproxi-madamente, existentes segundo o IBGE, o MDA passou a considerar 450 territórios, segundo os critérios ajustados de ruralida-de. Mais precisamente, 43% dos territórios correspondem às microrregiões pré-defi ni-das pelo IBGE, enquanto os outros 57% dos territórios correspondem a arranjos diver-gentes, defi nidos pelos elementos culturais, sociais, etc. Nessa fase de montagem, foram visíveis as divergências quanto às visões de território. A concepção de identidade como vetor da capacidade de diferenciação foi paulatina e esforçadamente sendo instituí-da. Momentos de desequilíbrio no trabalho foram evidentes na defi nição de identidades e confl itos em cada território. Atualmente, está sendo fi nalizado o relatório (elaborado entre 2006-2007) que apresenta a propos-ta de Tipologias e Identidades de Territó-rios, elaborado com a consultoria do IICA.15

2) A Institucionalidade Criada. Foi cria-do, em 25 de fevereiro de 2008, o progra-ma Território da Cidadania. Consiste numa estratégia de desenvolvimento regional sus-tentável e de garantia de direitos sociais, voltado a algumas regiões do país defini-das em função de critérios como: menor IDH; maior concentração de agricultores familiares e assentamentos do programa de Reforma Agrária; maior concentração de populações quilombolas e indígenas; maior número de benefi ciários do programa Bol-sa Família; maior número de municípios com baixo dinamismo econômico e maior organização social. O programa tem como objetivo levar o desenvolvimento econômi-co e universalizar os programas básicos de cidadania. Propõe a integração das ações do Governo Federal e dos Governos Estaduais

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e Municipais, em um plano desenvolvido em cada território, com a participação da socie-dade. Atualmente, o Programa contempla 60 Territórios espalhados por todo o Brasil, de modo que, em cada Estado Federativo, deve haver, pelo menos um Território da Ci-dadania.16 Em cada território, um Conselho Territorial composto pelas três esferas go-vernamentais e pela sociedade determinará um plano de desenvolvimento e uma agenda pactuada de ações. O desenho institucional proposto seguiu o pressuposto central de fazer descolagem da institucionalidade pré-existente, montada a partir dos conselhos municípios viabilizados pelo PRONAF, desde a década de 1990. A ideia é criar conselhos dos territórios. Com isso pretendeu-se fo-car a ação descentralizada no nível micror-regional, territorial. Não há um padrão de estratégia de aproximação na perspectiva da instituição dos conselhos nos territórios. Genericamente, pode-se dizer que preli-minarmente se formam as Comissões de Implantação de Ações Territoriais (CIATs), nos primeiros três anos, que depois serão substituídos pelos Colegiados dos Territó-rios. Com relação ao nível estadual, há um reconhecimento e respeito à ação de arranjo institucional elaborado a partir dos Conse-lhos Estaduais Rurais Sustentáveis, mas há que ser feita uma apreciação dos critérios instituídos para que os territórios sejam al-vos das ações do MDA. Para implementar a nova política rural no Brasil, substituindo a dimensão regional pela dimensão territorial, o MDA estimulou as unidades da federação a criarem os Planos Territoriais de Desen-volvimento Rural Sustentável (PTDRS) nos territórios prioritários de cada Estado.

3. Cenário Considerado. É pressupos-ta a ideia de que se trata de um processo

longo, estimado, pelo próprio ministério, co-mo próximo a um período de 35 anos. A ex-periência tem demonstrado que existe mais participação onde já pré-existia alguma ação movida por organizações das mais variadas naturezas (ONGs internacionais, religiosas, sindicalistas e outras). Mas a estratégia baseia-se na ação governamental, com um trabalho de apoio durante 10 anos, apro-ximadamente, em cada território. Além da ação de um conjunto de ministérios, que ao todo somam 15, ações integradas em parce-ria com os governos estaduais e municipais, podem apresentar suas respectivas propos-tas e projetos. São ações incentivadas, na perspectiva de consolidar as relações federa-tivas, tornando mais efi ciente a ação do po-der público nos territórios. Compactua-se a ideia de que cada território é um mundo sin-gular: a ação, por exemplo, em Pernambuco tem sido facilitada pela ação combinada do governo estadual local, na mesma direção, movida pelo Conselho de Desenvolvimento Sustentável. Em Santa Catarina, o MDA tem encontrado mais obstáculos institucionais, posto que há uma representação governa-mental forte nas sub-regiões (com a insti-tuição das SDRs), o que resulta numa repre-sentação da sociedade civil pouco inclusiva. Signifi ca dizer que há uma ação diferenciada em cada Unidade Federativa, a depender do apoio político estadual.

As principais reações a esse processo têm se referido às dificuldades de aceita-ção da prática da “regulação”; mais precisa-mente, à ausência de tradição. Ainda que se identifi quem reações sobre a incompatibili-dade entre as propostas de regionalização do IBGE e outras que prevalecem nas Uni-dades da Federação, uma proposta de terri-torialização ordenada seria (em tese) pouco

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porosa aos confl itos e pressões do processo político, por se distinguir enquanto arena constituinte. No momento em que ações passarem a serem reguladas, de fato, crian-do parâmetros para a gestão, a emergência dos confl itos será mais evidente.

O desafio que se coloca para o atual estágio de discussão é a incorporação de um diálogo sobre a inserção das políticas setoriais, nas três escalas de ação: nacional, estadual e sub-regional e sobre a institucio-nalização de conselhos.

O segundo ponto que propusemos ana-lisar neste artigo reaparece com a exposição acima e refere-se ao debate acerca dos dita-mes da estrutura federativa brasileira. Tra-ta-se do problema já apontado por Fernando Abrucio (2005, p. 2) da “coordenação inter-governamental, isto é, das formas de inte-gração, compartilhamento e decisão conjun-ta presente nas federações”. Signifi ca dizer que, para além do debate sobre autonomia local e necessidade de checks and balances, entre os níveis de governo, precisamos en-frentar alguns desafi os associados ao pro-cesso de shared decision making (comparti-lhamento de decisões e responsabilidades).

Segundo os textos básicos disponibili-zados pela secretaria de Políticas de Desen-volvimento Regional (SDR/MI/IICA, 2006), no que tange à Avaliação do Aparato Insti-tucional e Jurídico-legal na perspectiva da PNOT (Política Nacional de Ordenamento Territorial ), tem-se que:

O sistema de divisão de competências

adotado pela CF/88 é complexo, envol-

vendo, basicamente, a enumeração ta-

xativa das competências da União, com-

petência remanescente dos Estados-

membros e competência para dispor

sobre tudo que for de interesse local

aos Municípios. (SDR/MI/IICA, 2006a,

p. 10).

E ainda:

O termo Ordenação do Território está

fi xado legalmente através do artigo 21,

parágrafo IX da Constituição Federal

de 1988, segundo o qual “Compete à

União elaborar e executar planos nacio-

nais e regionais de ordenação do terri-

tório e de desenvolvimento econômico

e social”. (Ibid., p. 18)

Signifi ca dizer que a competência de or-ganização do território é da União, enquanto que a competência para se tratarem assun-tos locais compete ao município, nos termos da Constituição Federal.17 Embora não haja sobreposição de competências, uma vez que a competência dos estados-membros e mu-nicípios é remanescente, também cabe ao município e ao estado-membro legislar, di-reito respeitado no princípio da competência legislativa concorrente.

O principal desafi o é o de entender co-mo a estrutura de incentivos e competências rebatem nas políticas e, consequentemente, os seus efeitos na gestão governamental. Um exemplo disso é a comparação entre os projetos de gestão territorial planejados pelo estado e pela União. Os repasses esta-duais discricionários aos municípios são bai-xos, não representando grande diferencial na vida do município. Já no nível federal, a liberação de recursos para os municípios através de emenda individual é de funda-mental importância para a sobrevivência política dos prefeitos e deputados como discutido anteriormente. Outro aspecto é o

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local da licitação e planejamento das obras, que no caso do governo federal se dá nos municípios e no governo estadual no âmbito do próprio estado. Ou seja, a lógica de ges-tão territorial para os estados baseia-se em planejamento e execução internos, enquanto que para o governo federal orienta-se pelo planejamento interno e execução externa.

Parte signifi cativa desse desafi o refere-se à capacidade de equilibrar competição e cooperação, inovação e homogeneização de ações, ainda que se considere a atuação co-ordenadora do governo e de outras instân-cias federativas. Sustentamos, contudo, a hi-pótese de que a disponibilidade de recursos, locais de toda natureza, é uma variável fun-damental na indução de ganhos resultantes de ações autônomas e competitivas; noutra direção, experiência e tradição associativa são variáveis signifi cativas para adesão, por parte dos entes federados, a processos de ação coletiva.

Logo, ao focalizarmos a implantação de uma Política de Ordenamento ou de Gestão Territorial, há que se analisar tam-bém o “esforço” legislativo de adequação das normas municipais à política nacional e estadual, despendido por um rol diversi-ficado, nem sempre articulado, de atores e instituições. Considerando o exemplo do Plano Diretor, o município depende de, no mínimo, sete tipos de ordenamentos legais, sendo o primeiro, no nível federal, a pró-pria constituição, que oferece através da divisão política e administrativa do país as competências para legislar da União, dos estados federados e dos municípios. Ainda no nível federal, as legislações específi cas sobre ordenamento Urbano e Ambiental e as diretrizes sobre habitação, transporte, saneamento básico e meio ambiente.

Ao observarmos a quantidade de ins-trumentos legais e instâncias a serem res-peitadas, podemos intuir que, para uma boa aplicação ao caso concreto da ação territo-rial, precisamos de um grau de conhecimen-to técnico das legislações federal, estadual e municipal, além de uma cuidadosa articula-ção política para a negociação em todos esses níveis. Assim, as políticas territoriais terão de respeitar, no ordenamento consti-tucional atual, a legislação municipal no que lhe couber, por sua condição de ente fede-rativo, ou gerar coordenação entre a União, o estado e os vários municípios. Essa coor-denação pode ser realizada de duas formas: a primeira delas é a renúncia de parte das prerrogativas federativas por parte dos es-tados e municípios, algo que é improvável, a não ser em uma estrutura de incentivos, muito vantajosa para estes. Uma segunda possibilidade é a de que essas políticas se-jam executadas pelos municípios e estados, através de um planejamento conjunto, no nível federal. Este segundo arranjo, apesar de mais plausível, traz uma nova gama de atores à execução dos projetos, tornando mais complexa a sua realização.

Pernambuco e Santa Catarina: convergências e divergências nas condições favoráveis à gestão territorial

À primeira vista, esperaríamos encontrar, entre Pernambuco e Santa Catarina, condi-ções completamente distintas para a implan-tação de programas de gestão territorial.

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Três conjuntos de fatores, conforme será exposto nos próximos parágrafos, embasam tal suposição: a) tratamos de estados que os-tentam indicadores sociais bastante diferen-ciados; b) a tradição de associativismo muni-cipal é incomparável entre as duas regiões; c) os perfi s de participação política dos cida-dãos são comprovadamente desiguais.

O primeiro fator encontra defesa re-conhecida na literatura que associa padrões políticos tradicionais a baixos índices de desenvolvimento.18 Localizados em regiões divergentes em prosperidade, a observação comparada dos indicadores sociais sugere a suposição de que as práticas políticas domi-nantes em cada estado também sejam muito diferentes, levando a resultados e até a mu-danças institucionais distintas no âmbito dos programas públicos. Investigamos, por isso, a condição dos municípios dos dois estados focos da nossa análise, Pernambuco (NE) e

Santa Catarina (S), com base na tipologia proposta pela Secretaria de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração Nacio-nal, que divide as microrregiões entre as de Alta Renda, Dinâmica, Estagnada e de Baixa Renda.19 Podemos observar, no Gráfi co 1, que o demonstrativo do número relativo de municípios de Pernambuco diagnosticados como de baixa renda ou em situação carac-terizada como de estagnação é bem mais alto que o do correlato em Santa Catarina e até mesmo em relação ao do restante do país. A grande concentração de territórios com baixo grau de desenvolvimento socio-econômico está demonstrada pelo peso de um quarto dos municípios do estado, contra menos de 13% no Brasil e 0% do estado de Santa Catarina. Nesse estado, mais de 80% são considerados municípios de alta renda, ao contrário de Pernambuco, onde apenas 4,32% se enquadram nessa categoria.

Gráfi co 1 – Situação dos municípios do Brasil, Pernambucoe Santa Catarina quanto à dinâmica das microrregiões

Fonte: Ministério da Integração Nacional – Secretaria de Desenvolvimento Regional. Disponível em www.integracao.gov.br

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Como são recorrentes as análises que articulam o grau de dinâmica econômica dos municípios e capacidade de gestão para o desenvolvimento regional numa correlação inversa, os dados existentes para Pernambu-co e Santa Catarina nos levam a suposições em torno de existir uma maior difi culdade na implantação de políticas territoriais em Pernambuco do que em Santa Catarina.

Esta ideia fi ca reforçada quando obser-vamos o padrão de execução de orçamento de desenvolvimento regional, ou seja o qua-dro de gastos em recursos de desenvolvi-mento regional. Tal indicador revela que o Sudeste apresenta o maior número relativo de municípios optantes por esse tipo de des-pesa, como demonstra o Gráfi co 2. Naquela região, durante a década de noventa, o per-centual dos municípios que executaram esse tipo de orçamento oscilou aproximadamente entre 20% e 25%, observando-se um cres-cimento constante e moderado, que oscila

entre aproximadamente 5% em 1990 até chegar a quase 10% em 2001.

Um dado que se soma a essa evidência, de acordo com a pesquisa Perfil dos Mu-nicípios Brasileiros - Gestão Pública 2006, de responsabilidade do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), refere-se ao grau de utilização, pelos municípios, de mecanismos de incentivo à implantação de empreendimentos, tais como: doação de terrenos; cessão de terrenos; isenção total ou parcial de IPTU e isenção de ISS. A maior parte dos municípios que abrem mão de receita, cerca de 60%, está localizada nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, onde cha-ma a atenção o comportamento dos esta-dos de Santa Catarina e Rio Grande do Sul que apresentam, em algumas regiões, uma grande aglomeração de municípios adeptos de tais mecanismos. Consideradas as infor-mações, pode-se afi rmar que condições mais favoráveis relativas à montagem de novas

Gráfi co 2 – Percentual de municípioscom Execução Orçamentária em Desenvolvimento Regional

Fonte: Ministério da Integração Nacional – Secretaria de Desenvolvimento Regional.

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institucional idades estão presentes com maior evidência em Santa Catarina. É razoá-vel supor também a existência de variáveis intervenientes de efeito negativo no tocante ao estado de Pernambuco.

Signifi ca que quando analisamos o fa-tor defi nido como tradição de associativis-mo municipal, as condições na região Sul do país já se apresentam mais favoráveis. Empiricamente, a tradição de associativis-mo municipal, em Santa Catarina, pode ser comprovada desde a década de 1960 com o movimento municipalista catarinense. Nos anos oitenta, surgiu a FECAM – Federação Catarinense dos Municípios; a rigor, a enti-dade foi criada com o nome de Federação Catarinense das Associações Municipais,20 o que realça o signifi cado do número de en-tidades regionais de associação de municí-pios. Atualmente, a FECAM conta com 284 municípios fi liados dos 293 municípios de SC (FECAM, 2008). Foram as associações de municípios, coordenadas pela FECAM, que deram o impulso para a criação dos fó-runs de desenvolvimento em cada uma de suas áreas territoriais (Côrtes, 2006). Em Pernambuco, a experiên cia existe, mas tem acontecido de modo pouco sistemático. En-tre algumas tentativas de associação muni-cipal, podem ser citadas a formação de um Fórum na Mata Sul, outras tentativas de constituir consórcios municipais no Agreste Central (em torno de ações de saneamento e construção de aterros sanitários) e ainda no Submédio São Francisco (em favor de ações para instalação de centros de distribuição e comercialização de produtos).

Com relação aos perfi s de participação política dos cidadãos, buscamos verifi car os níveis diferenciados presentes nas duas re-giões que abrigam os estados analisados.

Defendemos que o estímulo à participação, bem como as estratégias implementadas pe-los atores sociais divergem conforme dois fatores principais: a) a bagagem histórica, expressa pelas condições recentes da demo-cratização no Brasil e b) os condicionantes institucionais e políticos à participação e ao empoderamento presentes regionalmente. Signifi ca dizer que, de um lado, importam os fatores vinculados à herança ou à cultura política e, de outro, aqueles fatores associa-dos às inovações institucionais.

Como indicador da bagagem históri-ca, utilizamos perfi s de participação política apresentados na Tabela 1. Ao compararmos as regiões nas quais os estados cobertos pe-la pesquisa se incluem, é possível ver que os índices de participação política no Sul do país são muito superiores aos dos estados do Nordeste, principalmente no que toca aos itens relacionados a associações como clubes sociais e esportivos e reuniões de condomí-nio (95,3%) e à fi liação a partidos políticos (91,3%), onde a taxa de participação é de quase o dobro. Apenas no que diz respeito às associações de moradores, há um relativo equilíbrio nas taxas de participação, sinali-zando um maior índice de participação da população na região Sul.

Mas, por que condições tão divergentes de dinâmica econômica, capacidade de ges-tão para o desenvolvimento regional e capi-tal social, entre duas regiões, tornaram-se secundárias, ao passo que outras condições mais favoráveis induziram à experimentação de programas de territorialização e descen-tralização? Que condições foram essas?

O Programa Governo nos Municípios pode ser considerado, entre o conjunto de experiências participativas que vêm sendo vivenciadas no país, como uma novidade

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institucional. Claramente orientado pe-la ideia de que a sociedade pode imprimir uma lógica mais democrática na definição das prioridades na alocação dos recursos públicos, estando “mais próxima do Esta-do”, o Programa Governo nos Municípios foi implantado no estado de Pernambuco, em 1999, abrangendo uma população de aproximadamente oito milhões de pessoas. A expectativa inicial se ampliou para a cons-trução de um modelo de gestão territorial, pelo qual se projetou o levantamento de de-mandas específi cas e a negociação sobre o ordenamento das várias propostas setoriais, diretamente com os grupos sociais, em cada uma das 12 Regiões de Desenvolvimento do estado e 185 municípios.21

Tal modelo de gestão pressupunha dois níveis de atuação do governo estadual: o primeiro corresponde à articulação entre o estado e a sociedade civil, mediante a rea-lização de plenárias regionais e a instalação de uma Comissão de Desenvolvimento re-presentativa dos interesses locais, em cada região; o segundo diz respeito à articulação entre as várias instâncias governamentais no âmbito do próprio estado, mediante o esta-

belecimento de um pacto no qual as variadas ações setoriais deveriam ser encaminhadas, no sentido das negociações estabelecidas pa-ra cada região.

O Programa de Descentralização Santa Catarina é uma experiência ainda mais re-cente. Baseado nos pressupostos da descen-tralização da gestão do estado e da partici-pação da sociedade no desenvolvimento do território, o programa foi implantado a par-tir de 2002, para atingir uma população de aproximadamente seis milhões de pessoas. A ideia central é de que a descentralização do governo é capaz de promover, simulta-neamente, o desenvolvimento regional e a construção de um ambiente de cooperação e governabilidade, criando um círculo virtuoso e sinérgico de participação de vários setores da sociedade civil. O modelo básico propôs a criação dos Conselhos de Desenvolvimento Regional, vinculados às 30 Regiões de De-senvolvimento que abrangem 293 municí-pios, com as Secretarias de Desenvolvimen-to Regional então criadas para mediar entre as demandas locais e o governo estadual.22

É importante acrescentar que os dois programas territoriais incorporaram no seu

Tabela 1 – Perfi s de participação política comparados: Nordeste e Sul do país

Categorias Nordeste Sul Sul/NordesteParticipação em associação de moradores*Participação em reunião de condomínio*Participação em clube social ou esportivo*Participação em associação assistencial-religiosa*Participação em associação assistencial não religiosa*Filiação a sindicato**Filiação a associação profi ssional**Filiação a partido político**

21,8710,0418,0729,706,37

20,5711,975,92

22,5919,6135,3049,8411,4225,8517,1511,32

3,27%95,30%95,32%67,80%79,15%25,63%43,31%91,26%

*Participa ou já participou; **Apenas quem é efetivamente fi liadoFonte: Estudo Eleitoral Brasileiro (2002). Elaboração própria.

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arcabouço institucional as instâncias parti-cipativas integrantes de várias políticas de desenvolvimento territorial, estadual ou federal da Secretaria de Desenvolvimento Territorial do MDA. No âmbito da nova es-tratégia do Ministério de Desenvolvimento Agrário, o município deixa de ser o foco das políticas públicas e o território passa a ser a unidade de discussão e de implementação das ações desenvolvidas pelo Poder Público, a partir de uma visão contextualizada que contempla os múltiplos fatores intervenien-tes, integrando-se atividades agrícolas e não agrícolas. Em princípio, a ênfase no territó-rio fortalece o processo de articulação ho-rizontal e vertical entre políticas públicas e demandas sociais, observando-se, igualmen-te, que o Estado deve, para atender as prer-rogativas da construção da democracia e do desenvolvimento e de redefi nição do papel do Estado, atuar especialmente quanto à provisão de bens públicos, direção e regu-lação da economia. Os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável e outros Conselhos de Desenvolvimento Mu-nicipal fazem parte dessa nova confi guração institucional23 e, nesse sentido, oferecem elementos valiosos à discussão do desenvol-vimento sob a ótica do território, tendo em vista que as decisões sobre as ações, pro-jetos e os rumos a serem privilegiados são discutidos por esses atores.

Retomando a questão formulada, que condições teriam favorecido a experimen-tação de programas de territorialização e descentralização tão semelhantes? Supo-mos, então, que um conjunto de fatores também semelhantes constituiu o quadro de condições favoráveis à implantação dos programas referidos. Um exame mais apu-rado nos arcabouços político-institucionais

locais revela semelhanças signifi cativas entre as duas unidades federativas – PE e SC. A que mais chama atenção é a infl exão sofrida na força e resistência dos partidos tradicio-nais de direita,24 no interior desses estados. Conforme o Gráfico 3, a direita manteve um percentual acima de 40% da bancada de suas assembléias legislativas de 1982 a 2002, para o caso de Pernambuco e, para o caso de Santa Catarina, até 2006. Signifi ca dizer que, pela abordagem da conexão elei-toral, é possível supor que a confl uência de interesses regionais favoreceu a implantação de programas de descentralização. Ainda que não se possa assegurar a existência de infl uência direta da autoridade do governo do estado sobre as alianças municipais, foi visível a mudança no quadro de apoio par-tidário entre os deputados estaduais, se for considerada a situação antes do programa e depois do programa.

Há fortes indícios de que a implantação dos Programas em cada um dos estados e nos períodos respectivos exerceu uma infl uên cia gradual no quadro político de apoio à primeira e à segunda gestão consecutiva de cada governador – Jarbas Vascon celos em Pernambuco e Luís Henrique da Silveira em Santa Catarina. Ao que parece, a aliança partidária surge como uma variável funda-mental para garantir a adesão das elites lo-cais ao programa. Nos dois estados, os dois governos foram eleitos por meio de ampla coalizão partidária liderada pelo PMDB.

Nas disputas eleitorais ocorridas após a implantação dos programas de descentrali-zação, é interessante notar a tendência de desconcentração regional em favor do grupo partidário aliado ao governador, que obteve mais de 50% nas regiões do interior do es-tado. Esses dados são bastante signifi cativos

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e sugerem que uma análise sobre a estraté-gia política do governo de compor um pacto para a implantação do Programa Governo nos Municípios, a partir de 1999 e do Proje-to Meu Lugar, a partir de 2002 é uma hipó-tese bastante consistente.

Com relação à competição política na base municipal, historicamente, os deputa-dos desses partidos têm sido individualmen-te mais dominantes em suas bases eleitorais. Em seus principais municípios, eles tendem a fi car com proporções mais altas da votação total local. Geralmente, são bem votados em municípios geografi camente contíguos e ra-ras vezes disputam a preferência dos elei-tores. Esse controle oligárquico, represen-tado pela concentração eleitoral reduz não somente o número de novatos na política quanto o número de partidos concorrentes. Ou seja, são padrões muito próximos de competição política. Portanto, pode-se dizer que o que aproxima os dois estados é a for-ça das oligarquias tradicionais que conserva

o poder nos seus redutos territoriais, sobre-tudo no interior.

Ou seja, embora se possa dizer que, no caso brasileiro, alguns fatores reduziriam o impacto das alianças partidárias e das coa-lizões de governo sobre a concentração de autoridade política,25 importante foi cons-tatar que, no cenário político desses dois estados, evidenciam-se fortes elementos de continuidade sustentados pelo controle das antigas oligarquias. Tais grupos políticos lo-cais aliaram-se convenientemente ao gover-no do estado e utilizaram os Programas de Descentralização como espaço político para aumentar seu poder de atuação nas bases eleitorais. A herança clientelística era visível em muitas situações, durante as visitas ao campo. Obras antes escolhidas pela popula-ção eram, por vezes, apropriadas, como ob-jeto de propaganda por políticos com base eleitoral na região. Além disso, verifi camos que a participação popular tão tem sido sufi -ciente para inibir a manutenção das práticas

Gráfi co 3 – Percentual das cadeiras ocupadas pelos Partidosde Direita na Assembléia Legislativa (1982-2006) Pernambuco e Santa Catarina

Fonte: www.jaironicolau.iuperj.com.br/dadoseleitoraisdobrasil

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políticas tradicionais ou, na pior das hipó-teses, tem se rendido ao imediatismo das ações dos politiqueiros de plantão.

Embora o reduzido tempo de implan-tação do programa impeça afi rmações mais conclusivas, o debate atual deixa claro que estudos que se dediquem a apontar os ele-

mentos aqui referidos têm sido pouco pri-vilegiados. Ao mesmo tempo, esse mesmo debate aponta que há um espaço vazio nas formulações acadêmicas que articulam o perfil político-territorial com a instituição de mecanismos de gestão descentralizada e pretensamente participativa.

Cátia Wanderley Lubambo Doutora em Sociologia e Mestre em Desenvolvimento Urbano e Regional pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Doutorada em Gestão Pública na Fundação Getulio Vargas de São Paulo. Pesquisadora da Diretoria de Pesquisas Sociais/Fundação Joaquim Nabuco-Recife. Docente no Mestrado Profi ssional em Gestão Pública para o Desenvolvimento do Nordeste, na Universidade Federal de Pernambuco (Pernambuco, Brasil)[email protected]

Flavio Cireno FernandesMestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em ava-liação de Políticas Públicas pela Universidade do Texas (Austin). Pesquisador da Diretoria de Pesquisas Sociais/Fundação Joaquim Nabuco-Recife (Pernambuco, Brasil).fl [email protected]

Notas

(1) Este trabalho é parte do projeto “Gestão Territorial e Parti cipação Políti ca”, desenvolvido no âm-bito da Coordenação de Estudos Sociais e Culturais da Diretoria de Pesquisa da Fundação Joa-quim Nabuco e como pesquisa de pós-doutorado da autora na Fundação Getúlio Vargas-SP.

(2) O conceito de território aparece aqui no seu senti do lato, sendo aceito desde a noção de arranjos produti vos locais até a noção geográfi ca de território propriamente dita.

(3) Podemos defi nir accountabilitt y como uma forma de controle e supervisão que designa processos de infl uência do coleti vo sobre o individual, mas não existe uma tradução precisa do termo. Admiti mos ser um modo de arti culação cooperati va dos atores sociais adeptos da práti ca de mecanismos de monitoramento e avaliação de programas ou políti cas públicas.

(4) Ainda segundo Löwi, os atores políti cos envolvidos não necessariamente apresentam comporta-mentos invariantes com relação ao seu envolvimento e sua posição na políti ca. A referência é mais direcionada a comportamentos tí picos: o de grupos de interesse, o de clientela, o de parti -dos políti cos e o de elite tecnocráti ca. Alguns autores também chamam as políti cas consti tuti vas de políti cas estruturadoras; neste texto usaremos ambos os termos.

(5) Para uma breve revisão da análise sobre a “conexão eleitoral” ver Limongi e Figueredo (2005).

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(6) São os ti pos dominantes concentrados e dominantes dispersos, onde o deputado consegue anga-riar o maior número de eleitores possíveis em determinados municípios, por razões diversas.

(7) Não é recente, por exemplo, a atuação do governo brasileiro, com apoio do Banco Mundial, na implementação de programas de combate à pobreza rural do Nordeste. Atualmente, o Banco Mundial fi nancia o programa de Combate à pobreza Rural – PCPR, que atua em projetos de pe-queno porte para comunidades rurais, representadas nas comissões e fóruns parti cipati vos.

(8) Outras recomendações são, por exemplo, a aplicação de recursos a fundo perdido em projetos construídos pela comunidade local.

(9) Os exemplos mais destacados nessa direção têm sido as experiências de orçamento parti cipati vo.

(10) Pode-se afi rmar que ocorreu um verdadeiro choque insti tucional na últi ma década, sinalizado pela criação de centenas, em alguns casos, milhares de conselhos vinculados aos planos locais nas áreas de criança e adolescente, do desenvolvimento urbano, educação, desenvolvimento rural, meio ambiente, saúde e assistência social. Esse fato contribui para que o tema venha re-cebendo espaço importante na literatura. Ver Gohn (2001); Carvalho (1995); Coelho e Nobre (2004) entre outros.

(11) Esta secção toma por base um levantamento de campo, realizado em Brasília, em maio de 2008. Foram entrevistados: o Secretário de Políti cas de Desenvolvimento Regional e Reordenamento Territorial do Ministério da Integração – Júlio Miragaya; o indicado – Marcelo Duncam – do Se-cretário de Desenvolvimento Territorial do MDA – Humberto de Oliveira e o Responsável pelo Comitê de Desenvolvimento Territorial do CONDRAF – Ronaldo Cambuim.

(12) Consultar os Documentos Temáti cos Elaborados como Subsídios da Proposta – PNOT, texto que serviu de base para a montagem da proposta que hoje tramita em discussão e votação no Con-gresso.

(13) A equipe vencedora foi o Centro de Desenvolvimento Sustentável - CDS da UnB, onde fi caram responsáveis pela Coordenação Técnica dos Estudos para elaboração da PNOT, os professores Marcelo Burstzin e Brasilmar Ferreira.

(14) Citam-se como importantes, a proposta do IBGE, atualmente em etapa de conclusão e a discus-são iniciada em novembro de 2008, a parti r do lançamento do Estudo da Dimensão Territorial, realizado e apresentado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos – CGEE, durante o Semi-nário Internacional de Planejamento Territorial no Brasil, promovido pelo Ministério de Planeja-mento, Orçamento e Gestão.

(15) Ver o Documento do MDA, 2008 – Desenvolvimento Sustentável e Territorialidade: identi dades e ti pologias. Equipe de Consultores: Rafael Echeverri e Edviges Ioris. Consultar também no site do MDA o link do Sistema de Informações de Territórios Rurais, as regiões existentes por UFs.

(16) Foram defi nidos conjuntos de municípios unidos pelas mesmas característi cas econômicas e ambientais que apresentavam identi dade e coesão social, cultural e geográfi ca. Maiores que o município e menores que o estado, os territórios conseguem demonstrar, de uma forma mais níti da, a realidade dos grupos sociais, das ati vidades econômicas e das insti tuições de cada loca-lidade, o que facilita o planejamento de ações governamentais para o desenvolvimento dessas regiões. Consultar o documento Território da Cidadania, disponívelem:htt p://www.mda.gov.br/portal/index/show/index/cod/1816/codInterno/16264. Pesquisa realizada em 22/9/2008

(17) O arti go 30 da consti tuição, nos seus incisos I e VII, dispõe sobre a competência do município. O in-ciso I discorre sobre assuntos de “interesse local”, sem especifi cação, e o inciso VII discorre sobre o ordenamento territorial intraurbano, como parcelamento e lei de usos e ocupação do solo.

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(18) Segundo alguns autores, o baixo grau de desenvolvimento econômico leva a práti cas clientelísti -cas e de apropriação do espaço público pela elite, o que faz com que a qualidade da parti cipação resulte comprometi da. Mesmo autores que também reconhecem a importância das mudanças insti tucionais, alertam como o fazem Bonfi m e Silva (2003), que mudanças de qualquer natureza e ainda mais com o propósito de empoderamento, revelam-se como algo dispendioso, tanto do ponto de vista da ação coleti va, quanto da perspecti va relati va à mobilização de recursos políti -cos. Ou seja, embora haja condições de se induzir, por meio de mudanças no desenho insti tucio-nal, uma trajetória de empoderamento numa determinada sociedade não só demanda tempo para consolidar-se, quanto supõe certos pré-requisitos (inclusive históricos e de capital social) para a “largada” no curto prazo e para a consolidação em perspecti va mais longa, sobretudo em regiões que vivenciam um desenvolvimento tardio.

(19) Essa classifi cação foi apresentada com base na ti pologia proposta pela Secretaria de Desenvolvi-mento Regional do Ministério da Integração Nacional, que divide as microrregiões entre as de Alta Renda, Dinâmica, Estagnada e de Baixa Renda.

(20) Em setembro de 2008, foi realizada pesquisa de campo na Região Serrana de Santa Catarina e entrevistado Gilsoni Lunardi Albino, na época, secretário executi vo da AMURES - Associação dos Municípios da Região Serrana, com sede em Lages.

(21) Realizaram-se as 1as. Plenárias na RDs para levantamento de demandas/projetos necessários. Seguiram-se 2as. Plenárias nas RDs, para defi nição de prioridades, em função das planilhas de custos de execução dos projetos necessários. Formaram-se as Comissões de Desenvolvimento Regional. Seguiu-se a elaboração, pelos técnicos do governo dos Planos Plurianuais Regionais, integrantes do PPA do Estado, posteriormente apreciados pela Assembléia Legislati va do Esta-do. O número de representantes na CDR era dado pela quanti dade de municípios componentes da RD.

(22) Reuniões mensais dos Comitês de Desenvolvimento Regionais, em que se defi ne a agenda de prioridades, são realizadas com a coordenação das Secretarias Regionais. Seguem-se discussões no âmbito dos Comitês Temáti cos, com base nas informações, estudos de viabilidade e de im-pactos. As decisões sobre as ações estratégicas são tomadas nas reuniões dos CDRs que tornam-se corresponsáveis pelo acompanhamento das ações nas Secretarias Regionais. Cada Conselho de Desenvolvimento Regional é formado por quatro representantes de cada um dos municípios que integram a região administrati va, sendo dois mandatários (o Prefeito e o presidente da Câ-mara de Vereadores) e dois representantes da sociedade civil. O conselho é presidido pelo Se-cretário Regional.

(23) Foi elaborado um estudo sobre a opinião dos atores sociais envolvidos, a respeito dos resultados obti dos no Programa Governo nos Municípios, em Pernambuco (Lubambo e Coelho, 2005). De maneira complementar, foram realizados grupos focais nos Conselhos Municipais de Desenvol-vimento Rural na Região de Desenvolvimento do Agreste Meridional de Pernambuco, em agosto de 2008. Este trabalho conta com informações levantadas entre os Conselhos de Desenvolvi-mento Regional na Região de Lages, em Santa Catarina, em setembro de 2008. Considerações importantes foram, também, tomadas a parti r do estudo de Birkner (2006) sobre o capital social em Santa Catarina.

(24) Defi nimos a direita tradicional como o somatório do PDS/PPR/PPB/PP, além do PFL/DEM, e do PTB. Em 1994, o PDS tornou-se o PPR, o qual, posteriormente, mudou de nome para PPB. Ver Tarouco (2008).

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(25) Marta Arretche (2004, p. 20) sugere elementos tais como a fragmentação do sistema parti dário que tem implicado reduzido número de prefeitos e governadores do mesmo parti do e a ausên-cia de uma centralização no sistema parti dário, gerando certa insubordinação dos governadores e prefeitos em relação às direções dos seus respecti vos parti dos.

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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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Regularização de assentamentosurbanos e sustentabilidade

Manoel Teixeira Azevedo Jr.

ResumoO presente artigo discute os programas de regularização de assentamentos informais ou de loteamentos irregulares do ponto de vista da sustentabilidade urbana, compreendida em sentido amplo, não só o da concepção do pro-grama para cada assentamento em particular, mas, principalmente, o da relação desses pro-gramas com a lógica de produção do espaço da cidade como um todo, em especial de suas pe-riferias. Para tal, aborda as possibilidades dos instrumentos de política urbana do Estatuto da Cidade para a reversão da permanente repro-dução da precariedade das periferias e para a universalização do direito à cidade.

Palavras-chave: regularização urbana; as-sentamentos informais; sustentabilidade urba-na; Estatuto da Cidade; direito à cidade.

AbstractThe present paper discusses the programs of regularization of informal settlements or irregular allotments from the point of view of urban sustainability, understood in a broad sense, not only the conception of the program for each settlement in particular, but, principally, the relationship of these programs to the logic of production of the city space as a whole, especially its peripheries. The paper approaches the possibilities of the urban policy instruments of the City Statute for the reversion of the constant reproduction of precarious peripheries and for the universalization of the right to the city.

Keywords: urban regularization; informal settlements; urban sustainability; City Statute; right to the city.

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Introdução

A idéia de sustentabilidade, associada ao meio urbano, vem sendo largamente utiliza-da tornando-se, em muitos casos, uma espé-cie de jargão, que legitima qualquer projeto e lhe amplia o alcance urbano, dando-lhe, supostamente, permanência e continuidade para além do momento e das circunstâncias de sua produção. Ligado à questão da regu-larização de assentamentos urbanos, o ter-mo deveria abranger duas escalas interrela-cionadas: a do assentamento em si e a da cidade, compreendendo esta tanto os impac-tos das ações de regularização sobre o en-torno imediato como suas vinculações com as políticas urbanas mais gerais, relativas à cidade como um todo, notadamente as de produção de moradias, expansão urbana e regulação do mercado de terras e ocupação dos vazios urbanos. As iniciativas recentes, em grande medida apoiadas por programa específico do governo federal, através do Ministério das Cidades, têm se prendido ba-sicamente ao primeiro aspecto, deixando o segundo a cargo dos planos diretores mu-nicipais, espaço mais adequado, a princípio, para sua abordagem.

Embora não seja possível no momento uma avaliação consistente, a nível nacional ou regional, da aplicação dos instrumentos de política urbana do Estatuto da Cidade, in-seridos de formas variadas na última “safra” de planos diretores, a maioria terminados em 2006, a partir de prazo fi xado pelo próprio Estatuto (Art. 50), é possível, por leitura preliminar de planos diretores de municípios da região metropolitana de Belo Horizonte e do Estado de Minas Gerais, perceber uma certa timidez na aplicação e articulação dos

instrumentos de política urbana no sentido de alterar a ordem excludente característi-ca dos processos brasileiros de urbanização. Desse modo, as ações de reurbanização e regularização fundiária, por mais que arti-culadas em programas municipais bem es-truturados e que têm, nos melhores casos, buscado incluir a dimensão social, tentando abrir perspectivas de superação da pobreza, acabam sendo marcadas pelo caráter emer-gencial de melhoria de situações críticas, as quais tendem a permanentemente recriar-se, sem que a estruturação das cidades se altere, em especial no aspecto de sua pro-funda diferenciação socioespacial.

Neste artigo, buscamos discutir as pos-sibilidades de interferir nesse processo, de modo a melhor articular as ações pontuais de regularização fundiária com políticas que redirecionem, em alguma medida, a lógica de produção e de expansão do tecido urbano das cidades brasileiras, a partir da utilização dos instrumentos de reforma urbana colo-cados à disposição das administrações locais pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01). Ou seja, tenta-se refl etir sobre o potencial desses instrumentos para a efetivação de um princípio de sustentabilidade ao nível da cidade ou do aglomerado urbano como um todo.

Trabalha-se, assim, com a clássica ideia de desenvolvimento sustentável, no qual a resolução de nossas demandas atuais não compromete as das futuras gerações, o que implica, no caso da expansão informal dos tecidos urbanos, atuar sobre as causas desse processo e sobre os mecanismos da produção do espaço urbano periférico, en-tendido este, não de um ponto de vista da localização em relação aos espaços centrais, mas no sentido dos territórios de exclusão,

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de pobreza e miséria que as cidades brasi-

leiras estão constantemente a recriar. No

entanto, essa atuação deve articular-se com

o resgate da enorme dívida social represen-

tada pela precariedade dos assentamentos e

das condições de vida de boa parte da po-

pulação brasileira. A sustentabilidade supõe,

assim, em primeiro lugar, a reversão dos

níveis de desigualdade de renda e de acesso

a bens e serviços, o que supera largamente

o campo das ações de melhoria urbanística

e de moradia, embora as inclua. Represen-

ta também, uma perspectiva de maior efi -

cácia na aplicação dos recursos públicos, na

medida em que tende a, progressivamente,

diminuir as demandas de ações curativas

de reurbanização, liberando recursos para

áreas de atuação mais permanente do Poder

Público, como as de educação, saúde, trans-

portes, entre outras. Signifi ca a perspecti-

va de que os programas de reurbanização

alcancem seus objetivos de mudança social,

não de forma pontual e fragmentária, mas

de forma ampliada no território e no tempo,

ou seja, de forma sustentável, tornando-se

residuais no longo prazo, em uma visão que

hoje se afi gura quase quimérica.

Para se ter uma ideia da dimensão do

problema, estima-se que na América Latina,

onde cerca de 75% da população vive em

áreas urbanas, 25% dessa população está

em assentamentos informais (Fernandes,

2006). No Brasil, a população moradora de

favelas nas principais metrópoles se situa,

em geral, acima de 20% do total, chegando,

nos casos de Recife, Salvador e Fortaleza a,

respectivamente, 46%, 30% e 31% (Mari-

cato, 2001). Isso sem contar a enorme po-

pulação vivendo em parcelamentos periféri-

cos irregulares e de precária urbanização.

Reforma urbana e ação institucional

Em um quadro como este, colocar a pers-pectiva da sustentabilidade urbana implica retomar o tema da reforma urbana, origem do Estatuto da Cidade, e o alcance dos ins-trumentos legais que hoje estão disponíveis para encaminhá-la, já que se trata, muito mais, de implantar um processo do que ope-rar uma mudança brusca. Trata-se de ins-taurar, de forma negociada, um redireciona-mento das práticas de produção do espaço urbano, revertendo suas implicações sociais perversas e excludentes.

O tema da reforma urbana, seu debate no ambiente técnico e político e as lutas e reivindicações a ela vinculados, nascem, ain-da na década de 60, como desdobramento, no âmbito das cidades, das lutas pela refor-ma agrária e, portanto, muito marcados pe-las questões fundamentais do acesso à terra e à moradia nas cidades. A reforma urbana é impulsionada, assim, pela necessidade de se repensar a propriedade privada da terra nas cidades e a lógica de produção do espaço urbano, que excluía, e ainda exclui, as parce-las mais pobres da população do acesso ao mercado imobiliário formal, empurrando-as para as favelas ou para o mercado dos par-celamentos periféricos irregulares.

Tendo como passo inicial o Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, realizado em Petrópolis, em 1963, as de-mandas de reforma urbana ganham resso-nância dentro do próprio regime militar que, reconhecendo o caráter danoso da retenção especulativa de terras para a própria pro-dução capitalista do espaço urbano, inicia, em 1977, no âmbito da Comissão Nacional

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de Regiões Metropolitanas e Política Urba-na (CNPU) e, posteriormente, no Conselho Nacional de Política Urbana (CNDU), discus-sões para a criação de uma Lei Nacional de Desenvolvimento Urbano, a qual é encami-nhada ao Congresso apenas em 1983 (Pro-jeto de Lei 775/83).

Como parte do processo de redemo-cratização do país e concomitante revigora-mento das organizações da sociedade civil, é constituído o Movimento Nacional de Re-forma Urbana, que terá papel fundamental durante a elaboração da nova constituição, através da apresentação da Emenda Popu-lar da Reforma Urbana, com mais de 130 mil assinaturas, que repercutirá no avanço signifi cativo da Constituição no campo da Política Urbana. Esse avanço se dá, especial-mente, pela explicitação da necessidade de a propriedade privada cumprir uma função social, a ser defi nida pelos planos diretores municipais, e pela instituição de instrumen-tos de combate à retenção especulativa de imóveis e de reconhecimento do direito de propriedade e de permanência em seus lo-cais de moradia aos ocupantes de áreas ur-banas (usucapião urbana).

Visando regulamentar os dispositivos do texto constitucional, o senador Pompeu de Souza apresenta projeto de lei substitu-tivo ao PL 775/83, denominando-o Estatu-to da Cidade, o qual é aprovado em 1990 no Senado (PL 181/90). Após 11 anos de trâmite no Congresso e muitas alterações, o projeto ganha sua aprovação fi nal e é san-cionado pelo Presidente da República em julho de 2001, gerando o primeiro marco legal para uma nova política de gestão das cidades brasileiras, o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/01.

Em que pese a enorme importância do Estatuto da Cidade, ele por si não realiza a reforma urbana. Coloca uma gama de instrumentos legais à disposição dos mu-nicípios, cabendo a estes, através do Poder Público e da participação do conjunto da so-ciedade organizada, usarem de forma com-binada esses instrumentos, como alavancas para a construção de um novo padrão de-mocrático e igualitário de cidade. Tal pa-drão decorre, evidentemente, também de uma nova postura de garantia de direitos sociais (à educação, à saúde, ao trabalho, etc.) e de ações que priorizem a efetivação de tais direitos.

Como forma de implementação do Estatuto da Cidade, o Ministério das Ci-dades desenvolve, a partir de sua criação, em 2003, ações de divulgação do mesmo junto aos municípios, priorizando a elabo-ração dos planos diretores participativos. Esse instrumento, muito difundido, embora com pouca efi cácia, durante a administração tecnocrática do regime militar, ganha novo alento a partir da importância que lhe con-fere o texto constitucional para a aplicação dos instrumentos de cumprimento da fun-ção social da propriedade. A grande novida-de nessa nova fornada de planos diretores é, sem dúvida, além da possibilidade de aplica-ção dos instrumentos do Estatuto da Cida-de, a obrigação de participação da sociedade em sua formulação, o que enfatiza sua di-mensão política, como uma espécie de pac-to social em torno de um projeto de cidade, ampliando a familiaridade com as questões técnicas da gestão urbana, tirando desta o aspecto de algo acessível apenas a especia-listas, e permitindo o acompanhamento da implementação dos planos.

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O apoio à elaboração de planos direto-res participativos, prioridade do Ministério das Cidades no período de 2003 a 2006, inscreve-se em uma linha de “ação preven-tiva” do Ministério, traduzida no Progra-ma de Fortalecimento da Gestão Municipal, buscando “evitar a formação de novos as-sentamentos precários no país; a formação de ocupações e usos do solo predatórios do patrimônio cultural e ambiental; e apropria-ções indevidas dos investimentos coletivos” (Rolnik et al., 2007, p. 9). A esta se soma uma linha de “ação curativa”, traduzida no Programa Papel Passado (Programa Nacio-nal de Apoio à Regularização Fundiária Sus-tentável) e no Programa de Gerenciamento e Remoção de Riscos.

Do ponto de vista da sustentabilidade urbana, as ações curativas reconhecem as situações de irregularidade existentes e pro-curam equacioná-las segundo um novo pa-tamar de qualidade urbanística, enquanto as ações preventivas procuram introduzir uma nova lógica de produção do espaço urbano, de modo a inibir a reprodução constante das situações de irregularidade e precariedade urbanas, as quais demandam novas ações curativas e fazem com que o Poder Público esteja sempre correndo atrás da mitigação de situações criadas por processos sobre os quais não é capaz de interferir.

O Programa Papel Passado assume a questão da sustentabilidade a partir de duas preocupações fundamentais: a primeira, a de não pensar a regularização apenas na dimensão legal, a da garantia da obtenção do título de propriedade, mas também na dimensão urbanística, ou seja, incluindo in-tervenções de reurbanização, atendimento às exigências urbanísticas das leis de parce-lamento do solo, remoção de ocupações em

áreas de risco, reassentamento de famílias, resolução de situações de ocupação de áreas de proteção ambiental, etc. Dessa forma, a regularização é pensada de maneira ampla, correspondendo a uma requalificação ur-bana que busca promover a integração so-cioespacial dos assentamentos à cidade. A segunda preocupação que fundamenta a utilização do princípio de sustentabilidade é o envolvimento da comunidade interessada, tornando-a partícipe das decisões urbanís-ticas, consciente dos problemas específi cos de irregularidade e dos instrumentos legais mais adequados para enfrentá-los e respon-sá vel, junto com o Poder Público, pelo acom panhamento da dinâmica de ocupação da área após o processo de regularização fundiária, de modo a evitar que situações de ocupação irregular se recriem e de modo a estabelecer um novo padrão de relação da população com os recursos ambientais, em especial os cursos d’água, as nascentes, as áreas de proteção da fl ora ou da fauna e as áreas com risco para a ocupação. Reforçam-se assim, os vínculos da população com seu ambiente de vida, fazendo-a efetivamente, não apenas dona de sua propriedade parti-cular, mas também daquilo que diz respeito ao espaço coletivo, ao bairro e aos interes-ses da comunidade. Amplia-se a autoestima dos moradores, com repercussões no cuida-do com a moradia e o bairro e no reforço dos laços com sua comunidade.

Sustentabilidade e direito à cidade

A sustentabilidade urbana, no entanto, não pode ser entendida apenas no nível de cada

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assentamento em particular, mas as ações nestes devem estar inseridas em uma polí-tica urbana que diz respeito ao conjunto da cidade e, no caso dos grandes aglomerados urbanos, ao contexto regional e metropo-litano em que as cidades ou os municípios se encontram. Por um lado, cada assenta-mento objeto de regularização interage com um contexto imediato que é impactado, em maior ou menor medida, pelas ações que se dão nele. Por outro lado, suas especifi ci-dades são parte de um processo amplo de produção do espaço periférico, marcado pela informalidade no acesso ao solo urbano e à moradia. As principais causas desse processo

[...] vão desde fatores globais e fatores

macroeconômicos até variáveis locais,

mas cinco causas principais merecem

atenção especial, quais sejam: a falta de

opções formais resultantes da natureza

das políticas fundiárias, habitacionais,

urbanas e fi scais dos governos; a dinâ-

mica excludente dos mercados de terras

formais, que não incluem os pobres; a

longa tradição de manipulação política

dos moradores de assentamentos in-

formais mediante práticas renovadas

de clientelismo político; os sistemas de

planejamento urbano elitistas e tecno-

cráticos que são implantados pelas ad-

ministrações locais, sem levar em conta

as realidades socioeconômicas de acesso

ao solo e produção da moradia e nem a

capacidade de ação das administrações

locais para garantir o cumprimento da

legislação urbanística; e a natureza ob-

soleta dos sistemas jurídicos e procedi-

mentos judiciais que ainda prevalecem

na maioria dos países em desenvol-

vimento e em transição. (Fernandes,

2006, p. 50)

A regularização fundiária é parte fun-damental do direito social de moradia, mas suas implicações e repercussões na reestru-turação do espaço urbano devem percebê-la na perspectiva da promoção de um direito mais amplo: o direito à cidade. Nesse sen-tido, os programas de regularização de as-sentamentos urbanos devem fazer parte de uma estratégia de política urbana que inclui, entre outras, as ações sobre a estrutura fun-diária, a ocupação de vazios, a produção de moradias de interesse social e a distribuição dos equipamentos públicos, disseminando-os no espaço da cidade, com prioridade para sua implantação nas áreas periféricas. Essa estratégia deve estar intimamente articulada com outras políticas públicas, notadamente as de transporte e mobilidade urbana, de educação e geração de renda, de qualifi ca-ção e universalização dos serviços de saúde, entre outras. Embora todas essas políticas devam ser concebidas em termos da cidade ou da metrópole como um todo, suas pro-postas específi cas já devem ser incorporadas nos diversos programas de regularização, sendo que algumas já deveriam, necessa-riamente, fazer parte deles, caso das ações de capacitação profi ssional da população e geração de renda e das de implantação de equipamentos comunitários, respeitadas as características e demandas particulares de cada assentamento e suas relações com o entorno. Isso inscreveria mais efetivamen-te os programas de regularização enquanto ações curativas de resgate de direitos so-ciais, em uma política ampla de sustentabi-lidade urbana.

Evidentemente, deve-se considerar também a amplitute das ações de regula-rização. Se elas se constituem em efetivos programas de reurbanização que, além de

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garantir a infraestrutura básica, requalifi -quem os espaços públicos, na perspectiva de uma maior homogeneidade nos padrões de urbanização, superando as enormes dis-paridades imperantes nas cidades brasilei-ras, elas têm condições de serem efetivas propulsoras do direito à cidade. Nesse caso, as ações específi cas em cada assentamento deveriam fazer parte de estratégia geral de reurbanização das áreas periféricas, de modo a evitar disparidades urbanísticas que tendem a reforçar processos pontuais de va-lorização imobiliária, geradores de expulsão progressiva das populações benefi ciadas, o que comprometeria os objetivos pretendi-dos de melhoria da qualidade de vida dessas populações. Tal estratégia ampla de reur-banização demanda um volume de recursos que implica, tanto um forte compromisso da sociedade, em especial dos setores mais ricos, com a diminuição das disparidades urbanísticas no interior das cidades, como a introdução de novas fontes de fi nanciamen-to, para as quais os instrumentos de política urbana previstos pelo Estatuto da Cidade podem ser de grande valia, como discutire-mos mais adiante.

Se os projetos de regularização se restringem, como tem sido bastante usual, à infraestrutura básica, a poucas obras prioritárias de articulação viária e a sanar situa ções emergenciais de inadequação de ocupa ção, seu impacto sobre o entorno se-rá, evidentemente, limitado, como limitada será sua capacidade de alterar o quadro de diferenciação socioespacial da cidade. De certa forma, se estará sacramentando uma urbanização de segunda categoria, um pa-drão empobrecido de urbanização para os mais pobres, a quem se oferecem peque-nas benesses, no mais das vezes pontuais

e sem atingir sequer o conjunto das áreas por eles ocupadas.

Isso não deslegitima as ações que vêm sendo efetuadas e todo o esforço de diver-sas administrações municipais apenas tenta perceber os limites de tais ações e sua pouca efi cácia em uma avaliação de sustentabilida-de urbana e de encaminhamento da garantia do direito à cidade. Reconhece-se, no en-tanto, a magnitude das situações de preca-riedade urbana e o acúmulo de problemas de toda ordem, contrapostos a uma grande limitação de recursos e à baixa prioridade da sociedade para a resolução dessas questões, o que só alimenta a desesperança nas possi-bilidades de alteração desse quadro.

As opções para o enfrentamento das disparidades socioespaciais se colocam para o jogo das forças políticas da sociedade bra-sileira. Os planos diretores e o conjunto do sistema de participação social na gestão dos municípios são, sem dúvida, espaços funda-mentais para a defi nição dessas prioridades e do modelo de cidade que se pretende, mas essas questões estão permanentemente se recolocando, a partir da própria dinâmica social e política, na lenta e necessariamente confl ituosa construção de cidades mais de-mocráticas e igualitárias.

Percebe-se, assim, a clara dimensão política do direito à cidade, que inclui o di-reito à terra e à moradia, mas os amplifi -ca, inserindo-os em um direito aos bens e serviços produzidos pela sociedade. Nesse caminho, é fundamental um patamar de urbanização a todos garantido, condição preliminar para um convívio social menos marcado pela violência e o estranhamento entre os grupos sociais. Direito à cidade é, assim, requisito básico para o exercício pleno da cidadania.

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Instrumentos de política urbana

Dentro dessa perspectiva, duas vertentes ar-ticuladas deveriam nortear, no âmbito das políticas urbanas, a atuação do Poder Públi-co: habitação e urbanização. O enorme défi -cit habitacional, aliado às condições precárias em que vive boa parte da população urbana e à sua exclusão do mercado imobiliário for-mal, exige um enorme esforço de produção de novas moradias e de urbanização e regu-larização fundiária de assentamentos infor-mais. Isso implica, para além da capacitação e organização das administrações munici-pais, grande aporte de recursos fi nanceiros, que demandam a previsão de novas fontes de fi nanciamento, a priorização desses in-vestimentos nos orçamentos municipais e a diminuição dos custos de acesso à terra, um dos gargalos de qualquer política de pro-dução de moradias. Trata-se, portanto, de ações de caráter, não apenas técnico, mas eminentemente político, envolvendo a es-colha de instrumentos, a amplitude de sua aplicação e a pactuação na distribuição de ônus e benefícios.

Na questão do acesso à terra, instru-mento importante é previsto pela Consti-tuição e regulamentado pelo Estatuto da Cidade: a Usucapião Especial de Imóvel Ur-bano que, ao assegurar o direito de perma-nência e domínio para aqueles que ocupam há mais de cinco anos imóveis urbanos de até 250 m2, sem contestação judicial e não sendo proprietários de outros imóveis, é fundamental para a regularização fundiária das favelas, no caso de áreas de proprieda-de privada. Sua utilização foi enormemen-te facilidade pela possibilidade de aplicação

coletiva, na forma de condomínio especial, resolvendo a grande dificuldade e quase inviabilidade de utilização do instrumento se os processos de usucapião tivessem, no caso das favelas, que ser feitos de forma individualizada.

O sucedâneo da usucapião, no caso de áreas de propriedade pública, é Concessão do Direito Real de Uso e, especialmente, uma forma específi ca desta instituída pela Medida Provisória n° 2.220/01, a Conces-são Especial de Uso para fi ns de Moradia. Esse instrumento garante a permanên-cia nos locais de moradia àqueles que, até 30/6/2001, ocupavam por cinco anos con-tínuos, sem oposição, áreas públicas de até 250 m2, sem serem proprietários de outro imóvel. A medida exclui desse direito uma série de áreas públicas (as de uso comum do povo, as de risco, as destinadas a projetos de urbanização, as de preservação ambien-tal, entre outras), prevendo, no entanto, que, nesses casos, o Poder Público deverá promover o reassentamento das famílias ocupantes. É importante ressaltar que, dife-rente da Concessão do Direito Real de Uso, que é uma “prerrogativa do Poder Público”, a Concessão de Uso Especial para fins de Moradia, ao criar um “direito subjetivo” do ocupante, implica “obrigação do Poder Pú-blico” (Fernandes, Edésio em Rolnik, 2007). Esse instrumento havia sido vetado no Esta-tuto da Cidade por este não prever os casos de não aplicabilidade e não estabelecer a da-ta limite para sua aplicação, sem a qual, su-postamente, poderia ocorrer uma “corrida” de ocupação de áreas públicas.

Outro instrumento importante é a de-fi nição de Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS) que, além de possibilitar a aplicação de parâmetros específicos de urbanização

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no caso de assentamentos existentes e, nes-se sentido, facilitar a implantação dos pro-gramas de regularização, poderia ser muito mais explorado pelos planos diretores na defi nição de áreas para futuros programas habitacionais, criando uma espécie de reser-va de terrenos para tais programas, cujos valores tenderiam a se retrair em função do próprio zoneamento. Assim, além de possi-bilitar a formulação de uma política de mé-dio e longo prazos para a produção de mo-radias, a defi nição das ZEIS, ao baratear os custos de acesso aos terrenos, poderia ser combinada, para a implantação dos progra-mas habitacionais, com a utilização de ins-trumentos fi scais de incentivo à participação da iniciativa privada nesses empreendimen-tos ou de instrumentos de parceria com o setor privado, como o Convênio Urbanístico de Interesse Social. Neste, Poder Público e iniciativa privada se associam, entrando, um com o terreno, outro com obras, viabilizan-do programas habitacionais e permitindo, entre outras possibilidades, que o ressarci-mento pelo uso de terrenos privados se dê através de parcelas urbanizadas dos mes-mos, que permanecem com os proprietários originais, enquanto o restante é utilizado no programa de interesse social.

A defi nição como ZEIS das áreas onde se aplicarão a Usucapião ou a Concessão de Uso Especial para fi ns de Moradia é impor-tante como forma de inibir possíveis pres-sões do mercado imobiliário para venda das áreas regularizadas, na medida em que, co-mo ZEIS, a destinação dos terrenos é a ha-bitação de interesse social, com parâmetros mais restritivos de tamanho do lote e de ocupação do terreno, o que tende a diminuir sua atratividade para o mercado imobiliário (Alfonsin, Betânia em Rolnik, 2007).

No entanto, a regularização fundiária e a reurbanização de favelas e loteamentos precários, trabalhando no socorro às situa-ções existentes, devem estar ligadas, como já apontado, a políticas que alterem o mo-do perverso de produção do espaço urbano, em especial nas grandes metrópoles. Essa produção tem se caracterizado pelo baixo padrão urbanístico e por uma ocupação ex-tensiva e rarefeita das áreas periféricas, dei-xando grandes áreas vazias, encarecendo os custos per capita de implantação das infra-estruturas urbanas e obrigando a popula-ção a percorrer enormes distâncias, o que é agravado pela, em geral, baixa qualidade dos serviços públicos de transporte. Além disso, os demais serviços urbanos (de edu-cação, saúde, lazer, etc.) são também, em geral, marcados pela defi ciência quantitativa e qualitativa. Com isso, aumenta a espolia-ção da população pobre, agregando à baixa remuneração do trabalho e consequentes restrições de consumo, uma deterioração da qualidade de vida que decorre da própria forma da cidade e da qualidade dos serviços e equipamentos urbanos.

Para enfrentar essa situação, além das fundamentais políticas de melhoria dos servi-ços de educação, saúde, lazer e transportes, é preciso, no âmbito das políticas fundiárias e de ocupação urbana, restringir os períme-tros de expansão urbana, dimensionando-os em função, não das demandas de valoriza-ção especulativa e dos interesses de proprie-tários de terrenos, mas sim da real demanda de terras para urbanização, calculada para um horizonte de tempo relativamente curto (em torno de cinco anos) e periodicamente reavaliada. Nesses cálculos, deve-se consi-derar o estoque de áreas vazias e de cons-truções desocupadas no interior das cidades,

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em especial nas áreas centrais. Essa política de controle da expansão urbana deve estar associada a uma política agressiva que esti-mule e mesmo obrigue a colocação no mer-cado e a ocupação desses imóveis vazios, subutilizados ou sem utilização, ou seja, que imponha a eles o cumprimento de sua função social. Instrumentos para isso são os colocados na Constituição e regulamentados no Estatuto da Cidade: o Parcelamento, Edi-ficação e Utilização Compulsórios, o IPTU progressivo e a Desapropriação com títulos da dívida pública, cuja utilização deve se dar de maneira sucessiva.

Com isso, estar-se-ia trabalhando na perspectiva de geração de uma cidade com-pacta, menos espraiada, com maior rentabi-lidade e economia na implantação e utiliza-ção das infraestruturas e equipamentos ur-banos. Essa política de ocupação de vazios urbanos e de imóveis subutilizados ou não utilizados e de controle da expansão terri-torial deveria estar articulada com as políti-cas de produção maciça de novas moradias ou lotes urbanizados de interesse social, valendo-se, para isso, dos mecanismos de defi nição de ZEIS e das parcerias entre Po-der Público e iniciativa privada. Combinar-se-iam, assim, mecanismos de imposição do cumprimento da função social da proprieda-de, com mecanismos de viabilização de tal cumprimento.

É importante ressaltar que a produção de moradias em larga escala e a oferta de lotes com condições urbanísticas satisfató-rias e localização adequada para a população mais pobre é fator fundamental para a pre-venção e inibição do processo de desenvolvi-mento urbano informal (Fernandes, 2006).

A outra questão fundamental é a dos padrões de urbanização. Não há como

conciliar cidadania e democracia com as enormes disparidades nos padrões de ur-banização que caracterizam as cidades bra-sileiras. Garantir uma equalização mínima desses padrões é não só fundamental para o direito à cidade, mas também instrumen-to para diminuir as enormes disparidades no valor das terras urbanas e, portanto, fator essencial para facilitar a produção de novas áreas urbanizadas. É essencial tam-bém para a perspectiva da sustentabilidade urbana, notadamente na sua dimensão so-cial. Evidente que esse esforço de requali-fi cação urbanística dos territórios periféri-cos da cidade, que inclui os programas de regularização de assentamentos informais, mas os ultrapassa, abrangendo o conjun-to da precariedade urbanística das perife-rias, exige grandes recursos fi nanceiros e uma das formas de obtê-los é a exploração mais adequada e socialmente direcionada dos instrumentos de justiça na produção do espaço urbano previstos no Estatuto da Cidade. O principal deles é a Concessão Onerosa do Direito de Construir, que taxa os empreendimentos com maior densidade construtiva, em decorrência do fato de que a permissão de tal adensamento decorre da presença de uma infraestrutura implantada pela coletividade. Por isso esta deve rece-ber uma contrapartida por tal concessão. Esse instrumento, usado de maneira inte-ligente e inserido em uma política coerente de uso e ocupação do solo, pode gerar uma massa signifi cativa de recursos que deveria alimentar fundos de urbanização ou fundos de habitação social, propiciando aporte de recursos para o grande esforço de produ-ção de moradias e reurbanização de áreas periféricas que a perspectiva da universali-zação do direito à cidade impõe. Tal política

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deveria ter como princípio onerar as áreas de maior interesse do mercado imobiliário, em geral destinadas à população mais rica, e ser aplicado diferenciadamente em outras áreas da cidade, através de redutores ou mesmo de isenções, dentro de uma estraté-gia, pensada para a cidade como um todo, de estímulos ou inibições ao adensamento populacional ou construtivo.

Infelizmente, por pressão dos interes-ses imobiliários e o argumento de que es-se instrumento iria sobrecarregar o custo fi nal das unidades construídas, a Concessão Onerosa do Direito de Construir tem sido muito pouco explorada nos planos diretores ou aplicada de modo extremamente tímido, com valores baixos de contrapartida, sem gerar os efeitos sociais que possibilitaria. O argumento do aumento do custo fi nal das construções é verdadeiro, mas não necessita incidir sobre o conjunto da produção de mo-radias do mercado formal, de acordo com uma estratégia diferenciada para sua aplica-ção, que inclui a consideração das diferenças de renda nos grupos sociais que demandam o mercado imobiliário. Além disso, seu im-pacto sobre o custo fi nal da construção ten-deria a ser diluído pelos diversos comprado-res, em geral de maior poder aquisitivo. A aplicação do instrumento deve, assim, estar balizada por critérios sociais e sua utilização plena faz parte das decisões políticas da so-ciedade e do nível de responsabilidade que os setores mais ricos pretendem assumir no esforço de diminuição das desigualdades socioespaciais. Dentro dessa mesma linha, poderiam ser previstas também formas de contrapartida social, destinadas a fundos de urbanização ou de habitação, para lotea-mentos urbanos direcionados aos estratos mais ricos da população.

Outro instrumento importante de jus-tiça na produção do espaço urbano são as Operações Urbanas Consorciadas que, nos grandes obras públicas de reurbanização, em especial as viárias, pode reverter a lógica tradicional de apropriação privada da valo-rização decorrente do investimento público, fazendo com que aqueles que lucram em função dessas obras participem no custeio das mesmas. Dentro das Operações Urba-nas, o instrumento em geral mais utilizado para a geração de recursos de custeio das obras envolvidas é, justamente, a Concessão Onerosa do Direito de Construir.

A Contribuição de Melhoria é outro instrumento que trabalha nessa mesma di-reção. A utilização deles, além dos objetivos de melhor distribuir os ônus e benefícios do investimento público, tende a desonerar os cofres públicos, liberando maiores recursos para outros investimentos, em especial nas áreas periféricas.

A dimensão metropolitana

É importante destacar, em especial no con-texto das grandes cidades, que a aplicação desse conjunto de instrumentos de políti-ca urbana só pode ter efi cácia se realizada dentro de uma gestão de âmbito metropo-litano, ou seja, dentro das chamadas ques-tões de interesse comum dos municípios componentes de aglomerados ou regiões metropolitanas. Se isso já é claro e vem sendo praticado em relação a questões co-mo o abastecimento de água, o esgotamen-to e tratamento de efl uentes sanitários, a macrodrenagem urbana, o sistema viário estruturante e o sistema de transportes

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coletivos, outras questões têm sido trata-das de modo fragmentado pelos diversos municípios. Não há como conceber políti-cas coerentes de produção de moradias, de reurbanização de periferias e regularização de assentamentos informais, e mesmo polí-ticas de implantação dos equipamentos co-munitários de educação, saúde, lazer, entre outros, sem tratá-las no âmbito do espaço metropolitano.

Na medida em que a produção do es-paço periférico nas grandes cidades, com suas características de precariedade e se-gregação se dá, em geral, menos no municí-pio central e muito mais nos municípios ao redor deste, em assentamentos conurbados ou que se estendem, fragmentariamente, em um amplo espaço regional polarizado pelo município principal, a política urbana deve ser pensada a partir dessa realidade supralocal e não como somatório de polí-ticas municipais, em geral desarticuladas. A defi nição dos perímetros urbanos, a aplica-ção dos dispositivos de combate à retenção especulativa de terras, a defi nição das ZEIS para novos programas habitacionais, o mo-do de aplicação da Concessão Onerosa do Direito de Construir, articulada a um fundo de urbanização ou de habitação, entre ou-tros instrumentos, só ganham efi ciência e se tornam efetivos mecanismos de sustentabi-lidade urbana se concebidos através de uma articulação política de âmbito metropolitano ou regional. No caso, por exemplo, da Con-cessão Onerosa do Direito de Construir, os municípios centrais, onde o interesse e as possibilidades de adensamento são maiores, tendem a ser geradores de recursos que, numa perspectiva metropolitana, devem ser destinados não só para suas áreas periféri-cas mas também, e talvez principalmente,

para as periferias dos municípios mais po-bres, em geral as mais carentes.

Assim, a ideia de um fundo metropoli-tano deveria estar alimentada por recursos, entre outros, da aplicação coordenada des-ses instrumentos, em especial da Concessão Onerosa do Direito de Construir, e com es-tratégias de alocação dos recursos de cará-ter redistributivo, ou seja, priorizando os municípios periféricos, em geral com base econômica frágil e, nesse sentido, incapazes de fazer frente aos problemas sociais e ur-banísticos de toda ordem que suportam.

Essas são questões que recolocam a necessidade de se reestruturar uma gestão dos espaços metropolitanos, agora em um novo patamar: não mais como imposição tecnocrática do poder estadual e federal, como foi a experiência do período do regi-me militar, mas assumindo a dimensão po-lítica de um pacto entre os municípios das regiões metropolitanas, com interveniência da sociedade civil e do poder estadual. Sem a construção dessa articulação metropolita-na, os municípios mais pobres estão fadados à perpetuação de sua condição de pobreza e ações positivas de democratização urba-na em um município podem não atingir os fi ns desejados ou repercutir negativamente em outros, fazendo com que a realidade da segregação e diferenciação socioespacial seja constantemente reproduzida.

Conclusão

A partir das questões aqui levantadas, é pos-sível perceber o grande potencial aberto pelo Estatuto da Cidade para o enfrentamento e a diminuição das desigualdades socioespaciais

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presentes nas cidades brasileiras e sua im-portância para que a perspectiva da susten-tabilidade urbana contemple essa dimensão de reconfi guração física e social das cidades. Cabe à sociedade explorar as possibilidades dos instrumentos disponibilizados pelo Esta-tuto, incrementando sua aplicação criativa e combinada, em um processo de permanente acompanhamento e avaliação de sua efi cá-cia para os objetivos pretendidos. Apesar da discussão e do alerta da necessidade de uma reforma urbana já vir de mais de qua-

renta anos, período em que a questão social nas cidades brasileiras se tornou dramática, abrem-se hoje possibilidades efetivas de en-frentamento dessas questões, até por pres-são da própria realidade e maior consciência dos setores dirigentes, cabendo esperar da sociedade como um todo, especialmente dos governos e das classes mais ricas, que sejam capazes de perceber a dimensão do proble-ma e a necessidade de agir com consistência, na perspectiva de resultados duradouros e efetivamente transformadores.

Manoel Teixeira Azevedo Jr.Arquiteto e urbanista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor do Departamento de Arquitetura e Urba-nismo da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Minas Gerais, Brasil)[email protected]

Referências

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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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A construção da esfera públicano planejamento urbano. Um percurso

histórico na cidade de SantosLuiz Antonio de Paula Nunes

ResumoO objetivo deste trabalho é o estudo do proces-so de participação da sociedade civil no planeja-mento urbano no período compreendido entre os anos de 1945 e 2009, tendo como objeto a cidade de Santos, que é tomada como estudo de caso. O foco está na construção e institucio-nalização de espaços políticos, como comissões e conselhos, onde ocorreram debates para for-mulação de propostas de intervenção e elabora-ção de legislação urbanística. Tendo como base uma revisão bibliográfi ca sobre a temática en-volvida, aliada ao levantamento documental, a fi m de constatar como esse percurso histórico se deu, pretende-se responder questões sobre como e por que se construíram e se institucio-nalizaram essas arenas no nível local.

Palavras-chave: cidade; planejamento; cida-dania; governança; democracia.

AbstractThe aim of this work is the study of the process of civil society participation in urban planning in the period between 1945 and 2009, having as object the city of Santos, which is taken as a case study. The focus is the construction and institutionalization of political spaces such as commissions and councils, where debates were held in order to formulate proposals for intervention and urban legislation production. Based on a bibliographical review, allied to a documental survey in order to check how this historical path occurred, the aim is to answer questions about how and why those arenas were built and institutionalized in the local level.

Keywords: city; planning; citizenship; governance; democracy.

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Introdução

A história da democracia deve ser vista co-mo um processo dinâmico, constantemente alterado por mobilizações que a identifi cam cada vez mais com a pluralidade de interes-ses. Nesse percurso histórico, pode ser vista tanto como a oportunidade dos cidadãos de participarem do processo político através do voto como pela possibilidade de participa-rem das tomadas de decisões. Nas últimas décadas do século XX, as questões relativas à participação dos cidadãos tornaram-se presentes em diversas áreas, inclusive na formulação de propostas relacionadas com o desenvolvimento urbano.

A questão que se coloca é: Esse cenário é novo ou é consequência de um percurso histórico em que planejamento urbano, par-ticipação e concepção de democracia estão intrinsecamente relacionados? O que se pretende demonstrar é que, na trajetória histórica do planejamento urbano, ocorreu um processo de construção da esfera públi-ca derivado da trajetória das concepções de democracia, estruturação do Estado, socie-dade civil e cidadania.

Ao fazermos esta análise, encontramos relações entre planejamento urbano e políti-ca, em que a participação passou a assumir papel cada vez mais relevante. Isso implicou a formulação de novos conceitos, tais como espaço público e esfera pública, além da re-defi nição de outros, como sociedade civil e cidadania.

A base teórica teve como principais referências autores como Maria da Glória Gohn, Carole Pateman, Alain Touraine e Norberto Bobbio, além do conceito de es-fera pública de Jünger Habermas e análises

elaboradas sobre esse conceito e sobre so-ciedade civil por, dentre outros, Sérgio Cos-ta, Adrian Lavalle e Elenaldo Teixeira. As referências que aqui constam são apenas aquelas utilizadas para elaboração deste ar-tigo: para verifi car toda a bibliografi a utili-zada na pesquisa vide Nunes (2006).

Neste artigo, privilegiou-se a análise do cenário político brasileiro em conjunto com a história do pensamento urbanístico, to-mando a cidade de Santos como estudo de caso e utilizando o recorte temporal defi ni-do pelos anos de 1945 e 2009, dividido em três períodos. O primeiro período, de 1945 a 1964, trata, no contexto do restabeleci-mento do regime democrático no Brasil, de como o planejamento urbano passou a ser pautado na agenda política. O segundo pe-ríodo, de 1964 a 1984, trata, no contexto histórico do autoritarismo brasileiro, do iso-lamento da atividade do planejamento pela centralização tecnocrática. O terceiro perío-do, de 1984 a 2009, trata, no contexto da redemocratização do Brasil, das recentes experiências de participação no processo de gestão urbana.

1945 a 1964 – Democracia e politização

Nessa época, acirravam-se os confl itos ideo-lógicos, produzindo consequências políticas para o processo democrático de sinais opos-tos. Para o liberal, o protagonismo da socie-dade está no indivíduo, enquanto que, para a chamada “esquerda”, o protagonismo es-tá nos sindicatos e organizações populares. O conceito de democracia, como forma de

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exercício da política, variava de um método para escolher lideranças que tomariam de-cisões em nome dessa maioria a um méto-do efi caz para se resolver confl itos e obter consenso.

Já a participação de organizações da sociedade civil em organismos do Estado pode ocorrer como uma resposta institucio-nal a um processo que, neste trabalho, cha-mamos de “politização”. Normalmente, esse termo é utilizado para designar o processo de conscientização dos cidadãos, ou classes sociais, de seus deveres e direitos políticos, preparando-os para exercê-los, mas, para este trabalho, estamos utilizando-o para de-signar o processo que leva um determinado tema a ser incorporado na pauta política.

O processo político implica a conciliação de posições confl itantes para a tomada de decisão relativa ao bem comum, indepen-dentemente da qualifi cação que se dê a es-se bem e a forma de sua realização. Vista dessa forma, uma questão se torna política à medida que adquire um caráter polêmico e quando sua solução é considerada como um bem público e que passa a receber o respaldo, ou é almejado, de um agente do poder. Como corolário dessa colocação, po-demos falar em politização quando afi rma-mos que um determinado tema passa a ter maior densidade política por integrar em si essas três condições: polêmica, bem comum e poder de decisão. Dessa forma, o tema se torna político pela sua relevância em termos práticos, quando envolve diretamente ques-tões fundamentais da vida dos indivíduos ou, em termos estratégicos, quando se tor-na atrativo nos meios de comunicação.

Portanto, “politizar” um determinado tema é torná-lo “atrativo”, o que pode ser feito pela sua “imagem” ou pela importância

dos agentes que o expõem, e relaciona-se assim com os meios de comunicação dispo-níveis. O governo pode procurar estimular o debate dos temas cuja perspectiva de encon-trar decisão consensual seja mais óbvia, ao mesmo tempo em que, pelo contrário, pode difi cultar quando a solução poderia ameaçar interesses estabelecidos.

A Comissão do Plano da Cidade de Santos

No fi nal dos anos 40, a partir do início do processo de retomada democrática no Bra-sil, a cidade de Santos continuava sob inter-venção federal, mas, no âmbito do plane-jamento urbano, essa época corresponde à sua inserção na pauta política, num processo que acabou por criar a primeira instância de participação para discussão sobre o planeja-mento urbano na cidade de Santos: a Comis-são do Plano da Cidade.

A preocupação com o tema parece se relacionar com a importância dos agentes que o expunham nesse momento, Anhaia Mello e Prestes Maia, dois dos mais im-portantes urbanistas brasileiros da época, que foram citados direta ou indiretamente nas plataformas eleitorais da maior par-te dos partidos políticos, enquanto que a questão da habitação, por outro lado, constituiu-se como um dos temas centrais dos comunistas.

A pautação política do planejamento urbano parece estar associada a diversos fa-tores: a experiência bem-sucedida de Pres-tes Maia na cidade de São Paulo, a postura de Anhaia Mello, que defendia a participação da sociedade civil no debate sobre a cidade

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através das Comissões, a promoção de de-bates e eventos com a presença de técnicos que discutiam as questões urbanas por ini-ciativa de associações, como o Rotary Club, Associação dos Engenheiros de Santos e So-ciedade Amigos da Cidade, e, principalmen-te, o fato de o Plano Geral oferecer uma perspectiva de se encontrar uma decisão consensual para os problemas urbanos que se agravavam.

A ideia de cidade planejada, através de comissões que estabelecessem um com-promisso das administrações com o plano, correspondia à garantia de salvaguarda dos interesses privados no processo de desen-volvimento urbano, assim como também re-presentaria um elemento de ligação do sis-tema com a estrutura política, que detinha o poder de decisão.

A Comissão do Plano da Cidade, a par-tir de 1948, passou a discutir o futuro e o presente da cidade analisando todos os pro-cessos relativos à urbanização, garantindo a existência de um espaço institucional pa-ra dar continuidade aos debates que ocor-riam em outros espaços, repercutindo nessa esfera a opinião pública e influenciando o processo de tomada de decisão. Por outro lado, também ocorreu a valorização do “sa-ber técnico”, visto que a representação que se pretendia era “técnica”, enquanto outros setores da sociedade civil estariam excluídos nesse momento. A “centralização”, enquanto característica do planejamento urbano nesse período, decorre naturalmente da valoriza-ção do formalismo técnico e jurídico, que seria uma forma de difi cultar um processo político que permitisse atender às demandas sociais, uma vez que essas colocassem em perigo os interesses dos grupos dominantes (cf. Touraine, 1996, p. 36).

Na Comissão do Plano, as associações estavam representadas através de duas agremiações que reuniam os setores da clas-se média urbana da época, o Rotary Clube e a Associação de Engenheiros de Santos. Todos os participantes da Comissão eram membros de uma dessas associações. Ape-nas 10% correspondia a profi ssionais libe-rais, 40% dos membros eram da Câmara Municipal, 20% eram técnicos da Prefeitura e 30% de empresas privadas.

Essa participação legítima, mas de ca-ráter corporativo, era vista de maneira po-sitiva pelas elites, na medida em que esses grupos eram representantes dessa mesma elite e avessos ao confl ito. A politização do planejamento chegou ao ponto que inte-ressava aos grupos dominantes, impedindo debates que fugissem a um consenso sem respaldo primordialmente técnico.

Com essas características, essa Comis-são não pode ser considerada como uma esfera pública nos termos propostos por Habermas, porém, alguns de seus princípios já estavam presentes, o que a torna, de fa-to, uma arena de discussões das questões urbanas, mesmo que faltassem na sua com-posição segmentos a serem representados.

O encaminhamento de temas polêmi-cos demonstrou que o debate permitia certa transparência na discussão dos temas urba-nos e do planejamento da cidade, com re-percussão em setores da sociedade antes da tomada de decisão fi nal, o que era sem dú-vida um avanço em termos de participação, ainda que restrita (Nunes, 2001).

A composição da Comissão do Plano da Cidade permaneceu a mesma durante os três anos que duraram os estudos para elabora-ção do Plano de Expansão e Melhoramentos da Cidade, aprovado em 1951. Em 1952, a

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Comissão Consultiva do Plano da Cidade foi instituída com uma composição mais hete-rogênea, pela representatividade de outros setores, mas sua atuação foi reduzida e não há registros signifi cativos sobre ela.

Como em outras cidades brasileiras, o zoneamento e os índices urbanísticos passa-ram a dominar o pensamento urbanístico e o planejamento urbano, aspectos que passa-ram a ser fundamentais para a indústria da construção civil, particularmente na cidade de Santos.

No início da década de 1960, em que pese ter sido marcante a ampliação da par-ticipação política, esta acabou por não se institucionalizar plenamente, justificando de certa forma o percurso que “teve como eixo as atividades e discursos que vieram a desembocar nos atuais planos diretores” (Villaça, 1999, p. 175).

1964 a 1984 – Autoritarismo e centralização

Esse período é caracterizado pela suspen-são das garantias democráticas no Brasil. A participação da sociedade civil se reduziu em todos os níveis e coincidiu com confl itos sociais decorrentes das alterações no qua-dro urbano brasileiro e o planejamento se consolidou como instrumento de política go-vernamental, infl uenciado por experiências anteriores e propostas da Comissão Econô-mica para a América Latina – Cepal.

Como pano de fundo da busca pela ra-cionalidade técnica, havia um caráter auto-ritário e uma estratégia de implantação de instâncias institucionais compatíveis com o esforço centralizador de modernização da

administração e dos meios de produção do país. Ao contrário do que se assistiu a partir do fi nal da década de 1940, o planejamen-to urbano saiu da agenda política e assumiu uma característica ainda mais tecnocrata, passando a ser uma forma de “despolitizar” os confl itos urbanos.

Os princípios liberais associados com ideais de uma política do bem-estar social, através de uma relação equilibrada entre ini-ciativa privada, interesse público e apropria-ção de benefícios da ação coletiva, predomi-navam no Plano Diretor Físico aprovado em 1968, num texto prolixo que, apesar de não ultrapassar a barreira do discurso, foi subs-tituído somente depois de 30 anos.

O Conselho Consultivo do Plano Diretor Físico – Coplan, que substituiu os espaços anteriores de discussão, era composto por sete membros designados pelo prefeito, dos quais quatro eram representantes do Poder Executivo, o que lhe conferia a predominân-cia na constituição desse Conselho, com téc-nicos das áreas de engenharia e do direito.

Foram justamente essas pretensas su-perioridade e neutralidade da técnica que levaram o planejamento a um isolamento em relação à população, e a ausência desses mesmos resultados terminou por transfor-mar o Plano Diretor em um texto burocrá-tico, cujo interesse político, principalmente num momento histórico em que inexistia o controle social sobre essas atividades, res-tringia-se aos aspectos que poderiam alte-rar o valor da terra e atender interesses de investidores.

Esse momento correspondia a novos entendimentos no ideário de planejamento urbano e a utilização crescente de análises com base nas relações produtivas deter-minadas pela desigualdade das condições

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materiais entre as diferentes classes sociais para compreender os padrões de urbaniza-ção e o processo como se dava o acesso à terra e aos meios de consumo coletivo.

No Brasil, esse aspecto infl uenciou nos debates, intensificando críticas ao padrão centralizador que marcou o período auto-ritário e gerando propostas de descentrali-zação que passaram a ganhar força não só como um meio para se alcançar justiça social na gestão da cidade, mas como a possibilida-de de democratização do país.

Participação como resistência democrática

Na década de 1970, a participação da socie-dade civil e os movimentos sociais assumi-ram a forma de resistência ao autoritarismo e à centralização excessiva do regime mili-tar numa “ética política de nós versus eles” (Linz e Stepan, 1999, p. 28) cuja ênfase na dicotomia entre sociedade civil e Estado foi útil para isolar o regime não-democrático; mas na década de 1980 a sociedade civil começou a se confi gurar mais como “uma rede de associações, movimentos, grupos e instituições, que, articulada com setores liberais e lideranças empresariais, participa ativamente do processo de redemocratiza-ção” (Teixeira, 2001, p. 24).

Nessa época, um anteprojeto de lei federal condicionava a propriedade à sua função social, trazia novos instrumentos urbanísticos e colocava a participação das comunidades interessadas como parte fun-daental na elaboração e execução de nor-mas, diretrizes e planos urbanísticos, mas não teve resultado imediato, a não ser mos-trar que existia um esforço de resistência à

centralização excessiva, e que novas ideias e conceitos sobre cidadania, sociedade civil e democracia participativa eram absorvidos pelas mais diversas áreas de conhecimento, inclusive no planejamento urbano.

1984 a 2009 – Participação e democracia

Esse período corresponde ao restabeleci-mento, no Brasil, dos direitos civis funda-mentais. A sociedade deparou-se então com confl itos e divergências que surgiram de um conjunto de demandas reprimidas ao longo de duas décadas. Seria preciso não só re-conhecer como legítimos os interesses di-vergentes como também criar os canais de participação da sociedade, num verdadeiro processo de negociação.

Nesse momento da história brasileira, o termo “participação popular” se generali-zou como forma de obter o rearranjo das relações entre Estado e Sociedade e se aper-feiçoar o tema da igualdade de oportunida-des. A segunda metade da década de 1980 se iniciou com a certeza que participação e eleições eram fundamentais para o processo democrático e para que se alcançassem ní-veis adequados de bem-estar.

Participação como conquista

Em 1985, inaugurou-se no Brasil o primei-ro ciclo do que se chamou de “democracia urbana”, caracterizado pela participação dos movimentos sociais, e, nas eleições de 1988, o segundo ciclo dessa “democracia urbana” se caracterizou pela maior radicalidade no

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discurso sobre a participação direta, com ênfase na proposta de instalação de conse-lhos deliberativos e orçamento participativo (Soares e Gondin, 2002, pp. 65 e 66).

Dentre as teses sobre participação que passaram a ser veiculadas, prevaleceram as que defendiam mudanças institucionais, de-mocraticamente construídas, criando direi-tos num quadro de respeito às liberdades constitucionais. Mecanismos de participação e consulta foram incorporados e consolida-dos com a promulgação, em 1988, da Cons-tituição Federal.

Nas referências teóricas do debate so-bre a sociedade civil, o aspecto estritamente decisório da participação perdeu sua ênfase para dar lugar ao debate público das ques-tões, à proposição de alternativas, exigência de prestação de contas dos atos dos agen-tes públicos e consequente responsabili-zação dos que tomam as decisões, ao que Habermas chama de política deliberativa (Teixeira, 2001, p. 36), onde a dimensão negociada é enfatizada.

Nessa concepção de democracia, o con-fl ito, mais do que inevitável, passa a ser vis-to como legítimo e necessário e sua solução passa por mudanças estruturais na relação de poder da sociedade. Descentralizar e des-concentrar ganharam novo signifi cado, não mais como ferramenta para abrir “brechas” no sistema, mas como instrumento para le-gitimar interesses divergentes ante o reco-nhecimento da emergência de confl itos.

Participação como princípio

Esses conceitos dominaram o debate sobre a participação democrática da sociedade ci-vil no processo político e serviram muitas

vezes como ponto de referência para esbo-çar teorias sobre canais de interlocução en-tre sociedade e Estado. Dentre esses novos canais, os conselhos de gestão passaram a ser uma nova forma de infl uenciar as deci-sões políticas.

A participação deixava de ser uma con-quista e passava a se tornar um princípio a ser garantido. Os conselhos gestores e no-vos projetos em termos de intervenção cole-tiva, organização e desenvolvimento social, efetivavam-se, colocando novas questões para o debate sobre planejamento urbano e municipal.

As eleições de 1992 deram início ao terceiro ciclo das gestões locais inovadoras, que, desta vez, além da ênfase no orçamen-to participativo, introduziam o conceito

[...] de parceria e de desenvolvimento

econômico como condições para uma

administração bem-sucedida [combi-

nando] formas de participação semidi-

reta na gestão (os conselhos setoriais)

com a parceria da iniciativa privada,

ONGs e organizações populares no de-

senvolvimento de projetos econômicos.

(Soa res e Gondin, 2002, p. 67)

Se, por um lado, isso passou a ser a marca dos governos democráticos popula-res, por outro, iniciava-se um processo de assimilação institucional desses conceitos que passariam a serem contemplados nos discursos dos mais variados matizes políti-cos. O que se observou foi certa “diluição nas marcas ideológicas do discurso, muito embora persistam nítidas diferenciações po-líticas na natureza das ações” (ibid., p. 69), na medida em que, “independentemente de tendências ideológicas, [essa visão era]

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imperativa para o enfrentamento da crise social” (ibid., p. 74).

Fica evidente que a questão da parti-cipação na gestão, especialmente do desen-volvimento local, passou a ser incorporada à agenda de muitos atores sociais e é hoje um dos principais temas de discussão e interven-ção, nas três esferas de governo, ainda que o signifi cado e o conceito de participação e de desenvolvimento apresentem possibilida-des diversas.

Participação como estratégia

A partir da década de 1990, uma política mais generalizada de inserção nos merca-dos globais se desenvolveu, dinamizando um modelo de gestão que apontava para uma in-teração do governo com a sociedade através da relação de mercado ou de parcerias entre o público e o privado. Dando continuidade às políticas de descentralização de gestão, o objetivo passou a ser ampliar oportunidades de negócios e minimizar o Estado.

A vitalidade desse processo depende da existência de um espaço público que repre-sente

[...] a arena privilegiada de atuação

política dos atores da sociedade civil,

constituindo, ainda, a arena de difusão

dos conteúdos simbólicos e das visões

de mundo diferenciadas que alimentam

as identidades de tais atores. (Costa,

1997, p. 17)

Nesse caso, a esfera pública correspon-de à possibilidade de soluções e respostas às reivindicações por direitos e melhorias de qualidade de vida, que antes eram vistas

como de responsabilidade do Estado, e pas-saram a ser encaradas como frutos de nego-ciações e de políticas alternativas às que são geradas a partir do Estado.

Nesse momento, a ideia da partici-pação da sociedade civil no processo de planejamento e gestão já deixara “de ser apanágio dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais e passou a ser incluída nas propostas de governos e no planejamen-to estratégico das cidades, independente-mente da orientação ideológica dos gesto-res” (Soares e Gondin, 2002, p. 81) e as parcerias entre o Poder Público e a iniciativa privada foram incentivadas.

Parcerias passaram a ser consideradas como forma de participação e incorporaram-se conceitos que já permeavam algumas ad-ministrações locais, no exterior desde a dé-cada de 1980 e no Brasil desde a década de 1990, que adotavam um modelo de planeja-mento que privilegiava a gestão empresarial, denominado Planejamento Estratégico.

1984 a 2009 – Participação, democracia e planejamento em Santos

Como pudemos perceber, as mudanças que ocorreram nas duas últimas décadas foram rápidas e profundas. Descentralização e de-mocracia participativa, que já eram temas presentes no debate sobre o “planejamento participativo”, que passou a ser visto como solução para os problemas urbanos. Essa expectativa por um urbanismo democrático e participativo era fruto de articulações que antecederam a Constituinte.

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Na cidade de Santos, durante a gestão Osvaldo Justo (1985-1988), foram aprova-das, com emendas da Câmara Municipal, al-terações na lei do Plano Diretor que amplia-ram a representatividade da sociedade civil no Conselho Consultivo do Plano Diretor – Coplan. As novidades nessa nova composição foram: a redução da presença do Poder Exe-cutivo e a presença de entidades de bairro e ambientalistas. Ainda que a qualidade de representação no Coplan fosse questionável, no entanto, não se retira a importância da conquista que a sociedade civil obteve na-quele momento, durante o primeiro governo municipal eleito após o período militar.

O texto da Constituição Federal de 1988 trouxe novidades em relação à política urbana e à questão da participação. A fun-ção social da propriedade fi cou vinculada às exigências de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor, o que deu fundamento pa-ra outros instrumentos, e a institucionaliza-ção desses aspectos se deu, sucessivamente, nas esferas federal para a estadual e local. Essa transferência de conceitos é uma de-monstração de como a Constituição Federal de 1988 transformou-se no principal marco normativo da ideia de nação politicamente democrática, coroando o processo de lutas e movimentos anteriores, propiciando uma redefi nição nas relações de poder e de con-vivência política que construiu novos espa-ços institucionais.

Uma das consequências desse proces-so é que muitas das gestões eleitas a partir de então incorporaram a participação en-quanto prática administrativa e, em muitos casos, nessas administrações, ocorreu uma forma de enfrentamento dos problemas urbanos que privilegiou instrumentos que buscavam a inclusão social no processo de

urbanização através, principalmente, da re-gularização fundiária e investimentos em políticas públicas.

Nesse sentido, o caso da cidade de San-tos é exemplar. Na gestão Telma de Souza (1989-1992), o planejamento urbano pre-tendia se revelar como essencialmente po-lítico, em oposição ao discurso tecnocrata do período autoritário que queria mostrar o planejamento urbano como apolítico. Sua elaboração conceitual rompia com padrões até então presentes no ideário do planeja-mento e partia do pressuposto de uma ci-dade real, resultado da ação desigual dos agentes que produzem e se apropriam dos espaços urbanos.

Apesar da ausência mais efetiva de re-sultados em relação ao Plano Diretor, é im-portante reconhecer o aprofundamento do debate interno aos órgãos da administração e não se pode negar que a estratégia de en-frentamento das questões urbanas resultou em conquistas como, dentre outras, as le-gislações de proteção do patrimônio histó-rico, de defesa do patrimônio ambiental na área continental do município e sobre áreas de especial interesse social, e a criação e regulamentação do Conselho Municipal de Habitação.

A gestão David Capistrano (1993-1996) concentrou atividades do que pode-ríamos chamar de planejamento estratégi-co, articulando ações que ao mesmo tempo ampliassem o leque de alianças políticas. O desenvolvimento da Agenda 21 local pode ser considerado uma das mais importan-tes iniciativas no campo da participação da sociedade na gestão pública, assim como o início da revisão do Plano Diretor, que cul-minaria com o Congresso Municipal de Pla-nejamento, reunindo delegados de todas as

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regiões da cidade e propondo um novo Con-selho Consultivo do Plano Diretor – Coplan, reconhecendo-se sua inadequação em ter-mos de representatividade e a necessidade de reestruturá-lo incluindo outros setores da sociedade ainda ausentes.

Essa postura reafirmava uma das ca-racterísticas, dentre outras, do terceiro ciclo da “democracia urbana”, a

[...] visão estratégica da atuação do go-

verno em termos políticos, administrati-

vos e econômicos [e] uma nova concep-

ção de democracia, que enfatiza, real

ou simbolicamente, a descentralização,

a participação popular e as parcerias do

poder público com diferentes agentes

sociais. (Soares e Gondin, 2002, p. 69)

Na gestão Beto Mansur (1997-2004), a discussão sobre o Plano Diretor se deu preponderantemente em relação à questão do uso e ocupação do solo urbano, como ha-via ocorrido na década de 1980, voltando a ganhar relevância os índices urbanísticos. Aprovado o novo Plano Diretor, em 1998, o Coplan teve sua nomenclatura adequada pa-ra Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano – CMDU.

Na nova composição do CMDU, com o número recorde de 43 membros titulares e 43 membros suplentes, o Executivo teve sua representatividade proporcional aumen-tada, passando para 41,3%, isoladamente, o segmento com maior proporcionalida-de, a indústria imobiliária teve tradicionais aliados do setor incluídos, como o setor de infra-estrutura, sindicatos e associações pa-tronais das áreas do comércio e transpor-te, fixando a representação proporcional do setor patronal em 19,4%. O número de

representantes do meio acadêmico foi am-pliado e somado aos profissionais liberais resultou em 26,9% do CMDU. Se, por um lado, não havia a possibilidade de eleição no campo dos movimentos sociais como na proposta de 95, por outro, era garantida a participação de representantes de outros conselhos e de uma ONG, que resultou em 12,4% dos membros do CMDU.

É indiscutível a importância do CMDU como espaço democrático que propicia a discussão de temas afi ns como, por exem-plo, o aperfeiçoamento de novos instrumen-tos urbanísticos propostos no Estatuto da Cidade. Porém, efi ciente do ponto de vista da administração pública, mas ainda pouco efi caz ou representativo do ponto de vista da sociedade civil, o CMDU, enquanto esfe-ra pública, ainda está em construção, o que exige análise e refl exão.

Em 2000, o Meio Ambiente e o Pla-nejamento voltaram a ter status político diferenciado como Secretarias Municipais específi cas, além de se criar a Secretaria de Governo e Projetos Estratégicos. Antes, se o foco se dividia entre desenvolvimento eco-nômico e políticas públicas de caráter social, agora se caracterizava pela conformação das políticas para “o desenvolvimento sustentá-vel do município de Santos e o bem-estar de seus cidadãos” mediante parcerias com os agentes promotores (Inciso XV, artigo 400, Lei Complementar 423/2000).

O debate hoje sobre o Plano Diretor na cidade de Santos

Na gestão João Paulo Papa (2005-2012), o Plano Diretor retornou para o debate na sociedade. Desde novembro de 2008,

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a cidade de Santos está vivendo o momen-to de rediscussão de seu Plano Diretor de Desenvolvimento e Expansão Urbana de Santos, em vigor desde 1998, passando pe-los dois tipos de fóruns que conceituamos neste artigo como “espaço público” e “esfe-ra pública”.

No primeiro caso, destaca-se o papel do “Fórum da Cidadania”, caracteristicamente um espaço público (www.forumdacidadania.org.br) que, além de chamar o debate so-bre o Plano Diretor, em 14 de fevereiro de 2009, congregando entidades as mais diver-sas, criou o “Curso Intensivo de Capacitação e Mobilização – Por Dentro do Plano Diretor Participativo”, em conjunto com universida-des locais.

De acordo com o manifesto de lança-mento do processo de discussão nesse fó-rum, disponível no site ofi cial citado acima

[...] é imperioso que os debates e ou-

tras formas de participação previstos no

processo de revisão do Plano Diretor se

estendam a todos os segmentos sociais

da cidade e, portanto, não se limitem

apenas aos espaços ofi ciais.

Afi rma ainda o manifesto:

[...] sem desprezar os aspectos técnicos

pertinentes que devem naturalmente

estar presentes e subsidiar o trabalho

de revisão do Plano Diretor, entende

que a questão fundamental deste pro-

cesso é de natureza política, uma vez

que o Plano Diretor é o responsável

direto pelas defi nições sobre os rumos

atuais e futuros da cidade e, sobretu-

do, pela determinação das condições de

desenvolvimento urbano que vão infl uir

decisivamente na qualidade de vida do

conjunto da população.

No segundo caso, o da esfera pública institucionalizada, destaca-se o papel da Prefeitura Municipal nos Conselhos Muni-cipais de Desenvolvimento Urbano – CMDU e de Desenvolvimento Econômico de San-tos – CDES. Esses órgãos, formados por representantes do poder público e da so-ciedade civil, estão propondo a realização conjunta de Audiências Públicas, Ofi cinas de Capacitação e Conferências para tratar dos temas relacionados com o Plano Diretor.

Além disso, a Prefeitura Municipal de Santos editou uma “cartilha” (disponível em (http://www.santos.sp.gov.br/planejamen-to/planodir/download/cart_pl.pdf) para fa-cilitar o debate e buscar esclarecer alguns dos aspectos relacionados com o Plano.

De acordo com o site ofi cial (www.san-tos.sp.gov.br),

A participação da população é essencial

para a elaboração do Plano Diretor, afi -

nal, a cidade é composta por pessoas

com classes, interesses e objetivos di-

ferentes. Assim, através de discussões,

podemos entender como a cidade fun-

ciona para cada morador e como pode-

mos tornar Santos um lugar com opor-

tunidades e desenvolvimento econômico

e social para todos.

Ainda que esse processo esteja em cur-so, o que impede qualquer tipo de avaliação metodológica com mais profundidade, é im-portante citá-lo para melhor apresentar as conclusões deste trabalho.

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Conclusão

Política e planejamento são temas que se entrecruzam e, em função disso, o percur-so histórico que observamos revelou formas diferentes de participação da sociedade civil durante o processo de planejamento urbano em razão das condicionantes políticas e das características do pensamento urbanístico de cada momento analisado. O que não pode ser considerado isoladamente, como fruto de um processo linear de desenvolvimento de ideias, mas sim como decorrência de um quadro muito mais amplo que incorpora o debate, em nível global, sobre formas de de-mocracia representativa e participativa.

O percurso histórico que apreciamos demonstra que a questão da participação da sociedade civil nas estruturas de governo, mais do que uma questão de modismo ou de metodologia de planejamento, ainda que presente em determinados momentos, é uma questão estrutural que envolve diretamente fundamentos do exercício do poder político.

Assim como não são simplesmente ações periódicas, como as eleições, que pas-saram a determinar o processo democrático, assim também não é um quadro teórico que determina a forma mais contemporânea de planejar a cidade, mas sim uma disputa por práticas que visam coletivizar a tomada de decisões a partir de diferentes princípios.

Por essa razão, podemos afi rmar que existe um percurso histórico de construção da esfera pública no planejamento urbano que torna a participação o seu referencial central, não porque sua formulação parte do âmbito teórico do planejamento, mas essencialmente porque é na relação entre democracia e gestão que encontramos esses

aspectos, e é no campo ideológico que pode-mos entendê-la.

A construção da “esfera pública” não obedeceu a uma lógica linear e, apesar de sua institucionalização corresponder a de-mandas no campo do pensamento urbanís-tico, sua utilização e efetividade dependem quase que exclusivamente do conteúdo ideo-lógico dos grupos que detêm o poder e, consequentemente, da concepção que esses grupos elaboram sobre cidadania, democra-cia e sobre a própria participação.

Sendo assim, os fatores que levaram à institucionalização desses fóruns estão além dos conceitos da democracia representati-va e da esfera política partidária, ainda que guardem uma relação direta com esse ce-nário. Esses fatores se encontram na luta por espaço político que a sociedade impõe e que se iniciou com o processo de democra-tização e se consolida com a eleição de di-rigentes comprometidos com a participação da sociedade.

Esses aspectos fi cam evidentes no re-cente processo de discussão do Plano Dire-tor em Santos. Instituições das mais diversas organizaram-se em um Comitê, sob guarida do Fórum da Cidadania, na forma de um es-paço público onde a discussão política impôs, de forma evidente, uma reação da esfera pú-blica, a qual busca o reconhecimento com a participação da sociedade, e demonstra isso ao capacitar os interessados no debate.

É evidente que não podemos aqui emi-tir um juízo de valores sobre esse atual pro-cesso, mas é importante destacar como ele vem se dando, de acordo com os princípios levantados para o último período analisado, em que democracia e participação, em todas as visões, são as palavras-chave para enten-der o processo de planejamento urbano.

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Luiz Antonio de Paula NunesArquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de Santos, Mestre e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Professor de História e Teoria do Urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Santa Cecília, em Santos (São Paulo, Brasil)[email protected] ou [email protected]

Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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A construção do poder públicocomo espaço privado na cidade

de Diadema (1983 a 1996)Joana Darc Virgínia dos Santos

ResumoA demanda social por infraestrutura básica em habitação e a necessidade de organização espacial da cidade gerou uma série de desdo-bramentos na constituição do espaço urbano de Diadema. Entre 1983-1996, a cidade teve à frente da administração pública três gestões do Partido dos Trabalhadores que propuse-ram a implantação da participação popular di-reta na gestão pública. É intuito deste artigo investigar a construção da cidade de Diadema através da atuação dos diferentes sujeitos: re-presentantes do poder público e munícipes, durante as três gestões consecutivas do PT. Dessas relações e confl itos foram criados os mecanismos que propiciaram a implantação do Plano Diretor naquela cidade em 1994.

Palavras-chave: história das cidades; urba-nismo; políticas públicas em habitação; movi-mentos sociais.

AbstractThe social demand for basic infrastructure in housing and the need for the spatial organization of the city have generated a series of developments in the formation of the urban space in Diadema. Between 1983-1996, the city’s public management was in the hands of three administrations of the Worker’s Party (PT), which proposed the implementation of direct popular participation in public management. The purpose of this article is to investigate the construction of the city of Diadema through the performance of different subjects: public power representatives and residents, during the three consecutive administrations of PT. These relationships and confl icts have created mechanisms that enabled the implementation of the Master Plan in that city in 1994.

Keywords: history of cities; urban planning; public policies in housing; social movements.

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A cidade de Diadema está localizada na região Sudeste do Brasil, entre São Paulo e São Bernardo do Campo, a 17 quilôme-tros da capital, na área hoje conhecida co-mo ABCD paulista; possui uma superfície de 30,7 km2 com 7,06 km2 do território de-fi nido como área de preservação ambiental pela proximidade com a represa Billings. Até 1959, Diadema era parte do território de São Bernardo do Campo e no ano de sua emancipação política contava com 12 mil ha-bitantes (Hereda e Alonso, 1996, p. 129). Segundo o censo de 2007, a cidade possui 386.779 mil habitantes e uma das maiores densidades demográfi cas do país, ou seja, 10.167 hab/km2. Diadema é até hoje conhe-cida como Cidade Vermelha, pelo adensa-mento de habitações inacabadas mantendo expostos os tijolos vermelhos que a com-põem. Essa paisagem expressa a construção de modos de vida condicionados a uma cer-ta organização do espaço social, estrutura-da de forma relacional pelos que detêm os meios produção, que segrega os sujeitos a partir da posição que estes ocupam no pro-cesso produtivo.

Até meados de 1940, a região era cha-mada de Vila Conceição e tinha como ati-vidades econômicas a produção de tijolos, móveis e pequeno comércio que sobrevivia graças ao trânsito de pessoas em busca de lazer na represa Billings.

Com a inauguração da Via Anchieta, em 1947, uma série de indústrias, princi-palmente automobilísticas, se instalaram en-tre São Bernardo do Campo e Diadema. Em 1952, quando Diadema era distrito de São Bernardo do Campo, foi instalada a primei-ra indústria em território hoje diademense, a IMBRA S/A Indústria Química que, entre 1957 e 1958, passou a fabricar matéria-

prima para indústrias de plástico. Em 1956, fixou-se na cidade a Empresa Roberto L. Gordon, de produção de acessórios para eletrodomésticos e bijuterias. A Roberto L. Gordon, em 1960, passou a produzir com-ponentes automobilísticos e mudou de nome para Metagal (Diadema, 1999, p. 93).

Na década de 1990, com a implantação da reestruturação produtiva1 (Alves, 2000) no Brasil, as empresas multinacionais inicia-ram a terceirização dos processos da cadeia produtiva, o que propiciou o surgimento de empresas menores a partir da implantação do modo de gestão toyotista, o que Giovanni Alves chamou de “Fragmentação Sistêmica”. Essas pequenas empresas foram subcontra-tadas pelas transnacionais em um sistema de cooperação entre os capitalistas. A partir de procedimentos fundamentais de garantia da efi ciência do processo e redução de cus-tos, as transnacionais procuram adequar a lógica da produção ao sistema concorrencial na mundialização do capital e às novas fases da luta de classes. A localização privilegia-da da cidade de Diadema, pela proximidade com as vias de escoamento, polo petroquí-mico e automobilístico, atraiu muitas dessas empresas terceirizadas, principalmente as de autopeças.

Nas décadas de 1970, 1980 e 1990 a necessidade de mão-de-obra para as no-vas fábricas, e posteriormente comércios e serviços, propiciou um grande aumento populacional na região. Baianos, alagoanos, pernambucanos, cearenses, piauienses, ma-ranhenses, sergipanos, paraibanos, capixa-bas, mineiros, mato-grossenses e paulistas chegaram em grande número para com-por os trabalhadores das indústrias auto-mobilísticas, de autopeças e das indústrias químicas da região que hoje chamamos de

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Grande ABCD paulista. Milhares de pessoas deixaram suas cidades de origem em busca de melhores condições de vida, envolvidas pelas histórias promissoras contadas por conhecidos(as), familiares e mídia, a respeito do desenvolvimento econômico das cidades do estado de São Paulo. A busca pelo sonho de se estabelecerem em cidades com ofertas de empregos, cujos salários possibilitassem a reprodução material da vida, aliada ao de-sejo de reorganização dos laços de sociabi-lidade, trouxe ao ABCD Paulista muitos fa-miliares e amigos(as) dos(as) primeiros(as) migrantes.

Grande parte destes(as) migrantes en-controu, na ocupação de áreas vazias, uma alternativa possível para estabelecer mora-dia, diante do desemprego e dos baixos salá-rios. Muitas pessoas que chegaram a partir do fi nal da década de 1960, em Diadema, sem condições de realizarem sua necessida-de de moradia pelo mercado formal, ocupa-ram de forma precária terrenos sem uso, construindo suas casas com compensados e madeirites. Uma parte desses terrenos per-tencia a empresas que, por algum motivo, não fi xaram ali suas instalações, conforme previsto quando a área foi recebida por doa-ção ou adquirida em um sistema de incentivo fi scal. Os sujeitos “semi ou não-qualifi cados” profi ssionalmente, que chegaram às cidades do grande ABCD Paulista na década de 1980 encontraram ofertas de empregos precários nas empresas de autopeças, subsidiárias das montadoras.

O processo de “favelização” em Diade-ma expressa, portanto, o movimento geral de depauperação dos centros urbanos bra-sileiros em decorrência da crise que se aba-teu sobre o país nos anos de 1989 e 1990; conforme a documentação, identificamos

as seguintes características: migração das áreas rurais para as áreas urbanas devido à precarização das condições de vida nas áreas rurais e intenso processo de industrialização nos grandes centros, a desigualdade e explo-ração no trabalho, o arrocho salarial, a alta rotatividade nos empregos, o desemprego e tempo de locomoção da casa ao trabalho (Diadema, 1993, p. 3).

Aparato burocrático do Estado a serviço de interesses privados

O território hoje diademense, antes da emancipação política conhecido como área rural de São Bernardo do Campo, era com-posto por chácaras que foram vendidas para fi ns de loteamento. A disponibilidade de terrenos na região a serem comerciali-zados oportunizou a atuação de indivíduos como intermediários no processo de com-pra e venda desses loteamentos. É o caso dos dois primeiros prefeitos de Diadema: o professor Evandro Esquível e o corretor de imóveis Lauro Michels, que se reveza-ram no poder entre 1960 e 1972. A partir das infl uências que Esquível e Michels con-seguiram através dos negócios imobiliários, tornaram-se fi guras de destaque no cenário político da cidade. A natureza do ofício de intermediar compra e venda de terras alia-da à histórica troca de favores e interesses pessoais instaurada nas relações políticas, propiciou um contato maior com os setores institucionalizados que regulam o regime de propriedade privada e infraestrutura da região.

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São contatos estabelecidos na esfe-ra municipal e estadual com o intuito de conseguir documentações e viabilizar pro-cessos para compra e a venda dos terrenos. Os interessados na aquisição e nas vendas de terras estão ávidos por viabilizarem seus ne-gócios e em muitos casos suas necessidades imediatas de sobrevivência e vêem no inter-mediário um agente que conhece os trâmites legais e ilegais e tem infl uência necessária, dada sua experiência, para o alcance desses objetivos. Durante sua gestão como prefeito de Diadema (1964-1968), Michels obteve grande crescimento em seus negócios imo-biliários e passou a investir em pecuária (Si-mões, 1992).

As organizações do Estado, de forma politicista, expressam-se pela realização das necessidades de transformação de grupos a quem representam, através de processos de disputas de interesses. Nessas disputas de in-teresses privados, os sujeitos participam na esfera da organização pública de forma a in-fl uenciarem a ação governamental conforme suas capacidades de mobilização. Nesta for-ma identifi camos que as relações clientelistas prevalecem sobre a racionalidade burguesa: a garantia de isonomia é estabelecida juridi-camente, mas as condições para efetivação das leis não são iguais para todos, o que re-sulta na reprodução de privilégios e desigual-dades. Na esfera local, sujeitos como Esquí-vel, Michels e os vereadores têm o aparelho burocrático do Estado a sua disposição para dirigirem a aplicação desses aparatos a partir dos processos de interação de interesses, em que as corporações assumem papel predomi-nante devido as suas capacidades de mobili-zação e infl uência econômica e política.

No processo de emancipação adminis-trativa, a correlação de forças políticas fez

com que o recorte territorial fosse feito de tal modo que as principais fábricas fi caram na área destinada a São Bernardo do Cam-po, o que levou a arrecadação dos impostos para esta cidade. Enquanto isso, Diadema continuou a atrair o contingente de traba-lhadores porque os terrenos dessa cidade eram mais baratos que os da cidade vizinha, pois havia grandes áreas territoriais para se-rem ocupadas e, como a área não dispunha de infraestrutura, também o pagamento de impostos era bem menor, isso quando eram recolhidos.

Além disso, a administração de Diade-ma dispunha de poucos recursos para iniciar um processo de implantação de infraestru-tura na cidade, já que a cidade possuía pou-ca receita. Em seu território, com a saída das grandes indústrias a partir do recorte territorial no processo de emancipação, fi ca-ram apenas pequenas atividades comerciais e empresas manufatureiras ou semimanu-faturadas, tocadas de forma familiar como olarias, fábrica de móveis, pequenos comér-cios e poucas empresas de porte maior. As poucas obras públicas de infraestrutura rea-lizadas em Diadema nas décadas de 1960 e 1970 foram negociadas em troca de favores e apoios político-partidários atrelados às re-lações clientelistas entre políticos da esfera estadual e municipal.

A aplicabilidade da lei não está dispo-nível para todos os sujeitos, o que podemos identifi car pela constatação da necessidade de mobilizar agentes específi cos no estabele-cimento de acordos para garantir implanta-ção de pequenas ações de infraestrutura. A legislação estabelecida está a serviço dos que têm instrumentos para fazê-la valer na prá-tica, seja através de contatos interpessoais e/ou uso de poder conferido por cargo a fi m

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de mobilizar o aparato institucional a seu favor e pelos meios possibilitados pela pro-priedade monetária e de capitais por trâmi-tes legais ou ilegais.

Diadema no período de transição do bonapartismo para a autocracia burguesa

A crise da década de 1980 foi acompanha-da pelas expectativas de democratização do país após um período ditatorial de mais de 20 anos, nos quais as possibilidades de mo-bilização social para expressão de suas de-mandas foram totalmente cerceadas. Para expressarmos as concretudes sócio-históri-cas que caracterizaram o período chamado pela historiografi a de ditadura militar, utili-zamos aqui o conceito de bonapartismo con-forme Marx (1974), Martins (1977), Rago Filho (1998). O conceito bonapartismo foi cunhado por Marx em análise a natureza da dominação autocrática-burguesa durante o governo de Napoleão III na França. A bur-guesia francesa exerceu o domínio político e econômico, de forma indireta, na fi gura de Napoleão III, que, por sua vez, declarou-se representante de todas as classes sociais, mas, na prática, investiu na instituição de mecanismos de repressão que mantiveram as demandas sociais dos trabalhadores repri-midas. Como uso da fi gura que representou históricamente a natureza do poder exerci-do por Napoleão III, alguns autores como Rago Filho e Martins, para a compreen são específica do período de ditadura militar, iniciada em 1964, utilizam o conceito de

bonapartismo para caracterizar o domínio indireto da burguesia nacional sob a fi gura dos militares, que, em nome do desenvol-vimento nacional, construíram um aparato repressivo violento para conter as demandas populares. Usamos o conceito de autocracia burguesa para caracterizar o período pós-ditadura militar chamado pela historiografi a brasileira de democrático para expressar o uso do poder coercitivo e violento do Estado brasileiro, administrado por segmentos da burguesia nacional, com o objetivo de conter as demandas sociais e realizar o desenvolvi-mento do capitalismo, garantindo a realiza-ção das necessidades de acumulação sob a lógica do capital sem a mobilização popular. O uso da violência é justifi cado e legitimado como uma ação de manutenção da ordem e segurança nacional para o desenvolvimento da democracia no Brasil.

Assim, a emergência de novas organiza-ções partidárias veio acompanhada por forte mobilização social por demandas muito con-cretas de melhoria das condições de vida, particularmente expressas pelas populações urbanas. Essas mobilizações sociais exerce-ram forte pressão sobre as organizações do Estado brasileiro que, de diversas maneiras, procurou aninhar a participação popular em seus canais institucionalizados. Dentre estas destacaram-se os movimentos por moradia.

Tais movimentos chegaram a ter uma expressão nacional que se manifestou atra-vés da organização dos mais diferentes ti-pos. Dentre estas, destacou-se uma que reuniu pessoas desempregadas ou de baixís-sima renda, que marcharam até Brasília em 1989, intitulado Caravana à Brasília orga-nizada pela União dos Movimentos de Mo-radia, com o objetivo de forçar a negocia-ção de políticas públicas de atendimento às

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necessidades de habitação dos trabalhadores de baixa renda; foi produzido documento para ser distribuído aos participantes do en-contro e representantes dos poderes legisla-tivo e executivo.

Os moradores de Diadema participa-ram ativamente desse movimento, tanto fa-zendo parte das comissões que ajudaram a organizá-lo quanto produzindo documentos que espelhavam a situação de precariedade em que viviam e as alternativas de solução que propunham. No entanto, destaca-se dessa mobilização a mediação do poder pú-blico municipal que atua enquanto agente social em defesa dos interesses de seus mu-nícipes em suas petições ao poder central. É o que se observa, por exemplo, no Plano de Governo realizado pela prefeitura a fi m viabilizar a implantação de uma política ha-bitacional (Diadema, 1987). Esse material foi produzido pelos técnicos da Secretaria de Habitação da gestão do então prefeito Gilson Meneses (1983-1988), primeiro prefeito que expressava a tentativa da po-pulação de promover alterações na forma de fazer política e que, naquele momento, vinculava-se à organização do Partido dos Trabalhadores e que vinha das hostes meta-lúrgicas do ABC.

A formação do Partido dos Trabalha-dores está ligada à atuação do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo. Os dirigentes do Sindicato, organizados em suas bases de atuação, impulsionaram a criação do partido nacionalmente agre-gando setores cuja ideologia2 é bastante diversa entre si de acordo com a prática social que executavam, são eles: Comuni-dades Eclesiais de Base da Igreja Católica, intelectuais de “esquerda”, estudantes, ban-cários, servidores públicos e professores.

Tal diversidade culminou em uma série de embates, como sobre o registro partidário com destaque para a proposta vencedora: a criação de um partido que abarcasse con-teúdos de reivindicação de diversos setores trabalhistas para defender e realizar esses conteúdos no sistema político vigente (Oli-veira, 1988, p. 130).

Para a conquista do registro partidário, foi realizado um processo de mobilização em massa para alcançar o número de fi lia-ções necessárias. A fi liação foi organizada pelos núcleos de base que eram compostos por pessoas do mesmo domicílio eleitoral. Os núcleos de base tinham caráter consul-tivo e possuíam poucos membros ativos de-vido ao processo de fi liação em massa que agregou pessoas com interesses e histórias de participação popular diferentes. Segundo os estatutos do PT que indicam o processo de organização dos núcleos de base, era in-tuito dos membros do partido utilizá-los co-mo espaço de educação e mobilização políti-ca para a militância; o que acabou não sendo alcançado devido à necessidade do partido em cumprir as exigências para o processo de legalização e desmobilização dos núcleos de base depois das eleições de 1982. Sobre a descaracterização dos núcleos de base, Ga-dotti e Pereira (1989) afi rmam que seu fun-cionamento se limitou à função de comitês eleitorais e grupos de apoio a vereadores; tal fato teria sido desencadeado por uma série de fatores, entre eles a lógica imedia-tista dos processos eleitorais que demanda-va a organização de um grande número de pessoas para alcance dos votos necessários à eleição a cada dois anos. Essa organização se dava de forma desvinculada dos processos de luta e formação necessários ao entendi-mento das propostas ideológicas do partido,

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prevalecia a necessidade de conseguir votos da forma mais rápida e efi ciente possível.

Nessas condições, a cidade elegeu como prefeito o metalúrgico Gilson Meneses pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Essa elei-ção constitui uma das primeiras prefeituras deste partido no Brasil.

O período que compreende o gover-no ininterrupto do PT em Diadema, 1983 a 1996, foi uma época de investimento em infraestrutura na cidade. Os dados so-bre os índices de mortalidade infantil desse período indicam a expressividade desse in-vestimento.3 A queda acentuada da morta-lidade infantil em Diadema é resultado de uma série de ações implementadas pelos governos petistas como: execução de obras de saneamento básico, extensão da rede de água encanada, campanhas de vacinação e acompanhamento pré-natal. Destacam-se, portanto, vários fatores diferenciais signifi -cativos na trajetória da urbanização e do fa-zer político dessa cidade a partir da década de 1980, pois os recursos passaram a ser canalizados para investimentos públicos e o processo decisório que defi nia tais investi-mentos passaram a contar com a participa-ção popular.

Tanto os movimentos de luta por mo-radia quanto a relação que estes estabelece-ram com o particular poder público expres-so pelos governos do PT constituem nexos constitutivos que compuseram a situação socioeconomicaespacial da cidade no perío-do abordado e sua análise nos revela a con-cretude histórica que emerge das descrições encontradas nos documentos e os elemen-tos pelo quais os indivíduos compreendem a lógica do mundo em que vivem revelando a consciência destes sobre a operação prática da qual participaram cotidianamente.

Inversão da lógica de investimentos públicos sob a prática politicista

As gestões municipais de Esquível (1960-1963 pelo PTN e 1969-1972 pelo Arena), Michels (1964-1968 e 1977-1982 ambas gestões pelo MDB) e Putz (1973-1976 pe-lo MDB), já haviam realizado obras públicas privilegiando a região central da cidade. Es-quível e Michels representaram uma media-ção política entre a esfera municipal e a es-tadual durante o processo de constituição da cidade e fi zeram prosperar as obras públicas que benefi ciaram seus negócios particulares, bem como o de seus aliados, mas procura-ram negociar de forma hábil com a popula-ção mais carente com a justifi cativa de que o investimento a ser realizado atingiria, em breve, a todos os cidadãos diademenses. A negociação sobre implementação de mudan-ças necessárias ao desenvolvimento econô-mico da cidade era realizada entre políticos e grupos que representavam força política e econômica nas esferas municipal, estadual, federal, de acordo com a abrangência dos interesses; sem mobilizar a população, com o objetivo de manter a organização destas sob o controle estatal.

O industrial Ricardo Putz (1973-1976) chegou à prefeitura de Diadema pelo MDB apoiado por Michels. Putz representou os interesses de modernização da administra-ção municipal. Em sua gestão, foi organi-zado um programa de apoio a projetos de moradia econômica, elaborou Plano Diretor de Zoneamento, projetos que não foram efetivados, e no último ano de mandato centralizou ações na região central da ci-dade, que foram parcialmente concluídas

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na gestão de Michels, como construção de praças, calçadão, Fórum e o Centro Cultural (Simões, 1992).

Lauro Michels retornou à administração da cidade de Diadema em 1977, pelo MDB, mantendo a prática de realizar investimen-tos na região central em detrimento das re-giões periféricas que careciam de infraestru-tura básica.

O metalúrgico Gilson Meneses, em sua primeira gestão (1983-1988 gestão pelo PT) assumiu plataforma de governo que tinha como prioridade implantar políticas sociais no município com a participação de-liberativa das associações populares nas de-cisões de governo. Gilson Meneses chegou à Prefeitura com o desafi o de implantar as promessas de campanha a partir de recursos parcos e comprometidos com dívidas das administrações anteriores. O Programa de Urbanização de Favelas (PUF), carro-chefe de sua plataforma de governo, consistiu na implantação de infraestrutura básica e con-cessão de posse da terra aos moradores.

A partir do segundo ano de mandato, foi instituída consulta popular sobre a ela-boração do orçamento municipal através de comissões e conselhos. Embora houvesse muitas críticas quanto à representatividade dos conselhos que participavam desse pro-cesso, essa consulta foi realizada até o fi nal da gestão de Gilson Meneses. A implanta-ção da proposta de atuação direta da po-pulação nos programas de governo, através dos Conselhos Populares (CPs), não se deu conforme o proposto devido a uma série de enclaves. As divergências entre petistas e não-petistas, administração municipal e representantes do Diretório do PT em Dia-dema esvaziaram as reuniões dos CPs. Seja por ações da administração que isolaram as

reivindicações articuladas pelos representan-tes do Diretório Municipal, seja pela ausên-cia dos não-petistas nas reuniões dos CPs, criando oposição às propostas articuladas (Simões, 1992). Os CPs foram substituídos por programas pedagógico-participativos que propunham a organização popular como mecanismo para atendimento das demandas da população. A população era estimulada a se organizar e atuar junto aos técnicos da prefeitura em um sistema de cooperação e cogestão de políticas públicas. A prioridade de atendimento no PUF era dada às “fa-velas” cuja população havia se organizado, primeiramente, no sentido de executar o Programa. A organização a partir da parti-cipação popular privilegiava o processo de construção de políticas sociais na discussão de problemas que afligiam os moradores, o que resultou em uma implantação lenta e confl ituosa do Programa (ibid.).

Na disputa das prévias locais para a candidatura do PT ao município de Diade-ma, em 1988, o diretor do Departamento de Saúde e Higiene José Augusto conseguiu aliados no diretório municipal e regional do PT derrotando o candidato apoiado por Gil-son Meneses, Cláudio Rosa. Gilson Meneses desligou-se do PT no mesmo ano e fi lou-se ao Partido Socialista Brasileiro. José Au-gusto, médico sanitarista, participou como militante do movimento de saúde na zona leste de São Paulo, foi indicado para ocupar o cargo de diretor do Departamento de Saú-de e Higiene durante a gestão 1983-1988 pelos membros do Diretório do PT em São Paulo, no qual era fi liado.

José Augusto venceu as eleições pela Prefeitura Municipal com a força da legen-da petista, benefi ciado pela avaliação positi-va sobre o desempenho da primeira gestão

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do PT em Diadema. Durante sua gestão (1989-1992) foi mantido o Programa de Urbanização de Favelas. Os investimentos nas áreas da saúde e saneamento, que re-presentavam em 1984 8% do orçamento, foram ampliados em 1988 e 1999 para 17% e em 1990 significou 16% do total (AUPV, 1991). O Fundo Municipal de Apoio à Habitação de Interesse Social (Fumapis) e seu Conselho Deliberativo foram instituídos em 1990 com os respectivos objetivos de captar e administrar em cogestão com os movimentos de luta por moradia, recursos na área da habitação, porém, durante es-sa gestão, não foi efetivado. A criação do Fundo e seu conselho gerou apenas movi-mentação para o processo de eleição dos conselheiros, durante o período de eleições municipais. Apesar das inúmeras reuniões, o primeiro Conselho Deliberativo do Fumapis foi eleito em 1991 (Diadema, 1991) e to-mou posse apenas em 1994 para um man-dato de dois anos.

Segundo depoimento de Edmundo, participante da Associação de Luta por Mo-radia Unidos da Leste (ALMUL), sobre o pri-meiro mandato dos conselheiros do Fumapis “foi criado esse Conselho, mas um Conselho inútil, que não fazia nada, que não se discu-tia porque não era vontade do prefeito”.4

Edmundo explicita os desafi os práticos da pretensa autonomia da participação popu-lar restrita aos instrumentos de interlocução criados segundo a organização burocráti-ca do Estado. As discussões e deliberações tratadas no Conselho estavam submetidas aos trâmites legais acessíveis aos membros da administração municipal que fi zeram uso das informações privilegiadas, limitando a ação dos conselheiros segundo as necessida-des de organização do poder público.

O engenheiro José de Filippi Junior participou das duas primeiras administra-ções petistas em Diadema e chegou ao cargo de prefeito em 1993, pelo PT, com o com-promisso de consolidar uma política habita-cional com participação popular. Durante a gestão 1993-1996, foram implementadas ações que vinculavam a elaboração jurídica do plano de governo na área da habitação, efetivação dos instrumentos urbanísticos e envolvimento da população na execução dos projetos. No primeiro ano da gestão (1993) foi realizado o I Encontro de Habitação do município reunindo representantes de movi-mentos populares e sindicatos. Uma série de programas na área da habitação foi implan-tada, com a proposta de envolver os mora-dores na execução direta dos projetos, des-de a compra dos materiais até a autocons-trução. O Plano Diretor e as Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS) foram aprova-dos em 1993, em meio a muitas disputas quanto aos interesses dos proprietários de terras, movimentos de luta por moradia e vereadores. Como diretriz do Plano Diretor, o Conselho Deliberativo do Fumapis recebeu legalmente mais força, porém, na prática, não atingiu suas proposições, funcionou co-mo um espaço de discussões de propostas para a Política Habitacional (Scalli, 1998). A segunda eleição do Conselho Deliberativo do Fumapis, em 1995, ano que antecedeu as eleições municipais, contou com a participa-ção de um número expressivo de votantes e candidatos cuja atuação nas negociações com o poder público era reconhecida pela população em geral (ibid.). Dadas as cir-cunstâncias históricas da realização dessas eleições, a mobilização pelos votos para con-selheiro tornou-se uma prévia das eleições para vereador.

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Em documentos internos do Fumapis (Diadema, s.d.), nos quais não constam da-tas que indiquem exatamente o período de sua elaboração – mas comparando aos no-mes que compõem o corpo do Conselho De-liberativo apontam tratar-se da sua primeira gestão –, identificamos uma proposta de urbanização que organiza as ações por ma-croáreas: Central, Serraria, Conceição, Vila Nogueira, Casa Grande, Inamar, Eldorado, Piraporinha, Canhema, Campanário e Ta-boão. Foram designados como responsáveis pela implantação do projeto um arquiteto e um sociólogo e são citados 180 moradores como referências para o diálogo com a po-pulação, dos quais 70 eram mulheres. Do total das pessoas citadas, 88 estão indicadas com a sigla PT, signifi cando a representação do Partido dos Trabalhadores nos núcleos habitacionais.

O Fumapis, efetivamente, existiu ape-nas no papel, pois as verbas utilizadas para a realização das obras de urbanização eram provenientes do orçamento municipal e dos pagamentos realizados pela população por implantação de infraestrutura, o que limitou a ação dos(as) conselheiros(as). No último ano da gestão de José de Filippi Junior, pela primeira vez, foi possível deliberar sobre os valores do Fundo, tendo sido transferido di-nheiro proveniente dos pagamentos realiza-dos pela população pelo Plano Comunitário de Pavimentação para o Fundo (Villas-Bôas, 1995, p. 9). Em análise sobre a atuação dos dois mandatos do Conselho Deliberativo do Fumapis, Edmundo afi rmou:

O Conselho do Fumapis ele é exatamen-te um Conselho para gerenciar, não é só deliberativo. (...) deliberar só aquilo que a administração quer. (...) Aí, eu

retribuo (sic: atribuo) esse erro não só à administração, mas eu acho que nós mesmos enquanto liderança de movi-mento, que era conselheiro do Fumapis também, porque a gente cobrava, mas não agia. Porque o Conselho do Fumapis é um órgão que tem poder, se a administração não está fazendo aqui-lo que foi deliberado ele (o movimento) tem até obrigação de entrar na Justiça pra intervir na situação. E isso a gente não fez até por entender que era uma prefeitura democrática e popular, que com todos os defeitos, mas a gente ta-va participando da discussão.

Os conselheiros não moveram ações em defesa das deliberações não operaciona-lizadas na prática. Alguns dos conselheiros militantes do PT procuraram resolver os confl itos dentro da lógica estabelecida pe-la prefeitura, enviando ofícios e levando as reivindicações às reuniões organizadas pelos membros da administração.

Portanto, identifi camos, através da aná-lise documental e bibliográfi ca, que a cons-tituição do território diademense é marcada pelo desenvolvimento do polo automobilísti-co e petroquímico instalado no ABCD paulis-ta e o processo de reestruturação produti-va.5 O vertiginoso crescimento populacional da cidade de Diadema, entre 1960 e 1990, teve como mola propulsora a necessidade de mão-de-obra nas empresas da região, alia-da à grande quantidade de trabalhadores desempregados nas regiões Nordeste e Su-deste do Brasil. A chegada de grande quan-tidade de indústrias em Diadema deveu-se a: a) localização privilegiada entre o litoral sul do estado e região sul da cidade de São Paulo; b) construção das vias de escoamento

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Anchieta e Imigrantes, que cortam a cidade; c) valorização dos terrenos da região sul da cidade de São Paulo, fato que impulsionou a saída das empresas e instalação das mes-mas nas cidades próximas, principalmente Diadema; d) implantação da Fragmentação Sistema no polo automobilístico, o que pos-sibilitou a instalação de diversas empresas subsidiárias das montadoras em Diadema, pelos baixos preços dos terrenos, política de incentivos fi scais e proximidade com as vias de escoamento.

Os investimentos em infraestrutura na cidade de Diadema, entre as décadas de 1960 e 1980, foram destinados à área cen-tral da cidade, local em que estavam insta-lados o comércio e os moradores de maior poder aquisitivo; e também às áreas de uso industrial que necessitavam de vias de esco-amento, serviços de água encanada, esgoto e energia para funcionarem.

Com a chegada do PT à prefeitura de Diadema em 1980, foi realizada uma série de investimentos em projetos de urbani-zação de “favelas”, além da criação de um conjunto de leis, em alguns casos inefi cazes, que dispuseram sobre o ordenamento da ci-dade, incluindo projetos que viabilizaram a instalação de habitações destinadas aos tra-balhadores com renda de até três salários mínimos. Ou seja, os trabalhadores conti-nuaram impossibilitados de realizarem suas necessidades básicas, autonomamente, via mercado, continuaram dependendo de ações estatais na mediação do acesso a seus direi-tos à moradia e serviços básicos.

Foi possível identifi car que as políticas públicas desenvolvidas na cidade de Diade-ma pelas três gestões petistas com o intuito de atender às necessidades de moradia dos munícipes foram organizadas no âmbito

legislativo e tiveram uma série de entraves durante a sua implantação. Podemos clas-sificar as características desses entraves segundo a natureza dos confl itos que eclo-diram a partir do processo de elaboração e implantação dessas políticas públicas.

Os membros da gestão 1983-1988 identifi cavam as péssimas condições de vida dos trabalhadores residentes em Diadema e assumiram a incapacidade de solucionar essa situação a partir do aparato burocrá-tico da prefeitura. Admitiram, portanto, que as ações implementadas pelo governo municipal possuíam características curativas e suplementares e que não atacaram dire-tamente as causas que impossibilitaram os trabalhadores de realizarem suas necessida-des de moradia: a concentração de renda e situação de miséria dos trabalhadores (Dia-dema, 1987, p. 1).

Durante a gestão 1989-1992, a es-tratégia de ação pautou-se na realização de ações que garantiram ao governo visibilida-de. A continuidade do Programa de Urbani-zação de Favelas foi centralizada nas áreas em que o processo já estava em andamento e que necessitavam de poucas intervenções. A grande inovação no campo legislativo, o Fumapis, durante essa gestão, não foi efe-tivada. A criação do Fundo e seu conselho geraram apenas movimentação para o pro-cesso de eleição dos conselheiros, durante o período de eleições municipais.

Os instrumentos urbanísticos e o apa-rato jurídico implantados na gestão 1993-1996 no município de Diadema visaram a consolidação de uma política habitacional a partir das conquistas dos movimentos de luta por moradia alcançadas em âmbito na-cional e que já haviam sido concretizadas no campo legalista.

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Identificamos, durante as três gestões petistas, grande dificuldade de implemen-tação da legislação por diversas razões, entre elas o burocratismo que implicou a sua efetivação, a necessidade de mediação dos sujeitos que compunham os quadros legislativos e executivos para exercício da lei e a necessidade do governo munici-pal em manter sob controle as demandas

sociais de acordo com a possibilidade de ação governamental ante os interesses dos empresários e proprietários de terras. Em períodos eleitorais, os resultados de im-plementação da legislação vigente tiveram resultados mais expressivos. A superação das limitações do aparato legalista teve como tentativa de solução a criação de no-vas leis.

Joana Darc Virgínia dos SantosEspecialista e Mestranda em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, ba-charel e licenciada plena em Ciências Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André (São Paulo, Brasil)[email protected]

Notas

(1) Conforme Alves (2000), chamamos de complexo de reestruturação produti va a implantação de novas tecnologias e formas de organizar a produção social capitalista. A reestruturação produ-ti va no Brasil teve grande impulso durante o governo Collor como um processo de integração entre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e a mundialização do capital. Os polos indus-triais foram modernizados tecnologicamente e também foram alteradas estratégias de gestão, localização das fábricas, bem como a relação entre sindicatos e trabalhadores.

(2) Utilizamos o conceito ideologia segundo a análise marxiana, como consciência da operação prática.

(3) Segundo dados colhidos pela Fundação Seade referente à mortalidade infanti l em Diadema entre 1980 e 1994.

(4) O depoimento de Edmundo da Silva Ribeiro foi coletado em 1997 por Eliete Rocha de Almeida, Fabiana Lo Bello, Janete Barros Nunes e Silmara de Paulo Santos, quando o depoente ocupava o cargo de presidente da Almul, uma das cinco organizações que parti ciparam do projeto Sanko.

(5) Segundo Alves (2000), na segunda metade década de 1980, o processo de reestruturação produ-ti va foi implantado Brasil a parti r do toyoti smo restrito e, na década de 1990, houve a incorpo-ração do toyoti smo sistêmico.

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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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Grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de São Paulo

Marina Pacheco e SilvaHelena Ribeiro

ResumoPesquisa na Cidade de São Paulo identifi cou difi culdades que grupos de catadores autôno-mos de recicláveis enfrentam para se inseri-rem no Programa de Coleta Seletiva ofi cial. A cidade gera diariamente 16 mil toneladas de resíduos, apenas 1% destinados à coleta sele-tiva. Entretanto, grupos de catadores coletam informalmente sem ser incluídos nas estatísti-cas. Foram levantados bibliografi a, legislação sobre resíduos, grupos atuantes na coleta se-letiva; e aplicados formulários em 13 grupos. Dados indicaram organização e gestão dos grupos, difi culdades, gerenciamento e divisão dos recursos, participantes e interesse de par-ticiparem da coleta seletiva ofi cial. Das difi cul-dades que os grupos apontaram estão: falta de espaço adequado para guardar, separar e enfardar material coletado; falta de recursos para seu desenvolvimento; e falta de apoio do governo.

Palavras-chave: políticas públicas; grupos de catadores; sustentabilidade; coleta seletiva; reciclagem.

AbstractA study in the city of São Paulo identified difficulties which independent groups of scavengers face to be included in the local government’s selective collection program. The city generates 16 thousand tons of residues daily, only 1% for selective collection. Nevertheless, groups of scavengers collect, informally, thousands of tons of residues, without being included in statistics. The methods were bibliographical and legislation research, and forms were administered to 13 groups that deal with collection. The data enabled to recognize the organization and management of groups, difficulties, administration and division of resources, participants and their interest in participating in the offi cial program. The main diffi culties indicated by the groups were: lack of space to sort out, bale, and keep collected material, lack of fi nancial resources and of government support.

Keywords: public policies; groups of scavengers; sustainability; selective collection; recycling.

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Introdução

Conhecer grupos de catadores organizados, que atuam na coleta seletiva na Cidade de São Paulo, foi o grande desafi o desta pes-quisa. O tema é muito amplo, existem ainda poucas referências científi cas. A opção como objeto de estudo foi pelos grupos de cata-dores organizados que atuam com a coleta de resíduos sólidos descartáveis e não têm parceria com o Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo.

Andar pelas ruas do centro expandido da cidade de São Paulo é a certeza de en-contrar trabalhadores puxando carroças e recolhendo materiais descartados. São, em maioria, profi ssionais desempregados que exercem a função de catadores de resíduos recicláveis e procuram, na venda desses m ateriais, uma maneira de sobreviver e ter autonomia para decidir sobre as suas necessidades.

Um dos fatores que contribui para es-se quadro é o aumento de materiais des-cartáveis, depositados pelas ruas, que pode ser explicado pelas mudanças dos hábitos de consumo. Por exemplo, até os anos 60, a garrafa de leite de vidro era retornável. Foi substituída por saco plástico, depois por caixa “tetra pak”. Atualmente, vivencia-se a era dos descartáveis: as embalagens de be-bidas e de alimentos são produzidas em lar-ga escala, substituindo as reutilizáveis por descartáveis de papel, plástico e alumínio.

A cidade de São Paulo, segundo o De-partamento de Limpeza Urbana – Limpurb, coleta diariamente 16 mil toneladas de lixo, destes 9.600 toneladas de resíduos domici-liares, com a seguinte composição: 52,5% de resíduos orgânicos, 28,4% de papel e

papelão, 5,6% de plásticos, 4,9% de me-tais, 3% de vidro e 5,6% de outros.1

Os aterros sanitários públicos da cida-de de São Paulo chegaram a sua capacidade máxima, e hoje os resíduos sólidos gerados são levados para dois aterros particulares: CDR Pedreira, localizado no Tremembé, e Essencis, localizado no município de Caiei-ras. As despesas decorrentes da coleta, transporte, tratamento e disposição final dos resíduos são exorbitantes.

As normas, nas três esferas (federal, estadual e municipal) que regulam os prin-cípios, objetivos, atribuições, ações do go-verno voltadas ao saneamento, a coleta e reciclagem de resíduos sólidos, têm presen-te a preocupação com o desemprego e com a melhoria da qualidade de vida. A recicla-gem passa a ser, além de atribuição do mu-nicípio para a preservação da saúde pública e a garantia da sustentabilidade ambiental, uma forma de inserção do desempregado na sociedade.

A cidade de São Paulo possui 15 Cen-trais de Triagem, sob a supervisão da Se-cretaria de Serviços, vinculadas à Limpurb, e situadas em 15 Subprefeituras. Elas são geridas por cooperativas conveniadas com a Prefeitura. Seus contratos foram legaliza-dos entre fevereiro e março de 2008. Essas cooperativas estão subordinadas às regras estabelecidas pela Autoridade Municipal de Limpeza Urbana – AMLURB, utilizam espaço e equipamento públicos, mediante cessão de uso gratuita, mas com a cláusula de devolu-ção em 30 dias desde que notifi cadas pelo poder público.

No município de São Paulo, estima-se que existam 20.000 profissionais que exercem a função de catadores de resíduos sólidos, recolhendo 39 mil toneladas de

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resíduos mensalmente (Grimberg, 2007, p. 14), enquanto apenas 838 catadores atuam no Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo. Isto é, apenas cer-ca de 4,2% dos catadores estão inseridos no Programa da Prefeitura e recolhem, nesse programa, 6,7% do material recolhi-do pelos 20.000 catadores não inseridos.

Buscou-se, no estudo, identifi car as di-fi culdades que os grupos organizados autô-nomos de catadores, que atuam com a cole-ta seletiva de resíduos recicláveis na Cidade de São Paulo, encontram para se inserirem no Programa de Coleta Seletiva da Prefeitu-ra de São Paulo.

A cidade de São Paulo, o espaço público como local de trabalho

A cidade contribui para a socialização capi-talista das forças produtivas, ela é resultado da divisão social do trabalho, porque con-centra as condições da produção capitalista. A urbanização capitalista é uma multiplicida-de de processos privados de apropriação do espaço, sendo que cada um deles é determi-nado por regras próprias de valorização do capital (Topalov, 1979, p. 20).

A visão de Topalov representa a dinâ-mica, a apropriação e as relações de poder, que podem parecer invisíveis, mas estão presentes na vida da cidade.

A cidade de São Paulo tem 1.509 km² e destes, 1.000 km² são urbanizados. Conta com uma população de 10.995.082 habitantes. O seu orçamento, para o exer-cí cio de 2008, foi de R$25,2 bilhões.

D e s s e o r ç a m e n t o , d e s t i n a r a m - s e R$500.422.421,002 para custear o contra-to de “Concessão dos Serviços Divisíveis de Limpeza Urbana em Regime Público”,3 que executa a coleta de resíduos sólidos em 99,2% dos domicílios.4

Entretanto, milhares de “carroceiros” também recolhem resíduos descartados pas-síveis de reciclagem, disputando as vias públi-cas com 6,7 milhões de veículos e 15 mil ôni-bus. Uma parcela dos coletores de recicláveis também vive na rua. Segundo a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvol vimento Social – SMADS (2005), 31% da população de rua são catadores. Para Vieira (1994), a população de rua tende a permanecer em locais que favorecem a sobrevivência. Ela ocupa bairros mais centrais onde, durante o dia, o comércio produz grande adensamen-to de pessoas e muitos resíduos recicláveis, e que à noite fi cam ociosos. A apropriação dessas áreas pelos catadores acarreta um duplo uso: espaço de moradia e de traba-lho. Ocorre, assim, uma reorganização, uma reinvenção do espaço público e comum, onde a concepção de casa cede lugar a outra (ibid., p. 103). O que é privado, como comer, be-ber, dormir etc., torna-se público. O público, enquanto espaço coletivo de circula ção, tor-na-se espaço de morar. Essa subversão de regra faz da ocupa ção das ruas um fato con-fl ituoso, cabendo ao poder público gerenciar este confl ito (Vieira, 1995, p. 43).

Os milhares de profissionais que tra-balham como formigas no espaço urbano, procurando, recolhendo, triando resíduos descartados, são invisíveis na sua ação que favorece o meio ambiente e são discrimi-nados pela sociedade, pois a locomoção de suas carroças pela cidade difi culta a fl uidez do tráfego.

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O que as pessoas não percebem, afi rma Angelo (2007), é que esse trabalho benefi -cia toda a cidade, pois os resíduos que eles recolhem retornam como matéria-prima e deixam de abarrotar os aterros.

Paciência, motorista, com o pobre do

carroceiro. Cala a tua buzina irritada,

que o homem que ali vai, puxando sua

carga enorme e desequilibrada, trabalha

para o teu bem. (Angelo, 2007)

A falta de paciência e uma concepção higienista levam os catadores ao isolamen-to social, que reduz as suas oportunidades de inserção. O catador de material reciclável necessita atuar em locais onde os resíduos

sejam mais abundantes e isso ocorre nos se-tores dinâmicos do comércio, que se concen-tram nos distritos do centro e nos corredo-res sul-sudoeste (Jardins, Pinheiros, Itaim, Moema, Vila Mariana) (Torres, 2004).

Métodos

Após análise da bibliografi a e da legislação pertinente aos resíduos sólidos, a etapa da pesquisa de campo foi subdividida em: de-fi nição do perfi l dos grupos e levantamento do universo a ser pesquisado, elaboração do instrumento de coleta de dados, pré-teste dos formulários com questões de múltipla

Figura 1 – Cena de disputa entre os carros e a carroça no trânsito da cidade

Fonte: Rodrigo Marcondes – Folha Imagem

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escolha e abertas e sua aplicação a líderes dos grupos de catadores autônomos.5

Para a defi nição do perfi l dos grupos objeto da pesquisa, foram considerados os requisitos pré-estabelecidos pelo Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Pau-lo. Esses requisitos exigem que os grupos:

• Estejam constituídos como cooperati-vas. Para se constituir como cooperativa é necessário no mínimo 20 participantes. A seleção do grupo levou em conta apenas o número de participantes, não tendo sido pré-requisito o grupo já estar constituído como cooperativa, mas ter condições para tal;

• Tenham seu endereço e atuem na cida-de de São Paulo;

• Atuem com a catação de materiais recicláveis;

Além dos requisitos legais, mais três requisitos operacionais foram incluídos:

• Serem de conhecimento da pesquisa-dora as referências do grupo, tais como nome, endereço, telefone, número de par-ticipantes;

• Não terem contrato com o Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo;

• Concordarem em receber a pesquisado-ra para a aplicação do formulário.

Universo da pesquisa

Foram identificados 143 grupos. Destes, constatou-se que: 11 eram ONGs; 18 não tinham dados sufi cientes que possibilitassem contatá-los; 15 se referiam a grupos que não atuavam mais com catação; 3 eram gru-pos que não atuavam na catação por falta de

espaço físico. Os demais 94 grupos foram classifi cados em: Centrais de Triagem6; Gru-pos com até 19 participantes; e grupos com mais de 20 participantes. Estes últimos, 13 grupos, constituíram o objeto da presente pesquisa, pois, teoricamente, poderiam ser incluídos no programa da prefeitura.

As questões elaboradas para a coleta de dados tiveram como objetivo aprofundar o conhecimento sobre a forma de organiza-ção, as parcerias estabelecidas pelo grupo, as suas condições econômicas, a forma de gestão, a caracterização dos participantes, o conhecimento do grupo sobre o Programa de Coleta Seletiva do Município, o interesse em participar do programa e a opinião deles sobre as vantagens e as desvantagens em participar do referido programa.

Algumas referências legais

Algumas referências legais são importantes para conhecer o fi o que separa a inclusão ou exclusão desses grupos no programa municipal.

A Lei nº 13.430, de 2002, regulamenta o Plano Diretor da Cidade de São Paulo. O art. 7º destaca seus princípios, que demons-tram preocupação com justiça social, redu-ção das desigualdades sociais e regionais; inclusão e participação da população, direito ao trabalho, à cidade e à moradia. O artigo 72, inciso IX, indica as “ações estratégicas para a política de resíduos sólidos, entre elas implantar e estimular programas de co-leta seletiva e reciclagem, preferencialmente em parceria com grupos de catadores orga-nizados em cooperativas, com associações

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de bairros, condomínios, organizações não governamentais e escolas.”

A Lei Municipal 13.478, de 30 de de-zembro de 2002, dispõe sobre a organiza-ção do Sistema de Limpeza Urbana de São Paulo. O art. 2º refere-se aos deveres do Poder Municipal, e o seu inciso V estabelece que compete ao município criar condições para que os serviços de limpeza propiciem o desenvolvimento social, reduzam as desi-gualdades sociais e aprimorem as condições de vida de seus habitantes. O artigo 6º, inci-so VIII, atribui ao munícipe o dever de “con-tribuir ativamente para a minimização dos resíduos, por meio da racionalização dos re-síduos gerados, bem com sua reutilização, reciclagem ou recuperação”.

O capitulo II – Seção III, os artigos 67 e 70 estabelecem permissão às cooperativas de trabalho, integradas por catadores de re-síduos sólidos recicláveis, para a prestação de serviços de limpeza urbana e coleta se-letiva de lixo e de triagem do material cole-tado, em regime público, podendo celebrar convênios com as cooperativas interessadas em prestar os serviços, com o repasse de recursos fi nanceiros, materiais ou humanos, com vistas a incentivar sua execução.

O Decreto Municipal 48.799, de 2007, normatiza o Programa Socioambiental de Coleta Seletiva com Cooperativas, tendo co-mo objetivo estimular a geração de emprego e renda e fomentar a formação de coopera-tivas e associações de catadores de materiais recicláveis, como política de inclusão social. As ações do Programa preveem o apoio à formação de cooperativas e associações de catadores e a implementação progressiva da coleta seletiva por meio das cooperativas e associações, estabelecendo que os contratos da Prefeitura para as atividades de coleta

seletiva estão isentos de licitação. Define, para tanto, cooperativas ou associações co-mo “o grupo de catadores de materiais re-cicláveis que atuem no ramo de coleta sele-tiva, legalmente constituído, que gerenciará a Central de Triagem ou a unidade de pro-dução encarregada de coletar, triar, arma-zenar, benefi ciar e comercializar os resíduos sólidos recicláveis”. Ainda determina que “a receita proveniente da comercialização dos resíduos recicláveis será revertida integral-mente às cooperativas e associações partici-pantes do programa”.

Há, pelas peças legislativas citadas, amplo amparo legal para que os grupos de catadores atuem na coleta seletiva, desde que organizados legalmente em cooperativa e que estabeleçam parceria com o governo municipal.

Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo

O primeiro Programa de Coleta Seletiva do município de São Paulo foi implantado em julho de 1989 (Calderoni, 1999). Para o seu início, a Prefeitura disponibilizou, no bairro de Vila Madalena, a coleta domiciliar de re-cicláveis porta a porta, em dias diferentes da coleta convencional de resíduos sólidos. Para os bairros que não tinham acesso a es-ta coleta, colocou à disposição da população containeres em parques ou em áreas de con-centração habitacional. As escolas também foram alvo desse programa, contando com um trabalho de educação ambiental desen-volvido por Limpurb.

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Todo o material coletado no bairro de Vila Madalena e nos containeres era direcio-nado para centro de triagem localizado em Pinheiros, implantado junto com o Progra-ma de Coleta Seletiva, sob coordenação do Corpo Municipal de Voluntários – CMV.

São Paulo já tinha uma coleta infor-mal realizada pelos catadores avulsos de rua, os quais recolhiam em torno de 500 toneladas dia, e, para não prejudicá-los, o Programa de Coleta Seletiva evitava a colo-cação de containeres nas áreas onde eles se concentravam.

Em 1993, a coleta porta a porta foi cancelada, permanecendo apenas os pos-tos de entrega voluntária nos parques da cidade. Em 1997, a Limpurb lançou o Programa “Recicla São Paulo”, tendo como objetivo a coleta e revenda de reci-cláveis, operacionalizado pelas empresas responsáveis pela coleta tradicional de lixo e prevendo a integração e remuneração dos moradores pelo lixo coletado seletivamente (Calderoni, 1999).

Em agosto de 1997, um grupo de en-tidades do setor de embalagens apresentou ao Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, um diagnóstico e uma propos-ta de incentivo à reciclagem e à coleta se-letiva, chamada de “uma proposta cidadã”. A proposta previa estímulos aos municípios para implementar coleta seletiva e centros de triagem de resíduos, incentivos fiscais da União e do Estado para catadores e re-cicladores, campanhas do governo estadual e da sociedade civil para motivar a popula-ção, apoio aos catadores para ampliarem a ação de suas cooperativas e desenvolvimen-to de mercado, por parte da indústria, para os produtos feitos com materiais reciclados (Oliveira, 1997). Entretanto, em setembro

de 1997, a Prefeitura remanejou verba destinada a diversos serviços (dentre eles, da coleta seletiva), para o pagamento de dividas e R$511 milhões para gastos com a destinação fi nal do lixo, uma vez que os aterros sanitários estavam sobrecarregados (Huertas, 1997). O programa de coleta se-letiva foi considerado defi citário, pois o cus-to da coleta era muito alto (U$470 dólares a tonelada) comparado ao valor arrecadado com a comercialização (U$50 dólares por tonelada). O apoio operacional tornou-se limitado e houve cortes nas campanhas de divulgação. Os containeres coloridos foram substituídos por apenas uma cor, verde, e passaram a receber todos os tipos de ma-teriais a serem reciclados, sendo necessário separar o lixo seco (resíduos recicláveis) do lixo molhado (resíduos orgânicos). Segundo a Limpurb, a falta de investimento levou o programa ao colapso, o material que era de-positado nos containeres deixou de ser cole-tado e se amontoava nos Postos de Entrega Voluntária – PEVs – por dias seguidos, cau-sando mau cheiro e favorecendo a presença de vetores transmissores de doenças.7

Com a proximidade das eleições muni-cipais, em junho de 2000, sessenta institui-ções que atuavam na área social e ambiental criaram o “Fórum do Lixo e Cidadania da cidade de São Paulo”, e elaboraram o do-cumento Plataforma Lixo e Cidadania para São Paulo, com as propostas produzidas no “Encontro Lixo e Cidadania: compartilhando a gestão do lixo de São Paulo”. Essa plata-forma ressaltava a necessidade de o poder público, em especial o próximo Gestor da ci-dade, prever no seu plano de governo ações que valorizassem a importância da redução dos resíduos sólidos urbanos – RSU, o rea-proveitamento destes com a participação

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dos catadores e a erradicação do trabalho infantil nos aterros. Esse documento foi apresentado aos candidatos à Prefeitura e à Câmara Municipal (Plataforma do lixo e ci-dadania, 2000).8

Reportagem de janeiro de 2001 apre-sentou as iniciativas das ONGs, que apesar de não contarem com o apoio efetivo da Prefei-tura, utilizavam o lixo como forma de gerar renda a seus benefi ciários. As ONGs Recicla-zaro e Boa Vista Reciclada atuavam na Lapa e no Centro da cidade, respectivamente, e atendiam trabalhadores que anteriormente eram explorados por ferros velhos. Esta re-portagem cita pesquisa da FIPE apontando que dos 8.704 moradores de rua, mais de 3000,9 atuavam com a catação. Traz, ainda, dados sobre o volume de resíduos gerado na cidade, que era de 14.072 toneladas, sendo aproximadamente um terço de resíduos re-cicláveis. No entanto, a coleta seletiva só re-colhia 4 toneladas/mês, o que correspondia a 0,08% (Viveiros, 2001).

Para a ampliação e retomada do pro-grama de coleta seletiva, em 2002, a prefei-tura apresentou nova proposta, que consis-tia na abertura de três Centros de Triagem. A escolha dos grupos para a gestão das três primeiras centrais foi feita em reunião com representantes da Prefeitura, dos Fóruns de catadores e das entidades Coopamare e Reciclazaro, que já tinham experiência com grupos de catadores. A organização dos catadores foi o grande desafio para esse projeto. Os catadores podiam ser divididos em três grupos: os que assumiam a ativida-de como profi ssão, os que dependiam dela, mas tinham vergonha e os que tratavam a atividade como um bico (Folha, 2002).

Sendo uma das atribuições da Prefeitu-ra a capacitação para a inserção no Programa

Socioambiental Cooperativa de Catadores de Material Reciclável, a Secretaria do Desen-volvimento Trabalho e Solidariedade, SDTS, em 2002, em parceria com a Unesco e com entidades sociais, desenvolveu cursos de ca-pacitação em Agente Comunitário de Coleta Seletiva. Esses cursos formavam os agentes, que deviam, no final do curso, ter conhe-cimento da importância da reciclagem, das suas consequências ao meio ambiente, dos tipos de materiais que podem ser reciclados, da diferenciação entre os materiais e saber convencer a população para a separação dos resíduos em suas casas.10

O Instituto Pólis, em dezembro de 2002, conjuntamente com 67 instituições que atuavam com educação ambiental, in-clusão social, econômica e cultural, realizou o “1º Encontro de Educação Socioambiental do Programa Coleta Seletiva Solidária de São Paulo”. Esse encontro foi copromovido pelo Comitê Metropolitano de Catadores, pelo Fórum do Lixo e Cidadania da Cidade de São Paulo, pelo Fórum de Desenvolvi-mento da Zona Leste, pelo Fórum Recicla São Paulo e pela Prefeitura do Município de São Paulo. O objetivo foi a implantação do “Programa Coleta Seletiva Solidária”, para o reaproveitamento de resíduos com vistas à inclusão social, geração de trabalho e ren-da e mobilização da sociedade. O Programa tinha como princípio a estruturação de um sistema de coleta seletiva associativista, ope-racionalizado pelas organizações de catado-res e com apoio logístico do poder público e capacitação dos catadores para atuarem em cooperativas.11 As Centrais de Triagem começaram a ser implantadas em 2003 (10 centrais), em 2004 foram implantadas mais 4 centrais e em 2006 mais uma, totalizan-do as 15 centrais existentes. Elas foram

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estruturadas a partir de grupos organizados que já atua vam com a coleta nas regiões on-de foram implantadas. A central de Triagem da Mooca contava, na época, com 39 coope-rados e tinha o apoio de 5 núcleos. Para o início das Centrais de Triagem esses núcleos encaminharam catadores para formarem a cooperativa à qual eles permaneciam liga-dos, formando uma rede de coleta seletiva na região (Ribeiro et al., 2005). A rede aca-bou não se consolidando e as Centrais de Triagem passaram a operar independente-mente dos grupos existentes. Alguns desses grupos deixaram de existir e outros, hoje, pleiteiam o status de se tornarem Centrais de Triagem.

Relatório do Limpurb sobre o desem-penho do Programa de Coleta Seletiva e Ecopontos, de março de 2007, apontava um custo da coleta seletiva de R$5.267.976,74 milhões/ano e R$438.976,74 mensais. O número de cooperados atuando nas 15 cen-trais de triagem era de 838, que recebiam, em média, R$649,19 mensais. Triavam, por mês, 2.610 toneladas de resíduos, ao custo de R$168,10 a tonelada. As principais dificuldades enfrentadas pelo programa, apontadas nesse relatório foram: difi culda-de de gerenciamento administrativo; falta de prestação de contas à Prefeitura e a de-pendência dos cooperados ao Órgão Público; desconhecimento sobre a Lei 5.764/71 que rege o Cooperativismo; a falta de participa-ção da Sociedade na separação dos resíduos; e a falta de uso dos equipamentos de prote-ção individual – EPI’s, pelos cooperados.12

Em novembro de 2007, o Instituto Pó-lis, com entidades que atuam na integração social e educação ambiental na cidade de São Paulo, reuniram 101 pessoas para a elabo-ração da Agenda de 2008 – Política Pública

de Coleta Seletiva com Inclusão dos Catado-res e Catadoras.13 O diagnóstico apresenta-do no encontro demonstra que os números do Programa de Coleta Seletiva da Prefei-tura de São Paulo permaneciam inalterados em relação aos dados de 2004, que as coo-perativas continuavam reciclando 1% dos resíduos coletados na cidade e que apenas 1.000 cooperados integravam as Centrais de Triagem.

O orçamento de 2007 para a coleta con-vencional e destinação de resíduos, sob o regi-me de concessão, foi de R$479.085.000,00, enquanto o da coleta seletiva foi de R$6.707.950,00, isto é, 1,4% do orçamen-to destinado à coleta convencional.

Em contrapartida a esse quadro, gru-pos de catadores organizados e mesmo catadores autônomos vêm atuando infor-malmente na coleta, e o material recolhi-do por eles não é computado ofi cialmente nas estatísticas. Muitos desses catadores aguardam uma oportunidade de se inserir no Programa da Prefeitura e de receber a remuneração pelos serviços prestados à cidade. A remuneração a catadores partici-pantes da coleta seletiva ofi cial foi prevista na legislação normativa, mas ainda depende de regulamentação.

A ampliação da coleta seletiva com in-clusão dos catadores pode trazer benefícios para a cidade, entre eles: a redução dos custos de operação dos aterros sanitários e aumento de sua vida útil, redução de cus-tos de energia e matéria-prima, ampliação dos números de postos ofi ciais de trabalho e renda, inclusão de catadores no sistema público de coleta seletiva, aumento de opor-tunidades de inserção social e reintegração de catadores e suas famílias e conservação de recursos naturais.

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Agentes ambientais, carrinheiros, carroceiros, recicladores, catadores

Agentes ambientais, catadores, carrinheiros, carroceiros, profi ssionais do “lixo”. Existem diversas formas de denominá-los. Esses profissionais garantem seu sustento e de sua família através da catação de materiais descartados como “lixo”, encontrados nas ruas, nas indústrias, nas residências e usam a tração humana para puxar carroças e se locomoverem.

Birbeck denomina os catadores self-employed proletarians, considerando que o autoemprego não passa de ilusão, pois os catadores se autoempregam, mas, na realidade, vendem sua força de trabalho à indústria da reciclagem, sem terem acesso à seguridade social do mundo do trabalho (Birbeck 1978 apud Medeiros e Macedo, 2006, p. 65).

Segundo Rodrigues e Cavinato, há mais de 50 anos é bastante conhecido, no Bra-sil, o catador de papel e papelão que anda pelas ruas nos centros das cidades puxando seu carrinho e remexendo os sacos de lixo na calçada.

A catação é o processo de reaprovei-

tamento do “lixo” mais antigo de que

se tem notícia no país. Devido a essa

tradição, o Brasil ocupava, no fi nal da

década de 1980, uma posição de desta-

que mundial na recuperação de papel e

papelão, à frente dos Estados Unidos e

do Canadá. (1997, p. 57)

Ângelo (2007), no conto A Formiga e o Lixo, faz uma reflexão sobre quem é o

catador, o trabalho que ele realiza no dia a dia, a pessoa que recolhe o que não conso-me, a sua função na sociedade, represen-tando a pobreza, a carência, a exclusão, o trabalho de formiguinha que contribui para o Brasil ser o maior reciclador de alumínio.

O homem da carroça, o burro sem ra-

bo,(....) na grande cidade, é um resto.

Um rejeito levando rejeitos.(.....) um

personagem-símbolo do grande proble-

ma, da pobreza, da exclusão, da carên-

cia. (Ibid., p. 141)

Para conhecer quem eram esses cata-dores, a Secretaria Municipal do Trabalho – SMTRAB, realizou uma pesquisa, em 2005. Foram entrevistados 500 profissionais no centro expandido da cidade (SMTRAB 2005). De acordo com seus resultados, 90% desses profi ssionais eram do sexo masculi-no, 26% tinham entre 31 e 40 anos e 46% entre 41 e 55 anos, 59% tinham o ensino fundamental incompleto, 23% moravam na rua e 14% em albergues. Concluiu-se que 37% estavam em situação de rua e 50% moravam com a família, 36% moravam na região central da cidade, 57% trabalhavam anteriormente com carteira registrada, 88% eram autônomos.

No entanto, a profissão de catador é legalmente reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, tendo si-do ins crita no Código Brasileiro de Ocupa-ções – CBO, pelo nº 5.192 e denominada “catado res de material reciclável”, incluindo nessa classifi cação – Catador de ferro-velho, Catador de papel e papelão, Catador de su-cata, Catador de vasilhame, Enfardador de sucata (cooperativa), Separador de sucata

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(cooperativa), Triador de sucata (cooperati-va) (CBO – MTE).

Mas, como visto, ter uma profi ssão re-conhecida não garante a esses profi ssionais o reconhecimento da sociedade, nem a ga-rantia do direito ao seguro social.

Resultados

Os resultados obtidos na pesquisa de campo evidenciaram muitos dos pontos acima des-critos. O desconhecimento dos membros do grupo e o seu registro é uma tônica, uma vez que não é prática dos grupos terem fi -cha de cadastro dos participantes. Dos 13 grupos aos quais foram aplicados os formu-lários, apenas três se reportaram às fi chas de cadastro, para responder às questões. Assim, nem mesmo o grupo conhece seus membros.

No quesito gênero, 11 grupos soube-ram caracterizar seus participantes, sendo, na média, 47% homens (H) e 53% mulhe-res (M). Essas proporções entre os gêne-ros são semelhantes às obtidas por Besen (2006), em estudo sobre associações de catadores de resíduos, em três municípios: 43% do sexo masculino e 57% do sexo feminino. Já na pesquisa realizada pe-la SMTRAB, 90% dos entrevistados eram do sexo masculino. Tais dados podem ser explicados pelo fato que na pesquisa da SMTRAB só foram entrevistados catadores que estavam puxando carroças. Na presente pesquisa, foi verifi cado que, nos grupos que utilizam carroça, a percentagem de homens era maior que na média dos grupos (56% homens e 44% mulheres). Segundo relato dos representantes, os homens puxam a

carroça e as mulheres fazem a triagem do material.

Cinco grupos não souberam prestar informações sobre idade dos seus partici-pantes, 3 grupos relataram que a maior parte tem, em média, 30 a 40 anos. Ape-nas 3 grupos souberam precisar a idade dos participantes. Nestes, 37% dos partici-pantes estavam na faixa de 30 a 40 anos e 38% na acima de 40 anos. No total dos grupos, pode-se afi rmar que a faixa etária que prevalece é de 30 a 40 anos. Pesquisa da SMTRAB (2005) demonstrou que 48% dos entrevistados tinham idade entre 41 e 55 anos. Portanto, nas duas pesquisas com catadores, evidenciou-se forte presença de população em idade produtiva.

Quanto à escolaridade, 6 grupos não souberam prestar nenhuma informação, 5 grupos informaram o número de participan-tes analfabetos e com ensino médio. Só um grupo não tinha analfabetos. Dentre todos os grupos, 72% dos catadores tinham o en-sino fundamental completo ou incompleto. Os resultados assemelham-se aos da pesqui-sa da SMTRAB, de que 75% dos entrevis-tados tinham ensino fundamental completo ou incompleto, isto é, 5 a 8 anos de estudo. Esta população, portanto, apesar de estar em idade produtiva, encontra difi culdades para se inserir no mercado formal de tra-balho. Os dados corroboram a afi rmação de Camargo (s.d.) de que a taxa de desempre-go entre os trabalhadores semiqualifi cados no Brasil é mais elevada. Como alternativa de sobrevivência e sustento da família, os trabalhadores semiqualifi cados optam pela catação. Possivelmente, sua capacitação não atende aos requisitos necessários para vagas de empregos disponíveis, com renda que su-pere a obtida no trabalho de catação.

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Sustentar a família era a necessidade de 73% dos membros dos 6 grupos que ti-nham a informação do local de moradia de seus participantes. Dos demais grupos, 3 informaram que a maioria vivia com a famí-lia. Um único grupo informou que 76% dos participantes viviam sós ou moravam em albergues. Este último atuava em parceria com a SMADS, na inserção dos albergados.

Quanto às variáveis de análise da situa-ção econômica, sobressai a questão do es-paço físico (Quadro 1). Dos dados apurados na pesquisa, constatou-se que 3 grupos de-senvolviam suas atividades em espaço loca-do, 1 grupo prestava serviço a um grande gerador e utilizava o espaço do contratan-te, outro grupo tinha o espaço cedido pela Cúria Metropolitana. Os outros 8 grupos (62%) desenvolviam suas atividades em es-paços públicos, isto é, espaços pertencentes à Prefeitura, com e sem cessão de espaço. Apenas 1 grupo tinha o comodato por 25 anos para a utilização do espaço, assinado pelo prefeito.

A falta do espaço predeterminado pelo poder público contribui para o uso irregu-lar da cidade e para a utilização do espa-ço público coletivo, como ruas e praças na execução da triagem do material recolhido pelos grupos. O relato abaixo retrata uma prática dos grupos que atuam informal-mente. Ele representa a história de um dos grupos estudados.

O cenário mais marcante da apropriação

do espaço público do Largo São Francis-

co começa depois das 17h, quando, par-

ticularmente as praças tornam-se locais

de comercialização e benefi ciamento de

papelão, papel e outros resíduos cole-

tados em toda a região central. Uma

legião de catadores, com suas respec-

tivas famílias, vai chegando, carregan-

do montanhas de sacos de lixo em suas

carroças quase medievais. São verda-

deiras tropas de seres humanos puxa-

dores de carroças que depositam pilhas

de sacos de lixo no chão, e ali mesmo,

começam a fazer a separação da fração

comercializável. (Serpa, 2001, p. 51

apud Serpa, 2004)

A existência de espaço adequado de triagem também é determinante para a uti-lização de maquinário. A disponibilidade de balança, prensa, esteira, entre outros equi-pamentos, contribui para agregar valor ao material coletado e aumentar a renda do catador. O grupo que possui uma infraes-trutura melhor tem condições de coletar, triar, enfardar e comercializar uma quan-tidade maior de resíduos mais valorizados pelo mercado, o que leva a aumentar sua arrecadação.

Para ampliar a quantidade de material coletado, alguns grupos costumam estabe-lecer parceria com empresas e condomínios, que reservam os seus resíduos recicláveis para que esses grupos os retirem, em dias pré-determinados. Dentre os dados apura-dos, essa sistemática era praticada por 10 grupos (77%). Dentre esses 10 grupos, 2 grupos, além do material que retiravam, também recebiam material de terceiros pe-la entrega voluntária nas sedes dos grupos. Os outros 3 grupos recolhiam os resíduos só passando de porta em porta. As parcerias são, portanto, importantes elementos para a sustentabilidade desses grupos, mas exigem a formação de certo grau de capital social, baseado em confi ança adquirida (Kawachi et al., 2008). Exige também o reconhecimento,

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pelas empresas e pelos moradores desses condomínios, dos catadores como cidadãos, com algum direito, mesmo que restrito aos resíduos descartados pela sociedade de con-sumo, em que pese eles não apresentarem os requisitos para estarem inseridos nos be-nefícios do programa municipal.

As propostas de inclusão social e for-mação de cidadania dos catadores apontam para a necessidade de que os grupos de-senvolvam suas ações à luz dos pressupos-tos da economia solidária. Segundo Singer (2004), a economia solidária pressupõe a repartição dos benefícios de forma igual e menos casual. Para Lechat (2002), a carac-terística central da economia solidária é ser meio de produção que preza o laço social através da reciprocidade e adota formas co-munitárias de propriedade. Essa não era a realidade nos grupos pesquisados. Ainda es-tavam arraigadas nos participantes as ações individuais, com difi culdades de incorporar o coletivo. Provavelmente, essa difi culda-de está ligada à necessidade premente de subsistência. A gestão dos recursos aufe-ridos era assim administrada: em 8 gru-pos (62%) era administrada pelo próprio grupo; em 2 grupos não existiam recursos coletivos, cada catador fi cava com o valor auferido pelo seu trabalho; em 1 grupo a administração dos recursos era realizada pelo coordenador que fazia as contas e a divisão dos recursos; 1 grupo contratava uma empresa de contabilidade para a admi-nistração dos recursos; e em outro grupo a administração dos recursos era feita pela entidade mantenedora.

O dinheiro arrecadado pelo grupo era dividido pelas horas trabalhadas em 9 gru-pos (69%). Destes 9 grupos, 3 grupos ti-nham mais de uma forma de rateio (material

recolhido e produção), 2 grupos não tinham rateio (cada participante fi cava com o que havia coletado e arrecadado), o outro grupo era remunerado pelo dia trabalhado.

A atividade de catação, como já foi dito, não era percebida pelos participantes como um trabalho importante, sendo feita na falta de oportunidade melhor de trabalho. Os ca-tadores almejavam ser empregados, receber salário fi xo constante, o que não ocorre, ao menos no início, num projeto de economia solidária.

As retiradas mensais realizadas pelos componentes dos grupos variavam dentro do próprio grupo. A menor retirada mensal era de R$197,00 e a maior de R$1.900,00. A média de renda mensal obtida era de R$630,00, o que correspondia a 1,65 salá-rios mínimos. Esse valor médio arrecadado era semelhante aos obtidos em outras pes-quisas que abordaram o assunto. Na pes-quisa da SMTRAB, 43% dos “carroceiros” apresentavam renda entre 1 e 3 salários mínimos; e na pesquisa de Besen (2006), a renda média correspondia a quase 1,5 salá-rios mínimos.

Quanto às despesas que tinham, va-riavam de grupo para grupo: 2 grupos não tinham despesas, em 1 grupo as des-pesas eram assumidas pelo Convênio com a SMADS, em 1 grupo uma parte delas era as-sumida também pelo convênio com SMADS e nas outras o valor variava de R$315,00 a R$13.000,00. As despesas elevadas de alguns grupos referiam-se a locação e ma-nutenção de caminhão, locação de espaço, uniformes, serviços públicos de água e ele-tricidade, encargos sociais.

Dentre os grupos pesquisados, apenas 2 estavam regulares com a previdência so-cial, e recolhiam o INSS em nome de todos

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os membros, em 1 grupo alguns membros recolhiam por si e 10 grupos (77%) não recolhiam o INSS de seus membros. De maneira geral, constataram-se insegurança e falta de amparo social desses grupos em situações de doença, acidentes de trabalho e aposentadoria. Sua situação de exclusão es-taria evidenciada como a impossibilidade de acesso a alguns direitos sociais básicos que, em decorrência, leva os grupos nessa situa-ção à condição de subcidadãos: sem direitos, sem consumo e sem ferramentas para supe-rar essa condição (Pochmann, s.d.).

A instância de tomada de decisões era a Assembléia em 10 grupos (77%), em 2 gru-pos a entidade responsável pelo grupo parti-cipava das decisões e em 1 grupo as decisões não incluíam os catadores (eram tomadas pela entidade que administrava o convênio com a SMADS, com o aval desta). As regras estipuladas nos estatutos dos grupos de ca-tadores estudados eram fruto da participa-ção de poucos. De forma geral, os catadores encontram difi culdade para se incorporarem num novo modelo, em que sua participação é requerida. Além do mais, muitas vezes es-tes estatutos são construídos isoladamente, num processo anterior à integração e mobi-lização do grupo, pela necessidade de aten-der às exigências legais do cooperativismo, conforme exposto por Cortegoso e Porto (2008). Os resultados obtidos na pesquisa, nesses quesitos, evidenciam a fragilidade dos laços de confi ança estabelecidos entre os membros dos grupos, possivelmente tam-bém decorrente da sua alta rotatividade. A rotatividade dos grupos pode indicar a bus-ca por segurança, pelo emprego que garan-ta uma receita maior e que possa suprir as necessidades básicas do catador, conforme sugerido por Grimberg (2007). Segundo a

autora, um dos fatores que contribui para a evasão, é que a retirada dos catadores avul-sos é relativamente maior do que dos que estão em associações. Entretanto, é impor-tante que os laços dos grupos se fortaleçam e que sua organização seja sólida. A capa-cidade de os grupos se organizarem é que vai permitir que o Estado os incorpore em políticas públicas (Marques, 1999).

Inserção em política pública é alternativa para adquirir cidadania?

O conceito de cidadania adotado neste artigo prende-se às conquistas coletivas, impulsio-nadas por uma concepção de universalidade, cujo fundamento é o direito de se ter direi-tos (Kowarick, 2000). Neste contexto, seria o direito à inserção em políticas públicas de coleta seletiva.

A análise das variáveis que demons-tram o potencial de inserção dos grupos no Programa de Coleta Seletiva incluía: o inte-resse dos grupos, as difi culdades levantadas por eles, o conhecimento dos pré-requisitos necessários, as vantagens e desvantagens da participação no programa. A Tabela 1 retra-ta o interesse desses grupos.

Dentre as vantagens levantadas pelos grupos em relação a participar do Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Pau-lo, destacou-se o caminhão como a maior vantagem. O uso do caminhão possibilita recolher maior quantidade de resíduos e contribui para preservar a saúde e minimi-zar os riscos a que os catadores estão ex-postos pelo trabalho precário em carrinhos

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e carroças, realizado com alto grau de pe-riculosidade, insalubridade e sem reconhe-cimento social (Medeiros e Macedo, 2006). Em segundo lugar, na lista das vantagens, indicaram o material que as concessionárias do serviço de limpeza pública levam para as centrais de triagem operadas pelas coopera-tivas parceiras do programa da prefeitura. A infraestrutura e o espaço físico apareceram juntos em terceiro lugar. Segundo todos os entrevistados, outra vantagem importante de estarem incluídos no programa da pre-feitura era a legalização do espaço. A exis-tência de espaço físico adequado e legaliza-do é um fator relevante para que o grupo se sustente. Este é objeto do Contrato de Concessão dos Serviços divisíveis de Lim-peza Urbana em Regime Público14 fi rmado entre a Prefeitura de São Paulo e as empre-sas Loga e Ecourbis, que têm a concessão para exploração do serviço de limpeza pú-blica em São Paulo. No anexo III do contra-to é estabelecido que as empresas deverão construir 17 centrais de triagem, cabendo à Prefeitura indicar as áreas disponíveis para sua construção. Portanto, depende do com-prometimento efetivo da Prefeitura e das

empresas para que os grupos tenham local e infraestrutura adequados para desenvolver a triagem de resíduos.

O quesito capacitação não representa-va um empecilho à não inserção desses gru-pos no programa municipal. Segundo Grim-berg, o catador de rua, para integrar-se a um processo de trabalho cooperativado, ne-cessita passar por um processo de capacita-ção, que contribua para valorizar o trabalho coletivo (Grimberg, 2007). O processo de construção de um empreendimento econo-micamente solidário é lento e necessita ser constante para que a formação e a qualifi -cação sejam incorporadas e as atitudes mu-dadas (Mello, 2005).

A participação no programa municipal pressupõe a capacitação dos catadores en-volvidos. No caso dos grupos entrevistados, apesar de não participantes do programa municipal, apenas 1 não havia recebido ne-nhum tipo de capacitação. Dos demais, 10 grupos receberam capacitação administrati-va e gerencial, 3 grupos receberam qualifi -cação profi ssional para atuar com a recicla-gem, 6 grupos capacitação jurídica, 9 grupos foram capacitados na área de organização e

Tabela 1 – Interesse dos grupos em se inserirem no Programa de Coleta Seletiva

Variável Nº de grupos %Têm interesse em se inserir no Programa da PMSP 12 92Já mantiveram contato e ofi cializaram o interesse em se inserirem no Programa de Coleta Seletiva

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Estão tentando estabelecer contato 2 15Nunca entraram em contato com a Limpurb para se inserirem no Programa de Coleta Seletiva

4 31

Nunca tentaram, pois não são Cooperativas 3 22Conhecem os requisitos para estabelecer parceria com o Programa de Coleta Seletiva

7 53

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integração para o trabalho. Dentre os outros cursos realizados, 3 grupos citaram o de co-operativismo, um grupo de autogestão e um grupo de logística. Relacionando a participa-ção nos cursos com o tempo de existência do grupo, pode-se verifi car que os grupos que mais tiveram capacitação tinham 10, 13 e 6 anos de existência. Um dos grupos, que tinha 18 anos de existência, informou que continua em processo de capacitação perma-nente, sendo o único que relatou esse fato.

Assim, a formação de capital huma-no não era uma prerrogativa dos incluídos no programa municipal. Entretanto, como afirma Pochmann (2002), as práticas do empreendedorismo se desenvolvem de for-ma confl ituosa, e trabalhar esses confl itos é um modo de aprimoramento. Mas, para que haja esse aprimoramento, é necessário o acompanhamento, o monitoramento e a instrumentalização constantes. A inclusão num programa público poderia prover essa constante instrumentalização.

Dentre as desvantagens de participar do programa municipal, as maiores preocupa-ções eram com a perda da autonomia por parte dos grupos e com a mudança de ges-tão administrativa na Prefeitura, pois essas mudanças sempre interferem no gerencia-mento dos grupos.

Outra desvantagem apontada foi a exi-gência legal de que o grupo tenha 20 mem-bros para se constituir em cooperativa e poder estabelecer parceria com a prefeitura. Alguns grupos, quando questionados sobre o número de participantes, relataram a di-fi culdade em manter esse número mínimo exigido:

[...] houve uma redução (do número de

catadores), queda do material, muitas

pessoas acabam se tornando catador

avulso, tem vantagens, o catador acaba

pegando R$30,00, R$40,00, pega mó-

veis, alimentos e roupa.

A pesquisa mostrou que os grupos, para se sustentarem, necessitam usufruir das vantagens que o programa propicia às Centrais de Triagem, como a legalização do espaço, a utilização do transporte motoriza-do (minimizando os riscos e os inconvenien-tes do uso da carroça), o custeio da infra-estrutura (reduzindo as despesas), o que, consequentemente, possibilitaria o aumento da renda dos catadores.

Concluindo

A cidade de São Paulo conta com 94 grupos ou cooperativas organizadas que atuam com a catação de resíduos sólidos. Destes, só 15 são parceiros da Prefeitura na gestão das Centrais de Triagem. Os outros 79 necessi-tam de apoio para se formalizarem, para se constituírem em empreendimentos economi-camente solidários, que sejam reais instru-mentos de exercício de cidadania em prol de seus direitos. Dentre esses direitos estariam a geração de trabalho e renda, contribuindo para elevar a condição de vida de seus mem-bros, capacitando-os para o trabalho cole-tivo, com a divisão equitativa das tarefas e dos recursos auferidos. O reconhecimento e a valorização desses grupos de catadores, da sua capacidade de autogestão e de participa-ção ativa nas decisões e implementação de políticas públicas de resíduos sólidos urba-nos tornaria os membros do grupo sujeitos aptos a defi nir os seus rumos, os dos seus

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empreendimentos, conscientes do seu papel na conservação dos recursos do ambiente e na melhoria da cidade.

Dentre os resultados obtidos, pode-se afi rmar que a falta de apoio, o desconheci-mento das premissas da economia solidária e a necessidade premente de subsistência dos partícipes do grupo contribuíram para que a prática do coletivo seja bastante res-trita entre os grupos de catadores autôno-mos envolvidos na coleta seletiva na cidade de São Paulo. Muitas vezes, sua caracterís-tica de grupo se restringe à utilização de um mesmo espaço físico e, mais raramente, de um mesmo maquinário, quando existente.

O estigma de sujeira que os catadores carregam, a desconsideração que a socie-dade tem das atividade que eles executam e a não percepção de que o trabalho deles

contribui para a melhoria da qualidade de vida da cidade podem ser revertidos. A co-leta seletiva pode ser uma ferramenta de inclusão dos catadores, um mecanismo so-cializador, que possibilita o ganho fi nanceiro e transforma os catadores em cidadãos.

A falta de uma ação sistematizada por parte da Prefeitura Municipal de São Paulo junto aos grupos de catadores autônomos organizados tem sido um dos obstáculos pa-ra a ampliação do Programa de Coleta Sele-tiva da Prefeitura de São Paulo.

A legislação vigente contém normas que viabilizam a efetividade do programa, objetivando a ampliação da coletas de resí-duos recicláveis, a diminuição de descartes nos aterros e o aumento da participação dos grupos de catadores, mas isso não é sufi ciente.

Marina Pacheco e Silva Assistente social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestre em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, assistente social da Prefeitura do Município de São Paulo, Secretaria Municipal do Trabalho (São Paulo, Brasil)[email protected]

Helena RibeiroGeógrafa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, livre-docente em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, professora titular da Faculdade de Saúde Pública da Universi-dade de São Paulo do Departamento de Saúde Ambiental (São Paulo, Brasil)[email protected]

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Notas

(1) Aposti la 2006 – Coleta Seleti va Cidade de São Paulo – Programa Coleta Seleti va – 2006.

(2) http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/orcamento/orcamento_2008/detalhamento_despesa_mai2008.pdf

(3) O contrato desti na-se à coleta de lixo convencional na cidade, o custeio das Centrais de Triagem é objeto de outra dotação orçamentária.

(4) htt p://sempla.prefeitura.sp.gov.br/infogeral.php, acessado em 14.4.2008.

(5) A pesquisa foi submeti da e aprovada pelo Comitê de Éti ca da Faculdade de Saúde Pública.

(6) As Centrais de Triagem são vinculadas à Prefeitura de São Paulo e administradas por cooperati vas de catadores que possuem um convênio com o Programa de Coleta Seleti va da Prefeitura de São Paulo. São ao todo 15 Centrais de Triagem que estão situadas em diferentes pontos da cida-de. Elas ocupam terrenos municipais e/ou locados pela municipalidade para esse fi m. Além do espaço, essas centrais têm toda a infraestrutura manti da pela Prefeitura.

(7) Aposti la 2006 Coleta Seleti va Cidade de São Paulo, Limpurb – 2006, pg. 6.

(8) Plataforma Lixo e Cidadania para São Paulo, Insti tuto Pólis, 2000.

(9) Pesquisa realizada pela FIPE- Fundação Insti tuto de Pesquisas Econômicas, dados de fevereiro de 2000.

(10) Projeto Formação Cidadã, Capacitação Ocupacional e Aprendizagem de Uti lidade Coleti va no Município de São Paulo, Prefeitura de São Paulo, Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade – SDTS, em Parceria com a Unesco – convênio 914BRA3000, 2002.

(11) Plataforma de Educação Socioambiental do Programa Coleta Seleti va solidária, Insti tuto Polis, março 2003.

(12) Programa de Coleta Seleti va e Ecopontos, Relatório Mensal, março de 2007. Prefeitura da Cida-de de São Paulo , Secretaria de Serviços, LIMPURB – Departamento de Limpeza Urbana, Divisão de Coleta seleti va e Ecoponto.

(13) Agenda de Ações 2008 – Políti ca Pública de Coleta Seleti va com inclusão de catadores e catado-ras – Fórum do Lixo e Cidadania da Cidade de São Paulo, janeiro de 2008.

(14) O Contrato de Concessão dos Serviços Divisíveis de Limpeza Urbana em Regime Público foi fi rma-do entre a PMSP e as empresas Loga e Ecourbis em setembro de 2004.

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grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo

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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009

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Normas para publicação de artigos

Contribuições

Os artigos recebidos para publicação nos Cadernos Metrópole são submetidos à apreciação do Coletivo Editorial, ao qual caberá a decisão fi nal sobre a oportunidade de publicação.

O Coletivo Editorial da revista comunica aos autores a decisão sobre a publicação, mas não se compromete a devolver originais não publicados.

A pauta de cada número é organizada separadamente, não havendo, portanto, compromis-so de publicação resultante da data da remessa do artigo.

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A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. Cada autor recebe 3 exemplares do número em que for publicado seu trabalho.

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Os trabalhos devem ser encaminhados para a Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 – São Paulo – SP – Brasil, gravados em CD (artigo e folha de rosto) e em 2 (duas) vias impressas, sem identifi cação do autor, digitadas em espaço 1,5, fonte arial tamanho 11, margem 2,5, tendo, no máximo 25 (vinte e cinco) páginas, incluindo tabelas, gráfi cos, fi guras, referências biblio-gráfi cas. Devem ter um resumo de até 120 (cento e vinte) palavras em português ou na língua em que o artigo foi escrito e outro em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave.

Os textos devem ser em Word; tabelas e gráfi cos em Excel; imagens em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm , sendo que os gráfi cos e imagens devem ser em tons de cinza.

Os créditos do(s) autor(es) serão colocados em uma folha de rosto com as seguintes infor-mações, por extenso: nome do autor, formação básica, instituição de formação, titulação aca-dêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha, unidade e departamento, cidade, estado, país, e-mail, telefone e endereço para correspondência

As referências bibliográfi cas deverão ser colocadas no fi nal do artigo, seguindo rigorosa-mente as seguintes instruções:

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Livros

AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo:

CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

Capítulos de livros

AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZA-DOR (org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo:

BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salva-dor”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar.

Artigos de periódicos

AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódi-co, número do periódico, páginas inicial e fi nal do artigo. Exemplo:

TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos So-ciais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28.

Trabalhos apresentados em eventos científi cos

AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, número, ano, local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e fi nal. Exemplo:

SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle social, monitoramento e execução, parceiras e fi nanciamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília, MPAS/SAS, pp. 193-207.

Teses, dissertações e monografi as

AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição. Exemplo:

FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de mes-trado. São Paulo, FFLCH.

Textos retirados de Internet

AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso. Exemplo:

FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponí-vel em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em 8 set. 2005.

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