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IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a 03/08/2012 – Anais Eletrônicos – ISBN 978-85-7745-551-5
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A ÁFRICA NA LITERATURA DIDÁTICA DE HISTÓRIA A PARTIR DA LEI 10.639/2003
Márcia de Albuquerque Alves
[email protected] Vilma de Lurdes Barbosa [email protected]
(UFPB)
Resumo
Desconstruir e construir conhecimento sobre um continente tão amplo e diverso como a África se apresenta como um desafio para os professores de História da Educação Básica no Brasil. Esse desafio tem origem em vários fatores, dentre eles podemos citar três: o fato da África possuir uma imagem negativa de raízes no sistema de Escravidão imposto no Brasil; dos materiais didáticos durante anos apresentarem conteúdos distorcidos sobre os negros; e, do professor que está em sala de aula, atuando há mais de 10 anos, não ter sido contemplado com este conteúdo na sua formação. Ou seja, são diversos os fatores que podem nos fornecer idéia da luta que a Lei 10.639/2003 iniciou ao ser implantada na Educação Básica. Partindo desta reflexão, nos propomos neste artigo analisar o livro didático de História como fonte de pesquisa para entendermos como a África está sendo retratada após a inserção da lei. Na intenção de cumprir este objetivo faremos uma análise de dois livros didáticos de História referente às séries finais do Ensino Fundamental da Coleção "História e Vida Integrada", ambos referentes à 5ª série, atualmente 6° ano, de Nelson Piletti e Claudino Piletti. A primeira edição de 2001 e a segunda de 2005, visto que queríamos observar a ação da Lei nestes manuais, ou seja, como a África foi inserida na História através dos livros didáticos. Ressaltamos avanços quanto aos debates, às leis específicas e as produções acadêmicas, porém, percebemos que o continente africano embora inserido nos manuais, ainda apresenta‐se minimamente e em algumas situações de forma distorcida, tendo em vista que neste último caso, sua imagem é de fome, miséria e doenças. Intensifica‐se então, a necessidade de avaliação no tipo de abordagem que vem sendo utilizada e na atualização do professor quanto às pesquisas históricas, para que possa suprir as deficiências e lacunas existentes nos manuais didáticos. Concluímos que após nove anos de implementação da lei, há mudanças quanto à inserção dos conteúdos, quanto à publicação de livros temáticos sobre a África e às discussões e promoções acadêmicas, porém, ainda é preciso transformações quanto à forma de abordagem, e principalmente, quanto à concepção de ensino voltada para a desmistificação do continente africano em sua apresentação didática. Palavras‐chave: Livro didático. História da África. Ensino Fundamental. Saber histórico escolar.
Desconstruir e construir conhecimento sobre um continente tão amplo e diverso como a
África se apresenta como um desafio para os professores de História da Educação Básica no Brasil.
Esse desafio tem origem em vários fatores, dentre eles podemos citar três: o fato da África possuir
uma imagem negativa de raízes no sistema de Escravidão imposto no Brasil; dos materiais
didáticos durante anos apresentarem conteúdos distorcidos sobre os negros; e, do professor que
está em sala de aula, atuando há mais de 10 anos, não ter sido contemplado com este conteúdo
na sua formação. Ou seja, são diversos os fatores que podem nos fornecer idéia da luta que a Lei
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10.639/2003 iniciou ao ser implantada na Educação Básica. Como uma das vertentes dessa
questão, nos propomos neste artigo analisar o livro didático de História como fonte de pesquisa
para entendermos como a África está sendo retratada após a inserção da lei.
O Manual didático: fonte de pesquisa
O livro didático faz parte do cotidiano escolar há cerca de dois séculos e ao longo do
tempo vem passando por inúmeras transformações, desde a sua estrutura física a escolha dos
conteúdos. Segundo Bittencourt (2004), “Os materiais didáticos são mediadores do processo de
aquisição de conhecimento, bem como facilitadores da apreensão de conceitos [...].” (p.296).
Embora não seja a única fonte do ensino aprendizagem, desde o final da década de 1990, este
recurso didático que antes seria mediador do processo de conhecimento, vem se tornando um
objeto fundamental dentro da sala de aula, ou seja, o único recurso para determinadas ou parte
considerável de professores e alunos.
Segundo Gatti Júnior (2004), alguns professores acabaram se tornando dependentes
desses manuais devido a inúmeros fatores como: baixos salários, falta de condições adequadas
para estudar e preparar aulas, formação inicial deficiente, ausência de formação continuada,
sobrecarga de trabalhos, entre outros. Diante desse contexto, o material didático adquire uma
postura ímpar na cultura escolar, pois, tem se tornado e isso é um problema, aquele que possui o
conteúdo e a forma de organização dos assuntos para todo o ano letivo, isentando de certa forma,
o professor.
Por outro lado, não podemos deixar de ressaltar um ponto significativo, e em certa
medida positivo quanto aos manuais didáticos, é o fato de que, em muitos casos, estes são as
únicas fontes de leituras que os alunos da rede pública possuem em casa. Assim constatamos que
esses manuais se apresentam ou deveriam se apresentar como objetos ricos em informações,
pois, eles ocupam lugar de destaque no meio escolar, na sala de aula, na vida dos professores e
dos alunos, e se transformam desta forma, em uma interessante fonte de pesquisa, visto que
podem nos fornecer vestígios quanto ao "que foi” e o "que é” esse cotidiano escolar, como
ressalta Gatti Júnior (2004),
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Pode‐se afirmar que estes objetos da cultura escolar ‐ os livros didáticos ‐ são o resultado e, consequentemente, uma amostra dos processos culturais vivenciados na escola, lugar onde se entrecruzam aspectos da História da Cultura e da História da Pedagogia. (p. 29)
Desta maneira, entendendo o livro didático como artefato, ele torna‐se uma forma de
registro, na qual fornece variadas informações desde o processo da sua elaboração até o ato do
uso, visto que seu conteúdo pode provocar a construção de uma lógica histórica que leve a
reflexão e crítica, como também, cristalizar conceitos.
No entanto, embora atualmente este objeto desperte interesse dos pesquisadores, até a
década de 1970 era minimamente conhecido estudos sobre espaço para investigações tão
especificas do cotidiano escolar e, no Brasil mais precisamente, ainda são muito recentes os
esforços de se construir acervos de materiais escolares para esse tipo de investigação. Todavia,
podemos citar como um avanço quanto a essa área de pesquisa no Brasil, a implantação da
Biblioteca do Livro didático na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo1, em 1990
por Circe Bittencourt, que se apresenta como um passo substancial na construção de espaços de
pesquisa neste campo, uma vez que os pesquisadores em manuais didáticos tinham e/ou têm que
produzir seu próprio acervo para iniciar os estudos, e atualmente tem se despertado interesse de
estudiosos nesta área, como afirmar Bittencourt (2004),
A complexidade e o predomínio do uso do livro didático nas salas de aula tem despertado o interesse de muitos estudiosos, e esse material didático tem sido investigado sob diversos ângulos em diferentes países. (p. 303).
As investigações dos manuais didáticos podem assumir várias dinâmicas de pesquisa,
desde a análise qualitativa ou quantitativa à estrutura física, gráfica, textual, enfim, existem várias
formas de tratamento com essas fontes que podem oferecer ao olhar perspicaz do historiador,
informações sobre o cotidiano da educação brasileira, como também, apontar falhas, ausências e
lacunas que foram se cristalizando com tempo.
Partindo deste princípio, analisamos manuais didáticos como fonte de pesquisa,
objetivando refletir como a Lei 10.639/2003 está atuando nos livros didáticos de História. E, na
intenção de cumprir esse objetivo, apresentamos uma apreciação de dois manuais didáticos para
1 Site da Biblioteca: http://www4.fe.usp.br/biblioteca/acervos/biblioteca‐do‐livro‐didatico
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o Ensino Fundamental menor que trata‐se na realidade um mesmo material em edições
diferentes. A escolha destas fontes foi intencional, visto que a primeira edição é de 2001 e a
terceira edição de 2005, ou seja, dois anos antes e dois anos depois da institucionalização da
referida Lei que é o resultado de uma luta antiga de segmentos organizados no Brasil.
A Lei 10.639/2003 e as mudanças na Educação
A presença histórica dos negros africanos no Brasil vem desde o período correspondente
a Escravidão. Se propor a analisar a legislação educacional quanto às populações negras requer
entender essa reivindicação que deu origem a Lei 10.639/2003. Ou seja, após o final da
escravidão no Brasil no século XIX, os negros estavam libertos de um tipo de prisão física e
estrutural, mas, não livres das marcas deste sistema que os transformaram em “mercadorias”
durante séculos. Estes homens livres, pobres e sem nenhuma instrução para uma vida em
sociedade em plena efervescência social, política e econômica nas vésperas da chegada da
República, se viram diante de um estigma de inferior e sem perspectiva, então buscavam alguma
forma de se estabelecer socialmente e se libertar desta condição.
De acordo com Santos (2010), a educação formal passou a ser o caminho tão desejado de
conseguir ascensão. No entanto, em pouco tempo esses homens passaram a perceber que a
educação percorre também um víeis eurocêntrico, conseqüentemente, excludente ou
preconceituoso com relação a esta população. Diante disto, os movimentos negros, segmentos
organizados, passaram a reivindicar o estudo da história do continente africano e dos afro‐
descendentes desde 1950, segundo o autor citado
[...] ao perceberem a inferiorização dos negros, ou melhor, a produção e a reprodução da discriminação racial contra os negros e seus descendentes no sistema de ensino brasileiro, os movimentos sociais negros (bem como os intelectuais negros militantes) passaram a incluir em suas agendas de reivindicações junto ao Estado Brasileiro, no que tange à educação, o estudo da história do continente africano e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional brasileira. Parte desta reivindicação já constava na declaração final do I Congresso do Negro Brasileiro, que foi promovido pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro, entre 26 de agosto e 04 de setembro de 1950, portanto, há mais de meio século. (p. 23)
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A partir desta referência, percebemos que se passaram mais de meio século para que
esta reivindicação se tornasse efetiva. Com a Lei 10.639 implantada à educação brasileira no ano
de 2003, o estudo da História da África e dos afro‐descendentes se tornou uma realidade.
Entretanto, a educação se vê diante de um grande desafio de desmistificar e construir um novo
caminho de entendimento sobre o continente africano e seus povos que para o Brasil foram
trazidos, uma vez que segundo Wedderburn (2005), a imagem negativa que se perpetuou dos
afro‐brasileiros é decorrente da África ter sido o primeiro lugar onde seres humanos foram
submetidos a experiências de escravidão racial e trafico humano.
Hoje, apesar de ter se passado nove anos da implementação da Lei, percebemos que
atualmente esta "imagem negativa" ainda precisa ser superada, daí a necessária observância do
cumprimento da Lei e da busca pela desmistificação destes grupos étnicos, pois, apesar das
transformações na política editorial do país e as novas exigências do Programa Nacional do Livro
didático ‐ PNLD2, ainda existe preocupação com relação a mitos, lacunas e/ou ausência de
conteúdos, tais como a História da África.
O Brasil, desde 1929 tem se comprometido com a criação de institutos e leis que
viabilizem as políticas do livro didático, no propósito de apresentar uma melhor qualidade de
conteúdos, abordagens, materialidade, seleção e distribuição para a rede pública de ensino do
país. Entretanto, em suas páginas, o negro africano, o afro‐descendente, ainda permanece
atualmente minimamente abordado, mesmo com a Lei 10.639 de 20033 que torna obrigatório o
ensino sobre História da África, como afirma no Art. 26 ‐ A. "Nos estabelecimentos de Ensino
2 O Programa Nacional do Livro didático (PNLD) é o mais antigo dos programas voltados à distribuição de obras didáticas aos estudantes da rede pública de ensino brasileira e iniciou‐se, com outra denominação, em 1929. Ao longo desses 80 anos, o programa foi aperfeiçoado e teve diferentes nomes e formas de execução. Fonte: http://www.fnde.gov.br/index.php/pnld‐historico
3 Art. 1º A Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26‐A, 79‐A e 79‐B: _ Art. 26 – A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna‐se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro‐Brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo de História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro‐Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação Artística e de Literatura e História Brasileira.
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Fundamental e Médio, oficiais e particulares, torna‐se obrigatório o ensino sobre História e
Cultura Afro‐Brasileira". (LDB, Lei 10.639/2003).
Com a institucionalização desta Lei, as escolas e universidades tiveram de modificar os
seus programas de conteúdos, inserindo a História da África. O curso de graduação em História da
UFPB em João Pessoa inseriu em seu currículo a disciplina de "História da África" em um processo
lento. Primeiro foi ofertada como disciplina optativa sob o título de “Tópicos Especiais em História
Contemporânea (África)” a partir de 2002 e passou a ser disciplina obrigatória do Curso em 2010
com o título de “História da África Contemporânea”. Entretanto, com relação às escolas da rede
pública de ensino Chagas (2010) retrata a situação ao afirmar que "(...) os conteúdos pertinentes à
História da África e à História do negro ainda não se constituem uma realidade a toda rede pública
de ensino na Paraíba." (p.24‐25), ou seja, em nove anos de mudança na legislação, na escola de
Educação Básica de alguma forma persiste o 'desconhecimento' com relação a esses grupos
étnicos, e fruto deste, se mantém os estereótipos.
Análise dos Livros Didáticos
Na intenção de cumprir o objetivo de refletir como a legislação em questão está sendo
contemplada nos livros didáticos de História, nos propomos em fazer uma apreciação de dois
manuais didáticos utilizados na Rede Pública de Ensino em João Pessoa no Estado da Paraíba sob a
luz da Lei 10.639/2003. São dois livros de História referente as séries finais do Ensino
Fundamental4 da Coleção "História e Vida Integrada", ambos referentes à 5ª série, atualmente 6°
ano, de Nelson Piletti e Claudino Piletti. A primeira edição de 2001 e a segunda de 2005. Partimos
do princípio que queríamos observar a ação da Lei nestes manuais, ou seja, como a África foi
inserida na História através dos livros didáticos.
No primeiro momento, observamos que ambos os livros apresentam os sumários iguais e
o que os diferenciam é justamente o Capítulo 11 ‐ "A África Antiga". Percebemos que quanto à 4 De acordo com as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB n. 9.394/1996 – “Art. 32. O Ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando‐se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão.” Ou seja, as séries iniciais formam o Fundamental menor e as séries finais são o Fundamental maior.
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inserção das populações negras nestes manuais a Lei está sendo cumprida. Entretanto, outra
questão se impôs: Como está sendo retratada essa História da África? A partir desta indagação
fomos então observar o manual que inseriu o conteúdo.
Na apresentação do capítulo 11 ‐ “A África Antiga” que se inicia na página 97, nos
deparamos com uma imagem no fundo da página referente a uma fotografia da favela em Luanda
no ano 2000, conforme podem observar Fig. 01, que se refere à:
Os conflitos armados entre grupos étnicos rivais, a disputa pelos recursos minerais e uma devastadora epidemia de AIDS transformam a África no continente menos desenvolvido do planeta: metade da população africana vive abaixo da linha da pobreza. Foto de uma favela em Luanda, Angola, em 2000. (PILLETE, 2005, p. 97)
Como texto de abertura do capítulo apresenta uma explanação sobre o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), no qual retrata as péssimas condições de vida dos povos
Fig. 01: Favela de Luanda, Angola, 2000. Acervo: Acervo Pessoal
Fonte: Livro didático da Coleção História e Vida Integrada, 2005, p. 97
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africanos, nos proporcionando uma idéia homogênea de que a África é só pobreza, fome e
miséria, a propósito transcrevemos a mesma na íntegra:
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) foi criado pela ONU para identificar a qualidade de vida em diversos países do mundo. Para isso, mede ao mesmo tempo a renda per capita, a escolarização da população, o acesso à saúde, entre outros aspectos. No levantamento divulgado em 2005, foram analisados os dados de 117 nações do mundo. Os 24 países com pior IDH do mundo são da África. Níger, na África Ocidental, é a nação com o mais baixo índice do planeta (0,218); o máximo é 1,000), seguida por Serra Leoa (0,298), Burkina Fasso (0,317), Mali (0,333), Chade (0,341) e Guiné Bissau (0,348). O país africano mais bem colocado no ranking é Seychelles, ocupando a 51ª posição. Formado por diversas ilhas, o lugar tem como principal fonte de renda o turismo, além de ser considerado o paraíso fiscal. O segundo país africano mais bem colocado é a Líbia, na 58ª posição. As nações da África mais bem posicionadas depois da Líbia são: Mauricio (65°), Tunísia (89°), Argélia (103°) e Cabo Verde (105°), todas com IDH inferior ao do Brasil (0,777), que ocupa o 63° lugar. Esses resultados mostram as péssimas condições de vida do povo africano. Neste capítulo, vamos descobrir um pouco da história de alguns povos que ocupam hoje o continente mais pobre do mundo. (2005, p.97)
Podemos observar na imagem acima (Fig. 01), página de abertura do capítulo em
questão, uma impressão extremamente negativa sobre os povos africanos. Não havia necessidade
de uma palavra escrita para que pudéssemos entender que essa ilustração queria nos mostrar que
a África atualmente é sinônimo de pobreza.
A favela de Luanda, ao fundo, pode remeter o aluno à idéia de que o continente hoje é
um lugar onde só existe fome. Fornece uma impressão de uma comunidade pobre, sem estrutura
nenhuma e que ao final da linha do horizonte, existe apenas o vazio, sem nenhuma expectativa.
Compondo a mesma o relato acima descrito com informações que retratam uma situação
econômica difícil, mostrando, “o continente mais pobre do mundo”. Com essa página de abertura
o que podemos esperar que os alunos pensem sobre a África? Essa foi nossa decepção quanto ao
cumprimento da Lei neste manual.
Continuando nossa avaliação, observamos que o capítulo é dividido em quatro tópicos: As
diversas Áfricas, O Comércio transaariano, As religiões africanas e as Sociedades africanas, e
apresenta algumas imagens, mapas e boxes de acordo com cada assunto.
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No primeiro item – As diversas Áfricas – acreditávamos que os autores iriam discutir
sobre a diversidade do continente, seus povos e as inúmeras formas de vivências e dialetos, até
mesmo justificar a abertura, explicando a questão da desigualdade social no continente, porém,
dando continuidade ao conteúdo, discorre que existem estudos historiográficos sobre duas Áfricas
distintas, que neste caso, seria a África da região do Egito e a outra subsaariana.
Ao discutir sobre o Comércio transaariano, os autores frisam que: “Na África, a história da
humanidade é mais longa do que em qualquer outro continente.” (p. 98), como uma forma de
evitar dizer que a África é o berço da humanidade, como destaca Wedderburn (2005),
A mais marcante das singularidades africanas é o fato de seus povos autóctones terem sido os progenitores de todas as populações humanas do planeta, o que faz do continente africano o berço único da espécie humana. (p. 135).
Neste item, eles retratam as mudanças dos povos para outras regiões como a
Mesopotâmia e a Europa. Destacam alguns povos que se sedentarizaram e sobre o comércio
transaariano, contemplando uma boa parte do texto sobre a importância do camelo para esse
comércio.
Sobre as Religiões africanas, destacam o Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Citam que
na África ocidental como na meridional, outras religiões se desenvolveram e fazem um destaque
para um boxe com o título “Os iorubás e seus orixás”, no entanto, não discutem sobre religiões
africanas, apenas ressaltam a existência.
Quanto às Sociedades africanas eles começam o texto destacando o seguinte:
Na História da África antiga algumas sociedades acabaram se tornando mais conhecidas em virtude de sua longevidade ou importância política e econômica dentro do continente e também por suas relações com persas, gregos e romanos. (2005, pág. 100)
Discorrem sobre os Cartagineses como uma sociedade que desempenhou um importante
papel econômico, e sobre outros povos que floresceram em regiões como África oriental,
ocidental e central, tais como: o Império Kush (1700 a.C. – 300 d.C.) e sua relação com o Egito; a
sociedade de Axum (século I d.C. a X d.C.) destacam a origem dos povos, a expansão do Império e
o fato de que adotaram o Cristianismo como religião; e por fim, o Reino de Gana (300 d.C. – 1300
d.C.) em que destacam a origem dos seus povos e a organização do seu Império.
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Podemos perceber que os autores buscaram fazer um apanhado interessante sobre os
povos que desempenharam papel fundamental, como afirma Wedderburn (2005),
Uma das singularidades da África decorre, precisamente, do fato de esse continente ter sido o precursor mundial das sociedades agro‐sedentárias e dos primeiros Estados burocráticos, particularmente ao longo do rio Nilo (Egito, Kerma e Kush). Ao longo dos séculos, as riquezas desses Estados, assim como as riquezas do império de Axum, na parte oriental do continente, e do império de Cartago, situado na porção setentrional, aguçaram a cobiça de inúmeros povos vizinhos, desde o mediterrâneo europeu (gregos e romanos) e o Oriente Médio semita (hicsos, assírios, persas, turcos, arabes), até o sudeste asiático (indonésios). (p. 138).
Entretanto, percebemos falhas como a ausência de discussão sobre a cultura e o
cotidiano dos povos, até para que possamos entender sobre a sua influência cultural no Brasil.
Todavia, o livro didático “cumpre” a obrigatoriedade da Lei imposta no que se refere a inserir o
conteúdo, no entanto, existem limites quanto a ausências e à forma de como está sendo
representada à África.
Como qualquer outro continente, este não é composto apenas de beleza, de economia
em crescimento e de sociedades organizadas, ele compreende também problemas sociais,
econômicos e políticos. Possui uma diversidade de países, povos, dialetos, culturas, organizações
sociais, econômicas e políticas, que não seria possível apresentar num todo em apenas um
capítulo. Entretanto, consideramos como uma falha grave apresentar a favela e problemas sócio‐
econômicos do continente como porta de entrada do capítulo, como a representação da África
nos dias atuais.
Segundo Pesavento (2005), “A representação não é uma cópia do real, sua imagem
perfeita, espécie de reflexo, mas uma construção feita a partir dele”. (p. 40), ou seja, partindo de
problemas sócio‐econômicos os autores procuraram representar o continente, e desta forma,
como podemos esperar que os alunos possam entender a África como um continente rico em
singularidades, com riquezas e culturas? Como podemos esperar que os mitos de inferioridade
com relação aos africanos cheguem ao fim se seu local de origem é entendido desta maneira?
Estando em 2012, supondo que alunos do 6º ano estudaram com esse material em 2006, eles
possivelmente estão agora estudando o último ano do Ensino Médio, e como será, dependendo
deste material, que esses alunos vêem a África?
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As representações são também portadoras do simbólico, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos, que construídos social e historicamente, se internalizam no inconsciente coletivo e se apresentam como naturais, dispensando reflexão. (PESAVENTO, 2005, p. 41)
Ou seja, esses alunos podem ter uma imagem distorcida do continente, pois
independente do passado dos povos africanos ressaltado no capítulo, depois dessa apresentação
da África atualmente, a imagem da pobreza na favela de Luanda comunica uma situação que
dispensa o texto, o assunto e a história. Ela simboliza todo um contexto de inferioridade do
continente, intensificando uma construção arraigada de que na África só existem pobreza, miséria,
doenças, como se nada de importante viesse deste lugar, tal como exemplo, o Egito, que não é
concebido como um país africano, em que parece impossível a África ser berço de uma civilização
tão importante, como acentua Wedderburn (2005),
O Egito faraônico foi sumariamente “amputado” da África e colocado ora na esfera histórica do Mediterrâneo Europeu, ora na esfera histórica do Oriente Médio ou da África do Norte, até que um intrépido historiador contestasse veementemente tamanha impostura de caráter racista. (p. 139)
Observamos que apesar das reivindicações dos movimentos negros, da lei, dos debates,
dos fóruns de discussão e das produções acadêmicas, a África ainda foi representada de forma
distorcida neste livro didático. Neste sentido, fica a cargo do professor o papel de manter‐se
atualizado no que se refere às pesquisas históricas para que independente da maneira como é
exposto o conteúdo sobre a África, ele possa desenvolver um trabalho interessante em sala de
aula com esse manual, instigando a reflexão dos alunos sobre aquela imagem e sobre o porquê do
continente está sendo representado desta maneira. Neste sentido, ressaltamos a necessidade de
elaboração e investimento por parte dos órgãos públicos com programas que possibilitem a
atualização continuada desses professores, para que se possa suprir as deficiências como esta,
existentes na educação, visto que, em algumas situações a escola e os alunos só dispõem deste
material e seus professores o utilizam da forma em que está.
Após essa análise concluímos primeiramente que o livro didático é um importante
instrumento em sala de aula, como também uma fonte histórica essencial para pesquisas no
âmbito da História da Educação e da Cultura Escolar. Através deste podemos perceber que quanto
ao estudo da África na Educação Básica houve mudanças quanto às leis específicas precisamente a
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Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro‐brasileira, que vem
sendo cumprida a inserção, se constituindo em um passo significativo para uma educação
igualitária. Entretanto, ainda existe muito a reivindicar e avaliar quanto ao tipo de informação
publicada nestes manuais, se elas estão acrescentando com o conhecimento e desmistificação a
imagem negativa dos povos negros ou cristalizando estereótipos.
Para suprir essa necessidade de conteúdo sobre a História da África, percebemos que
vêm sendo publicados livros temáticos que possam servir de suporte para o professor. Entretanto,
frisamos que é preciso revisar e questionar sobre a forma como estão sendo abordadas as
questões étnicas referente ao afro‐brasileiro nos livros didáticos, visto que estes são destinados
diretamente ao aluno. Quanto ao mediador, ressaltamos que é preciso preparo para construir
conhecimento a partir de manuais didáticos que nem sempre contribuem para o crescimento.
Neste sentido, acreditamos que ainda é necessário ocorrer mudanças dentro da sala de aula,
principalmente, voltada para a desconstrução da imagem negativa do continente africano em sua
apresentação didática.
Referências
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
CHAGAS, Waldeci Ferreira. A temática da África e do(a) negro(a) na sala de aula. In: ROCHA, Solange Pereira da. e FONSECA, Ivonildes da Silva. (Orgs.) 1. População negra na Paraíba. Ed. Campina Grande: EDUFCG, 2010.p. 24‐40.
GATTI JÚNIOR, Décio. A escrita escolar da História: livro didático no Brasil (1970‐1990). Bauru, SP: Edusc, 2004.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
SANTOS, Sales Augusto do. A Lei n. 10.639̸2003 como fruto da luta anti‐racista do Movimento Negro. In.: MEC/BID/UNESCO. Educação anti‐racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03 /Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_ content&view=article&id=12814&Itemid=872 Acesso 26 Nov. 2010
WEDDERBURN, Carlos Moore. Novas Bases para o Ensino de História da África no Brasil. In.: MEC/BID/UNESCO. Educação Anti‐Racista: caminhos aberto pela Lei Federal n. 10.639/2003. Brasília: MEC/SECAD, 2005, p. 133‐166.
Livros didáticos/fonte: PILETTI, Nelson & Claudino. História e vida integrada. 5ͣ série. São Paulo: Ática, 2001.
PILETTI, Nelson & Claudino. História e vida integrada. 5ͣ série. São Paulo: Ática, 2005.
IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a 03/08/2012 – Anais Eletrônicos – ISBN 978-85-7745-551-5
3554
Sites:
Ministério da Educação e Cultura ‐ MEC
LDB ‐ Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf . Acesso 26 Nov. 2010.
Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm. Acesso 26 Nov. 2010