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n. 20, 137-158, jan./jun. 2019
ISSN-e: 2359-0092
DOI: 10.12957/revmar.2019.33280
REVISTAMARACANAN
Nota de Pesquisa
A atividade litúrgico-musical da ermida de Nossa Senhora
dos Remédios: Expressão de uma identidade nobiliárquica
da cidade de Angra nos séculos XVI e XVII
The Liturgical-Musical Activity of the hermitage of Nossa Senhora dos
Remédios: Expression of a nobility Identity in the city of Angra in the 16th
and 17th centuries
Luís Henriques*
Universidade Nova de Lisboa
Universidade de Évora
Recebido: 21 mar. 2018.
Aprovado: 2 jul. 2018.
* Doutorando em Musicologia na Universidade de Évora, onde se licenciou em Musicologia, é Mestre em Ciências Musicais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É
colaborador do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade de Évora, MPMP e
Atelier Acroarte, tendo sido bolseiro do projeto FCT “ORFEUS”. ([email protected]) ORCID iD: orcid.org/0000-0001-6533-1108.
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Resumo
A ermida de Nossa Senhora dos Remédios, localizada junto ao solar da família Canto, na cidade de Angra
(Ilha Terceira), foi construída por António Pires do Canto, um dos filhos do Provedor das Armadas Pero Anes do Canto, em meados do século XVI. Desde a sua fundação, esta ermida esteve ligada a uma das famílias mais influentes da ilha Terceira, sendo local de numerosos eventos de natureza litúrgico-musical. O presente estudo caracteriza a atividade musical da ermida a partir de uma perspectiva das relações estabelecidas com as outras instituições religiosas da cidade e a sua presença musical numa das casas mais nobres de Angra.
Palavras-chave: Cantochão. Música Sacra. Angra do Heroísmo. Paisagem Sonora. Nobreza.
Abstract
The hermitage of Nossa Senhora dos Remédios, located next to the palace of the Canto family in the city
of Angra (Terceira Island), was built by António Pires do Canto, one of the sons of the Provedor das Armadas Pero Anes do Canto, in mid-sixteenth century. Since its foundation, this hermitage was linked to one of the most influent families of Terceira Island, being place of numerous events of a liturgical-musical nature. This study characterizes the hermitage’s musical activity from a perspective of the relations established with the city’s other religious institutions and their musical presence in one of the Angra’s
most noble houses.
Keywords: Plainchant. Sacred music. Angra do Heroísmo. Soundscape. Nobility.
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Desde finais do século XV, com particular ênfase após a sua elevação a vila em 1474 e
cidade em 1534, que Angra, uma das duas capitanias donatarias da ilha Terceira, tornou-se
num dos principais centros populacionais do arquipélago dos Açores. Irá, ao mesmo tempo,
constituir um importante centro estratégico enquanto porto de escala nas rotas marítimas
atlânticas e ponto de escala na Carreira da Índia com a instalação da Provedoria das
Armadas.1 A ilha foi dividida em duas capitanias no ano de 1474 através das respetivas cartas,
correspondendo às então povoações da Praia e Angra, que foram enviadas aos seus primeiros
capitães donatários, Álvaro Martins Homem e João Vaz Corte Real.2 A constituição da Capitania
de Angra e consequente criação de uma nova área administrativa permitiu a vinda e instalação
um novo grupo de indivíduos, que mais tarde consolidaram a sua posição em termos da posse
de terras, na sua maioria, dadas em regime de sesmaria, processo este que contribuiu para a
fundação e expansão das casas mais nobres do arquipélago. Este grupo veio, por assim dizer,
juntar-se a um outro grupo já instalado na ilha, composto por alguns nobres flamengos
(nomeadamente Jácome de Bruges) e portugueses, que haviam encetado já várias tentativas
de estabelecer núcleos populacionais estáveis, que se pudessem desenvolver futuramente.3
Nas últimas duas décadas do século XV as terras da ilha Terceira são divididas entre estes
indivíduos provenientes de uma nobreza continental que vêm para a ilha não só com intenção
de a povoar, mas também com o intuito de explorar a terra e criar riqueza conferindo-lhes
este último recurso poder de afirmação social entre a nobreza local, assim como em termos
sociopolíticos.4
No caso da capitania de Angra, a família Corte Real estabeleceu-se como a classe
dominante da respetiva vila neste primeiro período de nova administração. Durante o tempo
de João Vaz enquanto capitão donatário iniciaram-se várias obras que incluíram o
encanamento da ribeira que atravessava a cidade (Ribeira dos Moinhos), o início da construção
do Castelo dos Moinhos, as muralhas e casa da Alfândega, instituiu a capela-mor do convento
de São Francisco e o hospital de Santo Espírito entre outras iniciativas.5 João Vaz morreu no
nano de 1496, sucedendo-lhe na capitania de Angra o seu filho Vasco Anes Corte Real. Uma
parte significativa da projeção do poder de João Vaz Corte Real surge na capela-mor da Igreja
de Nossa Senhora da Guia, do convento de São Francisco de Angra, que edificou e onde mais
tarde foi sepultado junto com sua mulher Maria de Abarca provendo a capela com dez mil reis
em dinheiro de contado para a celebração de ofícios pro defunctis por sua alma e dos
1 LEITE, Antonieta R. A Fundação de Angra da Ilha Terceira. Programas e Práticas Urbanísticas na Construção de um Porto Atlântico (Séc. XVI). História Revista, Goiânia, v. 21, n. 3, 9-28, 2016, p. 9-10. 2 MALDONADO, Manuel L. Fenix Angrence. Vol. I - Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1989, p. 89-91. 3 LEITE, José R. Os Flamengos na Colonização dos Açores. Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, v. LXIX-LXX, 57-74, 2012, p. 58-59. 4 GREGÓRIO, Rute D. Algumas Considerações sobre a Sociabilidade nas Ilhas: Pero Anes do Canto e os Corte Real (1510-1518). Arquipélago – História, v. VI, 33-51, 2002, p. 49. 5 DRUMOND, Francisco F. Annaes da Ilha Terceira. Tomo I - Angra do Heroísmo: Imprensa do Governo,
1850, p. 69.
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familiares.6 Desta forma, o seu nome ficou ligado a uma das mais importantes instituições
franciscanas do arquipélago que, a partir de 1642, irá tornar-se na sede da Província de São
João Evangelista dos Açores, tenda a casa desempenhado ainda um papel central no conflito
gerado após a Restauração, nomeadamente a tomada do castelo de S. Filipe em Angra.
A família Corte Real, sob a liderança de João Vaz e do filho Vasco Anes, representou
assim uma referência no que à presença nobre na ilha dizia respeito, nomeadamente no
governo da respetiva capitania. Em 1516 surgia um dos primeiros choques com os Canto, mais
concretamente, com Pero Anes tendo como ponto de discórdia as terras adquiridas, ou que o
viriam a ser, no Porto da Cruz nos Biscoitos.7 Nesta contenda entre Vasco Anes Corte Real e
Pero Anes do Canto sobressaem não só um conflito em termos da posse da terra, mas também
questões decorrentes dos direitos senhoriais de cada um deles.8 Embora, aparente existir um
afastamento entre o membro da família Corte Real e Pero Anes, estavam de fato estes dois
indivíduos muito próximos em termos familiares, uma vez que Pero Anes havia casado em
1510 com Joana de Abarca, prima de Vasco Anes Corte Real. Este casamento é entendido
como uma forma do primeiro estabelecer alianças e integrar-se num grupo de famílias
proeminentes de Angra, reforçando assim a sua posição na nobreza local, em particular,
naquela residente em Angra. Ao mesmo tempo Joana de Abarca trouxe como dote terras na
ilha de São Jorge) e em vários locais da ilha Terceira aumentando o já considerável património
de Pero Anes do Canto.9
Pero Anes do Canto surge como um dos membros do segundo grupo de nobreza a
chegar às ilhas. Este cavaleiro-fidalgo da casa régia (como aparece designado a partir de
1510) era natural da cidade de Guimarães onde terá nascido por volta do ano de 1472 filho de
João Anes do Canto, mercador de ofício, o que o colocava num estrato social inferior à restante
nobreza.10 Chegou à ilha Terceira no final do século XV, acompanhando o seu parente Vasco
Afonso, vigário de Machico (Madeira) na visita que este clérigo fez às ilhas dos Açores. Em
1509, estando já estabelecido na ilha Terceira, envolveu-se em várias campanhas militares no
Norte de África, que incluíram o levantamento do cerco pelo Rei de Fez à praça de Arzila e o
ataque aos portos vizinhos.11 Por volta de 1527 foi nomeado para o cargo de primeiro Provedor
das Armadas e naus da Índia e fortificações da ilha Terceira. A formação da sua casa – uma
das mais importantes dos Açores – assentou na compra sistemática de terras. Morreu em
Angra a 18 de agosto de 1556, datando o seu testamento de 4 de maio de 1543.12
Como refere Rute Dias Gregório no seu estudo sobre o patrocínio religioso de Pero Anes
do Canto, para além dos investimentos na subsistência e manutenção das respetivas casas, o
6 CHAGAS, Fr. Diogo das. Espelho Cristalino em Jardim de Varias Flores. Angra do Heroísmo: Secretaria Regional de Educação e Cultura; Direção Regional dos Assuntos Sociais, 1989, p. 283. 7 GREGÓRIO, Rute D. Algumas Considerações sobre… Op. cit., p. 34. 8 Ibidem, p. 41. 9 GREGÓRIO, Rute D. Configurações do Patrocínio Religioso de um Ilustre Açoriano do Século XVI: o 1.º Provedor das Armadas, Pero Anes do Canto. Arquipélago – História, v. III, 29-44, 1999, p. 45. 10 Ibidem, p. 31. 11 FORJAZ, Jorge P. O Solar de Nossa Senhora dos Remédios. Boletim do Instituto Histórico da Ilha
Terceira, v. XXXVI, 5-210, 1978, 154. 12 Ibidem, p. 12.
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patrocínio religioso ocupava uma quantidade considerável dos gastos dos vários contextos de
ostentação da nobreza.13 Ao mesmo tempo, o patrocínio religioso, nas suas mais variadas
vertentes, encerrava também uma função mística e profundamente devocional assegurando o
alívio da alma do padroeiro após a sua morte. É neste tipo de iniciativas que se inclui a ermida
de Nossa Senhora dos Remédios, anexa ao solar com a mesma denominação construído pela
família Canto no local denominado Corpo Santo, local de romaria popular, ocupando um lugar
de importância, não só por estar anexa à residência dos Canto, mas ainda pelo misticismo
milagroso da imagem que ocupava o altar principal do templo.
Localizada nas imediações da igreja (ou na altura ainda ermida) de Nossa Senhora da
Conceição, que mais tarde irá ser formada em paróquia, a construção da ermida de Nossa
Senhora dos Remédios representa a afirmação do poder da família Canto na esfera religiosa de
Angra, complementado com a construção de outras ermidas nas suas propriedades da costa
norte da ilha, nomeadamente a ermida de Nossa Senhora da Nazaré e a capela de São Pedro
(que mais tarde se transformará em igreja paroquial) também nos Biscoitos, assim como a
capela que também construiu na Catedral de Angra.14 Este templo integra o palácio ou solar
construído pelo primeiro Provedor das Armadas e sucessivamente aumentado em várias
campanhas de obras no final dos séculos XVI e XVII às quais não ficou alheia a componente
religiosa, criando-se aí uma nova paisagem sonora, numa zona ainda relativamente
despovoada da cidade.
No referente ao perímetro urbano onde foi construída a ermida de Nossa Senhora dos
Remédios, é importante entender a sua paisagem sonora envolvente, no que à prática musical
sacra diz respeito, que teve como núcleo central a igreja de Nossa Senhora da Conceição,
localizada numa das zonas populacionais mais antigas de Angra.15 A evolução da igreja desde
ermida a igreja paroquial com colegiada (a segunda de Angra, a seguir a São Salvador que
será catedral a partir de 1534) terá ocorrido nas primeiras décadas do século XVI, uma vez
que era já igreja paroquial em meados do século XVI.16 A igreja foi reconstruída no final do
século XVI estando as obras ainda em curso por altura da passagem por Angra de D. António,
Prior do Crato, que a visitou e fez doação de quinhentos cruzados para a continuação da
respetiva obra.17 A igreja possuía uma colegiada composta por vigário, cura, tesoureiro e oito
beneficiados que asseguravam o canto dos ofícios diários na capela-mor, sendo os primeiros
vigários nela conhecidos Manuel Gonçalves de Antona, de 1574 a 1581 e Diogo de Fontes
13 GREGÓRIO, Rute D. Configurações do Patrocínio… Op. cit., p. 31-32. 14 FRUTUOSO, Gaspar. Saudades da Terra. Livro VI. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1998, p. 37. Este cronista identifica a ermida de Nossa Senhora da Nazaré com a invocação de Nossa Senhora de Loureto. 15 LEITE, Antonieta R. A Fundação de Angra… Op. cit., p. 14. 16 DRUMOND. Francisco F. Apontamentos Topográficos, Políticos, Civis e Ecclesiasticos para a História das nove Ilhas dos Açores servindo de suplemento aos Anais da Ilha Terceira. Angra do Heroísmo: Instituto
Histórico da Ilha Terceira, 1990, p. 216. 17 FRUTUOSO. Saudades da Terra… Op. cit., p. 69.
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Maciel, de 1583 a 1597.18 Para além destes ministros eclesiásticos, possuía ainda um organista
que, embora não se conhecendo nenhum nome associado ao cargo, seria provavelmente um
músico leigo.19 Esta composição de ministros eclesiásticos com obrigação de coro significava
que diariamente eram ali cantados todos os ofícios das Horas Canónicas pela colegiada tendo o
cantochão como repertório de base. A solenização litúrgico-musical como nas catedrais
estendia-se também à celebração das missas do calendário litúrgico que, dependendo da
hierarquia da festividade, teriam maior ou menor participação musical. Desta forma, a Igreja
de Nossa Senhora da Conceição surge no século XVI como o elemento central da paisagem
sonora circundante, primazia essa resultante do seu estatuto de sede paroquial, com uma
dinâmica própria. Integrava ainda a paróquia da Conceição duas casas monástico-conventuais.
A primeira destas casas era o convento de São Francisco, importante e antiga instituição
franciscana no arquipélago, junto a um cruzeiro, onde também se localizava a ermida de Santo
Cristo do cruzeiro, edificada em 1739.20 Entre esta ermida e a igreja de Nossa Senhora da
Conceição localizava-se a ermida de São Sebastião, construída após voto municipal após a
peste de 1599. Esta ermida foi integrada no convento de São Sebastião, de freiras capuchas,
aí construído entre 1661 e 1669.21 Para o lado do Corpo Santo surge uma ermida dos
mareantes, construção antiga que remonta ao princípio da ocupação de Angra, numa zona
relativamente despovoada da cidade,22 tendo a meio caminho entre esta e a paroquial a
ermida de Nossa Senhora dos Remédios, tal como representado por Jan Huygen van
Linschoten no final do século XVI. Desta forma, existia em diversos períodos históricos na zona
em torno da igreja paroquial um complexo de ermidas desde o convento de São Francisco (que
só em meados do século XVII se construiu o atual edifício de traça monumental) e ermida de
Nossa Senhora da Guia, de Santo Cristo do cruzeiro, de São Sebastião, de Nossa Senhora dos
Remédios e de Nossa Senhora da Boa Viagem dos mareantes. De todas elas, conhece-se a
família Corte Real como padroeira de Nossa Senhora da Guia, o Senado da Câmara de São
Sebastião e a família Canto na de Nossa Senhora dos Remédios.
18 ANDRADE, Jerónimo E. d’. Topographia ou Descripção physica, politica, civil, ecclesiastica, e historica da Ilha Terceira dos Açores. Parte Primeira anotada pelo Vigario José Alves da Silva. Angra do Heroísmo: Livraria Religiosa – Editora, 1891, p. 133-134. 19 DRUMOND, Francisco F. Apontamentos Topográficos…, Op. cit., p. 216. 20 LUCAS, Alfredo. As Ermidas da Ilha Terceira. Angra do Heroísmo: Edição do Autor, 1976, p. 38. 21 Ibidem, p. 34. 22 Ibidem, p. 27-28.
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Figura 1 - Pormenor da carta de Angra publicada
Fonte: Itnerario. Voyage ofte schipvaert van Jan Huygen van Linschoten naer Oost ofte Portugaels
Indien, 1579-1592. [s.n.t.]. Disponível em:
https://archive.org/details/itinerariovoyage05linsuoft/page/n5
A edificação da ermida de Nossa Senhora dos Remédios deveu-se ao filho de Pero Anes,
António Pires do Canto junto a umas casas que o primeiro possuía na zona do Corpo Santo em
Angra. António Pires do Canto sucedeu a Pero Anes do Canto enquanto Provedor das Armadas
e Naus da Índia na ilha Terceira. Nasceu em Angra a 11 de junho de 1511 e morreu na mesma
cidade em 1572 ou 1574.23 Feito moço-fidalgo da Casa Real, combateu em Tânger onde foi
armado cavaleiro e, posteriormente, recebeu várias comendas sendo também feito cavaleiro
da Ordem de Cristo.24 Com a morte do pai em 1556, António Pires do Canto herdou uma
propriedade sita no Corpo Santo, um dos três morgadios instituídos por Pero Anes do Canto e
distribuídos pelos três filhos. No testamento de Pero Anes não surge mencionada a existência
de quaisquer casas (o atual solar) assim como da ermida. Porém, no testamento de António
Pires do Canto a ermida com a invocação de Nossa Senhora dos Remédios aparece já
mencionada. Com base nestes documentos, foram primeiramente apontados os anos entre
1556, data da morte de Pero Anes, e 1572, ano em que morre António Pires, como o período
durante o qual terá ocorrido a construção deste templo.25 Porém, estudos recentes
23 FORJAZ, Jorge P. O Solar de Nossa… Op. cit., p. 11. 24 Ibidem, p. 161-162. 25 Ibidem, p. 12.
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demonstraram que a ermida estava acabada em 1540. De acordo com o testamento de
António Pires, no qual afirma que havia feito a ermida “em uida de meu pai e ele me alarguou
a terra que tomei pera adro e igreya”, foi o solo concedido pelo pai Pero Anes ainda em vida,
precedendo assim a instituição dos três morgadios. A edificação da ermida importou em
duzentos e setenta mil reais, aplicados na “Igreya he ornamentos he bullas”.26 Aqui, os
ornamentos poderão ser entendidos como os paramentos para o capelão e as alfaias
necessárias ao culto religioso. Porém, não será de excluir também a aquisição de vários livros
litúrgico, nomeadamente de um missal, peça essencial à celebração da missa.
Figura 2 – Aspeto atual da fachada da ermida de Nossa Senhora dos Remédios.
Fonte: Foto do Autor. Arquivo Particular, 2014.
A primeira missa foi celebrada na ermida de Nossa Senhora dos Remédios a 25 de
março de 1540. Em 20 de março do ano seguinte foram trasladados os restos mortais de
Joana de Abarca, mãe de António Pires, que havia falecido a 6 de novembro de 1511. Vindos
da capela-mor do convento de São Francisco, ficaram depositados provisoriamente na ermida,
26 GREGÓRIO, Rute D. Configurações do Patrocínio… Op. cit., p. 32.
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numa “coua metida em hua caixa de sedro”, uma vez que o filho pretendia sepultá-los numa
capela que tencionava construir na Catedral. 27 A edificação da capela na Catedral significava a
necessidade de um lugar condigno que prestigiasse a posição social da família, uma vez que a
família Corte Real tinha a capela-mor da Igreja de Nossa Senhora da Guia, no convento
franciscano, também este local de prestígio.28 Os restos mortais de Joana de Abarca, da família
Corte Real, haviam sido retirados da capela-mor do convento franciscano para integrar o novo
jazigo dos Canto que se iria estabelecer na Catedral, ação esta que parece apontar para uma
demonstração de demarcação desta família nobre das demais de Angra, nomeadamente com a
Corte Real, com quem se tinham gerado conflitos anteriormente.
Embora a referência à celebração da primeira missa na ermida não seja muito
detalhada quanto a pormenores litúrgico-musicais, o cerimonial romano para a dedicação e
bênção de uma igreja teria obrigatoriamente que ser aplicado neste caso. Prescrevia o
Graduale Romanum para a missa da cerimónia o introitus Terribilis est locus iste, graduale
Locus iste, offertorium Domine Deus e o communio Domus mea domus orationis.29 Este terá
sido, pois, um evento marcante na existência da ermida constituindo o serviço litúrgico-
musical a solenização da sua dedicação. Apesar de se tratar de uma ermida, a cerimónia de
bênção teria sido presidida por uma das mais altas entidades eclesiásticas da cidade, neste
caso o vigário capitular ou vigário geral do bispado, uma vez que Angra era já sede de bispado
em 1540. A ligação das altas figuras da esfera eclesiástica da cidade às cerimónias de bênção
de ermidas é aparente como o ilustram o caso da ermida de São Roque, mais tarde
incorporada no convento de Santo António de religiosos capuchos, cuja bênção foi realizada
pelo Bispo de Angra.30 Um outro caso aponta para a ermida de Nossa Senhora das Neves
construída por António Pires do Canto, onde se instalaram os primeiros padres jesuítas que
chegaram à ilha em 1570. No caso da bênção da ermida de Nossa Senhora dos Remédios, esta
foi realizada em período de sede vacante, uma vez que o primeiro Bispo de Angra, D.
Agostinho Ribeiro, havia abandonado o governo da diocese em 1538 para ocupar o cargo de
Reitor da Universidade de Coimbra, e o seu sucessor, D. Rodrigo Pinheiro (que nunca veio às
ilhas) foi nomeado apenas a 24 de setembro desse ano.31
Um outro pormenor importante do ponto de vista litúrgico-musical no serviço de Nossa
Senhora dos Remédios foi a trasladação dos restos mortais de Joana de Abarca para esta
ermida a 20 de março de 1541. Para além da mãe, houve ainda o sepultamento na ermida de
quatro crianças de António Pires do Canto. A sucessão de sepultamentos na ermida terá
funcionado em regime provisório até estar finalizada a capela que estava em construção na
Catedral, uma vez que a ermida não tinha sido concebida para jazigo da família Canto. Pero
27 GREGÓRIO, Rute D. Configurações do Patrocínio… Op. cit., p. 33. 28 Idem. 29 Graduale Romanum ex decreto Sacrossanti Concilii Tridentini. Antuérpia: Ex Architypographia Plantiniana, 1774, p. LV-LIX. 30 LUCAS, Alfredo. As Ermidas da Ilha... Op. cit., p. 48. 31 MONTE ALVERNE, Fr. Agostinho de. Crónicas da Província de S. João Evangelista das Ilhas dos Açores.
Vol. III. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1962, p. 19.
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Anes havia deixado instruções para ser sepultado na ermida da sua propriedade no Porto da
Cruz ou na capela da Catedral.32 Todavia, dada a sua condição de nobre pertencente às duas
famílias mais poderosas de Angra, a trasladação das ossadas de Joana de Abarca para Nossa
Senhora dos Remédios terá incluído um cerimonial litúrgico-musical correspondente à sua
condição. Este incluía a celebração de um ofício pro defunctis que embora cantado em
cantochão constituía a forma de solenizar o momento e o reconhecimento da importância de
quem se destinava. O mesmo terá ocorrido com os quatro sepultamentos que, sendo
realizados na própria ermida incluíam obrigatoriamente a celebração deste ofício litúrgico-
musical que, para além da missa, compunha-se de vários momentos sendo o mais importante
aquele em que o corpo descia à sepultura, cantando-se posteriormente o responsório Libera
me, Domine.
Não se conseguiu encontrar referência relativamente aos custos da manutenção dos
serviços litúrgico-musicais na ermida de Nossa Senhora dos Remédios, nem quais os ministros
eclesiásticos que a serviram. Porém, no caso da manutenção do culto religioso, o patrocínio
religioso de Pero Anes do Canto relativamente à ermida de Nossa Senhora da Nazaré no Porto
da Cruz (Biscoitos), poderá indicar que o filho, António Pires do Canto, tenha adotado um
patrocínio semelhante para a ermida de Nossa Senhora dos Remédios que, como se viu
anteriormente, ainda foi construída e dedicada em vida do pai. A construção desta ermida
havia custado a Pero Anes mais de quinhentos mil reais tendo sido erigida com licença do rei e
do bispo das ilhas.33 A título comparativo, a ermida de Nossa Senhora dos Remédios, como
anteriormente referido, havia custado duzentos e setenta mil reais (quase metade) o que
sugere ter sido a sua dimensão primitiva bastante menor que a do Porto da Cruz, sendo
considerada esta última “mui ornada e fresca, a melhor que houve na Ilha”.34 A ermida de
Nossa Senhora da Nazaré foi dotada de uma provisão de dezasseis mil reais, divididos em duas
partes, doze mil para sustento do capelão e quatro mil para provimento da fábrica da ermida.
Em 1553 determinou que se aplicassem cem mil reais no campanário e na compra de
ornamentos. Ainda em 1555 ordenou que todo o gado com que estava dotada a ermida fosse
vendido para a aquisição de uma cruz de prata, que importava em dez marcos.35 Para além de
todos estes investimentos na reparação e dotação do templo, ficou ainda determinado que aí
seriam instituídas várias missas por sua alma, e pelos fregueses da ermida, que deveriam ser
celebradas aos domingos e dias festivos do calendário litúrgico. Ficou ainda instituído um
segundo grupo de missas por alma de sua primeira mulher, Joana de Abarca, de seu irmão
Francisco do Canto, de seus pais e ele próprio a serem celebradas nos dias de feria.36 No caso
concreto da ermida dos Biscoitos, esta desempenhava um papel mais complexo que a de
Angra. Isto é sugerido pela determinação de se erguer uma nova ermida maior (a futura igreja
de São Pedro) em 1554 transferindo-se para este templo algumas das festividades do
32 GREGÓRIO, Rute D. Configurações do Patrocínio… Op. cit., p. 33-34. 33 Ibidem, p. 34. 34 FRUTUOSO. Saudades da Terra… Op. cit., p. 37. 35 GREGÓRIO, Rute D. Configurações do Patrocínio… Op. cit., p. 35. 36 Idem.
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calendário litúrgico por ficar mais perto das casas dos fregueses.37 No caso da ermida de
Angra, tal não se justificava uma vez que a igreja paroquial de Nossa Senhora da Conceição e
o seu grupo de clérigos asseguravam o culto religioso naquela zona da cidade. A ermida, mais
que local de celebração litúrgica dominical, parece ter assumido mais o papel de santuário de
romaria da população local o que, em termos de análise da paisagem sonora, lhe confere uma
maior dinâmica que, por exemplo, a igreja paroquial no que diz respeito à regularidade e
projeção dos ofícios aí celebrados.
O complexo do solar e, muito provavelmente, também a ermida anexa sofreram
profundas obras de ampliação no final do século XVI, durante o período de Manuel do Canto de
Castro, que morreu em 1625. São apontados os anos de 1599, ano em que é empossado no
cargo de Provedor das Armadas, e 1625, ano da sua morte, como o período em que terão
decorrido estas obras.38 No final deste período está também presente João do Canto de Castro,
batizado na igreja de Nossa Senhora da Conceição a 21 de outubro de 1607. Morreu na
freguesia da Sé a 30 de outubro de 1665 sendo-lhe dada sepultura na igreja da Misericórdia.39
Foi um dos principais intervenientes nas causas da Restauração estando envolvido no cerco ao
castelo de São Filipe em 1641.40 As obras realizadas na ermida não terão sido muito
profundas, uma vez que o templo manteve grande parte da sua configuração inicial,
consistindo as mesmas em adições à decoração do seu interior, como intervenção em algum
dos retábulos ou ao nível do mobiliário.
Sucedeu a João do Canto de Castro o quarto filho, Sebastião Carlos do Canto de Castro
Pacheco. Este havia nascido em 1651, só tendo tomado posse do lugar de Provedor das
Armadas em 1673.41 Porém, o terceiro irmão Manuel do Canto de Castro, que havia tomado
hábito franciscano no convento angrense com o nome de Fr. Manuel de S. Carlos obteve em
Lisboa breve pontifício que lhe anulou a profissão permitindo-lhe assim reclamar a herança. A
disputa entre os dois irmãos arrastou-se até 1681, data da morte de Sebastião Carlos.42 O
Padre António Cordeiro refere que a ermida havia sido “nobremente reedificada e ornada”.43
Com base nesta referência, o historiador Pedro de Merelim afirma que a reedificação havia
ocorrido no ano de 1700 sob a égide de Manuel do Canto de Castro sem, contudo, fornecer
qualquer referência documental para a data apontada.44 Todavia, é tido como certo que a
ermida terá sofrido obras durante o período de Manuel do Canto de Castro enquanto senhor do
37 GREGÓRIO, Rute D. Configurações do Patrocínio… Op. cit., p. 36. 38 FORJAZ, Jorge P. O Solar de Nossa… Op. cit., p. 15. 39 Ibidem, p. 16. 40 DRUMMOND, Francisco F. Annaes da Ilha Terceira. Tomo II. Angra do Heroísmo: Typ. de M. J. P. Leal, 1856, p. 17. 41 FORJAZ, Jorge P. O Solar de Nossa… Op. cit., p. 19. 42 Ibidem, p. 19-20. 43 CORDEIRO, P. Antônio. Historia Insulana das ilhas a Portugal sugeytas no Oceano Occidental. Lisboa: Na Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1717, p. 273. 44 MERELIM, Pedro. As 18 paróquias de Angra: Sumário Histórico. Angra do Heroísmo: Câmara Municipal
de Angra, 1974, p. 98.
A atividade litúrgico-musical da ermida de Nossa Senhora dos Remédios: Expressão de uma identidade nobiliárquica da cidade de Angra nos séculos XVI e XVII
148 Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n. 20, p. 137-158, jan./jun. 2019.
solar dos Remédios. Com base no que afirma Cordeiro, apontam-se as datas entre 1681 e
1698 como período durante o qual terão decorrido as ditas obras.45
Em termos das suas caraterísticas arquitetónicas, este é um templo bastante mais
amplo do que as ermidas associadas a casas nobres de construção quinhentista. Estas são, em
geral, de pequenas dimensões e baixas com um altar, púlpito e um coro-alto minúsculo. No
caso da ermida de Nossa Senhora dos Remédios, as suas proporções destacam-se entre os
restantes templos desta tipologia existentes na cidade, nomeadamente o respeitante à sua
altura, assim como à existência de dois altares laterais, para além do altar-mor, púlpito e coro-
alto.46 A sua configuração atual, certamente, difere da primitiva dadas as várias campanhas de
obras que sofreu no final do século XVI e, em particular no XVII, que lhe terão aumentado a
volumetria.
Ao descrever Angra no final do século XVI, Gaspar Frutuoso refere que a cidade possuía
mais de cinquenta confrarias nas igrejas paroquiais, mosteiros e ermidas. Estas subsistiam
com seis missas semanais sustentadas com esmolas do povo, para além de outras que
também eram mandadas celebrar nelas por gentes de fora da cidade sem, contudo, especificar
se haveria alguma destas confrarias associadas à ermida de Nossa Senhora dos Remédios.47
Todavia, no testamento de João Fernandes Correia, datado de 21 de outubro de 1552, surge
uma referência que aponta para que tenha havido uma confraria instalada na ermida de Nossa
Senhora dos Remédios. No documento, João Fernandes determinava que o enterrassem na
capela de Santo Espírito (certamente a capela do Hospital da Misericórdia), fazendo-lhe o ofício
de enterramento e o de aniversário. Deixava ainda vários legados perpétuos a várias
confrarias da cidade e seu termo, nomeadamente a de Nossa Senhora dos Remédios, de São
Francisco e uma da “igreja de António Pires do Canto”. Por esta última confraria assume-se
que a confraria existente na igreja de António Pires do Canto se tratasse de uma corporação
instalada na ermida de Nossa Senhora dos Remédios.48
Uma das funções principais funções litúrgico-musicais das ermidas anexas ou fundadas
pelas casas nobres era a celebração de sufrágios e legados pios (missas e/ou ofícios pro
defunctis e outras celebrações particulares do calendário litúrgico) instituídos pelos seus
sucessivos senhores de forma a assegurar o descanso da sua alma. O presente estudo
incorpora as referências a este tipo de legados nos séculos XVI e XVII, período de maior
ocorrência quando comparado com os séculos seguintes. Desta forma não é de admirar que já
Pero Anes do Canto tenha instituído legados no seu testamento, com atualizações em 1547,
1549 e 1553 respetivamente.49 Nele ficou primeiramente determinado que cedia ao irmão
António do Canto as suas legítimas paterna e materna, obrigando-o a instituir uma capela de
missas (sem especificar se seriam rezadas ou cantadas) na cidade de Guimarães por alma dos
45 FORJAZ, Jorge P. O Solar de Nossa… Op. cit., p. 22. 46 Ibidem, p. 21-22. 47 FRUTUOSO. Saudades da Terra… Op. cit., p. 14. 48 GREGÓRIO, Rute D. Terra e Fortuna nos Primórdios da Ilha Terceira (1450-1550). 2005. Tese
(Doutorado em História) - Universidade dos Açores, Ponta Delgada, p. 762-763. 49 FORJAZ, Jorge P. O Solar de Nossa… Op. cit., p. 155.
A atividade litúrgico-musical da ermida de Nossa Senhora dos Remédios: Expressão de uma identidade nobiliárquica da cidade de Angra nos séculos XVI e XVII
149 Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n. 20, p. 137-158, jan./jun. 2019.
pais ficando administradores da dita capela os descendentes de António do Canto.50 Pero Anes
foi sepultado, segundo determinação testamental, na capela de São Pedro da Catedral (ainda
no primitivo edifício) caso viesse a morrer em Angra e, no caso de morrer no Porto da Cruz,
seria primeiramente sepultado na ermida de Nossa Senhora da Nazaré sendo os seus restos
mortais posteriormente transferidos para a capela da Catedral. Porém, tendo morrido em
Angra ficou o seu corpo depositado na ermida de Nossa Senhora dos Remédios até estar
concluída a construção da dita capela na Catedral, à qual se juntou o início da construção da
nova igreja Catedral a partir da década de setenta do século XVI.
Ao tempo de Pero Anes do Canto, como se viu anteriormente, foram instituídas missas
quotidianas na ermida de Nossa Senhora da Nazaré dos Biscoitos. Esta era uma das rotinas
diárias dos clérigos, tanto nas igrejas paroquiais como nas conventuais, realidade à qual certas
ermidas também não eram alheias. No caso das ermidas dos Canto, a atenção terá recaído na
de Nossa Senhora da Nazaré, assim como na capela do Bom Jesus construída na Catedral e
que servia de jazigo aos membros da família. Para esta última havia deixado Pero Anes treze
mil reais, dez mil para o capelão e três mil para a fábrica da capela. Aí foram instituídas missas
diárias por alma da segunda mulher, Violante Galvão da Silva, e por memória de D. Diogo
Pinheiro, vigário de Tomar.51 Neste contexto, a ermida de Nossa Senhora dos Remédios parece
ter ocupado um lugar terciário no que a instituição de missas de aniversário diz respeito.
Encontra-se ainda referência direta à instituição de missas na ermida de Nossa Senhora
dos Remédios no final do século XVII. Trata-se do testamento feito pelo Dr. Roberto Rey de
Sá, morador na Rua do Rego da cidade, em 6 de março de 1690. Roberto Rey de Sá morreu a
16 de outubro de 1700, instituindo um morgado que consistia na celebração de uma missa no
altar-menor todos os sábados do ano. Esta missa seria em “louvor da mesma senhora, e
virgem maria, alias da piedade, com esmola de hum tostão.52 O dia em que estava destinada e
o próprio, que ficou claramente estipulado, sugerem que se tratasse de um serviço litúrgico-
musical vespertino, possivelmente enquadrado no serviço da Salve ou do canto do terço, que
teria como próprio a missa comum para as festas da Virgem Maria. Todavia, não só da
celebração de missas de sufrágio se compunha o calendário litúrgico-musical da ermida de
Nossa Senhora dos Remédios, que verá uma intensa atividade documentada no final do século
XVI e, sobretudo, ao longo de todo o século XVII.
Primeiramente, uma das festividades que ocupava lugar central no calendário litúrgico
da ermida de Nossa Senhora dos Remédios era a festa litúrgica da sua invocação. No volume
dedicado ao arquipélago dos Açores do Santuario Mariano, não surge identificada a data desta
festa, sendo a ermida descrita como local de grande romaria da população de Angra em
resultado dos muitos milagres operados e da muita devoção.53 Porém, esta festa seria muito
provavelmente celebrada nos dias 9 ou 11 de outubro, uma vez que ainda nas primeiras
50 FORJAZ, Jorge P. O Solar de Nossa… Op. cit., p. 155. 51 GREGÓRIO, Rute D. Configurações do Patrocínio… Op. cit., p. 40-41. 52 FORJAZ, Jorge P. O Solar de Nossa... Op. cit., p. 21-22. 53 S. MARIA, Fr. Agostinho de. Santuario Mariano, e Historia das Imagens milagrosas de Nossa Senhora. Tomo X. Lisboa: Na Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1723, p. 360.
A atividade litúrgico-musical da ermida de Nossa Senhora dos Remédios: Expressão de uma identidade nobiliárquica da cidade de Angra nos séculos XVI e XVII
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décadas do século XIX surge atribuída a ambos os dias no calendário terceirense.54
Desconhece-se o calendário de cerimónias mas certamente que este incluía um novenário
antecedendo o dia da festa onde a música constituía um elemento central, mais
concretamente, no que diz respeito à prática de cantochão do terço, ladainhas, hinos e
jaculatórias. Dada a dimensão do templo dificilmente seriam cantados os ofícios diários para
além daqueles destinados ao dia da festividade, que seguia o comum para as festas marianas.
O mesmo ocorreria com o próprio da missa da festividade. Aqui, não será de excluir a
participação da colegiada de Nossa Senhora da Conceição na celebração litúrgico-musical desta
festa. Esta corporação eclesiástica, localizada no centro da freguesia onde a ermida estava
implantada, possuía a capacidade e número de cantores para assegurar o canto das Horas
Canónicas assim como a missa assegurando assim a solenidade máxima na respetiva
comemoração. A festa do orago da ermida constituía o elemento central na projeção social da
família Canto através da proteção de uma devoção popular que, pelas referências, se estendia
a toda a ilha Terceira. Os membros da família assistiam aos vários ofícios a partir de uma
tribuna, localizada do lado da Epístola, que conduzia ao solar.
No respeitante a devoções marianas encontra-se ainda no corpo da igreja, do lado do
Evangelho, um altar dedicado a Nossa Senhora do Rosário, possivelmente um dos motivos por
na ermida se cantar o terço diariamente.55 A festa seria certamente realizada no dia 7 de
outubro, o dia respetivo a ela destinada no calendário litúrgico. Esta festa, como as dos santos
representados nos restantes altares da ermida terão sido introduzidas ao longo do século XVII
e seguintes.56 No que diz respeito ao terço cantado, esta prática foi introduzida após a
passagem pela ilha Terceira do padre António Vieira em 1654. Esta prática diária foi
introduzida nas ermidas de Nossa Senhora da Boa Nova, Nossa Senhora da Saúde e Nossa
Senhora dos Remédios, sendo os custos dessa atividade suportados nesta última pela família
Canto.57 No caso da família Canto, cuja administração da ermida diferia muito das restantes
duas, seria mais uma forma de projeção social e religiosa nas esferas populares da cidade
afirmando, não só o poder social, mas também uma posição no respeitante ao patrocínio
religioso que, em certa forma, já existia tanto na ermida como nas terras do Porto da Cruz.
54 Folhinha da Terceira para o anno de 1830. Angra: Impressão do Governo, 1829, p. 25. Nesta edição a
festa surge a 11 de outubro. Porém, na edição para 1831, surge no dia 9 de outubro. 55 SAMPAIO, Alfredo. Memória sobre A Ilha Terceira. Angra do Heroísmo: Imprensa Municipal, 1904, p. 245. 56 Imagens de S. Francisco e S. José Cupertino no altar-mor, para além da imagem de Nossa Senhora dos Remédios; no altar do corpo da igreja, do lado do Evangelho, Senhor Jesus da Agonia, para além de Nossa Senhora do Rosário e, do lado da Epístola, uma imagem de Santo António. Cf.: SAMPAIO, Alfredo.
Memória sobre A..., p. 244-245. 57 LUCAS, Alfredo. As Ermidas da Ilha... Op. cit., p. 61.
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Figura 3 - O altar-mor (direita) e coro-alto (esquerda) da ermida na década de setenta.
Fonte: Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira XXXVI, 1978, p. 241 e 251.58
As principais cerimónias do Ano Litúrgico, nomeadamente o Natal e a Semana Santa,
eram celebradas na igreja de Nossa Senhora da Conceição enquanto sede da paróquia à qual
estava afeta a ermida, reforçando o lugar imediato à Catedral que esta igreja paroquial
ocupava na hierarquia religiosa da cidade.59 Tanto para um como para outro período não
subsistem referências detalhadas que permitam aferir sobre a sua celebração e
enquadramento no contexto litúrgico-musical da cidade. Particularmente no que respeita ao
período da Semana Santa, a concentração das cerimónias na Catedral e, mais tardiamente, na
igreja de Nossa Senhora da Conceição, restringiam a solenidade das celebrações nas outras
58 Disponível em: http://ihit.pt/boletins/ 59
ANDRADE, Jeronimo E. d’. Topographia ou Descripção… Op. cit., p. 108.
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igrejas paroquiais, incluindo as ermidas cuja função primordial como templos privados
condicionaria à partida as respetivas cerimónias. É o que acontece nas cerimónias de Quinta-
Feira Santa do ano de 1641, altura em que o castelo de São Filipe estava cercado pela
população terceirense, uma vez que a guarnição castelhana aí instalada não havia rendido a
fortaleza no seguimento da Restauração. Durante o cerco, que já se arrastava há meses, era
usual o castelo bombardear a cidade frequentemente e foi o que aconteceu durante as
celebrações de Quinta-Feira Santa na Catedral, que se encontrava cheia de povo, aterrando
alguns projéteis no adro.60 A partir desta descrição percebe-se que, pelo menos durante a
Semana Santa, era a Catedral que constituía o principal centro onde acorria a população da
cidade para assistir à comemoração da paixão e morte de Cristo, sobretudo durante o Triduum
Sacrum, os dias com maior atividade litúrgico-musical. Deste modo, a ermida de Nossa
Senhora dos Remédios, assim como os outros templos da cidade, que ocupavam uma
hierarquia secundária na esfera eclesiástica, estaria circunscrita às celebrações anuais, mas
dificilmente seria centro de atividade litúrgico-musical durantes os dias de maior celebração no
calendário litúrgico.
A 26 de julho de 1582 chegou à ilha Terceira, D. António, Prior do Crato, regressado de
França e Inglaterra a fim de reconquistar a sua pretensão ao reino português, por essa altura
já sob o domínio de Filipe II de Espanha, que havia sido aclamado rei português no ano
anterior. Desembarcou num porto junto a São Sebastião deslocando-se até o centro da vila
onde foi celebrada missa na Igreja Matriz da vila, seguindo depois para Angra.61 Em Angra, D.
António deslocou-se ao convento de São Francisco e, mais tarde, aos paços do capitão onde
permaneceu sete a oito dias. Findo este período, saiu dos paços com o seu partido em cortejo
a visitar D. Violante do Canto, descendente dos Canto e grande partidária da sua causa para a
qual tinha colocado à disposição a sua avultada fortuna, tendo “gastado mais de trinta mil
cruzados”. No dia seguinte, tornou a sair dos paços onde estava alojado junto com o
corregedor Ciprião de Figueiredo e um pequeno cortejo à ermida de Nossa Senhora dos
Remédios, onde ouviu missa. 62 Embora escassa em detalhes, a descrição da passagem de D.
António por Angra feita por Gaspar Frutuoso sugere algumas leituras do roteiro litúrgico-
musical que seguiu, encontrando-se a ermida de Nossa Senhora dos Remédios num lugar
central do mesmo.
Primeiramente, é necessário precisar a ausência de menção à Catedral ou ao Colégio
dos padres da Companhia. No caso específico da Catedral, o centro litúrgico-musical de maior
relevância, é o próprio Frutuoso quem refere o motivo porque este templo terá sido ignorado.
O Bispo de Angra, D. Pedro de Castilho, acérrimo partidário da causa castelhana encontrava-se
na ilha de São Miguel, por ter sido impedido de fazer viagem para a ilha Terceira. Aí
permaneceu até 31 de agosto de 1582, altura em que se retirou para o Continente
60 DRUMOND, Francisco F. Annaes da Ilha… Tomo II, Op. cit., p. 24-25. 61 FRUTUOSO. Saudades da Terra… Op. cit., p. 73. 62 Ibidem, p. 74.
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português.63 Segundo, a sua instalação no convento franciscano denuncia o partidarismo
destes religiosos perante a causa portuguesa, que no período da Restauração (1640-41) irá
revelar-se importante enquanto incentivo para a tomada do castelo de São Filipe. Os
franciscanos estiveram envolvidos ativamente na tomada do castelo de S. Filipe em 1641,
nomeadamente um dos grandes mentores da Restauração nos Açores, Fr. Mateus da
Conceição (que esteve preso em Évora) e seu irmão, o cronista açoriano Fr. Diogo das Chagas,
que escreveu uma crónica dos sucessos dessa empresa.
A ida à ermida de Nossa Senhora dos Remédios parece ter, primeiramente, uma
intenção rogativa. Como referido anteriormente, a ermida e respetiva imagem possuía uma
reputação milagrosa, sendo por isso local de grande devoção popular. D. António, não alheio a
este fluxo devocional, terá lá ido pedir à Senhora os melhores sucessos para a sua causa. Para
solenizar a ocasião foi celebrada missa, certamente cantada como seria de esperar num
momento dessa importância estando presente uma figura tão ilustre. A presença de D. António
na ermida dos Canto, reveste-se ainda de alguma importância uma vez que, embora tida como
local milagroso, poderia não ter integrado o cortejo que o Prior do Crato realizou em Angra. A
presença do mesmo na ermida e, sobretudo, a realização de uma cerimónia com a devida
pompa na mesma aponta para a reverência que o mesmo tinha perante a família Canto e, em
particular, D. Violante, apoiante da sua causa. Uma vez mais os Canto projetavam a sua
influência e poder, neste caso, político e económico através da ermida. Nesta ocasião o acesso
ao seu interior terá estado reservado apenas as personalidades de mais alta condição. Pelas
contas da descrição feita por Frutuoso, esta visita à ermida terá ocorrido a 5 de agosto, dia em
que se celebra a solenidade de Nossa Senhora das Neves.
De acordo com o Graduale Romanum, o próprio para esta missa segue a missa votiva
da Virgem Maria que se canta entre o Domingo de Pentecostes e o Primeiro Domingo do
Advento com o introitus Salve sancta parens, graduale Benedicta et venerabilis es, offertorium
Ave Maria e o communio Beata viscera.64 Em termos da prática musical, esta missa, junto com
as rubricas do ordinário, terá certamente sido cantada em cantochão, a forma mais comum de
solenizar musicalmente este tipo de celebração. Uma vez que ficou instalado no convento de
São Francisco, é muito provável que um número considerável de religiosos franciscanos tivesse
vindo incorporados no cortejo à ermida de Nossa Senhora dos Remédios. Esta hipótese sugere
que a celebração da missa na ermida terá ficado a cargo destes religiosos, assim como
também o canto da mesma, uma vez que não é referida a presença em torno de D. António de
quaisquer elementos eclesiásticos seculares da cidade (Cabido e clero da Catedral, assim como
a colegiada de Nossa Senhora da Conceição) para além dos frades menores, o que excluiria a
participação dos grupos musicais da Colegiada da Conceição, assim como da Catedral.
Embora a passagem de D. António, Prior do Crato, pela ermida constitua um momento
importante na sua história litúrgico-musical, este é apenas um dos vários momentos solenes
63 Ibidem, p. 47. 64 Graduale Romanum ex… Op. cit, p. 420.
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isolados de que há referência. Todavia, uma das atividades musicais que decorriam na ermida
de Nossa Senhora dos Remédios, de acordo com o cronista jesuíta Padre António Cordeiro, era
o canto do terço (rosário) com “grande concurso & deuoção”.65 Como anteriormente
mencionado, esta prática havia sido introduzida primeiramente na ermida de Nossa Senhora
da Boa Nova, assim como nas ermidas de Nossa Senhora dos Remédios, Nossa Senhora da
Natividade e Nossa Senhora da Saúde, após a passagem por Angra do Padre António Vieira em
1654.66 A afirmação foi sucessivamente replicada nas obras dos cronistas oitocentistas e
novecentistas sem existir propriamente documentação coeva que a possa comprovar.67 No
caso da ermida de Nossa Senhora da Saúde, afirma o Padre Cordeiro que havia sido um
mercador de nome Agostinho de Oliveira quem havia introduzido o canto do rosário nesse
templo, daí que a sua atribuição ao Padre António Vieira carece ainda de confirmação.68 No
Santuario Mariano existe ainda menção ao canto diário do terço na ermida, referindo que tal
acontecia ao final da tarde, o que aponta para que fosse realizado próximo à celebração do
ofício de Vésperas ou Completas.69
Todavia, independentemente do autor da introdução desta prática litúrgico-musical,
esta estava já regularizada nesses templos pelo final do século XVII, tendo sido continuada
nas ermidas da cidade acima referidas ao longo do século XVIII e XIX à qual a ermida de
Nossa Senhora dos Remédios não terá sido estranha. O canto do rosário remete para uma
prática devocional com um forte carácter popular o que, no caso do solar dos Remédios sugere
ter sido a respetiva ermida local de afluência da população vizinha, como também o sugere a
passagem de inúmeras procissões de preces pela mesma ao longo do século XVII. O canto do
rosário implicava, para além da sequência dos mistérios, também o canto da ladainha
mariana, possivelmente seguido pelo ofício da Salve (que terminava com a antífona Salve
Regina) que se cantaria todos os sábados. Porém, o mesmo Padre António Cordeiro afirma que
“todos os dias em tres dellas se canta o Terço da Senhora, na da Boa Nova, na dos Remedios,
& na da Saude”. Esta afirmação, embora bastante clara, não traduz maior detalhe no
respeitante a como era celebrado este ofício. O canto parece ser aparente, porém o conteúdo
das rubricas que compunham o ofício não surge referida, presumindo-se que tal incluísse pelo
menos o canto da ladainha mariana após o terço. Também se desconhece como seriam
interpretadas estas rubricas. Muito provavelmente o terço seria cantado sobre um tom de
recitação de forma a agilizar a celebração do ofício, o mesmo ocorrendo com o canto da
ladainha, assente em fórmulas de recitação. Todavia, a associação desta prática musical à
ermida acaba por criar uma paisagem sonora em torno do templo, influenciando a população,
nomeadamente os moradores do bairro do Corpo Santo que certamente acorriam a este
templo para ouvirem o terço. Uma vez mais encontra-se uma prática musical de componente
65 CORDEIRO, P. Antônio. Historia Insulana das… Op. cit., p. 280. 66 CORDEIRO, P. Antônio. Historia Insulana das… Op. cit., p. 280. 67 SAMPAIO. Memória sobre A Ilha Terceira… Op. cit., p. 242; MERELIM, Pedro. As 18 paróquias de… Op. cit., p. 98; LUCAS, Alfredo. Ermidas da Ilha... Op. cit., p. 61. 68 CORDEIRO, P. Antônio. Historia Insulana das… Op. cit., p. 280. 69 S. MARIA, Fr. Agostinho. Santuario Mariano, e… Op. cit., p. 360.
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religiosa sustentada pela família Canto em espaço próprio que influencia as zonas circundantes
ao Solar dos Remédios.
No que diz respeito a ocorrências de prática musical polifónica na ermida, não se
conhecem referências concretas. Porém, no seguimento de alguns eventos que aí decorreram
não se pode afastar a hipótese de que agrupamentos musicais externos à sua rotina litúrgica aí
possam ter interpretado repertório musical monódico (cantochão) ou polifónico (canto de
órgão). Esta hipótese é sugerida pela descrição de várias cerimónias litúrgicas que aí
decorreram e dos intervenientes que nelas participaram, nomeadamente ao longo do século
XVII como adiante se verá. Embora a prática de polifonia vocal sacra em Angra esteja
documentada na Catedral desde pelo menos as duas primeiras décadas do século XVII, não
existem certezas quanto à sua prática e difusão pelas igrejas da cidade, nomeadamente as
igrejas paroquiais de menor dimensão e as ermidas, estas últimas, pelas suas caraterísticas. 70
Porém, e enquanto repertório base da comemoração dos serviços litúrgico-musicais, o
cantochão estaria amplamente difundido e enraizado na formação dos clérigos que ocupavam
as igrejas angrenses. Tal seria o caso do capelão que assegurava o culto religioso na ermida
de Nossa Senhora dos Remédios, mas também nos vários grupos cuja visita à ermida no
século XVII aparece reportada.
A ermida de Nossa Senhora dos Remédios é referenciada no que concerne à sua
atividade litúrgico-musical como local de grande concorrência durante o XVII no que diz
respeito às procissões realizadas em Angra. Um dos catalisadores da realização deste tipo de
celebrações religiosas na cidade foram as constantes crises sísmicas que se verificaram na ilha
Terceira sobretudo a partir da segunda metade do século XVI e ao longo de todo o século
XVII.71 Na centúria de seiscentos encontram-se pelo menos três momentos, entre outros, de
fortes crises sísmicas na ilha onde surge mencionada a ermida. Aqui é importante mencionar a
preeminência da ermida relativamente a outras igrejas da cidade, consideradas a um nível
superior na hierarquia eclesiástica. É o caso, por exemplo, de três igrejas paroquiais – São
Pedro, Santa Luzia e São Bento – que embora ocupando um lugar de destaque surgem
excluídas do roteiro das procissões. É esse também o caso de outras ermidas onde a atividade
musical, nomeadamente o canto do terço, era frequente. A importância da ermida de Nossa
Senhora dos Remédios surge, assim, como um centro importante de concurso da população
sobretudo devido a uma grande devoção pela imagem milagrosa da Virgem, devoção essa
fomentada pela família Canto.
O primeiro desses momentos ocorreu no ano de 1614, que Manuel Luís Maldonado
apelidou como “cahida da Praja” seguido de uma crise em 1647 e ainda outras, de menor
dimensão, na segunda metade de seiscentos.72 O Padre Maldonado testemunhou pessoalmente
70 HENRIQUES, Luís. Polifonia na Sé de Angra: O Liber Missarum de Duarte Lobo. Glosas: Cadernos de Musicologia, n. 9, set. 2013, p. 32-34. 71 Idem. O ano de 1647 “que se diz da Fome, e Terremotos”: O impacto das crises sísmicas na paisagem sonora de Angra. Revista de História da Sociedade e da Cultura, v. 18, 2018, p. 18. 72 MALDONADO, Manuel L. Fenix Angrence. Vol. II - Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha
Terceira, 1990, p. 38.
A atividade litúrgico-musical da ermida de Nossa Senhora dos Remédios: Expressão de uma identidade nobiliárquica da cidade de Angra nos séculos XVI e XVII
156 Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n. 20, p. 137-158, jan./jun. 2019.
esta, como as outras crises sísmicas que abalaram a ilha ao longo do século XVII, constituindo
a sua obra Fenix Angrence um dos principais testemunhos das iniciativas religiosas,
nomeadamente as procissões de preces, que foram realizadas no seguimento destes
acontecimentos. Muito provavelmente mais preocupado com os acontecimentos políticos e o
forte impacto que tiveram na ilha Terceira ao longo do século XVII – refira-se a tomada do
castelo de São Filipe de Angra em 1641 – o cronista oitocentista Francisco Ferreira Drumond
não dedicou grande espaço às crises sísmicas da ilha nos seus Anais da Ilha Terceira. O século
XVII surge dividido entre o final do Tomo I e o início do Tomo II, correspondendo o final do
primeiro volume à tomada do castelo de São Filipe e iniciando o segundo volume com uma
lista de acontecimentos até ao ano de 1766, data da criação da Capitania-Geral dos Açores.73
No caso de 1614, tratou-se de um violento terremoto que abalou a zona norte da ilha
Terceira a 9 de abril desse ano afetando sobretudo as localidades da zona chamada do Ramo
Grande, causando particular destruição na vila da Praia. No dia 24 de maio, no seguimento de
novo terremoto, realizou-se em Angra uma procissão de preces, organizada pelo Cabido da
Catedral, que se deslocou à ermida de Nossa Senhora dos Remédios (muito possivelmente por
via da sua invocação), passando depois pela igreja de Nossa Senhora da Conceição, convento
de São Francisco, igreja do Colégio jesuíta, recolhendo-se à Catedral pelas sete horas da
tarde.74 Nesta procissão terão sido cantadas as várias ladainhas, assim como outros cânticos
penitenciais. Aqui, reveste-se de importância a escolha da ermida como primeiro local do
itinerário da procissão, uma vez mais, explicado pela fama da imagem do altar-mor como
milagrosa. Trata-se, pois, de uma ocasião em que a prática musical esteve em grande plano
na ermida, sobretudo no que diz respeito ao canto das ladainhas, neste caso a “ladainha da
Senhora” como afirma Maldonado.75
O ano de 1647 começou com uma forte crise sísmica que se vinha agravando desde o
início de dezembro do ano anterior e que afetou a zona envolvente à cidade de Angra. Como
era habitual, as corporações religiosas da cidade trataram de organizar uma série de
procissões penitenciais, destacando-se aquelas organizadas pelos frades franciscanos.76
Embora não apareça referido o itinerário tomado por estas procissões, é de crer que algumas
delas tenham passado pela ermida de Nossa Senhora dos Remédios.
Mais detalhada em termos da descrição das procissões e outras manifestações
religiosas em Angra foi a crise sísmica que ocorreu em 1672. Após o terremoto de 5 de abril,
foram realizadas procissões pela cidade, a primeira ocorrendo no dia seguinte dobrando-se
todos os sinos das igrejas. Nela participaram todas as corporações religiosas regulares e
seculares, sendo cantados os ofícios divinos em todas as igrejas. Nas ermidas onde se cantava
o terço, sendo a ermida de Nossa Senhora dos Remédios uma delas, foram também cantadas
73 DRUMOND. Annaes… Op. cit., Tomo I. 74 MALDONADO, Manuel L. Fenix Angrence… Op. cit., p. 38. 75 HENRIQUES, Luís. O ano de 1647... Op. cit., p. 6. 76 MALDONADO, Manuel L. Fenix Angrence… Op. cit., p. 306.
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ladainhas de preces e da Virgem Maria.77 No caso da Catedral, o bispo de Angra D. Fr.
Lourenço de Castro ordenou a realização de uma procissão de preces após a celebração dos
ofícios divinos. Saiu nesta procissão uma imagem de Santo Cristo que se encontrava na
Catedral, que levou o cónego Lucas Garcia de Castro. A procissão dirigiu-se à ermida de Nossa
Senhora dos Remédios onde foi cantada missa, muito possivelmente pelo bispo D. Fr.
Lourenço de Castro que, embora não tendo levado a imagem por motivos de saúde,
acompanhou a procissão até esta ermida. Nova procissão de preces, desta feita organizada
pelos franciscanos, dirigiu-se à igreja de Nossa Senhora da Conceição, passando também na
ermida, seguindo depois para a Misericórdia, Catedral, convento de São Gonçalo terminando
na igreja do convento de Nossa Senhora da Graça.78 No dia 8 de abril, por não haver
“esperanças de bondade nos tempos”, dirigiu-se o povo de Angra à ermida de Nossa Senhora
dos Remédios de onde saíram em procissão com a respetiva imagem pelas igrejas da cidade.79
Particular destaque tomou a ermida no dia 13 de abril, dia em que continuavam as
preces. Após o término da novena na Catedral, saiu uma procissão com as imagens de Santo
Cristo e Nossa Senhora do Rosário, dirigindo-se à ermida de Nossa Senhora dos Remédios. No
cortejo seguiu o bispo, assim como o Cabido e restante clerezia da Catedral. Na ermida foi
cantada missa com a maior solenidade, não se celebrando Pontifical como estava predestinado
por deterioração da saúde de D. Fr. Lourenço de Castro.80 Embora não esteja documentada, a
participação do clero da Catedral terá certamente envolvido também a participação da
respetiva capela musical. Não subsistindo referência à prática polifónica nesta ermida, como
anteriormente mencionado, não é de excluir que, de forma a solenizar a celebração (que
contava com a presença do bispo), tenha a capela participado através da interpretação de
polifonia ou, quanto muito, de cantochão.
Por este último exemplo percebe-se a importância que a ermida de Nossa Senhora dos
Remédios teve na paisagem religiosa da cidade de Angra durante os séculos XVI e XVII. O
templo estava implantado na propriedade de uma das famílias da nobreza mais ilustre e
influente da ilha Terceira o que, decerto, o terá colocado em lugar de destaque nomeadamente
no respeitante aos outros templos deste tipo da cidade, dos quais não se conhece uma
atividade litúrgico-musical com o mesmo volume. A passagem das procissões realizadas dentro
do tecido urbano pela ermida confirma a sua importância que, comparada com as restantes
duas em igualdade de circunstâncias (locais onde se cantava o rosário diariamente), destaca-
se claramente entre as ermidas da cidade. É ainda importante ressalvar que este templo
estava inserido numa hierarquia eclesiástica urbana, onde a Catedral assumia o lugar cimeiro,
seguida pelas igrejas paroquiais. Aqui a sua importância advém de estar anexada ao solar da
família Canto, constituindo o templo preeminente por via da sua relação à família e, ao mesmo
tempo, um meio da família projetar o poder do seu patrocínio religioso. A importância desta
77 Ibidem, p. 653. 78
MALDONADO, Manuel L. Fenix Angrence… Op. cit., p. 653-654. 79 Ibidem, p. 656. 80 Ibidem, p. 660.
A atividade litúrgico-musical da ermida de Nossa Senhora dos Remédios: Expressão de uma identidade nobiliárquica da cidade de Angra nos séculos XVI e XVII
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ermida é ainda confirmada pela respetiva invocação – Nossa Senhora dos Remédios – que
constitui um local rogativo para as gentes da cidade e arredores em tempos de maior
dificuldade, importância esta que mereceu menção no Santuário Mariano de Fr. Agostinho de
S. Maria. Aqui, percebe-se novamente a projeção religiosa da ilustre família dos Canto, por via
da atividade musical, não só do canto do terço, como no acolhimento das inúmeras procissões
de preces que se realizaram ao longo do século XVII onde os cantos devocionais estavam
presentes, assim como as ladainhas. Os fatores enunciados ao longo deste trabalho
contribuem para o destaque que a ermida de Nossa Senhora dos Remédios teve entre as
muitas ermidas existentes na cidade de Angra, constituindo ao mesmo tempo uma forma de
projeção religiosa da ilustre família dos Canto criando um impacto na paisagem sonora da
cidade e, em geral, da ilha Terceira por via do seu investimento na sua atividade litúrgica
estando a música implicitamente presente.