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199 A ATUAÇÃO DOS PSICÓLOGOS NO SISTEMA PENAL Tania Kolker Durante muito tempo, os saberes e os fazeres dos profissionais de saúde nas prisões estavam quase que irremediavelmente alinhados com as teorias mais conservadoras sobre o crime, os criminosos e as prisões, cabendo-lhes apenas o papel de operadores técnicos do poder disciplinar. Esse quadro só começa a mudar nas últimas décadas, quando aparecem os primeiros estudos foucaultianos sobre a prisão e são dados os primeiros passos na construção das bases da escola que viria a ser conhecida como Criminologia Crítica. Além disso, com as contribuições do movimento da reforma penal interna- cional e com o desenvolvimento da cultura de direitos humanos, o leque de contribuições teórico-políticas sobre o tema amplia-se consideravelmente e começam a ser criadas as condições para a formação de um novo tipo de profissional, quando não mais engajado politicamente, pelo menos familiari- zado com leituras mais críticas e desnaturalizadoras. Sendo, porém, a criminalidade um fenômeno tão complexo e sujeito a múltiplas determinações, e o tratamento penal do crime objeto de tantas controvérsias, é longo e multifacetado o caminho dos que desejam construir um conhecimento mais crítico e transformador sobre esse campo de inter- venção. Para tal, é preciso estabelecer o diálogo entre saberes tão distintos como história, sociologia, economia, direito penal, criminologia, psicologia jurídica, entre outros. É fundamental entender o papel da criminalização da pobreza, da demonização das drogas, da espetacularização da violência,

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A ATUAÇÃO DOS PSICÓLOGOS NO SISTEMA PENAL

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Durante muito tempo, os saberes e os fazeres dos profissionais de saúde nas prisões estavam quase que irremediavelmente alinhados com as teorias mais conservadoras sobre o crime, os criminosos e as prisões, cabendo-lhes apenas o papel de operadores técnicos do poder disciplinar. Esse quadro só começa a mudar nas últimas décadas, quando aparecem os primeiros estudos foucaultianos sobre a prisão e são dados os primeiros passos na construção das bases da escola que viria a ser conhecida como Criminologia Crítica. Além disso, com as contribuições do movimento da reforma penal interna-cional e com o desenvolvimento da cultura de direitos humanos, o leque de contribuições teórico-políticas sobre o tema amplia-se consideravelmente e começam a ser criadas as condições para a formação de um novo tipo de profissional, quando não mais engajado politicamente, pelo menos familiari-zado com leituras mais críticas e desnaturalizadoras.

Sendo, porém, a criminalidade um fenômeno tão complexo e sujeito a múltiplas determinações, e o tratamento penal do crime objeto de tantas controvérsias, é longo e multifacetado o caminho dos que desejam construir um conhecimento mais crítico e transformador sobre esse campo de inter-venção. Para tal, é preciso estabelecer o diálogo entre saberes tão distintos como história, sociologia, economia, direito penal, criminologia, psicologia jurídica, entre outros. É fundamental entender o papel da criminalização da pobreza, da demonização das drogas, da espetacularização da violência,

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da criação da figura do inimigo interno e da funcionalidade do fracasso da prisão, especialmente no contexto atual das sociedades neoliberais globali-zadas. Mas é também necessário conhecer os autores que no passado cons-truíram esse objeto que passou a ser visto como a causa dos crimes e a razão de ser das prisões: o criminoso.

Meu objetivo nesse texto é delinear um trajeto, propondo um percurso para os leitores desejosos de conhecer os principais autores e as principais ideias que vêm sendo travadas no conflagrado território dos discursos sobre as prisões e manicômios judiciários e, com isso, fornecer elementos para a problematização da atuação dos psicólogos e demais profissionais da saúde mental nessas instituições.

A prisão, tal qual a conhecemos na atualidade, é uma instituição que nasce com o capitalismo e desde então vem sendo utilizada para administrar, seja pela via da correção, seja pela via da neutralização, as classes tidas como perigosas. Embora hoje seja universalmente usada como forma de sancionar a maioria dos crimes, durante muitos séculos servia apenas para guardar os criminosos até o julgamento, ou para tornar possível a aplicação de outras penas, como a de trabalho forçado. Até a sua consagração, em fins do século XVIII, diversas outras formas punitivas foram adotadas, sempre de maneira rela-cionada ao modelo político-econômico vigente, em geral respondendo à neces-sidade de formação, aproveitamento e/ou controle da mão de obra pouco qualificada, ou como instrumento para a gestão das classes consideradas peri-gosas (por sua pobreza e marginalidade, e não apenas por sua criminalidade)1. Assim, a escravidão como punição esteve par a par com a economia escra-

1 Para uma discussão do conceito de classes perigosas ver Guimarães, 1982 e Coimbra, 2001 e, para um aprofundamento da discussão sobre as novas formas de gestão da pobreza, ver Wacqüant, 2001.

A pena privativa de liberdade veio responder à necessidade de formação de mão de obra para alimentar a máquina capitalística. Desde então, toda a evolução posterior do trabalho nos cárceres (do trabalho produ-tivo, ao trabalho não produtivo e finalmente à ausência de trabalho) esteve vinculada ao valor da mão de obra e do preço dos salários na sociedade livre. Assim, nos períodos em que a mão de obra era escassa, os presos eram obrigados ao trabalho; quando o exér-cito de reserva se expandia e já não havia a necessidade da mão de obra do preso, o trabalho nos cárceres tinha apenas a função de contribuir para a formação de uma subje-tividade operária e, mais recentemente, quando a tecnologia começou a tornar os homens prescindíveis, o trabalho penal começou a desaparecer. Ver em Melossi e Pavarini, 1980; em Castro, 1983; em Pavarini, 1996; e em Rusche e Kirchheimer, 1999.

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vista; as fianças e indenizações nasceram com a economia monetária; os suplícios e a pena capital foram as penas preferenciais no período feudal, atingindo apenas aos extratos mais pobres da população; o trabalho nas galés serviu para satisfazer a necessidade de remadores; o banimento e a depor-tação estiveram associados ao processo de exploração colonial e a prisão com ou sem trabalho forçado esteve intimamente ligada à emergência e ao desen-volvimento do modo de produção capitalista.

Para melhor entender a função histórica da prisão e o papel histori-camente atribuído ao saber médico-psicológico nessas instituições, convém voltarmos um pouco atrás no tempo, a princípio em companhia de Foucault e Castel. Com eles, é possível ver como as diferentes formas de assistir e/ou punir dispensadas aos doentes, deficientes, pobres, desempregados, margi-nais e criminosos de nossa história estão ligadas entre si, como estas estra-tégias estão intimamente relacionadas com as sucessivas políticas voltadas para o controle das classes trabalhadoras e como as nossas ações, enquanto técnicos, estão atravessadas por essas determinações.

Mendigos, vagabundos, criminosos e trabalhadores

Na obra de Castel vemos que, a partir da dissolução da ordem feudal tem início intenso processo migratório que em pouco tempo vai inchar as cidades, criar extensos bolsões de pobreza e constituir o exército de reserva urbano, aumentando enormemente o número de pessoas involuntariamente desocupadas e sem residência fixa. Forçados a vagar em busca de trabalho, aqueles que não se enquadram na nova ordem econômica vão ficando pelas estradas e são empurrados para a miséria, a mendicância ou o crime. Sem outra alternativa, essas pessoas passam a compor a clientela dos dois tipos de dispositivos que se firmarão ao longo de todo o século XIV e dos três seguintes: a assistência, só acessível aos pobres válidos para o trabalho e com residência conhecida, e a internação/reclusão, nesse momento desti-nada ao enclausuramento dos doentes venéreos, loucos, pobres sem domi-cílio, mendigos e vagabundos irredutíveis, menores abandonados e moças necessitadas de correção. Na medida em que vão piorando as condições de trabalho, são criadas as leis para coagir o povo a aceitá-las e para punir

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a recusa ao trabalho. É quando internação2 e reclusão se igualam e têm apenas uma função: absorver a massa de desviantes, neutralizando-os pelo isolamento e corrigindo-os através da tríade trabalho forçado/orações/disciplina (CASTEL, 1998).

Essa preocupação administrativa com as populações pobres logo fará emergir novos sujeitos sociais e novos objetos de intervenção. Nos séculos seguintes, e especialmente no período que ficou conhecido como mercanti-lista, todos os esforços serão empenhados pelos Estados, por um lado, para manter sob controle a mão de obra disponível e, por outro, punir os não enquadráveis nessa nova configuração. A pobreza, que nos séculos ante-riores era valorizada espiritualmente, torna-se motivo de desonra e é crimi-nalizada. A mendicância, a vagabundagem ou a delinquência, que até então se constituíam em estratégias eventuais de sobrevivência, muitas vezes para fazer frente a períodos sem trabalho, pouco a pouco vão se tornando destinos irreversíveis. Mesmo as massas ocupadas são agora severamente punidas ao menor sinal de associação, desobediência ou insurreição. Nesse leque de situações facilmente intercambiáveis – onde, segundo Castel, a “criminalidade representa[ria] a franja externa, alimentada pela área fluida da vagabundagem, ela própria alimentada por uma zona de vulnerabilidade mais ampla, feita da instabilidade das relações de trabalho e da fragilidade dos vínculos sociais” (CASTEL, 1998: 135) –, o que, na verdade, concorrerá para a constituição daqueles que serão os futuros mendigos, vagabundos ou delinquentes são as próprias instituições criadas para geri-los.

Nesse processo, a figura do mendigo é recortada e passa a ser perce-bida “como uma espécie de povo [que corre o risco de se tornar] inde-pendente”, que não conhece “nem lei, nem religião, nem autoridade, nem polícia”, tal como “uma nação libertina e indolente que nunca tivesse tido regras” (CASTEL, 1998: 75). A mendicância é, então, perseguida em toda a Europa pré-capitalista e, para conjurar tal ameaça, é criado o dispositivo da internação, constituído por uma vasta rede de casas de trabalho, casas de detenção e hospitais cuja função principal será a transformação dessas massas inúteis ou potencialmente perigosas em força de trabalho3. 2 O hospital só se tornará um dispositivo médico a partir do final do século XVIII. Até esse momento, a inter-nação, seja em hospital, em casa de trabalho ou em prisão, exercerá função meramente administrativa.3 Para as casas de trabalho eram enviados os mendigos aptos para o trabalho, os necessitados, os pequenos ladrões, as crianças e jovens rebeldes, as viúvas, os órfãos etc. Segundo Melossi e Pavarini (1980), essas casas não eram um lugar de produção e sim, um lugar onde se aprendia a disciplina de

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Outro personagem que emergirá dessa nova classificação e que mere-cerá um tratamento rigoroso é o vagabundo, que se assemelha aos mendigos por ser pobre e não estar trabalhando, mas que deles se diferencia por não ter pertencimento comunitário. Esta categoria tão ampla que, segundo Castel, até o século XVI abarcará “pessoas que mendiguem sem motivo, velhacos, mendigos que simulem enfermidades, ociosos, luxuriosos, rufiões, tratantes, imprestáveis, indolentes, malabaristas, cantores, exibidores de curiosidades, arrancadores de dentes, vendedores de teriaga, jogadores de dados, prosti-tutas, e até operários, ou rapazes barbeiro”, a partir de então irá ganhando contornos mais precisos (CASTEL, 1998: 120).

Assim, em 1566, um decreto real estabelecerá que:...vagabundos são pessoas ociosas, preguiçosas, pessoas que não pertencem a nenhum senhor, pessoas abandonadas, pessoas sem domicílio, ofício e ocupação. (CASTEL, 1998: 121)

E outro de 1701 declarará que:

...vagabundos e pessoas sem fé nem lei [são] aqueles que não têm profissão, nem ofício, nem domicílio certo, nem lugar para subsistir e que não são reconhecidos e não podem valer-se da recomendação de pessoas dignas de fé que atestem sobre a sua boa conduta e bons costumes. (CASTEL, 1998: 121)

Ao longo deste período aparecerá farta legislação que determinará como os vagabundos devem ser tratados: na Inglaterra de 1547, os que se recusam a trabalhar são entregues a senhores como escravos por dois anos, se reincidem uma vez, são sentenciados à escravidão pelo resto da vida e, se voltam a reincidir, são condenados à morte (CASTEL, 1998). Na França de meados do século XVI, os vagabundos são obrigados a trabalhar na cons-trução de fortalezas e estradas. Em Bruxelas, um decreto estabelece punição para os trabalhadores que deixem seus senhores para tornarem-se mendigos ou vagabundos (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 1999). Devido à sua situ-ação extraterritorial, os vagabundos são punidos também com o banimento, o trabalho forçado nas galeras ou a deportação para as colônias.

produção. Dessa maneira, os que conseguiam sair de lá vivos não chegavam a adquirir nenhuma qualifi-cação profissional que lhes pudesse abrir as portas do mundo do trabalho e acabavam retornando. Além disso, essas instituições serviam como ameaça aos demais pobres, que eram obrigados a aceitar qualquer trabalho, sob pena de serem internados.

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Castel nos explica o motivo deste tratamento especial:

A existência dessas populações instáveis, disponíveis para todas as aventuras, representa uma ameaça para a ordem pública. (...) Não só os vagabundos, individualmente, cometem delitos, mas também a insegurança que representam pode assumir uma dimensão coletiva. Pela formação de grupos que expoliam o campo e desembocam às vezes no roubo a mão armada organizado, por sua participação nas “emoções” e nos motins populares também, os vagabundos, sepa-rados de tudo e vinculados a nada, representam um perigo, real ou fantasmático, de desestabilização social. (CASTEL, 1998: 138)

Afinal,

...quem nada tem e não está ligado a nada é levado a fazer com que as coisas não permaneçam como são. Quem nada tem para preservar corre o risco de querer apropriar-se de tudo. A função de “classe perigosa”, que em geral é atribuída ao proletariado do século XIX, já é assumida pelos vagabundos. (...) Realmente, saber que a maioria dos indivíduos rotulados de mendigos ou vagabundos era, de fato, formada por pobres coitados levados a tal situação pela miséria e pelo isolamento social, pela falta de trabalho e pela ausência de suportes relacionais, não podia desembocar em nenhuma política concreta no quadro das sociedades pré-industriais. Em contrapartida, estig-matizando ao máximo os vagabundos, criavam-se os meios regula-mentares e policiais para enfrentar os tumultos pontuais provocados pela reduzida proporção de vagabundos verdadeiramente perigosos. Podia-se também, sem dúvida, pesar um pouco sobre o que, então, funcionava como mercado de trabalho, tentando obrigar inativos a se empregarem por qualquer valor a fim de fazer os salários caírem. (CASTEL, 1998: 138-139)

Mas, precisaremos chegar ao final do século XVIII para assistir ao processo de especialização das instituições encarregadas do sequestro4 das populações marginalizadas. Nesse momento em que cresce a popu-lação miserável5, desenvolve-se a produção e multiplicam-se as riquezas e 4 Termo empregado por Foucault para referir-se às instituições que têm como objetivo a vigilância e a disciplina, através do controle do tempo, do corpo e do saber dos sujeitos a elas submetidos. A este respeito ver Coimbra e Nascimento, 2001. 5 Segundo Castel, no período revolucionário havia na França dez milhões de indigentes, trezentos mil mendigos, cem mil vagabundos, cento e trinta mil menores abandonados e alguns milhares de loucos (CASTEL, 1978).

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as propriedades, é preciso aperfeiçoar os instrumentos de controle social. Com o aparecimento dos grandes armazéns – que estocam matérias-primas e mercadorias passíveis de serem roubadas – e das grandes oficinas – que reúnem centenas de trabalhadores descontentes, e onde há máquinas que podem ser danificadas – nasce uma nova necessidade de segurança e aparecem os primeiros rudimentos da Polícia (FOUCAULT, 1993). Os crimes contra a propriedade passam a prevalecer sobre os crimes de sangue e os criminosos do século anterior, geralmente “homens prostrados, mal alimentados, levados pelos impulsos e pela cólera” (CASTEL, 1998: 71) são agora substituídos por bandos profissionalizados e organizados. Para fazer frente a esse novo quadro e ao aparecimento de formas embrionárias de organização das massas trabalhadoras, novas leis repressivas são criadas e a Justiça – que durante toda a alta Idade Média funcionara através de tribunais arbitrais – vai sendo progressivamente substituída por um conjunto de insti-tuições controladas pelo Estado, que terá a função de administrar as massas revoltosas e assegurar a ordem pública. Começa, então, a ser constituído o embrião daquilo que se tornará o aparelho judiciário.

A este respeito, Foucault dirá que:

A partir de uma certa época, o sistema penal, que tinha essencial-mente uma função fiscal na Idade Média, dedicou-se à luta anti-sediciosa. A repressão das revoltas populares tinha sido até então, sobretudo tarefa militar. Foi em seguida assegurada, ou melhor, prevenida, por um sistema complexo justiça-polícia-prisão. (FOUCAULT, 1992: 50)

Para ele, a Justiça, a serviço da burguesia, assumirá como um de seus papéis

...fazer com que a plebe não proletarizada aparecesse aos olhos do proletariado como marginal, perigosa, imoral, ameaçadora para a sociedade inteira, a escória do povo, o rebotalho, a ‘gatunagem’; trata-se para a burguesia de impor ao proletariado, pela via da legislação penal, da prisão, mas também dos jornais, da ‘literatura’, certas cate-gorias da moral dita ‘universal’ que servirão de barreira ideológica entre ela e a plebe não proletarizada. (FOUCAULT,1992: 50-51)

Ou ainda nas palavras do autor:

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Já que a sociedade industrial exige que a riqueza esteja diretamente nas mãos não daqueles que a possuem, mas daqueles que permitem a extração do lucro, fazendo-os trabalhar, como proteger esta riqueza? Evidentemente por uma moral rigorosa: daí esta formidável ofen-siva de moralização que incidiu sobre a população do século XIX. (...) Foi absolutamente necessário constituir o povo como um sujeito moral, portanto separando-o da delinqüência, portanto separando nitidamente o grupo de delinqüentes, mostrando-os como perigosos não apenas para os ricos, mas também para os pobres, mostrando-os carregados de todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos. (FOUCAULT, 1992: 132-133)

O nascimento das prisões e a produção da delinquência

Com Foucault, é possível entender o papel do dispositivo disciplinar na gênese da subjetividade individuada e a importância da vigilância, das sanções normalizadoras e dos exames na emergência das ciências do homem6. Como veremos ao longo de sua obra, a partir da emergência da prisão e das demais instituições de controle que compõem o diagrama disciplinar, vai sendo construída a máquina panóptica7, que além de produzir subjetividades e agir sobre a conduta dos desviantes, objeto das diversas formas de inter-namento ou reclusão, será um lugar de produção de saberes e, portanto, de constituição de objetos e sujeitos do conhecimento, o que fará dos exames e perícias uma ferramenta crucial8. Nesse momento, que corresponde à formação de um novo modo de exercer o poder, o que está em jogo é a produção de um outro tipo de subjetividade e de uma outra forma de gerir os

6 Segundo Foucault, a medida, o inquérito e o exame são meios distintos de exercer o poder e estabe-lecer o saber: “A medida: meio de estabelecer ou restabelecer a ordem, e a ordem justa, no combate dos homens ou dos elementos; mas também matriz do saber matemático e físico. O inquérito: meio de cons-tituir ou de restituir os fatos, os acontecimentos, os atos, as propriedades, os direitos; mas também matriz dos saberes empíricos e das ciências da natureza. O exame: meio de fixar ou de restaurar a norma, a regra, a partilha, a qualificação, a exclusão; mas também, matriz de todas as psicologias, sociologias, psiquiatrias, psicanálises, em suma do que se chamam as ciências do homem” (FOUCAULT, 1997: 20).7 O Panóptico concebido por Bentham era um tipo de arquitetura que ao “dissociar o par ver-ser visto” (FOUCAULT, 1993) possibilitava a vigilância contínua, a visibilidade permanente, a anonimidade do controle e a fixação dos indivíduos. 8 Se com o inquérito do período feudal tratava-se de saber o que havia ocorrido e de reconstituir um acontecimento determinando o seu autor, no exame trata-se de construir um novo tipo de saber, cujo objetivo é o controle e a correção dos indivíduos.

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homens que implica em uma vigilância individual, perpétua e ininterrupta, ou seja, na adoção de uma nova tecnologia, denominada por Foucault de disciplina. Esta tecnologia, que também será colocada em prática nas escolas, nos conventos, nas fábricas, nos hospitais e nos quartéis, atravessará a socie-dade de ponta a ponta constituindo quadros administráveis que permitirão a transformação das multidões confusas e perigosas em multiplicidades orga-nizadas e manipuláveis. Segundo Foucault, é quando as classes dominantes descobrem que do ponto de vista da economia do poder é “mais eficaz e mais rentável vigiar que punir” (FOUCAULT, 1992: 130).

Trata-se, segundo ele,

...de estabelecer uma nova economia do poder de castigar, assegurar uma melhor distribuição dele, [de fazer com que] seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda parte de maneira contínua e até o mais fino grau do corpo social, [de torná-lo] mais regular, mais eficaz, mais constante e mais bem detalhado em seus efeitos. (FOUCAULT, 1993: 75)

Para a nova ordem jurídico-administrativa, fundada no contrato, onde a punição dos criminosos deixa de ser uma prerrogativa do rei para tornar-se um direito da sociedade e em que o cidadão é sujeito e ao mesmo tempo assujeitado,

...o prejuízo que um crime traz ao corpo social é a desordem que introduz nele: o escândalo que suscita, o exemplo que dá, a incitação a recomeçar se não é punido, a possibilidade de generalização que traz consigo. Para ser útil, o castigo deve ter como objetivo as conse-qüências do crime, entendidas como a série de desordens que este é capaz de abrir (...) [Deve] calcular uma pena em função não do crime, mas de sua possível repetição. Visar não à ofensa passada, mas a desordem futura. (FOUCAULT, 1993: 85)

Com o fim dos suplícios que dominaram o sistema de punições no período feudal, nasce uma nova maneira de conceber as penas que já não visará tanto ao corpo e sim à alma. A partir de então, de acordo com o princípio de igualdade jurídica, todos devem ser tratados de forma igual

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perante a lei e não há crime se não houver uma lei anterior que o tipifique9. Aparece a noção de infração, que – diferentemente do dano ou ofensa que diziam respeito apenas ao acusado, à vítima e ao soberano lesado em sua autoridade – implica em ataque ao próprio Estado, à sua lei e à sociedade. E o criminoso passa a ser visto como alguém que voluntariamente rompeu o pacto social devendo, portanto, ser considerado como inimigo da sociedade (FOUCAULT, 1996). Além disso, a pena passa a ser quantificada e o tempo se torna a sua medida principal. Para essa sociedade onde a liberdade é um dos maiores bens, a punição predominante será a suspensão temporária da liberdade. A prisão torna-se a punição por excelência, mas, diferente da velha prisão-masmorra do período anterior, a prisão-observatório de agora permitirá punir e ao mesmo tempo isolar, vigiar, controlar, conhecer e corrigir. Neste momento, a obra de enquadrar e individualizar a população marginal se verá completa: se para o senso comum a prisão nasce para dar conta da delinquência, para esta leitura, que podemos chamar de genealó-gica, a delinquência será um efeito-instrumento da prisão. Para Foucault:

A técnica penitenciária e o homem delinqüente são de algum modo irmãos gêmeos. Ninguém creia que foi a descoberta do delinqüente por uma racionalidade científica que trouxe para as velhas prisões o aperfeiçoamento das técnicas penitenciárias. Nem tampouco que a elaboração interna dos métodos penitenciários terminou trazendo à luz a existência ‘objetiva’ de uma delinqüência que a abstração e a inflexibilidade judiciárias não podiam perceber. Elas apareceram as duas juntas e no prolongamento uma da outra como um conjunto tecnológico que forma e recorta o objeto a que aplica seus instru-mentos. (FOUCAULT, 1993: 226)

Os infratores, uma vez captados pelas malhas da lei, serão submetidos a uma operação que antes de visar corrigi-los, vai transformá-los em delin-quentes. Não importa se o infrator em questão foi premido pela necessidade, ou foi flagrado no seu único crime. A máquina penitenciária irá tragá-lo por uma de suas entradas possíveis e, quando o devolver, se um dia o fizer, já será na qualidade de delinquente. Marcados para sempre pela infâmia; afastados do seu meio social, em geral por muitos anos e irreversivelmente; ocupados com um trabalho inútil, que de nada lhes servirá quando voltarem à liberdade; 9 No período feudal, os castigos não estavam definidos em lei, ficando por conta da vontade do senhor.

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submetidos a condições que só estimularão a sua revolta; estigmatizados por sua folha corrida10; recusados no mercado de trabalho por seus antecedentes penais e, doravante sob a vigilância frequente da polícia, os condenados à pena de prisão serão também condenados à reincidência. Segundo Foucault:

O aparelho penitenciário, com todo o programa tecnológico de que é acompanhado, efetua uma curiosa substituição: das mãos da justiça ele recebe um condenado; mas aquilo sobre que ele deve ser aplicado, não é a infração, é claro, nem mesmo exata-mente o infrator, mas um objeto um pouco diferente e definido por variáveis que pelo menos no início não foram levadas em conta na sentença, pois só eram pertinentes para uma tecno-logia corretiva. Esse outro personagem, que o aparelho peniten-ciário coloca no lugar do infrator condenado, é o delinquente. (FOUCAULT, 1993: 223)

Foucault nos fala da operação de transformação do infrator em delin-quente em sua obra Vigiar e Punir. Destaca-se neste empreendimento o papel da investigação biográfica:

O delinquente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza. (...) Por trás do infrator a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a responsa-bilidade de um delito, revela-se o caráter delinqüente cuja lenta formação transparece na investigação biográfica. A introdução do ‘biográfico’ é importante na história da penalidade. Porque ela faz existir o ‘criminoso’ antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste. (...) O delinqüente se distingue também do infrator pelo fato de não somente ser o autor de seu ato (autor responsável em função de certos critérios da vontade livre e consciente), mas também de estar amarrado a seu delito por um feixe de fios complexos (instintos, pulsões, tendências, temperamento). (FOUCAULT, 1993: 223-224)

Para captar essa nova objetividade, novos sujeitos serão investidos de poder e novas técnicas de exame serão desenvolvidas, mas antes será preciso esperar pela nova reforma penal, inspirada nas doutrinas positi-

10 Termo que no jargão policial significa atestado de antecedentes criminais.

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vistas. É quando será constituído “um conhecimento positivo dos delin-quentes e de suas espécies, muito diferente da qualificação jurídica dos delitos e de suas circunstâncias” (FOUCAULT, 1993: 225), que será conhecido como criminologia.

O conhecimento “objetivo” dos delinquentes e a parceria Psiquiatria-Justiça

Estamos agora no século XIX, período caracterizado pelas grandes revoltas e sublevações populares cuja disseminação deve ser impedida a todo custo. Segundo Hobsbawn, “nunca na história da Europa e poucas vezes em qualquer outro lugar, o revolucionarismo foi tão endêmico, tão geral, tão capaz de se espalhar por propaganda deliberada como por contágio espon-tâneo” (HOBSBAWN, 1998: 127). Não por acaso, aparecem no período diversos estudos sobre as massas e sua tendência a agir criminosamente, por contágio e irracionalmente, levada por impulsos de momento.11 Aumentam as riquezas e a produtividade, crescem as cidades, mas, como sempre, o enri-quecimento de poucos se faz com a espoliação e a segregação dos demais. A mecanização das fábricas vai deixando sem trabalho inúmeros artesãos que antes figuravam entre os trabalhadores mais qualificados, engrossando ainda mais o contingente de indigentes. Armazéns, celeiros e fábricas são saqueados, máquinas são destruídas, as multidões tomam as ruas e a massa trabalhadora começa a mostrar cada vez maior capacidade de organização. Crescem a indigência e a criminalidade, inflamando as discussões sobre o crime e o tratamento dos criminosos, e a penalidade, antes vista como uma reação penal à infração, passa a funcionar como um meio de agir sobre o comportamento e as disposições do infrator. Por sua vez, a reincidência passa a ser cada vez mais debatida nos meios jurídicos e afins: se em um primeiro momento, este fenômeno permitia ver o fracasso da prisão em seus objetivos de corrigir o criminoso e prevenir novos crimes; logo, essa responsabilidade será atribuída ao próprio delinquente, visto como um tipo natural: “O efeito ‘delinqüência’ produzido pela prisão torna-se problema do delinquente, ao qual a prisão deve dar uma resposta adequada” (FOUCAULT, 1997: 31).11 A este respeito, ver, por exemplo, A Opinião e as Massas, de Gabriel Tarde. Ver também em Barros (1994) uma importante discussão sobre as multidões e a constituição do modo-indivíduo, para a qual concor-reram as diversas instituições nascidas com a modernidade, como a escola, o hospital, a prisão etc.

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Com a justificativa de que a punição deve visar a prevenção de novos crimes e evitar a reincidência, a pena agora deve levar “em conta o que é o criminoso em sua natureza profunda, o grau presumível de sua maldade, a qualidade intrínseca de sua vontade” (FOUCAULT, 1993: 90). Dessa forma, como dirá Foucault em suas conferências brasileiras,

...toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer. [Nasce] a noção de periculosidade [que] significa que o indi-víduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtuali-dades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam. (FOUCAULT, 1996: 85)

Por sua vez, naturalizada a reincidência, esta servirá

...de justificativa para uma rápida modernização das técnicas de controle e repressão utilizadas pelos aparelhos policiais, dando lugar ao aparecimento de uma ‘polícia científica’ (...). Porém, os efeitos da modernização da polícia não se restringiram apenas ao ‘mundo do crime’; logo se fizeram sentir por todo o tecido social, principalmente junto às camadas da população que exigiam maiores cuidados em termos de contenção, vigilância e disciplinarização. (...) No bojo desse processo, apresentando-se inicialmente como panacéia para o problema da reincidência criminal, constituiu-se uma das mais importantes técnicas de controle que hoje nos atinge a todos: a identificação pessoal através das impressões digitais. (CARRARA, 1998: 64)

Para Foucault, se anteriormente julgar era estabelecer a verdade de um crime e apontar o seu autor, agora o objetivo é julgar também as paixões, as vontades e as disposições. Isto quer dizer que se punem as agressões, mas por meio delas as agressividades; os crimes sexuais, mas, ao mesmo tempo, as perversões; os assassinatos, mas através deles os impulsos e desejos (FOUCAULT, 1993: 21). Importa agora não apenas estabelecer que lei sanciona esta infração, mas verificar, também, até que ponto a vontade do

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réu determinou o crime, se o infrator apresenta alguma periculosidade e de que maneira ele será melhor corrigido. Isso significa que, a partir de agora, o juiz já não julgará sozinho. De um lado, a Medicina Mental será chamada ao tribunal para decidir sobre a responsabilidade e a periculosidade do crimi-noso, avaliando se ele se encontrava em estado de loucura na hora do ato e se ele é acessível à sanção penal e, de outro, uma nova modalidade de técnicos avaliará o efeito da pena sobre o condenado e se ele merece ou não ser posto em liberdade. Para responder a esses novos mandatos, emergem diversas instituições, laterais à justiça, com as funções de vigilância e correção. E com elas aparecem também os novos atores que doravante se encarregarão de produzir diagnósticos e prognósticos acerca do preso e de acompanhar as transformações que estão se operando em seu comportamento, tornando possíveis um conhecimento individualizado do criminoso e uma indivi-dualização das penas (por exemplo, através da abreviação ou o prolonga-mento das mesmas) que funcionarão como julgamentos adicionais. É quando, segundo Foucault,

...todo aquele ‘arbitrário’ que, no antigo regime penal, permitia aos juízes modular a pena e aos prín-cipes eventualmente dar fim a ela, todo aquele arbitrário que os códigos modernos retiraram do poder judiciário, vemo-lo se recons-tituir, progressivamente, do lado do poder que gere e controla a punição. (FOUCAULT, 1993: 219-220)

Essa será a chave de muitos dos excessos que a autonomia da instância carcerária viabilizará. Como nos diz Foucault:

...esse excesso é desde muito cedo constatado, desde o nascimento da prisão, seja sob a forma de práticas

A partir do século XVIII, estabelece-se uma colaboração entre a medicina e a justiça. Esta parceria, tão importante para o destino do infrator quanto para o futuro dessas duas instituições, fará nascer uma nova esfera de competência – a perícia –, um novo saber – a psiquiatria –, novos estabelecimentos – as, prisões, os asilos e os manicômios judi-ciários, e uma nova necessidade de distin-guir o louco do criminoso, o irresponsável do responsável, o punível do tratável. Nos primeiros anos, como os loucos infratores só eram punidos quando comprovada sua intenção de causar dolo e sua permanência com as famílias era permitida por lei, as perí-cias só deviam responder se o imputado cometeu a infração em estado de demência. No entanto, com a reforma da lei – que acaba com a exclusão recíproca entre o discurso punitivo e o discurso terapêutico – e a conso-lidação do poder psiquiátrico – que além de ocupar-se da esfera do patológico, atribui-se também o controle do anormal –, as perícias passam também a avaliar a periculosidade e a capacidade de adaptação dos infratores. (CASTEL, 1978; FOUCAULT, 2001)

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reais, seja sob a forma de projetos. Ele não veio, em seguida, como um efeito secundário. A grande maquinaria carcerária está ligada ao próprio funcionamento da prisão. Podemos ver o sinal dessa autonomia nas violências ‘inúteis’ dos guardas ou no despotismo de uma administração que tem o privilégio das quatro paredes. (FOUCAULT, 1993: 220)

A prisão, enquanto instrumento de modulação da pena, adquire um poder tal que, além de ser o lugar onde a duração do castigo é decidida e um certo saber sobre o criminoso é produzido, é também o palco onde se definirá, de acordo com as normas disciplinares vigentes em cada estabele-cimento, quais novas punições se acrescentarão às determinadas por lei. É quando a tortura, muito usada no período feudal para fins de prova, ganhará novos objetivos, mas a própria individualização da pena, introduzida pelos reformadores sob a justificativa da humanização, servirá também para a gestão e o controle dos comportamentos. Nesse lugar que funcionará como um microtribunal, os presos serão observados dia e noite, avaliados, classi-ficados, punidos ou recompensados. Segundo Foucault, dessa observação se extrairá um saber cujo objetivo não é mais determinar se alguma coisa se passou ou não, como fazia o inquérito no período anterior, mas sim avaliar se um indivíduo se comporta de acordo com a norma, se está progredindo ou não, se deve ser punido ou merece ser recompensado. Trata-se, pois, de

...um novo saber, de tipo totalmente diferente, um saber de vigi-lância, de exame, organizado em torno da norma pelo controle dos indivíduos ao longo de sua existência. Esta é a base do poder, a forma de saber-poder que vai dar lugar não às grandes ciências de observação como no caso do inquérito, mas ao que chamamos de ciências humanas: Psiquiatria, Psicologia, Sociologia etc. (FOUCAULT, 1996: 88)

O dispositivo da periculosidade e a indeterminação das sanções

O fim do século XIX é marcado por intensas discussões sobre o crime, a criminalidade e as penas. Criticada por não conseguir dar uma resposta eficaz ao aumento da criminalidade e da reincidência, a Escola Clássica,

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que consagrara a igualdade e a liberdade individual, começa a perder espaço para as ideias positivistas. Nesse momento em que se assiste o acirramento das ques-tões sociais, o avanço da organização das classes trabalhadoras12 e a intensi-ficação das greves e agitações operá-rias (segundo Del Olmo chamadas de delitos das multidões), os saberes da época são convocados a munir o poder de novas estratégias para ampliar o leque e a duração das sanções, de maneira a abarcar todo o universo de desviantes e/ou delinquentes potenciais e a garantir a sua neutralização provisória ou permanente. Assumindo a tarefa de justi-ficar as desigualdades e privilégios de uma sociedade que queria se definir como igualitária, desviar a atenção das causas sociais e políticas dos delitos para a esfera do individual, patologizar os criminosos e resistentes13 e legi-timar a intervenção estatal contra os inadaptados, a Escola Positivista passa a trabalhar com a tese da predisposição hereditária para o delito e propõe que os traços reveladores da personalidade criminosa devem ser procurados na constituição física, na biografia e/ou no meio social do réu. Diferentemente dos liberais que tinham como objeto os delitos e as penas, os adeptos da Escola Positiva de Direito Penal voltam-se para o homem delinquente e as características que os distinguem dos demais. Com esse objetivo, tentam individualizar os fatores que condicionam o comporta-mento criminoso e, apoiados em pressupostos deterministas e na noção de hereditariedade, passam a criticar a noção de livre arbítrio e a questionar a responsabilidade dos criminosos. Segundo eles, a liberdade de escolha

12 Esse foi um período de grande efervescência com a criação da Associação Internacional de Trabalha-dores, em 1864, a publicação do primeiro volume de “O Capital”, por Marx, em 1867 e a Comuna de Paris, em 1871.13 Para ilustrar o discurso da época destaco um texto de Charles Fèrè, datado de 1884: “Dando a oportuni-dade a instintos criminosos e estimulando predisposições à insanidade mental, as grandes revoluções sociais podem revelar fatores hereditários, anomalias (monstruosités) psíquicas e demonstrar o elo entre estes dois defeitos de um modo quase experimental. Pode-se citar entre os que tiveram um papel particularmente nocivo nas insurreições do século um bom número de indivíduos tratados por insanidade ou que tinham loucos na família” (apud HARRIS, 1993: 75).

A esCola ClássiCa, baseada nos ideais do Iluminismo, atravessou parte dos séculos XVIII e XIX. As obras principais desse período foram Dos Delitos e das Penas, de Cesare Beccaria (1764) e Programa do Curso de Direito Penal de Francesco Carrara (1859). Para os clássicos, o criminoso é aquele que, no exercício do livre arbítrio – que implica na perfeita capacidade de entender a ilici-tude de um ato e de agir pautado por esse entendimento – viola livre e consciente-mente a norma penal, sendo, portanto intei-ramente responsável por seus atos. Nesse momento, os loucos são colocados fora do Direito Comum. Para a maior parte das legis-lações à época eles estão isentos de pena.

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não podia ser considerada relevante no julgamento de um ato criminoso, uma vez que o comportamento humano estava predeterminado por causas inatas. No entanto, se os criminosos não podiam ser considerados, sob esse ponto de vista, moralmente responsáveis, deviam ser tratados como social-mente responsáveis pelo perigo que podiam representar. Assim, entendendo que a sociedade tinha o direito de se defender desse perigo e que as leis não tinham o mesmo efeito de intimidação sobre os diferentes homens, os positivistas – em oposição à Escola Clássica que retirava da esfera penal os infratores considerados irresponsáveis –, propõem que é preciso criar sanções diferenciadas para neutralizar os delinquentes natos, reservando as penas tradicionais aos criminosos ocasionais, suscetíveis de serem discipli-nados e incorporados ao mercado de trabalho.

Na verdade, de acordo com Sérgio Carrara,

... através do crime, juristas, criminalistas, criminólogos, antropólogos criminais, médico-legistas, psiquiatras, todos fortemente influen-ciados por doutrinas positivistas ou cientificistas, discutiam uma questão política maior: os limites ‘reais’ e necessários da liberdade individual, que excessivamente protegida nas sociedades liberais, era apontada como causa de agitações sociais ou, ao menos, como empecilho à sua resolução. (...) Cumpria então reformar códigos e leis para assentar as bases jurídico-políticas de uma ampla reforma institucional que fornecesse ao Estado e às suas organizações os instrumentos necessários para uma intervenção social mais incisiva e eficaz. (CARRARA, 1998: 65)

A oportunidade foi dada com o dispositivo da periculosidade e com o recurso à individualização e à indeterminação temporal das sanções. Desde o século anterior, à medida que a estrutura jurídico-política da sociedade contratual se generalizava, os mendigos, vagabundos e criminosos vinham sendo cada vez mais reprimidos. Como vimos acima, estes eram indiscri-minadamente captados pelas teias de uma mesma rede que cada vez mais se estendia pela sociedade. A partir do século XIX, no entanto, essa malha começa a se especializar. Pouco a pouco, repressão e assistência se dissociam, inúmeras prisões são construídas e os loucos são internados em locais espe-ciais. Vistos como incapazes de trabalhar e de responder por seus atos, ao mesmo tempo inocentes e potencialmente perigosos, que não transgride(m)

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a uma lei precisa, mas pode(m) violar a todas, passam a ser tratados como um foco especial de desordem. Segundo Castel (1998), por sua singular imuni-dade às regras do mundo do trabalho e da lei, era como se ameaçassem a própria estrutura que presidia a organização da sociedade. Para administrá-los, portanto, era preciso construir-lhes um estatuto diferente. Não podendo gerir seus bens, deviam ser tutelados, não sendo passíveis de sanção, deviam ser submetidos à internação. Com o movimento alienista começam a ser constituídas as bases teóricas que justificarão a sequestração dos loucos com base em sua imprevisibilidade, amoralidade e suposta tendência para o crime. Portadores de uma alienação, muitas vezes só visível aos especialistas, os diagnosticados como monomaníacos tornam-se objetos de suspeição e devem ser internados para evitar que cometam crimes. Criminalizada a loucura e patologizado o crime, os alienistas passam a ser chamados aos tribunais, ao mesmo tempo em que emergem a figura do monstro moral e a preocupação com a inteligibilidade dos atos criminosos sem causa aparente, cometidos por sujeitos dotados de razão. Progressivamente, o julgamento da racionalidade-responsabilidade se desloca do ato criminal para a pessoa individual, que passa a ser avaliada através de suas motivações profundas e história de vida, dimensões agora indispensáveis para apreciar as possibili-dades de emenda e escolher a sanção mais adequada para a neutralização do infrator. O interesse da medicina mental vai ampliando e deixa de se restringir aos crimes monstruosos – só encontrados nos casos extremos – para se ocupar dos crimes dos indivíduos a serem corrigidos. Por sua vez, as perícias param de funcionar segundo o modo dicotômico (ou louco, ou perigoso) e vão se tornando uma atividade de triagem e classificação, esten-dendo seu domínio a um número crescente de indivíduos (CASTEL, 1978).

Diferenciando-se da Escola Clássica, que partia do pressuposto que o criminoso era uma pessoa normal e via na pena um meio de defesa contra o crime atuando como um dissuasivo, uma contramotivação à repetição da infração, a Escola Positivista entende o crime como a manifestação de uma degeneração, anormalidade ou atavismo e se propõe a defender a sociedade do criminoso. Isso significa que, enquanto para a doutrina anterior, o fim da pena seria a eliminação do perigo social que adviria da impunidade do delito e a reeducação do condenado seria um resultado acessório, para o Direito Penal Positivo, a pena como meio de defesa social pretendia intervir direta-mente sobre a subjetividade do indivíduo criminoso, reeducando-o, ou pelo

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menos neutralizando-o (BISSOLI FILHO, 1998). Nesse momento em que o delito passa a ser tratado como um índice de anormalidade e o cárcere se converte em aparelho de normalização, é toda a ideologia punitiva que está em transformação. Segundo Salo de Carvalho, a partir de então:

Do estudo das relações objetivas e subjetivas entre o fato e o resul-tado, a ciência penal parte para a anamnese reconstrutiva da perso-nalidade do indivíduo desde os seus primórdios, julgando e punindo sua história de vida. A um direito penal do fato-crime se sobrepõe um direito penal do autor fundado na periculosidade, independente da relação e proporcionalidade entre a lesão do bem jurídico tutelado e a norma jurídica. A um modelo processual acusatório baseado na presunção de inocência e nas possibilidades fáticas de comprovação e refutação de hipóteses, impõe-se um modelo inquisitorial de julga-mento da personalidade do réu e suas ‘tendências’. A uma estrutura retributiva da pena, cominada com escopo de reprovar a violação da norma, impõe-se a tarefa de influenciar e modificar o ‘ser’ do ‘Outro’. (CARVALHO, 2003: 62-63; os grifos são nossos)

Dentre os autores mais relevantes que se dedicaram ao estudo “cien-tífico” dos criminosos e que forneceram as bases “científicas” deste novo sistema punitivo, quatro merecem menção especial14.

O primeiro foi Morel, que apresenta sua tese sobre a degeneração em 1857, definindo-a como o conjunto de “desvios doentios do tipo normal da humanidade, hereditariamente transmissíveis, com evolução progressiva no sentido da decadência” (MOREL, apud CARRARA, 1998: 82). Para ele, a espécie humana partiria do tipo primitivo ideal que conteria os elementos principais para a continuidade da raça, de modo que qualquer desvio das condições normais levariam a uma degenerescência de natureza. Traçando um perfil dos degenerados que de certa maneira antecipa o criminoso nato de Lombroso, Morel diz que

Os indivíduos nascidos dessas condições fatais assinalam-se desde cedo pela depravação de suas tendências. São bizarros, irritáveis,

14 Como vimos, a noção de monomania, cunhada no início do século XIX, também foi fundamental para a criminalização da loucura e para a percepção dos loucos como perigosos. No entanto, somente com a teoria da degeneração os pilares do direito penal liberal começam a ser questionados e passa-se do crime visto como sintoma de uma doença capaz de ser tratada para o crime como um atributo de certos indivíduos, que os acompanharia do nascimento até a morte.

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violentos, suportando dificilmente o freio da disciplina e mostrando-se na maioria dos casos, refratários a toda a educação. Eles entregam-se instintivamente ao mal, e seus atos, prejudiciais e perversos, são indevidamente, em muitas circunstâncias, designados sob o nome de monomanias (...). Do ponto de vista físico, tem uma constituição franzina e débil. Sua estatura é pouco elevada, suas cabeças pequenas e mal conformadas, a freqüência e a gravidade das convulsões da infância, nestes seres degenerados, produzem o estrabismo ou as deformidades das extremidades inferiores, bem como anomalias e/ou interrupção do desenvolvimento na estrutura íntimas dos órgãos. (MOREL, apud DARMON, 1991: 42)

Produzindo, então, uma nova classificação das doenças mentais baseada em um critério etiológico, este autor afirma que a origem da maioria das doenças mentais era degenerativa, razão pela qual elas deveriam ser consideradas incuráveis e capazes de comprometer as gerações futuras15. Como a degeneração engendrava tipos antropológicos desviantes que progressivamente distinguiam-se do indivíduo normal, até chegar aos here-ditariamente destinados a uma vida imoral, à alienação e ao crime, parecia agora impossível distinguir o criminoso do louco, o punível do tratável e todos que diferissem do tipo normal deviam ser considerados alienados. No entanto, se tal formulação poderia liberar da prisão a maior parte dos transgressores e representar o fracasso da medicina mental no trato com os criminosos, ela agora ampliava a sua competência a todo ato considerado excêntrico, indisciplinado, imoral ou criminoso e abria as portas para as terapêuticas voltadas para a profilaxia social das populações.

Seguindo adiante no século – em 1870 – aparecem as teses de Lombroso, que propõe a existência dos criminosos natos16 e entende o crime como um fenômeno atávico, reafirmando a incorrigibilidade dessa classe de criminosos17. De forma semelhante aos degenerados, esse novo

15 Morel incluía entre as principais causas de degeneração a constituição geológica dos solos, o paupe-rismo, a fome, as profissões insalubres, o álcool, o ópio, as doenças infecciosas ou congênitas, as influên-cias hereditárias, a imoralidade dos costumes etc., e considerava degenerados os gênios, os imbecis, os excêntricos, os loucos, os santos, os suicidas, os imorais, os perversos sexuais, os criminosos, entre outros (CARRARA, 1998). 16 Houve também quem propusesse as categorias de vagabundo nato (Professor Benedikt, 1891) e de pobre nato (Alfredo Niceforo, 1907). Segundo Benedikt, "existem indivíduos, e também raças inteiras, nos quais a vagabundagem é congênita" (DARMON, 1991: 73).17 Não por acaso, Lombroso dedica dois dos seus livros ao estudo dos revolucionários de sua época: Il delito político e le revoluzioni e Gli anarchisti (apud DEL OLMO, 2004).

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tipo também não podia escolher ser honesto, pois o crime fazia parte da sua natureza e era o resultado de sua inferioridade biológica. Além da natureza criminosa, esses homens tinham como característica uma série de sinais e atributos que os identificavam. Destacavam-se pela ausência de pelos, os braços excessivamente compridos, os maxilares superdesenvolvidos, a vaidade, a imprevidência, a instabilidade emocional, a imprudência, a impulsividade, a preguiça, o caráter vingativo, a crueldade, a tendência para a obscenidade, para o jogo, para a bebida e para o crime, a homossexuali-dade, a insensibilidade à dor, o gosto pelas gírias e tatuagens, entre outros. Além disso, como eram incapazes de sentir remorso ou culpa, entre eles a reincidência era a regra. Mas, se eles eram incorrigíveis, o que propunha a Escola Positivista do Direito Penal, nesse momento representada por Lombroso, senão a neutralização temporária ou definitiva dos infratores assim considerados?

Segundo Carrara,

Para os positivistas responder a tais questões era justamente refor-mular todos os preceitos jurídicos então em vigor e fundar um novo direito que (...) operasse sobre uma concepção cientificista da pessoa humana. Era esse o trabalho reformador da Escola Positiva. Antes de mais nada, tratava-se de dar um novo sentido à pena, libertando-a de tudo o que, nela, poderia representar expiação de uma culpa, ou aplicação de um castigo. A pena deveria converter-se em “medida de defesa social”, e sua duração e modalidade não deveriam mais ser deduzidas da gravidade legal do crime cometido (...), ou ainda do grau de consciência que o autor tivesse tido de seu crime. O critério da reação legal a ser acionada frente aos crimes deveria ser apenas o próprio criminoso (...) classificando-o segundo as causas que o teriam levado à delinqüência, pois somente através de tal classificação científica poder-se-ia estabelecer uma intervenção penal adequada e eficaz. (...) Desta maneira, por exemplo, qualquer indivíduo que apresentasse os estigmas somáticos e psicológicos indicativos de uma criminalidade nata (portador de um grau máximo de periculosidade e de um grau mínimo de regenerabilidade) deveria ser fisicamente eliminado ou segregado para sempre, independentemente do tipo ou da gravidade do crime cometido. (CARRARA, 1998: 110-111)

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Seguindo os passos de Lombroso, porém tentando evitar as críticas recebidas pelo seu antecessor, surge Garófalo com um discurso em que se começa a reconhecer várias aproximações com o atual, mas que ainda mantém a crença na hereditariedade e na visão dos delinquentes como um tipo antropológico. Em sua obra de 1878, ele continua a sustentar que as causas do delito devem ser procuradas no delinquente, ou em suas predisposições hereditárias, e a atribuir a tendência ao delito a um tipo de anomalia moral18, mas já abre mão, pelo menos em casos especiais, da crença na incurabilidade dos delinquentes. Negociando com a perspectiva correcionalista que começava a ganhar força e admitindo graus diferen-ciados de capacidade de adaptação dos delinquentes19, Garófalo orienta sua pesquisa para os aspectos da personalidade envolvidos no comportamento criminal e cunha o conceito que pode ser considerado como precursor da noção de periculosidade. Embora questionando os seus contemporâ-neos que negavam a existência de tendências criminosas inatas ou acredi-tavam que elas só existiam em uma minoria de casos e criticando a crença na eficácia da educação sobre os instintos criminosos, Garófalo propõe uma diferenciação das sanções, levando em conta os caracteres psicoló-gicos dos delinquentes, que será fundamental para o aggiornamento da Criminologia Positivista.

De qualquer maneira, mantendo a distinção entre os delinquentes típicos e inassimiláveis e os que são susceptíveis de adaptação, Garófalo propõe um sistema de penas em que a eliminação do delinquente, absoluta (pena de morte) ou relativa (prisão temporária, deportação ou relegação) ainda cobre a maior parte das sanções. Concordando com Lombroso, que atribui à pena capital o mérito de melhoramento da raça, e afirmando que há indivíduos que são incompatíveis com a civilização, o autor defende a pena de morte para os que se revelarem destituídos do sentimento de piedade e refere que

18 Segundo Garófalo, “o delito é o efeito de causas individuais atuando num particular ambiente físico ou em particulares contingências sociais; mas, como estas condições existem também para os que não delinqüem, elas não podem ser senão causas ocasionais: o verdadeiro fator do delito deve procurar-se no modo de ser especial do indivíduo, que a natureza criou delinqüente” (GARÓFALO, 1997: 68).19 A princípio, as teorias positivistas eram voltadas basicamente para justificar a neutralização/eliminação dos indivíduos considerados incorrigíveis, mas, na medida em que foi tornando-se hegemônica a ideo-logia do tratamento, elas foram obrigadas a admitir a capacidade de reabilitação de certos delinquentes.

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...esses delinqüentes representam verdadeiras monstruosidades psíquicas e não podem inspirar a ninguém a simpatia, que é o ponto de partida e o fundamento da piedade. Esses indivíduos colocam-se fora da humanidade, (...) que por isso mesmo, tem o direito de suprimi-los. (GARÓFALO, 1997: 163)

Para distingui-los e determinar a medida punitiva mais adequada a cada caso, recomenda a avaliação do grau de temibilidade20 do criminoso que ele define como:

...a perversidade constante e ativa do delinqüente e a quantidade de mal previsto que se deve temer por parte do mesmo. (GARÓFALO apud MECLER, 1996: 26)

Nesse momento aparece Ferri, o mais importante representante da Escola Positiva que – embora também procure as causas do crime nos homens – já logra uma maior sintonia com o pensamento sociológico/jurí-dico da época. Segundo ele:

Ao falar do delinqüente nato, a Escola Italiana não se refere a um tipo exclusivamente anatômico: o homem delinqüente é uma personali-dade completa, ao mesmo tempo biológica, psicológica e social. A delinqüência é produto de uma ordem tripla de fatores: fator antro-pológico, fator de meio físico e fator de meio social. Um homem pode ter os estigmas da delinqüência e, contudo morrer sem haver cometido jamais um delito, se encontrou em seu meio uma força de suficiente resistência. E vice-versa, um homem pode encontrar em seus antecedentes hereditários a força para resistir à influência de seu meio. (FERRI apud DEL OLMO, 2004: 92)

No entanto, atribuindo às diferentes classes sociais uma natureza espe-cífica e tratando as desigualdades sociais de forma espantosamente precon-ceituosa, Ferri divide as camadas sociais em três categorias:

...a classe moralmente mais elevada que não comete delitos porque é honesta por sua constituição orgânica, pelo efeito do senso moral (...)

20 Segundo Delgado esse conceito aparece pela primeira vez em Feuerbach, no ano de 1799, referindo-se à "qualidade de uma pessoa que faz presumir fundadamente que violará o Direito" (DELGADO, 1992: 94).

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[pelo] hábito adquirido e hereditariamente transmitido (...) mantido pelas condições favoráveis de existência social (...) Outra classe mais baixa [que] é composta de indivíduos refratários a todo sentimento de honestidade, porque privados de toda educação e impregnados (...) da miséria material e moral (...) [que] herdam de seus antepassados (...). A terceira classe [dos que] não nasceram para o delito, mas não são completamente honestos. (FERRI, apud RAUTER,1982: 29)

Como seus antecessores, Ferri também defende a tese da heredita-riedade e abraça a causa da defesa social21. Contudo, além de já operar mais propriamente com o conceito de periculosidade, dos quatro é ele quem mais se abre às justificativas terapêuticas para a individualização e indeterminação temporal das sanções, levando-se em conta as probabilidades de reincidência. Para o autor, somente a adaptação das sanções à natureza e à periculosidade do delinquente pode fornecer à sociedade a arma necessária ao sucesso da luta contra o crime. Segundo suas próprias palavras:

...na justiça penal trata-se de ver não se o delinqüente ofendeu ou não ‘um direito’ ou antes ‘um bem jurídico’ e transgrediu ou não ‘a proibição’ ou antes ‘a norma penal’, mas de procurar como e em virtude de que ele cometeu essa ação criminosa e qual a periculosi-dade que revelou em tal ação e quais as probabilidades que apresenta de voltar, depois da condenação, a uma vida regular e por isso qual sanção repressiva que lhe é mais conforme, não ‘ao crime’ por ele levado a efeito, mas à sua ‘personalidade de delinqüente’ pelo crime praticado. (FERRI, apud BISSOLI FILHO, 1998: 37)

Esse pequeno desvio vai levá-lo a defender que:

Esta distinción de los delincuentes según su peligrosidad deriva de que su conducta antisocial aparece determinada por tendencias congénitas o por atrofia del sentido moral, o por impulsos pasionales, o, en fin, por influjos prevalentes del ambiente familiar y social y por las deficiencias y defectos de los mismos sistemas carcelarios que son como estufas para el cultivo de los microbios criminales. Y sólo en virtud de esta distinción y clasificación psico-antropológica de los

21 Entre os livros de Ferri podemos citar A Defesa Social, de 1878 e A Escola Positiva do Direito Criminal, de 1883.

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delincuentes le será posible al legislador realizar en la práctica, con las sanciones represivas, aquel doble objetivo de la defensa social y de la corrección de los condenados, que los sistemas penales hasta ahora en uso no han podido conseguir, por estar orientados y apli-carse siguiendo el criterio exterior de la gravedad de los delitos y no el de la relación íntima de las diferentes condiciones personales de los culpables. (FERRI, apud RIBEIRO, 1998: 16)

A consolidação da ideologia do tratamento e a transnacionalização das políticas criminais

Essas teses, progressivamente adaptadas aos discursos e práticas da época e difundidas em um momento de grande efervescência nos meios jurídicos europeus, foram decisivas para a consolidação da criminologia como “ciência” e a para a progressiva construção da delinquência como uma condição tratável. A partir dos anos 1870 são realizados vários Congressos Penitenciários Internacionais, com o objetivo de definir normas universais para tratamento dos delinquentes e em 1889 é fundada a União Interna-cional de Direito Penal (UIDP), que em pouco tempo se torna a maior difusora dos princípios da defesa social22. O 1º Congresso Penitenciário Internacional ocorre em Londres em 1872, o 2º em Estocolmo, no ano de 1878 e o 3º em Roma, em 1885. Este último conta com as presenças de Lombroso, Garófalo e Ferri, que, no mesmo ano, também estão à frente do I Congresso Internacional de Antropologia Criminal pregando a teoria do criminoso nato. No II Congresso de Antropologia Criminal, em 1889, as teorias lombrosianas sofrem forte oposição por parte dos próceres da Escola Francesa de Sociologia (Gabriel Tarde, Lacassagne, Topinard e outros, que põem ênfase nos aspectos sociais da criminogênese) e os positivistas só retornam no IV Congresso, com o discurso um pouco mais adaptado às novas tendências punitivas – agora baseadas na ideologia do tratamento e defensoras da “reabilitação” dos delinquentes. Com essa virada estratégica, no VI Congresso (em 1906) comemora-se o jubileu científico de Lombroso 22 Segundo Del Olmo, a criação da União respondeu ao crescimento da delinquência e da reincidência e tinha como finalidade a coordenação das tendências reformadoras que vinham ganhando forma em diversos países do mundo. Até o início da 1ª Guerra Mundial, foram realizados 12 congressos e “neste processo destaca-se a atuação dos Estados Unidos, que em pouco tempo será um dos maiores propul-sores da transnacionalização do controle social” (DEL OLMO, 2004: 75).

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e no VII, e último Congresso de Antropologia Criminal, ainda comparece o debate sobre a questão racial e sua relação com os delitos, mas já predo-minam as visões sociológicas sobre o crime e ganha cada vez mais força a discussão sobre a sentença indeterminada. Quanto às discussões sobre o conceito de periculosidade, no Congresso Penitenciário Internacional de 1905 já se levanta a questão da periculosidade dos reincidentes, em 1907-1908 incluem-se os loucos e deficientes mentais entre os perigosos; em 1910, discute-se o problema da conciliação entre esta noção e as garan-tias de liberdade individual23; no mesmo ano se decide pela necessidade de estabelecer medidas especiais de segurança contra os delinquentes conside-rados perigosos e, em 1913, é feita nova definição das categorias que devem ser consideradas perigosas, incluindo agora os alcoólicos, os mendigos e os vagabundos (BRUNO, apud BISSOLI FILHO, 1996: 132).

Pouco a pouco, a ideia da periculosidade vai concernindo a todos os criminosos e delinquentes potenciais, de tal maneira que já não é necessário cometer um delito para ser considerado perigoso. Já que o verdadeiro fim do direito penal é a defesa social, é possível justificar a intervenção no seio das classes perigosas sem esperar pelo delito (BISSOLI FILHO, 1996: 136-137). De qualquer maneira, a 1ª Guerra Mundial acaba interrompendo a sequ-ência dos congressos internacionais e impede o IX Congresso Penitenciário previsto para 1915 em Londres. A UIDP reorganiza-se e passa a chamar-se Associação Internacional de Direito Penal e uma das questões em torno da qual girará o I Congresso desta entidade será: a medida de segurança deve substituir a pena ou simplesmente complementá-la (DEL OLMO, 2004)?

Quando, enfim, os positivistas deixam a cena, surge inicialmente a concepção dualista do Direito Penal (ou sistema do duplo-binário), ainda mais rigorosa que a anterior, fará coexistir, durante algum tempo, os dois tipos de resposta penal: a pena como retribuição ao crime e a medida de segurança a ser acrescentada à primeira nos casos considerados perigosos24. 23 Em 1910, no VIII Congresso Penitenciário Internacional realizado em Washington, é aprovada a sentença indeterminada e a individualização das penas e são estabelecidos “os princípios fundamentais dos métodos penitenciários modernos: nenhum indivíduo deve ser considerado incapaz de recuperação; é de interesse público fazer esforços para a recuperação dos delinquentes; esta recuperação deve ser alcançada sob a influência de uma instrução religiosa e moral, de uma educação intelectual e física, de um trabalho eficaz para garantir ao recluso a possibilidade de ganhar a vida no futuro; um período de tratamento relativamente grande é preferível às penas curtas de prisão (...); o tratamento reformador deve ser combinado com um sistema de liberdade condicional e deve ser adotado um sistema especial de tratamento para os criminosos adolescentes, reincidentes ou não”. Idem, p. 106. 24 Este sistema foi adotado pelo Código Penal italiano de 1930 e inspirou diversas outras legislações

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No entanto, logo novas mudanças são introduzidas e o sistema conhecido como duplo binário é substituído pelo vicariante. Com ele, penas e medidas de segurança passam a ser consideradas sanções de natureza diversa, apli-cadas para situações diversas: as primeiras para os imputáveis e as segundas, reservadas para os inimputáveis.

O estudo das causas dos crimes é transferido dos fatores biológicos e psicológicos para os sociais e a ideologia defensivista é retomada sob o disfarce de um discurso mais humanizado e aparentemente progressista. Finda a Segunda Guerra, nasce o movimento que viria a ser conhecido como a Nova Defesa Social e realiza-se o I Congresso de Defesa Social, que tinha como um de seus objetivos “a transformação do atual sistema penal e penitenciário no sistema educativo e curativo dirigido à personali-dade do indivíduo” (DEL OLMO, 2004: 118). Este modelo, que também se apoiará na noção de periculosidade e fará da indeterminação do tempo de reclusão uma de suas principais estratégias de controle25, introduzirá o sistema progressivo das penas, responsável tanto pelos efeitos supostamente reabilitadores, quanto inabilitadores, que deverão ser vistos como duas formas inseparáveis e complementares de gestão das populações carcerárias. As primeiras se aplicarão “a la gran mayoría, que tratan de hacer lo posible por salir cuanto antes y por sufrir lo menos posible mientras dure el calvario de la pena (y las otras) a la categoría de presos etiquetados como incorre-gibles, inadaptados, rebeldes y peligrosos” (BILBAO, 1994: 125). A partir de então, o instrumento que permitirá operar esse poder e discriminar/produzir os dois grupos será o exame cujo objetivo será prognosticar o risco de reincidência (ESPÍ, 1994).

Com a repaginação proporcionada pela nova versão defensivista das políticas criminais, mesmo tendo caído em descrédito, a Escola Positiva de Direito Penal deixará entre nós várias heranças: continuarão a fazer parte de nossas legislações o princípio de individualização das penas; os exames que visarão o estudo da personalidade e da história de vida dos condenados e que avaliarão a probabilidade de estes virem a reincidir no delito (exame

penais. No nosso país, foi adotado em 1940, até a reforma de 1984.25 Para Bilbao, a indeterminação do tempo, agora dentro da margem de variação estabelecida pelo legis-lador e da sentença prolatada pelo Juiz, continuará sendo “el fundamento de las estrategias del control carcelario que consiguen establecer cuánto tiempo, y en que condiciones, ha de permanecer el reo en la cárcel, mediante un complejo y pormenorizado sistema de dominación cujo motor es la tecnología disciplinaria” (BILBAO, 1994: 124).

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que será conhecido como criminológico); o conceito de periculosidade e as medidas de segurança por tempo indeterminado. Além disso, como legado dessa escola, manter-se-á a tradição, inteiramente maniqueísta de perceber os que delinquem como um outro perigoso, pernicioso à sociedade, desu-mano, verdadeiro monstro e por isso incapaz de viver entre os homens de bem. Dessa maneira, será sempre possível justificar para eles os tratamentos mais cruéis e ainda garantir a aprovação da opinião pública. Afinal, como nos diz Chomsky, “quando você oprime alguém precisa alegar alguma coisa. A justificativa acaba sendo o nível de depravação e vício moral do oprimido (...). Examine a conquista britânica da Irlanda, a primeira das conquistas coloniais ocidentais. Ela foi descrita nos mesmos termos que a conquista da África. Os irlandeses eram uma raça diferente, não eram humanos, não eram como nós. Eles tinham que ser esmagados e destruídos” (CHOMSKY, apud COIMBRA, 2001: 63). É o que veremos nas doutrinas de segurança nacional das ditaduras militares latino-americanas, nas políticas transnacio-nais de combate às drogas e na guerra ao terrorismo.

Segundo Dornelles, as matrizes deste pensamento vão se reproduzir nos discursos neopositivistas de corte pseudossociológico que mascarando os determinantes socioeconômicos desse tipo de produção e partindo das cate-gorias normal/anormal para explicar os comportamentos e situações sociais ‘desviantes’ (como morar em áreas irregulares, exercer atividades informais ou praticar atos considerados delituosos), entenderão o crime como resultado

...de um ambiente disfuncional patológico, como um foco irra-diador do contágio de um mal que se alastra para as ‘áreas saudáveis’ da sociedade, [quando] os mecanismos de autodefesa imunológica falha[m] na sua tarefa de proteção do ‘corpo social’. (DORNELLES, 1997)

A subversão e a droga na América Latina

Chegamos então ao século XX quando, sob o impacto das duas grandes guerras mundiais, é criada a Organização das Nações Unidas (ONU)26. Pouco a pouco, são desenvolvidos diversos instrumentos legais 26 Como nos mostrará Del Olmo (2004), a partir da criação das Nações Unidas, o processo de transnacio-nalização do controle social continuará a ser gestado sob a coordenação desse novo organismo. Em 1929

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para a proteção internacional dos direitos humanos, entre os quais viriam a se destacar a Declaração Universal de Direitos Humanos, os Pactos Inter-nacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos, Cruéis, Desumanos e Degradantes, entre outros27. Paralelamente, a partir dos anos sessenta, são implantadas ditaduras militares em diversos países das Américas e, sob a alegação da necessidade de fortalecer o Estado contra o comunismo, assiste-se à emergência de uma nova doutrina de segurança (Doutrina de Segurança Nacional), que elegerá como inimigo número um a figura do subversivo. Mediante a lógica da guerra e a construção de um discurso de emergência, as polícias são militarizadas e aparelhadas para o combate interno; as legislações são reformuladas de maneira a garantir um ilimitado poder punitivo e se legitima um tratamento diferenciado, segundo o grau de perigo representado pelo inimigo. Nesse momento, os cárceres passam a receber também presos políticos; as penas de morte e de banimento voltam a fazer parte dos Códigos Penais; a tortura – que nunca deixara de ser utilizada contra as parcelas desfavorecidas da socie-dade – é institucionalizada e passa a ser instrumentalizada para o controle da subversão; sem falar nas detenções ilegais e sem processo e no sequestro, execução e desaparecimentos forçados por causas políticas28.

Terminadas as ditaduras, termina também a legitimação oficial à prática da tortura, que, no entanto, continua a ser praticada e a amparar-se na certeza da impunidade. Após um breve interregno, no qual os sistemas penais começam a adequar-se às novas regras do Estado de Direito e as forças progressistas se esforçam para livrar nossa legislação do entulho auto-ritário, a cena política volta a convulsionar-se e as promessas democráticas nem bem começam a tornar-se realidade e já assistem à sua demolição. Com a implantação das reformas neoliberais, o capitalismo ganha novo impulso

a Comissão Penal e Penitenciária redigirá as regras gerais para o tratamento dos reclusos, que serão ratifi-cadas pela Sociedade das Nações em 1934 e servirão como base para a formulação das Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, posteriormente adotadas pela ONU em 1955.27 Progressivamente são também estabelecidos diversos dispositivos internacionais para garantir um tratamento legal e humano para os presos. Ver as Regras Mínimas da ONU para o Tratamento dos Presos de 1955, o Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei de 1979 e os Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão de 1988. Disponível em http://www.dhnet.org.br.28 A esse respeito ver Arquidiocese de São Paulo, Brasil: nunca mais, RJ, Editora Vozes, 1985 e Clínica e Polí-tica: subjetividade e violação dos direitos humanos, organizado por Cristina Rauter, Eduardo Passos e Regina Benevides, Rio de Janeiro, Editora Te Corá, 2002.

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e passa a dispensar os ditadores de plantão. As novas regras da economia reduzem os investimentos em políticas públicas inclusivas, ao mesmo tempo em que aumentam as taxas de desemprego e emprego precário, tornando sem efeito as antigas estratégias dos trabalhadores e lançando em situação de total vulnerabilidade um contingente antes inimaginável de pessoas. Não tendo mais sequer como reintegrá-las ao mercado formal de trabalho, as políticas de segurança migram da ideologia de segurança nacional para a ideologia da segurança urbana e inventam outra função para as prisões29. Sem perspec-tivas de vida, legiões de jovens são empurradas para o tráfico, morrendo antes dos 25 anos ou engordando as estatísticas penitenciárias30. Como apontam Batista (1998) e Baratta (1997), não é a toa que nesse momento as drogas se convertem na nova justificativa para a criminalização da pobreza e a reedição de legislações de emergência: para esta nova ordem, é muito mais funcional alimentar o medo e o conflito quebrando todas as antigas formas de sociabi-lidade e solidariedade. Se, como nos diz Bauman, em breve 20% da força de trabalho será suficiente para mover a economia, o que fazer com os outros 80% da faixa vulnerável ou excluída, que já não têm mais utilidade? É preciso ter um pretexto para tornar mais repressivo o controle social punitivo. É preciso, portanto, gerar novos mecanismos reguladores da insatisfação da sociedade, sendo os principais o encarceramento maciço e a manipulação da insegurança e do medo (ZAFFARONI, 1997; BAUMAN, 2000).

Movidas por esses novos desígnios, as políticas de segurança pública intensificam o controle, o encarceramento e até o extermínio das classes vistas como perigosas, atingindo especialmente aos pobres, jovens e negros, moradores das áreas pobres. Para sociedades excludentes e elitistas, onde “segurança pública não significa segurança e bem-estar do público, mas, ao contrário, expressa a manutenção de uma ordem desigual e injusta” (DORNELLES, 1997: 113), uma polícia violenta e corrupta é absoluta-mente funcional. Assim, favelas e bairros populares são invadidos a qualquer hora e sob qualquer pretexto por uma polícia que extorque, forja flagrantes, tortura e mata, e é nesse contexto que vai sendo construído o imaginário 29 Segundo Bauman, nas atuais circunstâncias, o confinamento é uma alternativa ao emprego, uma maneira de neutralizar uma parcela considerável da população que não é necessária à produção e para a qual não há trabalho ao qual se reintegrar (BAUMAN, 1998: 119-120).30 De acordo com os dados do PRODERJ referentes ao ano 2000, 96,0% da população prisional de nosso Estado era constituída por homens, 62,6% por pardos e negros, 67,1% por analfabetos ou apenas alfabetizados, 37,9% tinha idade inferior a 25 anos e 59,4% estava presa por porte (5,1%) ou tráfico de drogas (54,4%).

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social que permite que grande parte de nossa população seja percebida como perigosa e não como beneficiária dos direitos mais essenciais. Identificá-los, pois, como monstros indesejáveis faz parte desse grande empreendimento de reengenharia social.

Tendo em vista as novas subjetividades que se querem produzir, a gestão midiática do medo e da indiferença cumpre um papel fundamental. A violência é oferecida como espetáculo diário aos consumidores em busca de entretenimento e adrenalina, para os quais a exposição repetida a cenas de violência promove ao mesmo tempo terror e banalização. Para isso, espe-taculariza-se e cria-se um ambiente de pânico e comoção social generali-zados por um lado, ou banaliza-se e justifica-se a violência por um outro. O objetivo é a aprovação da opinião pública a um tratamento maniqueísta da violência de acordo com a classe social da vítima ou a posição social do perpetrador. Assistimos, então, a uma divisão entre a ‘cidade legal’ e a ‘cidade ilegal’ (DORNELLES, 1997) e à configuração de uma situação absoluta-mente conflagrada que garante que determinados territórios passem a ser tratados como se estivessem fora do ordenamento jurídico. Adotando-se, mais uma vez, a lógica da guerra, os excessos são considerados inevitáveis, seus alvos preferenciais são tratados como ameaças à segurança dos verda-deiros cidadãos ,e nesses locais onde a ordem jurídica normal é suspensa – e a suspensão é tornada a regra –, o Estado se comporta como se estivesse desobrigado a observar a lei. Desprovidos de proteção jurídica, os habi-tantes destas áreas, especialmente os jovens, pobres e negros, podem ser presos por mera suspeição ou até eliminados, se assim a segurança da socie-dade o exigir31. Pelos mesmos motivos, ganham vulto os movimentos que pedem mais lei e ordem, abusam-se das medidas preventivas e cautelares32, entopem-se os manicômios judiciários de pequenos usuários/revende-dores de drogas, clama-se pela redução da maioridade penal ou aplicam-se simulacros de medidas de segurança a adolescentes infratores33. Coerente-mente com este novo diagrama, vemos também aparecer uma nova onda de 31 A este respeito, recomendamos a leitura de Giorgio Agambem. Ver especialmente Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002 e Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.32 A prisão preventiva é uma medida de natureza cautelar que implica na privação da liberdade antes mesmo da sentença condenatória. Segundo Zaffaroni, cerca de ¾ da população carcerária latino-ameri-cana é constituída por presos à espera de julgamento. Ver Zaffaroni, 1997: 70-7133 Refiro-me à Unidade Experimental de Saúde inaugurada em 2006, no Estado de São Paulo, para abrigar adolescentes autores de atos infracionais, que tiveram a medida convertida em medida protetiva, por serem portadores de diagnóstico de transtorno de personalidade.

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pesquisas buscando a correlação entre a conduta criminosa e/ou violenta e as constituições psíquicas ou neurobiológicas, o retorno dos discursos peri-culosistas e contrários à reforma psiquiátrica, o aparecimento de extensa campanha midiática pela volta do modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico e o incremento da utilização dos saberes psi para a avaliação, gestão técnica e até o interrogatório dos inimigos da vez (KOLKER, 2009).

É quando os discursos periculosistas, nascidos no século anterior, tornam-se insuficientes. Para sustentar as políticas de encarceramento em massa que se disseminam pelo mundo afora, é preciso adaptar a noção de periculosidade às novas estratégias de controle social, que agem mais difusa-mente. Será, então, formulado o conceito de risco social, que permitirá uma significativa ampliação na escala da intervenção das medidas preventivistas34. Segundo Pegoraro, a

…gestión del riesgo implica la posibilidad de multiplicar las inter-venciones, abarcando así ya no la ‘peligrosidad’ – siempre encarnada en algún individuo – sino factores, ambientes, situaciones, que se convierten en blanco de tales intervenciones ya sea preventivas o represivas (PEGORARO, 1999: 227)35.

De acordo com De Giorgi, emergirá uma política criminal preocu-pada em isolar e gerir em vez de reformar, de tal forma que “as novas estra-tégias penais se caracterizarão cada vez mais como dispositivos de gestão do risco e de repressão preventiva das populações consideradas portadoras deste risco. Mais do que aprisionar criminosos perigosos individuais, isto é, de neutralizar fatores de risco individual, trata-se agora de gerir, ao nível de populações inteiras, uma carga de risco que não se pode (e, de resto, não se está interessado em) reduzir” (DE GIORGI, 2006: 97). E é nesse momento que a própria criminalidade violenta passa a ser estratégica36, justificando

34 O conceito de risco também servirá ao aggiornamento da psiquiatria em tempos de Contra-Reforma Psiquiátrica: veja-se, por exemplo, a proposta do Instituto de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes de prevenção de doenças mentais em adultos a partir de ações voltadas à infância e adolescência (http://inpd.org.br/blog/2009/04/).35 Também para Sotomayor, “dado el viraje que se está desarrollando en las sociedades tardo-capitalistas el control social no se dirige ahora sobre el sujeto individualmente considerado, sino sobre grupos enteros, poblaciones y ambientes, y la peligrosidad va dejando de ser, en general una noción referida a un individuo en particular para serlo respecto de determinadas ‘situaciones o grupos de riesgo’” (SOTOMAYOR, 1996: 145).36 Para Cristina Rauter “O dispositivo da criminalidade se constitui hoje numa das principais ferramentas de controle social”. Segundo ela, “para pensar o fenômeno da criminalidade no contemporâneo, temos

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a militarização da segurança pública, a tolerância com as práticas ilegais e violentas da polícia, o endurecimento penal e a criação de regimes discipli-nares cada vez mais duros (que na prática são ainda piores que as antigas celas de isolamento), quando não legitimam a tortura e a execução sumária dos etiquetados como perigosos.

A influência do positivismo nas instituições e legislação penal brasileira

Todas essas discussões sobre periculosidade e risco envolveram os meios jurídicos e acadêmicos brasileiros, produzindo efeitos em nossas legis-lações e instituições desde o alvorecer de nossa produção criminológica.

Com a proclamação da República, que permite uma abertura ainda que virtual dos canais de poder a representantes da sociedade civil; com a abolição da escravatura, que põe fim ao impedimento legal à participação dos descendentes africanos na vida urbana; e com a imigração estrangeira que traz para o Brasil trabalhadores com mais consciência de classe, novas estratégias tornam-se necessárias para deter os reclamos por cidadania dessa parcela da sociedade e justificar o tratamento desigual a elas conferido. Não por acaso, a mais importante delas foi a justificativa científica para o racismo, que vinha legitimar a crença na superioridade da raça branca e marcar as discussões sobre o tema da defesa social em nosso país (CORRÊA, 2001).

Nos períodos de crises sociais que se seguiram à proclamação da Repú-blica, primeiro as teorias positivistas italianas e posteriormente as teorias eugenistas alemãs vão oferecer as ferramentas teóricas necessárias ao controle social das classes potencialmente perigosas. Diversos trabalhos são escritos e vários congressos são realizados demonstrando a periculosidade dos negros e das diversas categorias marginais, como as crianças abandonadas, os loucos, os homossexuais, os alcoólatras, as prostitutas e os criminosos.

Um bom exemplar dessa safra de teóricos foi Nina Rodrigues que, atribuindo à raça negra a debilidade física e mental de nosso povo e questio-

que considerar como parte de uma mesma engrenagem os discursos, as práticas, as instituições onde se operam essas práticas e esses discursos e os efeitos subjetivos que estes produzem no campo extra-institucional. Assim, consideramos como fazendo parte desse dispositivo o medo da criminalidade que se espalha nas cidades, as demandas punitivas produzidas através de discursos lei e ordem dissemi-nados pela mídia, os efeitos subjetivos dessas campanhas, incluindo-se aqueles menos diretos, como a produção da apatia e o desânimo indo até o surgimento de múltiplas patologias que irão levar à utilização de medicação psiquiátrica, patologias somáticas, etc” (RAUTER, 2009: 213).

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nando a noção de livre arbítrio, define os graus de irresponsabilidade social de acordo com parâmetros de raça, idade e sexo e cultura. Coerentemente com os ideais positivistas verde-amarelos, ele afirma que “a igualdade polí-tica não pode compensar a desigualdade moral e física” e pergunta:

Pode-se exigir que todas estas raças distintas respondam por seus atos perante a lei com igual plenitude de responsabilidade penal? (...) Porventura pode-se conceber que a consciência do direito e do dever que têm essas raças inferiores seja a mesma que possui a raça branca civilizada? (...) A escala vai aqui do produto inteiramente inaproveitável e degenerado, ao produto válido e capaz de superior manifestação de atividade mental. (apud CORRÊA, 2001: 141)

Para ele, que condenava a “estúpida panaceia da prisão celular” (CORRÊA, 2001: 145), a melhor maneira de resolver o problema dessas populações consideradas deletérias para o desenvolvimento do país era o isolamento em asilos. Outro bom exemplo desse movimento foi o acordo firmado entre os governos dos países do Cone Sul, estabelecendo a obrigação de trocarem informações a respeito dos dados individuais das pessoas consi-deradas perigosas37. Mais do que identificar e classificar os tipos perigosos, a escola positivista brasileira propõe, portanto, uma espécie de cadastro geral dos perigosos. Os anos passam e três décadas depois os positivistas brasi-leiros ainda continuam em ação. Apresentando pesquisas que “comprovam” a possibilidade de se prevenir o crime, Leonídio Ribeiro observa que

... isso seria possível desde que se lograsse classificar biotipologica-mente, desde a primeira infância, todos os indivíduos, especialmente aqueles que, pela sua constituição e tendências, pudessem ser consi-derados como pré-delinqüentes.38 (apud CORRÊA, 2001: 187)

Estas ideias – que se colocavam contra os ideais liberais – pressio-navam a favor de legislações que incorporassem as medidas preventivistas. Assim, ao mesmo tempo em que, tardiamente, os nossos primeiros códigos

37 Ao que Corrêa e Del Olmo indicam, o esforço de transnacionalização da segurança pública imposto pelos EUA à América Latina começou bem antes da terrível Operação Condor, que nos anos 70 reuniu os governos militares do Brasil, Paraguai, Uruguai, Argentina, Chile e Bolívia.38 Como resultado dessas discussões foi instituído em nosso país o sistema nacional de identificação (as carteiras de identidade) e o cadastramento datiloscópico.

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penais introduziam os princípios liberais, eram introduzidos também os primeiros traços dos ideais positivistas. Para o Código Republicano de 1890, que antecedeu a maior parte dessas discussões, não eram considerados criminosos os indivíduos isentos de culpabilidade em virtude de affecção mental, como também estavam livres de pena os menores de 9 anos, os maiores de 9 e menores de 14 que não tinham discernimento, os porta-dores de imbecilidade nata, enfraquecimento senil e os surdos-mudos39. Em compensação, para os maiores de 9 e menores de 14 que houvessem obrado com discernimento, a legislação previa o recolhimento em estabelecimentos disciplinares industriais; para os vadios e capoeiras reincidentes, a inter-nação em colônias penais; para os toxicômanos, a internação curativa e para os ébrios habituais que fossem nocivos ou perigosos a si próprios, a outrem ou a ordem pública, a internação em estabelecimento correcional (RIBEIRO, 1998: 12-13).

Mas é no Código Penal de 1940, inspirado no Código Italiano de 1930, que verdadeiramente se pode ver a força da influência positivista. Na Exposição de Motivos do Ministro Campos, lê-se o seguinte:

5. É notório que as medidas puramente repressivas e propriamente penais se revelaram insuficientes na luta contra a criminalidade, em particular contra as suas formas habituais (no sentido de reinci-dentes). Ao lado disto existe a criminalidade dos doentes mentais perigosos. Estes, isentos de pena, não eram submetidos a nenhuma medida de segurança ou de custódia, senão nos casos de imediata periculosidade. Para corrigir a anomalia, foram instituídas, ao lado das penas que têm finalidade repressiva e intimidante, as medidas de segurança. Estas, embora aplicáveis em regra post delictum, são essen-cialmente preventivas, destinadas à segregação, vigilância, reedu-cação e tratamento dos indivíduos perigosos, ainda que moralmente irresponsáveis. (OLIVEIRA, 1987: 7)

Esse Código, que incorporava o Princípio de Individualização das Penas e o sistema do duplo binário, introduziu também o critério da peri-culosidade para a aplicação da pena, consagrou o dispositivo da medida de segurança a ser cumprido em estabelecimento especial e ofereceu aos juízes

39 Os loucos, como no Código anterior, eram entregues às suas famílias ou recolhidos a hospitais de alie-nados, mas somente se assim o exigisse a segurança da ordem pública.

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a liberdade de escolher entre os diversos tipos de sanção40 ou aplicar cumu-lativamente sanções de espécies diversas. Por outro lado estabeleceu, como o seu modelo europeu, que

... entre o mínimo e o máximo, ele [o Juiz] graduará a quantidade de pena de acordo com a personalidade e os antecedentes do criminoso, os motivos determinantes, as circunstâncias e as conseqüências do crime. Em suma, individualizará a pena, adotando a quantidade que lhe pareça mais adequada ao caso concreto. (OLIVEIRA, 1987: 7)

Para efeitos de individualização, o Código de 1940 distingue os primá-rios e os reincidentes, as circunstâncias agravantes e atenuantes e introduz uma aplicação subjetivista da pena. Assim, é estabelecido que:

24. O Juiz, ao fixar a pena, não deve ter em conta somente o fato crimi-noso, nas suas circunstâncias objetivas e conseqüências, mas também o delinqüente, a sua personalidade, seus antecedentes, a intensidade do dolo ou grau de culpa e os motivos determinantes (art. 42). O réu terá de ser apreciado através de todos os fatores endógenos e exógenos, de sua individualidade moral (...) e da sua maior ou menor desatenção à disciplina social. Ao Juiz incumbirá investigar, tanto quanto possível, os elementos que possam contribuir para o exato conhecimento do caráter ou índole do réu – o que importa dizer que serão pesquisados o seu curriculum vitae, as suas condições de vida individual, familiar e social, a sua conduta contemporânea ou subse-qüente ao crime, a sua maior ou menor periculosidade (probabilidade de vir ou tornar o agente a praticar fato previsto como crime). Esta, em certos casos, é presumida pela lei41, para o efeito da aplicação obrigatória da medida de segurança; mas fora desses casos, fica ao prudente arbítrio do Juiz o seu reconhecimento. (Idem, art. 77)

Importante para a aplicação deste instrumento legal é a avaliação da responsabilidade penal que deverá ser feita mediante perícia médica. 40 As sanções estabelecidas por esse novo Código são: reclusão, detenção, multa, perda de função pública, interdições de direitos, publicação de sentença e medidas de segurança.41 Para os efeitos dessa lei são considerados presumidamente perigosos: os inimputáveis e semi-imputá-veis que nos termos do artigo 22 são isentos de pena; os ébrios habituais condenados por crime come-tido em estado de embriaguez; os reincidentes em crime doloso e os condenados por crime cometido através de associação, bando ou quadrilha de malfeitores.

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Adotando o sistema biopsicológico de avaliação, o Código estabeleceu, em seu artigo 22:

É isento de pena o agente que, por doença mental, ou desenvolvi-mento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato, ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (OLIVEIRA, 1987: 15)

Atribuindo à pena a função de retribuir o dano e corrigir o condenado, o Código de 1940 impõe como condição para a concessão de livramento condi-cional não apenas que o preso apresente bom comportamento, mas também, que fique demonstrada através de exame a cessação da sua periculosidade. Por sua vez, para que o internado por medida de segurança seja desinternado, a mesma condição será exigida. As medidas de segurança, definidas como medidas de prevenção e assistência social e destinadas àqueles que, sendo ou não penalmente responsáveis, forem considerados perigosos, serão impostas por tempo indeterminado e deverão perdurar até que fique comprovada, através de exame pericial, a cessação do estado perigoso (OLIVEIRA, 1987: 24).

Com a revisão de 1984 e a entrada em vigor da Lei de Execuções Penais, uma nova política criminal e penitenciária começa a ser desenhada. Segundo a Exposição de Motivos da Nova Parte Geral, o objetivo é restringir a pena privativa de liberdade aos casos de verdadeira necessidade. São reco-nhecidos os altos custos dos estabelecimentos penais e os efeitos deletérios da prisão para os infratores primários e ocasionais – que perdem paulatinamente a aptidão para o trabalho e são expostos a situações de violência e corrupção altamente danosas – e é proposto, de forma manifestamente cautelosa, um novo elenco de penas alternativas à reclusão. O Princípio de Individualização das Penas é aperfeiçoado e são estabelecidos os instrumentos e os proce-dimentos que fornecerão as bases para um tratamento individualizado do preso. É também aperfeiçoado e ampliado o sistema de progressão/regressão das penas, que agora poderão ser cumpridas em regime fechado, semiaberto ou aberto, de acordo com as condições do preso. Desaparece da legislação o sistema do duplo binário dispensando a aplicação da medida de segurança aos imputáveis e, aos semi-imputáveis, passa a ser aplicada a pena ou a medida de segurança, de acordo com a necessidade de cada caso. Quanto às medidas

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de segurança para os portadores de transtornos mentais, praticamente não há nenhuma diferença. Apesar de o Código ter excluído a periculosidade presumida, o conceito continua a ser aplicado aos inimputáveis42. Isso signi-fica que os exames de verificação de cessação de periculosidade deixam de ser aplicados aos imputáveis, mas são substituídos pelos exames criminoló-gicos, que vão ser usados para instruir os pedidos de livramento condicional e progressão de regime, devendo informar se o interno está em condições de receber o benefício pleiteado43.

Com a Lei de Execução Penal, são estabelecidas as novas condições que devem ser garantidas aos presos e internados para o cumprimento de suas sanções. Estes passam a ter direito à assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa. Curiosamente não há menção à assistência psicológica. Para orientar a individualização da execução penal, os presos condenados devem ser classificados segundo os seus antecedentes e perso-nalidade. Esta classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação (CTC), presidida pelo Diretor e composta, no mínimo, por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social, que terão como atribuições estudar e propor medidas que aprimorem a execução penal, acom-panhar a execução das penas, elaborar o programa individualizador, apurar as infrações disciplinares e realizar os exames criminológicos (exame cujo obje-tivo é avaliar as condições dos presos com direito a livramento condicional ou progressão de regime). Os condenados à pena privativa de liberdade estão, por sua vez, obrigados ao trabalho, com finalidade produtiva e educativa, e sob remuneração. Além disso, têm o direito de descontar um dia de prisão para cada três dias trabalhados. Devem também se submeter à disciplina estabele-cida e, no caso de infringir as regras, são sujeitos a sanções disciplinares.

Isto é o que determinava a lei brasileira, pelo menos até dezembro de 2003, quando entrou em vigor a Lei 10.792, alterando alguns artigos da Lei no 7.210, de 11 de junho de 1984, aumentando o poder discricionário

42 Para um melhor exame do tema das medidas de segurança, ver Mattos, 2006. Segundo o autor, “o portador de sofrimento mental que comete crime é o exemplo mais acabado, literalmente, tanto de um direito penal do autor como do direito penal do inimigo. Ao inimigo, convém ser imposta a ausência de limites constitucionais da pena, sentido estrito. Deve e pode ser julgado, não de acordo com a sua culpa-bilidade, mas sim de acordo com a sua presumida periculosidade. Isto é, não se julga o fato cometido (...), mas o ‘perigo’ que o agente pode ir a representar” (MATTOS, 2006: 156).43 De acordo com o parágrafo único do artigo 83 deste Código, "para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordi-nada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir".

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dos diretores prisionais, tornando legal um regime disciplinar inquestiona-velmente cruel e reduzindo consideravelmente o papel das CTCs, conside-radas muitas vezes como uma fundamental instância de mediação entre os presos e a administração prisional. Com essa lei deixam de ser obrigatórios os exames criminológicos, responsáveis por um dos principais gargalos que lentificavam os trâmites judiciários na obtenção dos livramentos condicionais e progressões de regime. No entanto, esta, que poderia ter sido uma medida interessante – uma vez que tais exames cultivam uma perspectiva periculo-sista – terminou por jogar fora o bebê junto à água do banho, limitando ainda mais o papel dos psicólogos nas prisões. Por outro lado, seguindo o exemplo norte-americano que vem espalhando cárceres de segurança máxima por toda a América e alterando a legislação penal de maneira a ampliar o poder da instância executiva, a lei 10.792/03 introduz na execução penal o famigerado Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que inclui no cardápio de punições (inclusive para os presos provisórios) o isolamento em cela individual por até trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada.

Prisões e violência

Nossas prisões são muito diferentes do que estabelece a Lei de Execução Penal. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, até 2008 tínhamos cerca de 450 mil presos nas delegacias e prisões brasileiras44. Por falta de vagas nas unidades penais, diversas pessoas literalmente amonto-adas cumprem suas penas, parcial ou totalmente, em delegacias ou casas de custódia. Muitas nunca ouviram falar em CTC e nunca foram assistidas por psicólogo ou assistente social. Como bem o diz Cristina Rauter, a realidade de nossas prisões é muito pouco panóptica. Nossas prisões são na verdade depósitos, mais ou menos caóticos, cuja finalidade parece ser apenas a exclusão e o castigo (RAUTER, 1982: 23-24). Mais de 90% não têm acesso a advogado particular e, por falta de assistência jurídica ou devido à lentidão da Justiça brasileira, muitos continuam presos mesmo após terminada a pena, ou cumprem-na em regime fechado, apesar de terem direito a livra-44 Segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a população carcerária brasileira cresceu 89% entre os anos de 2000 e 2008. De acordo com o site do CNJ, no período referido, o total de presos provi-sórios ou condenados em estabelecimentos prisionais ou em delegacias policiais saltou de 232.755 para 440.013. Pelo menos 50% ainda não foi a julgamento.

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mento condicional ou a cumpri-la em regime mais brando. Passam meses ou anos em celas desumanas e infestadas de baratas e ratos; são expostos a todo tipo de violência (entre os próprios presos ou por parte do corpo funcional); geralmente recebem alimentação insuficiente e de má qualidade, sem falar nas muitas vezes em que esta é deixada intencionalmente ao sol para que estrague. O fornecimento de água é precário, as caixas de água nunca são lavadas e, na falta de água corrente, os presos frequentemente armazenam água para o banho e preparo de pequenas refeições em latões enferrujados e imundos. Apesar de viverem em condições absolutamente insalubres, a assis-tência médica oferecida aos presos geralmente é precária45, obstruída ou até cobrada por atravessadores e até a implantação do Plano Nacional de Saúde do Sistema Penitenciário não contava com a cobertura do SUS46. São poucas as unidades penais que oferecem oportunidade de estudo ou trabalho para os presos, as punições por infração disciplinar são manejadas sádica e arbi-trariamente e a tortura individual ou coletiva é cometida impunemente. Em nome da segurança da unidade, frequentemente os presos têm os seus objetos pessoais examinados e destruídos e seus familiares, que segundo a lei não podem ser atingidos pela pena, são frequentemente tratados com desrespeito e obrigados a submeter-se às revistas corporais47 (KOLKER, 2002: 89-97).

Se, como foi dito acima, os formuladores da Lei de Execução Penal pretenderam algum dia restringir a pena privativa de liberdade aos casos de verdadeira necessidade e reconheceram os efeitos deletérios das prisões, não foi essa a tendência que se firmou nas décadas que se seguiram. Pelo contrário, no Brasil – como aliás na maioria dos países –, lado a lado com a progressiva formulação dos instrumentos de proteção dos direitos humanos, começaram também a circular os discursos sobre o medo da violência e do crime que

45 A assistência médica oferecida aos presos do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro é a que oferece a melhor estrutura (ambulatorial e hospitalar) e tem o maior número de programas (DST-Aids, tuberculose, prevenção ao câncer ginecológico etc.). Ainda assim, fazer chegar esses serviços aos presos é um desafio nem sempre bem sucedido.46 Refiro-me à Portaria Interministerial Nº. 1.777, de 09/09/2003, que estabelece que em cada unidade prisional haverá uma equipe integrada por médico, psicólogo, enfermeiro, assistente social, entre outros, responsável por ações de prevenção dos agravos psicossociais decorrentes do confinamento e de atenção às situações de prejuízo à saúde decorrente do uso de álcool e drogas, na perspectiva da redução de danos. Ver em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/Portaria%20n%201.777%20de%202003.pdf.47 Por outro lado, os alojamentos dos guardas – igualmente desassistidos pelo Estado – frequentemente são pouco melhores do que os dos presos; a relação entre o número de guardas e presos é sempre muitís-simo abaixo da recomendável, agravando o stress dos funcionários, e é alto o número de agentes com história de alcoolismo e abuso de drogas, ou que respondem a processos.

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viriam a alimentar as campanhas pela lei e pela ordem48, aumentando muito os índices de encarceramento, agravando cada vez mais as penas, exigindo cada vez mais rigor no trato com os bandidos, que por sua vez passam a responder com cada vez mais ousadia e violência, inclusive matando ou torturando49 suas vítimas. A criatura fugia, enfim, ao controle do criador e o pânico, tornado real, tomava conta das cidades. Para sustentar as novas demandas de segurança, nossos legisladores entraram em ação e, entre as principais leis produzidas para atender estes reclamos, podemos citar a Lei dos Crimes Hediondos50 e a lei que criou o RDD.

A atuação dos psicólogos nas unidades prisionais

O dia-a-dia dos psicólogos nas prisões transcorre em meio a centenas de papéis. São infindáveis laudos, relatórios ou pareceres, feitos ou por fazer, e mesmo assim, a qualquer hora que entremos nas galerias, ouviremos dos presos as eternas queixas de que ainda não foram chamados para fazer seus exames. Pudera, as unidades penais de nosso país costumam alojar cerca de 500 presos, algumas atingem a marca dos 1000 e com sorte as equipes técnicas chegam a contar com dois profissionais da área de psicologia. Além disso, há as inúmeras sessões da CTC para apurar as infrações disciplinares. Assoberbados de tarefas disciplinadoras ou de juízos a emitir sobre os presos, a maioria dos psicólogos das unidades prisionais fica impossibilitada de realizar algum trabalho mais transformador nessas comissões ou estabelecer outro tipo de relações institucionais com os demais funcionários, internos e/ou seus familiares. Além disso, como vimos acima, sequer está previsto na

48 Segundo Zaffaroni, a capacidade reprodutora de violência dos meios de comunicação é enorme: na necessidade de uma criminalidade mais cruel para melhor excitar a indignação moral, basta que a tele-visão dê exagerada publicidade a vários casos de violência ou crueldade gratuita para que, imediata-mente, as demandas de papéis vinculados ao estereótipo assumam conteúdos de maior crueldade e, por conseguinte, os que assumem o papel correspondente ao estereótipo ajustem a sua conduta a esses papéis (ZAFFARONI, apud BATISTA, 1998).49 Uso aqui esta terminologia utilizada pela legislação brasileira, embora eu defenda a definição esta-belecida na Convenção da ONU Contra a Tortura, que reserva esta tipificação apenas aos crimes que envolvam agentes do Estado.50 A Lei 8.072 de 25 de julho de 1990 incluiu o tráfico de drogas no rol de crimes hediondos e estabe-leceu que os condenados por crimes hediondos deveriam cumprir suas penas integralmente em regime fechado. Com a decisão do STF de 2006 de que tal dispositivo violava o Princípio de Individualização da Pena, a lei foi alterada e os condenados aos crimes previstos neste artigo passaram a ter direito à progressão de regime após o cumprimento de 2/5 da pena, quando primários, ou 3/5, quando reinci-dentes (Lei nº 11.464/07). Desde então, foram apresentados no Congresso 17 projetos que visam regula-mentar ou impedir a progressão de regime para pessoas condenadas por crimes hediondos.

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Lei de Execução Penal a assistência psicológica aos reclusos. Por outro lado, os psicólogos, assim como os demais técnicos que trabalham nessas institui-ções, dificilmente têm contacto com o funcionamento interno das prisões. Geralmente por problemas de segurança ou por falta de tempo, mas muitas vezes por desinformação ou desinteresse, não costumam ter acesso às gale-rias, desconhecendo e/ou silenciando acerca dos reais problemas dos esta-belecimentos onde trabalham, inclusive no que diz respeito às costumeiras sessões de tortura (KOLKER, 2002). Todas essas questões, no entanto, estão ainda à espera de uma discussão mais profunda, tanto no próprio sistema penal, como nos sindicatos e conselhos profissionais.

Falemos, pois, dos antigos Exames de Verificação de Cessação de Periculosidade (EVCP), ou atuais exames criminológicos, tornados dispen-sáveis pela Lei 10.792/200351. Como dizia Rauter em 1989, a partir de 1984, com a consagração do princípio de individualização das penas, ampliavam-se as “oportunidades em que um condenado deve[ria] ser tornado alvo de uma avaliação técnica” e cresciam em importância “os procedimentos que visa[vam] diagnosticar, analisar ou estudar a personalidade e a história de vida dos condenados”, com “o objetivo de adequar o tratamento peniten-ciário às características e necessidades de cada preso” ou de “prever futuros comportamentos delinqüenciais” (RAUTER, 1989: 9).

Buscando, naquele momento, identificar os pressupostos em que se baseavam os antigos EVCP 52, Rauter (1989) concluiu que um determi-nismo cego, mecânico e simplista os caracterizavam. Assim, fatores como a morte precoce da mãe; o abandono do pai; a separação litigiosa dos dois; mães que trabalhavam fora e deixavam os filhos com os vizinhos; abandono precoce da escola; passagem na infância por instituição correcional; casos de alcoolismo, dependência de drogas, ou antecedentes penais na família, vistos em conjunto ou isoladamente, sempre culminavam na conclusão de que o resultado óbvio seria a prática de crime e, enfim, a reclusão.

Segundo a pesquisa realizada pela autora, não se levavam em conta os processos de criminalização e a seletividade das leis, das polícias e do sistema judiciário53; tampouco eram examinadas as razões externas ao preso 51 Os exames criminológicos foram abolidos pela Lei 10.792/2003, mas na prática continuam a ser exigidos em vários estados.52 Atualmente, só são submetidos aos EVCPs os internados por medida de segurança. Com a Lei de Execução Penal o exame aplicado aos presos sentenciados passou a denominar-se Exame Criminológico.53 Um bom exemplo desta ação seletiva e do papel dos diferentes níveis do complexo policial-judiciário-

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que podiam, por exemplo, determinar a sua reincidência. Seguindo apenas critérios técnicos, os exames buscavam no preso e somente nele as condições que fizessem presumir que ele não voltaria a delinquir.

Passados exatamente 21 anos, muita coisa mudou nos discursos e práticas dos psicólogos que trabalham nas prisões brasileiras que, com a perspectiva da dispensa da obrigatoriedade dos exames criminológicos para a progressão de regime e livramento condicional, se sentiram liberados para a realização de tarefas clínico-institucionais mais críticas e transformadoras. Nas duas décadas que se seguiram ao período pesquisado por Rauter, o país foi adaptando o funcionamento de suas instituições às regras do Estado de Direito, ao mesmo tempo em que a legislação penal foi caminhando para um terrível retrocesso54. Nesse ínterim, embora não fosse mais possível empu-nhar o discurso do tratamento penitenciário (sabidamente inexistente) para justificar a necessidade dos exames, o destino dos presos continuava subor-dinado aos pareceres técnicos. Por sua vez, mesmo sem acreditar na eficácia da prisão como instrumento de tratamento do preso ou na capacidade de qualquer exame de prever comportamentos, os técnicos continuavam a ter que empregar seu tempo e competência nestas avaliações, que só serviam para impedi-los de desempenhar tarefas mais relevantes e prolongar o tempo de reclusão dos internos. Curiosamente, foi justamente a promulgação da lei que pretendia abolir os exames, seguida imediatamente de um intenso movimento nos Poderes Judiciário e Legislativo exigindo a sua manutenção, que permitiu a visibilização dos conflitos éticos – antes silenciados – vividos pelos psicólogos desse campo.

Nesse momento, adotando posição mais proativa e apoiados por seus conselhos profissionais, psicólogos de várias partes do país iniciam um processo de discussão a respeito das atribuições que lhe são conferidas pela LEP. Encampada também pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), a mobilização dos psicólogos do sistema prisional culmina na realização de dois encontros nacionais55, na circulação de um abaixo-assinado de reper-

psiquiátrico nesta seleção é o diferente tratamento dado aos jovens que são flagrados portando drogas: para os jovens das classes favorecidas é geralmente lançado mão do paradigma médico e aos demais, o paradigma criminal. Ver em Batista, 1998.54 Esse foi também o período em que a reforma dos currículos universitários, a contratação de novos técnicos para compor as CTCs, agora através de concursos, e a renovação dos quadros que atuavam nos Conselhos Profissionais viabilizou um reposicionamento crítico no trabalho do técnico prisional.55 Refiro-me ao I Encontro Nacional dos Psicólogos do Sistema Prisional, realizado em novembro de 2005 e ao II Encontro Nacional dos Psicólogos do Sistema Prisional, realizado em novembro de 2008.

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cussão em todo o país e na construção de uma parceria com o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), com o objetivo de construir diretrizes para a atuação dos psicólogos que atuam no sistema prisional. Como resul-tado do esforço conjunto desses vários atores institucionais é publicado o documento “Diretrizes para Atuação e Formação dos Psicólogos do Sistema Prisional Brasileiro”, que, além de fornecer um atualizado retrato do trabalho dos psicólogos nas prisões brasileiras, permite entrever que já estão dadas as condições para uma mudança de paradigma de suas práticas56. É o que se pode ver, por exemplo, no artigo 5.2.2 deste documento, que trata dos exames criminológicos e das CTCs:

• Como categoria é atribuição do psicólogo apontar aos envolvidos no campo da execução penal que a realização do exame crimi-nológico, na qualidade de dispositivo disciplinar que viola, entre outros, o direito à intimidade e à personalidade, não deve ser mantido como sua atribuição, devendo ser prioritária a construção de propostas para desenvolver formas de aboli-lo.

• Enquanto não for abolido, o psicólogo, na construção de seus laudos e pareceres, deve contribuir para a desconstrução de tal exame, questionando conceitos como periculosidade e irrespon-sabilidade penal (...).

• Enquanto existir a comissão técnica de classificação, o psicólogo deve ter entendimento do papel institucional que ocupa, dando evidência ao Código de Ética Profissional e instrumentos nacio-nais e internacionais de direitos humanos nas opiniões que emitir sobre todas as pautas a serem debatidas e estimulando os temas sobre saúde, educação e programas de reintegração social.

Paralelamente prosseguem as iniciativas regionais visando a proble-matização do trabalho dos psicólogos nas prisões; verifica-se intenso trabalho legislativo com o objetivo de reintroduzir a exigência do exame57;

56 O documento contendo as diretrizes, desenvolvido através da parceria CFP-DEPEN/MJ em 2007, pode ser consultado no site http://dhepsi.nucleoead.net/moodle/file.php/1/Publicacoes/Diretrizes_para_atuacao.pdf.57 A este respeito ver os Projetos de Lei 75/2007 e 190/2007, o primeiro do Senador Gerson Camata e o segundo da Senadora Maria do Carmo Alves, reintroduzindo o exame criminológico para progressão de regime, livramento condicional, indulto e comutação de pena. Ver também o parecer da Conse-lheira Valdirene Daufemback, do Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias (CNPCP), de 30/11/2008, publicado sob o n ° 08001.003932/2008-71.

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o Judiciário e o Ministério Público continuam a exigi-lo na maioria dos Estados; e assiste-se aos esforços por parte de certos técnicos de desen-volver instrumentos supostamente científicos com o objetivo de “avaliar de maneira segura e objetiva o grau de periculosidade e de readaptabilidade à vida comunitária dos condenados” 58.

Se as argumentações a favor da manutenção dos pareceres da CTC/ Exames Criminológicos, ou mesmo de melhores condições para a aplicação dos instrumentos de avaliação dos requisitos subjetivos, encontram base no que está disposto na LEP e no artigo 83 do Código Penal, elas também ferem os Princípios Constitucionais que garantem o direito de inviolabilidade à inti-midade do preso. Segundo Salo de Carvalho, a imposição legal de avaliação da personalidade do réu ou condenado possibilita ao juiz e ao criminólogo

...uma ampla discricionariedade em uma esfera na qual seria ilegí-timo opinar: a interioridade da pessoa. A questão que se coloca não é se existem ou não condições mínimas de o julgador estabelecer este juízo (...). O problema levan-tado é que, mesmo se houvesse condições plenas de realização, esta avaliação seria ilegítima sob o prisma do direito penal de garan-tias. Percebe-se, portanto, que a noção de personalidade do acusado padece de profunda anemia signifi-cativa e que, agregada ao conceito de conduta social (...) conforma substrato legitimante de decisões extremamente autoritárias e sem o mínimo controle jurisdicional, visto que tais hipóteses são irre-

58 Refiro-me ao estudo que valida a Escala Hare – PCL-R para utilização no Brasil. Não é de estranhar, portanto, que a psiquiatra Hilda Morana tenha sido convidada pelas Comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, e Direitos Humanos e Minorias para o debate sobre a necessidade de alterações na Lei de Execução Penal. A este respeito ver http://www.direitoshumanos.etc.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8539:seguranca-e-direitos-humanos-vao-debater-lei-de-execucao-penal&catid=58:seguranca-publica&Itemid=245.

No Rio de Janeiro, os psicólogos da Secre-taria de Administração Penitenciária encami-nharam ao seu Conselho Profissional pedido de parecer a respeito dos dilemas éticos decor-rentes da sua participação nas CTCs e elabo-ração do Exame Criminológico. Em 07-08-2007, o CRP-05, através do Ofício nº. 582/07, esclareceu que não é ético o psicólogo:• Julgar e punir sua clientela;• Ser carcereiro e/ou contribuir para o

isolamento das pessoas;• Desrespeitar as singularidades de sua

clientela, enquadrando-a, discipli-nando-a e normatizando-a;

• Colaborar com processos que levem à perda de direitos das pessoas;

• Emitir pareceres sem fundamen-tação técnica-científica baseados, por exemplo, em apenas uma entrevista; e

• Opinar e/ou decidir pela privação de liberdade das pessoas.

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futáveis do ponto de vista probatório, dado seu caráter subjetivista. Outrossim, por sua indefinição e verdadeira impossibilidade de comprovação e refutação em juízo, nota-se que as noções de perso-nalidade e conduta social se confundem jurisprudencial e conceitual-mente com a de periculosidade, sendo sua determinação inclinada a juízos e prognósticos de tendências delinqüenciais, na melhor orien-tação de um direito penal do autor. (CARVALHO, 2003: 134)

Por sua vez, Espí (1994) fala da ausência de bases teóricas e metodo-lógicas que sustentem a possibilidade de prever comportamentos humanos. Para ele, contar com a possibilidade de prognosticar comportamentos e com base nestes prognósticos tomar decisões que afetem a vida dos reclusos, aumentando ou diminuindo o tempo de seu encarceramento, “denota la pervivencia de concepciones sustancialistas y deterministas sobre el ser humano”. Segundo ele, como é justamente este o instrumento chave do poder carcerário, reconhecer a inconsistência de una peça chave da ‘ideo-logia ressocializadora’ como é a predição do comportamento dos reclusos, “obligaría a un drástico replanteamiento de la filosofía del tratamiento penitenciário”59 (ESPÍ, 1994: 208).

Valendo-nos, pois, dos esclarecimentos acima, entendemos que, mesmo que estes pareceres/exames criminológicos tenham seu fundamento no princípio de individualização das penas, referendado no inciso XLVI60, do artigo 5º da Constituição Federal, é urgente adequar os dispositivos legais que dele decorrem ao espírito garantista de nossa Constituição Federal. Caso contrário, o mesmo princípio da individualização que autoriza um tratamento diferenciado de acordo com a personalidade do preso implicará na violação da sua privacidade e dos princípios de igualdade e legalidade, também axiais em nosso sistema legal. Se é verdade que a LEP inspirou-se na ideologia corre-cionalista da defesa social e, como tal, concebeu a pena como instrumento de transformação do condenado cuja evolução deve ser verificada através de exame, continuar a tratá-lo como objeto a ser transformado e não como um 59 Segundo Espí, para a ideologia ressocializadora “de lo que se trata es complementar o rectificar una supuesta socialización deficiente o defectuosa que há llevado el individuo a delinqüir. Se considera, pues, que la persona no ha hecho propios los comportamientos y los valores sociales que se entienden normales, adecuados, ha sido mal socializado y, en consecuencia, es necesario reeducarle, resocializarle, mediante el tratamiento penitenciario (ESPÍ, 1994: 201).60 De acordo com os incisos XLVIII do Artigo 5º, a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, a privação ou restrição da liberdade; a perda de bens; a multa; a prestação social alternativa; a suspensão ou interdição de direitos.

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sujeito de direitos implica em uma grave violação ao princípio de dignidade da pessoa, também estabelecido no inciso do artigo 5º da nossa Carta Magna. Pelo mesmo motivo, condicionar a concessão da progressão de regime e do livramento condicional à constatação de condições pessoais que façam presumir que o preso não voltará a delinquir (artigo 83 do CP) não só afronta o princípio da presunção de inocência – uma vez que diz respeito a fatos futuros não alcançados pela condenação –, como fere o direito do examinado de não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.

De qualquer maneira, entendendo a individualização da pena como uma das garantias fundamentais do preso, e não como a mola mestra de um sistema que se erigiu em defesa da sociedade, é possível dimensionar a contradição de um sistema que fala em “ressocialização” e mantém detentos algemados pelos pés, amontoados em contêineres metálicos que chegam a atingir 50ºC (instalações apelidadas pelos seus usuários de micro-ondas), ou ainda se vale da detenção de meninas adolescentes na mesma carceragem que presos adultos do sexo masculino61. Por outro lado, agora sob uma pers-pectiva mais garantista e apoiada em uma lógica de redução de danos, a finalidade da individualização da pena poderia voltar-se tão somente para a adequação da execução às condições do condenado, ou mesmo ao desenvol-vimento de suas aptidões, desde que respeitadas sua intimidade e vontade e mantido o objetivo de torná-la o menos aflitiva possível. O fato é que a dispensa do EC e da avaliação da CTC para a obtenção dos benefícios não obstaria a avaliação dos requisitos para a aplicação do sistema progressivo de penas e, pelo contrário, liberaria os técnicos para as novas tarefas que lhe são conferidas pelo Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário62. Como podemos ver no Parecer da Defensoria Pública de São Paulo,

61 A este respeito ver “Na ONU, organizações apresentam novas denúncias sobre o sistema prisional do Espírito Santo”, disponível em http://www.recid.org.br/index.php?option=com_myblog&show=Na-ONU-organizacoes-apresentam-novas-denuncias-sobre-o-sistema-prisional-do-Espirito-Santo.html&Itemid=90 e reportagem da Folha de São Paulo “Minas tem 300 adolescentes em carceragem para adultos”, publicada na Folha Online de 21/02/2008 em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u374813.shtml.62 Para atender ao PNSSP deverá ser criada uma equipe de saúde para cada 500 reclusos, constituída por médico, enfermeiro, odontólogo, psicólogo, assistente social, auxiliar de enfermagem e auxiliar de consultório dentário. Nas unidades prisionais onde já houver quadro de saúde as equipes devem ser complementadas de maneira a cobrir 40% das unidades prisionais no 1º ano, 60% no 2º ano, 80% no 3º ano e 100% no 4º ano. Como a maioria dos psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais em exercício nas unidades prisionais está vinculada às CTCs dos estabelecimentos e ocupa a maior parte de sua carga horária com a realização dos exames criminológicos, será necessária uma profunda reestruturação da política de recursos humanos dos sistemas penitenciários do país.

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A lei, ao estabelecer o cumprimento da pena de forma progressiva, estipulou requisitos para tanto. Portanto, não cabe ao órgão julgador supor, com base em laudos desprovidos de critérios objetivos e cien-tíficos, que o sentenciado não se ajustará à forma mais branda de cumprimento da pena. Não pode uma suposição tal, indemons-trável concretamente, restringir a liberdade de alguém, visto que, do contrário, estar-se-ia utilizando fundamentos morais para a privação da liberdade individual, servindo a persecução penal como verda-deiro instrumento de ‘vingança estatal’.A alteração legal não aniquilou o processo de individualização da pena, apenas restringiu-o ao exame do bom comportamento carcerário63, que mais se coaduna com o modelo garantista da Constituição Federal.

Por tudo o que foi exposto acima, compete-nos contribuir para a adequação da execução penal aos princípios garantistas vigentes e, portanto, aproveitar esta oportunidade de problematização da legislação para fomentar esta discussão.

Na impossibilidade de concluir...

Inspirando-me em Pavarini, que, contratado para escrever um livro introduzindo os conceitos de criminologia, preocupou-se muito mais em colocar problemas do que propor definições, chego ao fim de minha expo-sição sem apontar nenhuma direção aos psicólogos que desejem experimentar práticas mais transformadoras. Longe de mim tal pretensão. Até porque não existem fórmulas. Como o autor italiano, que confessou que “no conseguiría escribir um manual de criminologia porque no sabría decir con certeza que és la criminologia”, mas poderia “ayudar a comprender qué ofrece y pra qué sirve esta criminologia” (PAVARINI, 1996: 22), penso que serei mais útil se ajudar o leitor a problematizar sua prática e a indagar a serviço de quê quer investir seus saberes e competências. Na impossibilidade de concluir, deixo, então, um mal-estar, uma inquietação ainda sem forma, uma provocação ao pensa-mento, à problematização ou, quem sabe... à invenção. Afinal, as práticas verdadeiramente transformadoras só se fazem naqueles momentos fugazes

63 Por impossibilidade de espaço, no escopo deste trabalho, terei que me abster de problematizar o que consistiria um “bom comportamento carcerário”.

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e inesperados dos acontecimentos, dos bons encontros, que são possíveis mesmo numa prisão.

Jurandir Freire, em um antigo, mas ainda importante texto, já nos alertava que é impossível prever o comportamento humano como quem prevê a dilatação do metal pelo calor. É impossível controlar a imprevisibilidade dos homens. Para ele, qualquer tentativa neste sentido só pode estar a serviço de uma mascarada cumplicidade com as razões de Estado. E avaliar uma pessoa segundo seu grau de adaptação às normas sociais não pode ser considerado outra coisa (COSTA, 1989). Isso significa que o mandato dos técnicos da área psi que trabalham em prisões, e dentre eles o dos psicólogos, precisa ser urgentemente repensado. Se vimos acima que as prisões produzem efeitos de subjetivação e que o sistema penal, ao configurar a delinquência, contribui para a produção e reprodução dos delinquentes, o que podemos fazer para trabalhar pela desconstrução dessas carreiras, para a produção de desvios nessa trajetória que se quer preconizar como irreversível? Como utilizar nossas competências não para reafirmar destinos, e sim para conduzir o desvio para outras direções mais criativas e a favor da vida?

De qualquer maneira, as questões levantadas até aqui nos indicam que em vez de perguntarmos se o exame criminológico é essencial ou não ao trata-mento penitenciário e à individualização da pena, devemos problematizar o que se entende por tratamento penitenciário e indagar a quem serve essa concepção de individualização da pena. Prosseguindo (em que pese a impos-sibilidade de compatibilizar tratamento e pena), devemos pensar se quando adotamos o conceito de tratamento penitenciário estamos nos referindo ao conjunto de meios e intervenções dirigidas ao recluso com a finalidade de promover a reforma de sua conduta, de acordo com as exigências da disciplina carcerária, ou ao repertório de recursos oferecidos aos mesmos para alimentar seus vínculos afetivos/sociais e estimular/cultivar os seus interesses profis-sionais, culturais, artísticos, esportivos etc., com o objetivo de tornar menos duras as condições de vida nos cárceres e reduzir os danos decorrentes do confinamento. Precisamos também nos indagar se quando dizemos que o

Embora alguns autores entendam o crime como fenômeno natural, nem tudo está dominado no campo da crimino-logia. Castro (1983) e Baratta (1997), dois dos grandes expoentes da Criminologia Crítica, ajudam-nos a escapar das explica-ções tautológicas. Para eles, não é possível entender o acontecimento-crime sem levar em conta a ação seletiva e configura-dora de carreiras criminais exercidas pelas agências de controle social.

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tratamento penitenciário deve responder às necessidades específicas de cada sujeito estamos nos referindo aos instrumentos para a intervenção em sua conduta e personalidade para adaptá-las às exigências do meio ou aos meios para melhorar as condições de vida nos cárceres, qualificar a assistência em saúde, potencializar as ações de saúde mental e desenvolver ações voltadas para a prevenção dos riscos de doenças e agravos à saúde dos presos, inter-nados e profissionais do sistema prisional64. Dependendo da maneira como respondemos às perguntas acima, podemos concluir que o trabalho dos psicólogos e demais profissionais de saúde nas prisões, ao invés de permitir a utilização dos recursos que contribuiriam de forma mais potente com a vida em liberdade, ou pelo menos com a minimização dos danos decor-rentes da prisionização, colaborarão bem mais com a produção e a fixação de identidades criminosas e para a redução significativa do potencial de transformação destes destinos.

Encerrando, para ajudar a esquentar essa discussão, deixo algumas palavras de Guattari já tão repetidas por seus leitores, mas tão vivas ainda...

...devemos interpelar todos aqueles que ocupam uma posição de ensino nas ciências sociais e psicológicas, ou no campo do trabalho social – todos aqueles, enfim, cuja profissão consiste em se inte-ressar pelo discurso do outro. Eles se encontram numa encruzilhada política e micropolítica fundamental. Ou vão fazer o jogo dessa reprodução de modelos que não nos permitem criar saídas para os processos de singularização, ou, ao contrário, vão estar trabalhando para o funcionamento desses processos na medida de suas possi-bilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para funcionar. (GUATTARI, 1986: 29)

64 Neste ponto estamos de acordo com Iñaki Rivera Beiras, quando ele diz que “‘él problema de la cárcel’ no se va a resolver ‘en la carcel’ sino, en todo caso, en el exterior de la misma, en la sociedad que crea, que produce, que alimenta y que reproduce a la cárcel” (BEIRAS, 2004: 179) e com Baratta, que diz que “A pesar de esto, la finalidad de una reintegración del condenado a la sociedad no deve ser abandonada, sino que debe ser reinterpretada y reconstruida sobre una base diferente (...). La reintegración social del conde-nado no puede perseguirse a través de ella, sino que debe perseguirse a pesar de ella, o sea buscando hacer menos negativas las condiciones que la vida en la cárcel comporta en relación con esta finalidad (BARATTA, apud BEIRAS, 2004: 178).

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