Upload
ariane-bastos
View
89
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 1/16
16
A BiogrAfiA e A HistóriA
Teresa Maria MalaTian
UnesP/Franca
Por qu Bogrr?
Amultisseculardesconançaparacomestegênerosedutor,anal,osindivídu-
osfazemounãoahistória?Ogêneroapresentaaindapossibilidades,aindaquetenhasidobastantecriticado?OCatálogo Brasileiro de Publicaçõesem1994registravaumcrescimentode55%dasobrassobreotemaemrelaçãoa1987(Schmidt,1997,p.1).
A biograa como tendência historiográca
O estatuto da biograa em História
Abiograanuncaesteveausentedasreexõeshistoriográcasoudaspráticasprossionaisdoshistoriadores,masmuitasvezessefezacompanhardeummal-estarexplícitoouimplícito. A
R T I G O S
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 2/16
17
Como assinala Momigliano, emProblèmes d´historiographie ancienne et
moderne (1983),trata-sedegêneroanti-
goqueconservoufronteirasuídascomocampodoconhecimentohistórico.JánaAntigüidade,despertavaadesconan-
çadeautorescomoTucídidesePolíbio,quelheatribuíamoestatutodeterritóriosujeitoàexaltaçãotendenciosadeumin-divíduo,grupodeindivíduosoucausa.EntreabiograaeaHistóriaháumabis-mode insegurança e fragilidade diante
do problema da verdade da narrativa,semcontarqueàprimeirasereservavaoestudodosfatosegestosdosindiví -duos,enquantoàsegundacabiaorelatodosacontecimentoscoletivos(Levillain,2003,p.145). Plutarco (45-125) construiu ummodeloaotraçarasVidasparalelasnasquais procurava evidenciar as virtudes
doshomensdeação,queagiamdemodocorreto“nointeriordeduascivilizaçõesidealizadas,adaGréciaeadeRoma”,tentandocomissoescreverumaHistó -
riamoralestruturadaempersonalidadesexemplares(Levillain,2003,p.149).
Sem apretensãodepercorrerdemodoenciclopédicoestatrajetória,éim-
portantelembrarqueasuspeitaeaam-
bigüidadetiveramemSuetônio(75-160)umatentativadeestabelecimentodedis-tinções,comaindividualizaçãodabio-
graanadireçãodetorná-lamaiscon-
ável,mediantedesmisticaçãoerecusadoelogionaVida dos doze Césares. Desde a Antigüidade greco-ro-mana construíram-se, pois, referênciasimportantesparaumgêneroquenunca
cessoudesercultivado,aindaqueatra-vessandoaltosebaixosnasuaaceitaçãoeviradasemsuaconcepção,comoocor-reucomashagiograasmedievais. AconstruçãodoindivíduonaIda-de Moderna se fez acompanhar pelostrabalhosmodelaresde tipo biográco,como O século de Luís XIV ou Carlos
XII da Suécia,dequeseocupouVoltai -
re(1694-1778).Oheróifoicolocadoporeleno centro daHistória em trabalhosmodelares. NaprimeirametadedoséculoXIXinspirouCarlyleaservir-sedabiograaparaquestionaralinearidadetradicional
dahistória factual. Para dar à Históriavolumeeprofundidade,utilizouoheróicomomeiodeexpressãodouxocaótico
ealeatóriodavidaedoacessoaouniver-
sale,comesseintuito,produziuestudosnotáveiscomo A Vida de John Sterling e
aBiograadeCromwell.Oheróiindi -vidual,sujeitodeexaltação,foiporCar-lyleencarregadodeexprimirsuaépocae,assim,aHistóriasetornouocampode afrontamento de personalidades he-róicas,cadaumacomsuafunçãoprofé-
ticaenquantoencarnaçãodasforçasdoEspírito, entendidas como religião, “ofatorprincipalnavidadohomem”.En-treeles,oheróidemiurgoseriacapazdedarsentidoàhistóriaeforçarodestino.Emsuaobradereferênciaeexaltaçãodoidealismo,Os heróis e o culto dos heróis,atribuiuaosindivíduosexcepcionaisumpapelnaHistóriadahumanidade,confun-
dindo-acomados“grandeshomensquetrabalharamaterra:elesforamoscondu-tores,osmodeladores,ospadrõese,numlargosentido,oscriadoresdetudooqueamassageraldoshomensprocuroufazerouatingir”(Carlyle,[s.d.],p.9).
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 3/16
18
Noscinqüentaanosquesesegui-ram, duas posturas teórico-metodoló-gicasviriam abalar tais convicções:de
umlado,adeMicheletquecolocouemprimeiroplanoda reexão históricaosvalores coletivos, expressospelopovo,deixandoaosindivíduoso papelde re-presentantes de paixões coletivas; deoutro,adeMarxquecolocounocentro,naHistória,asclassessociais,reduzindodrasticamenteopapeldosindivíduosnodiscursohistórico,aindaqueseocupasse
delepontualmente,comoemO 18 Bru-mário de Luís Bonaparte(Marx,1986). Nãoobstante,TaineeRenanper-correramoséculodonacionalismopreo-cupadoscomaconcepçãodograndeho-memcomoprodutodaraça,domeio,domomento, o homem-partícula, o átomosocialquetributouaoromantismoamu-dançadesentidodabiograa:atensão
entre indivíduo e sociedadeprivilegiouaprimeiraeabiograavisavaencontrarnodestinoindividualaforçadocontextogeográco,cultural,histórico,social. Ainda que os historiadores me-
tódicos (Monod, Langlois, Seignobos,
H.Berr)criticassemoshistoriadoresro-mânticosesuaimagemdoheróicomoexterioràmassahumana,querealizava
osdesígniosdaProvidência,doprogres-
so, e da oposição de Durkheim e suadesconançaemrelaçãoaosujeitoindi -vidualquantoaseupapelnaHistória,oséculoXIXcontinuoucampofértilparaosestudosbiográcos.Abiograacons-tituíaumpassatempodehomenscultiva-dos,literaturaprestigiosadeacadêmicos,praticadaporpolíticos,advogados,notá-
veiseletradosemgeral,semalcançares -tatutodecienticidade,como,porexem-
plo,abiograadeAlbertdeBroglie. Alémdisso,autoresinserirames-tudosbiográcos ao longode seus es-critosmaisgeneralizantes,comoJaurèsque,aoescrevera História da Revolução
Francesa, deu primazia às formas so-ciais, mas não desmereceu as persona-
lidadesindividuaisesuasrelaçõescomos movimentos de fundo, provocadospelascondiçõesdeproduçãoetroca.SuaHistóriapretendiasermaterialistacomoqueriaMarx,líricacomozeraMicheleteheróicacomopraticaraPlutarco.
Neste esboço historiográco, os Annales ocupam uma posição central,pois a esse gruposão atribuídas diver-
sasnegações:doindivíduoedapolítica,principalmente.InegávelquedesdeFeb-vreeBloch,ahistóriasetornaterritóriodasmassas,dosgrandemovimentoseco -
nômicosesociais.Noentanto,ogrupofundadordarevistanãoconseguiu–seéqueodesejou–realizarumaviradaan-tibiográca.Háconsciênciadasdicul-dadesdogênero:Febvreapontouospro-
blemas,perigose tentaçõesdabiograaindividual, mas escreveu, entre outrostextos, Martinho Lutero,um destino,e Areligião de Rabelais.Suacontribuiçãoaogêneroconsistiuemesclarecertrajetóriasindividuaisrompendo,noentanto,coma concepção deheróis super-homens ecentrandoaanálisenautensilagemmen-talespecícadeumperíodoedeumgru -
podehomens,preparandoassimterrenoparaoestudodaschamadasmentalida-
des.Em Martinho Lutero, um destino
(1994),Febvreexplicitousuaconcepçãodogêneronaperspectivarenovadoraque
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 4/16
19
logoseriaveiculadapelos Annales HES :trata-sedefatodeumpersonagemexcep-
cionalequepoderiaimplicarumjuízo,
seobiógrafoenveredassepelosconitosreligiosos,masaóticadeFebvrefoiadacompreensãoemexemplarliçãodemé-todo.Suapretensão:
desenharacurvadeumdestinoquefoi simples mas trágico; marcarcomprecisãoospoucospontosver-dadeiramente importantes por quepassou;mostrarcomo,sobapres -
sãodequecircunstâncias,oseuen-tusiasmoinicialtevedeenfraquecereinectirotraçadoprimitivo;porassim,arespeitodeumhomemdeuma singular vitalidade, esse pro-blemadasrelaçõesdoindivíduoedacoletividade,dainiciativapesso-aledanecessidadesocialqueé,tal-vez,oproblemacapitaldahistória.
(Prefácioà1ªedição,1945,p.11) Aoutilizaroprocedimentobiográ-co,FebvrecombinouerudiçãoeHistó-
ria-problemaparaevidenciarumapostu-raepistemológica:“seoshomensfazemaHistória,sóohistoriadorsabeaHistó-
riaqueelesfazeme,conseqüentemente,éadeles”(Levillain,2003,p.149). Hoje, oitenta anos decorridos,
ainda nos debatemos com as mesmasquestões metodológicas: a necessidadedeescolhasnatrajetóriadevida,paraacomposiçãodorelatobiográco;comoequandoiniciá-lo;operíodoasertraba -
lhadocomorelevante...AvidadeLuteronestabiograadesenvolve-seaté1525,quando ocorreo que Febvre denomina“recuosobresi”,“retirada”ou“refúgio
emsimesmo”,conformeasdiversastra-duçõespossíveisdapalavrarepli. MarcBlochigualmentesemante-vepróximodogênero,aoestudarFilipeIIeofranco-condado,ondeabriunovoscaminhosparaabiograa,aoseocupardopapel dos indivíduos,aindaque in-seridonoquadrodasestruturasagráriasdasociedadefeudal.Em Apologie pour
l’Histoire (1997) chegou mesmo a de-fenderopapeldosindivíduosnaHistóriacomonecessário,em L´etrange défaite
(1990)reetiusobreopapeldotestemu-nhoefoiumdosprimeirosapreconizaroabandonodaspersonalidadesexcepcio -
naisesuasubstituiçãopelaspersonagenssecundárias,queseriammaisreveladorasdeumaépocaoudeummeio.Inclusive,
propôs que os historiadores deveriam,emlugardeseateremaosgrandespen-sadores,freqüentaroschamadosautoresdesegundaordem. Emsuma,nãohouveentreos An-
nalistasdaprimeirageraçãorupturacomogênerobiográco,mas,sim,umajustedaabordagemaonovocampoteóricoemetodológicoqueseabriaparaatempo-
ralidadeampla,oeconômicoeosocial.Abiograaquedaíresultoucaracterizou-sepelarecusadosexageroslaudatóriosdoséculoXIXepelabuscadeadequaçãoa paradigmas historiográcos voltadosparaumaHistóriaobjetiva,asmentalida -
des,osatorescoletivosque,noentanto,reservavamumespaçoeumprotagonis-moaossujeitosindividuais.
NageraçãodeBraudel,que lide-rouachamadaEscoladosAnnales,apósa Segunda Guerra Mundial, a descon-ançaemrelaçãoàHistóriadoindivíduofoiocontrapontodaposturaqueprivile -
giouasestruturaseatemporalidadelon-
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 5/16
20
ga,aindaqueseuestudosobreomundomediterrâneo comportasse a dimensãoindividualdaatuaçãodeFelipeII,enela
constituísseumpontointeressante,oes-
paçobiográcoreservadonaobraàdu-raçãocurta,aoevento,àHistóriaquesedesenrolaemvelocidademaiorqueadasestruturaseconjunturas. Comosavançosdahistoriograadebasemarxistaedoestruturalismonauniversidade, o gênero biográco teveseuespaçoapósSegundaGuerraMun -
dial.AênfasenaHistóriaserialdeChau-nu(1978)sófezaprofundar,nasdéca-dasde1960e1970,aminimizaçãodapresençadossujeitoscoletivosemfavordosdadosquantitativos. 1Foioapogeudadesclassicaçãodabiograa,quenoen -
tanto, teimosamente, continuava sendoproduzidapelosqueafrontavamascríti-cas,aomesmotempoemqueumareação
veiodosquestionamentosdecorrentesdacrisedomarxismo,doestruturalismoedeinovaçõesemdireçãoàrevalorizaçãodoindivíduonaHistória.
Era preciso responder às críticasqueincidiamsobreogêneroemsuaex-cessiva valorização da personalidade e
da importância do sujeito individual, operigodofalseamentodasperspectivaseaheroicizaçãodosindivíduos.Bourdieufoiumdosquesemanifestaramnessadi -reção- L’histoire de vie est une de ces
notions du sens commun qui sont entrées
en contrebande dans l’univers du savant
(Bourdieu,1962/1963).
Os “retornos” da História:do indivíduo, do político
e da narrativa
Outra crítica bastante desabona-doraconsistianaacusaçãodeaHistóriadevidapressupornoçõesmaldenidasdecoerência,continuidadedoeu,iden-
tidade.Emresposta,Chartierfoiumdos
rarosteóricosalembrarquesociedade,classeementalidade,quetendiamasubs-tituirosindivíduosnaanálise,eramfre -
qüentementetratadospelahistoriograa
comoheróisindividuais,comasmesmasilusõesdereconstituiçãoeinteligibilida-delinear(1991).
Ogênerocontinuavaa serprati-
cado,porém desvestido deglórias uni-versitáriasatéqueareação,nasdécadasde1980e1990,acompanhouooresci -mentodaHistórianarrativa,davaloriza-çãodo indivíduo, que encontrounova-mente espaço emergindo dasestruturase das classes sociais. Bloch, Febvre eMicheletforamrevisitadosembuscade
inspiração.Umdosdirecionamentosfoia História domovimento operário queoriginouodicionáriobiográcoespecí-
codeJeanMaitron(1992),noqualmili-tantesobscurosdividiramaatençãodoshistoriadorescomoscélebres.AHistóriados “de baixo” acompanhou também aondadaHistóriaOral,quesecentrounaconstruçãodetrajetóriasindividuaisnas
chamadashistóriasdevida.Os historiadores formados na tra-
diçãodos Annalesenfrentaramogêneroeproduziramobrasdepeso,comoDuby,
1 Grande parte dessas considerações vêm de CANDAR, Gilles. Le statut de la biographie, 2000. Disponível em:www.irmcmaghreb.org.
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 6/16
21
em Guilherme o marechal ... (1995) eLeGoff,comoSãoLuís(1996),dequefalareiadiante.Comelesabiograaga-
nhouprestígionahistoriograauniversi-
tária,quepassouavalidarogênero.Emlugardalinearidadefactualdacurtadu-raçãocentradanacronologiadotempocurtodavidadoindivíduo,atendênciapassouaseroestabelecimentoderela-ções desta com o contextoeconômico,político,social,cultural,noqualseinse-reedesenvolveumavidaequeesclarece
trajetóriasnumcampodepossibilidadesdeescolhasedeexploração,noqualseexerceaaçãoindividual. A micro-históriade Ginzburg,Oqueijo e os vermes(2002)edeGiovanni,
Le pouvoir au village(1989),igualmen-
te,favoreceramogênero. Nesseprocesso,Chartierfoitam-
bémdecisivoaoapontarasimilitudedos
procedimentosda disciplinahistóricaaseremobservados emqualquer tipo deestudo, sujeito a incertezas, dúvidas einstabilidades(1998). AmenorênfasenaHistóriaquan-titativaeserial,comseusciclosemo-
vimentosdemográcos, o “retorno”dopolíticoreabilitadojuntamentecomodacurtaduraçãodoeventoeoretornoda
narrativa,possibilitaramumnovo inte-
ressepelaescritadesi,pelavidacotidia-na,doscostumes,doshomenscomuns,mastambémparaoindivíduoeseupapelnaHistória,emconfrontocomasocieda -
de,quecolocaparaohistoriadordogê-neroaquestãodaliberdadedeescolhas,asrelaçõesentrefenômenoscoletivoseestratégiase comportamentos individu-
ais,traduzidosemescolhasquenãosãoinapelavelmentemarcadaspelasocieda -
de(Dumont,1983). Emsuma,achamadacrisedospa-radigmasmarcouoconhecimentohistó -
riconasúltimasduasdécadas,aoques-tionar o valor analítico de estruturas erelações,modosdeproduçãoehistóriaserial,recuperandoossujeitosindividu -
ais, estudosdecasoe amicro-história.Maisdescritivaenarrativaqueanalítica,enfocandoohomemmaisqueascircuns -tâncias, incorporando aportes da litera-tura,ahistoriograacomseusdiversos“retornos”abriunovamenteespaçopara
abiograa(Schmidt,1997). Aforçadoretornodogênerobio-grácoveiodosquestionamentossobre
como distinguir o indivíduo na socie-
dade,naqualasanálisesatéentãomaisvalidadasodiluíram.Atentativadere-dução da concepção “hipersocializadado homem”, tal como praticada pelomarxismo e pelo estruturalismo, enve-redou também pela análise psicológicaquefoicentradanasubjetividadedapes-soa(Gay,1999)epelaarmaçãodesua
autonomianasociedade.Atémesmoasdescobertasdagenéticatêmsidochama-dasparaexplicarosjogosentreindiví -duoesociedade,entreohereditárioeoadquirido,entrepatrimôniogenéticoeavidasocialmenteconstruída,aexemplodoquealimentouochamadocasoLis-senko(Levillain,2003,p.168-70).
Escrita de si - fontes paraa biograa
Desdeasdécadasde1970e1980,a escrita de si vemalcançandograndepopularidade, abrigada pela literatura,
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 7/16
22
pelamídia,nasciênciashumanasenaspráticas de formação. Autobiograas,diários e correspondências constituem
assim um campo imenso de possibili-
dadesparaohistoriadoremseuintuitode construção de biograas. Resultamdeatividadessolitáriasdeintrospecção,aindaqueaautoriapossaserpartilhadaporsecretários,assessoresoufamiliares.Trata-se,destepontodevista,deescritasdesinasquaisoindivíduoassumeumaposiçãoreexivaemrelaçãoàsuahistó-
riaeaomundonoqualsemovimenta.Na literatura, as obras de cará-
terautobiográcosepublicamemtodaparte,colocandoaoalcancedopúblicohistóriasdevida emescritos tão diver-soscomoaautobiograaliterária,aau-tobiograaintelectual,odiárioíntimo,odiáriodepesquisa,odiáriodeescritor,osrelatosdeviagem,acorrespondência
easmemórias,emgeral,enunciadosnaprimeirapessoa,emboraporvezesnase-gundaoumesmonaterceira,visandoàconstruçãodeumrelatoaserrecebidocomoverídicopeloleitor.
Na mídia as condições e formas
deescritasdesialcançaramapletora:es -
trelasdomundodasartes,dosesportes,personagensdapolítica,intelectuais,sem
esquecerosanônimos“homenscomuns”,personagensconstruídosalongooucur-toprazoinundamemlongosrelatosouemcurtosfragmentos,jornais,revistas,documentários, reality shows, novelas,TV,rádio,web,nasquaisaexposiçãodavidaprivadaseofereceaoconsumodemultidões. Asrazõesdessemovimentopodem
serlocalizadasnumaangustiantebuscadeelementosidentitáriosquedeslocaoreconhecimento de si no conhecimento
dooutroquesetornatempofamiliarsemperderadistânciafísica,presenticadospelaatividademidiáticaquepermiteatéoacompanhamentodocotidianoemtem-
porealdosquesecolocamdiantedateladaTV.
Nas ciências humanas,asaborda-gensdehistóriasdevidacresceramenor -
mementedesdequeaEscoladeChicagoelegeuavidadosimigrantescomosigni-cativaparaacompreensãodasocieda-denorte-americanaelhesdeuapalavra.
Ahistóriadevidaeosdocumentosqueailuminam(cartas,diáriosíntimos)al -cançamoestatutodeobjetocientícono
qualapalavraconstituiomeioprivile-
giadodeacessoaatitudeserepresenta-çõesdosujeito(Lewis,1970). Em reação aos modelos teóricostotalizantesdavidasocial,comoomar-xismoeoestruturalismo,eaosmétodosquantitativos,orelatodevidafoiredes-coberto na Europa gerando, nos anos1970,asreexõespioneirasnaFrançade
DanielBertauxsobreaaproximaçãobio -gráca.Ostrabalhossociológicosnestavertenteabrigaramamaiorpartedapro-
duçãodogêneroealcançaram,nosanos1980,grandeexpansãoereexõesmeto-dológicassobreoestatutodessahistóriae seu valorcomodocumento conávelparaoconhecimentoreconhecidocomocientíco.
Uma quarta dimensão da escritadesinacontemporaneidadeconsistenasua utilização no campo da formação,uma vez reconhecido seu papel como“arte formadora da existência”, comoarma Gaston Pineau em Práticas de
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 8/16
23
formação(1996).Logoapropriadopelasteoriasepráticaseducacionais,inclusivenoBrasil, este entendimento vem sen-
doutilizadocomoestratégiadereajustepermanente do indivíduo às intensas evelozestransformaçõessociaisdomun-
docontemporâneo,demodoapreservarsuaprópriahistoricidade e suaposiçãodesujeitohistóricopelaconstanteutili-zaçãodereferentesidentitários. Ocrescimentodogêneroremontaao século XIX, quando preenchia fun-
çõesdenidascomoeducaçãodesi,in-teriorização de normas de convivênciaemdeterminadosmeiossociais,alémdesatisfazeràfomedeintimidadeeprivaci -dadequeacompanhouaimplantaçãodaordemburguesa.Hoje,seosdiáriosínti-moseascartasperderamespaçonavidacotidiana, a busca dehistórias de vidaarmaopredomíniodasubjetividadee
doindividualismoaquecorrespondeofracasso do welfare stateedosregimessocialistas. O encolhimento do espaçopúblico,afragmentaçãodasubjetividadeemdiversosespaços,abuscaidentitáriaexacerbadaconstituemocontrapontoao
esvaziamentodosprojetoscoletivoseaodesencantamentodomundonasúltimasquatrodécadas.
Aredescobertadoindivíduoedostraçosde sua trajetória individual temsido cada vez mais valorizadas, comonosrelatossobreoGulageoutrasexpe -
riênciasextremasrevisitadas.Ahistóriado“povocomum”igualmentecontribuiuparaareleituradediários,cartasetextosmemorialísticosemsuapossibilidadedecontribuiçãoparaarecuperaçãodospro-
tagonismosindividuaisedereleiturasdahistóriasegundodiversasópticas.Do contato com a escrita de si em
suasdiversasmodalidades,aoraacons-tataçãodeseresteumterritóriomarcadopelas tensões entre indivíduo e socie-dade,peladiculdadedeseestabelecerlimitesentreaçãoindividualeaçãoco-
letiva,peloquestionamentodaliberdade
deaçãoedopapelimpositivodegrupossociaiseconstruçõescoletivasdacultura(Montagner,2007). Uma possibilidade seria umaabordagemliteráriadasliaçõesquecir-cunscrevesseocampohistóricoeformal
dogêneroautobiográco.Ou,umaabor-dagemantropológicaqueinscrevesseostextosnocontextodesociedadesemen-
talidadesnosquaisforamgerados. Essas duas posições sinalizam adiversidade de constituição do objeto,porémambaspodemestarpresentesesecomplementar,paraquesepossaanalisareusufruirdosrelatospelosquaisoindi -víduofaladesiemdeterminadascondi -çõessociais(econômicas,políticas,so-
ciais,culturais),econstróiumarelação
identitáriaconsigomesmo,queFoucaultdenominapráticasdesi. Ahistoriograaapropria-sedetaisabordagenseasreconstituidemodoqueodiscursodesi,consideradonadimen-sãohistórica,relevadecadaépoca,emcadasociedade,asrelaçõesdopúblicoedoprivado,dacoletividadeedoindiví -duo, da singularidade e dapluralidade,
do indivíduo consigo mesmo. Importaocupar-sedediscursoscodicadoshisto-ricamenteequesão,portanto,portado-
resderelaçõesdeforçaedeconsciênciadesi.Trata-sedeterconstantementeempresençaasformascomooindivíduoe
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 9/16
24
suaidentidadesãopermanentementein -
ventadas e reinventadas: discursivas emateriais(suportesetécnicasdeescritadapalavra),commediaçõesexteriores(acidade,areligião,opoder),numapráticaqueésempreimplícitaouexplicitamentecoletiva. Ditodeoutraforma,aconstruçãododiscursoquecarregaaconstruçãodesinãopodeserabstraídadasformaçõeshistóricasqueregemavidadoshomensem sociedade e, ao mesmo tempo, do
modocomogruposconstituempráticasdesi,asquaissetraduzemnasrepresen-
taçõesdoeuxadasnosrelatos.Pode-serastreardesdeaAntigüidadetaispráticasque passam pelomundo greco-romanocomo os relatosmilitaresde JúlioCé-sar,porexemplo,eprosseguemaolongodosséculospelasconssõestãocarasaoCristianismoatéalcançarsobmúltiplas
e variadasmodalidades o quadro atualdescrito. Do ponto de vista metodológicotrata-sedeconsiderarcomHenriLefèb-vre,em A soma e o resto(1989),aexis-tênciadeumespaço-tempointeriorque
setraduzemmomentosnosquaisoindi-víduoconstróisuaexperiência,aqualoindividualiza,osingularizanumcampoderelações. Éestaperspectivaquepermiteaohistoriadorconsiderarosmomentosvivi -
doscomodiretrizesdatemáticabiográ-ca,superandoalinearidadefactualdanarrativa,paraprocederaumaoperaçãohistoriográca de tematização da exis-tênciaindividual,segundoogrupamentodasexperiênciasdoobjetoemtornode
certospontosdeancoragemespecícosque podemse justaporoudesaparecer,masquemarcamseusernomundo.Istoéparticularmenteconstatávelnomomentodaescritadesi,quandooindivíduoex-perimentaaimersão–deextensãotem-
poralvariável–numtrabalhodecriaçãoespecícoedistanciado,masaomesmotempopróximodeoutrosmomentosna-
queleinstanterevisitadosereelaborados,colocandoàluzesseeuconstruídoantesdetudoparasimesmo,buscandoeluci -daroenigmadesuaprópriaexistência(Delory-Momberger,2000,p.11). PeterGay,emO coração desvela-
do,assinalaoespaçosocialmentereser-vadoàescritadesinoséculoXIXnaEu -
ropa,quandodiários,cartasememóriasao contarem “realidades interiores” re-produziamexperiênciasindividuais,nasquaisfantasiase“realidades”semesclamnumjogodeocultamento/revelaçãosem -
preapresentadocomoumcompromissocomaverdade,cujaenunciaçãoaoleitorconstituiverdadeirodeleite.Apartirdeumaabordagempsicanalítica,Gaysina-lizaocuidadoasertomadopelohisto -
riadorcomasposes,astáticasevasivas,aexposiçãoeaproteçãodoeudirigidaaumpúblicoseleto(1999,p.71-177),quemaisocultadoquerevelaoverdadeiro“eu”. Suas constatações foram basea-dasemdocumentosproduzidosduranteachamadaeravitorianaquemuitodife-rem dos hodiernos caminhos de escanca-
ramentodavidaprivada,emseusdeta-
lhesmaisíntimos,poiseramaltamentecodicadoscomregrasexplícitasacercadodecoro a ser mantido, dos assuntosconsideradostabus,dograudeexpansãodoeuconformeoleitorpotencial.Masse o método psicanalítico é de difícil
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 10/16
25
absorção pelohistoriador, suapropostametodológicanãodeixadesernotável,porabrirumcampodepossibilidadesdeanálisedasmotivaçõessubjetivasnaela-boraçãodaescritadesieque,selevadasemconta,podemcontribuirparaacríticadodocumentoretirando-lheumapostu-raingênuaoudesavisadanummomentoemquemaisdoquenuncaseinstalouum“apetitebiográco”(p.169). Namesmalinha,Artières,emAr-quivaraprópriavida(1998),assinalana
escritadesiapresençadetrêselemen -tos:ainjunçãosocial,apráticadearqui-vamentoeaintençãoautobiográca.Emtodoseles,aintençãodetomardistânciaemrelaçãoasimesmoseimpõenodiá -
logoentreonarradoreoleitor,noaludi-dojogodeocultamento/revelação.
Como biografar
Atarefadeconstruçãodebiogra-aspelohistoriadorcolocaemquestãodirecionamentos a serem observadosdesdeaescolhadopersonagem,emfun-
çãodasuaatuaçãooudequalidadesque
possamestabeleceridenticaçõesproje -
tivas importantes. Biografar indivíduosvivosounão?Qualograudeexaustãodo“eu”queabiograacomporta?Comobiografarsemcriar“tipos”?Comobio-
grafarsemcairnoselogiosoujulgamen-tos?
Nãohámuitocomoeludira for-manarrativaecronológicaquepermiteoacompanhamentodatrajetóriadoper-sonagemeoestabelecimentode“marcostemporaisentreacontecimentosehistó-
ria individual”. Constitui, portanto, ca-racterísticadabiograaanarrativaquedevelevaremcontaorecortetemporaldahistóriadeumavida(Abreu,1998).Talconstataçãonãoimplicaousoexclu-sivodométododiscursivo,factual,cen -
tradonaexistênciaindividual. Considerada por muitos historia-dores como uma arte(Oreux,inDuby
etal.,1986),abiograaexigedopesqui-sadorumcuidadoquederestonãosedistanciadaquelequeédevidoaqual-queroutrotipodediscursohistórico,equecaracterizaadisciplina histórica:acompreensão, a aproximação doperso-
nagem até a impregnação como pontodesaturação,idealparaquesepossaes -
creversobreele,otrabalhocríticosobretestemunhosdiferentesecontraditórios,paraqueseamplieoenfoqueanalíticoesepossamalcançartantoaspectosdes-conhecidosdesuavidacomoultrapassarsuaopacidadeparaseuscontemporâneosemaispróximos. Entre histórias de vida individu-
aiseprosopograas(notíciasbiográcasindividuaisqueseconfrontamparaque
medianteamostrassepossamestabelecertipos,salientartraçoscomuns),ogênerosemantémpróximodaliteraturae,porissomesmo,asolicitaratençãoredobra -
dadohistoriador. Dal iteratura têmsido incorpora-dostécnicaserecursosestilísticoscomoo ashback (Duby,1995),elementosc-cionais mesclados à informação segu-
ramente documentada, incorporação dedetalhespitorescosedavidacotidiana,estilocuidado,narrativauída,numdi-álogocomohipotéticoleitor,inspiradotambém pelo jornalismo.Nem é de sedesprezarapráticadedeixaruiracons-
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 11/16
26
ciênciadoescritornacaracterizaçãodopersonagemvisandoàproduçãodeumefeitoderealidade(Schmidt,1997).Aoshistoriadores e preservadores da disci-plina histórica, cabe a tarefade elimi-naramesclaentrebiograaeromance,de estabelecer referências documentaise empíricas seguras, de preocupar-secomaverdadeouasverdades,pelousode“provavelmente”,“talvez”,“pode-sepresumir”,“acredita-seque”etc.(p.10). Emtodososautores,quevêmfa-
zendoreexõessobreotema,persisteograndeproblemaqueéode“desvendarosmúltiplososqueligamumindivíduoaoseucontexto”,comofoimencionado,seja para revelar dimensões deproble-masdapesquisanãoperceptíveisnosen-
foquesmacroscópicos,sejanacompro-vaçãoourefutaçãodehipóteses. Ameuver,trata-sedecultivarum
gêneroquecomporta,emprimeirolugar,a sedução dohistoriadorpelo persona-gem, por sua vida de alguma maneiraconsideradaexcepcionaledignadeserocentrodeumestudo,porrevelaraspectosaindanãoabordadospelahistoriograa
voltadaparaomacro,ouporpermitiravisualizaçãodatensãoentreindivíduoesociedade.Sejapelaabordagemdossen-timentos,doinconsciente,dacultura,davidaprivada,docotidianoou,maisade-
quadamente, como “um locus no qualuma incoerente e freqüentemente con-traditória pluralidade de determinaçõesrelacionais interagem”, como armouBourdieu em A ilusão biográca(1976),e que permitemalcançar o sujeitoparaalémdeumaconstância,asimesmover-
dadeiramenteinatingível,paradarcontadeumsujeitofracionadoemúltiplo,talcomoseapresentaaosolhossensíveisdohistoriador. Essedirecionamentopermitequese busquem estabelecer as articulações“entrevidapúblicaevidaprivada,entrecotidianoenão-cotidiano,entreatosra-cionais emotivações irracionais“ (Sch-
midt,1997).Eixosanalíticosimportantespodemsertraçadosentãoemfunçãodefamília,estudos,trabalhoemilitância. Persisteainda,todavia,aquestãoéticaque,independentementedasame-açasnoâmbitodajustiça,precisamser
levadasemconta,quandoohistoriadorseapropriadamemóriadobiografado,expondo seus segredos, suas mazelas,suascontradições. Namesmalinhadereexão,pode-sesituarFrancoFerrarotticujasreexõessedirigemparaaabordagemestrutura-
listadasrelaçõesentreindivíduoesocie-dadenosestudosbiográcos,armandoque“umavidaéumapráticaqueseapro-
pria das relações sociais (as estruturassociais)asinteriorizaeasretransforma
emestruturaspsicológicasporsuaativi -dadededesestruturação-reestruturação”( Histoire et histoires de vie,1990). Se o enquadramento nos pare-ceexcessivo,ébomsalientarqueoau -
tor minimiza a rigidez ao apresentar avida humana como “síntese horizontaldeumaestruturasocial”,masrecusaodeterminismo mecânico entre história
socialehistóriadevida.Atribuiaosu - jeitoumpapelativoaoinsistiremque“Longedereetirosocial,oindivíduose apropria dele, o mediatiza, ltra eretraduzprojetando-oemumaoutradi-mensão(...),adesuasubjetividade,al-
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 12/16
27
cançandoassimadeniçãodoindivíduocomosínteseindividualizadaeativadeumasociedade(Ferrarotti,1990).Destepontodevista,orelatobiográcodeixadeserumasériedeanedotasparacentrar-senaaçãosocialdoindivíduo,nasuarelaçãocomasociedade,análisequesugereapartirdeancoragensantropoló -
gicasesociológicas. Nessaperspectiva,abiograaseráentendida como uma leitura do social no
qual se estabelecem relações entre um
indivíduoeotemposócio-histórico,ar-
ticulandobiograaesociedade(Abreu,1998).Estaéaprincipalênfasedaatualreleituradogênerobiográcocujasdire-trizesestãonasobrasdeLejeune,Bour-dieueLeGoff.
Lejeune e o pacto
autobiográco
As reexõesdeLejeunesobreo estatutodaautobiograacomotextoli-terário passam pela comparação entreestegêneroeabiograaeacabamporserúteisàhistoriograa,namedidaem
queateorialiteráriaéchamadaaintegrarumarelaçãotransdisciplinardaHistória. Aquestãocentralporeleaborda-daconsistenarelaçãoentreoautoreoleitornum“contratodeleitura”tambémdenominado “pacto autobiográco”.Emanálisebastantesosticadadastra -
mas presentes na elaboração do relatoautobiográco, que incluem a relaçãodo narrador consigo mesmo enquantopersonagem,Lejeunechegaaumatipo-logiadogênerobiográcocomo“texto
referencial”que,porsuasexigênciasnocampodadisciplinahistórica,necessitasesubmeteraumaprovadevericação.Nelaestápresentenãoapenasaverossi -milhança,“efeitodoreal”,assimcomoamaiorancoragempossívelaoreal,quelheservedereferência.Comotextore -
ferencialinclui,portanto,uma“deniçãodocamporealvisadoeumenunciadode
modalidadesedograudeverossimilhan-çaqueotextopretende”(1998,p.36). Mas a principal contribuição deLejeuneconsistenoalertasobrearela -
çãodeidentidadequeseestabeleceentreoautoreobiografado,implícita,inde -
terminadaouexplícitacomonumajustedecontas.Emtodososcasos,emmaioroumenorgrau,oeu se torna o outro.Éesteopactoqueesseestabelecenostex -
tosliteráriosdetipoautobiográco,entreonarradoreopersonagemnarradoequepodesertranspostoparaoterrenodabio -
graa. Na mesma direção, Bourdieu(1996)iráalertarseusleitoressobreasarmadilhasdogênero,comatônicaana-lítica voltada, porém, para as relações
entreindivíduoesociedade.
Bourdieu e o habitus
Tomareicomobaseasconsidera-çõesdeBourdieufeitassobrea“ilusãobiográca”eapresentadasem Actes de
la Recherche en Sciences Sociales (1986,p.69-72)erepublicadasem Usos e abu-
sos da História Oral , organizada porMarieta de Morais Ferreira e JanaínaAmado (1996).Além disso, o diálogoquecomeleestabeleceuGiovanniLevi,em Les usages de la biographie(1989),publicadotambémnomesmovolume.
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 13/16
28
Onúcleodesuaanáliseresidenateoria da práxis construída em relaçãoaoscampos,ouseja,os“domínioses-pecícosdavidasocial”.Emsuasdiver-sas obras alerta para a inexistência deuma“seqüênciacronológicaelógicadosacontecimentoseocorrênciasdavidadeumapessoa”,numalinhaconstrutivistaquepostulaalinearidadeprogressivaeacausalidadecomoconstruçõesa pos-
teriori.Desde1968,quandopublicouo Métier de Sociologue, com Passeron e
Chamboredon, Bourdieu já se ocupavadessetema,quefoipercorrendoaolon-godesuaobraatéchegaraoconceitodeilusão biográca,aodefenderaidéiadequeosentidodecausalidadeesentidocoerenteéalgoatribuídoàsaçõeshuma-nas.Seosentidoglobaldosujeitoesca -
paatémesmoàsuaautopercepção,restaaos analistas recorrer à objetivação do
habitusquedecorredainteriorizaçãodosocialpeloindivíduo,demodoestável,porémsujeitoamodicações. Habitussetorna,então,umcon-
ceitoaseroperacionalizadonabiograa,namedidaemquerevelasistemadedis-posições socialmente constituídas que,emseuconstantemovimentoestruturan-te,estánaorigemeunicaaspráticasdosagentessociais( Economia das tro-
cas simbólicas,1998).2
Asmarcasdistintivasestãopresen-tesnonome,nobiológicoenasaçõesdosindivíduos,denindotrajetóriascomunsnoscamposnosquaisseinsere.Suapre-sençacomodiretrizdapesquisapermite
situarosagentessociais–osindivíduos –socialmente,pelatrajetóriadiacrônicanosdiversoscampos.Talprocedimentometodológico permite escapar à ilusãobiográcapelaconstruçãodecertostra -
çospertinentes,emtermosdeestratégiaseinjunçõesocorridasemcadacampoequeafetamdiretamenteosindivíduos,osquaissemovimentampelostraçosdoha-
bitus,sujeitosarelaçõesdepoder. Se taiscolocaçõesdeâmbitoso-ciológicopermitemumasosticaçãodapesquisa, requerem do historiador uma
tomadadeposiçãosobreoprotagonismoindividualeograudeautonomiadossu- jeitosindividuais,ousuavulnerabilidadediantedasforçasqueoperamnoscamposnosquaiselessemovem,testemunhodacomplexidadedotrabalhodepesquisa. Recorro aqui a Giovani Levi(1996)queestabeleceuimportantediálo-gocomBourdieuemUsos da biograa
earmaa“irredutibilidadedosindivídu-osedeseuscomportamentosasistemasnormativosgerais”,emboraaceiteoes-
tabelecimentoda “superfíciesocial”daaçãodosindivíduos.Aindaassim,háqueatentarparaoselementoscontraditórios,afragmentaçãodostemposedosritmosdavidadosindivíduos,pelosmovimen -
tosincessantesderetornos,idasevindasqueocorremnumaredederelaçõesnasquaisosindivíduossedenem. Leviaproximaateoriasociológi-
cadavalorizaçãodaaçãoindividualaoanalisarojogoentreindivíduoegrupo,entrebiograaecontexto,reconhecendoaexistênciadedeterminaçõesdasquais
2 Para estas considerações sobre Bourdieu, vali-me sobretudo de sua interpretação por Montagner, 2007.
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 14/16
29
oindivíduonãoconseguefugir,masdis-tingueumespaçodeatuaçãoindividual,queéoespaçodaliberdadeequesetra-
duzemescolhas,asquais,aoevidencia-
remincoerênciaseconitos,promovemamudançasocial.
Le Goff e a Nova História
Dele veio grande renovação dogênero, comumareexão aprofundadadas condições da escrita deumestudo
biográco sobre personagem relevantepara a históriadaFrança, pormeio daqualbuscoucompreenderquestõesnãorespondidasparaoséculoXIII.Estetra-
balhoconstituiu-senumareexãosobreafabricaçãosocial,ouseja,ascondiçõesdeformaçãodamemóriacoletiva,sobrealgunsaspectosdopersonagembiografa -
do.Alémdisso,abordouaarquiteturade
sua construção com asdiculdades,oslimiteseasespecicidades.OresultadonaléareconciliaçãodabiograacomaHistóriaque elege o indivíduo comocentro de relações sociais e estabeleceemlugardalinha,aredeeainterfacedos
diversosplanos. Do ponto de vista teórico-meto-
dológico,oexpoentedaterceirageraçãodos Annalesapontouasdiculdadesdecultivodogêneroaparentementefácilemostroucomoépossívelfugirdeabor-dagens“anacronicamentepsicológicas”,ouqueutilizemcomfacilidadeanoçãode mentalidades ou o recurso ao anedóti-
co. Nãofazconcessõesaoarmarqueosproblemasenfrentados na escrita da
Históriasãoosmesmosencontradosnaelaboraçãodeumabiograacujopercur-socompreendeaproposiçãodeumpro -
blema,acríticadasfontes,otratamentonaduraçãolongaosucienteparacom-
portar a dialéticadacontinuidade e damudança,atônicanaexplicação,odis-tanciamentodohistoriadoremrelaçãoàquestãotratada(São Luis,1999p.14).
Nestemagistraltrabalhoencontra-seatradiçãohistoriográcacujopontodepartidaestánaconcepçãodeumahis-tóriaglobalequeapartirdaíconsideraoindivíduocomo“sujeitoglobalizante”,emtornodoqualseorganizatodoocam-
podapesquisa”(p.15),aindaquereco-nheçaserutópicaabuscadeumconheci -mentointegraldoindivíduo:lacunasnadocumentação,silêncios,descontinuida-des, incoerências estão sempre presen-tes. Dialogando com a literatura, vênoprocedimentobiográcoanecessida-dedeproduçãode“efeitosdoreal”,queaproximamotrabalhodohistoriadoraodoromancista,poiselessãoobtidospelaescrita,peloestiloepelotrabalhocomas
fontes(p.16).Resguarda,assim,ohisto-
riadordaspossíveistentações. Os aportes dos Annalessãore-
nadospelodiálogoqueestabelececomBourdieu,PasseroneGiovaniLevi:en-dossaateseda“ilusãobiográca”evaimaislonge,apontandooperigoda“uto-
piabiográca”quenadamaisseriaqueoempenhoemnãodeixarescaparnenhum
detalhe insignicante (p.18). SeguindoospassosdeLevi(1996),alertaparaaarmadilhada“cronologiaordenada”,da“personalidade coerente e estável, dasaçõesseminérciaedasdecisõessemin-
certezas”(p.18),aindamaisemsetratan -
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 15/16
30
dodeseubiografado,cujavidasefazrevestirdebrumas. Além da fuga dessa ilusão, fogetambém dos determinismos armandoque“São Luísnãovaiimperturbavelmen-
teemdireçãoaseudestinodereisanto,nascondiçõesdoséculoXIIIesegundoosmodelos dominantes de seu tempo.Ele se constrói a si mesmo e constrói sua
épocatantoquantoéconstruídoporela.Eessaconstruçãoéfeitadeacasos,hesi-tações,escolhas”(1999,p.18).
Masomaissignicativodesuasposiçõesteórico-metodológicasconsistenaconstantebuscadaarmaçãodaliber-dade individual manifesta nas escolhasrealizadas pelos indivíduos diante depossibilidades.AssimcomoLevi(1996),postula a liberdade deque dispõemosagentes diante de sistemas normativosque também apresentam contradições.
Nosinterstícios,as escolhasindividuais(p.19).RecorreaBourdieuemCoisas di-
tas(2004),paraarmarqueoindivíduosóexistenumaredederelaçõessociaisdiversicadaseestadiversidadelheper-mitetambémdesenvolverseujogo.
Umaúltimaquestão:arelaçãodobiografadocomotempoapresentapers -pectivasprópriasdecronologiaeperio-dização,aopostularaarticulaçãoentreo tempo da biograa e os tempos daHistóriaemseusdiferentesritmos.Re -
lembrandoMarcBloch,armaque”oshomenssãomaislhosdeseutempodoquedeseuspais”(1997).EencerracomatesedeBorges:“Umhomemnãoestáverdadeiramentemortosenãoquandooúltimohomemqueoconheceuestátam-
bémmorto”(p.24-25).
RefeRências
ABREU,AlziraAlvesDe. Dicionário Biográ-
co:aorganizaçãodeumsaber.Caxambu,IIEncontroAnualdaANPOCS,1998.
ARTIÉRES,Phillipe.Arquivaraprópriavida. Estudos Históricos ,RiodeJaneiro,CPDOC,
n.21,1998.
BLOCH,MARC. L´étrange défaite :temoigna-ge.Paris:Gallimard,1990.__________.Apologiepourl´histoireouMé-tierd´historien.Paris:ArmandColin,1997.
DELORY-MOMBERGER,Christine. Les his-
toires de vie.Paris:Anthropos,2000.
BOURDIEU,Pierre.Coisas ditas.SãoPaulo:
Brasiliense,2004.__________.O poder simbólico.RiodeJanei-ro:Bertrand-Brasil,2002.__________. As regras da arte.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1996.__________. Actes de la Recherche en Scien-
ces Sociales.L´ilusionbiographique,p.60-72,1986.__________.Ailusãobiográca.In:FERREI-RA,MarietaDeMoraes;AMADO,Janaína
(Org.)Usos e abusos da História Oral .RiodeJaneiro:FGV,1976.
__________. Economia das trocas simbólicas.SãoPaulo,Perspectiva,Trad.deSérgioMiceli,1998.
CANDAR,Gilles.Lestatutbiographique. Bul-
letin d´information scientique.Corresponden-
ces.IRMC,61,2000.Disponívelem:www.irmcmagreb.org.
CARLYLE,Thomas.Os heróis e o culto dos
heróis.SãoPaulo:CulturaModerna,[s.d.].
CHARTIER,Roger. Au bord de la falaise.L´histoireentrecertitudesetinquiétude.Paris:
5/11/2018 A Biografia e a Historia Teresa Malatian - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-biografia-e-a-historia-teresa-malatian 16/16
31
AlbinMichel,1998.
CHAUNU,Pierre. Histoire quantitative, his-
toire serielle.Paris:ArmandColin,1978.
DUBY,Georges.GuilhermeMarechalouomelhor cavaleiro do mundo.Trad.deRenatoJanineRibeiro.RiodeJaneiro:Graal,1995.
FEBVRE,Lucien. Martinho Lutero, um desti-
no.Lisboa:Ed.ASA,1994.
FERRAROTTI,Franco. Histoire et histoires
de vie.Laméthodebiographiquedanslessciencessociales.Paris:LibrairiedesMéri-diens,1983.
FERREIRA,MarietaMoraes;AMADO,Jana-ína(Org.)Usos e abusos da História Oral .RiodeJaneiro:FGV,1996.
GAY,Peter.O coração desvelado.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1999.
GINZBURG,Carlo.O queijo e os vermes.São
Paulo:CompanhiadasLetras,2002.
LEGOFF,Jacques.São Luís.RiodeJaneiro:Record,1999.
LEFÈBVRE,Henri. A soma e o resto.[S.N.],1989.
LEJEUNE,Philippe. Le pacte autobiographi-
que.Paris:Seuil,1975.
LEVI,Giovanni.Usosdabiograa.In:FER-
REIRA,MarietadeM.;AMADO,Janaína(Org.)Usos e abusos da História Oral .RiodeJaneiro:FGV,1996.p.167-82.(8.ªed.,2006)._________.Lepouvoirduvillage.Paris:Gallimard,1989.
LEVILLAIN,Philippe.Osprotagonistas:dabiograa.In:RÉMOND,René(Org.)Por uma
história política.2.ed.Riodejaneiro:FGV,2003.p.141-84.
LEWIS,Oscar.Os lhos de Sanchez.Lisboa:Moraes,1970.
MAITRON,Jean. Le mouvement anarchiste
em France.Paris:Gallimard,1992.
MARX,Karl.O 18 de Brumário de Luis Bona-
parte.RiodeJaneiro:Ed.Vitória,1956.
MOMIGLIANO,Arnaldo.Problèmes
d´historiographie ancienne et moderne.Paris:Gallimard,1983.
PINEAU,Gaston.Pratiques de formation.Montreal:Andyre,1996.
SCHMIDT,BenitoBisso.Construindobiogra-as. Estudos Históricos ,RiodeJaneiro,n.19,p.3-21,1997.
_________.Ogênerobiográconocampodoconhecimentohistórico. Anos 90,PortoAlegre,v.6,p.165-92,1996.