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A CASA DO ENFORCADO Q - agal-gz.orgagal-gz.org/faq/lib/exe/fetch.php?media=gze-ditora:contos_grotes... · No interior da casa, os homens, embrutecidos pelo miasma, ... chegou, viram

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A CASA DO ENFORCADO

Quando finalmente conseguiram vencer a resistência da madeira

da janela – que fora a única abertura a vergar ao ímpeto de um aríete improvisado –, os homens retrocederam de surpresa, nojo e horror. De uma densa névoa – uma bruma mefítica – que emanava dos intestinos da casa velha, veio a surpresa, capaz de paralisar os mais impávidos e amolecer os mais empedernidos. Polca – o velho e bom Polca, que até então se contentava em relamber o que restara do sangue nas patas hirsutas, condoídas e tontas de tanto escavar a rude porta de madeira ancestral – saltou pela abertura de luz que os homens abriram e quase cegou ao contato do Sol, que agora desmaiava. E, com as fuças enodoadas, onde os dentes arreganhados ainda retinham em suas frestas negros nacos de carne apodrecida, emitiu um ganido ensandecido, para depois galgar o horizonte constrito, encharcado de manguezal, sobre o qual escorria e ondulava o sangue silencioso do anoitecer.

No interior da casa, os homens, embrutecidos pelo miasma, mantiveram os lenços apertados contra os narizes. Dois deles erguiam candeias olorosas de querosene, porque o antro era mais escuro que a morte e mais pestilento que um túmulo. Mas contam os antigos que foi um deles, o que espraiava as mãos nuas, espalmadas contra a escuridão de pedra, que tocou o cadáver do ancião. Quando o lume chegou, viram os homens que a velha figura oscilava no vazio, colhida em pleno no ar pelo próprio cinto – o puído cinto de couro que contivera um magro ventre por tantos e tantos anos. E bailava serenamente aquele corpo informe, como que tangido pela brisa suave e asséptica, quase poética, do anoitecer invernoso do Recife.

A antiga casa, onde se enforcara o ancião, e que hoje não existe mais, era uma das mais sólidas construções de Campo Grande. Construída sobre alguns alicerces devastados aos invasores, a vivenda ressurgira seguindo os passos dos sóbrios e elegantes engenheiros flamengos. A casa era, assim, de pedra. Pedra absurdamente equilibrada sobre um ângulo improvável de outra pedra, como ainda se vê nos antigos trapiches abandonados do velho Recife. Compunha-se de um único pavimento, comprido e estreito, tenaz em evaporar a luz aos primeiros e ousados passos. E as suas paredes, rebocadas pela argamassa úmida, carcomida de mofo e estrias, deixavam entrever, no sulco das profundas cicatrizes, que desciam céleres dos caibros repletos

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de fungos, a face ossuda das pedras revelhas, que reagiam e fulguravam à luz das candeias, como crânios a desafiar a imortalidade da própria morte.

A musculatura das paredes laterais erigia-se incrivelmente forte. Sobre ela, apoiavam-se as tesouras de madeira de lei.

E era a trave da última das tesouras – a mais mofada e encardida – que sustentava o peso morto, e dele fazia agora um pingente assustadoramente desumano e lúgubre. Parecia incrível, à luz mortiça dos lampiões, constatar o cuidado que assediara o homem velho ao afundar, na língua puída, que era a ponta de seu cinturão, os pregos vigorosos e brilhantes. Possível ainda seria ouvir o eco seco da madeira reverberando por cada um dos ossos que compunham o esqueleto da casa anciã, como um pulsar de um coração ainda mais nefasto e carcomido pelo bolor dos anos. E escutar – enfim – o esgar da madeira – que, durante séculos, não emitira um rangido sequer – lamentar-se, com um angustiante protesto, ao mergulho resoluto que o homem descreveu no mais negro dos mais negros vazios.

Quem o via ali, tão desolado em sua mortal solidão, não podia adivinhar a calma com que o homem, roto de alma, ajustou, num gesto altivo e solene, o cinto ensebado ao pescoço exangue. E nem cogitou de que restaria apenas o espetáculo monótono de um homem bailando suavemente o seu vazio de morte, tão melancólico e tão sombrio que só a bênção do Deus da inconsciência eterna poderia proporcionar e compreender.

E Polca, sozinho naquela casa tão obscura, não cansava de lamentar, com o seu uivo animal, a ausência de um dono que, enigmaticamente, se fazia tão presente. Se ali estava, por que não se mexia? Por que não sabia que estávamos ambos famintos? Por que somente se balouçava na trave, para lá e para cá, quando tocado pelas patas cansadas, e não cuidava da água e dos alimentos? Não lhe trouxera alguns ratos para comer? Não implorara que repartisse comigo as ratazanas?

O tempo girou os seus gonzos cansados, e finalmente Polca percebeu que aquele ali, dependurado num cinto velho, não era mais o seu dono. O cheiro mudara. A atitude mudara. Nenhum afago. Nenhuma palavra. Não mais havia a ordem de entrar e de sair. Aquele não era mais o seu dono. De alguma forma, algo que jamais imaginara, e que a sua mente canina não entendia, usurpara o bom homem que o

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alimentava e que cuidava carinhosamente de suas feridas, quando os ratos motejavam de suas orelhas.

Então polca, corroído pela fome, começou por mastigar as sandálias que pairavam opressivas acima de sua cabeça. Ganiu, deu várias voltas em torno do próprio rabo. Latiu. E passou a lamber os pés daquilo que descia dos céus, e que tomara o lugar de seu dono.

Depois mordeu.

Roeu e mordeu novamente.

Excitado, lambeu o sangue revelho com um furor que ele próprio desconhecia.

Algum tempo depois – um tempo que somente a mente canina pode medir e eternizar – o cão sentiu uma secura na língua, que grassou à insanidade. Mastigando e dilacerando, uivando e roendo, assim ficou o animal, até saber que não era fome o que sentia.

Era sede.

Era uma sede que se tornava mais pungente a cada naco de carne podre que extraía das pernas descarnadas do ancião. Uma sede monstruosa, que quase tocava o infinito. Mas não parou em sua agitação canina, rosnando e eriçando os pêlos nervosos. Mordeu, ganiu, gemeu e dilacerou até não mais poder roer osso algum. Quando, finalmente, foi avisado de que os ossos e as carnes sulfurosas não mais estavam ao seu alcance, apesar de todo ímpeto e de toda fúria com os quais se lançava contra a beira do cadáver, mergulhou os focinhos entre as patas traseiras, mastigando e remoendo o próprio rabo. Enrodilhou-se, pois, como uma serpente iracunda. Tremeu e espumou num canto escuro, qual um endemoninhado. Tremeu e gemeu. Ganiu e dormiu.

Outra eternidade passou-se até que viesse um despertar com a súbita deliberação de fugir e abandonar para sempre o cadáver que amputara.

Os ossos do ancião – homem pobre, valoroso e solitário – insinuavam-se pela abertura das calças mutiladas. E quando os homens viram as pontas dos fêmures carcomidos, corroídos pela fúria alucinada do pobre animal, caíram numa espécie de torpor e de horror indizíveis. O luzir dos ossos brancos, impacientemente triturados por dentes sôfregos, ainda mais sinistra tornava aquela oscilação pendular, aquele

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bailado inerme de enforcado. Assim, encetaram uma busca completa na região, para matar o animal, porque induzidos a um horror bem mais profundo que o necessário. Abateram o animal a pauladas, sem compaixão alguma, e puseram-no a afogar-se no charco lindeiro de Santo Amaro. Somente depois que se riram e se jactaram da própria crueldade, é que encontraram, no colete do enforcado, um pequeno bilhete, metido na tampa de um relógio de algibeira, a embrulhar os retalhos de um retrato feminino. O bilhete, escrito pela tinta púrpura da solidão e do desamparo, dizia apenas:

“Cuidem bem do meu cão, pois é tudo que tenho e o melhor do que jamais tive”.

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A CRIATURA DO MAR

Não sei como sobrevivi. Se é que sobrevivi verdadeiramente.

O Urano, um galeão de bandeira grega, saíra do porto de Roterdã

com destino às Antilhas, com escalas em Lisboa e nos Açores, mas foi surpreendido por uma tempestade, a poucas milhas do arquipélago. O dia estava claro e o ar diáfano. Respirava-se uma atmosfera luminosa e pura. Mas, de repente, do nada veio uma neblina fria, pegajosa em seus múltiplos tentáculos, que engolfou o galeão como a mão de um deus inclemente. E depois veio a chuva, uma chuva áspera, pesada, e contínua, encontradiça apenas nas regiões mais agrestes e desoladas dos trópicos. Então ribombaram trovões. Os raios retalharam a neblina como finíssimas garras nervosas. Sentimos todo o casco estremecer, perfurado pelos gumes afiados dos arrecifes angulosos. O casco rompeu-se docilmente, como se a sua substância fosse tênue como o invólucro de um ovo. A água jorrou por todos os lados e eu fui violentamente arremessado ao mar. Embora fosse dia, a névoa densa convolava tudo em treva, e foi com muita sorte que consegui segurar-me a um barril de vinho em que um velho companheiro já havia buscado refúgio.

A tempestade amainou, mas o ar continuava saturado pela neblina fria. O mar estava incrivelmente calmo, mas não nos era admitida a projeção de um olhar capaz de perfurar a espessura de toda aquela névoa. Nada mais se enxergava. Mas, de longe – muito longe, supúnhamos –, o vento trazia uma canção melodiosa, cuja origem nos parecia um mistério tão espesso quanto o eram as brumas circunstantes. Quando, finalmente, a treva se dissipou, tão inesperadamente quanto vieram, eu e meu companheiro constatamos que não estávamos sós. Com horror, verificamos, aos poucos, que muitos corpos flutuavam no espelho d’água, bem próximos de nós. Eram marinheiros do Urano e todos eles traziam, singularmente, as cabeças decepadas. Os corpos desolados exibiam os pescoços cruelmente dilacerados. E não nos e era possível estimar a dimensão das mandíbulas que produziram tamanha aberração.

Anoitecia. Oh, como era linda a moça que vinha ao nosso encontro, em seu bote gracioso, para nos salvar! Com que elegância e delicadeza nos estendeu os braços brancos e majestosos! Com que cuidado deu-nos água, vinho e pão! Era ela diáfana como o orvalho da

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primavera e longos eram os seus negros cabelos, que a brisa enfunava com uma meiguice sem fim. Vestia uma túnica branca, como de deusa grega, que descia do colo e lhe escondia completamente os pés.

Quando a noite veio, repleta de luar, a nossa salvadora acendeu o lume e nos cantou maviosamente, como nos cantaria uma sereia. Quando meu companheiro adormeceu, a musa chamou-me a si e me selou com um beijo calmo e profundo. A princípio doce, saboroso, seivoso... Mas a seiva azedou, ganhou uma consistência de uma gosma, repugnante como o sabor de ostras apodrecidas. Nauseado, o meu companheiro despertou. Fora a intensidade do cheiro pútrido, de criaturas marinhas decompostas, que a mulher exalava, que o fizera acordar-se. A verdade é que eu queria me desvencilhar da criatura, mas não podia. Estava preso a ela como ostras incrustadas nos cascos de navios avoengos. Então a coisa me repeliu. Avançou para o meu amigo, engendrando um bote assustadoramente rápido e eficaz. Seus olhos, que agora eram dois imensos globos de azeviche, refletiram o grito inerme do meu companheiro. E da fralda de sua túnica escapuliu, pesadamente, a cauda de peixe, a mesma cauda que ela tão bem escondera de nós, mas que agora, em sua excitação, pôs-se a abanar num ritmo frenético. Percebi, na luninescência que o candeeiro irradiava, que a pele da coisa se rompia, rasgava-se em tiras, desnudando malhas de escamas sobrepostas, fortemente unidas entre si, mas maleáveis, escuras e fétidas. Seu rosto se fazia bojudo, opaco, guarnecido de fortes e salientes mandíbulas, encrespadas por dentes anavalhados. Então aquilo distendeu assustadoramente os maxilares, de onde escorria uma gosma fétida, e, num assalto voraz, lacerou a cabeça de meu amigo. Com horror, vi que a coisa se punha a mastigar e a engolir ruidosamente, com uma voracidade somente comparável ao deleite que o triturar do crânio lhe produzia.

Depois, a coisa atirou-se ao mar. E, enquanto lentamente se afastava, a Lua me permitia ver que a sereia retomava, aos poucos, do púbis para cima, a bela forma de mulher.

Novamente anoitece. A brumas vieram e agora se dissipam. Estou trancafiado num catre de um pequeno barco pesqueiro. O mesmo que me recolheu, há dois dias. Julgam-me louco. Não me ouvem. Mas, como eu gostaria de gritar aos homens do bote salva-vidas – que consigo divisar da escotilha esfumada desta cela imunda – para que não se aproximem aquela mulher. “Oh! – eu diria – Não socorram aquela coisa de túnicas brancas e cabelos negros! Oh, não socorram o demônio cruel que, como um anjo indefeso, clama por socorro em um bote à deriva!”

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A MORTE ABSOLUTA

Dedico este trabalho à Irmandade das Sombras.

Daqui, onde estou, consigo divisar os muros da cidadela. Eles se

elevam rudemente a partir de uma grande rocha, que, incrustada no cerne de uma áspera colina, mergulha subitamente num abismo profundo e desolador. Lá embaixo, lançando-se furiosamente contra os rochedos pontiagudos, as águas cálidas e espumantes de um mar sombrio enroscam-se nas fraldas da falésia com o cingir viscoso de uma víbora ondulante e traiçoeira; e, do alto do pináculo, que domina a grande praça, posso ouvir o seu monótono burburinho.

Vejo, perfeitamente, com o único olho que me resta – o outro está irremediavelmente fechado –, o pórtico de entrada, que agora se encontra completamente aberto. Em uma das colunas jônicas, que sustentam o portentoso teto de pedra de cantaria, o meu companheiro de gatunagem encontra-se preso em uma gaiola. Sei que ele ainda está vivo, porque o vejo, vez por outra, deixar cair uma das pernas por entre as grades da pequena jaula oblonga. E ele balança aquela perna esquálida, aquele punhado de osso revestido de pele flácida, como se estivesse a agitar a sede imensa. A sede a que fora condenado a padecer até que a morte adviesse. Mas eu o invejo no seu destino. Gostaria imensamente de estar cumprindo aquela pena infamante, de estar dependurado numa daquelas gaiolas mal-cheirosas que servem de macabro ornato à entrada decrépita da cidadela. Sei que, vez por outras, algumas beatas dão-lhe furtivamente um punhado de água e atiram-lhe poucas migalhas de bolachas duras e mofadas.

De quando em quando, alguém passa por mim e me esbraveja alguns escárnios. Cuspiria em minha face se me pudesse alvejar. Daqui de cima, com o meu único olho disponível, não enxergo o seu semblante iracundo; mas os meus ouvidos ainda estão apurados o suficiente para escutar e discernir a natureza dos impropérios que a mim se elevam. Estou em exibição, não sei há quantos dias, justamente para isso.

As moscas não me incomodam mais. Acostumei-me a elas. Temo apenas que uma beata piedosa escale a escada corrediça, e, por

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compaixão, feche-me o outro olho. Não gostaria de cair de vez na escuridão.

Mas eis que o verdugo vem subindo o cadafalso. Ele me olha e faz justamente o que eu mais temia. Não por piedade, mas por dever de ofício. Um ofício que ele cumpre muito bem. Ninguém melhor do que eu para saber disso. Agora eu não vejo mais nada. Apenas sinto que ele me suspende pelos cabelos desgrenhados, eleva-me à altura dos seus olhos, e me lança uma merecida escarrada na testa. Depois, atira-me sobre os ombros com indiferença, e leva-me consigo com a praticidade de quem conduz um simples bornal de caçador. Não sei para onde ele vai me conduzir. Eu agora sou um pingente lúgubre em suas mãos de carrasco. O que resta de meu destino – e isto nem um pouco me apavora – está nas mesmas hábeis mãos que empunharam a foice sobre o meu pescoço. Não sei se ele me enterrará. Ou se me lançará falésia abaixo, ao encontro do mar borbulhante. Para mim, tudo isso é indiferente. O meu pavor é outro. Aos poucos, sinto-me privado dos sentidos, mas não da consciência. Em breve serei apenas consciência atirada num fosso escuro e perpétuo, num precipício sombrio de silêncio e imobilidade absolutos, onde o tempo recusa-se a fluir. Até quando permanecerei assim? Até quando estarei prisioneiro de meu crânio, escravo de meus próprios pensamentos? Queira Deus que a morte exista. Queira Deus que me sobrevenha a morte absoluta.

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LIEBESTRAUM

Para Cláudio Soriano

A mente humana é, sem dúvida, uma das mais notáveis criações

da natureza. Tal notabilidade, contudo, não impede que o processo genético das sensações, emoções e pensamentos possa, eventualmente, transformar-se numa fonte inesgotável de horrores indizíveis, poço infindo de sofrimentos inimagináveis.

A esta conclusão cheguei após reler – e agora ele está pousado à minha frente, carcomido pelo tempo, tingido pelo sangue de longas datas coagulado – o breve relato de Venturoso. Permita Deus, em sua infinita bondade, que os sofrimentos enfrentados pelo meu amigo não hajam sido tão intensos quanto o que ele alega haver experimentado; e que, neste exato momento, possa gozar do alívio que não logrou desfrutar ao longo de sua breve – porém terrível – existência.

Eis o que, sem delongas, diz o relato do infeliz Venturoso. E que o bom Deus tenha piedade de sua alma:

“Prezado Macárius: Escrevo-lhe, nesta hora derradeira, porque você é o único ser existente – fora Deus e os demônios – que conhece os horrores causados pela minha excêntrica enfermidade. O meu mal – para cuja natureza os tratados mais recentes, ou mesmo os alfarrábios cabalísticos de remota antigüidade, não me logram explicações – acompanha-me, como você bem sabe, desde a minha mais tenra infância. Sabe você que sempre fui propenso a problemas oníricos, e as agonias infindas das noites de esmorecimento e torpor são a exclusiva causa da apatia e da languidez que tão profundamente martirizam meus estados de vigília. Com o passar dos anos, a predisposição aos surtos catalépticos – nos quais meu corpo inerte aprisionava, como uma mordaça inexorável, pesadelos brumosos e espessos –

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evoluiu e acentuou-se, tanto na constância quanto na intensidade, a tal ponto que até hoje me abate e me assusta a simples menção da palavra noite. E tenho lutado, com todas as forças – se é que elas existem –, sem razoável sucesso, contra o simples fato de dormir. Dormir! Esse bálsamo! Mas para mim algo que não sei chamar senão pavor. Ontem, porém, após cinco – e não dois nem três, tenha em mente – bem-vindos dias de ininterrupta e fatigante vigília, porque extremamente necessária, mergulhei, novamente, como um náufrago desesperado, nas trevas abissais, povoadas por tenebrosos e implacáveis pesadelos. Estava eu reclinado em minha poltrona de vime, a ler um enfadonho tratado de um obscurecido filósofo francês, quando, de súbito, vi que esta triste consciência era arrastada, impiedosamente, aos sulfurosos estados letárgicos, que tão debilmente limitam o sono da vigília. Tenho, nessa zona de percepção indefinida, ainda que fechados os olhos, a faculdade de enxergar, com cristalina nitidez, o mundo extático que circunlimita as minhas pálpebras pesadas, agora inúteis, porque, como lhe disse, posso perfeitamente devassar o intransponível. Demais, posso escutar as vozes marinhas que flutuam ao sabor do vento Norte, malgrado o assediante e monótono zumbido grave, cheio, pesado, que me irrompe, líquido, a cavidade de cada um dos ouvidos. E a esse estado letárgico, a princípio agradável, mas depois preocupante, segue-se uma sensação de solidão e abandono, de prisão em si mesmo, que parece não possuir duração, de tão longo que é o seu espraiar, e tão intenso que é o seu poder. Vem, então, uma violência súbita na alma, quase física; segue-se, daí, um frêmito, que antecipa o esperado e invencível torpor, em que os meus músculos enrijecem, e cada fibra retesada do meu corpo é varrida por gélidos calafrios, em ondas perenes, de variada intensidade. Neste estado de profunda morbidez – que me arrasta ao pânico incontrolável, em que minha consciência parece cair, cair e cair num fosso escuro e infindo –, todo esforço concentrado no ato de acordar é inútil. Não há força interior, não há esforço supremo, grandioso que seja, que faça a alma ressurgir do abismo, devolvendo-me ao súbito alívio da vigília. Ao invés, o torpor amplia-se em cada uma das direções multidimensionais de minha consciência, e expande-se, e infla-

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se, com eólica velocidade, até preenchê-la do mais negro e profundo horror. E meu corpo, inerte, rígido como de cadáver, tudo aceita: estou rendido, pronto para morrer. Aqui morro eu... É aqui que ressurgem, sedentos de alma, os pesadelos vampirosos.

Caindo sobre as lápides limosas. Respiro, devagar, o ar brumoso, repleto de trevas ululantes. O vento traz o seco aroma de velhas sepulturas. Há uma Lua no céu e a luz cálida refulge, como acalanto, nas garras frias, revolvidas, que encimam as árvores velhas e esguias. As cruzes, porém, recuam nas trevas, mas é para elas que eu dirijo os meus passos entorpecidos. Meu cérebro – minha alma? – está completamente vazio. Sou um algo impelido pelos ventos, e sussurram-me aos ouvidos outros ventos, em acordes dissonantes, dissidentes, o nome de minha loucura (Catarina?). E lá está a lápide para onde os ventos – todos os ventos – me empurram:

“AQUI JAZ

CATARINA PATERNOSTRO

NASCIDA EM 28-II-1727 FALECIDA EM 28-II-1742

“QUE DEUS TENHA PIEDADE DE SUA POBRE ALMA,

POSTO QUE SUA CARNE DESONROU O PRÓPRIO NOME”

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Ponho-me a escavar, febrilmente, o solo empedernido, cheio de desonra e aridez, até fluir o sangue, respingando pelas tiras em que se vertiam as pontas dos meus dedos. A Lua lúgubre vagueia, louca, no céu, mas não emite um fiasco do mais miúdo lume. Um frêmito revolve o meu coração. Mas meu coração está oco. A palpitação não vem do meu coração. Vem do âmago do ataúde. Algo nele pulsa, se move, se contorce, se debate numa agonia alucinada. Por isso trabalho rapidamente, rapidamente, rapidamente... E, no momento em que a madeira podre do ataúde dissolveu-se ao mínimo contato com os vapores da noite, a Lua emitiu um brilho ensandecido. E vi as órbitas, devassadas pelos vermes, que um dia engastaram, como uma esmeralda no anel, os olhos vívidos da bela Catarina. E, extasiado, atônito de paixão, acolhi em minha boca a língua túrgida e negra que me estendia o cadáver de Catarina, cuja carne desonrara o próprio nome. E, sob a sombra da lápide, repeti o gesto de desonra, nas frias carnes que um dia compunham, incorrupta, a bela Catarina ...”

Visitei, hoje, o túmulo do meu amigo Venturoso.

O que a vida recusa-se a fundir, bem o fazem as sombras.

É que a lápide, também manchada de desonra, onde repousa

Venturoso, ergue-se ao lado do sepulcro de sua amada Catarina, ambos à sombra de uma revelha nogueira.

Há exatos cinqüenta anos, não mais, ambos foram sepultados. E eu também. Doloroso sepultamento é este, a quem chamam vida. Minha carne é um sepulcro e os meus ossos são a minha alma.

Mas eu era jovem, há cinqüenta anos, não mais. Numa visita matinal, corriqueira, não encontrei Venturoso, a queixar-se de sua aborrecida insônia.

Em a sua escrivaninha, apenas uma carta, a mesma carta sobre a qual agora me debruço. Em sua loucura, retornara a casa, deixara-me

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uma confissão sombria, escrita às pressas e, simplesmente, desaparecera, ao encontro do Sol que debilmente espraiava uma expectativa de amanhecer.

Para muito além dos umbrais encimados por piedosos serafins, e alhures das cruzes vicejantes, mas no sítio desolado onde se enterram os desonrados e os suicidas, vi um cadáver de mulher, insepulto. E vislumbrei, também, o corpo de meu amigo, a oscilar suavemente, contido pelo nó da corda ao pescoço, sob um galho da nogueira, árvore ancestral, e tão descarnada quanto as extremidades violáceas dos dedos de Venturoso, apinhadas de sangue e lascas de madeira.

Mas o meu amigo sequer esfriara. Havia ainda um suor viçoso, que exsudava de sua fronte.

O que a vida separa, muito bem as trevas unem.

Dir-se-ia que em seus olhos mortos, terrivelmente abertos, ainda perpassavam – e eu podia lê-los – alguns sonhos.

E alguns pesadelos, talvez.

Dir-se-ia.

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MATER DOLOROSA

Para Pop

“... e esta vida embora não sendo minha

é possível” Aldo de Lima

I

A súbita dor fora tão intensa, tão brutal, que Maria se viu

acordada no meio da noite, dobrada sobre o próprio corpo, uma das mãos mergulhada no ventre que ardia em fogo, a outra em riste, como garras, agitando a escuridão.

Cambaleou até a janela, mergulhando a cabeça desgrenhada na noite alta, procurando ar. Mas a boca - tão aberta quanto os olhos vesgos - aspirou apenas o vácuo.

Então tossiu, como se expulsasse demônios do peito, para depois sorver, aliviada, a podridão que exalava da noite morna.

Ainda se refazia quando a criança chorou.

Maria içou, com esforço sobre-humano, a menina que jazia, inquieta, no caixote de maçã, oferecendo-lhe o seio murcho.

A criança pareceu confortada ao simples contato com a teta, que se abria em tiras de carne viva. Mas, quando sugou apenas um filete de sangue aquoso, desatou num choro redobrado, uma frustração e um protesto tão profundos que as paredes do barraco tremeram de compaixão. A mãe contorceu-se de dor, a chama do estômago subiu aos seios e ganhou garganta. Maria tossiu novamente, respirou a noite podre, e depois chorou baixinho. A criança protestava em seu colo, agitando pernas e braços, uivando para a noite como um animal faminto e feroz.

* * *

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João Sabino mergulhou no ventre da coisa. Venceu, devagar, as ruelas toscas que eram o intestino do Alto da Peste. Àquela hora, já não mais se viam os pivetinhos, com seus ventres enormes pululando de vermes, correndo de um lado para o outro, brincando picula no esgoto a céu aberto. Nem se viam as mulheres com lata d’água na cabeça, rebolando as ancas flácidas enquanto ganhavam morro acima. A noite grassava, e os homens se reuniam em segurança para uma rodada de cachaça e um bom carteado.

No coração do Alto da Peste, o único prédio de alvenaria, mas sem reboco, com tijolos carcomidos pelos musgos, deitava as suas luzes elétricas sobre os copos de cachaça e a mesa de bilhar.

João Sabino foi ao balcão, pegou um copinho e aboletou-se numa mesa, onde Zé Galo e Rabicó batiam velhíssimas pedras de dominó.

Rabicó misturou as pedras com as suas mãos pretas e enormes. Quando as levantou, os jogadores caíram sobre as pedras como galinhas disputando milho.

– O serviço foi uma porra – disse Zé Galo, com o cigarro apertado nos dentes, enquanto João Sabino conferia as pedras que acabara de escolher. Tinha o olhar desolado. Zé galo saiu com uma carroça de sena. Parecia satisfeito. Rabicó limitou-se a servir.

– Eu toco – grunhiu João Sabino, ainda fazendo careta por causa da cana que entrara mal, acompanhando com a pedra o ritmo da música que esvaía do velho pulmão de uma radiola de fichas.

– Foi uma porra mesmo! Imagine que os danado dos pastor alemão não comero a bola. Não teve jeito de comer. Tá vendo que eu não ia me arriscar por causa de uma TV a cores? Toco também.

Rabicó cuspiu a cachaça antes de anunciar a batida, com um estalo vigoroso. Virou-se para Zé Galo:

– Tu é pé-de-chinelo, otário. E medroso. Não dá pr’estas coisas. Faz como o João, se especializa.

Alguém embaralhou as pedras. Meditabundo, Zé Galo respondeu de mansinho, olhando apenas para a sua quina-e-quadra:

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– Na especialidade de João Sabino, eu não entro. Não nasci para pegar no pesado, nem para ter patrão. Meu negócio é ser autômuno.

– É autônomo – corrigiu João Sabino, que estudara no Mobral, e bem sabia que ser autônomo, para a vida que o Galo vivia, significava deitar a mão no que é alheio.

Zé Galo mexeu-se nervosamente na cadeira, quase deixou as pedras caírem, mas não ficou por baixo. Sabia muito bem o ponto fraco de todos com quem jogava, quer no jogo mesmo, quer na vida. Mas quando o respondeu, o fez pausadamente.

– Eu não como da palavra bonita. Nem tu também. E quem come tua mulher não é tu, otário. Diz se a galega não tem cicatriz de ponta de cigarro bem no morro da xereca?

Rabicó, um homem gordo e preto, e com filariose na perna esquerda, caiu num sorriso brutal. Engasgou-se, a face avermelhou-se até onde podia. Cuspiu no chão e esvaziou o seu quartinho de cachaça.

Os olhos azuis de João Sabino injetaram-se de ódio e cachaça. E o ódio era maior que a vergonha. Levantou-se num ímpeto, derrubando a mesa. Empunhou o gargalo da garrafa de cachaça que lhe caíra quase aos pés, e muito ao alcance das mãos. As extremidades pontiagudas tremeluziram.

Zé Galo saltou para trás, desembainhando a peixeira. Mas Rabicó, com os seus punhos de aço, acertou-o quase no queixo. O larápio franzino, ágil e manhoso, perdera a faca na queda, mas ganhou o beco em carreira desabalada.

– Não quero confusão em meu bar! – Gritou Rabicó para a rua, arrastando a perna inchada, enquanto o Galo descia a ladeira como um foguete. – E você, Sabino, já tá muito bêbado. Arriba para casa que eu quero fechar.

– Me dá mais um quartinho pro corno aqui ... Pro corno aqui...

– Que corno que nada. Nada de quartinho.

– Só uma lapada.

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– Foi tu mesmo que dissesses, noite dessas, que apagou o cigarro no negócio de tua mulher faz anos. O negão só quer te perturbar. Não caia nessa, visse?

– Não interessa. Eu não disse nada. Ladrão filho da puta!

João Sabino engoliu, de gute-gute, a pinga que o gordo servira a contragosto. Depois pagou e saiu para o ódio, para a vergonha, para a noite imunda.

E para o destino inexorável. * * *

Na noite que beirava a madrugada, a criança loura e esquálida dormia sobre ventre dolorido da mãe.

A mulher, saudosa dos bons e difíceis dias do Sertão, quando o seu homem ainda era bom, contemplou a filha sob a luz rubra que escorria do candeeiro de lata e voltou a chorar, enquanto depositava a criança no berço – um gradil de maçã forrado de trapos – e cantava baixinho, comovida, os lábios colados nos ouvidos da pequerrucha:

“Dorme Mariana Dorme, dorme, meu amor Painho foi pra roça E ainda não voltou ...”

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II

Maria cochilava quando ouviu os pontapés na porta do barraco.

Era ele que voltava, bêbado de novo, destilando ódio e cachaça.

A dor de Maria recrudesceu. Quase vomitou, expondo o medo para fora.

Quando Maria abriu a porta, levou um pontapé no estômago, à guisa de boa-noite. Curvou-se sobre o corpo e rolou no chão de barro batido. Golfou um sangue feio e pegajoso, mas que a fez respirar e expulsar um suspiro curto, que sabia a fragilidade do alívio.

– Tu trepou com Zé Galo, sua vadia de uma molesta – foi o que disse.

A mulher gemia de dor, chorava de medo e protestava por Mariana, e isso mais irritava, mais ainda excitava o marido. Antes de levar outro pontapé, agora nas costas, que estalaram, Maria balbuciou:

– Trepei não. Trepei não, João.

– Bota comida que eu tô com fome – gritou João Sabino, aplicando um safanão no ouvido da esposa.

Maria se levantou, curvada para frente, a dor voltando a envolver sua garganta, como uma tenaz. Voltou com um prato pronto e os olhos muito assustados, prenhes de dor.

– João – disse com a voz humilde – , vamos voltar para Ouricuri. Meu leite secou, é de hoje que eu te digo. Não tem leite para a criança.

– É culpa tua se não tem leite.

Quando deu a última garfada, João parecia mais calmo. Quando bebia – e ultimamente bebia todos os dias –, costumava dar com a língua nos dentes. Diziam os mais sóbrios que se gabava das malvadezas que fazia. A história da cicatriz era troça de Zé Galo, certamente. Mas ainda tinha as suas dúvidas. Homem que é homem sempre duvida. Ao se levantar da mesa, meteu o cotovelo no estômago de Maria:

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– Se vire para arranjar leite para a putinha, que eu já gastei tudo de cachaça.

Resmungando, deitou no colchão sujo e puído, que servia de cama de casal. Adormeceu imediatamente.

Lá fora, a Lua fedia nas águas infectas do Capibaribe.

* * *

João Sabino despertou de chofre. Ainda estava bêbado, mas a

boca amargava e a cabeça latejava como se fora uma grande pústula. Bradou para que a mulher desse jeito na boca da putinha, que não parava de berrar e ele queria dormir para acordar cedo e ir trabalhar. Maria levantou, tomou a criança nos braços e ensaiou um acalanto que não dobrou a primeira estrofe.

– Já não basta esta miséria de menina e tu ainda canta! Cala a boca e faz esta peste dormir, visse?

– Você tá doido, João? Não vê que a menina está com fome? Já não te disse que meu leite secou? Desde ontem eu não peço para tu comprar o leite em pó?

– Cala a boca, porra! Eu não já disse que quero dormir?

João cobriu a cabeça com uns trapos que teimavam em ser um lençol. E esperou, impaciente, que a criança calasse. Mas ela insistia em gritar, e gritar tão forte quanto forte era a sua fome, tão alto quanto os seus pequenos pulmões permitiam que gritasse.

A mãe fazia psiu, agitava ainda mais rapidamente a criança em seu colo dolorido. Mas a fome da criança era vigorosa, crescia a cada minuto, tornava-se gigantesca como a impaciência do pai.

– Cê vai ver se essa putinha agora não cala – cuspiu João para si próprio, os punhos retesados, a voz tremendo de raiva e indignação.

João se levantou. Cambaleando, foi ao quintal. E quando voltou empunhava uma foice enferrujada.

João delirava.

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Maria, acuada como um animal, apertou Mariana contra o seio. Correu, mas foi agarrada pelos cabelos. Caiu de costas. O marido avançou, ficou de quatro sobre o vente da mulher e a espancou com uma fúria alucinada. Mas, a cada pancada que saía da destra retesada, mais ainda a mulher comprimia a criança contra o peito. Uma golfada de sangue escorreu do nariz fraturado de Maria, que, num reflexo fatídico, levou a mão ao rosto. Depois se arrependeu. O gesto facilitou o trabalho de João. O Homem arrancou a criança do braço de Maria, jogando a menina no chão de barro batido, como se fora um fardo inútil. A criança, por um longo momento, parou de chorar. João arquejava. Afrouxou a mão que empunhava a foice, certo da vitória. O problema parecia finalmente resolvido. Mas Mariana, para o desespero da mãe, e ensandecimento do pai, recrudesceu no choro. Agora berrava de fome e de dor. João pensou na última cartada.

A foice deslizou.

João ergueu a criança com ambas as mãos. E apertou, com seus dedos vigorosos, até ouvir o estalido de costelas quebrando. A criança arregalou os olhos, e desatou a uivar como um filhote de cachorro ferido.

A mãe arremessou contra o homem, cingindo-o por trás, à altura do peito, mergulhando as unhas afiadas. Num ímpeto, gemendo de dor, João Sabino largou a criança e investiu contra a cabeça da mulher com um punho cerrado. Neste momento, lembrou-se – com um prazer quase sensual – do dia em que, numa aposta, entre os colegas do canteiro de obras, enfiara um prego no compensado com o dorso da mão fechada. João sorriu ao ouvir o barulho oco que a pancada fazia. Depois chutou a mulher, antes mesmos que ela atingisse o chão.

– Vamos ver se eu não durmo agora! – Foi o que disse João, enquanto tateava o chão escuro, até encontrar a foice. E ergueu o ferro recurvo, à altura da nuca, baixando violentamente, decepando a mão da menina. A foice voltou a descer, indignada, pois errara o alvo. Mas agora, com a satisfação de quem se redime vitorioso de um deslize inconseqüente, o golpe presto atingiu a putinha na barriga, partindo-a ao meio. Antes que o ódio arrefecesse, o chão de terra batida precipitou-se, empapou-se do sangue que agora escorria do pescoço da criança, logo em seguida ao golpe certeiro, que fez a cabecinha rolar, parando com os olhos vítreos mirando para o lado, onde estava a mãe. Maria, semi-acordada, encolhida de tantas e tantas dores, viu a foice subir e descer freneticamente. Aos poucos, as mãos de João

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Sabino vergaram-se ao peso do cansaço. Quando parou, o homem estava exausto.

– Chora agora, descarada – disse a coisa, ao se afastar.

* * *

Maria ergueu a cabecinha decepada contra a luz do candeeiro.

Os olhinhos azuis, muito abertos, haviam, decerto, congelado a imagem do pai, quando a foice descia sobre o pescoço. Os lábios, porém, pareciam sorrir.

A mãe beijou os lábios da filha, envolveu a cabecinha no colo, juntou alguns trapos para aquecê-la, e a ninou, vagarosamente ( como se só a cabeça bastasse ), sussurrando-lhe aos ouvidos o acalanto interrompido:

“...Dorme, dorme, meu amor

Painho foi pra roça E ainda não voltou...”

E o Recife adormecia, ficava a sonhar, ao som da triste melodia

...

III

Depois de arrebatar, dos braços de Maria, a cabecinha que o amor

maternal acalentava, João recolheu os pedacinhos da putinha, e os enterrou no quintal, junto à bananeira, cujos frutos douravam, foscamente, à luz opaca da Lua.

Mas não os sepultou de todo. No chão, semi-oculta na escuridade, uma mãozinha esboçava o apodrecer. A mãozinha da putinha Mariana.

João voltou para cama, para dormir, finalmente, o sono dos justos.

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IV

Quando o Sol da manhã incidiu sobre o barraco, e o calor

insuportável do telhado de zinco arrancou o Homem da cama, Maria já trouxera a marmita, pousando-a sobre a mesa puída. Não havia ódio, desespero. Havia mistério em seu olhar. E na marmita também. Mariana estava morta. Mas, mesmo assim, a menina saberia o que fazer.

João ainda não sabia, ao certo, o que fizera. A roupa tingida do sangue coagulado pouco ajudou para aliviar a memória, recolhida em algum lugar na cabeça, que lhe doía e latejava como um grande abcesso. Apenas quando saiu ao quintal, para tomar um merecido banho, foi que ele percebeu, ao pé da bananeira que frutificava, um montículo inchado no chão. Parecia uma barriga grávida de feto morto, insinuando-se das entranhas da terra. Maria, cheia de mistérios, o ouviu comentar:

– Ah! Matei a putinha.

V

A hora do rancho era a mais esperada. João preparara

argamassa a manhã inteira, ouvindo a ladainha do pedreiro mal-humorado, enquanto bebericava a cachaça, às escondidas, para afugentar a ressaca que não queria ceder.

Os colegas de pá e esquadro avolumaram-se num patamar voltado para o nascente, sob a sombra. Alguns traziam marmitas, outros se contentavam em roer um sanduíche de pão dormido, com a carne mui gentilmente cedida por um camarada mais abastado.

João foi o último a chegar. Os mais esfomeados chegaram-se junto a ele, que, como sempre, fazia suspense e ria, antes de abrir a marmita.

E João Sabino abriu a marmita. Para a sua desgraça, abriu a marmita. Amaldiçoou a putinha. Xingou a mulher. E maldisse o pão nosso de cada dia.

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Porque, acima do arroz e do feijão, pousada sobre a farinha de

mandioca, alguma coisa, algo lânguido, cianótico, parecia se agitar aos olhos de João Sabino, mais eloqüente que um choro esfomeado.

Pedreiros, ajudantes e carpinteiros recuaram de pavor.

Sobre a farinha de mandioca, estrategicamente posta no lugar onde deveria estar a carne seca, com o polegar afundado no feijão, e o indicador revirado para cima, em riste para João, reluzia, azulada, uma mãozinha delatora.

A mãozinha da putinha Mariana.

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O LEGADO 1

O avô de Klein sempre dizia que, quando morresse, lhe legaria um

tesouro. Sinceramente, e porque gostava muito do avô, Klein não queria que o bom e misterioso velho morresse. Mas, muitas vezes, surpreendia-se a divagar, imaginando em que consistiria o tesouro e, mais ainda, especulando sobre quando o receberia. Vinha, então, uma censura íntima que, embora lassa, tomava as rédeas de seu pensamento e o conduzia a paisagens menos vergonhosas. A dura verdade, porém, é a de que, quando o avô morreu, Klein não pôde sufocar o contentamento que subjazia à tristeza – sincera, diga-se de passagem – que experimentou. Mas tanto a tristeza (que inundava a alma do rapaz), quanto o contentamento (que, nem por isso, submergia), desvaneceram, e se transformaram em profunda e amarga decepção, quando Klein conheceu a natureza do tesouro que o avô lhe legara. O desapontamento de Klein foi como uma facada próxima ao coração: um golpe que não mata, mas danifica o corpo para sempre. Embora fosse dado à leitura – não poucas de qualidade duvidosa –, Klein jamais suspeitara que o tesouro de seu avô era, apenas, uma velha biblioteca.

Os livros vieram em uma tarde sombria de inverno, acomodados em uma dezena de grandes caixas de papelão, das quais apenas uma foi aberta. Sem qualquer interesse, Klein empunhou um dos volumes. Verificou que era uma obra antiga, bem conservada, encadernada em couro e com páginas surpreendentemente numeradas em romanos. Tratava-se de uma obra de Charles Dickens. “A cidade e o mar”, dizia o título. Rosenfeld Editores, lia-se mais abaixo. Ano de publicação: MDCCCLXXIX. Abaixo desse volume vinha uma brochura pesada, de capa mole, estampando um título sugestivo de um autor não menos famoso: “O carrasco de Nantes”, Alexandre Dumas, 1899, Daloz Editores. Veio outro, mais recente: “A borboleta azul”, Oscar Wilde, 1937.

Um a um, os livros foram saindo. Em todos, escritores famosos subscreviam obras que Klein jamais supunha que houvessem sido escritas. Seriam obras que os autores repudiaram – ou o que o público esquecera –, indignas dos portentosos nomes gravados na folha

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de rosto? Estaria, aí, o significado da palavra “tesouro”, a adjetivar a coleção de livros velhos? Obras raras, desconhecidas, olvidadas, de autores famosos? Klein suspeitava que sim. Repôs os livros na caixa e a encarcerou, junto com as demais, no porão. Por muitos anos, o legado de Klein permaneceu esquecido. E nem mesmo quando, ocasionalmente, falava-se do avô, vinha-lhe à memória a biblioteca que herdara, e que agora dormia um profundo sono no cômodo mais profundamente adormecido da casa.

2

Os livros permaneceram esquecidos por muitos anos.

Eventualmente, Klein descia ao porão, onde ficava a adega, sobretudo para abastecê-la no verão e desfalcá-la nas noites frias e taciturnas de inverno. Nessas raras ocasiões, embora olhasse as caixas de papelão – que jaziam empilhadas contra a parede do fundo, carcomidas como pedras tumulares, a sepultarem um defunto secular e justamente esquecido –, não as enxergava. Escolhia o vinho de sua preferência e subia agilmente as escadas úmidas, que conduziam à luminosa saleta contígua ao hall, com a mente leve, impregnada de satisfação, e com os lábios estalando, antecipando a doçura de um vinho licoroso.

Numa dessas noites frias, quando uma mistura de vinho e aguardente caía bem, Klein recebeu a visita de dois amigos, remanescentes dos antigos tempos da faculdade de Letras. O primeiro deles, o ambicioso e talentoso Gosth, fora, até bem pouco tempo, professor de renome em uma universidade estatal donde demitira-se – ou fora demitido – em circunstâncias obscuras, malgrado rumorosas; o segundo, Abbill, tornara-se um esforçado redator-chefe de um jornal de província que quase ninguém lia. Ambos, portanto, precocemente decadentes. Tinham, Klein e os amigos, a mesma idade: 32 anos. Mas parece que a roda da fortuna mantinha, agora, Klein bem no alto; Abbill fora jogado para o ponto mais baixo e lá ficara; Gosth decaía vertiginosamente. Foi Gosth quem, do alto de sua sabedoria, se insurgiu contra a tese que Klein acabara de expor:

– Não, meu amigo. Este livro não existe. Jamais existiu. É claro que não sou um especialista em literatura inglesa, mas Dickens jamais escreveu esse livro.

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É bem verdade que Abbill – agora confortavelmente aninhado em uma poltrona próxima à lareira, que ardia um fogo selvagem, e fazia a ponta de seu queixo reluzir e cintilar – odiava o ar professoral de Gosth. É bem verdade, também, que este ar pedante sempre existira. Mas agora, depois que a cátedra se fora, Gosth tomara-se de uma empáfia insuportável. Por isso não reprimiu a irritação e a malícia ao intervir:

– É uma falácia, Gosth. O fato de que desconheçamos uma coisa não implica a inexistência dessa mesma coisa.

– Isso! Isso mesmo – acorreu Klein, esfregando as mãos de satisfação.

– Digamos – interveio Gosth em sua própria defesa – que eu tenha incorrido em uma falácia imperdoável. Desculpem-me, pois. Mas o ônus da prova é de quem alega, principalmente se se afiançam coisas improváveis. Até que não haja prova em contrário, devemos presumir que a obra “A cidade e o mar” não existe.

Como Gosth estava na defensiva, e não exibiu a petulância de sempre, Abbill concordou. E conclamou o outro amigo a provar as suas alegações. “Mas não sem que antes venha outra garrafa de vinho do Porto”, acrescentou.

– Unirei o útil ao agradável – disse o anfitrião, com jovialidade, dirigindo-se à adega-biblioteca do porão. Retirou-se, assim, satisfeito e compenetrado, esfregando as mãos e estalando os lábios, como de costume.

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Somente quando se defrontou com as caixas tumulares, Klein

percebeu o quanto fora imprudente. Sem dúvida venceria aquela aposta tácita e sem prêmios. Mas levaria muito tempo – talvez a noite e a madrugada toda – para fazê-lo. É que não fazia a mínima idéia em qual das caixas – a única que abrira e depois lacrara – estava a obra esquecida de Dickens. Por um instante, pensou em pedir um armistício. Deu a volta nos calcanhares, mas não chegou a esboçar um passo sequer. Porque se deu conta de que algo estava errado. Definitivamente errado. Voltou-se para as caixas e as contemplou,

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demoradamente. Depois desistiu. Já estava no sopé da escada, empunhando uma garrafa de vinho que raptara de uma prateleira empoeirada, quando, subitamente, percebeu o porquê daquela sensação de estranheza e desconforto. Lá, no fundo do porão, não havia mais dez caixas. Havia onze. Eram agora onze caixas. Klein voltou e as contou, uma por uma. Duas, três vezes.

Klein lembrava-se, perfeitamente, de que eram dez caixas. Nem uma a mais, nem uma a menos. Ele mesmo as trouxera para baixo e as empilhara, duas as duas, contra a parede, com o que preenchera quase todo espaço existente no fundo do porão.

Mas agora eram onze. Loucura à parte, eram onze. E a décima segunda – menor que as demais – não estava encostada à parede dos fundos. Jazia, solitária, no canto inferior esquerdo do porão, com a face posterior colada à face anterior da primeira das caixas que fora, há muitos anos, empilhada. E, se comparada às demais, via-se que ela não se distinguia apenas quanto à dimensão. Era infinitamente mais nova.

Klein sacou um canivete, abriu uma das caixas, examinou alguns livros, escolheu três e voltou para a sala de estar, onde os dois amigos se entretinham com seus joguinhos intelectuais.

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– Infelizmente, você venceu, Gosth. Mas justifico a minha

derrota provisória: se você vier comigo à adega, verá que é impossível localizar, em tão pouco tempo, um livro metido em uma das dez... digo, onze caixas empilhadas. Não faço a mínima idéia em qual das caixas ele está.

Klein depositou a garrafa de vinho na mesinha e a abriu. Serviu os amigos. Ia prosseguir em sua explicação, quando Abbill exclamou:

– Era esperado que você não retornasse com o livro, amigo. Mas vejo que você trouxe outros. Quais são?

Klein passou o primeiro dos livros para Gosth e o segundo para Abbill. O terceiro permaneceu fechado em sua mão.

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Gosth passou vários minutos analisando, incrédulo, o livro que tinha nas mãos. Enquanto folheava, as suas gordas bochechas tremiam nervosamente. Abbill perguntou-lhe:

– O que você tem na mão, jovem Gosth?

– Um Dickens: “O fantasma do professor Uriel”. E você?

– Um Dumas: “A herança”. E você, Klein?

– Outro Dumas – respondeu Klein – “O testamento”, editora Lume, 1899.

Gosth disse, com um quê de inveja a tremeluzir na ponta dos olhos castanhos:

– Se esses livros são legítimos, você tem nas mãos um verdadeiro tesouro, amigo. Um tesouro incalculável.

*

A noite cavalgava célere quando os amigos se despediram. Abbil levou consigo o seu Dumas. Gosth fingia desinteresse, mas o leve tremor na face (no canto dos lábios) denunciava facilmente a avidez pela leitura do Dickens desconhecido. Assim, cada um dos amigo levou consigo o livro escolhido e distribuído por Klein. Mas Klein, que há muito se afastara do mundo enfadonho e pretensioso das letras, não se deu ao trabalho de abrir o livro que reservara para si. Trancou-se em seu quarto e só acordou quando, já no limiar da manhã seguinte, alguém esmurrava, como um alucinado, à porta de entrada.

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A julgar pelo estilo, e pela genialidade narcótica, quase asfixiante,

que exalava de cada uma das páginas daquele curto romance, Uriel Gosth – talentoso professor de literatura – não tinha dúvida alguma: aquele livro havia sido escrito por Dickens. E mais que isso: o Dickens dos melhores tempos.

Mas, a considerar o conteúdo, Gosth sabia que Dickens não poderia tê-lo escrito. Porque aquele romance – e o título já dizia isto –

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, embora ambientado no início do Século XIX, era, na verdade, a vida dele mesmo, a vida de um certo professor chamado Uriel Gosth. E como era vergonhoso ver com que maestria Dickens dissecava, com poucos e rápidos golpes de seu bisturi literário, aquela alma vaidosa e leviana, atormentada pelo amor à fama e pela propensão ao sucesso rápido e a qualquer custo! Como expunha, com a precisão de um cirurgião velho e calejado, as vísceras de um espírito tão superficial quanto ambicioso! Era terrível ver que, no clímax do romance, Dickens apenas sugeria por que motivo Uriel Gosth fora expulso da faculdade na qual ascendera com a rapidez de um pensamento. Apenas sugeria, a partir do exame do caráter do professor, a obscenidade e o opróbrio. Nada mais. Qualquer leitor de inteligência mediana concluiria acertadamente.

Gosth tremeu de raiva e de vergonha. 6

Quando Klein abriu a porta, e fez entrar o velho amigo de

faculdade, não poderia esperar qualquer agressão. Mas Gosth, que nunca na vida havia agredido sequer uma lesma, estava transtornado. A voz sumira completamente, pois tentara falar mas não conseguira, e a sua face rechonchuda enrubrecera como uma fagulha tocada pelo vento. Partiu para cima do amigo e lhe aplicou uma série de golpes curtos no estômago. Klein caiu, tão surpreendido com a atitude do amigo quanto pela enormidade da dor que tão leves golpes poderiam proporcionar. Gosth acendeu a lareira elétrica e contra ela atirou o livro de Dickens. Então saiu. Bateu a porta atrás de si, sem murmurar uma palavra sequer.

Klein levantou-se e correu, como podia, à lareira, para salvar do fogo o livro. E conseguiu. Os estragos eram mínimos. Ao folheá-lo, verificou que agora havia, surpreendentemente, várias páginas em branco ao fim do volume, como se esperassem para ser preenchidas. Notou, também, que o livro parecia bem mais espesso que na noite anterior. Levou consigo o livro ao quarto, onde se trancou e procurou reatar o sono. Loucura por loucura, melhor sonhar.

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A tarde, Klein dedicou-se à leitura do livro de Dickens. Várias

coisas lhe chamaram de imediato a atenção. A primeira é que o livro encorpara. Estava muito mais volumoso e, desta feita, todas as páginas estavam escritas. As folhas em brancos foram ocupadas e outras folhas impressas foram acrescidas ao volume que levara consigo ao quarto, na manhã daquele mesmo dia.

Leu por horas a fio. E, de modo algum, poderia acreditar naquilo que lia: ali estava o espelho da alma do velho Gosth. Sem pôr nem tirar. Aqui e ali, emergiam alguns segredos, quase todos trancafiados da medula da alma, onde o próprio Gosth recusava-se a entrar. A seu ver, não havia nada de ofensivo naquilo tudo. Havia apenas a impossibilidade, nada mais.

O volume terminava justamente naquele encontro que tiveram àquela manhã. E os pensamentos de Gosth, durante todo o incidente, estavam magistralmente narrados no último dos capítulos. Os seus também, ipsis litteris. 8

No dia seguinte, descendo aos porões, Klein extraiu, de uma das

caixas antigas, um volume qualquer. Nem se preocupou em ver quem o assinava. Era um volume curto, encadernado, e impresso com letras graúdas. Contava a história de um homem generoso que legara o seu tesouro - uma biblioteca – ao neto preferido. Somente no final aparecia o neto. Conduzido pelas líricas mãos invisíveis dessa personagem, Klein reviveu, emocionado, a amargura da decepção. Somente agora via o quanto o avô o amava e o quanto havia sido ingrato com o bom ancião.

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9

Klein levou dois dias para ler um outro volume, atribuído a Swift.

Quando o terminou, embalou-o e o postou nos correios, com grande satisfação. 10

Noutro livro, um volume de contos, extraído da caixa mais nova,

Klein reviveu, um a um, os seus amores furtivos. Descobrira, pela pena de Boccaccio, que Kristine havia morrido, certamente de tétano – uma morte terrível para tão doce garota. Sabia onde havia sido sepultada: próxima a um anjo esculpido em mármore negro, que segurava na mão esquerda um segador. Não sentiu surpresa alguma quando, horas mais tarde, prostrou-se diante da lápide que encimava o túmulo da ex-namorada.

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O Dumas – “O testamento” – era o livro da vida de Klein, embora

exclusivamente focado na adolescência. Parecia a ampliação da curta novela que lera há pouco tempo, mas agora narrada sob a ótica do neto legatário. Somente quando o leu, compreendeu perfeitamente a reação inusitada de Gosth, naquela manhã de domingo. Espelhos nunca são bem-vindos à própria alma. Mas o que Gosth não conseguira, ele logrou fazer. Não por vergonha, mas por cautela. Como não queria saber o que o destino o reservava, não esperou que o livro engordasse, invadisse-lhe a vida adulta e ultrapassasse os momentos presentes. Jogou-o ao fogo da lareira e o viu consumir-se completamente, antes que transbordasse.

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Quando Klein pensou em devolver o Dickens ao porão, verificou

que ele crescera mais ainda. Depois de uma breve hesitação, decidiu saber o que Dickens acrescera à narrativa. Mas o que leu o deixou cheio de terror. Correu ao automóvel, que quase nunca saía da garagem, e pediu a Deus que ainda houvesse tempo de impedir o suicídio de Gosth.

Neste momento um telefone tocou. Ao deslizar à garagem, Klein ainda o ouviu tocar, mas decidiu ir em frente, sob a chuva infernal que o céu despejava sobre a terra. Era um telefonema de alguém apavorado, tão apavorado quanto ele mesmo, e que pretendia a todo custo salvar-lhe a vida. 13

Gosth e Klein foram sepultados no mesmo dia, quase à mesma

hora e a pouco menos de vinte metros de distância um do outro. O anjo de mármore apontava o seu ceifador para Gosth, mas o seu olhar abarcava Klein serenamente. Gosth se suicidara com um tiro na têmpora. Matara-se poucos minutos antes que Klein, na ânsia de salvá-lo, perdera o controle do carro que dirigia. Arremessou-o de encontro a um caminhão de mudanças, que vinha em sentido contrário, na mesma avenida, larga e movimentada, em que o amigo morava.

Substitua os automóveis por cabriolé e carruagem, e a cena está completa, pois o episódio da morte de Klein está escrito, com a tinta detalhista de Dumas, em “A herança”. É que, após uma inércia quase invencível, Abbill resolveu enfrentar Dumas. O escritor era muito prolixo para o seu gosto. Mudou de opinião ver que o personagem central – um certo Leink – nutria-se do corpo e da alma de um velho amigo de faculdade.

Abbill chegou a tempo de sepultar os amigos. Quando retornou ao interior, encontrou uma encomenda que Klein lhe enviara, dias antes. Era um exemplar de “Um homem hábil”, de Swift. E se rejubilou ao saber que viveria além dos oitenta anos, cumprindo anos tranqüilos. E muito feliz ficou em não saber como, ao final, morreria. Swift, astuta e bondosamente, não o revelou.

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O SACERDOTE 1

Ninguém sabia ao certo de onde ele viera e para onde ele foi. Mas

ninguém olvida que chegara ele em uma noite singularmente negra, porque a escuridão era como um frio intenso, ríspido e intolerável, suscetível de adentrar as carnes e obscurecer os ossos. E de quase tocar a alma, se é que ainda temos alma, se é que o frio ainda nos comove.

Trajava, jogada sobre uma batina preta – que muitos diriam acetinada, porque reluzia absurdamente naquela escuridão de morte –, um manto púrpura, que lhe caía, com um quê de negligência, sobre os ombros, ondulando talvez até os tornozelos. E, coroando a delicada indumentária, enfunava ao vento – um vento infecto e frio – uma espécie de hábito, especialmente leve, sóbrio, aberto de lado a lado, que se veio a saber depois de um cinza escuro, encimado por um barrete cerzido na nuca, à semelhança de um capuz franciscano.

Por onde seguia o homem parecia que a escuridade se tornava ainda mais densa e mais profunda, pois em seu entorno bruxuleava uma auréola fosca, que parecia sugar a luz, e muitos indagavam se estaria o estranho sacerdote a absorver, verdadeiramente, cada um dos últimos fiascos de luar que se esgueirava por dentre uma imensidão de nuvens opacas e opressoras. Uma bruma espessa o envolvia, e rodopiava ao redor de seu corpo longilíneo – de uma elegância quase felina –, para depois se dissolver, cintilante ainda, na noite negra, negra como ébano, negra como um mau presságio.

O que fazíamos nós – muito de nós – fora de casa, numa noite tão tenebrosa? Por que o vimos chegar, com seus passos suaves e majestosos, com seu belo rosto branco, seus longos braços esquálidos, seus mais longos ainda cabelos louros, que escorriam do capuz, cheios de luz, e se aninhavam no colo, contorcendo-se, revoltos como víboras? Por que as tabernas estavam vazias, os lares abandonados, as lareiras subitamente esquecidas? Nós – muito de nós – sabíamos apenas que nunca se vira tamanha escuridão e por isso ganhamos as ruelas imundas. Olhamos os céus, mas não vimos estrelas. Acendemos os lumes, mas as sombras se tornaram ainda mais circunstantes,

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profundas e enigmáticas. Depois veio o frio, tão súbito e tão violento que nós – não pouco de nós – levantamos as abas de nossos capotes e mergulhamos as mãos nas axilas, para aquecer o peito.

Então vieram os ventos miasmáticos, regelados e melódicos. Nós – alguns de nós – puxamos os casacos aos narizes, nauseados, sentindo asco e vertigem, murmurando, quando podíamos, a estranheza daquilo tudo. Mas estávamos, quase todos, encantados com a música suave e bela que o vento fazia. Havia acordes naquele vento – disse-nos o tocador de alaúde, inclinado a cabeça como um cão sensível e atento –, havia, sim, acordes perfeitamente cadenciados, acordes magníficos, naquele vento frio e pestilento.

Quando vieram as brumas, tocadas pelo vento melodioso, fomos tomados de grande pavor. Porque da escuridão surgiram as névoas, sem qualquer aviso, saídas do mar, etéreas e pardacentas à visão, e crespas e gélidas ao contato. Estendendo tentáculos, rebrilhando na noite infinitamente escura, as brumas salgadas inflavam-se, dominavam o espaço, depois se recolhiam, dobrando-se em fraldas para os lados, abrindo-se suavemente em tiras, para escavar, na espuma, o caminho por onde desfilou o imponente viajante, que ninguém sabia de onde viera, mas que nós – todos nós – sabíamos vindo ao nosso encontro.

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Os que entramos na taberna de Éolo, o Grego, éramos os mais

corajosos. Esperávamos que o sombrio viajante, sabedor de seu desolado paradeiro, retornasse para onde viera, levando consigo a escuridão, o miasma e a frialdade. Mas o estranho homem, com seus paramentos sacerdotais, de cujos vincos saía uma mão longa e delgada, fincada de artérias na carne fria e banca, fez ranger as velhas dobradiças. O taberneiro, que era um dos nossos líderes – mas que, por estrangeiro, não impunha qualquer confiança – se antepôs. Mas estava assustado, o taberneiro. O taberneiro, creia Deus, estava assustado! O homem, cujo capuz impunha alguma dignidade, e cujos olhos impunham medo, disse apenas:

– Tenho sede.

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Todos vimos que vieram, da lenha da fogueira – como responsos à voz profunda, neutra e infecta do sacerdote –, estrépitos e gemidos, seguidos de súbitos e rítmicos estertores, num contratempo perfeito ao balbucio dos ventos, porque a achas estalavam como ossos seculares, somente agora – finalmente agora – partidos e remoídos. As chamas saltaram da boca da chaminé, expandiram-se e se contorceram, solenemente, contra si mesmas, como uma melodia e uma dança circunvolutas, para se recolherem, depois, num baque surdo, como algo que cai, e se retrai, no preciso momento em que aquele gigante finalmente entrou. Depois as chamas – que eram singularmente frias, quase gélidas – explodiram numa luminosidade magnífica, que rodopiou e bailou no ar, e que quase nos cegou, tão grande que era a sua luz e magnífico o seu esplendor. Quando ultrapassamos os umbrais, porém, encontramo-nos numa penumbra suave, fria e malcheirosa, que quase beirava a escuridão. Nós vimos – poucos de nós viram – que a luminosidade foi sugada pelos olhos do homem, e não apenas num átimo, mas assim presto e rápido como um náufrago que respira o último ar com a sua boca feia e aberta, antes de mergulhar de vez no oceano. E trinavam os acordes, belíssimos acordes, de ventos miasmáticos, sabe Deus de onde eles vinham, os acordes e os ventos.

O homem tomou vinho de bom grado. Alguns de nós viram que pagava com ouro; outros, juraram que com prata. Para o taberneiro, o Grego, que tilintou, às escondidas, as moedas, e por meses a fio, em seus alforjes, não passavam de bronze.

Depois saiu.

Com ele se foi ar glacial dos ventos; com ele se foram as brumas revolutas, que não mais volteiam em nós, labirintos humanos.

Mas o que ficou não se conta.

Ficou o bafio regelado que impregna de miasma a nossas roupas e as nossas carnes, persistente como cicatriz profunda e indelével, e que nos faz repudiar um ao outro, e prender forte a respiração, ao mínimo contato. Ficou a bela sinfonia das terríveis noites invernosas, antes temidas, mas agora tão ansiosamente esperadas, eis que os ventos marinhos trazem e executam a melodia eurrítmica que nos comove. E mais ainda nos comove a harmonia que, surgida do vento, entrelaça no nada acordes extáticos e perfeitos. Porque nós – todos nós – não podemos, malgrado embriagados de tanta sonoridade, nos abraçar, como a música – a linda música – se abraça no ar.

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Alguns de nós juram que fora Gabriel, o arcanjo, quem descera,

naquela noite fria e negra, sob as ordens do Senhor, para nos punir.

Outros de nós acham que fora o Diabo, em pessoa, quem chegara e exercera a sua maldita soberania, que nos subjugará a todos – nós todos – por infindas gerações.

Quanto a mim, conto o que eu sei. E sinto o cheiro pútrido a exalar de meu corpo, enquanto a melodia bela embala o meu suave sono.

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O ELIXIR DA JUVENTUDE

Dedico este conto ao brilhante Valetim Fagim, preclaro amigo d’além-mar, de quem roubei, qual Robin Hood, o ilustre nome

para entregá-lo a uma pobre personagem...

Algo de terrível se abateu sobre Dom. Joan Fagim, alcaide-mor

de Ourense, naquele ano do Senhor de 1635.

A sua jovem e bela mulher, Dona Enelle, perdera, aos poucos, a pujança. O rubor de sua face se dissipara, cedendo lugar, em seu rastro fugidio, a uma mórbida lividez. Sim! Onde havia o carmim de suas salientes maçãs, agora se propagava a palidez de morte, que grassava o corpo inteiro, como o assalto de uma infecção lenta e progressiva. Depois, veio aquela aura nuviosa, asfixiante, que esfumava o seu lindo semblante provençal. Assomou um halo embaçado, da textura de treva indevassável, a cingir-lhe o corpo inteiro e a usurpar todos os seus encantos. Chegou a sombra violácea que atirava cada vez mais fundo os olhos lânguidos e febris. Veio, enfim, um abatimento de corpo e de espírito, uma prostração tão inesperada e impetuosa, que Dom Joan, aturdido em seu amor violento, apelou aos médicos da Corte, que nada puderam fazer, porque desconheciam a origem dessa estranha e enigmática enfermidade.

Oh, Dom Joan! Não será o castigo? Não haverá aí o dedo da justiça de Deus? Porque Dom Joan, caído de um amor insano pela jovem francesa, mandara a própria mulher ao cadafalso, coberta de injúrias e de opróbrio. E, mal se casara com Dona Enelle, mal aquecera Dom Joan o seu leito de viúvo, e a jovem esposa se pôs a definhar. Mas o amor de Dom Joan era cego e arrebatado. Daria a própria vida pela higidez de Dona Enelle. Custasse o que custasse, ele a arrancaria das garras de Tanatos. Nem que, num gesto extremo, abjurando ao Padre Eterno, tivesse de recorrer a Le Flam, o mago abjeto, de quem ouviu, secretamente, a própria sentença de morte. Sim! Somente cedendo sua energia vital à Dona Enelle, poderia o alcaide enlouquecido perseverar em um futuro para a jovem consorte, antes tão bela, mas agora irremediavelmente moribunda. Diz-se que Dona Enelle, em seu leito de morte, ao saber dos intentos do marido, tentou, em vão, dissuadi-lo de tão desairosa loucura. Mas a recusa da esposa, de faces encovadas e cabelos enrediços, ainda mais fomentava

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as lúgubres intenções do velho alcaide, mais ainda tornava delirante o seu amor, aquela paixão que nem os céus poderiam aplacar.

Então, invocando os espíritos ancestrais, Le Flam, sacerdote de Yog-Sothoth, preparou D. Joan para a imolação. Com as mãos atadas nas costas, e firmemente amarrado pelos pés, o alcaide foi içado por uma vigorosa corda a uma trave do teto para ser sacrificado. Haveria de ser assim. A eficácia do que seria feito subordinava-se à disposição voluntária do imolado. O cordeiro teria de oferecer-se espontaneamente em sacrifício, pelo amor de Dona Ennele, enquanto o plenilúnio ampliava enormemente o poder dos Antigos.

- Yog-Sothoth! Gy-Yagin! Alyah, alyah! – exclamava o sacerdote das sombras ancestrais. –Yog-Sothoth!

O sacerdote impôs a mão na fronte de Dom Joan. Ao mínimo contato com os dedos nodosos do sacerdote, o alcaide pôs-se a se debater e a espumar como um cão epiléptico. A mulher, de olhos fechados, não viu a corrente etérea, azulada, que escorria da fronte do marido para a mão do bruxo ancião, que avidamente absorvia os feixes de pequenos raios cintilantes. Em pouco tempo, o homem pênsil entrou em um processo de definhamento acelerado. As carnes murcharam e a pele colou-se aos ossos angulosos e pontudos. As faces secaram. Os olhos escorregaram de vez para o fundo das órbitas. E as bordas dos lábios, reviradas para dentro, como se produto de uma invaginação grotesca, escondiam um sorriso sinistro e atroz.

Ora, enquanto Dom Joan definhava, o sacerdote adquiria um vigor extraordinário. A energia que recebia restabelecia-lhe os músculos fatigados, inundava-o de carnes torneadas, purificava-lhe as veias e as artérias enrijecidas.

O sacerdote arrebatou o punhal que trazia pendente das vestes cerimoniais. Com um talho preciso e fundo, colheu, em um pequeníssimo cálix de marfim, o sangue que restara no corpo de Dom Joan. O sacerdote de Yog-Sothoth bebeu do sangue inocente, selando assim o antiqüíssimo ritual.

Revigorado, correu para a mulher, que se voltava para ele de braços abertos, e, tomando-a pelas mãos sudorosas, beijou os lábios voluptuosos que lhe eram sofregamente oferecidos. Exclamou, então, o mago, despindo-se dos paramentos sacerdotais:

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- Eis-me, Pernelle! Eis aqui Nicholas Flamel, teu marido secular, novamente jovem!

N. do A. – Diz-se que Flamel, alquimista francês atuante no Séc. XIV (nas. c. 1330), descobriu o elixir da juventude, compartilhando-o com Pernelle, sua esposa. Conta-se que foi visto, pela última vez, em 1761, em um espetáculo da Ópera de Paris.

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O ESPELHO OBOVEO

Aos amigos Henry Evaristo, Linx, Rogério Silvério de Farias e Alessandro Reiffer.

“Vi mais longe do que era permitido”

Friedrich Nietzsche

- Eu não sou cego de nascença – disse ele, provavelmente

afagando as barbas que, supunha eu, a partir do exame de seu caráter, deveriam ser medonhas. – Queres saber como perdi a visão?

Ora, eu não havia perguntado nada e não tinha a mínima curiosidade de sabê-lo. Mesmo assim, ele continuou:

- De certa forma, foi um “suicídio da visão”.

Eu nunca havia ouvido tanta parvoíce em minha vida. Mesmo assim prestei atenção.

- Quem era eu? Um ocultista muito pouco famoso. E, decerto, o mais fiel discípulo de Narciso. Porque, além de alfarrábios cabalísticos, colecionava espelhos tal qual um filatelista renomado disputa selos raros. Em uma viagem a Roterdam, fiquei sabendo da existência de uma relíquia milenar. Era um pequeno espelho oboval que, segundo um respeitadíssimo e honesto antiquário, seria assírio e havia pertencido a Milton e a John Dee. Tratava-se de um pequeno objeto metálico, emoldurado em cedro, de superfície côncava e opaca. Em nada se assemelhava a um espelho. Mirei-me nele, mas o objeto não refletia a minha imagem. “Definitivamente – disse eu ao vendedor –, isto está longe de ser um espelho.” Então ele me confidenciou: “É uma justa constatação. Mas é preciso que saiba o senhor que este espelho não reage à luz. Reage à alma.” Eu era, então – e literalmente –, um homem desalmado, porque nada pude vislumbrar naquela superfície turva. E foi isso o que eu disse ao vendedor. Kelley – assim ele, ironicamente, se dizia chamar – me sugeriu que levasse a preço vão o “raro” objeto (mas que a mim me parecia simplesmente “lançadiço”) e que o observasse em plena escuridão noturna. Foi o que eu fiz.

- Antes de recolher-me – prosseguiu meu singular interlocutor –, apaguei todos os lumes. Nem um bico de gás, nem uma vela me

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escapou a uma atenta e minuciosa vistoria. Fiquei, portanto, na mais completa escuridão. Olhei para o espelho obovalado e, então, contemplei monstruosidades. Sim, do fundo do objeto veio uma luz tão incisiva, tão extraordinariamente cintilante, que, a um impacto ofuscante, me causou um desequilíbrio d’alma, seguido de uma confusão mental de difícil restabelecimento. O objeto prendeu-se à minha mão como um ímã. E de sua superfície airosa vieram, aos poucos, depois que a luminosidade estonteante arrefeceu, as imagens que o espelho sugava de minha alma, e as recompunha em conformidade com a minha real e íntima aparência. Ah! O choque foi tão profundo que perdi de imediato os sentidos. E, quando despertei, verifiquei, para o meu horror, que o ser hediondo – o ente abominável refletido naquela superfície espectral – congelara-se nas minhas retinas e mergulhara definitivamente em meu cérebro. Não, não peças que eu descreva tamanha monstruosidade e abjeção! Até hoje não enxergo outra coisa senão a terrível imagem, a representação disforme, infame – porém fiel –, de minha desgraçada alma!

Não sei se o homem era louco. Sei apenas que ele se ergueu e, com o tato de sua bengala, percorreu o longo corredor que dava acesso aos livros escritos em Braile. Mas virou-se para mim por um instante e concluiu:

- Tenho inveja da escuridão eterna dos teus olhos. Aqueles meus eu já os arranquei, inutilmente, com os gumes destas unhas. Porque é a minha alma que se reflete e enxerga-se a si própria, como um estigma perpétuo e indelével, e que nem os sonhos logram esvair. Vi mais longe do que era permitido.

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O PODER DA SIFILIS

Ninguém sabia – e mesmo poderia imaginar –, mas o homem que

se sentara numa das mesas mais chiques daquele restaurante caro era um vampiro.

Pediu um vinho tinto encorpado – daqueles cuja viscosidade mais lembrava a textura do sangue – e se serviu de pequenos goles. Lançou um olhar no entorno, mas o que viu pouco lhe agradou. Então esperou.

Mas não aguardou por muito tempo. À frente de sua mesa postou-se uma mulher de uma beleza quase gótica. Pequenos vaporosos olhos azuis. Palidez. Longo pescoço. Sedução. Cabelos de víboras que se contorcem prazerosamente. Uma mulher ideal.

O homem, que era um vampiro verdadeiro, não tomou conhecimento do companheiro da mulher. Mergulhou-lhe as longas unhas na jugular, que se rompeu docilmente. O sangue brotou numa torrente, e a cabeça do homem tombou para trás, como resultado do empuxo. Depois o vampiro avançou para a mulher, arrebatou com força o colar de diamantes que lhe cingia o pescoço de cisne, e nele cravou os caninos. Então sugou demoradamente.

As pessoas ao redor nada esperaram. Fugiram todas. Certamente duas ou três foram pisoteadas.

Terminado o assédio, o vampiro abriu a carteira. Com a ponta dos dedos, onde as unhas retráteis já haviam se acomodado convenientemente, sacou duas notas de grande valor, colocando-as em seguida sobre a mesa. Então afundou as unhas, que voltaram a crescer assustadoramente, num dos olhos da mulher, retirando-o das órbitas com graciosa destreza. Inclinado a cabeça, num gesto elegante, levou-o à boca e mastigou prazerosamente. Depois, comeu o outro olho, como se fora um pêssego macio.

Estalou os lábios. Vendo que o homem ainda sangrava, colheu o esguicho numa pequena taça de vinho e o entornou o sangue rapidamente, à maneira dos cowboys.

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Arrotou. Limpou a boca com as costas da mão. Estava satisfeito. Então viu o mundo girar. As mesas rodopiavam em torno de si como um carrossel alucinado. Ah! Como fora descuidado! Num ambiente rico daqueles não poderia haver riscos, mas, ainda assim, havia! Uma prostituta de luxo! Uma prostituta sifilítica!

O vampiro tombou. O vírus da sífilis invadira o seu cérebro e lá pregava a sua pequena peça. Uma pecinha escrota e fatal. Estacas no coração? Uma lenda! A luz do Sol? Outra lenda ainda mais absurda. Mas a sífilis... A sífilis era o cianeto dos vampiros. Letal. O poder mais destrutível da terrível doença. Coisa que só os mais experientes dos vampiros – como aquele, que agora engorgitava coágulos e morria – poderiam saber.

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O VAMPIRO DO CASTELO DE BRAN

1

O peso opressivo do luar, incidindo sobre os meus longos

cabelos negros, escorria, num fluxo impiedoso, caudaloso, sobre os meus ombros, impelindo-me para frente, como se eu estivesse tocada pelo vento que precede às mais violentas tempestades.

Eu caminhava sozinha – descalça e andrajosa – por uma estrada milenar, aberta pelos eslavos, mas pavimentada pelos romanos, que ladeia os vales relvosos, salpicados de árvores agulhosas. Sobre esses extensos vales, as montanhas escarpadas deitam, eternamente, as suas sombras melancólicas, que azulam e amolecem ao luar. Eu saíra de Vesta Verde quando anoitecera, já corroída pela fome e pelo cansaço. A fria madrugada grassava e eu precisava buscar um refúgio para um merecido descanso.

Eu devia ter, de alguma forma, errado o caminho. Porque, sob os meus pés descalços, a estrada ganhara uma aspereza incomum, serpenteando para cima, galgando as encostas de uma montanha cuja imponência a sombra da noite não deixava margem à imaginação.

O luzeiro que vi adiante me animou. Assim, redobrei a intensidade de meus passos e em breve alcancei o passadiço que conduzia aos portões de um castelo milenar, uma estrutura negra, pesada, sulcada por estrias ancestrais, onde as sombras e as heras adensavam e buscavam o lúgubre mergulho.

O luzeiro era, na verdade, uma simples lanterna, que um homem idoso empunhava em riste, em uma das torres da construção secular. Decerto que ele me viu, porque não foi necessário que eu tangesse as cordas que faziam girar os sinos da campainha. Por uma abertura em arco, ao sopé da torre, o homem saiu ao meu encontro, tomando-me pelas mãos. Eram mãos pálidas, incrivelmente frias, extremadas por longas e amoladas unhas. Quando o homem ergueu a lanterna para subir as úmidas escadas de pedra, pude constatar que a sua fisionomia era assustadora. Naquele rosto exangue, encimado por um crânio completamente nu, dois olhos negros, duros, ornados de grossas sobrancelhas, bailavam sobre olheiras violáceas, que caíam, desfalecidas, em dobras pesadas, sobre os ossos salientes dos maxilares. O nariz era finíssimo, recurvo como um gancho e, dos seus

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lábios, eu nada pude ver, porque, naquela rachadura, insinuava-se apenas a brancura dos dentes pontiagudos, quase mergulhados sobre a curva suave que lhe compunha o queixo. E como eram asquerosos aqueles negros tufos de pêlos desgrenhados, que se esgueiravam a partir do poço escuro das orelhas pontudas, repuxadas como as de um demônio helênico!

- É tarde – disse-me ele. – Já não tenho como te alimentar, pobre criaturinha bela e suja. Mas te darei um quarto para dormir, onde te envolverás nos flácidos vincos de teu roto vestido. Fica a cela no cume da torre e logo lá chegaremos. Lá há água, se tiveres sede. E há um catre pouco confortável. Desculpa-me a franqueza, mas não costumo hospedar gente desconhecida. Nem mesmo os nobres, como eu, gozam de minha hospitalidade, se não tenho como me certificar de sua verdadeira origem e intenções.

Ao dizer isso, logrou girar a chave no caixilho, fazendo-me menção para que entrasse. Foi o que eu fiz. Imediatamente, a porta se encerrou atrás de mim.

- Chamo-me Dragoş Valicescu, sou o Terceiro Conde de Bran, e vivo completamente só – disse, enquanto descia vagarosamente as escadas. – E não me espere pela manhã, porque sou notívago e odeio a luz do Sol – concluiu, com um quê de sensualidade malévola em sua voz de animal.

Estava quase amanhecendo quando fechei o único postigo do quarto da torre e procurei descansar no desconforto daquele catre infeliz, onde a escuridão cairia sobre mim como uma negra mortalha, pegajosa e fria.

2

Quando despertei, já anoitecera. O postigo da torre achava-se

escancarado e sobre o parapeito ardia um enorme círio, cuja ereta chama não se movia. A porta do quarto jazia aberta, e a silhueta longelínea de Dragoş, o Conde de Bran, desenhava-se como uma sombra nefasta, a enturvar os umbrais.

- Tu deves estar faminta – disse-me ele. – Aproxima-te de mim, linda e desolada jovem, que eu te trouxe algo para comer.

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De fato, eu estava faminta. Extremamente faminta. Certamente, em toda Romênia, não haveria um ser mais faminto do que eu. Tomei a bandeja de carnes e frutas que ele trazia e a depositei sobre a cama. Mas não me debrucei sobre a iguaria.

- Dá-me um beijo em agradecimento – ele exigiu, em tom feroz.

O Conde avançou, tomou-me pelas mãos, e mergulhou o arremedo de lábios em minha boca, sorvendo a minha saliva com uma fúria bestial. Seus dentes longos tremiam como resultado de uma convulsão atroz.

Ao contato com a língua daquele homem decrépito, a minha fome recrudesceu. Sim, recrudesceu assustadoramente. Quase tremi, assaltada por uma ansiedade ensandecida, por uma compulsão tão premente que somente os animais mais ferozes podem experimentar. E, num frêmito, os meus dentes caninos, até então retraídos, deslizaram celeremente, conformando-se em presas amoladas, próprias para perfurar e dilacerar.

Depois do beijo, veio o peso opressivo do luar, que se infiltrava pelo postigo aberto. Incidindo sobre os meus longos cabelos negros, o luar escorria, num refluxo impiedoso, caudaloso, sobre os meus ombros, impelindo-me para frente, para a garganta do Terceiro Conde de Bran, onde minhas presas aguçadas afundaram profundamente e de onde eu extraí a seiva morna, densa, repleta de delícias, que saciou a minha fome infinita. E pouco me custará a encontrar a cripta do castelo, que doravante será minha; lá, regenerada, dormirei profundamente, por vários dias, o meu tranqüilo sono de morte.

* Nota do autor: qualquer semelhança com Stoker e Murnau não é mera coincidência.

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OCELOS VERMELHOS

A estrada era quase uma senda e, por já ser noite, o lenhador

acendera uma pequena candeia, para guiar-se e afugentar os lobos, certo de que retornaria com segurança a sua velha casa de madeira, tão desgastada quanto os solados de suas botas. Elas rangiam sobre o chão encharcado dos últimos dias de inverno. O lenhador seguia, assim, com passos firmes. Vira ocelos vermelhos, que tomou por de gatos selvagens, rebrilharem entre as moitas escuras, mais de uma vez, durante o caminho, como se o acompanhassem. Mas estava livre dos lobos. É que vento, por vezes, escorria lânguido pelas frestas dos pinheiros e dos abetos, fazendo coro aos lobos que, bem ao longe, emitiam os seus uivos sinistros.

Mas o lenhador tropeçou em algo, que emitiu um lamento felino.

Desequilibrou-se e caiu. Voltou-se para maldizer o gato, quando, aproximando a lanterna, observou, quase que afundado na lama, um corpo de uma criança. O homem verificou que a criança – uma menina que, certamente, teria menos de três anos – ainda respirava. Examinou o seu corpinho regelado com cautela. Após uma cuidadosa inspeção no pulso esquerdo da criança, concluiu que a mãe, certamente desesperada pela picada de serpente, que vitimara a pequerrucha, a deixara ali mesmo, e fora em busca de socorro.

Hesitou, não queria machucá-la. Mas, com a ponta do canivete,

que sempre trazia consigo, fez uma incisão onde os furinhos brotavam no pulso da criança, que, de tão exangue, certamente não suportaria uma sucção mais incisiva que aquela que efetivamente aplicou na carne lacerada. Acendeu a fogueira na esperança de que, em contato com o calor, a criança recobrasse as cores. Massageou-lhe as extremidades das mãos e dos pés, para que a circulação retomasse o fluxo normal. E a acolheu no colo, pousando suavemente a cabecinha da menina junto ao seu pescoço rude de lenhador. Então, ao contato com o pulsar das artérias que latejavam sob a escassa barba do lenhador, a coisinha abriu seus olhos vermelhos e famintos. E mergulhou os seus dentes longos, finíssimos como agulhas, na carne tenra e acolhedora que aquela garganta estirava só para si.

O lenhador foi encontrado morto, na manhã seguinte, esvaído de

sangue, com duas pequenas incisões, que pareciam de víbora, na altura do pescoço.

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Mas, naquelas noites ainda invernosas, ocelos vermelhos, que

não eram felinos, continuaram a espreitar por entre as frestas dos arbustos, à espera de outras presas.

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SAO FILIPE

Quem seria aquela menina tão linda, tão livre, tão suave, tão cheia de luz – e de uma luz tão resplandecente, que ofuscava o próprio Sol? Por que motivo respirava o Sol, a luz, o brilho, com seus pulmões pequenos e magníficos? Por que motivo cabiam, em sua pequena alegria, aquele Sol magnâmico, aquela tarde tão quente, e a noite que mal assomava no horizonte, de tão etérea e fugidia? Por que respirava e continha em si toda aquela liberdade?

Confesso que não sei.

Mas sei quando a vi com sua saia azul plissada, com seus cabelos rudes trançados sobre a blusinha branca do Renato Medrado, correndo para a igreja, a todo vapor. Corria com a dificuldade dos coxos, a mãozinha ágil e negra conferindo firmeza e flexibilidade à perna esquerda. Mas o fazia com tanta alegria, com tanta emoção e naturalidade, que finalmente pude compreender o verdadeiro sentido da palavra graciosidade.

Mas a menina apertou o passo. Diminuiu o ritmo de sua carreira, olhando para trás. Depois parou. Alguns dos coleguinhas seguiram em frente, sem perceber o que se passava. Outros estancaram com ela. A menina agora tinha olhos curiosos, concentrados com surpresa e alegria no estranho homem que mendigava no pátio da igreja.

Vi quando o homem, de cabeça baixa, e sem olhar para ninguém, estendeu a mão. Não disse nada. Nem implorou. A menina chegou-se a ele e sentou-se ao seu lado. Disse-lhe que podia ficar ali, porque o padre era sério, mas era bonzinho. Disse-lhe que as noites não eram assim tão frias, mas que o estranho poderia dormir em uma casa de farinha nos arredores da cidade. Disse-lhe também que, se quisesse, podia ficar com o sanduíche que não comera no recreio.

O homem agradeceu numa língua estranha. Tomou o sanduíche da mão da criança e comeu devagar. Depois olhou para a criança com bondade. É bem verdade que, do ângulo em que eu estava, não podia colher a alma que cintilava através do olhar do pobre homem. Mas confio na palavra de Ita Correia e Constância, que, como eu, são também testemunhas desse inefável acontecimento.

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A menina percebeu que estava só. Os coleguinhas haviam ido. Mas ela, que era uma menina livre e feliz, estava satisfeita em conversar com o esmoler:

– Olhe, seu moço! Você chegou pela manhãzinha, não foi? Dormiu no pátio da Prefeitura, não foi? Ah! Todo mundo sabe! Não se preocupe que a polícia não vai botar você pra fora. O padre não deixa. Está com fome ainda? Ainda tenho moedinhas, quer?

Como o homem apenas admirava, mas nada respondia, a menina procurou um bolso onde pudesse enfiar os trocados que ela juntara com tanta dificuldade. Mas não encontrou. O homem, de cabelos longos e negros, e de olhos pios e enigmáticos, vestia apenas uma longa túnica, de grosseira tessitura, e sem cosimento algum no linho sujo, puído e amarelado.

A menina estalou um beijo na face do homem, deixou cair em sua mão os centavos de cruzeiros, e correu para a Igreja, impregnada de luz e de alegria.

Nesse dia, não vi mais a criança. Mas vi quando o pobre homem, que mais parecia um beato expulso do Sertão, entrou na igreja, porque era finda a missa e dispersos estavam os fiéis. Ao invés do que sucedeu em muitos outros lugares onde estive, o austero padre não expulsou o pedinte. Deixou-o orando no altar, concentrado em sua própria sandice mística, enquanto o Cristo padecia eternamente a dor da salvação, ladeado pelos Apóstolos Filipe e Tiago. Esperei até bem tarde, mas não o vi sair. À noite, dormi profundamente. Mas, em plena madrugada, os sinos puseram-se a badalar, sem aviso e sem motivo. Julindo e Rita, esses bons anfitriões, também acordaram. E, correndo à igreja, vimos todos o que sucedeu.

A menina, que eu vira coxa no dia anterior, puxava a mãe com a mão esquerda – a sua mais nova e completa sensação de liberdade –, e corria com duas pernas perfeitas. Procurava pelo homem estranho, conforme o fiel testemunho de Zezito. A mãe flutuava, e a tudo se submetia, como num sonho ou num delírio de ópio. Quando, anos após, retornei a São Filipe, disse-me Germano que a mulher continuou em êxtase por vários dias. Inês, com seu sorriso tranqüilo, confirmou.

Mas vimos perfeitamente quando o sacristão, atônito e sonolento, abriu o portal principal, naquela madrugada quente e enigmática. Quando a menina pisou, com a perna curada, o sagrado solo da igreja, a voz metálica dos sinos petrificou-se num eco e não mais fluiu. O que

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se ouvia, agora, era o som pesado e vigoroso de gesso arremessado ao chão, partindo-se, rolando, transformando em seixos irregulares a imagem de quem, um dia, pretendera ser São Filipe, o Apóstolo. Não sei dizer, mas creio que, na penumbra, vislumbrei uma réstia esbranquiçada ascender ao pedestal, e depois deixar-se ficar, como um halo que ganha forma e substância na presença mágica do Senhor.

Mas todos sabem que agora, esculpida pelo bafo divino, talhada na carne do mais translúcido e luzidio dos mármores, ladeia o Senhor, que ainda padece no altar sua expiação cruel e perpétua, a estátua de um homem pobre, de corpo torcido e de cabeça inclinada, coberto por rústica túnica sem costuras, e que projeta, sob a espessa cortina de cabelos longos, um olhar enigmático para o infinito, enquanto as mãos encrespadas mendigam um centavo no ar.

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TIA MAUDE Para Lico

A última vez que eu vi tia Maude viva foi na mesma manhã em

que a velha morreu.

O meu pai me chamara a um canto e me dera algumas instruções sobre como eu deveria me portar naquela despedida. Decididamente, não me agradava nem um pouco subir à mansarda do andar superior e me encontrar sozinho com aquela víbora moribunda, mas meu pai era um homem bom e não merecia aquela desfeita.

Desde o limiar da madrugada, tia Maude parara de gemer e aquilo foi um alívio para nós todos. Agora ela estava prostrada em seu pesado leito de dossel, imóvel, com os olhos fechados, exibindo uma face pálida e encovada, como uma múmia milenar. Eu tinha a impressão que a tia já havia nascido velha, mas agora ela parecia ainda mais revelha e assustadora. A disposição de seus cabelos brancos, extremados em grossos rolos de anéis ensebados, que serpenteavam em todas as direções, fazia-me recordar das górgonas da Antigüidade.

Tia Maude ressonava. Sua respiração era curta, rápida e superficial. A prostração viera com a madrugada e desde então a velha senhora não mais acordou. Agora a anciã descia vertiginosamente em seu poço escuro de morte, de onde eu esperava que jamais retornasse.

Eu me aproximei da velha moribunda e murmurei: – Adeus, tia Maude.

Eu estava extremamente feliz com a morte iminente de tia Maude. Era uma velha avarenta e ignóbil. Muitas vezes, eu e a pequena Sylbie ouvíamos comentários reservados sobre a riqueza da tia do meu pai, que morava conosco desde que enviuvara – antes, portanto, de meu nascimento –, mas não havia qualquer indício de que isso fosse verdade, porque a tia Maude jamais nos socorrera nos momentos difíceis, que eram muitos. A tia Maude era má. E se tornou ainda mais amarga e cruel quando partira a perna em dois lugares. Sempre que eu estava só e me aproximava do leito, a velha cessava imediatamente os gemidos e – plena e subitamente saudável – me puxava pelo punho,

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cravando fundo as unhas longas e escuras, para me sussurrar palavras hediondas.

E, naquela manhã de sua morte, já ia eu me precipitando para longe do leito de dossel, quando uma mão me segurou. Era uma mão forte e fria, que me cingiu o pulso com a força de uma tenaz. Tia Maude puxou-me contra a sua horrenda boca, e me confidenciou bem próximo ao meu nariz:

– Tu não escapas de mim, menino tolo! Onde estiveres, eu te agarrarei! Olha bem, eu te agarrarei! E ficaremos juntinhos para sempre, eu e ti!

Quando disse isso – não com um sussurro, comum aos moribundos, mas com um brado cheio de ira – tia Maude arregalou os olhos e a boca, sorveu um punhado de ar e, depois, expirou. Morreu olhando nos meus olhos, para mais ainda fixar em minha alma juvenil aquela terrível ameaça.

O caixão de tia Maude fora estendido sobre a mesa da sala. Eu a contemplava de longe, mas o seu hálito de morte ainda recendia bem perto de meu nariz. No meu pulso, onde as suas garras mergulharam, eu sentia um desconforto, como se uma sombra negra, fria e pegajosa, ainda o cingisse.

Minha mãe saíra há pouco com Sylbie, minha pequena irmã. E meu pai – um bom e honesto amanuense do Rei – estava a providenciar a documentação para o sepultamento. Eu estava, portanto, só. Eu e tia Maude, sozinhos naquela casa triste e úmida, repleta de sombras ancestrais. Um grande candelabro funerário, com seis círios, ardia bem próximo a uma das extremidades do ataúde, junto à cabeça da defunta. Por isso custou-me, mais que o desejável, perceber que a noite havia caído. Sim, a noite havia caído e eu nem percebera!

Nada neste mundo me faria aproximar da megera defunta. Nada, a não ser o meu gato amarelo – um jovem gato soberbo e insolente –, que saltou do chão para a mesa e da mesa para o ataúde. E depois passou a lamber caprichosamente os beiços da minha tia-avó.

O que se passou por minha cabeça naquele instante? Eu não era um homenzinho? Eu não prometera à minha mãe que deixaria tudo em ordem? Pois bem. Eu já tinha treze anos e já era grande o suficiente para adivinhar as pretensões de meu gato amarelo, que viera da Abissínia. O hálito da velha cheirava a ratazanas, disso eu sabia muito

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bem. Pus-me a imaginar a admiração e o horror do meu pai ao ver os lábios mutilados de sua tia, porque o filho imbecil ou covarde não tomara as providências adequadas.

Assim, resolvi espantar o gato, antes que ele mergulhasse os dentes na boca de tia Maude e lhe arrancasse um naco generoso.

– Caia fora bichano! Caia fora, gato ruim!

O gato, porém, me ignorou felinamente. Antes de desviar de mim os olhos frios, sinistros e categóricos, mergulhou num átimo os dentes afiados nos lábios da anciã. Apertou com força, sacudindo nervosa e rapidamente a cabeça, como a apressar a mutilação de uma presa inerte, mas susceptível de uma perda iminente. Não tive outra opção senão arrancar o gato à força do colo e da face de minha tia. Isto me valeu um arranhão profundo no dorso da mão esquerda, e ao gato, que gemeu sinistramente, a perda de uma refeição saborosa.

Foi aí que tudo escureceu, porque o gato, na fuga, derrubou o candelabro, apagando os círios. Apenas uma réstia de luz gasosa, que escapava da janela, incidia sobre a face do cadáver. Então veio o choque, que me fez regelar e paralisar, porque, de alguma forma, eu sabia, que isso ia acontecer.

Tia Maude se ergueu, puxou-me pelo pulso, e murmurou-me ao nariz, com o seu bafo quente e pútrido:

– Tu não escapas de mim, menino tolo! Onde estiveres, eu te agarrarei! Olha bem, eu te agarrarei! E ficaremos juntinhos para sempre, eu e ti!

Gritei, sem perceber que gritava, enquanto o meu corpo tremia sob o impacto de uma convulsão gelada. O chão escapava dos meus pés. Mas tive forças suficientes para puxar de volta o meu pulso, onde as unhas balouçantes de tia Maude afundavam e tremiam.

Tia Maude, que a muito custo deixou de escavar tenazmente em meu pulso, pousou a cabeça no travesseiro e juntou as mãos, à maneira solene dos mortos. Eu não via, mas sabia que em seu rosto de abutre morto havia um tênue sorriso de satisfação.

Enquanto o cadáver retomava o seu sono de morte, fugi em direção à porta, mas me choquei violentamente contra os umbrais. Depois, caí pesadamente sobre o assoalho. Ouvi o meu crânio se

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partindo e senti, em seguida, o calor viscoso descer pelo meu pescoço e pelas minhas costas. Era o meu sangue. Neste momento, ouvi alguns sons, a princípio indistintos. “Meu Deus, o que aconteceu por aqui?” – gritava a minha mãe, que chegava nesse momento. O meu pai veio logo em seguida, falando algo como chamar o médico. E Sylbie se punha a chorar. Depois tudo ficou silencioso e escuro. Agora era eu quem descia vertiginosamente em meu poço escuro de morte, de onde jamais retornarei.

Aqui, onde estou, é tudo escuridão. O lugar onde fico é escuro e úmido, escorregadio, cheio de emanações pestilentas, como o porão da casa onde morávamos. Às vezes fico sozinho, mas freqüentemente uma mão fria surge da escuridão e me cinge os pulsos. E então vem um hálito nauseante nas minhas narinas dizendo palavras terríveis e miasmáticas:

– Eu não te falei? Para sempre juntinhos, garoto mau! Para sempre juntinhos, eu e ti!

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UMA HISTORIA DE DAVI (OU CRONICA DA ESPERA AO OLINDA/CDU)

Não havia muito tempo que ele se transferira, com a família, para

aquele bairro burguês. Sonho de uma vida inteira. Com muito esforço, e uma boa dose de sorte, conseguiu adquirir um terreno pequeno, de esquina, cujos recuos obrigatórios fizeram da tímida construção um animal acuado entre o agressivo grunhir dos carros apressados e o apertado cinturão de magníficas residências.

A pequena casa não teria mais que dois quartos, uma sala, cozinha e banheiro. Minúscula, em tudo contrastava com as enormes mansões dos vizinhos, que haviam absorvido, de seus proprietários, a altivez e a arrogância. O nosso homem era servidor público aposentado, de pouca renda. Os demais ostentavam eminentes títulos, homens de grandes negócios, uns tantos fazendeiros, outros industriais. Em que pese à miséria de nosso indigente Recife, há, ainda, homens assim.

Cedo, como se era de esperar, veio a reação.

É que ninguém queria ver os seus domínios ameaçados pela vileza do sangue plebeu. Aquela choupana, esmagada por magníficos palácios, emanava a sua perniciosa doença, ousando desvalorizar as grandes propriedades e – o que é pior – atrair a pestilência de tantos outros miseráveis.

Assim, vieram as primeiras propostas. Ele firme, não vendia. Irredutível, até que uma milionária oferta torceu as rédeas da teimosia. O bom homem cedeu, e mudou-se para outro bairro burguês.

Brilhou a idéia magnífica em sua mente.

Não sei precisar quando. Estava eu na parada de ônibus, aguardando pacientemente o meu Olinda/CDU, quando vi passar, bem vestido, todo empáfia e olhar de arrogância, o meu velho companheiro de repartição. Me viu, e o seu sorriso pareceu diluir aquela máscara esnobe, esculpida pela recente riqueza.

Conversa curta. Ficou o conselho:

´ ^

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– Quer ficar rico? Compre um terreno em bairro de rico, destes

acanhados onde mal dá para construir, e que rico nenhum quer comprar.

Ao longe, vi que o Olinda/CDU, como sempre lotado, assomou após a uma suave curva, parando no semáforo da confluência da Estrada de Belém com a Jerônimo Vilela. Não demoraria a chegar. O velho companheiro continuou:

– Compre um terreno acanhado. Vão querer botar você no olho da rua e vão conseguir quando você aceitar a melhor proposta. E assim vá, de bairro em bairro, de cidade em cidade. Em pouco tempo você compra uma mansão, emprega os seus filhos, e passa a viver de renda, com carro do ano, piscina e tudo. Lucrativo e pouco dispendioso. Incrível a sugestão de meu bem sucedido amigo. Oferecia-me, como empreendimento, uma dessas pequenas malandragens da vida, que conduzem o homem à riqueza, às custas da estúpida vaidade humana, sem que seja necessário esmagar os fracos e humildes. Por incrível que pareça, chamava-se Davi, e a funda com a qual dobrou Golias, alojava-se – pensava eu, ao embarcar – em algum ponto de sua fértil imaginação.

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VENTOS UIVANTES

Para Rogério Silvério de Farias.

Sobreveio, então, para ele, uma mortal escuridão; lá fora, os

ventos se contorciam em fúnebres inflexões, num coro de modulações espectrais, quase humanas.

Uma sombra crescia da janela e parecia avançar para o homem moreno, de cabelos longos e negros. Ele gritou. Era tarde. Sentiu que morreria. Mas não suportaria vê-la transfigurada, convertida numa repulsiva criatura noturna, de quem ele era, agora, apenas uma presa indefesa. E rezou a Deus e aos demônios. E pediu para morrer antes que os dentes aguçados de Catherine tremeluzissem na claridade convulsa da lareira.

Mas Cathy permanecia lá fora, alucinada, arranhando as abas das janelas, que se fechavam para uma escuridão atroz e para um vento que entoava fúnebres acordes dissonantes. Em pouco tempo, Cathy conseguiria romper a madeira, de tão carcomida e dilacerada que já estava.

E ali, trancafiado na cabana, rusticamente construída no sopé da colina, batida pelos ventos que uivavam dolorosamente, Heathcliff apenas esperava.

As últimas achas, que crepitavam na lareira, ecoavam, entre as cinzas friorentas, os derradeiros estertores. De lá vinha um bafio de calor, mas em ondas tão débeis, tão vulneráveis, que bastaria uma única fresta, uma tímida ranhura na janela, para que o frio estendesse seus tentáculos, e abraçasse aquele ambiente saturado pelo terror.

Com um esgar, Heathcliff olhou para arma.

Aquela coisa, que escavava ferozmente a madeira, e que um dia fora a doce Catherine, agora vagava pelas charnecas mais desoladas; delirava sobre os túmulos mefíticos dos cemitérios abandonados; e, distendendo as pupilas escarlates, voltadas para o nada, mirava, num estado de profunda catatonia, as brumas pegajosas que os morros e colinas exalavam ao contato com o lume fantasmagórico do luar.

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Sim, lá fora as garras de Cathy, crispadas e cheias de urgência, laceravam as janelas, atirando aos refluxos dos ventos dispersas lascas de madeira de lei. E, enquanto aquela coisa escavava, dominada pelas alucinações de um transe vampiresco, Heathcliff podia ouvir nitidamente os uivos coléricos que irradiavam de uma boca profana, aspergida de sangue negro.

Da lareira vinha uma luz lânguida, que transpunha o ambiente com indolência, e reverberava seu laivo rubro nos os cristais e pratarias, antes de fenecer sobre o aço da pistola incandescente. Engatilhada, a arma jazia, fria e solitária, sobre a rústica mesa. Heathcliff a apanhou com as mãos trêmulas. Seus olhos marejavam de medo e de horror. Mas estava decidido.

Então, estendendo a sua lúgubre mortalha, o pesado silêncio a tudo dominou, caindo sobre o homem como uma bênção.

Para Linx.

A CABANA DA COLINA Nota do autor: O leitor deve estar estranhando a bizarra conformação deste conto. E merece uma explicação. Na verdade, há, nesta pagina, mais de um conto. O primeiro é o que o leitor acabou de ler; o segundo, o que o leitor encontrará se se dispuser a ler o texto de baixo para cima – na ordem, aliás, em que foi escrito. Talvez haja um terceiro conto. Ou melhor, apenas um conto, com desfechos diferentes, a depender da ordem na qual é lido. Se ele existir – e torço para que exista –, eu o dedico a Henry Evaristo.

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VILA DOS ANDRAJOS

“O, Kerstnacht schoner dan de dagen Hoe kan Herodes het licht verdragen

Dat in uw duisternisse blinkt En wordt gevierd en aangebeden

Zijn hoogmoed luistert naar geen reden Hoe schel die in zijn oren klinkt

Hij tracht d’onnozelen te vernielen Door het doden van onnozele zielen

En wekt een stad en landgeschrei In Bethlehem en op den akker

En maakt den geest van Rachel wakker Die waren gaat door beemd en wei.”

Joost van den Vondel

1

O Sol deslizava célere no céu de verão, irradiando uma

luminosidade quente e prazerosa.

Mas um silêncio de morte pesava sobre a Vila dos Andrajos.

Os homens não saíram para trabalhar o campo, onde as vinhas se encrespavam, mas se reuniram no antro mais desolado, na taberna mais obscura, para conspirar.

As mulheres e seus filhos, rígidos e sombrios, murmuravam choros e preces no átrio da igreja de Santo Iago, o Menor, sob o olhar inquieto do pároco revelho e encardido, que em breve os deixaria sob os cuidados de um jovem palafreneiro, que fazia às vezes de sacristão, e se retiraria, furtivo, para pôr um basta no conciliábulo.

A Natureza parecia tudo entender. Porque não se ouvia o murmúrio abafado do vento, que buscara o espraiar indolente em outros sítios; nem se escutava o gorgolejar monótono do rio das Sebes, que descia melancólico, sem pujança alguma, da colina batida de sol; nem se percebia o chilrar das aves do estio, agora recolhidas em seus ninhos, no cimo dos abetos e nos escaninhos das choças.

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O velho padre, que antes maldissera aquela furna de pândegos e malfeitores, fizera do balcão gorduroso, tisnado de nódoas de vinho, o púlpito. E, sem bíblia alguma nas mãos nodosas, exortava os homens, repreendia-os, clamava com a voz trêmula, pedia comovido, ameaçava com as chamas eternas do inferno e insistia feroz na obediência a Deus e à Sua divina vontade. Os homens, porém, não lhe davam ouvidos. Não mais temiam as profundezas abissais. Tinham os olhos mais ardentes que as chamas dos infernos, mais assustadiços que os olhos de um demônio em presença do Senhor. Gritavam entre si. Praguejavam. Mergulhavam a aguardente nas goelas. Depois caíam num silêncio difícil de sustentar, porque o silêncio parecia precipitar tudo de irremediável que estava por acontecer.

Há dois dias o velho pároco não conciliava o sono. A notícia chegara com maior vigor e se espalhara com maior velocidade que o fizera a peste. O séquito papal se aproximava da Vila dos Andrajos, o recanto mais desolado dos torrões de Dona Isabel, a rainha santa, o último refúgio do anticristo, ser bestial, difícil de se pôr as mãos. Naqueles dias de grande devassidão entre os homens, naqueles tempos de corrupção e licenciosidade, um santo homem sonhara algo de terrível. Frei Alberto da Jutlândia, que desafiara o rei Valdemar, e buscara refúgio junto ao Papa, de quem era agora secreto confessor, sonhara mais uma profecia inexorável. Vira, em sonhos, que, na Terra dos Lusos, nascera a besta, e lá vivia entre os homens, há doze anos, não menos. E a besta, soube o Papa, era já um ser crescido, sabe lá se nascido de mulher, e que não tardaria a encetar seus hediondos prodígios. Debelar a besta, a todo custo, passou a ser o objetivo, senão a única missão, de Sua Santidade e de todos os que professavam a fé verdadeira.

Desde então, o reino de D. Dinis, o Trovador, entrou em polvorosa. Não havia uma choupana que não fosse invadida, não havia uma casa que não fosse esmiuçada, um palácio que não fosse espiolhado, por ordem de Sua Santidade, Martinho IV. E, por onde seguia a comitiva papal, encabeçada por um delegado clerical devoto e inclemente, por onde serpenteava o séquito pomposo, ágil e infatigável como um rastilho, formava-se um mar de sangue, tão profundo e tão denso, que nele se podia navegar.

As confissões, nesses dias difíceis, se tornaram pródigas; e as denunciações, que levaram muitos homens e mulheres à purificação pelo fogo, se multiplicavam como crias de ratazanas. Nunca se vira um terror tão pio e tão desalmado em toda cristandade. Fecharam-se as fronteiras. Os suspeitos morriam pela adaga dos Oficiais de Justiça

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Eclesiástica e nenhuma criatura, entre doze e dezesseis anos, se homem, escapava à prova infalível, concebida pelo beato Frei Alberto da Jutlândia. A prova consistia em submeter o pescoço dos rapazotes ao fio dos punhais dos beleguins, até que a cabeça tombasse ao chão. Se o jovem sobrevivesse, se o sangue fervente não derramasse, se a cabeça se mantivesse firme sobre o pescoço, seria induvidosamente a temida besta, anunciada há mais de um milênio pelo Apóstolo Amado, em suas santas Revelações. Os jovens encontravam, para a glória do Senhor, uma morte certa, dolorosa, mas nem sempre rápida. Mas a besta profana não se dava a encontrar, por mais que a terra batida das choças, os ladrilhos das casas e o mármore dos palácios se empapassem do sangue quente e viscoso que vertia dos pescoços dos jovens inocentes. Luz alguma cintilava naquela escuridão.

E como o demônio tem as suas artes, decretou-se, mesmo sem ouvir-se o Papa, ou consultar-se o fiel e incorruptível conselheiro, que as raparigas também deveriam ser submetidas à divina prova.

E, nas cidades e nos campos, elevavam-se os prantos. Cada mulher era o espírito de Raquel ressurgido, chorando por seus filhos, rejeitando consolo, porque eles já não mais existiam.

2

Nuno Joanes, gentil-homem, era, dentre os Oficiais de Justiça

Eclesiástica, o mais temente a Deus e, portanto, o mais feroz. Executava o seu mister com tanta devoção de espírito e tanta habilidade nas mãos que, não fora a santidade de sua missão, dir-se-ia que se tratava de um possesso.

Mas, à medida que a Santa Comitiva rumava, de vila em vila, para o Norte, mais ainda a sua face entenebrecia. Seus olhos perdiam, pouco a pouco, aquela atmosfera de transe; as suas mãos, ágeis como as de um prestidigitador, decaíam em destreza e vigor.

Nas cercanias dos Andrajos, um frêmito tomou-lhe o corpo e muito a custo sustentou-se no lombo da montaria.

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Entre os homens, entocados na Vila dos Andrajos, o último reduto

de Satanás, não havia consenso. Alguns preferiam ver seus filhos e filhas mortos de maneira menos dolorosa, antes que a Santa Comitiva rebentasse no horizonte; outros preferiam escondê-los de alguma forma, dentro de suas possibilidades, que eram quase nenhuma; outros ainda, tementes a Deus, preferiam que a Justiça Divina fosse feita. Só em um ponto todos estavam acordes: o que fosse decidido, estaria decidido.

Havia óbvios prós e contras, qualquer que fosse a escolha. Se matassem os próprios filhos, cairiam em pecado mortal e certamente teriam morte dolorosa nas mãos dos Oficiais de Justiça Eclesiástica. Se os escondessem, não seria por muito tempo, e a pena lhes seria seriamente recrudescida. Se entregassem os filhos às mãos da Justiça inflexível, certamente agradariam ao Papa, e provavelmente a Deus, mas destruiriam a própria consciência, já que todos sabiam inocentes os seus filhos rotos e as suas filhas famintas.

Após o escrutínio, os homens retornaram, silenciosos, para suas casas. Depois, cingindo, cada um, um punhal, ganharam o átrio da igreja.

Não é preciso dizer que as mulheres, ensandecidas, gritaram de pavor, ao ver seus homens tão circunspectos e tão resolutos. Muitas avançaram contra os homens, outras desfaleceram e umas poucas, as que não tinham punhal para cravarem nos seios, atearam fogo às próprias vestes.

O pároco recolheu-se ao confessionário para chorar. Talvez, também, pela morte dos jovens, rapazes e raparigas, caídos uns sobre os outros, com os corações e os ventres traspassados pelos punhais piedosos de seus pais.

4

Quando as figuras sinistras dos beleguins assomaram na colina,

quando o enviado papal, de vestes vermelhas, contornou o vale do rio das Sebes, e, finalmente, quando postaram-se todos, superior e

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subalternos, diante da igreja de Santo Iago, o Menor, o último dos raios de sol, ainda sufocado pelos gritos de mulheres e crianças, desvaneceu no horizonte belo e terrível. De tocha em riste, tendo Nuno Joanes à frente, adentraram os homens de Deus o átrio escuro daquele templo miserável, em nada digno aos olhos grandiosos do Senhor. Mas saíram logo em seguida, porque, tendo degolado, por precaução, os cadáveres, não mais muito tinham a realizar naqueles torrões.

Nuno Joanes fora o último a sair. Na mesma igreja onde fora batizado, e que agora retornava par cumprir o seu destino, vira, pela última vez, Pero Nunes, seu filho. O garoto vivia ainda. Talvez sequer agonizasse. Nuno Joanes deu-se a conhecer e recebeu um sorriso débil. Mas, antes que o demônio o tentasse, extraiu o punhal do ventre do menino, e, com o mesmo punhal, o degolou, com golpes destros e ágeis. E agradeceu a Deus por não haver gerado o corpo onde habitava Satanás.

Varrido todo Portugal, os homens de Deus fracassaram. Apenas uma certeza, a única certeza possível, que se não podia verter em palavras, vinculava aqueles homens boquiabertos: contido pelo mar, o anticristo fugira por terra. Certamente para a Galiza. Teriam, decerto, muito trabalho pela frente. Porque, se muito santo era o Frei Alberto da Jutlândia, muito mais astuto era Satanás.

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Paulo Soriano é natural de Itabuna, Estado da Bahia, Brasil. Formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, foi Procurador do Estado da Bahia e é, atualmente, Procurador da União Federal no mesmo Estado. Mantém um sítio na internet, “Contos Grotescos” (www.contosdeterror.com.br), dedicado à publicação de contos de horror e fantasia, no qual conta com a participação de outros autores. È casado com Cleide e tem dois filhos, Annabel e Paulo Neto. Atualmente mora em Salvador.