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A CEIA SECRETA INTRIGAS E OS MISTÉRIOS DO QUADRO DE
LEONARDO
Javier Sierra
http://groups-beta.google.com/group/digitalsource
A CEIA SECRETA
INTRIGAS E OS
MISTÉRIOS DO QUADRO DE LEONARDO
Autor: JAVIER SIERRA Editora: RELUME-DUMARAAssunto: LITERATURA ESTRANGEIRA-ROMANCESISBN : 8573164522 ISBN-13: 9788573164527
Livro em português
Brochura
- 15,5 x 23 cm 1ª Edição - 2005 - 360 pág.
SINOPSE:
É impossível não se surpreender com as intrigas e os
mistérios da elaboração do quadro de Leonardo Da Vinci, em que
nada é o que parece ser. Enquanto Da Vinci dá as últimas
pinceladas, um investigador é enviado a Milão para decifrar o
verdadeiro significado que está por trás de A última ceia. Por que
Jesus Cristo deixa os sacramentos da Eucaristia de lado? Por que
alguns dos discípulos encontram-se de costas para o mestre? Onde
está Judas? E Da Vinci, o que ele faz entre os discípulos?
Objeto da polêmica: O quadro A Última Ceia, de Leonardo da Vinci.
A trama: Contado todo em flashback, o livro retorna ao ano de
1497, data que marcaria a finalização da obra de Leonardo da
Vinci - iniciada dois anos antes. Frei dominicano, Agustín Leyre, é
convocado a Milão para investigar o conteúdo do quadro. Em plena
era da Inquisição e auge da intepretação simbólica, o religioso
começa a entender as primeiras tentativas do pintor em adicionar
enigmas e filosofias racionais num templo católico. No entanto, o
que Agustín descobre o leva ao exílio no Egito, onde teria escrito
declarações nas cavernas Yabal al-Tarif. Qual descoberta teria
abalado um inquisidor?
Exórdio
Na Idade Média e no Renascimento, a Europa ainda
conservava intacta sua capacidade de entender símbolos e ícones
ancestrais. As pessoas sabiam quando e como interpretar um
capitel, uma expressão num quadro ou um prodígio na estrada,
apesar de só a minoria ter aprendido a ler e a escrever.
Com a chegada do racionalismo se perdeu aquela capacidade
de interpretação e, com ela, boa parte da riqueza legada por
nossos antepassados.
Este livro acolhe muito desses símbolos da forma como foram
concebidos. Mas também, pretende devolver nossa capacidade de
compreendê-los e nos beneficiarmos de sua infinita sabedoria.
1
Não me lembro de adivinhação mais obscura e perigosa do
que aquela que me acometeu naquele Ano Novo de 1497, enquanto
os Estados pontifícios observavam como o ducado de Ludovico, o
Mouro, estremecia de dor.
O mundo era então um lugar hostil, furta-cor, um inferno de
areias movediças em que quinze séculos de cultura e fé
ameaçavam ruir sob a avalancha de novas idéias importadas do
Oriente. Da noite para o dia a Grécia de Platão, o Egito de
Cleópatra ou as extravagâncias da China exploradas por Marco
Polo mereciam mais louvores do que nossa própria história bíblica.
Aqueles foram dias agitados para a cristandade. Tínhamos um
papa simoníaco - um diabo espanhol coroado sob o nome de
Alexandre VI que comprara descaradamente a tiara no último
conclave -, príncipes subjugados pela beleza do paganismo e a
maré de turcos armados até os dentes à espera de uma boa
oportunidade para invadir o Mediterrâneo ocidental e converter
todo mundo ao islamismo. Bem se poderia dizer que nossa fé
jamais estivera tão indefesa em seus quase mil e quinhentos anos
de história.
E ali se encontrava este servo de Deus que vos escreve -
examinando com cuidado um século de mudanças, uma época em
que o mundo alargava diariamente suas fronteiras e exigia de nós
um esforço de adaptação sem precedentes. Era como se a cada dia
a Terra se fizesse maior, forçando-nos a uma atualização
permanente dos conhecimentos geográficos. Nós, clérigos, já
intuíamos que deveríamos tomar providências para pregar a um
mundo povoado por milhões de almas que jamais ouviram falar de
Cristo, e os mais céticos previam um período de caos iminente,
provocado pela chegada de nova horda de pagãos.
Apesar de tudo, foram anos excitantes. Anos que contemplo
com certa saudade em minha velhice, neste exílio que me devora
pouco a pouco a saúde e as recordações. Minhas mãos já quase
não reagem, a vista fraqueja, o ofuscante Sol do sul do Egito turva
minha mente e só nas horas que precedem a primeira luz da
manhã sou capaz de organizar meus pensamentos e refletir sobre a
espécie de destino que me trouxe até aqui. Um destino a que nem
Platão, nem Alexandre VI, nem os pagãos são alheios.
Mas não apressarei os acontecimentos.
Basta dizer que agora, enfim, estou sozinho. Não sobrou
nenhum dos secretários que tive um dia, e hoje apenas Abdul, um
jovem que não fala minha língua e acredita que sou um santarrão
excêntrico que veio morrer em sua terra, atende às minhas
necessidades mais elementares. Vivo mal, isolado nesta antiga
tumba escavada na rocha, rodeado por poeira e areia, ameaçado
por escorpiões e quase sem movimento nas duas pernas. Todos os
dias o fiel Abdul deixa neste cubículo um pastelão ázimo e o que
por sorte sobra em sua casa. É como o corvo que durante sessenta
anos carregou no bico trinta gramas de pão à Paulo, o Eremita, que
morreu com mais de cem anos nestas mesmas terras. À diferença
daquele pássaro de bom agouro, Abdul sorri quando me entrega o
pão, sem saber mais o que fazer. É suficiente. Para alguém que
pecou tanto como eu, qualquer deferência se converte em prêmio
inesperado do Criador.
Mas além da solidão, também a mágoa terminou por corroer
minha alma. Causa-me pena que Abdul não saiba o motivo que me
trouxe à sua aldeia. Não saberia explicar a ele por sinais.
Tampouco nunca poderá ler estas linhas e, ainda no caso remoto
que as encontre depois de minha morte e as venda a algum
cameleiro, duvido que sirvam para algo mais do que avivar uma
fogueira nas frias noites do deserto. Aqui ninguém entende latim
ou qualquer língua românica. E cada vez que Abdul me encontra
diante destes papéis encolhe os ombros, sem ação, ciente de estar
perdendo algo importante.
Essa idéia me mortifica dia a dia. A certeza íntima de que
nenhum cristão jamais lerá estas páginas atordoa minha lucidez e
enche meus olhos de lágrimas. Quando acabar de redigi-las,
pedirei que as enterrem com meus despojos, esperando que o Anjo
da Morte se lembre de recolhe-las e as leve ao Pai Eterno quando
se celebrar o julgamento de minha alma. Triste é a história: os
maiores segredos são os que nunca vêm à luz.
O meu segredo sobreviverá?
Duvido.
Aqui, nas cavernas chamadas Yabal al-Tarif, a poucos passos
deste grande Nilo que abençoa com suas águas um deserto
inóspito e vazio, apenas rogo a Deus que me dê tempo suficiente
para justificar por escrito meus atos. Estou tão afastado dos
privilégios que tive um dia em Roma que ainda que o novo papa me
perdoasse sei que já não seria capaz de retornar ao aprisco de
Deus. Não suportaria deixar de escutar os longínquos lamentos dos
almuadens em seus minaretes, e a saudade desta terra que me
acolheu com tanta generosidade torturaria meus últimos dias.
Meu consolo é organizar aqueles fatos da maneira como
aconteceram. Vivi alguns deles em minha própria carne. De outros,
em compensação, tive notícia muito tempo depois de ocorridos. No
entanto, postos uns depois dos outros, darão a você, hipotético
leitor, uma idéia da magnitude da adivinhação que alterou minha
existência.
Não. Não posso dar mais as costas ao destino. E agora que
refleti sobre tudo o que meus olhos viram, vejo-me na obrigação de
contar... ainda que não sirva a ninguém.
2
Esta adivinhação se originou na noite de 2 de janeiro de 1497,
longe, muito longe do Egito. Aquele inverno de há quatro decênios
foi o mais frio lembrado pelas crônicas. Nevara copiosamente e
toda a Lombardia estava coberta por uma espessa capa branca. Os
conventos de Santo Ambrósio, São Lourenço e Santo Eustórgio, e
até o cume da catedral, desapareceram no nevoeiro. As carretas de
lenha eram a única coisa que se movia nas ruas, e metade de Milão
dormia envolta num silêncio que parecia instalado ali há séculos.
Aconteceu às onze da noite do segundo dia do ano. Um grito
de mulher, dilacerador, rompeu a gelada paz do castelo dos Sforza.
Ao grito se seguiu um soluço, e a eles os agudos prantos das
carpideiras do palácio. O último estertor da sereníssima Beatrice
d'Este, uma jovem na flor da vida, a bela mulher do duque de
Milão, destruíra para sempre os sonhos de glória do reino, Santo
Deus. A duquesa morreu com os olhos bem abertos. Furiosa.
Maldizendo Cristo e todos os santos por levá-la tão cedo para seu
lado e agarrada com força às roupas de seu horrorizado confessor.
Sim. Ali definitivamente começou tudo.
Eu tinha quarenta e cinco anos quando li pela primeira vez o
relatório do que ocorreu naquele dia. Era um relato assustador.
Betânia, segundo o hábito, o solicitara por conduto secretissimus
ao capelão da corte do Mouro, e ele, sem perder um só dia, o
enviara a Roma com toda a pressa. Os ouvidos e os olhos dos
Estados pontifícios funcionavam assim. Eram rápidos e eficazes
como os de nenhum outro país. E muito antes que chegasse ao
escritório diplomático do Santo Padre o anúncio oficial da morte da
princesa nossos irmãos tinham já todos os detalhes em seu poder.
Naquela época, minha responsabilidade dentro da complexa
estrutura da Betânia era a de assessor do mestre geral da Ordem
de São Domingos. Nossa organização sobrevivia dentro das
margens estreitas da confidencialidade. Numa época marcada por
intrigas palacianas, assassínio com veneno e traições de família, a
Igreja necessitava de um serviço de informações que lhe permitisse
saber onde podia pisar. Éramos uma ordem secreta, fiel apenas ao
papa e à cabeça visível dos dominicanos. Por isso, quase ninguém,
do lado de fora, ouvira falar de nós. Nós nos escondíamos por trás
da ampla capa da Secretaria de Chaves dos Estados pontifícios,
órgão neutro, à margem, de pouca presença pública e competência
limitada. No entanto, da porta para dentro funcionávamos como
um congregado de segredos. Era uma espécie de comissão
permanente para o exame de assuntos governamentais que
permitia ao santo padre se adiantar aos movimentos de seus
múltiplos inimigos. Qualquer notícia, por pequena que fosse e
pudesse afetar o status quo da Igreja, passava imediatamente por
nossas mãos, era avaliada e transmitida à autoridade pertinente.
Era nossa única missão.
Nessa situação tive acesso ao relatório da morte de nossa
adversária, donna Beatrice d'Este. Ainda me lembro da cara dos
irmãos comemorando a notícia. Ignorantes. Pensavam que a
natureza nos poupara o trabalho de ter de matá-la. Suas mentes
eram simples assim. Funcionavam a golpes de cadafalso, de
condenação do Santo Ofício ou de matador de aluguel. Mas esse
não era o meu caso. À diferença deles, eu não estava tão seguro de
que a morte da duquesa de Milão significava o fim de um longo
encadeamento de irregularidades, conspirações e ameaças contra
a fé que pareciam se esconder na corte do Mouro e foram
comunicadas há meses à nossa rede de informações.
De fato, bastava mencionar seu nome em algum dos cabidos
gerais de Betânia para que os boatos dominassem o restante da
reunião. Todos a conheciam. Todos sabiam de suas atividades
pouco cristãs, mas ninguém jamais se atrevera a denunciá-la. Era
tal o temor que donna Beatrice inspirava em Roma que sequer o
relatório recebido do capelão do duque - que era, além disso, fiel
abade de nosso mosteiro de Santa Maria delle Grazie - se
pronunciava a respeito de suas andanças pouco ortodoxas. Coube a
frei Vicenzo Bandello, reputado teólogo e sábio dirigente dos
dominicanos milaneses, descrever o sucedido, mantendo-se afas-
tado de questões políticas que pudessem comprometê-lo.
Tampouco ninguém em Roma o recriminou pela prudência.
Segundo o relatório assinado pelo abade Bandello, tudo
estava calmo até a véspera da tragédia. Antes desse momento, a
jovem Beatrice tinha tudo: marido poderoso, vitalidade
transbordante e um bebê prestes a nascer que logo perpetuaria o
nobre sobrenome do pai. Ébria de felicidade, passara a última
tarde dançando de sala em sala, divertindo-se com sua dama de
companhia favorita no palácio Rochetta. A duquesa viveria livre
das preocupações de qualquer mãe em seus territórios. Sequer
amamentaria o bebê, para não estragar os seios pequenos e delica-
dos; uma ama escolhida com cuidado se encarregaria de cuidar do
crescimento da criatura, de seus primeiros passos e de sua
alimentação, e madrugaria para levantá-la e lavá-la com água e
panos quentes. Ambos - bebê e ama - viveriam em Rochetta, numa
peça decorada com empenho por Beatrice. Para ela, a maternidade
era um jogo inesperado e benéfico, sem responsabilidade e
incertezas.
Mas foi exatamente ali, no pequeno paraíso imaginado para
seu rebento, que ocorreu a desgraça. Segundo frei Vicenzo, antes
do anoitecer em São Basílio, donna Beatrice caiu desmaiada sobre
um dos catres do aposento. Ao recuperar os sentidos, sentiu-se
mal. A cabeça girava enquanto o estômago lutava por se esvaziar
entre ânsias de vômito, longas e estéreis. Sem saber que tipo de
indisposição a afligia, ao vômito logo se seguiram fortes contrações
no baixo ventre que anunciavam o pior. O filho do Mouro decidira
adiantar sua chegada ao mundo sem qualquer previsão. Beatrice,
pela primeira vez, assustou-se.
Naquele dia os médicos demoraram mais do que o normal
para chegar ao palácio. Tiveram de buscar a parteira fora dos
muros da cidade, e quando o pessoal necessário para tomar conta
da princesa chegou enfim ao seu lado já era tarde. O cordão
umbilical que alimentava o futuro Leão Maria Sforza se enredara
em torno do frágil pescoço da criança. Pouco a pouco, com a
precisão de uma corda, apertou a pequena garganta até asfixiá-lo.
Beatrice notou logo que algo ia mal. O filho, que um segundo antes
pressionava com força para sair de suas entranhas, deteve-se de
repente. Primeiro se agitou com violência e logo, como se o esforço
o debilitasse, esmoreceu até expirar. Quando notaram, os médicos
escarificaram de lado a lado a mãe, que se retorcia de dor e
desespero apertando um pano umedecido em vinagre entre os
dentes. Foi inútil. Desesperados, defrontaram-se apenas com um
bebê azulado e morto, com os olhinhos claros já quebradiços,
enforcado, no seio materno.
E foi assim que, alquebrada de dor, sem tempo para aceitar o
duro revés imposto pela vida, a própria Beatrice decidiu expirar
horas mais tarde.
Em seu relatório, o abade Bandello dizia que chegou a tempo
de vê-la agonizar. Ensanguentada, com o ventre aberto e
mergulhada numa pestilência insuportável, delirava de dor,
pedindo aos gritos para se confessar e comungar. Mas, para sorte
de nosso irmão, Beatrice d'Este morreu antes de receber qualquer
sacramento...
E digo bem: para sorte.
A duquesa tinha apenas vinte e dois anos quando deixou
nosso mundo. Betânia sabia que levara uma vida pecaminosa.
Desde o tempo de Inocêncio VIII eu próprio tive ocasião de estudar
e arquivar muitos documentos a respeito. Os mil olhos da
Secretaria de Chaves dos Estados pontifícios conheciam bem a
espécie de pessoa que fora a filha do duque de Ferrara. Ali dentro,
em nosso quartel-general do monte Aventino, podíamos presumir
que nenhum documento importante gerado nas cortes européias
era alheio à nossa instituição. Na Casa da Verdade dezenas de
leitores examinavam diariamente escritos em todos os idiomas,
alguns codificados nas artimanhas mais impensáveis. Nós os
decifrávamos, classificávamos por prioridades e os arquivávamos.
Mas não todos. Os referentes a Beatrice d'Este levavam tempo
ocupando lugar prioritário em nosso trabalho e eram armazenados
numa peça a que poucos tínhamos acesso. Eram documentos
inequívocos que mostravam uma Beatrice possuída pelo demônio
do ocultismo. E, o que era ainda pior, muitos aludiam a ela como a
principal incentivadora das artes mágicas na corte do Mouro.
Numa terra permeável às heresias mais sinistras, aquele dado
deveria ser levado bem em conta. Mas ninguém o levou a tempo.
Os dominicanos de Milão - entre eles o padre Bandello -
tiveram várias vezes ao alcance provas que demonstravam que
tanto donna Beatrice como sua irmã Isabella, em Mântua,
colecionavam amuletos e ídolos pagãos, e que ambas tinham
veneração excessiva pelos vaticínios de astrólogos e charlatães de
toda espécie. E nunca fizeram algo. As influências recebidas por
Beatrice foram tão nefastas que a pobre passou os últimos dias
convencida de que nossa Santa Madre Igreja se extinguiria em
breve. Amiúde dizia que a cúria seria levada de rastros até o Juízo
Final e ali, entre arcanjos, santos e homens puros, o Pai Eterno nos
condenaria, a todos, sem piedade.
Ninguém em Roma conhecia melhor do que eu as atividades
da duquesa de Milão. Lendo os relatórios sobre ela aprendi quão
enigmáticas podem chegar a ser as mulheres, e descobri o muito
que donna Beatrice mudou nos costumes e objetivos de seu
poderoso marido em apenas quatro anos de casamento. Sua
personalidade chegou a me fascinar. Crédula, entregue à leituras
profanas e seduzida por todas as idéias exóticas que circulavam no
feudo, sua obsessão era converter Milão na herdeira do antigo
esplendor dos Médicis de Florença.
Creio que foi isso que me alertou. Ainda que a Igreja
conseguisse minar pouco a pouco os pilares de tão poderosa
família florentina, solapando o apoio dado a pensadores e artistas
amigos das coisas heterodoxas, o Vaticano não estava preparado
para enfrentar o revivescimento daquelas idéias na grande Milão
do norte. As cidades ainda sob a influência dos Médicis, a
lembrança da Academia fundada por Cosme, o Velho, para resgatar
a sabedoria dos gregos antigos, ou sua proteção sem limite a
arquitetos, pintores e escultores, fecundaram tanto a fértil ima-
ginação da princesa Beatrice como a minha. Mas ela a tomou como
guia de sua fé e contagiou, com sua venenosa fascinação, o duque.
Desde que Alexandre VI chegou ao trono de Pedro, em 1492,
enviei mensagens aos meus superiores hierárquicos para preveni-
los sobre o que poderia ocorrer ali. Ninguém me ouviu. Milão, tão
próxima à fronteira com a França e com uma tradição política tão
rebelde em relação a Roma, era a candidata perfeita para albergar
uma dissidência importante no seio da Igreja. Betânia tampouco
acreditou em mim. E o papa, tíbio com os hereges - um ano depois
de tomar a tiara pediu perdão pela perseguição a cabalistas como
Pico Della Mirandola -, deixou de ouvir minhas advertências.
- Esse frei Agustín Leyre - costumavam dizer de mim os
irmãos da Secretaria de Chaves - presta demasiada atenção às
mensagens do Augure. Acabará tão maluco como ele.
3
O Augure. Essa é a peça que falta para armar o quebra-
cabeça.
Sua presença merece uma explicação. Além de meus avisos
ao Santo Padre e às mais altas instâncias da ordem dominicana
sobre o rumo erradio do ducado de Milão, existia outra fonte de
informação que se somava aos meus temores. Era um testemunho
anônimo, bem documentado, que a cada semana enviava à nossa
Casa da Verdade minuciosas cartas denunciando a elaboração de
uma gigantesca operação mágica nas terras do Mouro.
Suas missivas começaram a chegar no outono de 1496,
quatro meses antes da morte de donna Beatrice. Eram dirigidas à
sede da ordem em Roma, no mosteiro de Santa Maria sopra
Minerva, onde eram lidas e guardadas como se fossem obra de um
pobre-diabo obcecado pelos presumíveis desvios doutrinários da
casa Sforza. E não os culpo. Vivíamos tempos de loucos, e as cartas
de um visionário tratavam nossos padres superiores sem
contemplação.
Ou quase todos.
Foi o arquivista de nossa casa mãe quem me falou das cartas
desse novo profeta, na última reunião geral de Betânia.
- Você deveria lê-las - disse. - Só de vê-las pensei em você.
- Verdade?
Lembro-me dos olhos de coruja do arquivista, pestanejando
de emoção.
- É curioso: escreveu-as alguém com seus mesmos temores,
padre Leyre. Um profeta apocalíptico, culto, bem versado em
gramática, como a cristandade não havia visto desde o tempo de
frei Tanchelmo de Amberes.
— Frei Tanchelmo?
- Oh... Um velho maluco do século XI que denunciou a Igreja
por se ter convertido num bordel, e acusava os sacerdotes de viver
permanentemente com concubinas. Nosso Augure não chega a
tanto, embora, pelo tom das cartas, não tardará a chegar lá.
O arquivista, encurvado e lamuriento, acrescentou mais uma
coisa:
- Sabe o que o diferencia dos outros loucos?
Sacudi a cabeça.
— Parece melhor informado do que qualquer um de nós. Esse
Augure é um maníaco da precisão. Sabe tudo!
Aquele fradeco tinha razão. As folhas de papel engessado e
fino, escritas com uma caligrafia impecável, guardadas numa caixa
de madeira com o selo de reservado, referiam-se com obsessiva
insistência a um plano secreto para converter Milão em nova
Atenas. Algo assim era o que eu suspeitava há muito tempo. O
Mouro, como os Médicis antes dele, contava-se entre esses
dirigentes supersticiosos que acreditavam que os antigos possuíam
conhecimentos do mundo mais avançados do que os nossos. Era
uma velha idéia. Segundo ela, antes de Deus castigar o mundo com
o dilúvio, a humanidade viveu uma Idade de Ouro próspera que
primeiro os florentinos e agora o duque de Milão queriam
restaurar a qualquer custo. E, para conseguir, não hesitariam em
deixar de lado a Bíblia e os preconceitos da Igreja, isto é, que
naquele tempo de glória Deus ainda não criara uma instituição que
o representasse.
Ainda havia mais: as cartas insistiam em que a pedra
fundamental daquele projeto estava sendo colocada diante de
nossos narizes. Se o que o Augure dizia era certo, a astúcia do
Mouro era infinita. Seu plano de converter o feudo na capital do
renascimento da filosofia e da ciência dos antigos, iam se apoiar
sobre uma base desconcertante: nada menos que nosso novo
convento em Milão.
O Augure conseguiu me surpreender. Fosse quem fosse o
homem que se escondia por trás dessas revelações, levou-as mais
longe do que eu jamais me atreveria. Como me advertiu o
arquivista, parecia ter olhos em todas as partes. Já não apenas em
Milão, mas na própria Roma, pois algumas de suas últimas cartas
vinham encabeçadas por um Augure que nos desconcertou. Que
tipo de confidente estávamos enfrentando? Quem senão alguém
muito íntimo da cúria poderia saber como se chamavam os
escrivães de Betânia?
Nenhum de nós soube a quem apontar.
Por aqueles dias, o convento a que se referia suas mensagens,
o de Santa Maria delle Grazia, estava em obras. O Duque de Milão
destinara os melhores arquitetos do momento para sua edificação
e, encarregou Bramante da tribuna da igreja, Cristoforo Solari dos
interiores, e não regateou um ducado para pagar aos melhores
artistas a decoração de cada uma de suas paredes. Queria
converter o templo no túmulo de sua família, o local de repouso
eterno que imortalizaria sua memória pelos séculos dos séculos.
No entanto, o que para os dominicanos era um privilégio,
para o autor daquelas cartas era uma terrível maldição. Anunciava
grandes penalidades para o papa se ninguém pusesse fim àquele
projeto e pressagiava uma época funesta, fatal, para a Itália
inteira. O remetente anônimo daquelas mensagens ganhou a
alcunha de Augure sua visão da cristandade não podia ser mais
nefasta.
4
Ninguém deu ouvidos àquele diabo anônimo até a manhã em
que chegou sua décima quinta carta.
Nesse dia, frei Giovanni Gozzoli, meu assistente na Betânia,
irrompeu no scriptorium com grande estardalhaço. Agitava no ar
uma nova mensagem do Augure, e, alheio aos olhares de
reprovação dos monges que ali estudavam, dirigiu seus passos até
minha carteira:
- Frei Agustín, deve ver isto! Deve ler imediatamente!
Nunca vi frei Giovanni tão alterado. O jovem frade passou a
nova carta diante de meus olhos e com a voz bem ostensiva
sussurrou:
- É incrível, padre. In-crí-vel.
- O que é incrível, irmão?
Gozzoli respirou fundo:
- A carta. Esta carta... O Augure... O mestre Torriani me pediu
que você a leia de imediato.
- O mestre?
- O piedoso Gioacchino Torriani, trigésimo quinto sucessor de
são Domingos de Guzmán na Terra e responsável máximo pela
nossa ordem, nunca levara a sério aquelas cartas anônimas.
Despachava-as com indiferença e em certa ocasião até me
recriminou por dedicar meu tempo a elas. Por que mudou de
atitude? Por que me enviou esta nova carta com o pedido de
estudá-la logo?
- O Augure... - Gozzoli engoliu saliva.
- Sim?
- O Augure descobriu em que consiste o plano.
- O plano?
A mão de frei Giovanni segurava ainda a mensagem. Tremia
pelo esforço. A carta, de três páginas com o selo de lacre vermelho,
desceu suavemente sobre minha mesa.
- O plano do Mouro - sussurrou meu secretário, como se
descarregasse uma carga pesada. - Não entendeu, frei Agustín?
Explica o que pretende realmente fazer em Santa Maria delle
Grazie. Quer fazer magia!
- Magia? - Eu não saía do meu espanto.
- Leia-a.
Mergulhei na mensagem ali mesmo. Não havia dúvida de que
a carta fora escrita pelo mesmo autor das anteriores: os mesmos
altos de página e a caligrafia delatavam o autor.
- Leia-a, irmão! - insistiu.
Logo compreendi o porquê de tanta insistência. O Augure
tornava a revelar algo que ninguém esperava ouvir. Retrocedia há
quase sessenta anos, ao tempo do papa Eugênio IV, quando o
patriarca de Florença, Cosme de Médicis, conhecido como o Velho,
decidiu financiar um concílio que poderia ter mudado para sempre
o rumo da cristandade. Era uma velha história. Ao que parece.
Cosme propiciou um encontro inútil entre delegações diplomáticas
díspares, que durou vários anos, com que pretendia conseguir a
reunificação da Igreja oriental e a de Roma. Os turcos ameaçavam
então estender sua influência sobre o Mediterrâneo e era preciso
detê-los de qualquer maneira. O velho banqueiro teve a idéia rara
de unir todos os cristãos sob um mesmo templo e mostrar a cara ao
inimigo comum com a força da fé. Mas o plano fracassou.
Ou não.
O que o Augure revelava naquela mensagem é que houve uma
agenda secreta por trás do concílio. Um objetivo disfarçado cujos
efeitos ainda se sentiam seis decênios depois em Milão.
Segundo ele, além das discussões políticas da época, Cosme
de Médicis empregou boa parte do tempo em negociar com as
delegações vindas da Grécia e Constantinopla a compra de livros
antigos, instrumentos ópticos e até manuscritos atribuídos à Platão
ou Aristóteles que se acreditava perdidos. Mandou-os traduzir
todos, sem exceção, e neles aprendeu coisas surpreendentes.
Assim descobriu que já em Atenas acreditavam na imortalidade da
alma e sabiam que o céu era responsável por tudo o que se movia
na Terra. Entenda-se bem: os atenienses não acreditavam em
Deus, mas na influência dos corpos celestes. Segundo aqueles
desprezíveis tratados, os astros influíam sobre a matéria graças a
um "calor espiritual" semelhante ao que conecta corpo e alma nos
seres humanos. Aristóteles falou disso depois de aprender com as
crônicas da Idade de Ouro, e Cosme ficou fascinado com suas
lições.
Segundo o Augure, o velho banqueiro fundou uma academia
no estilo das antigas, só para ensinar estes segredos aos artistas.
Por culpa daquelas leituras se convencera de que o desenho de
obras de arte era uma ciência exata. Um livro confeccionado de
acordo com certas chaves atuaria como reflexo das forças cósmicas
e poderia ser utilizado para proteger ou destruir quem o
possuísse.*
*[Aqueles que partilharam esses segredos antes de Cosme, o
Velho, foram os construtores de catedrais góticas que receberam a
informação do Oriente muito antes de sua exportação para
Florença. Num romance anterior, Las Puertas Templarias
(Martínez Roca, 2000), explica como se produziu aquela transfusão
de sabedoria ancestral.]
- O quê? Já se deu conta, frei Agustín? - a pergunta de Gozzoli
me tirou do atordoamento. - O Augure diz que a arte pode ser
empregada como arma!
De fato. Um parágrafo mais abaixo a mensagem falava da
força da geometria. O número, a harmonia, o som, eram elementos
que podiam ser aplicados a uma obra de arte para que irradiasse
influências benéficas ao redor. Pitágoras, um dos gregos
defensores da Idade de Ouro que deslumbrou Cosme de Médicis,
dizia que "os únicos deuses comprováveis são os números". O
Augure amaldiçoava todos.
- Uma arma - ciciei. - Uma arma que o Mouro pretende
ocultar em Santa Maria delle Grazie.
- Exato! - Gozzoli se mostrava ufano. - É justamente o que diz.
Não é incrível?
Começava a entender o repentino interesse do mestre
Torriani em tudo isso. Anos atrás, nosso amado superior geral
condenara os trabalhos do pintor Sandro Botticelli por causa de
uma suspeita semelhante. Acusou-o de usar imagens inspiradas em
cultos pagãos para ilustrar obras da igreja, embora a denúncia
encerrasse algo mais. Graças aos informantes de Betânia, Torriani
soube que Botticelli, na Villa di Castello da família Médicis,
representara a chegada da primavera utilizando uma técnica
"mágica". As ninfas que dançavam no quadro foram dispostas como
as peças de um gigantesco talismã. Mais tarde Torriani averiguou
que Lorenzo di Pierfrancesco, patrão de Botticelli, pedira-lhe um
amuleto contra o envelhecimento. O quadro era o remédio mágico
solicitado. Na realidade, continha todo um tratado contra o passar
do tempo que incluía a metade das divindades do Olimpo dançando
contra o avanço de Cronos. E pretendiam passar por devota uma
obra assim, propondo-a como decoração para uma capela
florentina!
Nosso mestre geral descobriu a infâmia a tempo. A chave foi
dada por uma das ninfas da Primavera, Chloris, pintada com um
ramo de trepadeira saindo da boca. Era o símbolo inequívoco da
"linguagem verde" dos alquimistas, desses buscadores da eterna
juventude absorvidos por idéias espúrias a quem o Santo Ofício
perseguia onde quer que surgissem.
Mesmo em Betânia jamais conseguimos decifrar os detalhes
dessa misteriosa linguagem; bastou a suspeita para que o quadro
jamais fosse exibido numa igreja.
Mas agora, se o Augure estava certo, a história ameaçava se
repetir em Milão.
- Diga-me, irmão Giovanni, sabe por que o mestre Torriani me
pede para estudar esta mensagem?
Meu assistente, que já se sentara numa carteira ao lado e se
distraía olhando um livro de horas recém-desenhado, fez cara de
quem não entendia a pergunta:
- Como? Não chegou ao fim da carta?
Voltei a olhar para ela. No último parágrafo, o Augure falava
da morte de Beatrice d'Este e do muito que esta ia acelerar a
realização do plano mágico do Mouro.
- Nada vejo de particular, querido Giovannino - protestei.
- Não lhe chama a atenção que cite a morte da duquesa em
termos tão explícitos?
- E por que deveria citar?
O padre Gozzoli bufou:
- Porque o Augure datou e enviou esta carta em 30 de
dezembro. Dois dias antes do parto desgraçado de donna Beatrice.
5
- Jura que escondeu um segredo nesta parede?
Marco d'Oggiono esfregava o queixo, perplexo, enquanto
olhava de novo o mural que o mestre pintava. Leonardo da Vinci se
divertia com aqueles jogos. Quando estava de bom humor, e estava
nesse dia, era difícil encontrar nele o famoso pintor, inventor,
construtor de instrumentos musicais e engenheiro, favorito do
Mouro e aplaudido em meia Itália. Naquela fria manhã, o mestre
tinha o olhar de menino travesso. Mesmo sabendo que contrariava
os frades, aproveitara a calma tensa vivida por Milão após a morte
da princesa para inspecionar seu trabalho no refeitório dos padres
dominicanos. Estava ali em cima, satisfeito entre apóstolos,
encarapitado num andaime de seis metros de altura e saltando de
tábua em tábua como um cavalo.
- Claro que há um segredo! - gritou. Seu riso contagiante
ecoou nas abóbadas vazias de Santa Maria delle Grazie. - Basta
olhar com atenção minha obra e levar em conta os números.
Conte! Conte! - riu.
- Mas, mestre...
- Está bem - Leonardo sacudiu a cabeça, condescendente,
espichando a última sílaba à maneira de protesto. - Vejo que será
difícil ensinar você. Por que não pega a Bíblia ali embaixo, junto
com a caixa dos pincéis, e lê o capítulo treze de João, a partir do
versículo vinte e um? Talvez assim você encontre a iluminação.
Marco, um dos jovens e enfeitados discípulos do toscano,
correu em busca do livro sagrado. Apanhou-o no peitoril isolado
junto à porta e o sopesou. Devia pesar vários quilos. Com esforço,
Marco folheou aquele exemplar impresso em Veneza, com capa de
couro preto cinzelado em cobre, até que o evangelho de João se
abriu diante dele. Era uma edição bonita, com gravuras florais no
alto das páginas, cheia de letras góticas grandes e pretas.
- "Dito isto", começou a recitar, "comoveu-se Jesus em seu
espírito, e, demonstrando-o, disse: 'Em verdade, em verdade vos
digo que um de vós me entregará.' Os discípulos, pois, olhavam uns
para os outros, sem saber de quem Ele falava. Um dos discípulos,
aquele que Jesus amava, estava recostado ao peito de Jesus. Simão
fez-lhe sinal, dizendo-lhe: “Pergunta-lhe de quem é que Ele fala'."
- Chega! Está bem! - troou Leonardo, lá no andaime. - Olhe
agora aqui e me diga: você ainda não entende meu segredo?
O discípulo fez que não com a cabeça. Marco já sabia que o
mestre tinha algum truque engatilhado.
- Mestre Leonardo - e sua recriminação tinha um tom de
franca decepção. - Já sei que está trabalhando nesta passagem
evangélica. Não me revela nada de novo mandando-me ler a Bíblia.
O que eu quero é saber a verdade.
- A verdade? Que verdade, Marco?
- Há boatos na cidade de que o senhor demora em acabar esta
obra porque deseja esconder algo importante nela. Substituiu a
técnica do afresco por outra nova e mais lenta. Por quê? Vou dizer:
porque assim poderá pensar melhor aquilo que deseja transmitir.
Leonardo não pestanejou.
- Eles conhecem sua preferência pelos mistérios, mestre, e eu
também quero conhecê-los, todos!... Três anos ao seu lado,
preparando misturas e ajudando suas mãos com os esboços e os
desenhos sobre cartão, creio que deveriam me dar alguma
vantagem sobre o pessoal de fora, não?
- Sim, sim. Mas quem diz todas essas coisas, pode-se saber?
- Quem, mestre? Todos! Até os monges desta casa santa
páram com freqüência seus discípulos e perguntam a eles!
- E o que comentam, Marco? - voltou a rugir lá de cima, cada
vez mais divertido.
- Que seus Doze não são verdadeiros retratos dos apóstolos,
como seriam pintados por frei Filippo Lippi ou Crivelli, que
refletem as doze constelações do zodíaco, que escondeu nos gestos
de suas mãos as notas de uma de suas partituras para o Mouro...
Dizem qualquer coisa, mestre.
- E você?
- Eu?
- Sim, sim, você. - Outro sorriso pícaro voltou a iluminar o
rosto de Leonardo. - Estando tão perto de mim, trabalhando todos
os dias numa sala tão magnífica, a que conclusão você chegou?
Marco levantou o olhar até a parede em que o toscano dava
alguns retoques com um pincel de cerdas finíssimas. A parede
norte acolhia a representação da última ceia mais extraordinária
que Marco jamais vira. Ali estava Jesus, presente em carne e osso,
no centro exato da composição. Tinha o olhar lânguido e os braços
estendidos, como se estudasse de soslaio as reações dos discípulos
à revelação que acabara de fazer. Ao seu lado estava João, o
amado, que escutava Pedro sussurrando alguma coisa. Apurando
os sentidos, quase podia vê-los mover os lábios. Eram tão reais!
Mas João já não estava encostado no mestre como dizia o
evangelho. Dava até a impressão de nunca ter estado. Do outro
lado de Cristo, Felipe, o gigante, mantinha-se de pé, afundando as
mãos no peito. Parecia interrogar o Messias: "Acaso sou eu o
traidor, Senhor?" Ou Tiago, que estufava o peito como se fosse um
guarda-costas, jurando lealdade eterna: "Ninguém lhe fará mal
enquanto eu estiver por perto", fanfarronava.
- E então, Marco? Você ainda não se pronunciou.
- Não sei, mestre... - titubeou. - Este seu mural tem algo que
me desconcerta. É tão, tão...
- Tão?...
- Tão próximo, tão humano, que me deixa sem palavras.
- Muito bem! - aplaudiu Leonardo, secando as mãos no
avental. - Está vendo? Sem querer já está mais perto de meu
segredo.
- Não entendo, mestre.
- E talvez não entenda nunca - sorriu. - Mas escute o que vou
dizer: tudo na natureza contém algum mistério. As aves nos
ocultam as chaves de seu vôo, a água encerra com precaução o
porquê de sua força extraordinária... E se conseguirmos que a
pintura seja um reflexo dessa natureza, não seria justo incorporar
nela essa mesma e enorme capacidade de guardar informação?
Cada vez que você admirar uma pintura lembre-se que está
entrando na mais sublime das artes. Nunca fique na superfície:
penetre na cena, mexa-se entre seus elementos, descubra os
ângulos inéditos, fareje o que está nos fundos... e assim você
chegará ao verdadeiro significado. Mas advirto: necessita-se
conhecimento para isso. Não poucas vezes o que encontramos num
mural como este fica longe do que esperávamos encontrar. Dito e
feito.
6
Frei Giovanni cumpriu sem vacilar a segunda parte da missão
encomendada pelo mestre geral.
Depois de nossa conversa e de me mostrar a última carta do
Augure, regressou à casa mãe da ordem, deixando Betânia antes
de anoitecer. Torriani ordenou que voltasse para informá-lo de
minha reação. Em especial, queria saber que opinião eu tinha
sobre os boatos de graves anomalias nas obras de adaptação de
Santa Maria delle Grazie. Meu assistente devia transmitir-lhe
minha mensagem, clara e simples: se finalmente levassem em
conta meus velhos temores e se tomassem como prováveis as
revelações do Augure, devia localizá-lo em Milão e coconhecer dele
próprio o alcance dos projetos secretos que o duque tinha para
aquele convento.
Insisti com frei Giovanni:
- Em especial, devem-se examinar os trabalhos de Leonardo
da Vinci. Em Betânia já sabíamos de sua mania de mascarar idéias
heterodoxas em obras de aparência piedosa. Leonardo trabalhou
muitos anos em Florença, teve contato com os descendentes de
Cosme, o Velho, e, entre todos os artistas que trabalham em Santa
Maria, é o mais propenso a participar das idéias do Mouro.
Gozzoli acrescentou minha outra grande preocupação ao seu
relatório para o mestre Torriani: insisti na necessidade de abrir
uma investigação sobre a morte de donna Beatrice. O vaticínio tão
preciso do Augure sugeria a existência de algum sinistro plano
ocultista, talvez idealizado pelo duque Ludovico ou por seus
pérfidos assessores, para estabelecer uma república pagã no
coração da Itália. Ainda que não houvesse muito sentido em que o
duque mandasse assassinar sua mulher e o filho nonato, a
mentalidade dos adeptos das ciências ocultas percorria amiúde
atalhos imprevisíveis. Não era a primeira vez que ouvia falar da
necessidade de sacrificar uma vítima notável antes de empreender
uma grande obra. Os antigos, esses bárbaros da Idade de Ouro,
faziam-no com freqüência.
Suponho que minha decisão animou Torriani.
O mestre geral avisou o irmão Gozzoli de suas intenções e na
manhã seguinte, com a geada ainda caindo sobre Roma,
abandonou suas dependências no mosteiro de Santa Maria sopra
Minerva disposto a cortar aquele problema pela raiz.
Desafiando os acessos nevados da Cidade Eterna, Torriani
subiu ao quartel de Betânia em mula e solicitou uma entrevista
comigo com a maior brevidade. Ainda ignoro que termos o irmão
Gozzoli empregou para informá-lo sobre minhas idéias, mas era
evidente que o impressionara. Nunca vi nosso mestre assim: duas
bolsas arroxeadas caíam como chumbo de seu olhar cinzento,
apagando-o; suas costas pareciam se vergar sob o peso de uma
responsabilidade plúmbea, devorando pouco a pouco seu caráter
alegre e afundando uns ombros que também se enfraqueciam por
momentos. Torriani, mentor, guia e velho amigo, consumia o que
lhe restava de vida com as marcas de uma decepção gravadas no
rosto. E ainda assim, por trás do brilho de seus olhos, percebia-se
uma sensação de urgência:
- Pode atender um pobre servo de Deus, molhado e doente? –
disse logo que me viu no átrio de Betânia.
Mentiria se jurasse que não me surpreendeu encontrá-lo ali
tão cedo. Ele subira ao nosso alojamento sozinho, sem séquito, com
uma manta sobre o hábito e as sandálias cobertas por enormes
peles de coelho. Se o superior da Ordem de São Domingos
abandonava assim nossa casa mãe e a paróquia, e cruzava a cidade
em pleno temporal para se reunir com o responsável por seu
serviço de informação, o assunto devia ser gravíssimo. Ainda que
seu rosto sombrio convidasse a começar logo a conversa, não me
atrevi a perguntar nada. Esperei que retirasse sua manta e
consumisse o copo de vinho quente que lhe oferecemos. Subimos
ao meu pequeno estúdio, um recinto escuro apinhado de caixas e
manuscritos, de onde se descortinava toda Roma, e mal se fechou a
porta o padre Torriani confirmou meus temores.
- Claro que vim aqui por causa dessas cartas perversas! -
protestou, arqueando as sobrancelhas brancas. - E você me
pergunta quem creio que seja o autor? Logo você, padre Leyre?
Torriani respirou fundo. Sua natureza doentia lutava para se
exaltar, enquanto o vinho ia ajustando o tom pouco a pouco. Fora,
a neve aumentava gradualmente no vale.
- Minha impressão - continuou - é que nosso homem tem de
ser alguém do séquito do duque ou, pelo menos, algum irmão do
novo convento de Santa Maria delle Grazie. Trata-se de uma
pessoa que conhece bem nossos costumes e sabe a quem dirigir as
cartas. No entanto...
- No entanto?
- Veja, padre Leyre: desde que li a carta que lhe enviei ontem
quase não consegui pregar o olho. Lá fora há alguém que nos avisa
sobre uma grave traição contra a Igreja. O assunto é muito sério,
sobretudo se, como temo, nosso informante procede da
comunidade de Santa Maria...
- Acredita que o Augure é um dominicano, padre?
- Estou quase seguro. Alguém de dentro, testemunha dos
avanços do Mouro, que não se atreve a denunciá-lo por medo de
represálias.
- E suponho que já estudou a vida desses frades em busca de
seu candidato, não é verdade?
Torriani sorriu satisfeito:
- Todos eles. Sem exceção. A maioria procede de boas
famílias lombardas. São religiosos leais ao Mouro e à Igreja,
homens pouco dados à fantasias ou conspirações. Bons
dominicanos, em suma. Não posso imaginar quem possa ser o
Augure.
- Se é que algum deles é o Augure.
- Certamente.
- Permita-me recordar, mestre Torriani, que a Lombardia
sempre foi terra de hereges...
O geral da ordem, friorento, conteve um espirro antes de
responder:
- Isso foi há muito tempo, padre.
- Muito. Há mais de duzentos anos não resta nem rastro da
heresia albigense na região. É certo que aqueles malditos que
inspiraram nosso amado São Domingos a criar a Santa Inquisição
se refugiou ali depois da cruzada albigense *, mas todos morreram
sem contagiar ninguém com suas idéias.
* [Em 1208, o papa Inocêncio III ordenou a erradicação da heresia
albigense, criando uma força militar para exterminar os
heterodoxos do Languedoc francês. Embora se aceite que em 1244
foram extintos os últimos hereges no assédio de Montségur, muitos
historiadores advertem que famílias inteiras de "homens bons" se
refugiaram na Lombardia perto da atual Milão, onde
permaneceram durante muito tempo a salvo da perseguição de
Roma, perseverando em sua fé original.]
- E, no entanto não se pode descartar a idéia de que sua
blasfêmia penetrou na mentalidade dos milaneses. Por que então
os milaneses seriam tão abertos à idéias heterodoxas? Por que
então o duque aceitaria crenças pagãs se ele mesmo não tivesse
crescido num ambiente predisposto a isso? E por que razão -
prossegui - um dominicano fiel a Roma, haveria de se esconder por
trás de umas mensagens sem assinatura, a não ser que ele mesmo
participe da heresia que agora denuncia?
- Patranhas, padre Leyre! O Augure não é um albigense. Pelo
contrário: preocupa-se em manter a ortodoxia com mais zelo do
que o próprio inquisidor geral de Carcassonne. Esta manhã, antes
de você chegar, li outra vez todas as cartas desse indivíduo. O
Augure deixa claro seu objetivo desde a primeira carta que nos
mandou: deseja que enviemos alguém para deter os planos do
Mouro em Santa Maria delle Grazie. É como se o que o duque fez
no resto de Milão, as praças, os canais para a navegação interior,
as comportas, não importassem... E isso reafirma a sua hipótese.
Torriani concordou com deleite.
- Mas mestre - eu o contradisse -, antes de atuar deveria
avaliar se sua petição encerra alguma armadilha.
- Como? Você pretende deixar o Augure sozinho apesar das
provas que nos ofereceu? Mas se você mesmo há tempo denuncia
os desvios doutrinários da falecida mulher do Mouro!
- Exatamente. Essa família é esperta. Não será fácil encontrar
argumentos contra ela. Digo que devemos exercitar o máximo de
prudência antes de dar um passo errado.
- Não, padre. Nada disso. Esse homem, seja quem for, pede-
nos ajuda e já não podemos negá-la por mais tempo. Além disso,
saiba que por intermédio do cardeal Ascânio, irmão do duque,
comprovei até os mínimos detalhes que aparecem em seus
relatórios. E, creia, todos são exatos.
— “Exatos” — repeti, enquanto tratava de organizar minhas
idéias. — Sabe? Creio que o que mais me surpreende nesse
assunto é sua mudança de atitude, mestre Torriani.
— Não tem nada disso — protestou. — Arquivei as cartas do
Augure enquanto não havia provas sólidas para apoiá-las. Se não
tivesse acreditado nelas, as teria destruído, não lhe parece?
— Então, mestre, se o nosso informante está com a verdade e
se é um dominicano preocupado com o futuro de seu novo
convento, por que o senhor acha que esconde a identidade quando
escreve?
Frei Gioacchino encolheu os ombros, devolvendo-me um
esgar de perplexidade.
— Tomara soubesse, padre Leyre. E me preocupa. Quanto
mais tempo passo sem respostas, mais me incomoda este assunto.
São muitas as frentes abertas por nossa ordem nestes dias, e abrir
mais uma ferida no seio da Igreja equivale a degradá-la sem
remédio. Por isso, chegou a hora de agir. Não podemos permitir
que se repita em Milão o que já ocorre em Florença. Seria um
desastre!
“Mais uma ferida.” Duvidei se devia mencionar o tema, mas o
silêncio de Torriani não me deixou opção:
— Suponho que se refere a Savonarola...
— E quem poderia ser? — O ancião respirou fundo antes de
prosseguir. — A paciência do santo padre acabou e já pensa em
excomungá-lo. Seus sermões contra a opulência do papa crescem
em aspereza; para o cúmulo, suas profecias sobre o fim da casa dos
Médicis se cumpriram e agora, seguido por uma multidão, anuncia
grandes castigos do Senhor contra os Estados pontifícios. Diz que
Roma deve sofrer para purgar seus pecados e o maldito se alegra
por isso. E sabe o que é pior? Cada dia tem mais seguidores. Se
por acaso o duque de Milão aderir a essa idéia de derrocada,
ninguém poderá deter o descrédito de nossa instituição...
Confuso, persignei-me ante o funesto panorama que o mestre
geral esboçava. Girolamo Savonarola era, como Roma inteira sabia,
o grande problema de Torriani naquela época. Todo mundo falava
dele. Persistente leitor do Apocalipse, esse dominicano de fala
brilhante e grande capacidade de sedução acabara de instaurar
uma república teocrática em Florença para preencher o vazio
deixado pela fuga da família Médicis. De seu novo púlpito
arremetia contra os excessos de Alexandre VI. Savonarola era um
louco ou, pior ainda, um temerário. Desatendia as chamadas da
ordem recebidas de seus superiores e ignorava deliberadamente a
legislação canônica. Os Dictatus papae que desde o século XI
eximiam o pontífice e sua cúria da possibilidade de errar o
deixavam excitado. Desafiava até a décima nona sentença
(“Ninguém pode julgar o papa”), gritando do altar que o deteria em
nome de Deus.
Nosso mestre geral se desesperava. Não só fora incapaz de
deter a sede de grandeza daquele exaltado, mas a atitude de
Savonarola comprometia toda a ordem diante de Sua Santidade. O
rebelde, orgulhoso como Sansão diante dos filisteus, rechaçara o
chapéu cardinalício que lhe foi oferecido para acalmar suas críticas
e até recusara abandonar sua tribuna no convento florentino de
San Marco alegando ter uma missão divina mais importante a
cumprir. Essa, e não outra, era a razão pela qual o padre Torriani
não queria que a lealdade dos pregadores de São Domingos fosse
questionada em Milão. Se o Augure era um dominicano e tinha
razão de chamar a atenção para os planos pagãos do Mouro em
nossa nova casa na cidade, a ordem voltaria a ficar interditada.
— Tomei uma decisão, irmão — sentenciou o mestre geral,
muito sério, depois de meditar um instante. — Temos de afastar
qualquer sombra de dúvida sobre as obras de Santa Maria delle
Grazie, recorrendo à força do Santo Ofício se for preciso.
— Padre! Não está pensando em julgar o duque de Milão? —
perguntei alarmado.
— Só se for necessário. Nada agrada mais os príncipes
seculares do que descobrir as fraquezas de nossa Igreja e utilizá-
las contra nós. Somos obrigados a nos adiantar aos seus
movimentos. Outro escândalo como o de Savonarola e nossa casa
ficaria prejudicada nos Estados pontifícios. Compreende?
— E como pensa, se posso perguntar, chegar até o Augure,
comprovar suas afirmações e reunir a informação necessária para
julgá-lo sem levantar suas suspeitas?
— Pensei muito nisso, meu querido padre Agustín —
anunciou, enigmático. — Você sabe melhor do que eu que se
enviasse um de nossos inquisidores intempestivamente, o tribunal
de Milão faria muitas perguntas e romperia a discrição requerida
pelo caso. E se existisse um complô de tanto alcance todas as
provas seriam ocultadas com rapidez pelos cúmplices do Mouro.
- E então?
Torriani abriu a porta do estúdio e desceu a escada até o
portão de entrada, sem responder. Foi ao pátio das cavalariças e
buscou sua mula, dando por encerrada aquela reunião de urgência.
A nevasca continuava ganhando força do lado de fora.
- Diga-me, o que pensa fazer? - repeti.
- O Mouro previu que dentro de dez dias será celebrado o
funeral oficial da duquesa - respondeu por fim. - Chegarão a Milão
delegações de todas as partes, e então será fácil se infiltrar em
Santa Maria para fazer as investigações destinadas a localizar o
Augure. No entanto - acrescentou -, não podemos enviar um
religioso qualquer. Deve ser alguém com critério, que conheça leis,
heresias e códigos secretos. Sua missão será encontrar o Augure,
confirmar uma por uma suas afirmações e deter a heresia. O
escolhido deve ser um homem desta casa. De Betânia.
O mestre lançou um olhar receoso ao caminho que estava a
ponto de empreender. Com sorte levaria uma hora para percorrê-
lo, e, se a montaria não o jogasse sobre alguma placa de gelo,
chegaria em casa ao calor do meio-dia.
- O homem que necessitamos - disse como se fosse anunciar
algo importante - é você, padre Leyre. Nenhum outro resolveria
com maior eficiência este assunto.
- Eu? - Aquilo me deixou perplexo. Pronunciara meu nome
com um deleite mórbido, enquanto procurava algo nos alforjes da
montaria.
- Mas o senhor sabe que tenho trabalho aqui, obrigações...
- Nenhuma obrigação como esta!
E extraindo um grosso feixe de papéis, presos com seu selo
pessoal, passou-os para mim com sua última ordem:
- Você partirá com rapidez para Milão. Hoje mesmo se for
possível. E com isso - olhou o maço de documentos que já estavam
em minhas mãos - identificará nosso informante, averiguará quanta
verdade existe por trás deste novo perigo e tratará de corrigi-lo.
O mestre apontou o pergaminho que encabeçava o maço.
Nele, em letras grandes escritas com tinta vermelha, lia-se a
adivinhação que continha a assinatura de nosso informante. Vira-a
muitas vezes, encerrava cada uma das cartas do Augure, mas até
então não prestara atenção nela.
Minha vista quis se nublar ao focalizar aquelas sete linhas e
sentir que se converteram em meu principal problema.
Diziam:
“Óculos éjus dinumera, sednoli voltum àdspicere.
In latere nominis mei notam rínvenies.
Contemplari et contemplata aliis iradere.
Ventas” *
*[Do latim: "Conte-lhe os olhos, / mas não olhe para a cara. / A cifra
de meu nome / achará em suas costas. / Contemplar e dar aos
outros / o resultado de sua contemplação. / Verdade.]"
7
Obedeci, naturalmente. Que outra coisa poderia fazer?
Cheguei a Milão depois da noite do dia de Reis. Era uma dessas
manhãs de sábado em que o brilho da neve cega você e o ar limpo
esfria sem piedade suas entranhas. Cavalgara sem descanso para
atingir meu destino, dormindo três ou quatro horas em pousadas
nauseabundas, entorpecido e úmido por causa de uma viagem de
três jornadas na metade do inverno mais cruel de que era capaz de
recordar. Mas nada disso importava. Milão, a capital da
Lombardia, a sede de intrigas palacianas e disputas territoriais
com a França e os condados vizinhos, sobre o que eu tanto
estudara, descansava já aos pés de minha montaria.
O lugar era impressionante. A cidade dos Sforza, a maior ao
sul dos Alpes, tinha o dobro de extensão de Roma; oito grandes
portas ladeavam uma muralha impenetrável que rodeava uma urbe
de planície redonda que vista do céu devia lembrar o escudo de um
guerreiro gigantesco. No entanto, não foram suas defesas que me
surpreenderam; aquela era uma cidade nova, limpa, que transmitia
uma intensa sensação de ordem. Os cidadãos não urinavam nas
esquinas, como em Roma, nem as prostitutas investiam sobre os
caminhantes, oferecendo-se. Ali, cada casa, cada prédio público
pareciam pensados para uma função suprema. Até sua orgulhosa
catedral, de aspecto frágil e esquelético, diferente em tudo das
maciças e volumosas catedrais do sul italiano, espargia suas
benéficas influências sobre o vale. Vista das colinas, Milão parecia
o último recanto do mundo em que se poderia enraizar a desordem
e o pecado.
Um trecho antes de chegar à Porta Ticinese, o mais nobre dos
acessos ao burgo, um amável mercador se ofereceu para me
acompanhar até a torre de Filarete, a entrada principal da
fortaleza do Mouro. Situado num dos extremos do escudo urbano,
o castelo dos Sforza parecia uma réplica em miniatura das
enormes muralhas da cidade. O mercador riu ao ver minha cara de
espanto. Disse que era curtidor em Cremona, bom católico, que me
acompanharia com prazer até o interior da fortaleza em troca de
minha bênção para ele e sua família. Aceitei o trato.
O bom homem me deixou em frente ao castelo do duque
justamente na nona hora. Aquele lugar era ainda mais magnífico do
que eu supusera. Bandeirolas com a terrível insígnia dos Sforza -
uma espécie de serpente gigante devorando um desgraçado -
caíam das ameias. Faixas azuis tremulavam ao vento, enquanto
meia dúzia de enormes chaminés, fincadas em algum lugar do
interior da fortaleza, lançavam grandes baforadas de fumaça preta
e espessa. A entrada de Filarete constava de uma ameaçadora
grade de ferro e duas partes móveis da ponte levadiça rebitadas de
bronze, dobradas sobre si próprias. Pelo menos quinze homens a
vigiavam, furando com lanças os sacos de cereal que as carroças
queriam deixar perto das cozinhas.
Um daqueles uniformizados me apontou o caminho. Eu devia
me dirigir ao extremo oeste da torre, já dentro da fortaleza, e
perguntar pela área de recepção de visitas e o "escritório de luto"
instalado para receber as delegações que viriam para o funeral de
donna Beatrice. Meu cicerone de Cremona já me advertira que
toda a cidade pararia ao chegar aquele momento. E, de fato, nessa
hora não havia muita atividade. Surpreendeu-me que o secretário
do Mouro, um cortesão espigado de rosto inexpressivo, quase não
tardasse em me receber. O servidor se desculpou por não poder
conduzir este servo de Deus até seu senhor. Ainda assim, examinou
minha carta de apresentação com ar cético, comprovou que o selo
pontifício era autêntico e a devolveu com um gesto de desolação.
- Lamento, padre Leyre - e Marchesino Stanga, como ele se
chamava, desfez-se numa torrente de desculpas. - Deve entender
que meu senhor não recebe ninguém depois da morte de sua
mulher. Suponho que compreende o difícil momento que
atravessamos e a necessidade do duque de ficar a sós.
- Claro - concordei com fingida cortesia.
- No entanto - acrescentou -, quando passar o luto farei
chegar a ele a notícia de sua presença na cidade.
Gostaria de poder fitar os olhos do Mouro e deduzir, como em
tantos interrogatórios que presenciei, se ocultavam ou não
sinistras sombras da heresia ou do crime. Mas aquele funcionário,
vestido com um gorro de cochinilha guarnecida de peles e gibão de
veludo, que falava com ar de mesquinha superioridade, estava
decidido a me impedir:
- Tampouco podemos hospedá-lo, como é nosso costume –
disse com secura. - O castelo está fechado e não recebemos
hóspedes. Rogo-lhe, padre, que reze pela alma de donna Beatrice e
que retorne depois do funeral. Então o atenderemos como merece.
- Requiescat in pace - murmurei enquanto fazia o sinal da
cruz. - Assim farei. - Também rezarei pelo senhor.
Tive uma sensação estranha. Impossibilitado de me instalar
perto do duque e sua família, frustrado em meu propósito de
deambular com mais ou menos liberdade por seu castelo, minhas
primeiras pesquisas ainda demorariam. Devia conseguir um
alojamento discreto que me garantisse certo ambiente de estudo.
Com os documentos de Torriani queimando em minha bolsa, ia
precisar de calma, três pratos de comida por dia e uma boa dose
de sorte para decifrar o segredo. Não era prudente que um monge
buscasse pousada entre os leigos, portanto, minhas opções logo se
reduziram a duas: ou me instalava no antigo convento de São
Eustórgio, ou no novíssimo de Santa Maria delle Grazie, onde a
possibilidade de cruzar com o Augure excitava minha imaginação.
Depois, com o abrigo resolvido, haveria tempo de submergir na
chave que o mestre Torriani me entregou em Betânia.
Reconheço que a Divina Providência fez um trabalho
exemplar. São Eustórgio se revelou logo a pior das opções. Situado
perto da catedral, junto ao mercado de mantimentos, costumava
ficar cheio de curiosos que não tardariam a se perguntar que tipo
de assunto retinha ali um inquisidor romano. Mesmo que sua
situação me desse certo distanciamento sobre as atividades do
Augure, economizando o risco de encontrá-lo cara a cara sem
saber de quem se tratava, também sabia que me oferecia mais
inconvenientes do que vantagens.
Quanto à outra opção, a de Santa Maria delle Grazie, além de
ser o presumível refúgio de meu objetivo, só apresentava outro
pequeno, mas superável defeito: era ali que se celebrariam as
multitudinárias exéquias de donna Beatrice. Sua igreja, reformada
havia pouco por Bramante, estava a ponto de se converter no
centro de todos os olhares.
Em compensação, Santa Maria dispunha de tudo o que se
precisaria. Sua bem sortida biblioteca, situada no segundo piso de
um dos prédios que davam para o que ali chamavam de Claustro
dos Mortos, abrigava livros de Suetônio, Filóstrato, Plotino,
Xenofonte e até alguns do próprio Platão importados no tempo de
Cosme, o Velho. Situava-se perto da fortaleza do duque e não
muito longe da Porta Vercellina. Tinha uma excelente cozinha, um
extraordinário forno de pastelaria, porão, horto, alfaiataria e
hospital. E, se não fosse pouco, todas aquelas vantagens
empalideciam diante de uma única: se o mestre Torriani não se
enganava, talvez o Augure pudesse surgir diante de mim em seus
corredores, sem necessidade de resolver adivinhação alguma.
Fui um ingênuo
Menos nesse aspecto concreto, a providência fez bem seu
trabalho: em Santa Maria havia uma cela disponível que me foi
atribuída de imediato. Tratava-se de um quartinho de três passos
por dois, um catre de madeira sem colchão e uma mesa pequena
situada sob um pobre postigo que dava para a rua chamada
Magenta. Os frades não fizeram perguntas. Examinaram minhas
credenciais com o mesmo olhar de desconfiança do secretário
Stanga, mas relaxaram quando garanti que fora à sua casa em
busca de serenidade para meu atribulado espírito.
- Até um inquisidor necessita de recolhimento - assegurei.
E eles entenderam. Só impuseram uma condição. O sacristão,
um frade de olhos saltados e sotaque estranho, advertiu-me,
severo:
- Nunca entre sem permissão no refeitório. O mestre
Leonardo não quer que alguém interrompa seu trabalho e o abade
deseja satisfazê-lo em tudo. Entendeu?
Concordei.
8
A primeira coisa que visitei foi a biblioteca de Santa Maria.
Sentia uma grande curiosidade. Situada sobre o polêmico, e agora
restrito, refeitório que o Augure convertera em foco de todo o mal,
era uma peça ampla, de janelas retangulares, atravessada por uma
dezena de pequenas mesas de leitura e uma grande carteira para o
bibliotecário. Justamente atrás dele, depois de um grosso portão
com fechadura, guardavam-se os livros. O que mais me chamou a
atenção foi o sistema de calefação: uma caldeira no piso inferior
fornecia vapor de água a condutos de cobre que esquentavam as
lajes do solo.
- Não é pelos leitores - apressou-se a me explicar o
responsável pelo lugar quando me viu farejando com interesse
aquele dispositivo engenhoso. - É pelos livros. Guardamos
exemplares muito valiosos para deixar que sejam estragados pelo
frio.
Creio que o padre Alessandro, guardião e custódio daquela
sala, foi o primeiro monge que não me olhou com desconfiança, e
sim com uma descarada curiosidade. Comprido, ossudo, de pele
branquíssima e modos finos, parecia encantado por ver uma cara
nova em seus domínios.
- Não costuma vir muita gente aqui - admitiu. - E muito menos
de Roma!
- Ah... Já sabe que sou romano?
- As notícias voam, padre. Santa Maria ainda é uma
comunidade pequena. Não creio que a esta hora haja alguém na
comunidade que não saiba da chegada de um inquisidor em nossa
casa.
O frade me piscou um olho em sinal de cumplicidade.
- Não estou aqui era missão oficial - menti. - Vim por motivos
pessoais.
- E que importa! Os inquisidores são homens de letras,
estudiosos. E aqui quase todos os frades têm dificuldade de ler ou
escrever. Se ficar algum tempo conosco, creio que nos faremos boa
companhia.
Logo acrescentou:
- É certo que em Roma trabalha na Secretaria de Chaves?
- Sim... - hesitei.
- Magnífico, padre. Isso é magnífico. Vamos ter muito o que
falar. Creio que escolheu o melhor lugar do mundo para passar
alguns dias.
Alessandro me pareceu simpático. Beirava os cinquenta,
apresentava sem complexos um nariz em forma de gancho e o
queixo mais saliente que eu jamais vira. O pomo-de-adão lutava
para saltar da garganta. Tinha, sobre a mesa, grossas lentes com
que devia aumentar as letras dos livros, e as mangas do hábito
exibiam enormes nódoas de tinta. Não quis me abrir com ele de
imediato - de fato, tentava não olhá-lo muito para não ser
hipnotizado por aquele rosto contrafeito -, embora admitisse que
uma corrente de afeto sincero circulou logo entre nós. Insistiu em
atender às minhas carências enquanto estivesse no convento.
Ofereceu-se para me mostrar os recantos daquele esplêndido lugar
em que tudo parecia novo e me prometeu que velaria pela minha
tranqüilidade para que pudesse me concentrar.
- Se o seu exemplo se multiplicasse e mais frades viessem a
esta casa para estudar - queixou-se, como se não pudesse conter a
língua -, logo poderíamos convertê-la num Estúdio Geral,* como os
de Roma, e quem sabe numa universidade...
* [Centros de formação dominicanos em que se faziam estudos de
teoria, ou os célebres Trivium (gramática, retórica e dialética) e
Quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música).]
- Os frades não vêm estudar aqui?
- Poucos, considerando o que este lugar pode oferecer.
Mesmo que pareça modesta, esta biblioteca reúne uma das
coleções de textos antigos mais importantes do mundo.
- Ah, sim?
- Perdoe-me se peco por imodéstia, mas trabalho nela há
muito tempo. Talvez a um romano culto como o senhor ela pareça
pequena perto da Biblioteca Vaticana, mas acredite-me que aqui
entesouramos textos que nem os bibliotecários do papa
imaginam...
- Então - disse, com cortesia - será um privilégio poder consul-
tá-los.
Frei Alessandro inclinou a cabeça como se aceitasse o elogio,
ao mesmo tempo em que revolveu seus papéis procurando algo
importante.
- Antes preciso um pequeno favor seu. Na verdade, caiu do
céu. Para alguém como o senhor, treinado em decifrar mensagens
para a Secretaria de Chaves, uma adivinhação como esta será
moleza.
O dominicano estendeu um pedaço de papel com algo
garatujado. Era um desenho simples. Uma escala musical tosca
interrompida por uma espécie de nota fora do lugar (lá, ou si
bemol) e um anzol. Assim:
- O quê? - perguntou impaciente. - Já entendeu? Estou
tentando há três dias sem êxito.
- E o que supõe que se deve achar aqui?
- Uma frase em língua românica.
Observei a adivinhação sem chegar a intuir o significado. Era
evidente que a chave devia estar naquele si bemol fora de lugar. As
coisas fora de lugar sempre tinham a resposta, mas e o anzol?
Organizei mentalmente aqueles elementos, começando pela leitura
da escala, e sorri divertido.
- É uma frase, certamente - disse por fim. - E muito simples.
- Simples?
- Basta saber ler, frei Alessandro. Veja, se você partir da
tradução do anzol para a língua espanhola, que é "amo", o resto do
desenho ganha logo sentido.
- Não entendo.
- É simples. Leia "amo" e em seguida as notas.
O frade, indeciso, passou os dedos pelo desenho: "L'amo...
re... mi... fa... sol... la... za (si bemol)... re. Vamore mi fa
sollazarel...”* ["O amor me dá prazer." (N. do T.)]
- Esse Leonardo é um pícaro! Verá quando eu o encontrar!
Jogar com as notas musicais... Maledetto.
- Leonardo?
A menção daquele nome me devolveu à realidade. Eu fora à
biblioteca em busca de um refúgio para decifrar a adivinhação do
Augure. Uma chave que, se não nos enganávamos, relacionava-se
com Leonardo, o refeitório proibido e o mural em que ele
trabalhava.
- Ah! - exclamou o bibliotecário ainda eufórico por sua
descoberta. - Ainda não o conhece?
Neguei com a cabeça.
- É outro amante das adivinhações. Todas as semanas desafia
a nós, monges, com uma adivinhação. Esta foi das mais difíceis...
- Leonardo da Vinci?
- E quem senão ele?
- Acreditei... - hesitei - que não falava muito com os frades.
- Só quando trabalha. Mas, como mora aqui perto, muitas
vezes passa para supervisionar seu mural e brinca conosco no
claustro. Adora os duplos sentidos, os equívocos, e nos faz rir com
suas lembranças.
"Os duplos sentidos."
Aquilo, longe de me divertir, inquietou-me. Estava ali para
decifrar uma mensagem que zombara de todos os analistas de
Betânia. Um texto, diferente daquela frase picara disfarçada por
Leonardo em pentagrama, de cuja resolução dependiam vários
assuntos de Estado. Como poderia perder tempo com aquela
tagarelice insignificante?
- Pelo menos - eu disse, cortante - seu amigo Leonardo e eu,
temos algo em comum: gostamos de trabalhar a sós. Poderia me
dar uma carteira e zelar para que ninguém me incomode?
Frei Alessandro entendeu que eu não pedia um favor. Apagou
o sorriso de triunfo daquele rosto anguloso e concordou, obediente.
- Fique aqui. Ninguém interromperá seu estudo.
Naquela tarde, o bibliotecário cumpriu a palavra. As horas
que passei diante dos sete versos que me foram entregues pelo
mestre Torriani em Betânia foram algumas das mais solitárias que
passei em Milão. Entendia que aquele trabalho requeria solidão
como nenhum outro que enfrentei anteriormente. Li de novo:
Oculos ejus dinumera, ed noli voltum âdspicere.
In latere nominis
mei notam rinveníes. Contemplari et contemplata
aiiis iradere.
Ventas
Tudo seria mérito da paciência. Tal como aprendi nos
escritórios de Betânia, apliquei naquela babel de palavras as
técnicas do admirável padre Leon Battista Alberti. Padre Alberti
ficaria encantado com meu desafio: não apenas devia desentranhar
uma mensagem oculta por trás de um texto vulgar, mas o texto,
provavelmente, me conduziria a uma obra de arte com um bom
mistério encerrado por trás. Ele foi o primeiro sábio a escrever
sobre a perspectiva, era uma amante da arte, poeta, filósofo,
compôs uma música fúnebre para seu cachorro e até desenhou a
Fontana de Trevi em Roma. Não só é admirável doutor, que Deus
levou, prematuramente, à glória, dizia que para resolver qualquer
adivinhação não importava sua espécie ou procedência: devia-se ir
do evidente ao oculto. Isto é, relacionar primeiro o óbvio, o az, para
buscar depois seu significado encoberto. E enunciou outra lei: as
adivinhações se resolvem sempre sem pressa, atentando para os
detalhes mínimos e deixando-os sedimentar em nossa memória.
Neste caso em particular, o óbvio, e bem óbvio, era que os
versos continham um nome. Torriani estava seguro e eu — quanto
mais os lia — também. Ambos acreditávamos que o Augure
entregava essa pista com a esperança de que a Secretaria de
Chaves a decifrasse e pudesse se comunicar com ele, portanto,
devia existir um processo de leitura que não oferecesse dúvida. Por
certo, se nosso anônimo confidente era tão cauteloso como parecia,
só os olhos de um bom espectador o identificaria.
Outra coisa que me chamou a atenção naquele aranzel foi o
número sete. Os números costumam ser importantes neste tipo de
adivinhação. O poema era formado por sete linhas. Sua estranha
métrica, irregular, devia querer indicar alguma coisa. Algo assim
como o anzol de Leonardo. E se esse “algo” era a identidade que
eu buscava, o texto advertia que só a conseguiria contando os
olhos de alguém a quem não podia olhar o rosto. O paradoxo, no
entanto, desarmou-me. Como poderia contar os olhos de alguém
sem olhar a face?
O texto resistia a mim. O que indicaria a misteriosa alusão
aos olhos? Algo parecido com os sete olhos de Javé descritos pelo
profeta Zacarias (4, 10), ou os sete cornos e sete olhos do cordeiro
degolado do Apocalipse (5, 6)? Sendo assim, que tipo de nome
poderia ser encontrado por trás de um número? A frase central era
eloqüente: “A cifra de meu nome achará em suas costas.” A cifra?
Que cifra? Um sete, por acaso? Poderia se referir a um numeral, a
um sétimo? Como o anti-papa Clemente VII de Avignon, por
exemplo? Não demorei a descartar aquela possibilidade. Era
improvável que nosso escriba anônimo merecesse algum número
depois do nome. Mas, então, o quê? E mais ainda: como devia
interpretar o estranho erro que descobri no quarto verso? Por que
em lugar de invenies o codificador da mensagem escreveu
ninvenies?
As extravagâncias se acumulavam umas sobre as outras.
Meu primeiro dia de trabalho em Santa Maria me deu uma
certeza; as duas últimas frases da “assinatura” eram, com absoluta
segurança, burocracias própria de um dominicano. O instinto de
Torriani não falhou. “Contemplari et contemplata aliis tradere” era
uma famosa sentença de São Tomás recolhida na Suma teológica e
aceita como um dos lemas mais conhecidos de nossa ordem.
Queria dizer “contemplar e dar aos outros o resultado de sua
contemplação”. A outra, “Ventas”, “Verdade”, além de ser outro
lema dominicano bem comum, costumava ser usado em nosso
brasão. É certo que não virá ambas as frases juntas, mas lidas em
seqüência pareciam dizer que para chegar à verdade devia-se estar
em atitude vigilante. No mínimo era um bom conselho. O padre
Alberti o aplaudiria.
Mas e as duas frases anteriores? Que tipo de nome ou
mensagem continham?
9
- Já ouviu falar do novo hóspede do convento de Santa Maria?
Leonardo costumava dedicar as últimas horas de luz na
contemplação da Última Ceia. O Sol do ocaso transformava as
figuras sentadas à mesa, primeiramente, em sombras
avermelhadas e, depois, em perfis escuros, sinistros. Ia com
freqüência ao convento de Santa Maria só para contemplar sua
obra favorita e se distrair do resto de suas ocupações diárias. O
duque o importunava para que terminasse a colossal estátua
equestre em honra de Francesco Sforza, um cavalo monumental
que o obcecava durante o dia; no entanto, até o Mouro era
consciente de que a verdadeira paixão de Leonardo estava no
refeitório de Santa Maria. Aquele mural de cinco metros, por nove,
era a maior obra que já empreendera. Só Deus sabia quando ele a
terminaria, mas esse detalhe pouco importava ao gênio. Tão
abstraído estava diante de sua mágica criação que Marco
d'Oggioni, o mais curioso dos discípulos do toscano, teve de repetir
a pergunta:
- Não ouviu mesmo falar dele?
O mestre, abstraído, negou com a cabeça. Marco o encontrou
sentado numa caixa de madeira no centro do refeitório, com sua
cabeleira branca como neve solta, tal como se habituara ao
concluir o dia de trabalho.
- Não... É alguém interessante, caro?
- É inquisidor, mestre.
- Profissão terrível então.
- O caso, Mestre , é que também ele parece interessado em
seus segredos.
Leonardo desviou a vista do Cenacolo e buscou o olhar azul
de seu discípulo. Tinha a fisionomia grave, como se a proximidade
de um membro do Santo Ofício despertasse algum temor encoberto
em sua alma.
- Meus segredos? Você pergunta de novo por eles, Marco?
Estão todos aqui. Já disse ontem. À vista. Há anos aprendi que se
você deseja ocultar algo da estupidez humana o melhor lugar é
esse em que todo o mundo pode vê-lo. Você entende, não é
verdade?
Marco assentiu sem muita convicção. O bom humor que o
mestre exibira no dia anterior se desfizera por completo.
- Pensei muito no que me disse ontem, mestre. E creio ter
compreendido algo mais sobre este lugar.
- Verdade?
- Apesar de trabalhar em solo sagrado e sob a supervisão de
homens de Deus, na sua Ceia não quis pintar a primeira missa de
Cristo, não é certo?
As sobrancelhas ruivas e estufadas do mestre levitaram de
assombro. Marco d'Oggiono prosseguiu:
- Não finja surpresa. Jesus não segura a hóstia na mão, não
renova o sacramento da eucaristia, e seus discípulos não comem
nem bebem. Se quer recebem a bênção.
- Grande - exclamou. - Continue. Está no bom caminho.
- O que não entendo, mestre, é por que pintou esse nó
corredio no extremo da mesa. O vinho e o pão estão nas Escrituras:
o peixe, apesar de não ser citado por qualquer dos evangelistas,
posso entender como um símbolo do próprio Cristo. Mas, quem
falou de um nó corredio no mantel do banquete pascal?
Leonardo estendeu a mão em direção de Oggiono, chamando-
o para junto de si.
- Vejo que você tentou entrar no mural. Vai bem.
- E, no entanto, continuo longe do seu segredo, não é?
- Não se preocupe em chegar ao objetivo, Marco. Contente-se
apenas em percorrer o caminho.
Marco abriu os olhos, atônito.
- Escutou-me, mestre? Não o preocupa que um inquisidor
chegou ao convento e ande perguntando pela sua Ceia*?
*[ Termo coloquial com que se conhece em Milão a Última
Ceia.]
- Não.
- Não? É só isso?
- E que deseja que eu diga? Tenho coisas mais importantes
com que me preocupar. Como concluir esta Ceia e... seu segredo. –
Leonardo puxou a barba com um gesto divertido antes de
prosseguir: - Sabe, Marco? Quando por fim descobrir o segredo
que estou pintando e for capaz de lê-lo pela primeira vez, não
poderá deixar de vê-lo jamais. E se perguntará como pôde estar tão
cego. Esses, e não outros, são os segredos mais bem guardados. Os
que estão diante de nossos narizes e não somos capazes de ver.
- E como aprenderei a ler sua obra, mestre?
- Seguindo o exemplo dos grandes homens deste tempo.
Como Toscanelli, o geógrafo, que já acabou de desenhar seu
próprio segredo diante dos olhos de toda Florença.
O discípulo nunca ouvira falar desse velho conhecido de
Leonardo. Em Florença o chamavam de o Físico e embora
ganhasse há muito a vida com seus mapas, fora antes médico e
leitor apaixonado dos escritos de Marco Polo.
- Mas você não saberá nada disso. - Leonardo sacudiu a
cabeça. - Para que deixe de me acusar de não ensinar como ler um
segredo, falarei hoje do que Toscanelli deixou na catedral de
Florença.
- Verdade? - Marco aguçou o ouvido.
- Quando regressar àquela cidade, não deixe de ver a enorme
cúpula que Filippo Brunelleschi construiu para o Duomo. Passe
tranqüilo sob ela e se concentre na pequena abertura feita num
dos lados. Nos dias de são João Batista e são João Evangelista, em
junho e em dezembro, o Sol do meio-dia atravessa esse orifício a
oitenta metros de altura e ilumina uma linha de mármore que meu
amigo Toscanelli dispôs cuidadosamente no solo.
- Para quê, mestre?
- Não compreendeu? É um calendário. Os solstícios ali
marcados assinalam o início do inverno e do verão. Júlio César foi o
primeiro a se dar conta e o primeiro a fixar a duração do ano em
trezentos e sessenta e cinco dias e um quarto. Ele inventou o ano
bissexto.* E tudo graças à observação do avanço do Sol sobre uma
linha como aquela. Toscanelli, pois, dedicou-lhe esse engenho.
Sabe como? - Marco encolheu os ombros. - Colocando no início da
meridiana de mármore, por esta ordem atípica, os signos de
Capricórnio, Escorpião e Áries .
*[Em 1582, no tempo do papa Gregório XIII, o calendário juliano
sofreu um severo ajuste que abriu caminho para o atual calendário
gregoriano.]*
- E o que têm a ver os signos do zodíaco com a homenagem à
César, mestre?
Leonardo sorriu.
- O segredo está aí. Se você tomar as duas primeiras letras do
nome de cada um desses signos, respeitando sua ordem, assim: ca-
es-ar, terá o sobrenome oculto que buscávamos. Ca-es-ar... Claro
como a água! É perfeito!
- É mesmo.
- É algo assim que esconde seu Cenacolo, mestre?
- Algo assim. Mas duvido que esse inquisidor, que você tanto
teme, chegue a descobri-lo.
- Mas...
- E, por certo - atalhou-o -, o nó é um dos muitos símbolos que
acompanham Maria Madalena. Um dia destes explico a você.
***
Devo ter dormido sobre a carteira.
Quando frei Alessandro me sacudiu aí pelas três da
madrugada, logo depois do ofício das matinas, um doloroso
entorpecimento se apoderara de meu corpo.
— Padre, padre! — bufou o bibliotecário. — O senhor está
bem?
Devo ter respondido alguma coisa, porque entre as
sacudidelas o bibliotecário fez uma observação que me despertou
de vez:
— O senhor falava em sonho! — riu, como se ainda zombasse
da minha incapacidade de resolver adivinhações. — Frei Matteo, o
sobrinho do prior, ouviu-o balbuciar não sei que frases estranhas
em latim e veio me avisar na igreja. Acreditava que o senhor estava
possuído!
Alessandro me olhava com uma expressão entre divertida e
preocupada, contraindo aquele nariz de gancho com que parecia
me ameaçar.
— Não é nada — desculpei-me, bocejando.
— Padre, viajou durante muito tempo. Mal provou comida
desde que chegou, e de pouco adianta minha preocupação. Está
seguro de que não posso ajudá-lo em seu trabalho?
— Não é necessário, acredite-me — a falta de jeito do
bibliotecário com o hieróglifo do anzol não augurava grande ajuda.
— E que diabos era isso de Oculos ejus dinumera? O senhor
repetia uma e outra vez.
— Dizia isso?
Empalideci.
— Sim. E não sei o que mais sobre um lugar chamado
Betânia. Sonham muito com passagens da Bíblia, com Lázaro o
ressuscitado e coisas assim? Porque Lázaro era de Betânia, não?
Sorri. A ingenuidade de frei Alessandro parecia ilimitada.
— Duvido que compreenda irmão.
— Tente — disse, oscilando graciosamente ao ritmo de suas
palavras. O frade estava a um palmo de mim, observando-me com
interesse crescente, com aquele enorme pomo-de-adão subindo e
descendo na garganta. — Afinal de contas, sou o intelectual deste
convento...
Prometi satisfazer sua curiosidade em troca de algo para
comer. Acabara de me dar conta que sequer ceara na minha
primeira noite em Santa Maria. Meu estômago rugia debaixo do
hábito. Solícito, o bibliotecário me conduziu até a cozinha e
conseguiu algum resto da ceia anterior.
— É panzaneila, padre — explicou, estendendo-me uma tigela
ainda tépida que aliviou minhas mãos geladas.
— Panzaneila?
— Coma. Sopa de pepino, tomate, cebola e pão. Assentará
bem...
Aquela mistura espessa e aromática deslizou como seda em
minhas entranhas. Com a noite fechada do lado de fora, sob a
iluminação de uma vela, também devorei o que sobrara de um
excelente pastel de massa seca bem sovada, que chamavam de
torroni e um par de figos secos. Depois, com a barriga satisfeita,
meus reflexos começaram a funcionar de novo.
— Não come, frei Alessandro?
— Oh, não — sorriu o esgrouviado. — O jejum não me
permite. Estou assim desde antes que o senhor chegou a esta casa.
— Compreendo.
A verdade é que não lhe dei mais importância.
“Então dormi recordando os primeiros versos da ‘assinatura’
do Augure”, recriminei-me. Não era de estranhar. Enquanto
agradecia a frei Alessandro suas atenções e elogiava a merecida
fama de sua cozinha, recordei que em Betânia já tiveram a
oportunidade de comprovar que aqueles versos não tinham
procedência evangélica. Na realidade, tampouco correspondiam a
algum texto de Platão nem de qualquer outro clássico conhecido,
muito menos estavam nas epístolas dos padres da igreja ou de leis
do direito canônico. Aquelas sete linhas desobedeciam aos mais
elementares códigos cifrados usados por cardeais, bispos e abades
que codificavam já quase todas suas comunicações com os Estados
pontifícios por temor de ser espionados. As frases raramente eram
legíveis: convertiam-se do latim oficial a uma gíria de consoantes e
números graças a uns moldes de substituição muito elaborados,
cunhados em bronze pelo meu admirado Leon Battista Alberti. Em
geral, aqueles moldes eram formados por uma série de rodas
superpostas em cujas bordas eram colocadas as letras do alfabeto.
Com perícia e instruções mínimas, as letras da roda exterior eram
substituídas pelas da roda inferior, cifrando assim qualquer
mensagem.
Tanta precaução tinha sua lógica: para a cúria, o pesadelo de
se ver descoberta por nobres a quem odiavam, ou por cortesãos
contra quem intrigavam, multiplicara por cem o trabalho da
Betânia em pouco tempo e nos convertera em ferramenta
imprescindível para o governo da Igreja. Mas, como explicar tudo
aquilo ao bom Alessandro? Como confessar que a chave que me
atormentava se desviava dos métodos cifrados que eu conhecia e
por isso me obcecava?
Não. Óculos ejus dinumera não era dessa classe de
mensagens que pudesse ser explicada a um leigo em códigos
secretos.
- Posso perguntar em que está pensando, padre Leyre?
Começo a crer que não me dá atenção.
Frei Alessandro puxou-me pelo hábito para reconduzir-me
pelos escuros corredores do convento até a zona dos dormitórios.
- Agora que já comeu - disse em tom patriarcal, sem perder
aquele trejeito zombador com que me obsequiava desde nosso
encontro -, será melhor que descanse até o ofício das laudes. Antes
do amanhecer virei despertá-lo e me explicará o que tem entre as
mãos. De acordo?
Aceitei de má vontade.
Àquela hora a cela estava gelada, e só a idéia de despir o
hábito e me meter num catre úmido e duro me aterrava mais do
que a vigília. Pedi ao bibliotecário que acendesse a vela sobre a
mesinha e combinamos nos vermos e passar a alva no claustro do
hospital para esclarecer certas coisas. Não que me seduzisse a
idéia de compartilhar detalhes de meu trabalho com alguém. De
fato, sequer apresentei meus respeitos ao prior de Santa Maria,
mas algo me dizia que frei Alessandro, apesar de sua imperícia
com as adivinhações, seria de utilidade naquela embrulhada.
Vestido, deitei-me na cama e me cobri com a única manta de
que dispunha. Ali, contemplando o teto de tábuas caiadas, tornei a
rever o problema dos versos codificados. Tinha a sensação de que
perdera algum detalhe. Algum absurdo, porém fundamental. E
assim, com os olhos como pratos da balança, repassei tudo o que
sabia sobre a origem das frases. Se não errava na minha
apreciação e a madrugada não enganava minha inteligência, era
bem claro que o nome de nosso informante anônimo - ou pelo
menos sua cifra - se escondia nos primeiros dois versos.
Era um jogo curioso. Como ocorre com certas palavras
hebraicas, algumas têm, além de seu significado, um determinativo
que complementa seu sentido. Os dois lemas dominicanos
indicavam, pois, que nosso homem era um pregador. Disso estava
quase seguro. Mas e as frases precedentes?
Conte-lhe os olhos
mas não olhe para a cara.
A cifra de meu nome
achará em suas costas.
Olhos, cara, cifra, nome, costas...
Na penumbra, com a mente exaurida, comecei a entender.
Talvez se tratasse de outro beco sem saída, mas de repente o da
cifra do nome não me pareceu tão absurdo. Os judeus chamavam
de gematria a disciplina que atribui a cada letra de seu alfabeto um
valor numérico. João, em seu Apocalipse, empregou-a com
maestria ao escrever que "o que tiver inteligência que calcule o
número da Besta. Pois é o número de um homem, e esse número é
666". Aquele 666 correspondia, com efeito, ao mais cruel dos
varões de seu tempo: Nero César, cujas letras somadas davam a
terrível cifra tripla. E se o Augure fosse um judeu convertido? E se,
temendo alguma represália, ocultasse a identidade precisamente
por esse detalhe de sua vida? Quantos monges de Santa Maria
sabiam que são João era iniciado na gematria e apontou Nero em
seu livro sem pôr em jogo sua vida?
O Augure fez a mesma coisa?
Antes de dormir, febril, transferi aquela idéia para o
abecedário latino. Considerando que o A (o alef hebraico) equivale
a 1, o B (bet) a 2, e assim sucessivamente, não era difícil
transformar em cifras qualquer palavra. Agora só bastava somar
entre si os números obtidos para que o produto resultante
indicasse o valor numérico definitivo do termo eleito. A cifra. Os
judeus, por exemplo, calcularam que o nome completo e secreto de
Javé somava 72 e os cabalistas, os magos dos números hebraicos,
complicaram mais ainda as coisas ao buscar os 72 nomes de Deus.
Em Betânia zombávamos amiúde disso.
No nosso caso, por desgraça, o assunto era mais obscuro,
porque desconhecíamos até o valor numérico do nome do autor...
se é que tinha algum. A menos que, seguindo ao pé da letra as
instruções de seus versos, pudéssemos encontrar nas costas de
alguém olhos que não pudéssemos ver na cara.
E com esse enigma digno de uma esfinge, me deixei embalar
pelo sono.
10
Pouco antes do ofício das laudes frei Alessandro se
apresentou em minha cela, risonho e feliz como um noviço. Devia
pensar que não era todos os dias que um doutor chegado de Roma
partilhasse com ele um enigma importante, e estava decidido a
saborear seu dia de glória. Deu-me, no entanto, a impressão de que
desejava fazê-lo pouco a pouco, como se temesse que a "revelação"
se acabasse de repente e o deixasse insatisfeito. Por isso, não sei
se por cortesia ou para dilatar o prazer de me ter em suas mãos, o
fradeco considerou que a madrugada seria um bom momento para
a confissão; isso sim, depois de me apresentar ao restante de sua
comunidade.
O relógio da cúpula de Bramante deu as cinco enquanto o
bibliotecário me conduzia, entre as trevas e de rastros, até a igreja.
O templo -localizado do lado oposto às celas, perto da biblioteca e
do refeitório -constava de uma nave retangular de dimensões
modestas, dispunha de uma abóbada cilíndrica sustentada por
colunas de granito provenientes de algum mausoléu romano e era
coberto do solo ao teto por afrescos com motivos geométricos,
circunferências e sóis. O conjunto resultava algo carregado para
meu gosto.
Chegamos tarde. Apinhados no altar-mor, os irmãos de Santa
Maria rezavam já o te deum sob a tênue luz de dois enormes
candelabros. Fazia frio e o vapor exalado pelos frades esfumava
seus rostos como uma espessa e misteriosa névoa. Alessandro e eu
nos encostamos numa das pilastras do templo e os observamos de
uma distância conveniente.
- Aquele que está no canto - murmurou o bibliotecário,
apontando para um frade enfermiço, de olhos amendoados e cabelo
branco crespo - é o prior Vicenzo Bandello. Ali onde está é douto
entre os doutos. Há anos combate os franciscanos e sua idéia da
imaculada concepção da Virgem... Muitos dizem que continua em
desvantagem.
- Estudou teologia?
- Sem dúvida - assentiu com firmeza. - À direita dele, o rapaz
moreno de pescoço comprido é seu sobrinho Matteo.
- Já o vi.
- Todos acreditam que algum dia será um escritor de renome.
Mais adiante, junto à porta da sacristia, estão os irmãos Andrea,
Giuseppe, Lucca e Jacopo. Não são apenas irmãos no sentido
metafórico; também são filhos da mesma mãe.
Olhei aqueles rostos um a um, tentando memorizar seus
nomes.
- Você disse que apenas uns poucos lêem e escrevem com
fluência, verdade? - indaguei.
Frei Alessandro não pôde avaliar a intenção oculta em minha
pergunta. Se respondesse com precisão me permitiria descartar de
um só golpe bom número de suspeitos. O perfil do Augure
correspondia a um homem culto, instruído em muitas disciplinas e
bem situado na corte do duque. Nessa altura acreditava que as
probabilidades de fracassar em meus esforços para decifrar a
chave eram elevadas - ainda me doía a proverbial lentidão com que
examinei a adivinhação de Leonardo - e se tudo fosse mal só me
restaria o remédio de encontrar o autor pela via da dedução. Ou da
sorte.
O bibliotecário passeou o olhar sobre os congregados,
tentando recordar suas habilidades com o alfabeto:
- Vejamos... - conjeturou. - Frei Guglielmo, o cozinheiro, lê e
declama poesia. Benedetto, o caolho, trabalhou como copista
durante muitos anos. O bom monge perdeu o olho tentando
escapar de um assalto em seu convento anterior, em Castelnuovo,
enquanto protegia a cópia de um livro de horas. Desde então está
sempre mal-humorado. Protesta por tudo, e nada do que façamos
por ele parece satisfazê-lo.
- E o pequeno?
- Matteo, já disse, escreve como os anjos. Tem apenas doze
anos, mas é um jovem esperto e inquieto... Deixe-me ver... - o
bibliotecário hesitou de novo. - Adriano, Esteban, Nicola e Jorge
aprenderam a ler comigo. E Andrea e Giuseppe também.
Em poucos segundos, a relação dos candidatos saiu fora do
leito. Devia tentar outra estratégia.
- Diga-me, quem é o frade esbelto, alto e forte, da esquerda? -
perguntei, curioso.
- Ah! Esse é Mauro Sforza, o coveiro. Sempre se esconde
atrás de algum irmão, como se temesse ser reconhecido.
- Sforza?
- Bem... É um primo afastado do Mouro. Faz tempo que o
duque nos pediu o favor de admiti-lo no convento e o tratássemos
como outro qualquer. Nunca fala. Tem sempre este aspecto
assustado, e dizem as más línguas que é por tudo o que se passou
com seu tio materno Gian Galeazzo.
- Gian Galeazzo? - pulei. - Quer dizer Gian Galeazzo Sforza?
- Sim, sim. O legítimo duque de Milão, morto há três anos. O
mesmo que convenceu o Mouro a ficar com o trono. O pobre frei
Mauro era quem cuidava de Gian Galeazzo antes que o mandassem
para cá, e seguramente foi ele quem lhe administrou a beberagem
de leite quente, vinho, cerveja e arsênico que lhe derreteu o
estômago e o matou em três dias de agonia.
- Ele o matou?
- Digamos que o usaram para cometer o crime. Mas isso –
soprou entre os dentes, satisfeito por me surpreender - é segredo
de confissão; já me entende...
Observei Mauro Sforza dissimuladamente, compadecendo-me
de seu triste destino. Abandonar à força a vida palaciana e trocá-la
por outra em que só dispunha de um hábito de lã áspera, uma
muda e dois pares de sandálias deve ter sido duro de engolir pelo
rapaz.
- E escreve?
Alessandro não respondeu. Empurrou-me até o ajuntamento
não só para nos integrarmos às rezas, mas também para nos
beneficiarmos do calor do grupo. O abade inclinou a cabeça à
maneira de saudação tão logo nos viu e continuou com suas
orações. Elas se prolongaram até que o primeiro raio solar
atravessou a rosácea de azulejo e o vitral que se abria sobre a
porta principal. Não posso dizer que minha chegada causou
sensação na comunidade porque, além do prior, de perfil aquilino e
aspecto cauteloso, duvido que algum outro frade reparou em mim.
Mas, notei que o padre Bandelio se perturbou com o meu
olhar atento, tanto, que incomodado, desviou seus passos para
outro lado.
E mais: enquanto o prior dava sua bênção, do altar, aos
presentes frei Alessandro me obrigou a nos separarmos do grupo e
a segui-lo até o claustro do hospital.
Àquela hora, os poucos doentes que pernoitaram nele ainda
dormiam, imprimindo ao pátio de azulejo vermelho um aspecto
sombrio.
— Disse ontem que conhece bem mestre Leonardo... —
comentei. Estava seguro de que a trégua que me fora concedida de
começar a disparar perguntas estava a ponto de acabar.
— E quem não o conhece aqui! Esse homem é um prodígio.
Um prodígio estranho, uma criatura de Deus única.
— Estranho?
— Bem, digamos que é anárquico em seus costumes. Nunca
se sabe se vem ou vai, se tem intenção de pintar no refeitório, ou
só deseja refletir diante de sua obra e localizar novas falhas no
reboco ou erros na expressão de seus personagens. Passa o dia
com seus taccuinl; * anotando tudo.
*[Pequenos cadernos de notas.]*
— Meticuloso.
— Não, não. É desordenado e imprevisível, mas tem uma
curiosidade insaciável. Enquanto trabalha no refeitório, imagina
todo tipo de loucuras para melhorar a vida do convento: pás
automáticas para arrotear a horta, condutos de água até as celas,
pombais que se limpam sozinhos...
— Está pintando uma Última Ceia, não é? — interrompi-o.
O bibliotecário avançou até o magnífico parapeito de granito
que adornava o centro do claustro do hospital e me olhou como se
eu fosse um animal raro.
— Ainda não a viu, não é certo? — sorriu como se já soubesse
a resposta, quase como se se apiedasse de minha condição. — O
que o mestre Leonardo está terminando no refeitório não é uma
Última Ceia, padre Agustín; é A última ceia. Entenderá quando a
tiver diante dos olhos.
— Então é um ser estranho, mas virtuoso.
— Verá — me corrigiu. — Quando mestre Leonardo chegou a
esta casa há três anos e começou os preparativos para o Cenacolo,
o prior desconfiava dele. De fato, como encarregado dos arquivos
de Santa Maria e responsável pelo nosso futuro ele encarregou-me
de escrever a Florença para averiguar se o toscano era um artista
confiável, cumpridor de prazos e perfeccionista no trabalho. Ou um
destes buscadores de fortuna que deixam tudo pela metade a quem
há que brigar para conseguir que acabem a obra.
— Mas se não me engano vinha recomendado pelo duque em
pessoa.
— É certo. Mas para nosso abade isso não era garantia
suficiente.
— Está bem, continue. Que descobriu? Era organizado ou
caótico?
— As duas coisas!
Fiz um gesto de não entender:
— As duas coisas?
— Não disse que era estranho? Como pintor, é, sem dúvida, o
mais extraordinário que jamais se viu, mas ao mesmo tempo é o
mais rebelde. Praticamente não consegue terminar a tempo uma
obra; na verdade, jamais termina a tempo. E, o que é pior, lixa-se
para as instruções de seus mecenas. Sempre pinta o que lhe dá na
telha.
— Não pode ser.
— Mas é, padre. Os monges do mosteiro de São Donato de
Scopeto, perto de Florença, encomendaram-lhe há quinze anos um
quadro sobre o Nascimento de Nosso Senhor... Que ainda não está
pronto! Sabe o pior? Leonardo alterou aquela cena até o limite do
tolerável. Em lugar de pintar uma adoração dos pastores ao
menino Jesus, o mestre começou uma pintura em tábua a qual
chamou A adoração dos magos* e a encheu de personagens
retorcidos, de cavalos e homens fazendo estranhos gestos para o
céu, que não aparecem descritos nos Evangelhos.
(*) [Hoje nos Uffizi de Florença. (N. do editor espanhol.)]
Senti um calafrio.
— Tem certeza?
— Nunca minto. Mas saberá que isso ainda não é nada.
- Nada?
Se o que frei Alessandro insinuava era certo, o Augure ainda
se mostrava tímido em seus temores: aquele diabólico Da Vinci
chegara a Milão deixando atrás graves antecedentes de
manipulação de obras de arte. Algumas das frases lapidares que
lera nas cartas anônimas começavam a ressoar em minha mente
como trovões que anunciam tormenta. Deixei-o continuar:
- Aquela não era uma adoração qualquer. Não tinha sequer
uma estrela de Belém! Não lhe parece extraordinário? E a você o
que isto diz?
- A mim? - As maçãs do rosto marmóreas de frei Alessandro
adquiriram uma morna cor de pêssego. Ruborizava-se porque um
homem ilustrado vindo de Roma lhe perguntasse abertamente por
sua sincera opinião sobre algo. - A verdade? Não sei o que pensar.
Leonardo, já disse, é uma criatura fora do comum. Não me
estranha que a Inquisição se fixou nele...
- A Inquisição?
Outra pontada me atravessou o estômago. No pouco tempo
que nos conhecíamos, frei Alessandro desenvolveu uma habilidade
inata de me sobressaltar. Ou talvez eu estivesse mais suscetível?
Sua menção ao Santo Ofício me fez sentir culpado. Como não
pensei antes? Como não me ocorreu consultar o arquivo geral da
Sacra Congregazione antes de viajar a Milão?
- Deixe-me contar - disse, entusiasmado, como se ficasse
encantado de rebuscar na memória essa classe de coisas. - Depois
de deixar inacabada sua Adoração dos magos, Leonardo se mudou
para Milão e foi contratado pela Confraternidade da Imaculada
Concepção, que, como sabe, são os franciscanos que obedecem a
São Francisco, o Grande, e com quem nosso prior tem litígios
permanentes. Ali o toscano voltou a ter os mesmos problemas que
em Florença.
- De novo?
- Imediatamente. Mestre Leonardo tinha de realizar um
tríptico para a capela da Confraternidade com os irmãos Ambrósio
e Evangelista de Predis. Entre os três, cobraram duzentos escudos
adiantados por conta do trabalho, e cada um se encarregou de uma
parte do retábulo. O toscano ficou com a parte central. Sua
incumbência era pintar uma Virgem rodeada de profetas, enquanto
as partes laterais mostrariam um coro de anjos músicos.
- Não continue: jamais concluiu seu trabalho...
- Mas, não. Desta vez Mestre Leonardo terminou sua parte,
mas não cumpriu o que fora pedido. Na sua madeira não havia
profeta algum. Em compensação, apresentou um retrato de Nossa
Senhora dentro de uma gruta, junto com o menino Jesus e São
João.* O muito ousado garantiu aos frades que sua tábua
representava o encontro que as duas crianças tiveram enquanto
Jesus e a família fugiam para o Egito. Mas, isso também não está
em nenhum Evangelho!
*[A Virgem dos rochedos, hoje no Louvre. (N. do editor
espanhol.)]
- E, claro, denunciaram-no ao Santo Ofício.
- Sim. Mas, não pelo motivo que o senhor imagina. O Mouro
interferiu para trancar o processo e o livrou de um julgamento
certeiro.
Hesitei se devia continuar fazendo perguntas. Ele é quem
desejava que o pusesse ao corrente de minhas adivinhações. Mas,
não podia negar que suas informações me intrigaram.
- Então, qual foi a denúncia que levou à Inquisição?
- Leonardo se inspirou no Apocalipsis Nova para pintar o
quadro.
- Nunca ouvi falar de semelhante livro.
- Trata-se de um texto herético escrito por um velho amigo
seu, um franciscano menorita chamado João Mendes da Silva,
também conhecido como Amadeu de Portugal, que morreu em
Milão no mesmo ano em que Leonardo terminou seu quadro. O tal
de Amadeu publicou um livro insinuando que a Virgem e São João
eram os verdadeiros protagonistas do Novo Testamento, e não
Cristo.
Apocalipsis Nova. Memorizei aquele dado para acrescentar ao
eventual sumário que poderia abrir contra Leonardo por heresia.
- E como os frades se deram conta dessa relação entre o
Apocalipsis Nova e a pintura de Leonardo?
O bibliotecário sorriu.
- Era evidente. O quadro representava a Virgem com o
menino Jesus e o anjo Uriel ao lado de João Batista. Em condições
normais, Jesus deveria aparecer abençoando seu primo João, mas
no quadro acontecia exatamente o contrário! Além disso, a Virgem,
em vez de abraçar seu primogênito, estendia os braços protetores
sobre o Batista. Já entendeu? Leonardo retratara São João não só
legitimado por Nossa Senhora, mas, distribuindo sua bênção ao
próprio Cristo, demonstrando assim sua superioridade sobre o
Messias.
Felicitei entusiasmado frei Alessandro.
- Você é um observador sagaz - disse. - Iluminou a mente
deste servidor de Deus. Estou em dívida consigo, irmão.
- Se me perguntar, responderei. É uma promessa que sempre
cumpro.
- À semelhança do jejum?
- Sim. Como o jejum.
- Admiro-o, irmão. De verdade.
O bibliotecário inchou como um pavão e enquanto a claridade
ia empurrando as sombras do claustro, revelando os relevos e
ornamentos que ocultava, atreveu-se por fim a romper a, suponho,
provocadora espera que se impusera:
- Então deixará que o ajude em suas adivinhações?
11
Naquele momento não soube o que responder. Além de frei
Alessandro, o outro frade com quem eu falava com certa
freqüência era o sobrinho do prior, Matteo. Ainda era uma criança,
porém mais esperto e curioso do que os de sua idade. Talvez, por
isso, o jovem Matteo não resistiu à tentação de se aproximar de
mim e perguntar como era minha vida em Roma. A grande Roma.
Não sei o que imaginaria como seriam os palácios pontifícios
e as intermináveis avenidas de igrejas e conventos, mas em troca
de minhas generosas descrições me presenteou com algumas
confidências que me fizeram desconfiar das boas intenções do
bibliotecário.
Entre risos me contou qual era a única coisa capaz de tirar do
eixo seu tio, o prior.
- E o que é? - perguntei, intrigado.
- Encontrar frei Alessandro e Leonardo, de mangas
arregaçadas, cortando alface na cozinha de frei Guglielmo.
- Leonardo vai à cozinha? - A surpresa me deixou perplexo.
- Como? Mas, não faz outra coisa! Quando meu tio deseja
encontrá-lo já sabe que esse é seu esconderijo favorito. Poderá não
molhar nenhum pincel durante dias, mas é incapaz de nos visitar e
não passar horas junto aos fogões. Sabia que Leonardo teve uma
taberna em Florença, na qual era cozinheiro?
- Não.
- Ele me contou. Chamava-se A Insígnia das Três Rãs de
Sandro e Leonardo.
- De verdade?
- Certamente! Contou-me que a montou com um amigo seu
que também era pintor, Sandro Botticelli.
- E o que aconteceu?
- Nada! A clientela não gostava de seus guisados de verdura,
suas anchovas enroladas em gomos de couve, ou uma coisa que
faziam com pepino e folhas de couve cortadas em forma da rã.
- E aqui faz a mesma coisa?
- Bem - Matteo sorriu. - Meu tio não deixa. Desde que chegou
ao convento, o de que mais gosta é examinar nossa despensa. Diz
que está buscando o cardápio para a Última Ceia. Que a comida
que deve estar sobre a mesa é tão importante como o retrato dos
apóstolos... e o desavergonhado leva semanas trazendo seus
discípulos e amigos para comer numa mesa que dispôs no
refeitório, enquanto esvazia a adega do convento.*
*[Existe exatidão histórica desta prática de Leonardo. Uma carta
de frei Vicenzo Bandello a Ludovico, o Mouro, escrita na Semana
Santa de 1496, diz: "Meu senhor, passaram-se já mais de doze
meses desde que me enviou o mestre Leonardo para realizar esta
encomenda e durante todo o tempo não fez um só traço em nossa
parede. Neste tempo, meu senhor, a adega do priorado sofreu um
grande desgaste e agora está quase completamente seca, pois o
mestre Leonardo insiste que se provem todos os vinhos até achar o
adequado para sua obra-prima e não aceitará qualquer outro.
Enquanto isto, meus frades passam fome, pois o mestre Leonardo
dispõe a seu capricho nossa cozinha dia e noite, confeccionando o
que ele afirma serem as comidas de que necessita para sua mesa;
mas nunca se dá por satisfeito; e, duas vezes por dia, manda sentar
seus discípulos e serventes para comer todas elas. Meu senhor,
rogo-lhe que apresse o mestre Leonardo a executar sua obra,
porque sua presença e a da sua quadrilha ameaçam nos deixar na
miséria."]
- E frei Alessandro o ajuda?
- Frei Alessandro? - repetiu. - Ele é dos que se sentam à mesa
para comer! Leonardo diz que aproveita então para estudar a
silhueta deles e como pintará o que comem, mas ninguém o viu
fazer outra coisa além de devorar nossas reservas!
Matteo riu, divertido.
- A verdade - acrescentou - é que meu tio escreveu várias
vezes ao duque protestando contra os abusos do toscano, mas o
duque não lhe fez caso. Se continuar assim, Leonardo terminará
por nos deixar sem a colheita.
12
As sextas-feiras 13 nunca foram do agrado dos milaneses.
Mais sensíveis às superstições francesas que outros latinos, as
jornadas que unem o quinto dia da semana ao fatídico lugar que
ocupava Judas na mesa da Última Ceia lhes recordavam efemérides
traumáticas. Sem ir mais longe, foi numa sexta-feira 13 de outubro
de 1307 que prenderam os templários na França por ordem de
Filipe IV, o Belo. Então os acusaram de negar Cristo, de cuspir no
crucifixo, trocar beijos obscenos em locais de culto e adorar um
extravagante ídolo chamado Bafomet. A desgraça da ordem dos
cavaleiros das capas brancas foi tal que desde aquele dia todas as
sextas-feiras 13 são tidas por dias de mau agouro.
O décimo terceiro dia de janeiro de 1497 não ia ser exceção.
Ao meio-dia, uma pequena multidão se acotovelava às portas do
convento de Santa Maria. A maioria fechara antes do tempo suas
lojas de seda, perfume ou lã na praça do Verzaro, atrás da
catedral, para não perder o prodígio. Pareciam impacientes. O
anúncio que os atraíra até ali era singularmente preciso: antes do
ocaso, a serva de Deus Verônica da Binasco entregaria a alma a
Deus. Ela própria fizera a previsão com a segurança de quem se
jactara antes de profetizar outras desgraças. Recebida por
príncipes e papas, tida por santa em vida por muitos, sua última
façanha fora ser expulsa do palácio do Mouro havia só dois meses.
As más línguas diziam que pediu para ser recebida por donna
Beatrice d'Este para lhe anunciar seu fatal destino. Fora de si,
donna Beatrice mandou recolhê-la ao seu convento para nunca
mais voltar a vê-la.
Marco d'Oggiono, discípulo predileto do mestre Leonardo,
conhecia-a bem. Vira o toscano falar com ela amiúde. Leonardo
gostava de discutir com a religiosa suas estranhas visões da
Virgem. Anotava não apenas o que ela dizia, mas também,
bosquejava detalhes de seu rosto angelical, de seus ademanes
doces e o porte dolente, que depois tratava de transferir para seus
quadros. Por desgraça, se soror Verônica não errava, tais
confidências terminariam aquela sexta-feira. Sem almoçar, Marco
arrastou o toscano até o leito fúnebre da religiosa, consciente de
que não lhes restava muito tempo.
- Agradeço-lhe por ter vindo. A irmã Verônica agradecerá por
vê-lo pela última vez - sussurrou o discípulo ao mestre. Leonardo,
impressionado pelo cheiro de incenso e azeites daquela pequena
cela, contemplou admirado o rosto marmóreo da beata. A pobre
mal podia abrir os olhos.
- Não acredito que possa fazer algo por ela - disse.
- Sei, mestre. Ela é quem insistiu em vê-lo.
- Ela?
Leonardo inclinou a cabeça até chegar perto dos lábios da
moribunda. Os lábios tremeram um bom tempo, como se
murmurassem uma litania apenas audível. O pároco de Santa
Maria, que espargira os santos óleos sobre soror Verônica e rezava
o santo rosário junto dela, deixou que o visitante se acercasse um
pouco mais.
- Ainda pinta gêmeos em suas obras?
O mestre estranhou. A monja o reconhecera sem sequer se
dar o trabalho de abrir os olhos.
- Pinto o que sei, irmã.
- Ah, Leonardo! - balbuciou. - Não acredite que não percebi
quem é. Sei perfeitamente. Embora a esta altura de minha vida não
valha a pena discutir consigo.
Soror Verônica falava com lentidão, num tom imperceptível
que o toscano custava a perceber.
- Vi seu retábulo da igreja de San Francesco, a sua madonna.
- Gostou?
- A Virgem, sim. Você é um artista com um grande dom. Mas
os gêmeos, não... Diga-me, já os corrigiu?
- Já, irmã. Tal como me pediram os irmãos franciscanos.
- Você tem fama de teimoso, Leonardo. Hoje me disseram que
voltou a pintar gêmeos no refeitório dos dominicanos. É verdade?
Leonardo se ergueu, perturbado.
- Viu o Cenacolo, irmã?
- Não. Mas, o seu trabalho está sendo muito comentado.
Deveria saber.
- Já disse a eles antes, soror Verônica: só pinto aquilo de que
estou seguro.
- Então por que insiste em incluir gêmeos em suas obras para
a Igreja?
- Porque existiram. André e Simão foram irmãos. É o que
dizem Santo Agostinho e outros grandes teólogos. O apóstolo Tiago
confundia-os amiúde com Jesus porque se pareciam muito. Nada
disso inventei. Está escrito.
A monja deixou de sussurrar.
- Ai, Leonardo! - gritou. - Não incorra no mesmo erro que em
San Francesco! A missão de um pintor não é confundir o fiel e sim
lhe mostrar com clareza os personagens encomendados.
- Erro? - Leonardo levantou a voz sem querer. Marco, o
pároco e as duas irmãs que cuidavam da moribunda se voltaram
para ele. – Que erro?
- Vamos, mestre! - resmungou a moribunda. - Por acaso não o
acusaram de confundir em sua obra São João com Jesus? Por acaso
não os retratou como se fossem duas gotas d'água? Não tinham o
mesmo cabelo frisado, as mesmas bochechas e quase o mesmo
gesto? Sua obra não induzia a uma perversa confusão entre João e
Cristo?
- Desta vez não acontecerá, irmã. Não no Cenacolo.
- Mas me dizem que pintou Tiago com o mesmo rosto de
Jesus!
Todos ouviram o protesto de soror Verônica. Marco, que
ainda sonhava demonstrar ao mestre que seria capaz de decifrar os
segredos de sua obra, prestou atenção.
- Não há confusão possível - respondeu Leonardo. - Jesus é o
eixo de minha nova obra. É um enorme "A" no centro do mural. Um
alfa gigante. A origem de toda minha composição.
D'Oggiono acariciou o queixo, meditativo. Como não se dera
conta antes? Repassava mentalmente A última Ceia: Jesus parecia
de fato um enorme "A" maiúsculo.
- Um "A"? - soror Verônica baixou a voz. Aquilo a
surpreendeu. – E pode-se saber o que escreveu desta vez em sua
obra, Leonardo?
- Nada que os verdadeiros fiéis não possam ler.
- A maioria dos bons cristãos não sabe ler, mestre.
- Por isso pinto para eles.
- E isso lhe dá o direito de se incluir entre os Doze?
- Encarno o mais humilde dos discípulos, irmã. Represento
Tadeu, quase no fim da mesa, como o ômega que vai no fim do alfa.
- Ômega? Você?... Vá com cuidado, Mestre. É muito
pretensioso e o orgulho poderia perder sua alma.
- É uma profecia? - perguntou, irônico.
- Não zombe desta anciã e aguarde o presságio que tenho
para lhe fazer. Deus me deu uma visão clara do que está por vir.
Deve saber, Leonardo, que não serei eu a única que hoje entregará
sua alma ao Pai Eterno - disse. - Alguns dos que chamam de
verdadeiros fiéis me acompanharão ao Tribunal do Juízo. Temo que
não merecerão a misericórdia do altíssimo.
Marco d'Oggiono, impressionado, viu soror Verônica ofegar
por causa do esforço.
- Você, em compensação, ainda tem tempo para se
arrepender e salvar sua alma.
13
Nunca agradecerei bastante irmão Alessandro pelo muito que
me ajudou nos dias que se seguiram àquele passeio. Além dele e do
jovem Matteo, que às vezes visitava a biblioteca para bisbilhotar o
trabalho do frade insociável vindo da cidade pontifícia, mal trocava
palavras com alguém. Só via o restante dos monges nas horas de
comer no improvisado refeitório que preparavam junto ao chamado
Grande Claustro, ou então, na igreja nos momentos de oração.
Mas, nos dois lugares predominava a regra do silêncio e não era
fácil estabelecer relações com qualquer deles.
Na biblioteca, pelo contrário, tudo mudava. Frei Alessandro
perdia a rigidez que mostrava entre os seus e soltava a língua tão
reprimida em outros lugares da vida monástica. O bibliotecário era
de Riccio, junto ao lago Trasimeno, mais perto de Roma do que de
Milão, o que de certo modo justificava seu isolamento do resto dos
frades e fazia com que me visse como um patrício necessitado de
proteção. Ainda que jamais o vi provar pedaço, cada dia me trazia
água, massas de trigo pretas como seixos rolados (especialidade de
frei Guglielmo que surripiava às escondidas para mim), e até me
abastecia de azeite limpo para a lâmpada cada vez que ameaçava
se extinguir. E tudo - como compreendi mais tarde -para não se
afastar de mim à espera de que o inesperado hóspede necessitasse
descarregar em alguém suas tensões e revelasse novos detalhes de
seu "segredo". Creio que a cada hora passada, Alessandro supunha
o segredo cada vez maior. Eu o criticava porque a imaginação não
era bom aliado para alguém que pretendia decifrar mistérios, mas
ele se limitava a sorrir, certo de que suas habilidades seriam de
utilidade algum dia. Do que jamais pude me queixar dele foi de sua
extraordinária humanidade. Logo frei Alessandro se tornou um
bom amigo. Estava por perto sempre que fazia falta. Consolava-me
quando eu jogava a pena no chão, desesperado diante da falta de
resultados, e me estimulava a perseverar naquela diabólica
adivinhação. Mas, Óculos ejus dinumeni resistia a tudo. Mesmo
quando aplicava valores numéricos às letras só apresentava
confusão. No terceiro dia de decepções e desvelo, frei Alessandro
já vira os versos, sabia-os de cor e brincava com eles impaciente,
buscando com o semblante franzido a maneira de romper o código.
Cada vez que encontrava alguma luz naquele aranzel seu rosto se
iluminava de satisfação. Era como se, de repente, suas feições
aguçadas conseguissem se suavizar, trocando aquele rosto duro
por outro de criança entusiasmada. Numa daquelas comemorações
soube, por exemplo, que os enigmas de cifras e letras eram seus
favoritos. Desde que leu Raimundo Lulio, o criador da Arsmagna
dos códigos secretos, vivia para eles. Arqueie gufo (mocho, como
eram chamados os frades que tresnoitavarn ou os que não
pareciam se importar em se levantar nas matinas) era uma fonte
inesgotável de surpresas. Parecia conhecer tudo - cada obra
importante da arte da criptografia, cada tratado cabalístico, cada
ensaio bíblico. E, no entanto, tamanha preparação teórica não
parecia nos servir muito.
- Então - murmurou Alessandro numa daquelas tardes em que
sua comunidade fervia de atividade preparando os funerais de
donna Beatrice - pensa de verdade que devemos contar os olhos de
alguma imagem do convento para resolver seu problema?... Seria
tão simples assim?
Toquei suas mãos com afeto enquanto encolhia os ombros. O
que podia responder? O bibliotecário me observava com seus olhos
de coruja, enquanto roçava o queixo curto. Mas como eu, ele
também desconfiava dessa opção. Tínhamos nossos motivos. Se a
cifra do nome devia ser buscada no número de olhos de uma
imagem - fosse a Virgem, São Domingos ou Santa Ana -, o
resultado nos levaria a um beco sem saída. No fim das contas, não
era possível achar um nome próprio de apenas uma ou duas letras,
que seria o resultado evidente que nos daria o número de olhos de
qualquer das estátuas de Santa Maria. Além disso, nenhum dos
frades da comunidade respondia por nome ou apelido tão conciso.
Nenhum Io, Eo, Au ou nada parecido se alojava ali. Sequer um
nome como Job, de apenas três letras, serviria. Em Santa Maria
não havia nenhum, e tampouco nenhum Noé, Lot, e ainda que
houvesse, em que rosto encontraríamos três olhos para atribuir a
autoria das cartas?
De repente me dei conta de algo. E se a adivinhação não se
referisse aos olhos de um ser humano? E se se tratasse de um
dragão, uma hidra de sete cabeças e quatorze olhos, ou alguma
outra espécie de monstro pintado nas "costas" de alguma sala?
- Mas, não há monstros assim em qualquer lugar de Santa
Maria - protestou frei Alessandro.
- Nesse caso, talvez estejamos errados. Talvez a figura de
quem devemos contar os olhos não esteja neste convento, mas em
outro prédio. Numa torre, um palácio, outra igreja próxima...
- É isso, padre Agustín! Achamos! - Os olhos do bibliotecário
relampejaram de emoção. - Não percebe? O texto não está falando
de uma pessoa ou de um animal, mas de um prédio!
- Um prédio?
- Claro! Meu Deus, que estupidez! Está claro como a água! Os
óculos, além de olhos, são também janelas. Janelas redondas. E a
igreja de Santa Maria está cheia delas!
O bibliotecário rabiscou algo num pedaço de papel. Era uma
versão alternativa, rápida, que me estendeu nervoso com a
esperança de que eu a aprovasse. Se estivesse com a razão, todo o
tempo tínhamos a solução diante de nossos narizes. Segundo o
gufo, nosso "conte-lhe os olhos / mas não olhe para a cara" também
podia ser entendido como "conte-lhe as janelas, mas não olhe sua
fachada".
Devíamos reconhecer: embora forçado, o texto tinha um
sentido esmagador.
A parte exterior da igreja de Santa Maria estava, com efeito,
cheia de óculos, de janelas redondas desenhadas por um certo
Guiniforte Solari de acordo com o mais puro gosto lombardo
estimulado pelo Mouro. Havia janelas por todas as partes, até
mesmo encaixadas no contorno da novíssima cúpula bramantina
sob a que eu rezava há uma semana. Podia ser tão simples? Frei
Alessandro não tinha dúvida:
- Vê? É a fachada lateral, padre Agustín! - voltou a insistir. - A
segunda frase confirma: In latere nominis mei notam rinvenies.
Deve-se buscar a cifra de seu nome nas costas! Contar as janelas
de um único lado, sem considerar as da fachada! Aí está sua cifra!
Foi o melhor momento de minha estadia em Milão.
14
Ninguém percebeu. Nenhum dos vendedores, cambistas ou
frades que vagueavam naquele ocaso pelos arredores de San
Francesco, il Grande, prestou atenção no indivíduo malvestido que
entrou às pressas na igreja dos franciscanos. Era véspera de
feriado, dia de mercado, e os milaneses tinham de se abastecer de
carne e mercadorias para os dias de luto oficial que se avizinha-
vam. Além disso, a notícia da morte de soror Verônica da Binasco
correu como rastilho de pólvora pela cidade, ocupando boa parte
das conversações e desencadeando um apaixonado debate sobre
seus verdadeiros poderes como visionária. Em semelhantes
circunstâncias, era lógico que um vagabundo não lhes despertasse
a atenção. Mas, aqueles néscios se equivocaram mais uma vez. O
mendigo que entrou em San Francesco não era um qualquer. Tinha
os joelhos arroxeados por horas de penitência e a cabeça
tonsurada com esmero como prova de devoção. Tratava-se com
efeito de um homem temente a Deus, um varão de coração puro
que atravessou, tremendo, o umbral da porta grande da igreja dos
franciscanos, certo de que alguns desses vizinhos supersticiosos,
talvez impressionados pelos presságios de soror Verônica, iam
delatá-lo cedo ou tarde. Não lhe era difícil imaginar o que estava a
ponto de se desencadear: alguém, sem muito tardar, correria a
informar o sacristão da presença de outro mendigo no templo. O
sacristão informaria o diácono que, também sem demora, avisaria
o verdugo. Há semanas as coisas ocorriam assim, e ninguém
parecia se importar. Os falsos mendigos que entraram no templo
antes dele desapareceram sem deixar rastro. Por isso, estava certo
de que não sairia vivo dali. E no entanto, era um preço que ia
pagar a gosto... Sem respirar muito, o homem da roupa surrada
deixou para trás a dupla fila de bancos que ladeavam a nave
principal e acelerou o passo até o altar-mor. Não se via uma só
alma na igreja. Melhor. De fato, já quase podia sentir a presença
do Santo. Jamais se sentira tão perto de Deus. Ele estava perto. A
essa hora a luz filtrada pelos vitrais era a ideal para apreciar todos
os detalhes do "milagre". O peregrino aguardara tanto para chegar
até aquele retábulo e render homenagem à Opus Magnum que as
lágrimas lhe saltavam dos olhos, de emoção. E não em vão. Enfim,
lhe fora permitido ver uma obra de que poucas pessoas em Milão
conheciam o verdadeiro nome: a Maestà.*
*[Majestade. Era o nome original da composição de Leonardo, A
Virgem dos rochedos.]
Era esse o fim do caminho?
O falso vagabundo deduzia assim.
Aproximou-se com cautela. Ouvira descrever tantas vezes a
Obra que as vozes dos que o instruíram sobre os detalhes ocultos,
sobre sua verdadeira chave de leitura, acotovelavam-se agora na
sua memória, ofuscando-lhe a razão. O quadro, de 189 x 120
centímetros, ajustado como uma luva na abertura do altar previsto
para ele, era inequívoco: na parte de baixo duas crianças de pouca
idade se olhavam sem desviar os olhos. Uma mulher de rosto
sereno protegia ambos com seus braços enquanto um anjo solene,
Uriel, apontava o leito do Pai com um dedo firme e acusador.
"Quando contemplares esse gesto confirmarás a verdade que foi
revelada a você", acreditava ouvir ainda. "O olhar do anjo te dará
razão."
Seu coração se acelerou. Ali, na solidão absoluta do templo, o
peregrino esticou a mão com certo temor, como se pretendesse se
unir para sempre àquela cena divina. Era exato. Exato como as
bondades de sua fé. Os que peregrinaram em segredo até aquele
lugar antes dele não mentiam. Ninguém mentiu. Aquela obra do
mestre Leonardo continha as chaves para culminar a busca
milenária da verdadeira religião.
O peregrino lançou um novo olhar sobre o notável óleo
quando de repente algo atraiu sua atenção. Que estranho. Quem
pintara um halo sobre as cabeças dos três personagens
evangélicos? Acaso não lhe disseram seus irmãos que aquele
adorno supérfluo, fruto de mentes retrógradas e ávidas de
prodígios, fora omitido deliberadamente pelo mestre pintor? Então,
o que faziam ali? O falso mendigo se assustou. Os halos não eram a
única alteração da Opus Magnum. Onde estava o dedo de Uriel
assinalando o verdadeiro Messias? Por que a mão descansava
sobre o regaço em vez de assinalar o autêntico Filho de Deus? E
que razão obrigava o anjo a não olhar já para o espectador?
A sensação vertiginosa de horror cresceu até se apoderar do
peregrino. Alguém manipulara a Maestà.
— Dúvida, não é certo?
O vagabundo não moveu um só músculo. Ficou gelado ao
escutar uma voz cavernosa e seca às suas costas. Não ouvira
guinchar os gonzos da porta da igreja, de maneira que o intruso
devia estar observando-o há um bom tempo.
— Já sei que você é como os demais. Por algum motivo
obscuro vocês, hereges, vêm em manadas à casa de Deus. Embora
atraídos pela luz, são incapazes de reconhecê-la.
— Hereges? — sussurrou, paralisado.
— Oh, vamos! Acreditavam que não íamos perceber?
A língua do peregrino não conseguiu articular nenhuma
palavra mais.
— Pelo menos desta vez não achará o consolo de rezar diante
de sua desprezível imagem.
Sua pulsação estava fora de controle. Chegara sua hora.
Estava aturdido, furioso. Sentia-se enganado por arriscar a vida
para se prostrar diante de uma fraude. O quadro que tinha à frente
dos olhos não era a Opus Magnum. Não era a Maestà prometida.
— Não pode ser... — murmurou.
O desconhecido riu.
— É fácil de entender. Dar-lhe-ei a graça do conhecimento
antes de enviá-lo para o inferno. Leonardo pintou a Maestà em
1483, há quatorze anos. Os franciscanos não ficaram contentes
com ela. Esperavam um quadro que reforçasse seu credo na
Imaculada Concepção e que servisse para iluminar este altar. Em
compensação apresentou uma cena que não aparece em qualquer
evangelho e reúne São João e Cristo em algum momento da fuga
para o Egito.
— A Mãe de Deus, João, Jesus e o arcanjo Uriel. O mesmo que
avisou Noé do Dilúvio. Que mal vêem nisso?
— Todos são iguais — respondeu a voz em tom amargo. —
Leonardo aceitou modificar o quadro e nos entregou este, que
apresenta algumas modificações em relação ao primeiro. Eliminou
os detalhes insolentes.
— Insolentes?
— E como chama uma obra em que não se consegue
distinguir São João de Jesus Cristo, e em que nem a Virgem nem
seu filho estão coroados com a auréola de santidade que lhes
corresponde por direito próprio? Como se entende que as duas
crianças sagradas sejam idênticas uma à outra? Que espécie de
blasfêmia é essa que procura confundir os crentes?
Uma sensação de alívio permitiu-lhe respirar fundo pela
primeira vez. O verdugo — e estava seguro de que era ele — nada
compreendera. Os irmãos que o precederam e jamais retornaram
devem ter morrido em suas mãos sem revelar a razão daquele
culto discreto, e ele estava disposto a manter seu voto de silêncio
mesmo à custa do próprio sangue.
— Não serei eu quem esclarecerá suas dúvidas — disse com
serenidade, sem se atrever a olhar de frente o dono da voz.
— É uma lástima. Uma verdadeira lástima. Não percebem que
Leonardo os atraiçoou pintando esta nova versão da Maestà? Se
olhar com atenção o quadro à frente verá que os dois meninos
estão já claramente diferentes um do outro. O que está mais perto
da Virgem é São João. Leva sua cruz de haste comprida e reza
enquanto recebe a bênção do outro menino: Cristo. Uriel já não
aponta com o dedo para ninguém, e fica bem claro enfim quem é o
Messias esperado.
- Atraiçoou?
Era possível que o mestre Leonardo desse as costas aos seus
irmãos? O peregrino voltou a esticar a mão para a tela. Chegara
até ali amparado pela multidão que entrava em Milão para assistir
aos funerais de donna Beatrice d’Este, sua protetora. Também ela
os vendera? Era possível que tudo aquilo por que tanto lutaram
desmoronasse agora?
— Na realidade não necessito que me esclareças qualquer
coisa — prosseguiu a voz desafiadora. — Sabemos já quem inspirou
em Leonardo esta maldade, e graças ao Pai Eterno esse miserável
está debaixo da terra há algum tempo. Não duvide: Deus castigará
frei Amadeu de Portugal e seu Apocalipsis Nova como deve. E, com
ele, seu ideal da Virgem entendida não como mãe de Cristo, mas
como símbolo da sabedoria.
- E, no entanto, é um símbolo belo - protestou. - Um símbolo
partilhado por muitas pessoas. Ou pensam condenar todos aqueles
que pintem a Virgem com o menino Jesus e o menino João?
- Se induzem à confusão nas almas dos crentes, sim.
- E de verdade acreditam que poderão se aproximar do
mestre Leonardo, de seus discípulos ou do pintor Luino?
- Bernardino de Lupino? Aquele a que também chamam
Lovinus ou Luini?
- Conhece-o?
- Conheço suas obras. É um jovem imitador de Leonardo que
pelo visto comete os mesmos erros. Não duvide: também ele cairá.
- O que pensa fazer? Matá-lo?
O peregrino notou que algo ia mal. Um atrito metálico, como
o que faria uma espada ao sair de sua bainha, soou em suas costas.
Seus votos o impediam de carregar arma, de modo que elevou uma
prece à falsa Maestà, pedindo sua proteção.
- Também me matará?
- O Augure matará os imprudentes.
- O Augure...?
Não terminou de formular a pergunta quando uma estranha
convulsão agitou suas entranhas. A afiada lâmina de um enorme
sabre de aço perfurou suas costas. O peregrino soltou um estertor
terrível. Um palmo de metal partiu em dois o coração. Foi uma
sensação aguda, fugaz como um relâmpago, que o fez abrir os
olhos de puro terror. O falso vagabundo não sentiu dor, e sim frio.
Um abraço gélido que o fez cambalear sobre o altar e cair sobre os
joelhos arroxeados.
Foi a única vez que viu o agressor.
O Augure era uma sombra corpulenta, de carvão, sem
expressão no rosto. Começava a anoitecer na igreja. Tudo se
tornava escuro. Até o tempo começou a ficar mais lento de maneira
estranha. Ao tocar o degrau do altar, a trouxa que o peregrino
levava ao ombro se desfez, deixando cair dois pedaços de pão e um
maço de estampas com curiosas imagens. A primeira representava
uma mulher com o hábito de São Francisco, uma coroa tríplice na
cabeça, uma cruz como a de João na mão direita e um livro fechado
na esquerda.
- Maldito herege! - resmungou o Augure ao ver aquilo.
O peregrino devolveu um sorriso cínico, enquanto via como o
Augure apanhava a estampa e molhava uma pena em seu sangue
para anotar algo no reverso.
- Jamais... abrirá... o livro da sacerdotisa.
Daquela posição contrafeita, com o coração bombeando
sangue aos borbotões no lajeado, conseguiu vislumbrar algo que
lhe passara despercebido até agora: embora Uriel não apontasse já
para João Batista como na verdadeira Opus Magnum, seu olhar
entreaberto dizia tudo. A "chama de Deus", com os olhos
semicerrados, continuava apontando o sábio do Jordão como o
único salvador do mundo.
- Leonardo - consolou-se antes de desaparecer na obscuridade
eterna - não os atraiçoara apesar de tudo. O Augure mentira.
15
Esperamos as primeiras luzes do sábado, 14 de janeiro, para
sair do convento e percorrer com tranqüilidade a fachada
ladrilhada de Santa Maria delle Grazie. Frei Alessandro, que
demonstrara certa tendência natural para as adivinhações, estava
de novo exultante. Era como se a geada que horas antes petrificava
aquela parte da cidade não o acompanhasse. Às seis e meia, logo
depois dos ofícios, o bibliotecário e eu estávamos preparados para
sair à rua. Ia ser uma operação simples, que não levaria mais de
dois minutos mas que, no entanto, perturbava-me profundamente.
Frei Alessandro reparou, mas decidiu ficar quieto. Sabia que fosse
qual fosse a "cifra do nome" que obtivéssemos contando os olhos
da fachada continuaríamos sem resolver o problema. Teríamos um
número; talvez o do valor do nome de nosso informante anônimo,
embora não pudéssemos estar seguros disso. E se fosse a cifra
total das letras de seu sobrenome? Ou seu número de cela? Ou...?
- Esqueci-me de dizer algo - interrompeu-me enfim.
- De que se trata, irmão?
- De algo que talvez lhe traga alívio: quando tivermos esse
bendito número, ainda faltará muito o que fazer se quisermos
chegar ao fundo de sua adivinhação.
- É certo.
- Pois bem, deve saber que Santa Maria acolhe a comunidade
de frades mais acostumada a resolver adivinhações de toda a Itália.
Sorri. O bibliotecário, como tantos outros servos de Deus,
jamais ouvira falar de Betânia. Era melhor assim. Mas, frei
Alessandro insistiu em me explicar as razões de sua orgulhosa
afirmação: garantiu que o passatempo favorito daquela trintena de
dominicanos de elite era, precisamente, resolver hieróglifos. Havia-
os bastante habilidosos nessa arte, e até não poucos se divertiam
criando-os para os demais.
- Os bosques geram filhos que depois os destroem. Quem são?
- enunciou o cantador, diante de minha inapetência para
acrescentar jogos à nossa missão. - Os cabos dos machados!
Frei Alessandro não economizou detalhes. De tudo o que me
disse, o que mais me chamou a atenção foi saber que o uso de
adivinhações em Santa Maria não era apenas recreativo. Amiúde
os frades os empregavam em seus sermões, convertendo-os em
instrumentos de doutrinação. Se o que aquele frade dizia não era
exagero, as paredes agasalhavam o maior campo de adestramento
de criadores de enigmas da cristandade, além de Betânia. Por esse
motivo, se o Augure saiu de algum lugar, ali era o local ideal.
- Acredite-me, padre Leyre - o bibliotecário se adiantou aos
meus cálculos. - Quando tiver o número e não souber o que fazer
com ele, consulte qualquer irmão nosso. Quem em menos pensar,
terá uma solução.
- Qualquer um, está dizendo?
O bibliotecário torceu o semblante.
- É claro! Qualquer um! Seguramente quem fizer a ronda do
pátio saberá mais de adivinhações do que um romano como o
senhor. Pergunte sem receio ao prior, ao padre cozinheiro, aos
responsáveis pela dispensa, aos copistas, a todos! Mas, cuide para
que não o ouçam muito e o repreendam por romper o voto de
silêncio que todo monge deve respeitar.
E dizendo isto retirou a tranca que bloqueava o acesso
principal do convento.
Uma pequena avalancha de neve caiu do telhado,
esborrachando-se com estrondo aos nossos pés. Para ser sincero,
não esperava que algo tão banal como esquadrinhar a fachada de
uma igreja de madrugada resultasse exercício delicado. O frio
intenso convertera a neve em perigosa pista de gelo. Tudo estava
branco, deserto e envolto num silêncio que intimidava. Só a idéia
de se apoiar ao muro de azulejo do mestre Solari e costear o fosso
que circundava o terceiro claustro assustaria o mais valente: um
escorregão fora de tempo poderia quebrar a nuca ou nos deixar
aleijados para o resto de nossos dias. E isso para não dizer como
seria difícil explicar aos frades o que fazíamos àquela hora longe
de nossas orações, arriscando nossas vidas fora dos muros do
convento.
Não pensamos mais. Com cautela, tratando de molhar as
sandálias só o indispensável, avançamos devagar entre as placas
de gelo rumo ao centro da fachada, paralelamente à rua.
Atravessamos a rua quase de gatinhas e quando frei Alessandro e
eu subimos a uma distância prudente, com perspectiva sobre o
conjunto do prédio, nós a contemplamos. Uma iluminação tênue,
vinda de dentro, fazia as janelas brilharem como os olhos de um
dragão. Ali, de fato, desenvolvia-se uma série de janelas redondas,
de olhos, que adornavam a igreja em todo seu comprimento. A
fachada ficava na volta da esquina, uns passos adiante, com a
"cara" virada para outro lado.
- Mas, não olhes para a cara... - bati com os dentes.
Gelado de frio, escondendo as mãos nas mangas do hábito de
lã, contei: um, dois, três... sete.
Aquele sete me desconcertou. Sete versos, sete olhos... A
cifra do nome do anônimo remetente era, sem dúvida, esse maldito
sete recorrente.
- Mas sete o quê? - perguntou o bibliotecário.
Encolhi os ombros.
16
O que aconteceu em seguida iluminou meu caminho.
- Então é o padre romano que acaba de se instalar em nossa
casa?
O prior de Santa Maria delle Grazie, Vicenzo Bandello,
sondou-me com o semblante severíssimo antes de me convidar a
entrar na sacristia. Enfim conhecia o homem que redigira o
informe sobre a morte de Beatrice d'Este para a Betânia.
- O irmão Alessandro me falou muito do senhor - prosseguiu. –
Ao que parece é um homem estudioso. Um intelectual atento, com
força de vontade, com quem esta comunidade poderá se
enriquecer enquanto dure sua permanência entre nós. Como disse
que se chama?
- Agustín Leyre, prior.
Bandello acabara de concluir os ofícios da hora terceira, com
aquele Sol insuficiente gravitando sobre o vale de Padana. Estava
prestes a se retirar, para preparar o sermão do funeral de donna
Beatrice, quando o abordei. Foi um impulso irracional só em parte.
Não insistira frei Alessandro que eu perguntasse a qualquer irmão
da comunidade sobre minha adivinhação? Não era ele quem me
assegurara que o monge menos esperado poderia ter uma resposta
adequada? E quem poderia ser mais inesperado do que o abade?
Tomei a decisão, logo depois de regressar gelado do exterior
em busca de algum calor intramuros no convento. Quis o acaso que
eu farejasse na sacristia e o padre Bandello se encontrasse nela. O
bibliotecário me deixou sozinho. Acabara de se ausentar com o
pretexto de descer à cozinha em busca de alguma provisão para
nossa nova sessão de trabalho e foi então que senti a oportunidade.
Frei Vicenzo Bandello devia ter mais de sessenta anos, o rosto
enrugado e pregueado como um velame recolhido ao mastaréu, um
queixo forte e uma surpreendente capacidade de permitir que seus
gestos denunciassem cada uma de suas emoções. Era ainda mais
baixo do que supus na noite em que o vi na igreja. Movia-se
nervoso de um para outro dos armários de portas pintadas da
sacristia, duvidando qual fechar primeiro...
- Diga-me, padre Agustín - interveio enquanto recolhia o
cálice e a patena da última missa. - Tenho uma curiosidade: qual é
seu trabalho em Roma?
- Meu cargo é no Santo Ofício.
- Sim, sim... E, segundo entendi, nos momentos livres de suas
obrigações se distrai resolvendo adivinhações. Muito bem - sorriu. -
É certo que nos entenderemos.
- É exatamente disso que gostaria de falar consigo.
- De verdade?
Concordei. Se o prior era a eminência que o bibliotecário
descreveu, era provável que não lhe escapasse a presença do
Augure em Milão. No entanto, devia ir com cautela. Talvez ele
mesmo fosse o redator dos bilhetes anônimos, mas temesse revelar
sua identidade até se assegurar a respeito de minhas verdadeiras
intenções. Ou, podia ser pior: talvez não conhecesse sua existência,
mas se eu a revelasse o que o impediria de alertar o Mouro de
nossa operação?
- Diga-me algo mais, padre Leyre. Como amante da
elucidação de segredos, já ouviu falar da arte da memória,
verdade?
Bandello fez aquela pergunta como sem querer, enquanto eu
tentava em vão determinar seu grau de implicação no assunto das
cartas. Talvez pecasse por excesso de zelo. De fato, cada novo
monge que eu conhecia em Santa Maria engordava minha lista de
suspeitos. E frei Vicenzo não seria exceção. Para dizer a verdade,
de todas as opções possíveis, dos quase trinta frades que residiam
naquele lugar, o prior era o homem que melhor se encaixava no
perfil do Augure. Não sei como não percebemos antes em Betânia.
Até o nome, Vicenzo, tinha sete letras. Nem uma a mais. Como as
sete linhas do endiabrado Óculos ejus dinumera ou as sete janelas
da fachada sul da igreja. Percebi o detalhe quando comprovei o
desembaraço com que abria e fechava portas e relicários do apo-
sento e mantinha um grande molho de chaves sob o hábito. O prior
era dos poucos que tinha acesso aos cálculos e projetos do duque
para Santa Maria, e talvez o único que utilizasse um correio oficial
e seguro para fazer chegar suas cartas a Roma.
- Então? - insistiu, cada vez mais divertido diante de minha
atitude pensativa. - Ouviu ou não falar dessa arte?
Sacudi horizontalmente a cabeça enquanto tentava encontrar
nele alguma expressão que confirmasse meu julgamento.
- Pois é uma lástima! - prosseguiu. - Poucos sabem que nossa
ordem deu grandes estudiosos em tão digna disciplina.
- Jamais soube dela.
- E certamente tampouco sabe que o próprio Cícero
mencionou essa arte em seu De oratore, ou que um tratado ainda
mais antigo, Ad Herennwm, detalha-a e nos oferece a fórmula
exata para se lembrar em seguida tudo o que alguém deseje...
- Oferece-nos? Aos dominicanos?
- Claro que sim! Há trinta ou quarenta anos, padre Leyre,
muitos irmãos nos entregamos ao seu estudo. O senhor mesmo,
que trabalha diariamente com expedientes e documentos
complexos, nunca sonhou em arquivar na memória um texto, uma
imagem, um número, sem se preocupar em repassar outra vez
porque já sabe que o levará consigo para sempre?
- Claro que sim. Mas só os mais privilegiados podem...
- E, tendo necessidade para sua atividade - atalhou-me -, não
se preocupou em averiguar qual é a melhor fórmula para obter
semelhante prodígio? Os antigos, que não tinham a mesma
capacidade para fazer cópias de livros do que nós, inventaram um
recurso magistral: imaginaram "palácios de memória" nos quais
juntar seus conhecimentos. Também não ouviu falar deles,
verdade?
Neguei com a cabeça, mudo de perplexidade.
- Os gregos, por exemplo, imaginavam um prédio grande,
cheio de aposentos e galerias suntuosas, e atribuíam a cada janela,
arcada, colunata, escada ou sala um significado diferente. No
vestíbulo "guardavam" seus conhecimentos de gramática, no salão
os de retórica, na cozinha a oratória... E para lembrar qualquer
coisa previamente armazenada ali, só tinham de recorrer a este
canto do palácio com sua imaginação e extrair, em ordem inversa,
o que foi colocado. Engenhoso, não é certo?
Olhei para o prior sem saber o que dizer. Estava dando corda
para que eu perguntasse sobre as cartas que recebemos em Roma
ou não? Devia seguir o conselho de frei Alessandro e consultá-lo,
sem rodeio, sobre minha adivinhação? Temeroso de perder
prematuramente sua confiança, deslizei uma insinuação:
- Diga-me uma coisa, padre Vicenzo; e se em lugar de um
"palácio da memória" usássemos uma "igreja da memória"?
Poderíamos, para dar um exemplo, disfarçar o nome de uma
pessoa numa igreja de pedra e azulejo?
- Vejo que é perspicaz, frei Agustín - piscou um olho com
certa malícia. - E prático. O que os gregos criaram com palácios
imaginários, os romanos e até os egípcios tentaram com edifícios
reais. Se aqueles que entravam neles conheciam o "código de
memória" exato, poderiam caminhar por suas salas enquanto
recebiam uma valiosa informação.
- E numa igreja? - insisti.
- Sim, também poderia ser feito numa igreja - concedeu. –
Mas deixe-me ensinar-lhe algo antes de explicar como funcionaria
um mecanismo desse tipo. Como eu dizia, nos últimos anos padres
dominicanos de Ravena, Florença, Basiléia, Milão ou Friburgo
estamos trabalhando num sistema de memorização que repousa
sobre imagens ou estruturas arquitetônicas especialmente
preparadas para isso.
- Preparadas?
- Sim, adaptadas, retocadas, enfeitadas com detalhes
decorativos que parecem supérfluos aos profanos, mas são
fundamentais para quem conhece o abecedário secreto escondido.
Compreenderá com um exemplo, padre Agustín.
O prior tirou de sob o hábito um papel dobrado que alisou
sobre a mesa das oferendas. Era uma folha não maior do que a
palma de sua mão, branca, com manchas de lacre numa ponta.
Alguém gravara nela uma figura feminina com o pé esquerdo
apoiado numa escada. Aparecia rodeada de pássaros e objetos
estranhos pendurados em seu peito e uma inscrição latina sob os
pés que a identificava plenamente. A "senhora Gramática" - e é
dela que se tratava - olhava para lugar nenhum com expressão
ausente.
- Recentemente acabamos uma dessas imagens que, adiante,
servirá para lembrar as diferentes partes da arte da gramática. É
esta - disse, apontando aquele extravagante desenho. - Quer ver
como funciona?
Concordei.
- Olhe bem - excitou-me o prior. - Se alguém nos perguntasse
agora mesmo sobre os termos em que se fundamenta a gramática e
tivéssemos esta gravura diante de nossos olhos, saberíamos o que
responder sem vacilar.
- Deveras?
Bandello avaliou minha incredulidade.
- Nossa solução seria precisa: praedicatio, applicatío e
continentia. Sabe por quê? Fácil: porque "li" nesta imagem.
O prior se inclinou sobre a folha e começou a traçar círculos
imaginários ao seu redor, apontando partes diferentes do desenho:
- Olhe-a bem: praedicatio está assinalada pelo pássaro do
braço direito, que começa por "P", e porque seu bico tem a forma
dessa letra. E o atributo mais importante da figura, por isso é
mostrado com duas imagens, além de ser o emblema de nossa
ordem. No fim das contas, somos pregadores, não é verdade?
Fixei-me no gracioso galhardete segurado pela "senhora
Gramática", dobrado sobre si mesmo formando o "P" de que falava
Bandello.
- O atributo seguinte - prosseguiu -, applicatio, está
representado pela Aquila-, a águia segurada pela Gramática na
mão. Aquila e applicatio começam pela letra "A", como o cérebro
do iniciado na ars memoriae estabelecerá logo a relação. Quanto a
continentia, é vista quase escrita no peito da mulher. Se é capaz de
ver esses objetos, um arco, uma roda, um arado e um martelo,
como se fossem letras, lerá logo c-o-n-t... Continential
Assombroso. Numa imagem de aspecto inocente, alguém
conseguira concentrar uma teoria tão completa da gramática. De
repente me passou pela cabeça que os livros impressos às centenas
nas gráficas de Veneza, Roma ou Turim incluíam gravuras em seus
frontispícios que poderiam conter mensagens ocultas que
passariam despercebidas a nós, leigos. Na Secretaria de Chaves
nunca nos ensinaram algo semelhante.
- E os objetos que estão pendurados ou são sustentados pelos
pássaros? Também têm algum significado? - perguntei, ainda
espantado por aquela revelação.
- Meu caro irmão: tudo, absolutamente tudo, tem um
significado. Nesta época em que cada senhor, cada príncipe ou
cardeal têm tantas coisas para ocultar dos outros, seus atos, as
obras de arte que encomenda ou os escritos que protege escondem
coisas dele.
O prior encerrou aquela frase com um sorriso enigmático. Foi
minha oportunidade.
- E o senhor? - eu disse em voz baixa. - Também oculta algo?
Bandello me olhou sem perder o semblante irônico. Acariciou
o cocuruto perfeitamente barbeado e arrumou distraidamente os
cabelos.
- Um prior também tem seus segredos, de fato.
- E os esconderia numa igreja já construída? - prossegui em
meu desafio.
- Oh! - saltou. - Seria muito fácil. Primeiro numeraria tudo:
paredes, janelas, torres, sinos... A cifra é o mais importante!
Depois, com a igreja reduzida a números, buscaria aqueles que
poderiam se casar com letras ou palavras adequadas. E os
compararia tanto no número de caracteres formados por uma
palavra como pelo valor dessa palavra quando reduzida por sua vez
à números.
- Isso é gematria, padre! A ciência secreta dos judeus!
- É gematria, de fato. Mas, não é um saber desprezível, como
o senhor dá a entender com tanto escândalo. Jesus era judeu e
aprendeu gematria no templo. Como não saberíamos que Abraão e
Misericórdia são palavras numericamente gêmeas? Ou que a
escada de Jacó e o monte Sinai somam, em hebraico, cento e trinta,
o que nos indica que os dois são lugares de ascensão aos céus
designados por Deus?
- Quer dizer - atalhei - que se tivesse de esconder seu nome,
Vicenzo, na igreja de Santa Maria, escolheria alguma
particularidade do templo que somasse sete, o mesmo que as sete
letras de seu nome.
- Exato.
- Como, por exemplo... sete janelas? Sete olhos?
- Seria uma boa opção, embora eu escolhesse algum dos
afrescos que adornam a igreja. Permitem acrescentar mais matizes
do que uma simples sucessão de janelas. Quanto mais elementos se
somarem a um espaço, mais versatilidade se concederá à arte da
memória. E a fachada de Santa Maria é muito simples para isso.
- Verdade ou impressão?
- Verdade. Além disso, o sete é um número sujeito a muitas
interpretações. É a cifra sagrada por excelência. A Bíblia recorre a
ele com freqüência. Não me ocorreria usar uma cifra tão ambígua
para mascarar meu nome.
Bandello parecia sincero.
- Façamos uma combinação - acrescentou de surpresa. -
Confio ao senhor a adivinhação na qual minha comunidade
trabalha agora e o senhor me confia a sua. Estou certo de que
poderemos nos ajudar mutuamente.
Como é natural, aceitei.
17
O prior, satisfeito, pediu-me que o acompanhasse ao
convento. Desejava me mostrar algo. De repente, com o passo
rápido, atravessamos o altar-mor, deixamos para trás o coro e a
tribuna que estava sendo enfeitada para o funeral de donna
Beatrice, e enveredamos pelo longo corredor que desembocava no
Claustro dos Mortos. O convento era um lugar sóbrio, com paredes
de azulejo e colunas de granito organizadas de forma impecável ao
longo de corredores cuidadosamente pavimentados. A caminho de
nosso misterioso destino, frei Vicenzo fez um sinal ao padre
Benedetto, o copista caolho, que, como de costume, passeava sem
rumo entre as arcadas, com o olhar perdido num breviário que não
consegui identificar.
- E então? - resmungou ao se sentir reclamado pelo superior.
– Outra vez de visita à Opus Diabolo?. Seria melhor que a
sepultasse sob uma camada de cal!
- Por favor, irmão! Quero que me acompanhe - ordenou-lhe o
prior. - Nosso hóspede precisa de alguém que saiba contar
histórias deste lugar, e ninguém melhor do que você. É o frade
mais antigo da comunidade. Mais ainda do que as paredes desta
casa.
Histórias, hein?
O único olho do ancião brilhou de emoção ao perceber meu
interesse. Estava enfeitiçado por aquele homem que parecia se
divertir mostrando sua deformidade ao mundo, exibindo com
orgulho a chaga que o órgão perdido deixou no rosto.
- Nesta casa se contam muitas histórias, sem dúvida. Sabe
por que chamamos este pátio de Claustro dos Mortos? - perguntou,
enquanto se unia aos nossos passos. - É fácil: porque aqui
sepultamos nossos frades para que regressem à terra tal como
vieram ao mundo. Já sabe, sem honras nem placas que os
recordem. Sem vaidades. Só com o hábito de nossa ordem.
Chegará o dia em que todo este pátio ficará semeado de ossos.
- É o seu cemitério?
- Muito mais do que isso. É nossa ante-sala para o céu.
Bandello já estacara diante de um enorme portão de madeira
de folha dupla. Era um anteparo de aspecto rijo, que exibia uma
forte fechadura de ferro, na qual o prior não tardou a inserir outra
das chaves de seu molho. Benedetto e eu nos olhamos. Minha
pulsação se acelerou: ao vê-la, percebi que era exatamente o que o
abade queria me mostrar. Frei Alessandro já me pusera na pista e,
naturalmente, preparei-me para o grande momento. Atrás, numa
grande sala localizada abaixo do solo da biblioteca devia estar o
famoso refeitório de Santa Maria delle Grazie a que Leonardo
proibira o acesso dos monges. Se eu não me enganava, aquela era
a razão última de minha presença em Milão e o motivo que levara o
Augure a escrever suas cartas ameaçadoras à Casa da Verdade.
Uma nova dúvida me assaltou: Bandello e eu acaso estávamos
com a mesma adivinhação, sem saber? 1
- Se este lugar já estivesse benzido - o rosto do prior se
iluminou enquanto empurrava o portão -, lavaríamos antes as mãos
e o senhor esperaria aqui fora até que eu o autorizasse a entrar...
- Mas não está! - reclamou o caolho.
- Não. Ainda não. Mas isso não impede que sua atmosfera
sagrada impregne nossa alma.
- Atmosfera sagrada! Bobices!1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
E, dizendo isto, entramos os três.
Tal como supus, acabara de pôr o pé no futuro refeitório do
convento. Era um lugar obscuro e frio, coberto por grandes
papelões que descansavam apoiados nas paredes e dominado pelo
caos. Cordas e azulejos, biombos, cubos e - coisa curiosa - uma
mesa posta para um almoço, servida e coberta por uma grande
toalha branca, completavam um recinto que parecia estar há muito
no esquecimento. A mesa foi o que mais me chamou a atenção
porque era, com segurança, o único rastro de ordem em meio
àquela desordem. Nada indicava que fora usada. Os pratos
estavam limpos e toda a baixela aparecia coberta por uma fina
camada de poeira, resultado de semanas de abandono.
- Peço-lhe que não se assuste pelo lamentável estado de nosso
refeitório, irmão Agustín - disse Bandello enquanto arremangava o
hábito e evitava parte daquele mar de tábuas. - Este será nosso
refeitório. Estamos quase três anos assim, pode imaginar? Os
frades só podem entrar no recinto com autorização expressa do
mestre Leonardo, que o mantém fechado até terminar seu
trabalho. Enquanto isto, nosso mobiliário se estraga naquele canto,
em meio à sujeira e deste detestável cheiro de pintura.
- É um inferno, já não disse? Um inferno com diabo e tudo...
- Benedetto, por Deus! - recriminou-o o prior.
- Não se preocupe. Em Roma estamos sempre em obras; este
ambiente me resulta familiar.
Separada do resto por biombos de madeira, numa das laterais
do imenso salão, adivinhava-se um tabuleiro em forma de "U",
sobre o qual estavam dispostas grandes banquetas envernizadas de
preto. Os restos de um fino baldaquim de madeira descansavam
também naquele espaço obscuro, apodrecendo por culpa do mofo.
À medida que íamos afastando bugigangas, Bandello dizia:
- Não há trabalho de decoração neste convento que não sofra
atraso. Mas, o pior é o desta sala. Parece impossível acabar com
ele.
- A culpa é de Leonardo - voltou a resmungar Benedetto. –
Leva meses brincando conosco. Acabemos com ele!
- Cale-se, eu lhe peço. Deixe-me explicar nosso problema para
frei Agustín.
Bandello olhou à direita e à esquerda, para se assegurar de
que ninguém mais escutava. A precaução era absurda: desde que
deixamos a igreja não cruzamos com nenhum irmão, à exceção do
ciclope, e era pouco provável que algum deles estivesse escondido
ali quando devia estar se preparando para o funeral ou fazendo
seus deveres diários. No entanto, o prior parecia inseguro,
atemorizado. Talvez por isso baixou tanto a voz quando se inclinou
no meu ouvido:
- Logo compreenderá minha precaução.
- Deveras?
Frei Vicenzo concordou, nervoso.
- Mestre Leonardo, o pintor, tem fama de ser um homem
muito influente e poderia afastar-me do caminho se soubesse que
permiti sua entrada sem autorização...
- Refere-se ao mestre Leonardo da Vinci?
- Não grite seu nome! - balbuciou. - Estranha isso? O duque
em pessoa o chamou há quatro anos para que ajudasse a decorar
este convento. O Mouro deseja que o panteão familial dos Sforza se
situe sob a abside da igreja e necessita um entorno magnífico,
incontestável, para justificar sua decisão diante da família. Por isso
o contratou. E acredite quando digo que desde que o duque
embarcou neste projeto não houve um só dia de descanso nesta
casa. Nem um só - repetiu Benedetto. - E sabe por quê? Porque
esse mestre que sempre se veste de branco, a quem nunca verá
comer carne ou sacrificar um animal, é na realidade uma alma
perversa. Introduziu uma heresia sinistra em seus trabalhos nesta
comunidade e nos desafiou a encontrá-la antes que os dê por
prontos. E o Mouro o apoia!
- Mas Leonardo não é...
- Um herege? - me cortou. - Não, claro. À primeira vista não
parece. É incapaz de fazer dano a uma mosca, passa o dia
meditando ou tomando notas em seus cadernos, e passa a
impressão de ser um varão sábio. Mas, estou seguro de que o
mestre não é um bom cristão.
- Posso perguntar uma coisa?
O prior consentiu.
- É verdade que mandou reunir toda informação possível
sobre o passado de Leonardo? Por que nunca confiou nele? O
irmão bibliotecário me pôs ao corrente.
- Foi logo depois que nos desafiou. O senhor compreenderá
que nos sentimos obrigados a pesquisar seu passado para saber
que tipo de homem enfrentávamos. O senhor teria feito a mesma
coisa se ele tivesse desafiado o Santo Ofício.
- Suponho que sim.
-Encarreguei frei Alessandro de traçar um perfil de sua obra
para que pudéssemos nos adiantar a seus passos. Foi assim que
averiguamos que os franciscanos de Milão já tiveram sérios
problemas com o mestre Leonardo. Ao que parece, usou fontes
pagãs para documentar seus quadros, induzindo os fiéis a graves
equívocos.
- Frei Alessandro me falou disso, e também de certo livro
herético de um tal frei Amadeu.
- O Apocalipsis Nova.
- Exato. Mas, esse livro é apenas uma pequena amostra do
que ele encontrou. Nada lhe falou dos escrúpulos de Leonardo em
relação a certas cenas bíblicas?
- Escrúpulos?
- Isso é bastante revelador. Até agora não fomos capazes de
localizar uma única obra de Leonardo que mostre a crucificação.
Nem uma. Tampouco, alguma que reflita algumas das cenas da
Paixão de Nosso Senhor.
- Talvez nunca lhe encomendaram algo assim.
- Não, padre Leyre. O toscano evitou pintar essa classe de
episódios bíblicos por algum motivo obscuro. No início, pensamos
que podia ser judeu, porém, mais tarde, descobrimos que não. Não
respeitava as normas do shabat, tampouco outros costumes
hebraicos.
- E então?
- Bem... Creio que essa anomalia se relaciona com o problema
que nos ocupa.
- Fale-me dele. Frei Alessandro nunca mencionou que
Leonardo os desafiou.
- O bibliotecário não estava presente quando aconteceu. E, na
comunidade, só meia dúzia de frades conhecem os fatos.
Escuto.
- Foi durante uma das visitas de cortesia que donna Beatrice
fazia a Leonardo, há uns dois anos. O mestre acabara de pintar São
Tomé em sua Última ceia. Representou-o como um homem barbudo
que levanta o dedo indicador para o céu, perto de Jesus.
- Suponho que é o dedo que depois poria na chaga de Cristo,
uma vez executado, não é?
- Foi o que eu pensei e assim o manifestei a sua alteza, a
princesa d'Este. Mas Leonardo riu de minha interpretação. Disse
que os frades não tínhamos nenhuma idéia de simbolismo e que se
quisesse poderia retratar uma cena do próprio Maomé, ali mesmo,
sem que nenhum de nós percebêssemos.
- Disse isso?
- Donna Beatrice e o mestre riram, mas a nós pareceu uma
ofensa. Mas, o que podíamos fazer? Indispormo-nos com a mulher
do Mouro e com seu pintor favorito? Se o fizéssemos, seguramente
Leonardo nos culparia pelo atraso do trabalho com A última ceia.
O prior continuou:
- Na realidade, eu o desafiei. Quis demonstrar que não era tão
inábil no terreno da interpretação de símbolos como pretendia,
mas pisei num terreno onde jamais deveria entrar.
- A que se refere, padre?
- Naquela época, costumava visitar o palácio Rochetta. Devia
informar o duque sobre os avanços nas obras de Santa Maria. E
não eram raras as ocasiões em que surpreendia donna Beatrice se
distraindo na sala do trono com um jogo de cartas. As gravuras
eram figuras estranhas, chamativas, pintadas com cores fortes.
Nelas eram representados enforcados, mulheres segurando
estrelas, faunos, papas, anjos com os olhos vendados, diabos...
Logo soube que aquelas cartas era um velho legado da família.
Desenhou-as o antigo duque de Milão, Filippo Maria Visconti, com
a ajuda do condottiero (chefe) Francesco Sforza, em torno de 1441.
Mais tarde, quando ele assumiu o controle do ducado, presenteou
aquele baralho aos filhos, e uma cópia acabou nas mãos de
Ludovico, o Mouro.
- E o que aconteceu?
- Uma daquelas cartas representava uma mulher vestida de
franciscana que segurava um livro na mão. Chamou-me a atenção
porque o hábito que vestia era de varão. Além disso, parecia
grávida. Pode imaginar? Uma mulher grávida com hábito de
franciscano? Parecia uma zombaria. Pois bem. Não sei por que
recordei esse naipe durante aquela discussão com Leonardo e
lancei uma provocação. "Sei o que significa a carta da franciscana",
disse. Recordo que donna Beatrice ficou muito séria. "Que sabe o
senhor?", irritou-se. "É um símbolo que fala da senhora, princesa",
eu disse. Aquilo a interessou. "A franciscana é uma donzela
coroada, o que significa que tem sua mesma dignidade. E está
gravida. O que anuncia a chegada deste estado de graça para a
senhora.
Essa carta é um anúncio do que lhe reserva o destino."
- E o livro? - perguntei.
- Isso foi o que mais a ofendeu. Disse-lhe que a franciscana
tapava o livro para ocultar que era uma obra proibida. "E que livro
acredita que era - perguntou-me mestre Leonardo - . "Talvez o
Apocalipsis Nova, que o senhor conhece bem", respondi não sem
ironia. Leonardo ficou valente e então lançou seu desafio. "O
senhor não tem idéia", disse. "Claro que esse livro é importante.
Tão ou mais que a Bíblia, mas seu orgulho de teólogo fará com que
nunca o conheça." E acrescentou: "Quando esse futuro filho da
duquesa nascer, já terei acabado de incorporar seus segredos ao
Cenacolo. E garanto que embora estejam diante de seus narizes
jamais poderão lê-los. Essa será a grandeza de meu enigma. E a
prova de sua ignorância."
18
- Quando poderei ver A última ceia? - perguntei ao prior.
Benedetto sorriu.
- Agora mesmo, se quiser - disse. - Está na sua frente. Basta
abrir os olhos.
No início não soube para onde olhar. A única pintura que era
capaz de distinguir naquele refeitório que cheirava a umidade e
poeira era uma Maria Madalena agarrada aos pés da cruz de
Cristo. Brilhava numa parede do sul do salão e chorava com
amargura ante o olhar extático de São Domingos. Aquela Madalena
tinha os joelhos apoiados numa pedra retangular em que se podia
ler um nome que eu jamais vira: "Io Donatvs Montorfanv P."
- É um trabalho do mestre Montorfano - Bandello me tirou a
dúvida. - Uma obra piedosa, louvável, pronta há quase dois anos.
Mas, não é o que deseja ver.
O prior apontou então a parede oposta. A história da carta e
seu livro secreto me distraíra tanto que quase não era capaz de
decifrar o que viam meus olhos. Um monte de tábuas tapava boa
parte do canto sul do refeitório. No entanto, a escassa claridade
que banhava aquele canto me deixou entrever algo que me
paralisou. De fato, além da barreira de caixas e papelões, entre os
espaços deixados pelo grande andaime de madeira que cruzava a
parede de lado a lado, avistava-se... outra sala! Demorei algum
tempo para entender que se tratava de uma ilusão, e que ilusão!
Sentados ao longo de uma mesa retangular idêntica à de banquete
que tanto me chamara a atenção ao entrar, treze figuras humanas
de semblantes e atitudes vivas, frescas, pareciam representar uma
obra teatral só para nós. Não eram atores, Deus me perdoe; eram
os retratos mais reais e surpreendentes que jamais vira de Nosso
Senhor Jesus Cristo e de seus discípulos. Ainda faltava definir
alguns dos rostos, entre eles o do próprio Nazareno, mas o
conjunto estava quase pronto e... respirava.
- O quê? Já pode vê-lo? Distingue o que está atrás?
Engoli saliva antes de concordar.
O padre Benedetto, misteriosamente satisfeito, deu-me uma
palmadinha suave nas costas convidando-me a tomar posição mais
próxima daquela parede mágica.
- Aproxime-se, não vai mordê-lo. É a Opus Diaboliàt que eu
tentava preveni-lo. Sedutora como a serpente do Paraíso, e tão
venenosa como ela...
Impossível expressar em palavras o que senti naquele
momento. Tinha a impressão de contemplar uma cena proibida, a
imagem suspensa de algo que aconteceu há quinze séculos e
Leonardo conseguira imortalizar com um realismo inacreditável.
Então ignorava porque o caolho a chamava "obra do Diabo",
quando parecia um legado dos próprios anjos. Como que ébrio,
caminhei absorto ao seu encontro sem olhar onde punha os pés. À
medida que me aproximava a parede ia ganhando mais vida. Santo
Cristo! De repente compreendi o que fazia aquela mesa preparada
sob os andaimes: toalha, pratos, jarros e grandes copos de cristal e
até travessas de cerâmica apareciam dispostos de maneira idêntica
dois metros mais acima, na parede, sem desmerecer em nada os
verdadeiros. Mas e os discípulos? De onde copiara suas
expressões? De onde tirara suas roupas?
- Se quiser, irmão Agustín, podemos subir à armação para ver
o afresco mais de perto. Não creio que o mestre Leonardo venha
hoje supervisionar seu trabalho...
"Claro que quero", pensei.
- Logo descobrirá que por muito que se aproxime não
apreciará mais nada - o prior sorriu com malícia. - Aqui acontece o
contrário do que em qualquer quadro: se alguém se aproxima
muito da obra, perde a sensação de conjunto, confunde-se, e é
incapaz de encontrar um só traço do pincel que lhe sirva de guia
para interpretar a pintura.
- Mais uma prova de sua heresia! - bradou o caolho. - Esse
homem é um mago!
Não soube o que dizer. Durante um instante, talvez minutos,
não sei, fui incapaz de tirar a vista das figuras mais maravilhosas
que contemplei em minha vida. Ali, de fato, não havia marcas,
perfis nem raspaduras de espátulas ou borrões sobre riscos de
carvãozinho. E que importava? Ainda inacabado, com dois dos
apóstolos apenas esboçados na parede, com o rosto de Nosso
Senhor ainda sem expressão e as bordas exteriores de outras três
figuras sem colorir, já se podia passear dentro daquele banquete
sagrado. Bandello, vendo o tempo correr, esforçou-se por me
devolver à realidade.
- Diga-me, frei Agustín: com essa sagacidade com que
impressionou o irmão Alessandro, ainda não apreciou nada
diferente nesta obra?
- Não... Não sei a que se refere, prior.
- Vamos, padre. Não nos decepcione. Aceitou nos ajudar em
nossa adivinhação. Se conseguirmos relacionar as anomalias desta
obra com as contidas em algum livro proibido conseguiremos deter
Leonardo e acusá-lo de voltar a se inspirar em fontes apócrifas.
Seria seu fim.
O prior aguardou um instante antes de continuar:
- Darei uma pista. Reparou que nenhum dos apóstolos, sequer
o próprio Jesus, conserva o halo de santidade? Não me diga que é
normal na arte cristã!
Deus abençoado. Vicenzo tinha razão. Minha estupidez era
ilimitada. Estava tão surpreso pelo extraordinário realismo dos
personagens que não percebi aquela ausência capital.
- E o que diz da eucaristia? - gritou o ciclope, desbocado. - Se
esta é, na verdade, A última ceia, por que Jesus Cristo não tem
diante de si o pão e o vinho para consagrá-los? Onde está o Santo
Graal que contém seu precioso sangue redentor? E por que sua
tigela está vazia? Herege! É um herege!
- Que insinuam, irmãos? Que o mestre não seguiu o texto
bíblico ao pintar esta cena?
Parecia-me ouvir ainda as explicações de frei Alessandro
sobre o retrato da Virgem que Leonardo pintou para os monges de
San Francesco, o Grande. Então, também o toscano desatendeu
tanto as indicações bíblicas como as instruções de seus patronos. A
pergunta seguinte, portanto, devia lhes parecer pueril:
- Perguntaram-lhe por que fez assim?
- Claro que sim! - respondeu o prior. - E continuou rindo em
nossas barbas, chamando-nos de ingênuos. Disse que não é tarefa
sua nos ajudar a interpretar sua Ceia. Pode acreditar? O muito
esperto passa de tarde em tarde por aqui, dá um par de pinceladas
em algum dos apóstolos, senta-se durante horas para contemplar o
que já fez e mal se digna a falar à comunidade para explicar as
extravagâncias de seu trabalho...
- Pelo menos explicará citando alguma passagem evangélica,
não? - eu disse, adivinhando já sua resposta.
- Algum evangelho? - A pergunta do caolho soou maliciosa. –
Os senhores que conhecem tão bem os evangelhos como eu me
digam em que parte deles se descreve Pedro segurando uma adaga
à mesa, ou Judas e Cristo pondo a mão no mesmo prato... Não
encontrarão qualquer alusão a essas cenas. Não senhor.
- Pois exijam que ele explique!
- Tira o corpo fora. Diz que só presta contas ao duque, que é
quem paga suas jornadas.
- Querem dizer que entra e sai desta casa quando deseja?
- E se faz acompanhar por quem quer. Às vezes, até por
mulheres da corte a quem deseja impressionar.
- Perdoe-me a ousadia, frei Benedetto, com todo o respeito
por alguém tão zeloso como o senhor, esses não são argumentos
para acusar alguém de heresia.
- Como não? Não são argumentos suficientes? Não basta um
Cristo sem o atributo divino, uma Última Ceia sem eucaristia e um
São Pedro escondendo uma adaga sabe Deus para atacar quem?
Benedetto franziu o nariz vermelho de ira, resmungando
contra o que eu acabara de lhes dizer. O prior tentou
contemporizar:
- Não o compreende, verdade?
- Não... - respondi.
- O que frei Benedetto tenta nos explicar é que ainda que para
o senhor esta cena só pareça uma representação maravilhosa da
ceia pascal, talvez não o seja em absoluto. Vi trabalharem muitos
pintores em encomendas semelhantes, menos ambiciosos sem
dúvida, mas ignoro que demônio Leonardo deseja representar em
minha casa- o prior enfatizou o possessivo para demonstrar como
se sentia atingido pelo caso. Logo, segurando-me a manga do
hábito, prosseguiu em tom sombrio. - Tememos, irmão, que o
pintor do Mouro queira zombar de nossa fé e nossa Igreja e, se não
encontrarmos a chave de leitura de sua obra, ela ficará aqui para
sempre, como escárnio eterno por nossa estupidez. Por isso
precisamos de sua ajuda, padre Leyre.
A última frase do padre Bandello ecoou pelo enorme
refeitório. Sem me soltar a manga, o ciclope me puxou até outro
lugar sob o andaime, de onde dava para ver vários comensais do
Cencolo.
- Quer mais provas? Darei outra, para que esse impostor seja
queimado!
Segui-o.
- Está vendo? - vociferou. - Olhe bem.
- O que devo ver, padre Benedetto?
- Leonardo! Quem, senão ele? Não o reconhece? O bastardo
se retratou entre os apóstolos. É o segundo a partir da direita. Não
há dúvida: seu mesmo olhar, as mãos grandes e poderosas e até a
cabeleira branca. Diz que se trata de Tadeu, mas tem todos os seus
traços!
- Na verdade, padre, também nada vejo de errado nisso -
repliquei.
- Também Ghiberti se retratou nas portas de bronze do
Batistério de Florença e não aconteceu nada. É um costume bem
toscano.
- Ah, sim? E por que Leonardo é o único personagem de toda
a mesa, juntamente com o apóstolo Mateus, que aparece dando as
costas a Nosso Senhor? Acredita mesmo que isso nada indica?
Nem o próprio Judas Iscariotes tem atitude tão insolente! Aprenda
uma coisa - acrescentou, em tom ameaçador: - Tudo o que faz esse
diabo de Da Vinci obedece a um plano oculto, a um propósito.
- Então, se Leonardo encarna Tadeu, quem é o verdadeiro
Mateus, que dá as costas a Nosso Senhor?
- Isso é o que esperamos do senhor! Que identifique os
discípulos, que nos diga o que significa de verdade esta maldita
Ceia!
Tentei acalmar aquele ancião enérgico e temperamental.
- Mas, padres - eu disse, dirigindo-me ao prior e a seu
excêntrico confessor -, para colocar minha cabeça a serviço desta
adivinhação necessito que me expliquem em que fundamentam sua
acusação contra o mestre Leonardo. Se querem um julgamento
contra ele, se buscam interromper os trabalhos com um argumento
sólido, devemos lidar com provas irrefutáveis, não com meras
suspeitas. Não preciso recordar que Leonardo é protegido do
senhor de Milão.
- Nós o esclareceremos, não se preocupe. Mas antes conteste
mais uma coisa...
Fiquei contente em voltar a escutar o tom sereno do prior,
que retrocedeu um par de passos para examinar A última ceia em
sua totalidade.
- Só de vê-la, sabe exatamente o que representa esta cena?
Sua ênfase me fez desconfiar.
- Diga-me o senhor, padre.
- Está bem. Ao que parece, se trata do momento descrito pelo
Evangelho de João no qual Jesus anuncia aos discípulos que um
deles vai traí-lo. O Mouro e Leonardo escolheram a passagem com
o máximo cuidado
- Amen dico vobis guia unus vestrum me traditus esf - citei de
memória.
- "Um de vocês me atraiçoará." Exato.
- E o que vê de extraordinário nisso?
- Duas coisas - esclareceu. - Primeiro, que, à diferença das
Últimas Ceias clássicas, não escolhesse o momento da instituição
da eucaristia para este mural; e, segundo... - hesitou -, aqui o
traidor não parece Judas.
- Ah, não?
- Olhe para o mural, santo céu - urgiu Benedetto. - Só me
resta um olho, mas vejo claramente que quem quer atraiçoar
Cristo, até quem: deseja matá-lo, é são Pedro.
- Pedro? São Pedro, está dizendo?
- Sim, Simão Pedro. Esse aqui - insistiu o caolho, apontando
entre a dezena de rostos. - Não vê como esconde uma adaga nas
costas e se prepara para agredir Cristo? Não vê como ameaça João
pondo-lhe a mão, no pescoço?
O ancião murmurava suas acusações com veemência, como se
levasse tempo examinando em segredo a disposição daquelas
figuras e chegasse à conclusões que escapavam ao comum dos
mortais. O prior, ao seu lado, assentia com algum temor:
- E o que me diz precisamente desse apóstolo João? - Sua
ênfase me alertou. - Viu como o pintou? Imberbe, com mãos finas e
cuidadas, com rosto de Madonna. Parece
uma mulher!
- Sacudi a cabeça, incrédulo. O rosto de João não estava
terminado. Apenas se intuía do esboço uns traços doces,
arredondados, quase de adolescente.
- Mulher? Está seguro? Nos Evangelhos não se diz que uma
mulher se sentou à mesa...
- Vejo que começa a compreender - respondeu Bandello mais
calmo. - Por isso urge resolver essa adivinhação. A obra de
Leonardo encerra muitos equívocos. Muitas alusões veladas. Sabe
Deus quanto gosto de enigmas, a arte de esconder informação em
lugares reais ou pintados, mas este me escapa.
Notei como o prior se continha.
- Claro que - acrescentou sem esperar resposta - ainda é cedo
para que aprecie todos os matizes do problema. Volte aqui quando
quiser. Aproveite as ausências do pintor para isso. Sente-se para
apreciar o mural e trate de decifrá-lo por partes, tal como nós
fizemos. Em alguns dias será invadido pelo mesmo desgosto que
nos domina. Este mural o obcecará.
E, dizendo isto, o prior remexeu seu molho de chaves
buscando a chave adequada: uma grande e pesada, de ferro, com
três hastes em forma de cruz latina.
- Fique com ela. Existem só três cópias. Uma está com
Leonardo, e amiúde a empresta aos aprendizes. Outra fica comigo
e a terceira o senhor tem agora em suas mãos. E disponha de
Benedetto ou de mim se precisar de qualquer esclarecimento.
- Sem dúvida - acrescentou o caolho -, seremos de mais ajuda
do que o bibliotecário.
- Posso perguntar o que esperam deste inquisidor que agora
está ao seu serviço?
- Que encontre uma interpretação total e convincente para a
Ceia. Que identifique, se existe, esse livro em que disse ter-se
baseado. Que determine se é ou não um texto herético como
aquele Apocalipsis Nova, e se for, que o detenha. Em troca - o prior
sorriu -, o ajudaremos com sua adivinhação. Que, por certo, ainda
não nos disse qual é.
- Procuro o homem que escreveu estes versos.
E, dizendo isso, estendi-lhes uma cópia de Óculos ejus
dinumera.
João 13.
19
Bernardino quase não se atrevia a olhar por cima do cavalete.
Embora já não fosse adolescente e superara de longe o limiar dos
trinta, essa espécie de trabalho o punha nervoso. Jamais conheceu
mulher, talvez fosse o único da corporação que não conhecesse, e a
Deus jurou que nunca conheceria. Prometeu também ao pai, ao
cumprir os quatorze anos, e também ao seu mestre ao ingressar
como aprendiz na bottega mais prestigiada de Milão. No entanto,
arrependia-se agora. A filha dos Crivelli há duas semanas punha à
prova sua débil natureza. Nua, com seus cabelos dourados e
encaracolados caindo-lhe nas costas, ereta na beirada do sofá e
com o olhar azul cravado no teto, aquela condessinha de dezesseis
anos era a imagem viva do desejo. Cada vez que abandonava o
trejeito de anjo e cravava os olhos nele, Bernardino se sentia
morrer.
- Mestre Luini - a voz de donna Lucrezia lhe falou em surdina,
como se ela também se insinuasse -, quando acredita que o retrato
da menina ficará pronto?
- Logo, senhora condessa. Logo.
- Lembre-se que o prazo de nosso contrato expira na próxima
semana - insistiu.
- Sei muito bem, senhora. Não existe em minha vida data tão
presente como essa.
A mãe da Afrodite vigiava amiúde as sessões de pose. Não
que desconfiasse de Bernardino, homem de reputação
irrepreensível raramente; visto trabalhar fora de um convento, mas
ouvira tantas coisas sobre a voracidade dos cônegos e até do
próprio papa, que não achava exagero supervisionar aqueles
serões. Além disso, Bernardino era um varão atraente, talvez algo
efeminado, e o único gentil-homem que o marido deixava entrar em
casa sem temer por sua honra. O conde tinha razões de sobra para
desconfiar: os boatos de uma relação sentimental de sua belíssima
mulher com o duque estavam há tempo na boca de todos. Lucrezia
era a desejada. A mulher liberada que se excitava com todas as
novidades. E Elena, sua filha, aprumava-se já como digna
sucessora.
- É bela, não é verdade? - observou com orgulho a condessa. –
Essas maçãs que tem por peitos, tão firmes, tão duras... Não pode
imaginar, mestre, quantos homens enlouqueceram por elas.
"Enlouqueceram?" O pintor conteve a duras penas o tremor
do pincel. Sua tela já continha quase todos os detalhes do corpo de
Elena: embora a imaginasse com cabelos mais escuros e
compridos, uma cascata deles acariciava seu ventre até tapar
aquele maravilhoso rincão de prazeres a que o artista renunciara.
- O que não entendo, mestre, é por que escolheu o tema de
Madalena para retratar minha filha, exatamente agora. É como se
quisesse chamar a atenção do Santo Ofício. Além disso, todas as
Madalenas são mulheres aflitas, tétricas. E nem sei o que parece
essa horrível caveira em suas mãos...
Bernardino depositou o pincel na paleta e se voltou para
donna Lucrezia. A luz da tarde iluminava seu divã, dando relevo às
formas que lhe resultavam vagamente familiares: as mechas louras
e sinuosas eram idênticas às de Elena; as maçãs do rosto
marcadas, exatas, os mesmos lábios úmidos e carnosos. E outros
peitos abundantes palpitavam sob um corpete ajustadíssimo de
tecido holandês. Vendo-a ali recostada podia entender o apetite
desmesurado do Mouro por semelhante beldade. Era até lógico que
a tagarelice sobre a Inquisição lhe passasse despercebida.
- Condessa - disse -, lembro-lhe que deu liberdade à Mestre
Leonardo para escolher o tema e enviasse o discípulo de sua
escolha.
- Sim. É uma lástima que o mestre esteja tão ocupado com
esse venturoso Cenacolo.
- O que posso dizer eu? Mestre me pediu que pintasse uma
Madalena, e é o que faço. Além disso, vindo dele, o tema eleito
deveria orgulhar sua família.
- Orgulhar? Maria Madalena não foi uma puta? - exclamou. –
Por que não pôde encomendar um retrato ao natural como o que
seu mestre pintou para mim? Por que insistir em estigmatizar
minha família com uma sombra que há séculos nos persegue?
Bernardino Luini se calou. A família Crivelli era de origem
veneziana que, confiando na destreza de Leonardo, acreditava
possível encontrar um bom partido para a filha graças a um retrato
que exaltasse suas virtudes. E com uma Madalena assim resultaria
difícil. De fato, fora sua magra economia, e não seu critério, o que
deixou o caminho livre ao mestre para escolher o tema da tela. E
não desperdiçou a oportunidade. Bernardino olhou sua indolência
ao recordar a astúcia do toscano. Donna Lucrezia posava há anos
em sua bottega da rua Magenta, dando vida a alguns de seus
quadros mais notáveis. Se agora concordara em deixar a filha
posar como a favorita de Jesus era porque pensava logo em iniciá-
la em seus mistérios. Não em vão. Lucrezia era o último expoente
de uma longa estirpe de mulheres que se acreditava herdeiras da
autêntica Maria de Magdala. Uma saga de fêmeas de feições claras
e suaves, que há gerações inspiravam poetas e pintores e que nem
sempre eram conscientes da herança que transmitiam.
Luini deu mais um par de pinceladas tentando evitar o sorriso
contagiante de Elena. Logo, pensativo, retomou sua conversação:
- Creio que se precipita em seu julgamento, senhora. Maria
Madalena... Santa Maria Madalena - corrigiu em seqüência - foi
uma mulher valente como poucas. Chamaram-na casta meretrix e,
à diferença do restante dos discípulos, que, à exceção de João,
fugiram de Jerusalém quando crucificaram Nosso Senhor, ela o
acompanhou até o pé do Gólgota. Aí está, senhora, o porquê da
caveira que sua filha segura. Mas, além disso, Madalena foi a
primeira a quem Jesus Cristo apareceu depois de ressuscitado,
demonstrando o profundo carinho que sentia por ela.
- E por que acredita que fez algo assim?
Luini sorriu, satisfeito:
- Para premiá-la por seu valor, naturalmente. Muitos
acreditamos que Jesus ressuscitado confiou então a Madalena um
grande segredo. Maria demonstrou que era merecedora dessa
distinção, e nós, cada vez que a pintamos, tratamos também de nos
aproximarmos daquela revelação.
-Agora que mencionou, também eu ouvi Mestre Leonardo
falar desse segredo, embora evite dar muita explicação sobre ele.
Certamente o mestre é um homem cheio de enigmas.
- Do ponto de vista espiritual, muitos consideram a
inteligência um mistério, senhora. Talvez um dia o mestre decida
nos contar. Ou talvez escolha sua filha para fazê-lo...
- Tudo pode acontecer com esse homem. Conheço-o desde
que chegou a Milão em 1482, e nunca deixei de me surpreender
com suas intrigas. É tão imprevisível...
Lucrezia se deteve um instante, como se sua mente
repassasse velhas recordações. Logo perguntou com vivo
interesse:
- Não conhece, por acaso, o segredo da Madalena?
Luini voltou a olhar para a tela.
- Pense nisto, senhora: o verdadeiro ensinamento de Cristo
aos homens só pôde chegar depois que o Senhor superou o transe
da Paixão e ressuscitou com a ajuda do Pai Eterno. Só então teve
certeza absoluta da existência do Reino dos Céus. E quando
retornou dentre os mortos, quem encontrou primeiro? Maria
Madalena, a única que teve a coragem de esperá-lo, mesmo
contrariando as ordens do sinédrio e dos romanos.
- Nós mulheres sempre fomos mais valentes do que os varões,
mestre Luini. Ou mais imprudentes...
Elena continuava muda, assistindo divertida à conversa. Se
não fosse pela lareira bem carregada que tinha por trás há muito
teria apanhado um bom resfriado.
- Admiro como a senhora a tenacidade das mulheres,
condessa. - disse Bernardino, voltando a sopesar o pincel. - Por
isso, é bom que saiba, que Maria Madalena desfrutou, a partir
daquela revelação, virtudes ainda mais notáveis.
- Ah, sim?
- Se algum dia forem reveladas, verá com quanta fidelidade se
refletem no retrato de sua Elena. Então ficará mais do que
satisfeita com esta tela.
- Mestre Leonardo nunca me falou de tais virtudes.
- Mestre Leonardo é prudente, senhora. As bondades de
Madalena assunto delicado. Até assustaram os discípulos no tempo
de Nosso Senhor. Nem os evangelistas quiseram contar muitas
coisas sobre elas!
O olhar da condessa faiscou maliciosamente:
- Natural! Porque era uma puta!
- Maria nunca escreveu uma linha. Nenhuma mulher daquele
tempo escreveu - prosseguiu o mestre Luini, ignorando as
provocações. Por isso, quem quiser saber sobre ela, deve seguir os
passos de João. Como já disse, o amado foi o único que esteve à
altura das circunstâncias quando crucificaram Cristo. Quem
admira Madalena também admira João e considera seu evangelho o
mais belo dos quatro.
- Perdoe-me se insisto: até que ponto Madalena foi alguém
especial para Cristo, mestre Luini?
- Até o ponto de beijá-la na boca diante dos discípulos.
Donna Lucrezia se sobressaltou. Seu corpete estalou ao
encolher do peito.
- Como disse?
- Pergunte a Leonardo. Ele conhece os livros em que se
contam estes segredos. Só ele sabe como era o verdadeiro rosto de
João, ou Pedro, ou Mateus... e até Madalena. Não viram ainda seu
maravilhoso trabalho no convento de Santa Maria?
- Sim, claro que vi - respondeu com tédio, lembrando de novo
que; por culpa do Cenacolo não era Leonardo quem estava agora
em sua casa. Estive lá há uns meses. O duque quis me mostrar o
avanço do trabalho de seu pintor favorito, e me deslumbrou com a
magnífica execução daquele mural. Recordo que ainda faltavam os
rostos de alguns apóstolos e no convento ninguém sabia dizer
quando estariam prontos.
- Ninguém sabe, é certo - concordou Luini. - Mestre Leonardo
não encontra modelos para alguns apóstolos. Embora haja muitos
rostos sinistros na corte é difícil retratar a perversidade de um
Judas. Imaginei como é complicado encontrar um rosto puro e
carismático como o de João. Nem imagine quantos rostos o mestre
teve de examinar para encontrar um bom para o discípulo amado!
Leonardo sofre muito cada vez que tropeça nestes obstáculos e se
atrasa sem solução.
- Leve então minha filha! - riu. - E que sente Madalena na
mesa em lugar de João!
A condessa Crivelli, divertida, levantou-se do divã, expondo
ao ar uma nuvem de perfume em que nadava pelo palácio.
Majestosa, aproximou-se das costas do pintor e deixou cair a mão
delicada sobre seu ombro.
- Já chega de conversa por hoje, mestre. Acabe o retrato logo
e receberá o restante do pagamento. Restam-lhe pelo menos duas
horas de luz antes de que o Sol se ponha. Aproveite-as.
- Sim, senhora.
Os sapatos de donna Lucrezia repicaram sobre o lajeado até o
som sumir. Elena não pestanejava. Continuava ali, magnífica, com
a pele rosada e limpa, e com o corpo recém-raspado pelas criadas
do palácio. Quando se assegurou de que a mãe entrou em seus
aposentos, saltou sobre o divã.
- Sim, sim, mestre! - aplaudiu, soltando Gólgota, que se
dirigiu ao pé do braseiro.- Isso! Apresente-me a Leonardo!
Apresente-me!
Luini a contemplou entrincheirado por trás da tela.
- Quer mesmo conhecê-lo? - sussurrou depois de dar mais um
par de pinceladas, quando já não podia fingir indiferença.
- Claro que quero! O senhor mesmo me disse antes que talvez
ele me revele seu segredo...
- Mas a advirto: talvez não goste do que vai encontrar, Elena.
É um homem de caráter forte. Parece distraído, mas na realidade é
capaz de contemplar tudo com a precisão de um relojoeiro.
Percebe o número de folhas de uma flor só de olhá-la de soslaio, e
se empenha em estudar as minúcias de tudo, levando seus
companheiros ao desespero.
A condessinha não desanimou:
- Isso me agrada, mestre. Enfim um homem detalhista!
- Sim, sim, Elena. Mas ele, digo-lhe a verdade, não gosta
muito das mulheres...
- Oh! - um tom de desilusão se filtrou de sua vozinha. - Esta
parece ser a norma entre os pintores, não é verdade, mestre?
O pintor se escondeu ainda mais por trás do quadro quando a
modelo ficou de pé, mostrando-se como era bonita. Um calor
repentino lhe subiu à cabeça, enrubescendo-lhe a face e secando a
garganta.
- Mas... por que diz isso, Elena?
- Porque já está há quase dez dias retratando-me nua, os dois
fechados nesta mesma sala, e não fez nenhum gesto de
aproximação. Minhas damas de companhia dizem que isso não é
normal e até se perguntam, as muito espertinhas, se o senhor não
é castratus.
Luini não soube o que responder. Levantou o olhar para
encontrar o de sua interlocutora e a encontrou a dois palmos dele,
cheirando a essência de nardo e com toda a pele palpitando. Nunca
pôde explicar o que aconteceu depois: a peça começou a dar voltas
ao redor enquanto uma força poderosa, estranha, que nascia de
suas vísceras, dominou-o por completo. Lançou o pincel e a paleta
para o lado e puxou a condessa para si. O contato com aquele
corpo jovem excitou sua entreperna.
- É... donzela? - titubeou.
Ela riu:
- Não. Não mais.
E descendo sobre ele beijou-o com um ímpeto desconhecido.
20
Tal como previu o padre Bandello, A última ceia logo se
tornou uma obsessão para mim. Só naquela tarde de sábado, com a
chave na mão, visitei-a quatro vezes antes do pôr-do-Sol. Só ia
depois de me assegurar de que o lugar estava vazio. De fato, creio
que foi a partir desse dia que na comunidade começaram a me
chamar de padre Trotolla, que quer dizer pião. Tinham seus
motivos. Sempre que algum frade cruzava por mim me encontrava
como doido, vagando perto do refeitório, e com uma idêntica e
insistente pergunta nos lábios: "Alguém viu o mestre Leonardo?"
Suponho que cheguei ao convento no pior momento para
tropeçar nele. A preparação do funeral mudou os costumes da
cidade, mas em especial os de Santa Maria delle Grazie. Enquanto
frei Alessandro e eu queimávamos a mufa para decifrar a
adivinhação do Augure, o restante dos irmãos só se preparava para
o dia seguinte. A princesa morrera há treze dias e seu cadáver
repousava embalsamado numa arca de madeira de acácia na
capela da família do castelo. Os embaixadores dos reinos
convidados para o sepultamento passeavam impacientes pela
fortaleza do Mouro e o convento em busca de notícias sobre a
cerimônia.
Na realidade, estive alheio à agitação até a manhã de
domingo, 15 de janeiro, dia de São Mauro. Agradeci aos céus pelos
toques de sino que me despertaram cedo. Dormira mal, inquieto;
sonhei com os doze homens do Cenacolo que se moviam e
tagarelavam em torno do Messias. Já quase podia adivinhar as
obscuras intenções de cada um deles, mas intuía que o tempo para
arrancar-lhes seus segredos corria contra mim. Naquele domingo
donna Beatrice ia ser sepultada no novíssimo panteão dos Sforza,
sob o altar-mor de Santa Maria, e era provável que o misterioso
Augure, que nos prevenira tantas vezes contra ela, decidisse
comparecer ao convento.
Dirigi-me ao refeitório depois das orações do amanhecer.
Seguramente aquele seria o único momento que teria para
recolher-me em sua tranqüila solidão. Voltaria a me enfronhar nos
traços de cores vivas do mestre Leonardo e imaginar que o
misterioso trabalho do toscano não consistia em pintar aquele
mural, mas em resgatar dele, pouco a pouco, com precisão de
cirurgião, uma cena mágica gravada sob o estuque pelos próprios
anjos.
Estava nesse devaneio quando, ao dobrar a oeste do Claustro
dos Mortos e dirigir meus passos até o portão que protegia o
refeitório, encontrei-o aberto de lado a lado. Dois homens que eu
nunca vira conversavam animadamente sob a entrada:
- Já sabe a do bibliotecário? - ouvi falar o que estava mais
perto de mim. Vestia calça vermelha, gibão com listras amarelas e
brancas, e tinha rosto de querubim com cabelos encrespados. Ao
ouvi-los falar de frei Alessandro tirei o capuz e, com ar distraído,
decidi prestar atenção, de uma distância segura.
- O mestre me falou algo - respondeu o outro, um jovem de
bom aspecto, moreno, atlético e atraente. - Dizem que anda muito
nervoso, e todos temem que possa cometer algum desatino.
- É lógico. Mantém há tempo esse venturoso jejum... Creio
que está perdendo o juízo.
- O juízo?
- A falta de alimento deve provocar alucinações. Está
obcecado em ser descoberto e que o afastem dos livros. Deveria tê-
lo visto tremer de medo ontem à noite. Parecia um junco açoitado
pelo vento.
O mais forte dos dois olhou então para onde eu estava
colocado, obrigando-me a me mexer se não quisesse ser
descoberto. Consegui ainda ouvir uma última coisa:
- Afastá-lo dos livros, está dizendo? Isso não é possível. Não
acredito que se atrevam a tanto. Fez muito bem seu trabalho, para
merecer esse castigo...
- Então, concorda comigo?
- Certamente. O jejum acabará matando-o.
Aquilo me provocou uma suspeita. Não era normal que algo
tão íntimo, tão intramuros, como o jejum do padre Alessandro,
estivesse na boca de uns leigos alheios à comunidade. Mais tarde
soube que o homem das calças vermelhas era Salaino, o discípulo
favorito e protegido de Leonardo, e o moreno era um fidalgo
aprendiz de pintor amigo de Marco d'Oggiono. Eles, como Bandello
já me advertira, usavam amiúde a chave do refeitório. Quase
sempre o abriam para preparar as misturas de tinta do mestre ou
colocar os utensílios em ordem. Pois bem: o que faziam ali num
domingo, com o enterro de donna Beatrice às portas, e vestidos a
rigor? Como é que falam de frei Alessandro com essa naturalidade
e, sobretudo, com esse conhecimento de seus costumes? E a troco
de que afirmavam que estava nervoso? Intrigado, passei diante
deles em direção à escada da biblioteca, tentando não chamar
muito sua atenção. Minha mente, sempre em movimento,
continuava disparando perguntas: onde diabos o bibliotecário
esteve na noite anterior? Era verdade que se encontrara com o
mestre Leonardo? Para quê? Não criticara abertamente o mestre
em nossas conversas? Era agora seu amigo?
Um calafrio me percorreu a coluna. A última vez que falei
com frei Alessandro foi no dia anterior, nas vésperas. Aplicava-se
em me mostrar os manuscritos consultados por Leonardo na
biblioteca do convento, no tempo em que eu tratava de identificar
neles o livro que o abade vira nas cartas de donna Beatrice. A
verdade é que em nenhum momento percebi mudança em seu
humor. De certa maneira, causou-me dó. O frade que melhor me
acolheu, que esteve grudado em mim desde o primeiro momento
em que pus os pés em Santa Maria era dos poucos que não
conhecia o que se estava armando ali.
Naquela tarde senti remorso e acabei por confessar-lhe o que sabia
de Leonardo e do desafio do Cenacolo. Devia a ele.
- O que vou lhe contar - adverti-o - jamais deve sair de sua
boca...
O bibliotecário me observou surpreso.
- Jura?
- Por Cristo.
Concordou com gosto.
- Está bem. O prior acredita que Mestre Leonardo ocultou
uma mensagem secreta no mural do refeitório.
- Uma mensagem secreta? Na Última ceia?
- O prior suspeita que é algo que ofende a doutrina da Santa
Igreja. Uma crença que Mestre Leonardo pode ter lido num dos
livros que o senhor lhe emprestou.
- Qual? - impacientou-se.
- Pensei que o senhor soubesse.
- Eu? O mestre consultou muitos títulos de nossa biblioteca.
- Quais?
- Foram tantos... - duvidou. - Não sei. Talvez se interessou por
De secretis artis et naturae oper/bus.*
*[Na realidade, este livro não foi impresso antes de 1542, quando o
parisiense Claudio Celestino resolveu leva-lo aos tipos móveis.
Antes circulou em ambientes muito restritos sempre em forma
manuscrita. Uma cópia ficou guardada na Biblioteca de Santa
Marie delle Grazie.]
- De secretis artis. É um manuscrito franciscano raro. Se não
me engano ouviu falar dele por frei Amadeu de Portugal. Lembra-
se?
- O autor de Apocalipsis Nova.
- O próprio. Nesse livro, um monge inglês chamado frei Roger
Bacon, conhecido inventor e escritor acusado de heresia e
encarcerado pelo Santo Ofício, falava das doze maneiras diferentes
que existem para esconder uma mensagem numa obra de arte.
- É um texto religioso?
- Não. É mais técnico.
- E que outro livro pode tê-lo inspirado?
Frei Alessandro roçou o queixo, pensativo. Não me parecia
nervoso, nem alterado por minhas perguntas. Continuava serviçal,
como sempre, quase como se minhas confissões sobre Leonardo
não o afetassem em nada.
- Deixe-me pensar - murmurou. - Talvez se utilizasse das
Vidas dos santos de frei Jacopo da Varazze... Sim. Ali poderia ter
encontrado o que o senhor busca.
- Nos livros do conhecido bispo de Gênova? - repliquei
assombrado.
- Foi, de fato, há mais de trezentos anos.
- E o que tem a ver Da Varazze com a mensagem oculta do
Cenacolo?
- Se tal mensagem existe, estes livros poderiam conter a
chave para decifrá-la - os olhos do macilento frei Alessandro se
fecharam, como se buscasse concentração. - Frei Jacopo da
Varazze, dominicano como nós, recolheu no Oriente todas as
informações possíveis sobre a vida dos primeiros santos, e a dos
discípulos de Nosso Senhor. Suas descobertas entusiasmaram
mestre Leonardo.
Arqueei as sobrancelhas, incrédulo.
- No Oriente?
- Não estranhe, padre Leyre - prosseguiu. - Os detalhes
contidos neste livro não são precisamente canônicos.
- Ah, não?
- Não. A Igreja nunca aceitaria o parentesco que frei Jacopo
garante que tiveram os Doze entre si. Sabe que Simão e André
eram irmãos?
- Talvez isso explique por que Leonardo os pintou como
gêmeos.
- Deveras?
- E sabia que Da Varazze afirmou que muitos confundiam
Tiago com o próprio Cristo? E não percebeu a enorme semelhança
que tem com Jesus no Cenacolo?
- Então - suspeitei -, Leonardo leu este livro.
- Deve ter sido mais do que isso. Estudou-o a fundo. E leu com
mais interesse do que o Opúsculo de Roger Bacon. Pode crer.
Frei Alessandro suspendeu aí nossa última conversa. Por isso,
quando escutei os discípulos do toscano dizerem que o
bibliotecário se encontrara com Leonardo naquela mesma noite,
estremeci. Sua casual indiscrição não só confirmava que o
bibliotecário me ocultara algo tão importante como sua amizade
com Leonardo, mas quem eu acreditava ser meu único amigo em
Santa Maria me delatara.
- Grazie. Mas por quê?
21
Procurei o bibliotecário em todos os lugares. Em sua mesa
ainda repousavam os dois volumes do bispo Da Varazze que me
mostrara na tarde anterior. Cinzelados em caracteres grandes se
destacavam o nome do autor e o título italiano do livro: Legendi di
sancti vulgarík storiado. Do outro livro, no entanto, o das Artes
Secretas do padre Bacon, não havia nem rastro. Se frei Alessandro
o guardasse em sua coleção, devia tê-lo bem escondido. Era
imaginação minha ou o bibliotecário pretendera desviar minha
atenção daquele tratado? Por quê? As perguntas se acumulavam.
Eu precisava que frei Alessandro me explicasse algumas coisas. No
entanto, por mais que o procurasse na igreja, na cozinha ou no
prédio das celas, ninguém soube me informar; sobre seu paradeiro.
Tampouco, pude insistir muito. Com a crescente: maré de gente
que se aproximava de Santa Maria para ver de perto o cortejo
fúnebre, era fácil perder de vista o bibliotecário. Sabia que cedo;
ou tarde o encontraria e então me esclareceria que diabo se
passava ali.
Pelas dez da manhã, a praça situada em frente à igreja e todo
o caminho que separava Santa Maria do castelo estavam ocupados
por uma multidão silenciosa. Todos vestiam suas melhores roupas
e vinham munidos de velas e palmas secas que agitariam à
passagem do féretro da princesa. Não cabia um alfinete no trajeto.
Na igreja, em compensação a entrada fora restrita aos convidados
e embaixadores por desejo expresso do duque. Sob a tribuna fora
instalado um estrado revestido de veludo atravessado por cordões
de ouro terminados em borlas, no qual o Mouro e seus homens de
confiança entoariam suas orações. Toda a área estava sob a
proteção da guarda pessoal do duque e só nós, os monges de Santa
Maria, tínhamos certa liberdade de entrar e sair.
Dirigi-me à zona nobre da igreja não tanto com a esperança
de encontrar frei Alessandro, mas com a idéia de ver pela primeira
vez o mestre Leonardo. Se os ajudantes tinham aberto o refeitório
de manhã era provável que o mentor não andasse longe dali. Meu
instinto não falhou.
Ao toque das onze, uma repentina agitação alterou a calma do
templo de Santa Maria. A porta principal, sob a maior de todas as
janelas, abriu-se com estrondo. As trombetas do exterior bramiram
anunciando a chegada do Mouro e seu séquito. O sinal arrancou
muda ovação entre os fiéis que tiveram acesso permitido. Então
uma dezena de homens de rosto severo e olhar vazio, cobertos por
longas capas e adornos de pele preta, entraram com passo marcial
rumo à tribuna. Ali o vi. Ainda que encerrasse o grupo, o mestre
Leonardo se destacava como Golias entre os filisteus. Mas, não foi
sua altura a única coisa que me chamou a atenção. O toscano, à
diferença dos brocados de pedras preciosas e mantos de seda
vestidos pelo restante dos cavalheiros, ia coberto de branco da
cabeça aos pés, e sua barba, comprida, loura e bem recortada lhe
caía sobre o peito, e enquanto caminhava olhava para um e outro
lado, como se buscasse rostos conhecidos entre a concorrência.
Sua figura parecia um fantasma de outra época. O Mouro, que ia
três passos à frente, a pele escura e os cabelos negros como o
betume, cortados em forma de taça, era o oposto do perfil solar do
gigante. Todo mundo reparava nele. Os porta-estandartes das
diferentes casas reais que compareceram ao sepultamento
percebiam antes sua presença do que a do próprio Ludovico. No
entanto, o toscano parecia viver alheio a tudo isso.
- Sejam bem-vindos à casa do Senhor - recebeu-os do altar o
prior Bandello, rodeado por monges vestidos para a ocasião. Junto
a ele se encontravam o arcebispo de Milão, o superior dos
franciscanos e uma dezena de clérigos da corte.
O Mouro e seu séquito se persignaram e se acomodaram no
estrado reservado para eles, quase ao mesmo tempo em que o
grupo de músicos com o brasão dos Sforza penetrava no templo
anunciando a chegada do féretro.
O mestre Leonardo, de pé na terceira fila do estrado, olhava
com ansiedade para todos os lados e anotava com rapidez, sabe
Deus o quê, num daqueles taccuini que sempre tinha consigo.
Pareceu-me que da mesma maneira vigiava os rostos da multidão,
ouvia as notas do órgão de Santa Maria e o drapejar dos
estandartes das comitivas. Alguém me disse que na tarde anterior
ficou extasiado observando o vôo dos quatrocentos pombos
libertados na praça do Domo, e até me garantiram que fez
anotações sobre as salvas de canhão que o núncio de Sua Santi-
dade mandou disparar sob as muralhas da cidade em honra da
defunta. Para ele tudo merecia ser registrado. Tudo continha os
traços da ciência secreta da vida.
Certamente, não fui o único a observar seus movimentos
durante a cerimônia. Ao meu redor as pessoas falavam em voz
baixa sobre o toscano. Quanto mais me perdia em seu olhar azul e
o seu porte majestoso, mais necessidade sentia de conhecê-lo. O
Augure primeiro e o padre Bandello depois exacerbaram essa sede
que agora me queimava por dentro.
Os convidados não ajudaram exatamente a sufocar minhas
ânsias. Cochichavam como periquitos sobre a última obsessão do
toscano: concluir um tratado sobre pintura em que tencionava
insultar poetas e escultores para exaltar a superioridade de seus
pincéis. Sua mente privilegiada se empenhava ao mesmo tempo em
distrair o Mouro da dor e em desenhar pontes elevadiças
impossíveis, torres de assalto que se moveriam sem cavalos ou
gruas para descarregar a lã dos barcos dos navigli*[*Canais oficiais
que cruzam Milão e que na época do mouro serviam para o
tranporte de mercadorias.(N. do editor espanhol).]
Da Vinci, abstraído, ignorava as paixões que despertava.
Agora parecia rabiscar no caderno um esboço do estranho traje
que o duque vestia para a ocasião: um manto de seda preta
belíssimo, navalhado por toda parte, talvez dando a entender que o
rasgara com suas próprias mãos.
Eu mal podia imaginar como estava perto de conversar com o
mestre.
Foi o irmão Giberto, sacristão de Santa Maria, quem me
propiciou aquele primeiro contato com o pintor, em meio a uma
circunstância tão dramática como inesperada.
Ocorreu enquanto frei Bandello pronunciava as palavras da
consagração. Aquele rapagão do norte, de bochechas rosadas e
cabelo cor de abóbora, aproximou-se de mim pelas costas e puxou
ferozmente o hábito.
- Padre Agustín! Escute-me! - suplicou frei Giberto,
desesperado.
Seus olhos saltados quase não lhe cabiam no rosto. Estavam
injetados de sangue. - Acaba de acontecer algo terrível na cidade!
O senhor deve tomar conhecimento de imediato!
- Algo terrível?
As mãos do alemão tremiam.
- É um castigo de Deus - ciciou. - Um castigo para quem
desafia o Altíssimo!...
O sacristão não teve oportunidade de terminar. Benedetto, o
caolho facilmente irritável, confessor do prior, e frei Andrea de
Inveruno, com seus gestos afetados, aproximaram-se com idêntico
movimento de urgência:
- Devemos ir de imediato. E depressa! Acompanha-nos, padre
Agustín? - disse quase sem fôlego o sacristão. - Creio que
necessitaremos de reforços. Tanta urgência me desarmou. Não
sabia para onde ia acompanhá-los nem para quê, mas quando vi
um pajem do duque se aproximar de Leonardo e sussurrar-lhe algo
ao ouvido enquanto o puxava com a expressão alarmada, aceitei.
Ali acabara de acontecer algo extraordinário. E eu queria saber o
que era.
22
Os dois oficiais de justiça do duque não acreditavam em seus
olhos. Diante deles estava o corpo sem vida de um frade. Uma
corda da grossura de um punho o submetia com firmeza pelo
pescoço, fixando-o a uma das vigas da praça do Comércio. Andrea
Rho, chefe da guarda, ainda não desjejuara. De fato, nem abotoara
o uniforme quando aquela notícia truncou sua entediante manhã
de domingo. Com os cabelos brancos revoltos, o estômago vazio e o
inconfundível odor de urso recém-desperto, Rho se aproximou de
má vontade para ver o que se passava. Pouco havia que fazer. O
desgraçado estava com a pele azulada e fria, veias do rosto
inchadas e os olhos abertos e secos. O terror esboçado naquelas
pupilas sugeria uma morte cruel. O defunto agonizara um bom
tempo antes de sufocar. Os braços, agora inertes, estendiam-se
paralelos ao hábito branco de São Domingos enquanto o punho das
mangas apenas deixava entrever duas mãos cuidadas, magras,
rígidas. Um suave fedor a cadáver chegou ao nariz do capitão.
- E então? - o olhar de Andrea vagueou entre a turbamulta de
curiosos sedentos de espetáculo. Muitos regressavam para casa
frustrados por não ver o suntuoso coche mortuário da duquesa, e
aquela agitação na rua prometia compensá-los. Rho desconfiava de
todos. Procurava algum rosto cúmplice, alguém que contemplasse
a cena com orgulho.
– O que temos aqui?
- É um religioso, senhor. Um frade - respondeu
aguerridamente seu companheiro, enquanto tentava conter, com
os braços em cruz e a lança cravada no solo, a multidão nos
limites.
Isso já percebi, Adriano. Acordaram-me com essa notícia.
-Verá, senhor - titubeou o soldado. - Esse homem apareceu
pendurado esta manhã mesmo. Nenhuma oficina ou armazém
desta região abriu hoje, por isso ninguém viu nada...
- Você o revistou?
- Ainda não.
- Não? Ainda não sabe se o roubaram antes de pendurá-lo?
O tal de Adriano negou com um gesto de apreensão.
Provavelmente nunca tocara num cadáver. Rho o presenteou com
um esgar de desprezo antes de se dirigir à assistência.
- Ninguém sabe de nada, não é? - repreendeu-a aos gritos. –
Vocês são um bando de covardes. Ratos!
Ninguém se perturbou. As pessoas olhavam extasiadas o sutil
movimento pendular do monge, conjeturando em voz baixa sobre o
que acontecera. Deus sabe que os religiosos não costumam
carregar bolsa alentada e não compensa aos assaltantes agredi-los.
Mas se não se tratava de ladrões, quem acabara com aquele
monge? E por que o justiçaram, abandonando-o em plena rua?
Andrea Rho rodeou um par de vezes o cadáver antes de
formular outra pergunta maliciosa ao companheiro:
- Está bem, Adriano. Sejamos diligentes. Você diria que
aconteceu o que aqui? Mataram-no ou se enforcou?
O rapaz, de espaldas fortes e olhar intermitente, meditou um
instante, como se da resposta dependesse sua promoção. Ruminou,
portanto, a resposta com cuidado, e quando estava a ponto de abrir
a boca para dizer algo... não pôde. Um vozeirão magnífico se
levantou do meio da multidão:
- Tirou-se a vida! - gritou alguém do fundo. - Tirou-se! Disso
não há dúvida, capitão!
Era um timbre varonil, seco, que quase fez tremer o átrio do
mercado, deixando a multidão impressionada.
- Além disso - prosseguiu -, também sei o nome: frei
Alessandro Trivulzio, bibliotecário do convento de Santa Maria
delle Grazie! Deus acolha essa alma era Seu seio!
O desconhecido deu então um passo à frente, abrindo
caminho entre os curiosos. Adriano, ainda com a boca aberta,
permaneceu olhando-o. Tratava-se de um indivíduo extraordinário:
alto, robusto, impecavelmente vestido com uma camisa de algodão
que lhe caía até os pés e uma comprida cabeleira recolhida sob um
gorro de lã. Acompanhava-o um rapazinho de aspecto tímido, que
não teria mais de doze ou treze anos e parecia impressionado pela
proximidade do morto.
- Vejam! Enfim um valente! E o senhor quem é, pode-se
saber? - interrogou Rho. - Como pode estar seguro do que diz?
O colosso procurou os olhos de Andrea Rho antes de
responder.
- É fácil, capitão. Se prestar atenção ao aspecto do corpo,
verá que não apresenta outros sinais de violência além da
dilaceração do pescoço. Se resistisse a morrer ou fosse atacado,
seu hábito estaria sujo, talvez rasgado ou ensanguentado. E não é
o caso. Esse frade aceitou seu fim de boa vontade. E se prestar
ainda mais atenção, embaixo verá ainda o barrilzinho que lhe
serviu de apoio para subir à viga e colocar a corda no pescoço.
- Sabe muito sobre mortos, senhor - disse, irônico.
- Vi-os mais do que imagina, e de perto! Seu estudo é uma de
minhas paixões. Até abri-lhes passagem para converter suas
entranhas em ciência. - O gigante ressaltou aquela frase, ciente de
que um murmúrio de horror se estenderia por toda a praça. - Se o
senhor tivesse ocasião de contemplar tantos enforcados como eu,
capitão, também perceberia outra coisa.
- Outra coisa?
- Que este corpo está pendurado aqui há várias horas.
- Deveras?
- Sem dúvida - afirmou. - Basta se deter no exército de moscas
que esvoaçam ao seu redor. As dessa espécie, pequenas e
nervosas, demoram de duas a três horas para se aproximar de um
defunto. E olhe como revoam em busca de alimento!... Não é
extraordinário?
- O senhor ainda não me disse quem é!
- Chamo-me Leonardo, capitão. E sirvo ao duque como o
senhor.
- Nunca o vi antes.
- Os domínios do Mouro são extensos - disse, esboçando uma
risada imprópria para a circunstância. - Sou artista e trabalho em
vários projetos, um dos quais no convento de Santa Maria delle
Grazie; por isso conhecia bem este desgraçado. Sabe? Era um bom
amigo.
Enquanto fazia intenção de se benzer, o oficial estudou os
modo daquele estrangeiro. Acabou por aceitar a idéia de se
encontrar diante de um mestre da cidade. Como todos em Milão,
ouvira falar de um certo sábio chamado Leonardo e seus
extraordinários poderes. Tentava recordar o que diziam dele: que
não apenas era capaz de capturar a alma humana numa tela, ou de
fundir a maior estátua equestre vista em séculos para recordar o
defunto Francesco Sforza, mas que tinha conhecimentos médicos
que raiavam o milagre. Aquele tipo se ajustava bem à idéia que
fizera dele.
- Diga-me então, mestre Leonardo. Segundo o senhor, por que
um frade do convento de Santa Maria delle Grazie quis se enforcar
aqui?
- Isso ignoro, capitão - respondeu mais amável. - Embora
possa interpretar com facilidade os signos externos, a vontade dos
homens é amiúde impossível de captar. No entanto, talvez a
resposta seja simples. Assim como venho seguidamente comprar
minhas telas e tintas neste lugar, ele poderia ter se aproximado em
busca de alguma outra mercadoria. Depois, algum pensamento
funesto passou por sua mente e decidiu que era um bom momento
para morrer... Não acredita?
- No domingo? - o capitão Rho suspeitou. - E com o funeral da
princesa Beatrice sendo celebrado em seu próprio convento? Não.
Não acredito.
O gigante encolheu os ombros:
- Só Deus sabe o que pode passar pela mente de um de seus
servos...
- Sim.
- Talvez se o soltasse e revistasse seu cadáver com cuidado
encontraria alguma pista sobre o que veio buscar no comércio. E
se o senhor achar oportuno, ponho a seu serviço a ciência médica
que conheço e minha completa disposição para estabelecer a causa
e o momento de sua morte. Bastaria que enviasse o corpo ao meu
estúdio de...
O mestre não terminou a frase. Giberto, Andrea, Benedetto e
eu alcançamos o círculo de curiosos nesse preciso momento. O
caolho caminhava à frente, mudo, com esse olhar das feras antes
de atacar. Quando seu único olho distinguiu a túnica branca de
Leonardo junto ao corpo do irmão Alessandro, empalideceu.
- Nem ouse profanar o corpo de um servo de São Domingos,
Mestre Leonardo! - gritou antes de alcançá-lo.
O toscano virou a cabeça para onde estávamos. Um segundo
depois nos saudava com uma reverência e nos apresentava suas
desculpas:
- Sinto, padre Benedetto. Lamento esta morte tanto como o
senhor.
O caolho lançou um olhar ao rosto inerte de frei Alessandro,
reconhecendo-o de imediato. Parecia impressionado. Mas não tanto
como eu. Apalpei espantado suas mãos frias e rígidas, incapaz de
crer que estivesse morto. E o que pensar de Leonardo? Que fazia
ali o mestre pintor, mostrando tanta preocupação pelo
bibliotecário? Seria a confirmação definitiva de que frei Alessandro
e ele mantiveram estreito relacionamento? Benzi-me, jurando
esclarecer o assunto, enquanto o toscano murmurava seus
pêsames:
- Que o Senhor o acolha em sua glória - disse.
- E o que mais deseja para ele? - frei Benedetto, furioso,
encarou o gigante com brio. - No fim das contas, não passou de um
inocente útil para o senhor, mestre! Admita-o agora, quando ainda
o tem de corpo presente.
- O senhor sempre o subestimou, padre.
- Não tanto como o senhor.
Uma leve agitação ameaçou a fortaleza do mestre.
- Além disso - prosseguiu Benedetto -, me surpreende que
emita, apreciação tão prematura sobre sua morte. É impróprio
para sua fama. Nosso bibliotecário amava a vida, porque haveria
de tirá-la?
Aguardei a resposta, mas o toscano não abriu a boca.
Provavelmente percebeu o jogo do caolho. Os frades de Santa
Maria tratariam de convencer a polícia de que nosso irmão caíra
numa emboscada. Aceitar a hipótese do suicídio seria desonrá-lo e,
ainda por cima, tornar inviável o sepultamento em solo sagrado.
Com cuidado, tiramos o cadáver de seu improvisado patíbulo,
bibliotecário conservava aquele curioso trejeito desenhado no
rosto; era um moço brincalhão, quase divertido, que contrastava
com seu olhar descomposto, cheio de terror. O toscano, num gesto
piedoso que ninguém esperava, aproximou-se dele, baixou-lhe as
pálpebras e murmurou-lhe algo ao ouvido.
- Também fala com os mortos, Mestre Leonardo?
A cabeça de Andrea Rho, a um palmo da do pintor,
escarneceu gesto.
- Sim, capitão. Já lhe disse que éramos bons amigos.
E, dizendo aquilo, agarrou a mão do adolescente de cachos
louros e olhar transparente com quem viera e dirigiu os passos
para o beco do Galo.
23
Ainda não expliquei por que reagi assim. Ao ver o mestre
Leonardo se afastar entre a multidão, me lembrei do conselho de
frei Alessandro: "Em quem menos pensar terá uma solução para
seu enigma." E se a solução para a identidade do Augure a tivesse
seu maior inimigo?, pensei. Que poderia perder se o consultasse?
Acaso enfraqueceria minha investigação trocar um par de frases
com aquele gigante de túnica branca e olhos azuis?
Foi quando decidi tentar.
Deixei frei Benedetto, o irmão Giberto e Andrea arregaçando
o hábito e recolhendo os restos mortais de frei Alessandro.
Desculpei-me como pude e acelerei o passo para o mesmo beco por
onde acabara de entrar o mestre. Ao virar a esquina e não vê-lo,
decidi correr ladeira acima.
- Dá-se muito trabalho para deter um pobre artista - o
vozeirão do mestre soou de repente em minhas costas. Deteve-se
para remexer numa barraca de verduras e eu passei ao largo sem
advertir sua presença.
Leonardo e seu efebo sorriram por sua vez, estirando os
lábios da mesma forma e entrecerrando os mesmos olhos claros em
uníssono.
- Vou averiguar - prosseguiu o gigante, enquanto sopesava
uns alhos.
- Manda o lacaio do prior, o frade de um único olho,
Benedetto, para perguntar-me se sei algo mais sobre a morte de
seu irmão. Engano-me?
- Engana-se, mestre - esclareci, enquanto recuava parte do
caminho - Não é o padre Benedetto quem me manda, e sim minha
própria curiosidade.
- Sua curiosidade?
Senti uma estranha sensação no estômago. De perto,
Leonardo era mais atraente do que me parecera na tribuna das
autoridades. Suas feições retas revelavam um homem de
princípios. Tinha mãos grandes e fortes, capazes de arrancar um
dente molar se fosse preciso... ou de dividir a uma parede com seus
desenhos mágicos. Quando me atravesso com seu olhar, tive a
impressão extraordinária de que não poderia mentir para ele.
- Permita-me que me apresente - respirei de novo. - Na
realidade não pertenço à comunidade de Santa Maria. Sou apenas
um hóspede. Chamo-me Agustín Leyre. Padre Leyre.
- E então?
- Estou de passagem por Milão. Mas não queria perder a
ocasião de manifestar o quanto admiro seu trabalho no refeitório.
Desejaria vê-lo em circunstância mais propícia, mas Deus dispõe à
sua vontade.
- O refeitório, sim - o gigante desviou o olhar para o solo. - É
uma lástima que nem todos os frades de Santa Maria pensem como
o senhor Frei Alessandro também o admirava.
- Sei, irmão. Sei. O irmão bibliotecário me socorreu em
algumas etapas difíceis de meu trabalho.
- É a isso a que se referia o padre Benedetto quando disse que
lhe serviu de inocente útil?
Leonardo me observou com cuidado, como se estudasse que
palavras devia empregar com o homem que tinha diante de si.
Talvez não me identificasse como o inquisidor de que sem dúvida
os seus discípulos lhe teriam falado. Mas se identificou, fez com
que eu não me desse conta.
Talvez ainda não saiba, padre, mas frei Alessandro me foi de
grande ajuda para concluir um dos personagens mais importantes
de Cenacolo. E foi tão generoso, tão desprendido comigo, como
para posar sem nada me pedir em troca e aceitar as dificuldades
que lhe surgiriam com seu gesto.
- Dificuldades? - lamentei não entender. - Que dificuldades?
Leonardo levantou as sobrancelhas ao perceber meu gesto de
assombro. Suponho que não concebia como me passava
despercebido um detalhe de tanto alcance. E, com aquele tom
sereno e magnífico, dignou-se a me ilustrar:
- O trabalho de um pintor é mais duro do que as pessoas
acreditam disse, muito sério. - Durante meses vagamos daqui para
ali em busca de um gesto, um perfil, um rosto adequado às nossas
idéias e que nos sirva de modelo. Para mim faltava um Judas. Um
homem que tivesse mal gravado no rosto; mas não um mal
qualquer: necessitava de lealdade inteligente e desperta, que
refletisse a luta interna de Judas para cumprir a missão confiada a
ele pelo próprio Deus. Concordará comigo que, sem a traição de
Judas, Cristo nunca consumaria seu destino.
- E o encontrou?
- Como? - o gigante se sobressaltou. - Ainda não entendeu?
Frei Alessandro foi meu modelo para Judas! Seu rosto tinha todas
as características que eu buscava. Era um homem inteligente mas
atormentada de expressão dura, adelgaçada, que quase ofendia
quando fitava alguém.
- E se deixou retratar como Judas? - perguntei espantado.
- De bom grado, padre. E não foi o único. Outros padres da
comunidade posaram para este mural. Só escolhi aqueles de
expressão pura.
- Mas Judas... - protestei.
- Compreendo seu espanto, padre. Mas deve saber que frei
Alessandro sempre soube ao que se expunha. Estava consciente de
que ninguém em sua comunidade voltaria a olhá-lo da mesma
maneira depois de se prestar a algo assim.
- É compreensível, não acredita?
- Leonardo meditou um momento se devia continuar falando,
e, enquanto segurava de novo a mão da criança, acrescentou algo
que pareceu provir do mais profundo de seus pensamentos:
- O que não se podia prever e muito menos desejar -
sussurrou - que frei Alessandro fosse terminar seus dias como o
próprio Iscariotes enforcado e em solidão, longe de seus
companheiros e quase repudiado por todos. Por acaso, não reparou
também nessa estranha coincidência padre?
- Até agora, não.
- Nesta cidade, padre Leyre, logo aprenderá que nada ocorre
acaso. Todas as aparências enganam. A verdade está onde menos
se espera.
E, dizendo aquilo, sem me atrever a perguntar-lhe o que
falara com o frei Alessandro na noite anterior à sua morte, nem
perguntar se alguma vez ouvira falar de um feroz inimigo seu que
alguns conhecíamos como Augure, o mestre esfumou-se ladeira
acima.
24
Luini desejou fugir dali com todas as forças, mas sua escassa
vontade lhe falhou mais uma vez. Embora a consciência lhe pedisse
a gritos que escapasse daquela jovem, seu corpo gozava já com os
embates rítmicos de donna Elena. "E que mais ordenava a
consciência?", pensou para se arrepender um instante depois. O
mestre nunca se vira numa situação semelhante. Uma das mulhe-
res mais desejáveis do ducado o levou pelos atalhos da paixão sem
que ele sequer abrisse a boca. A filha dos Crivelli era bela; sem
dúvida a Madalena de rosto mais angelical que jamais
contemplara. E, no entanto, Luini não podia evitar se sentir como
Adão arrastado à perdição pela mão de uma Eva luxuriosa. Ainda
sentia como mordia sua maçã envenenada e seu domínio o fazia
perder uma inocência guardada com tanto zelo até então. Por
estranho que pareça, o mestre Bernardino se contava entre os
poucos que ainda acreditavam que a verdadeira árvore da ciência
do bem e do mal foi oculta por Deus entre as pernas de uma
mulher e que comer dela, ainda que fosse uma única vez, equivalia
à condenação eterna.
- Miserere domine... - desesperou-se.
Se donna Elena lhe desse então um segundo de descanso, o
pintor cairia no choro. Mas não: vermelho como o chapéu de um
cardeal, ele cedia a cada um dos pedidos da condessinha,
horrorizando-se quando ela brincando sobre sua virilidade,
perguntava de vez em quando pelas virtudes de Maria Madalena.
- Conte-me, conte-me tudo! - ofegava e ria com olhar de
desejo. - explique-me por que se interessa tanto por Madalena!
Antecipe-me o medo de Leonardo!
Luini, sufocado, com as calças abaixo dos joelhos e sentado
no mesmo divã que momentos antes era ocupado por donna
Lucrezia Crivelli fazia verdadeiros esforços para não gaguejar.
- Mas Elena - respondeu sem coragem -, assim não posso.
- Prometa-me que me contará!
Luini não respondeu.
- Prometa-me!
E aquele mestre pecador, extenuado, terminou prometendo
vezes por Cristo. Só Deus sabe por quê.
Quando tudo terminou e pôde recuperar o fôlego, o pintor se
sentou lentamente e se vestiu. Estava confuso. Perturbado. O titã
Leonardo já o advertira sobre o perigo das filhas da serpente e
como se entregar elas era faltar à suprema obrigação de todo
pintor, violando o sagrada preceito da criação solitária. "Só se você
se mantiver longe da mulher ou da amante poderá se dedicar de
corpo e alma à suprema arte da criação - escreveu. - "Se, pelo
contrário, tem mulher, dividirá seus dons por dois. Por três se tem
um filho, e o perderá se trouxer duas ou mais criaturas ao mundo."
Aquelas censuras começaram a emergir do interior sua mente,
fazendo-o sentir-se fraco e indigno. Pecara. Em apenas alguns
minutos sua reputação de homem perfeito se arruinara, cedendo
lugar uma má paródia de si mesmo. E o mal era irreversível.
Donna Elena, ainda sem abrigo, no divã, olhava o pintor sem
compreender por que, de repente, ficara rígido.
- Você está bem? - perguntou com doçura.
O mestre continuou quieto.
- Por acaso não o agradei?
Luini, com os olhos úmidos e uma expressão contida, tentou;
focar o remorso que o angustiava. O que podia dizer àquela
criatura. Acaso ela entenderia sua sensação de fracasso, de
debilidade diante da tentação? E, o que era pior: não acabara de
prometer-lhe, invocar Jesus por testemunha, que revelaria o
segredo que tanto desejava conhecer ? E como faria? Não tinha ele
tanto desejo como ela própria; dando as costas à amante,
amaldiçoou sua fraqueza. Que ia fazer? Caira duas vezes, numa
mesma tarde, faltando à castidade primeiro e a palavra depois?
- Você está triste, meu amor - sussurrou, acariciando-lhe os
ombros - O pintor fechou os olhos, ainda incapaz de articular
palavra.
- Em compensação, você me encheu de felicidade. Sente-se
culpado por me dar o que eu pedia aos gritos? Sente-se mal por
agradar uma dama?
A condessinha, lendo no silêncio as funestas idéias daquele
varão desfeito, tentou aliviar-lhe a consciência:
- Não deve me censurar nada, mestre Luini. Outros, como frei
Filippo Lippi, aproveitaram seu trabalho em conventos para
seduzir jovens noviças. E ele era um clérigo!
- O que está dizendo?
- Oh! - riu ao ver o amante sobressaltado. - Deveria conhecer
a história, mestre. O padre Lippi morreu há menos de trinta anos e
seguramente o seu Leonardo o conheceu em Florença. Era muito
conhecido.
- E você dizia que frei Filippo...
- Sem dúvida - brincou. - No convento de Santa Margarita, en-
quanto terminava uns quadros, seduziu uma tal de Lucrezia Buti e
até teve um filho com ela. Não sabia? Ora, vamos! Muitos
acreditam que a desonrada família Buti foi a que o enviou ao outro
mundo com uma boa dose de arsênico. Está vendo? Você não é
culpado de nada. Não quebrou nenhum voto sagrado. Deu amor a
quem pediu!
O mestre duvidou. Ainda esfrangalhado, era capaz de sentir
que a bela Elena tentava ajudá-lo. Comovido, seus lábios
articularam por fim uma frase inteligível:
- Elena... Se ainda deseja, se ainda quer descobrir esse
mistério que tanto a intriga e inspira o retrato que estou pintando,
contarei o que sei do segredo de Maria Madalena.
A condessinha o observou com curiosidade. Luini parecia
extrair a dor de cada uma de suas palavras.
- Você é um homem de honra. Cumprirá sua promessa. Eu sei.
- Sim. Mas me prometa agora que nunca mais voltará a me
tocar, nem falará com ninguém sobre o que direi.
- E esse segredo, mestre, me fará conhecer a razão de sua
tristeza?
O pintor procurou o olhar transparente da condessinha, que
mal sustentava. Aquela insistente preocupação de Elena Crivelli
por seu bem-estar o desarmou. Recordou então o que ouvira dizer
da estirpe Madalenas: que seu olhar era capaz de amolecer o
coração de qualquer homem, graças ao seu poderoso feitiço de
amor. Os trovadores diziam a verdade. Como não mereceria aquela
criatura conhecer a verdade sobre sua origem? Seria tão
desalmado para não lhe dizer onde estava o caminho que devia
percorrer para descobri-la?
E assim Bernardino Luini, forçando seu melhor sorriso,
assentiu por fim aos seus desejos.
25
O segredo de Maria Madalena segundo o mestre Luini.
- Espere, pois - disse. "Eu acabara de fazer treze anos quando
o mestre Leonardo me aceitou em sua bottega de Florença. Meu
pai, um soldado da fortuna que reunira certa quantidade de
dinheiro graças aos Visconti de Milão, achou conveniente me
instruir na arte da pintura antes de me consagrar à vida monástica
ou, pelo menos, a uma existência secular regida pelas leis de Deus.
Ele, então, enxergava com mais clareza do que eu: desejava me
afastar do fragor da guerra e me proteger sob o espesso manto da
Igreja. E como em Milão não existia nenhuma boa oficina de belas-
artes, fixou-me um dote anual e me enviou à suntuosa Florença,
ainda governada por Lorenzo, o Magnífico. "Ali começou tudo."
Mestre Leonardo da Vinci me instalou num casarão enorme e
descuidado. Por fora era preto. Assustava. Por dentro, em
compensação, era luminoso e quase desprovido de paredes. Seus
quartos foram desfeitos para dar lugar a uma sucessão de grandes
espaços invadidos pelos artefatos mais estranhos que alguém
possa imaginar. No andar térreo, junto ao saguão, dava-se o
encontro de coleções inteiras de viveiros de plantas, vasos de barro
e gaiolas com cotovias, faisões e até falcões. Ao lado, empilhavam-
se moldes para fundir cabeças, patas de cavalo e corpos de tritão
feitos em bronze. Havia espelhos por toda parte. E velas também.
Para se chegar à cozinha se devia atravessar uma galeria de
madeira e hélices amedrontavam qualquer um; e só de pensar no
que o mestre ia esconder no desvão me enchia de pavor.
Na casa também viviam outros discípulos do mestre. Todos
eram mais velhos do que eu e, assim, depois das brincadeiras dos
primeiros, conquistei uma posição mais ou menos confortável e
pude começar a me aclimatar à nova vida. Creio que Leonardo
simpatizou comigo. Ensinou-me a ler e a escrever latim e grego
clássicos e me explicou sem essa preparação seria inútil me
mostrar outra forma de escrita qual chamava de 'ciência das
imagens'.
"Imagina, Elena? Meus conhecimentos se multiplicaram por
três inclusive coisas tão peculiares como botânica ou astrologia.
Naquele ano a divisa do mestre era lege, lege, relege, ora, labora
et invenies,* ["Leia, leia, releia, ore, trabalhe e encontrará."] e suas
leituras favoritas (e, portanto, também as nossas) eram as vidas de
santos de Jacopo da Varazze" Tommaso, Andrea e os demais
aprendizes odiavam aqueles escritos, mas para mim foram um
achado. Aprendi coisas incríveis com ele suas páginas me fizeram
desfrutar dezenas de notícias curiosas, milagres e aventuras de
santos, discípulos e apóstolos que jamais teria imaginado que
existissem. Por exemplo, li ali que Tiago Menor era chamado de
'irmão do Senhor' porque se parecia com Ele como um floco de
neve com outro floco.
Quando Judas acertou com o sinédrio a encontrar-se e beijar
Nosso Senhor no monte das Oliveiras temia que os sicários
confundissem o verdadeiro Jesus com seu quase gêmeo Tiago.
"Disto, naturalmente, os evangelhos jamais disseram uma
palavra.
"Também me deleitei com as aventuras do apóstolo
Bartolome. Aquele discípulo com aspecto de gladiador manteve
aterrorizados os Doze graças à sua incrível capacidade de se
adiantar ao futuro. No entanto, tanta ciência lhe serviu de pouco:
não soube prever que o estraçalhariam vivo na Índia.
"Aquelas revelações se sedimentaram dentro de mim,
dotando-me de uma capacidade única de imaginar os rostos e o
caráter de pessoas tão importantes para nossa fé. Era o que
Leonardo queria: estimular nossa visão das histórias sagradas e
nos dotar desse dom especial para transferi-las às nossas telas.
Entregou-me então uma lista de virtudes apostólicas extraída de
Jacopo da Varazze que ainda conservo. Olhe: Bartolomeu de
Mirabilis, o prodigioso, por sua capacidade de se antecipar ao
futuro. O irmão gêmeo de Jesus, João, foi chamado de Venustus, o
cheio de Graça..."
Elena, divertia-se ao perceber a veneração com que Luini
desdobrava aquele pedaço de papel guardado num bolsinho
costurado em sua camisola, arrancou-o das mãos e o leu sem
entendê-lo muito bem:
Bartolomeu Mirabilis, O prodigioso
Santiago Menor Venustus, O cheio de graça
André Temperator, O que previne
Judas Iscariote, Nefandus, O abominável
Pedro Exosus, O que odeia
João Mysticus, O que conhece o mistério
Tomé Litator, O que aplaca os deuses
Tiago Maior Oboediens, O que obedece
Filipe Sapiens, O amante das coisas elevadas
Mateus Navus, O diligente
Tadeu Occultator, O que oculta
Simão Confector, O que leva a termo
- E guardou isto por tantos anos? - disse enquanto brincava
com aquele papel sujo.
- Sim. Trata-se de uma das lições mais importantes do mestre
Leonardo.
- Pois já não o verá mais - riu.
Luini não quis se dar por vencido. A provocadora Elena
levantava a lista por cima da cabeça, esperando que o pintor se
atirasse sobre ela. Não caiu na armadilha. Vira tantas vezes aquela
lista, estudara-a com tão intensa devoção tentando extrair de suas
qualidades os perfis dos Doze, que já não necessitava dela. Sabia-a
de cor.
- E a Madalena? - perguntou por fim a condessinha algo
decepcionada. - Ela não está entre estes nomes. Quando me falará
dela?
Luini, com o olhar perdido no crepitar da lareira, prosseguiu
seu relato:
- Como disse, estudar o livro de frei Jacopo da Varazze me
marcou. Mundo a fora. Com o tempo reconheço que, de todos seus
relatos o que mais me chamou a atenção foi o de Maria Madalena.
Por alguma razão, mestre Leonardo quis que eu o estudasse com
especial atenção. Foi o que fiz. Naquela época, as revelações com
que o mestre completou a lição do bispo de Gênova não me
chocaram em absoluto. Aos treze anos ainda não distinguia entre
ortodoxia e heterodoxia, entre o aceito pela Igreja e o inaceitável.
Talvez, por isso, a primeira coisa que me ficou gravada foi o
significado de seu nome: Maria Madalena queria dizer amar
amargo a iluminadora e também 'iluminada'. Sobre a primeira
expressão, o bispo escreveu que tinha a ver com a torrente de
lágrimas que esta mulher derramou em vida. Amou com todo seu
coração o Filho de Deus, mas Ele viera ao mundo com uma missão
mais importante do que formar família com ela, e assim Madalena
teve de aprender a gostar dele de uma maneira diferente.
Leonardo me mostrou que o melhor símbolo para me lembrar as
virtudes desta mulher era o nó. Já no tempo dos egípcios os nós se
associou à magia da deusa Isis. Explicou-me que em seus mitos Isis
ajudou a ressuscitar Osíris e se valeu de sua destreza em desfazer
nós para conseguir seu objetivo. Madalena foi a única a ajudar
Cristo quando voltou à vida, e é justo pensar que também ela devia
ser hábil na ciência dos nós. Uma ciência, disse o mestre, não
isenta de amargura, pois quem não se angustia ao se deparar com
um laço bem amarrado no momento de desfazê-lo?
'"Quando se deparar com um nó pintado bem visível numa
tela lembre-se de que essa obra foi dedicada a Madalena', ensinou-
me.
"Quanto às outras duas acepções de seu nome, mais
profundas misteriosas, tinham a ver com um conceito caro ao
mestre Leonardo de que nos falava assiduamente: a luz. Segundo
ele, a luz é o único lugar em que Deus descansa. O Pai é luz. O céu
é luz. Tudo, no fundo, é luz. Por isso, repetia tantas vezes que se
os homens aprendessem a dominá-la seriam capazes de evocar o
Pai e falar com ele sempre que necessitasse!
"O que então não sabia era que essa idéia da luz como
transmissor de nossos diálogos com Deus chegara à Europa graças
exatamente Madalena.
"Também vou explicar:
"Depois da morte de Jesus no Gólgota, Maria Madalena, José
Arimatéia, João o discípulo amado e um pequeno número de fiéis
seguidores do Messias fugiram para Alexandria para se proteger
da repressão que se abatera sobre eles. Alguns ficaram no Egito e
fundaram as primeiras e mais sábias comunidades cristãs que se
recordam, mas nunca a depositária dos grandes segredos de seu
amado, não se sentia assim tão perto de Jerusalém. Por isso,
acabou se ocultando na França, em cuja costa penetrou buscando
refúgio mais seguro."
- E que segredos eram esses?
A pergunta da condessinha tirou o mestre da concentração.
- Grandes segredos, Elena. Tão grandes que desde então só
poucos e seletos mortais tiveram acesso a eles.
A jovem abriu os olhos.
- São os segredos que Jesus revelou a ela depois de
ressuscitar?
Luini assentiu.
- São esses. Mas, ainda não me foram revelados.
Depois, o mestre retomou seu relato:
- Maria Madalena, também chamada de Betânia, pisou na
terra ao sul da França num povoado que depois se chamou Les
Saintes-Maries de La Mer, porque foram várias as Marias que
chegaram com ela. Ali pregou a boa nova de Jesus e instruiu as
pessoas no "segredo da luz", aceito de imediato por hereges como
os albigenses (ou cátaros), e que acabou por se converter na nova
padroeira da França, Notre-Dame della Lumière.
"Mas a época de revelações pacíficas logo acabou. A Igreja
sentiu que essas idéias representavam um perigo para a
hegemonia de Roma e quis pôr fim à sua expansão. De seu ponto
de vista era lógico: como poderia algum papa aceitar a existência
de comunidades cristãs que dispensam uma cúria regular para se
dirigir a Deus? Poderia acaso o representante de Cristo na Terra
ficar em inferioridade - ou sequer igualdade - de condições em
relação à Madalena? E o que dizer de seus seguidores? Não era
idolatria reverenciar algo como a luz? A Igreja, pois, execrou de
imediato aquela mulher que amou Jesus e conheceu como nenhum
outro mortal sua condição humana.
"Deixe-me, querida Elena, explicar mais uma coisa: Um dia do
início de 1479, quando Florença ainda se recuperava do furioso
ataque contra nosso amado Lorenzo de Médicis*, o mestre
Leonardo recebeu uma estranha visita em sua bottega. Um homem
com seus cinquenta anos chegou ao nosso ateliê quando o Sol da
manhã estava alto. Envaidecia-se da cabeleira loura e encaracolada
e se pavoneava sua parecença com os querubins que então
esboçávamos com lentidão em nossas telas. Aquele estranho tinha
um trato afável e estava impecavelmente vestido de preto. Chegou
sem se anunciar e vagueou pelos domínios do mestre como se
fossem seus. Tomou até a liberdade de olhar um por um os
trabalhos que estávamos fazendo. O meu por casualidade era o
retrato de uma Madalena que segurava com as mãos um recipiente
de alabastro, que pareceu agradar sobremaneira o visitante:
*[Luini se refere à célebre "conjuração dos Pazzi" que tentou
acabar com a vida de Lorenzo , o Magnífico, na catedral de
Florença. Lorenzo conseguiu escapar, mas não seu irmão Giuliano,
a quem atacaram com vinte e sete punhaladas. A representação
posterior deste crime foi uma das mais profundas do século XV. (N.
do editor espanhol)]
'"Vejo que Mestre Leonardo sabe ensiná-los!', aplaudiu. 'Seu
esboço tem grande possibilidade... Continue assim.'
"Senti-me lisonjeado.
"'Certamente', disse depois, "sabe qual é o significado do
frasco que sua Madalena está segurando?'
"Neguei com a cabeça.
'"Está no capítulo catorze do Evangelho de São Marcos,
rapaz, e a mulher ungiu Jesus quebrando, sobre sua cabeleira, o
frasco com unguento, como uma sacerdotisa faria com um
verdadeiro rei... Um; mortal, de carne e osso.'
"O mestre chegou nesse momento. Para surpresa de todos,
não se ofendeu ao ver um intruso em sua bottega, mas seu rosto se
iluminou. Logo que se reconheceram se fundiram num abraço,
beijaram-se nas faces e começaram a falar ali mesmo sobre o
divino e o humano. Então escutei pela primeira vez algo que jamais
imaginaria sobre a verdadeira Maria Madalena:
'"Os trabalhos prosseguem em bom ritmo, querido Leonardo',
que se, ufanando , o querubim. 'Embora desde a morte de Cosme, o
Velho, tenho a impressão de que nossos esforços podem cair num
saco sem fundo a qualquer momento. A república de Florença,
estou certo, passara por provações terríveis em breve.'
"O mestre segurou as mãos do visitante e as apertou contra
as suas, grandes como as de um ferreiro.
'"Num saco sem fundo, você diz?', seu vozeirão sacudiu tudo.
A sua Academia é um templo do saber tão sólido como as pirâmide
Egito! Ou não é certo que em poucos anos se converteu em lugar
de peregrinação favorito de jovens que desejam saber mais coisas
sobre nossos brilhantes antepassados? Você traduziu com êxito
livros de plotino, Dionísio, Platão e até do próprio Hermes
Trismegisto, e verteu para o latim os segredos dos antigos faraós.
Como vai entrar água em toda essa bagagem? Você é o pensador
mais notável de Florença, amigo velho!'
"O homem de burel preto enrubesceu.
"'Suas palavras são amáveis, amigo Leonardo. No entanto,
nossa luta para recuperar o saber que a Humanidade perdeu nos
míticos tempos da Idade de Ouro passa por seu momento mais
fraco. Por isso vim ver você.'
'"Você fala de fracasso? Você?'
'"Você sabe qual é minha obsessão desde que traduzi os livros
de Platão para o velho Cosme, não é verdade?'
'"Claro. A sua velha idéia da imortalidade da alma! Todo o
mundo honrará seu nome por esse achado! Posso visualizá-lo
esculpido em letras douradas sobre grandes arcos de triunfo:
Marsilio Ficino, herói que nos devolveu a dignidade. Até o papa
cumulará você de bênçãos!' "O querubim riu:
'"Sempre tão exagerado, Leonardo.' "
'É o que você acredita?'
'Na realidade o mérito é de Pitágoras, de Sócrates, de Platão
e até de Aristóteles. Não meu. Eu só os verti ao latim para que
todos pudessem ter acesso a esse saber.'
'Então, Marsilio, o que o preocupa?'
'Preocupa-me o papa, mestre. Há várias razões para acreditar
que foi ele quem mandou assassinar Lorenzo de Médicis na
catedral. E estou seguro de que não foram apenas ambições
políticas que motivaram seu plano insensato, e sim religiosas.'
Leonardo arqueou suas grossas sobrancelhas, sem se atrever
a interrompê-lo.
Dura já vários meses esse maldito interdicto na cidade. Desde
o tratado dos Médicis a situação ficou insustentável. As igrejas não
podem celebrar os sacramentos ou atos de culto, e o pior é que
esta pressão continuará até que eu me renda...' Você?', o titã
respirou. 'E o que você tem a ver com isto?'
'"O papa quer que a Academia renuncie à posse de uma série
de textos e documentos antigos em que se afirmam coisas
contrárias à doutrina de Roma. A conjuração contra Lorenzo
buscava, entre outras coisas, apoderar-se deles pela força. Em
Roma estão especialmente interessados em nos arrebatar os
escritos apócrifos do apóstolo João que, como você sabe, estão em
nossas mãos há algum tempo.'
"'Entendo...'
"Meu mestre cofiou a barba como fazia sempre que meditava
alguma coisa.
"'E que informações você teme perder, Marsilio?', perguntou.
"'Esses escritos, cópias de cópias de linhas inéditas do
apóstolo amado, falam-nos do que aconteceu com os Doze depois
da morte de Jesus. Segundo ele, as rédeas da primeira Igreja, da
original, nunca estiveram nas mãos de Pedro, e sim de Tiago. Você
imagina? A legitimidade do papa saltaria pelos ares!'
'"E você acredita que em Roma sabem da existência desses
papéis e que pretendem se apoderar deles a qualquer preço...'
"O querubim assentiu com a cabeça, acrescentando algo
mais:
"'Os textos de João não param aí.'
"'Ah, não?'
'"Dizem que além da Igreja de Tiago, entre os discípulos
nasceu outra dissidência liderada por Maria Madalena e seguida
pelo próprio João.
"O mestre conteve a expressão, enquanto o homem do burel
prosseguia:
'"Segundo João, Madalena sempre esteve bem perto de Jesus.
Tanto que muitos acreditavam que ela seria a continuadora de seus
ensinamentos, e não o bando de discípulos covardes que o
renegaram nos momentos de perigo...'
"'E por que você me conta tudo isto agora?'
'"Porque você, Leonardo, foi escolhido como depositário
desta: informação.'
"O querubim de olhar nobre respirou forte antes de
prosseguir: '"Sei como é perigoso conservar estes textos. Poderiam
levar qualquer um à fogueira. No entanto, antes de os destruir
peço-lhe que estude, que aprenda o que possa sobre essa Igreja da
Madalena e de Jesus de que estou falando, e à medida que tenha
oportunidade vá deixando a essência destes novos Evangelhos em
suas obras. Assim se cumprirá o velho mandato bíblico: quem
tenha olhos para ver...' '...que veja.'
"Leonardo sorriu. Não pensou muito. Naquela mesma tarde
prometeu ao querubim se encarregar do legado. Sei até que
voltaram a se encontrar e que o homem do burel preto entregou ao
mestre livros e papéis que depois estudou com atenção. Mais
tarde, ante o rumo dos acontecimentos, a ascensão do frade
Savonarola ao poder e a queda da casa Médicis, nós nos mudamos
para Milão a serviço do duque e começamos a trabalhar nas mais
diversas tarefas. Da pintura passamos ao desenho e à construção
de máquinas de combate ou de engenhos para voar. Mas aquele
segredo, aquela estranha revelação que testemunhei na bottega de
Leonardo jamais me saiu da memória.
"Quer que a surpreenda com algo mais, Elena?
"O mestre não voltou a falar disso com nenhum de seus
aprendizes e creio que agora ele está justamente cumprindo a
promessa feita àquele Marsilio Ficino em Florença. Digo-lhe com o
coração na mão: não há dia em que visite seu trabalho no refeitório
dos dominicanos sem me lembrar das últimas palavras que ele
disse ao querubim naquela longíngua tarde de inverno...
"'Quando você vir numa mesma pintura o rosto de João e o
seu próprio, amigo Marsilio, saberá que é aí, e não em outro lugar
qualquer, onde decidi esconder o segredo que me confiou.'
"E sabe? Já encontrei o rosto do querubim na Última ceia"
26
Enterramos o irmão bibliotecário no Claustro dos Mortos
pouco antes das vésperas de terça-feira, 17 de janeiro. Não
queriam que seu corpo começasse a se decompor na capela em que
foi velado e se decidiu enterrá-lo rapidamente. Dois noviços o
envolveram num lençol branco, que amarraram com correias, e o
desceram ao fundo de uma cavidade e que não tardou a se cobrir
de terra e neve. Foi uma cerimônia rápida, sem protocolo, uma
despedida apressada, apenas justificada pela nossa obrigação de
cear antes que escurecesse. E enquanto os frades sussurravam
sobre o arroz com legumes que os esperava ou os pasteizinhos de
mel que ainda sobravam do Natal, um estranho desgosto se
apoderava de mim. Por que motivo o prior e seu séquito -
tesoureiro, cozinheiro, Benedetto o caolho e o responsável pelo
scríptorium presidiram o segundo enterro em Santa Maria em
menos de uma semana como se fosse uma coisa corriqueira? Por
que se importavam tão pouco com o irmão Alessandro? Ninguém ia
derramar uma lágrima por ele?
Só o padre Bandello teve, à sobremesa, um indício de
humanidade; em relação ao infeliz que jazia sob nossos pés. Em
seu breve sermão insinuou que tinha provas para demonstrar que
ele fora vítima de complô de algum demente que se instalara em
Milão naqueles dias. "Por isso, ninguém como ele merece sepultura
cristã neste lugar. Bandello, no entanto, nos instruiu seriamente:
"Não acreditem nas mentiras que já circulam pela cidade", disse
sem levantar a vista do caixão funerário, enquanto o via descer
pouco a pouco. "O irmão Trivulzio que Deus o tenha em sua glória,
morreu mártir nas mãos de um criminoso abominável que cedo ou
tarde será castigado. Eu próprio farei com que assim seja."
Crime ou suicídio, por mais que tratasse de aplacar minhas
suspeitas, não era fácil aceitar que dois enterros em tão pouco
tempo fossem coisa normal em Santa Maria. As últimas palavras
que o mestre Leonardo me dirigiu antes de se encaminhar para seu
ateliê me bateram na mente como o trovão que pressagia a
tempestade:
- Nessa cidade - disse antes de se despedir no beco do Galo -
nada acontece por acaso. Jamais esqueça.
Naquele dia não ceei.
Não pude.
O restante dos frades, menos escrupulosos do que este pobre
servo de Cristo, apressaram-se em encher o estômago num salão
contíguo preparado como sala de jantar, dando conta das sobras do
ágape oferecido pelo duque no dia do enterro de sua mulher. Com
o refeitório fora de uso por causa dos andaimes e o cheiro do
verniz, os costumes dos frades estavam transtornados há anos e já
quase achavam normal subir ao primeiro andar para fazer as
refeições.
Entre tanta coisa provisória, não demorei a descobrir algo
bom: enquanto durasse a pintura, sabia que a peça da Última ceia
seria o esconderijo perfeito para me retirar e meditar, na hora da
comida. Nenhum frade perturbaria ali meus pensamentos; e
ninguém alheio ao convento bisbilhotaria num local em obras, frio
e poeirento como aquele.
E para ali, com a mente nos dias compartilhados com frei
Alessandro e na adivinhação interrompida que nos ocupou, dirigi
meus passos para rezar pelo descanso de sua alma.
A sala estava vazia. As últimas luzes da tarde mal iluminavam
a parte inferior do mural do toscano, destacando os pés de Nosso
Senhor, que apareciam cruzados, um sobre o outro. Era aquilo uma
antevisão do que Cristo estava a ponto de viver no Calvário? Ou o
mestre dispusera assim os pés por alguma outra obscura razão?
Benzi-me. A fina claridade filtrada pelas colunas irregulares do
pátio vizinho conferia uma impressão fantasmal à cena.
Só então, ao olhar para os comensais da Santa Ceia, dei-me
conta.
Era certo. Judas tinha a cara do irmão Alessandro.
Como não percebi antes?
O mau apóstolo estava ali sentado, à direita do galileu,
admirando tudo sua serena beleza. De fato, salvo a expressão de
assombro de Tiago Maior e a animada discussão que pareciam
manter Mateus, Tadeu e Simão no outro extremo da mesa, o
restante dos apóstolos fechava os lábios em silêncio. Havia algo de
irônico pensar que naquele preciso momento a alma de frei
Alessandro poderia estar contemplando de verdade o rosto do Pai
Eterno.
Se, como Judas, o bibliotecário decidiu tirar a própria vida e
Bandello se enganava presumindo sua inocência, seu destino a
essa hora não seria a Glória e sim os tormentos perpétuos do
inferno.
Ao percorrer meu olhar pelo mural, um novo detalhe captou
minha atenção. Judas e Nosso Senhor pareciam disputar um
pedaço de pão, talvez uma fruta, que nenhum dos dois conseguia
alcançar. O traidor, que segurava com a direita a bolsa de moedas
da infâmia, estendia a mão esquerda até o exterior da mesa
tentando colher algo. O Senhor, alheio àquele gesto, estendia sua
direita na mesma direção. Que podia haver ali que interessasse a
um e a outro? Que podia roubar Judas do Nazareno nesse instante,
quando o Filho de Deus já sabia que o atraiçoara e que sua sorte
estava lançada?
Estava mergulhado nessas reflexões quando uma visita
inesperada interrompeu meus pensamentos:
- Aposto dez contra um que nada entendeu, não é verdade?
Respirei fundo. Uma figura que não fui capaz de identificar
atravessou a penumbra, coberto com uma capa de seda granada e
se deteve a poucos passos de mim:
- O senhor é o padre Leyre, por acaso? - perguntou.
Minhas pupilas se dilataram ao distinguir o rosto de uma
mulher, doce e arredondado, sob um barrete violeta emplumado.
Aquela donzela estava disfarçada de varão, algo não apenas ilegal
mas perigoso, e me olhava com uma curiosidade nada dissimulada.
Teria mais ou menos minha altura, e suas formas de fêmea
estavam bem dissimuladas sob sua ampla roupagem. Enquanto
aguardava minha resposta, uma de suas luvas de pele acariciava a
empunhadura brilhante de um florete.
Creio que gaguejei ao lhe responder.
- Não se preocupe, padre - sorriu. - A espada é para protegê-
lo. Não lhe causará dano. Vim procurá-lo porque todas suas
dúvidas merecem resposta. E para conhecê-la meu senhor acredita
que deve permanecer vivo.
Emudeci.
- Preciso que me acompanhe a um lugar mais discreto -
acrescentou. - Um assunto urgente reclama sua presença em outra
parte da cidade.
Seu convite não soou a ameaça, e sim a um pedido cortês. A
mulher de maneiras finas resplandecia sob sua capa, filtrando uma
força pouco habitual. Tinha um olhar desperto, felino, e uma
atitude firme de quem não aceitaria um não como resposta. E
embora as trevas já não se apossassem do local, a intrusa refez seu
caminho, arrastando-me pelo corredor que unia o refeitório à
igreja e por onde habitualmente só transitavam os frades. Como
podia conhecer tão bem esses aposentos? Quando desembocamos
na rua sem ter visto nem a sombra de um dominicano, a travestida
me intimou a apressar o passo.
Demoramos dez minutos para alcançar a igreja de Santo
Estêvão, quatro ou cinco quadras mais abaixo; então já era quase
noite. Rodeamos o templo pela direita e entramos numa ruazinha
que seria difícil de reparar sem um bom guia. A fachada de azulejo
de um importante palácio de dois andares, iluminada por duas
tochas recém-acesas, palpitava ao fundo do estreito passadiço.
Minha interlocutora, que não voltara a dizer palavra desde que
saímos de Santa Maria, apontou o caminho.
- Já chegamos? - perguntei.
Um mordomo com gibão de lã apertado no corpo e coberto
por um capuz veio ao nosso encontro.
- Se vossa paternidade concorda - disse cerimonioso -, eu o
levarei até meu senhor. Está impaciente por recebê-lo.
- Seu senhor?
- Assim é - desfez-se numa exagerada reverência.
A espadachim sorriu.
A mansão era decorada com peças de extraordinário valor.
Velhas colunas romanas de mármore, estátuas extraídas da terra
há não muito tempo, telas e tapetes se amontoavam em patamares
de escada e muros por toda a casa. Aquele imóvel soberbo se
organizava ao redor de um pátio central, amplo, com um labirinto
de sebes ao centro, para onde nos dirigimos. Estranhei aquele
silêncio. E muito mais quando saímos a céu aberto e as ruas do
labirinto estavam cheias de rostos graves que pareciam aguardar
alguma fatalidade.
De fato: ao atravessar o pátio distingui um grupo de
serventes que não tiravam o olhos de dois indivíduos que se
olhavam com ferocidade. Estavam em mangas de camisa,
seguravam dois ferros desembainhados de lâmina estreita e,
apesar do frio, suavam copiosamente. Minha anfitriã se descobriu e
contemplou, extasiada, a cena.
- Já começou - disse decepcionada. - Meu senhor queria que
visse isto.
- Isto? - me alarmei. - Um duelo?
Antes que pudesse replicar, o mais alto daqueles homens, um
varão corpulento, alto, de pouco cabelo e costas largas, lançou-se
sobre o mais jovem, descarregando nele toda a força de sua arma.
- Domine Jesus Christe - gritou o agredido enquanto detinha a
investida cruzando sua arma sobre o peito e abrindo os olhos de
puro terror.
- Rex Gloríael - respondeu o agressor.
Aquilo não era treinamento. A fúria do calvo crescia por
instantes, enquanto os metais se chocavam com dureza. Os golpes
eram rápidos, e duros. Clan, clan, clan. Cada impacto soava como
nota de uma melodia frenética e mortal.
- Mário Forzetta - voltou a me sussurrar a espadachim,
apontando para o jovem, que recuava agora para tomar ar - é um
aprendiz de pintor, de Ferrara. Quis enganar meu senhor num
negócio. O duelo é ao primeiro sangue, como na Espanha.
- Como na Espanha?
- Ganha o que ferir primeiro o adversário.
A luta recrudesceu. Um, dois, três, quatro novos golpes
ecoaram no pátio como canhonaços. O brilho metálico dos gumes
se projetava nas sacadas.
- Não é sua juventude que salvará sua vida - gritou o calvo -, e
sim minha clemência!
- Ponha-a onde melhor caiba, Jacarandá!
O orgulho daquele Forzetta durou pouco. Três violentas
cutiladas minaram sua resistência, deixando-o de joelhos e
obrigando-o a apoiar as mãos contra o solo. Seu adversário sorriu
triunfalmente, enquanto os aplausos percorriam o pátio. O inimigo
do senhor da casa perdera a partida. Restava apenas cumprir o
ritual: e assim, com precisão de cirurgião, a espada do vencedor
fendeu o ar até roçar com sua ponta a face do jovem, que logo
soltou um líqüido vermelho intenso. Primeiro sangue.
- Viu? - rugiu satisfeito. - Deus fez justiça às suas mentiras.
Nunca mais ouse me enganar com falsas antigüidades. Nunca.
Então, dirigindo-se até onde eu me encontrava, satisfeito por
ver meu hábito branco e meu capuz preto entre os seus, fez uma
reverência e acrescentou algo mais para que todos ouvissem:
- Este rufião já tem sua justiça... - sentenciou. - Embora
acredito que ainda não se fez justiça a alguém tão extraordinário
como o senhor, não é verdade, padre Leyre?
Fiquei mudo. O diabólico brilho de seus olhos me fez recear.
Quem era aquele indivíduo que sabia meu nome? A que injustiça se
referia?
Os pregadores são sempre bem-vindos a esta casa - disse. -
Embora eu o tenha mandado chamar porque desejo que juntos
reabilitemos o nome de um amigo comum.
- Temos um amigo comum? - balbuciei.
- Tivemos - precisou. - Ou acaso não se encontra entre
aqueles que acreditam que algo extraordinário se esconde por trás
da morte de nosso frei Alessandro Trivulzio?
O vencedor, que logo soube que se chamava Oliverio
Jacarandá, deixou a cena do duelo e se aproximou de mim, tocando
suavemente meu ombro em sinal de amizade. Depois se perdeu
dentro do palácio. Minha acompanhante me pediu que o
esperássemos. Pude ver assim o pequeno exército de servidores de
Jacarandá entrar em ação: em pouco mais de dez minutos
desmancharam o pódio sobre o qual se realizou o duelo, e
carregaram aquele Forzetta, ferido e manietado, até algum lugar
dos fundos do palácio. Quando passou por mim, pude ver que o
desgraçado era quase uma criança. Um jovem de rosto redondo e
olhos de esmeralda que, durante um instante fugaz, cravaram-se
nos meus implorando socorro.
- Os espanhóis são homens de honra - a mulher, que soltara a
cabeleira loura e pendurara o cinturão com seu florete, falou-me
com amabilidade. - Oliverio é de Valença, como o papa. Além disso,
é seu provedor favorito.
- Seu provedor? Disse, na verdade. Embora - mudei a
expressão do rosto – duvide que me chamasse para me pôr ao
corrente de seus negócios. Ou me engano?
O dono do palácio deixou escapar um risinho cínico.
- Sei quem é, padre Leyre. Há alguns dias se apresentou
como inquisidor perante os funcionários do duque e apresentou
seus respeitos no funeral de donna Beatrice. Vem de Roma. Alojou-
se no convento de Santa Maria e passa a maior parte do tempo
resolvendo adivinhações em latim. Como vê, mal tem segredos
para mim, padre.
O antiquário bebeu daquele líqüido vermelho antes de
estabelecer uma nuance:
- Apenas...
- Não entendo.
- Permita-me que vá diretamente ao ponto. O senhor parece
ser um homem inteligente e talvez possa me ajudar a resolver um
problema que temos em comum. Trata-se de frei Alessandro
Trivulzio, padre.
Por fim entrou no assunto da morte do bibliotecário.
- Muito antes de que o senhor chegasse a Milão, ele e eu
éramos bons amigos. Até podíamos dizer que éramos sócios.
Trivulzio atuava como intermediário entre algumas famílias
importantes de Milão e meu negócio. Por intermédio dele, fazia
chegar minhas ofertas de antiquário sem levantar suspeitas na
cúria, e frei Alessandro recebia certas compensações por isso.
- Dei um passo atrás.
- Estranha, padre Leyre? Outros frades em Bolonha, Ferrara
ou Siena me ajudam nesta espécie de tarefas. Não matamos
ninguém. Só passamos por cima de proibições e escrúpulos
absurdos que, estou seguro, um dia recordaremos como algo
risível, próprio de mentes antiquadas. Que há de errado em
recuperar fragmentos de nosso passado e entregá-los aos ricos
para seu deleite? Por acaso não brilha um obelisco egípcio na
praça de São Pedro, em Roma?
- Está se metendo na boca do lobo, senhor - respondi muito
sério.
- Lembro que faço parte dessa cúria que o senhor passa ao
largo.
- Sim, sim, mas me deixe continuar. Por desgraça, não é só
sua severa cúria que põe obstáculos ao nosso trabalho. Como pode
supor, vendo obras de arte e peças antigas a ricas senhoras da
corte, às escondidas de seus maridos, que tampouco aprovam esta
classe de negócios. Frei Alessandro foi peça-chave em algumas de
minhas operações mais importantes. Tinha a excelente habilidade
de se convidar a qualquer mansão de Milão com o pretexto de uma
confissão, e depois era capaz de fechar um negócio nas próprias
barbas dos nobres lombardos.
- E o que obtinha em troca? Dinheiro?... Permita-me duvidar.
- Livros, padre Leyre. Recebia livros escritos a mão, ou
impressos, proporcionalmente ao valor da venda. Obras copiadas
com delicadeza ou fabricadas com pranchas modernas na França
ou no Império Germânico. Cobrava em espécie, se prefere chamar
assim. Sua obsessão era reunir volumes e mais volumes para a
biblioteca de Santa Maria. Mas, suponho que o senhor já sabia.
- O que não consigo entender é por que me conta isso. Se o
irmão Alessandro era seu amigo, por que mancha sua memória
com suas confidências?
- Nada mais longe de minha intenção - riu, nervoso. - Permita-
me explicar algo mais, padre: pouco antes de morrer, seu
bibliotecário participou de uma tarefa muito especial. Relacionava-
se com uma de minhas melhores clientes e, portanto, pus o assunto
em suas mãos sem hesitar um minuto. Na verdade, era a primeira
vez que alguém de alta linhagem não me pedia a estátua de algum
fauno para decorar uma casa de campo. Seu pedido, embora
pareça estranho, entusiasmou a nós dois.
Olhei para Jacarandá intrigado.
- Minha cliente só queria que solucionássemos um pequeno
enigma, quase doméstico. Como especialista em antigüidades,
pensou que eu poderia identificar certo objeto precioso de que
possuía uma descrição exterior bem precisa.
- Uma jóia, talvez?
- Não. Nada disso. Era um livro.
- Um livro? Como os que o senhor utilizava para pagar a...?
- Esse nunca foi impresso - me interrompeu. - Ao que parece,
tratava-se de um antigo manuscrito de raridade e valor
excepcionais. Um exemplar único que chegou aos seus ouvidos por
fontes diversas, e que minha cliente ansiava possuir mais do que
qualquer outro tesouro no mundo.
- E que livro era esse?
- Eu nunca soube. Só me deu alguns detalhes de seu aspecto:
um livro de capa azul, de poucas páginas, com a cobertura rebitada
por quatro cravos de ouro e as folhas iluminadas com o mesmo
metal precioso. Uma pequena jóia com aspecto de breviário, sem
dúvida importada do Oriente.
- E pôs mãos à obra com a ajuda de frei Alessandro - intervim.
- Tínhamos duas valiosas pistas a seguir. A primeira era a
pessoa de quem minha cliente ouviu falar pela primeira vez
daquele livro: o mestre Leonardo da Vinci. Por sorte, o seu
bibliotecário o conhecia bem, e não lhe seria difícil chegar a ele e
averiguar se o pintor o tinha, ou não em seu poder.
- E a segunda?
- Entregou-me um desenho exato do livro que devia descobrir.
- Sua cliente tinha um desenho do livro?
- Exatamente. Aparecia num jogo de naipes muito caro a ela.
Numa das cartas, a que mostrava o retrato de uma grande mulher,
aparecia representado esse livro. Não era grande coisa,
certamente, mas muitas vezes iniciei negócios com menos
informação. Na carta se identificava uma religiosa que segurava
esse livro nas mãos. Um livro fechado, sem título na capa nem
qualquer outro sinal identificativo.
"Um livro num jogo de cartas?", alarmei-me. "Não fora frei
Bandello quem me falou antes de algo parecido?"
- Posso perguntar quem é a sua cliente? - perguntei-lhe.
- Claro. Por isso exatamente convoquei-o para esta reunião: a
princesa Beatrice d'Este.
Meus olhos se escancararam.
- Beatrice d'Este? A mulher do Mouro? Está dizendo que frei
Alessandro e donna Beatrice se conheciam?
- E muito. Agora, como se vê, ambos estão mortos.
- O que insinua?
Jacarandá procurou assento por trás da escrivaninha,
satisfeito por ter captado toda minha atenção.
- Vejo que começa a entender minha preocupação, padre
Leyre. Diga-me: até que ponto conheceu Mestre Leonardo?
- Só falei com ele uma vez. Esta manhã.
- Deve saber que se trata de uma pessoa estranha, a mais
extravagante e obscura que jamais veio a estas terras. Emprega
cada minuto do dia para trabalhar, ler, desenhar e pensar sobre os
assuntos mais absurdos que se possa imaginar. Ele inventa
receitas culinárias com que diverte o duque, modela em marzipã
máquinas de guerra de aspecto extravagante para seus banquetes.
Também é um homem desconfiado. Tem um grande zelo por suas
coisas, suas propriedades. Jamais deixa alguém bisbilhotar suas
anotações e muito menos farejar sua biblioteca, que como não é
difícil de imaginar, é grande e valiosa. Escreve até da direita para
a esquerda, como os judeus!
- Deveras?
- Não mentiria sobre algo assim. Se quiser ler algum de seus
cadernos deverá recorrer a um espelho. Só refletindo nele as
páginas conseguirá compreender o que escreveu nelas. Não é um
ardil demoníaco. Conhece alguém capaz de escrever invertido,
desta maneira? Esse homem, creia-me, esconde segredos terríveis.
- Continuo sem compreender por que está me contando isto -
insisti.
- Porque... - fez uma pausa teatral - estou seguro de que
acabarão com nosso amigo comum, padre Alessandro, por ordem
de Leonardo da Vinci. E creio que a culpa por tudo isso se deve à
posse desse maldito livro, o mesmo que foi ambicionado pela
princesa e que também lhe custou a vida.
Devo ter empalidecido.
- É uma acusação muito grave!
- Comprove-a - desafiou-me. - O senhor é o único que pode.
Vive em Santa Maria delle Grazie, mas não está vendido ao duque
como os outros. O prior deseja que o mosteiro seja concluído com o
dinheiro do Mouro, e duvido que se atreva a arremeter contra seu
artista favorito, ameaçando as subvenções. Convido-o a resolver
este enigma comigo; consiga o livro e não apenas lançará luz sobre
as mortes da princesa e de frei Alessandro, mas, terá também,
provas para acusar Leonardo de assassínio.
- Não me agradam seus métodos, senhor Jacarandá.
- Meus métodos? - riu. - Observou bem o homem que derrotei
em duelo?
- Forzetta?
- Ele mesmo. Pois direi algo mais de meus métodos:
trabalhava para mim. Ordenei-lhe que apanhasse o "livro azul" da
bottega de Leonardo. Forzetta foi um antigo discípulo do toscano e
conhecia bem os lugares em que poderia estar escondido.
- Mandou roubar algo de Leonardo da Vinci?
- Queria resolver este assunto, padre. Mas reconheço meu
fracasso. Esse inútil pegou de seu ateliê um livro diferente: a Divini
Platonis Opera Omnia. Um livro impresso há alguns anos em
Veneza, de pouquíssimo valor. E pretendia me enganar com ele,
vendendo como se fosse o incunábulo que eu procurava.
- Divini Platonis... - murmurei. - Conheço esse livro.
- Deveras?
Concordei:
- É a famosa tradução das obras completas de Platão feita por
Marsilio Ficino para Cosme, o Velho, de Florença.
- Pois o velhaco assegura que Leonardo o tinha em grande
apreço.
- Que ficou dias usando-o para dar forma a um dos apóstolos
do Cenacolo.
- O que me importa isso, com os diabos? Perdi um amigo por
culpa dele e quero saber por quê. Vai ajudar-me?
27
Porta Romana era o bairro elegante da cidade. Percorrido dia
e noite pelas carruagens mais esplêndidas da Lombardia, tinha a
vaidade de ser o único acesso monumental à Milão. Suas galerias
estavam sempre cheias de gente de boa presença e as damas
gostavam de passar por elas para tomar o pulso diário da cidade.
Núncios papais, embaixadores estrangeiros ou fidalgos, todos
procuravam se deixar ver ali, aspirando se sentir admirados. Sua
situação junto ao principal canal da cidade até a Porta Romana era
uma exposição de vaidades sem igual.
Bem na metade da rua se erguia o Palazzo Vecchio. Era um
prédio público querido pelos milaneses, foro habitual de confrarias,
grêmios e até de juízes. Tinha três pisos, seis amplos salões e um
labirinto de escritórios que mudavam de dono com facilidade.
Pois bem, na noite que passei na casa de Oliverio Jacarandá
todas suas peças ferviam de expectativa. Mais de trezentas pessoas
faziam fila na rua para admirar a última obra do mestre Leonardo;
muitos dos homens probos da cidade aproveitaram o pretexto e
marcaram encontro para comentar os últimos acontecimentos da
corte. Não havia cidadão ou cidadã que não reivindicasse convite
para aquele ato.
O toscano organizou sua exposição às pressas, talvez a pedido
do próprio duque que, a apenas quarenta e oito horas do enterro
de sua mulher, já pensava em reativar a vida pública milanesa.
O mestre Luini chegou em companhia de uma radiante Elena
Crivelli. Insistiu tanto, que o jovem mestre concordou em levá-la
consigo. Ainda se envergonhava só de pensar no que ocorrera
entre eles há apenas um par de dias, e seu íntimo continuava
agitado como uma tormenta marítima. Para tornar a situação mais
difícil, a filha de donna Lucrezia escolheu um impressionante
aparato para a ocasião: um vestido azul provido de peles, corpete
com decote quadrado, bordado com fios de ouro. O cabelo
recolhido numa redezinha de pedraria e o tom carmim dos lábios a
elevavam à categoria de deusa. Luini se esforçava para manter
distância, para sequer roçá-la.
- Mestre Bernardino! - O vozerio de Leonardo os deteve
quando iam subir para o segundo andar do Palazzo Vecchio. - Que
alegria vê-lo. E tão bem acompanhado! Diga-me, quem veio com
você?
Luini inclinou cerimonioso a cabeça, surpreendido pela
descarada curiosidade do mestre:
- É Elena Crivelli, Mestre - respondeu sem demora. - Uma
jovem que admira o senhor e que insistiu em me acompanhar à sua
exposição.
- Crivelli? Grande surpresa! É por acaso da família do pintor
Cario Crivelli?
- Sou sua sobrinha, senhor.
Os olhos claros de Elena despertaram certas recordações do
toscano. Leonardo parecia embriagado.
- É portanto filha de...
- De Lucrezia Crivelli, que o senhor conhece bem.
- Donna Lucrezia! Claro! - disse, olhando de novo para Luini. –
E veio com mestre Bernardino, a quem sem dúvida conheceu
durante suas sessões de pose. É sua nova Madalena!
- É assim.
- Magnífico! Chegou num momento mais do que oportuno.
Leonardo examinou de novo a jovem, em busca dos traços
que tanto o impressionaram em sua mãe. Um olhar rápido bastou
para identificar uma mesma arquitetura frontal, nariz idêntico,
incluindo as maçãs do rosto e queixo geminados. O prodígio
geométrico do rosto de donna Lucrezia conseguiu uma nobre
continuação no de sua filha.
- Se dispuser de tempo, gostaria que me acompanhasse à sala
que preparei para mostrar meu retrato. Logo estará cheia de
convidados e já não teremos oportunidade de admirá-lo em
particular.
O mestre apontou para uma peça pequena, contígua ao
gigantesco maquinário na escada. A peça fora preparada com
carinho. Cada uma de suas paredes estava coberta com panos
pretos que deixavam só visível um pequeno quadro de 63 x 45
centímetros, emoldurado por uma madeira clara de pinho, lisa.
- Sabe? - prosseguiu Leonardo. - Pensei que esta era a melhor
ocasião de mostrá-lo. A morte de donna Beatrice nos entristeceu
tanto que precisamos de toda a beleza possível para recuperar o
ânimo. O mestre Luini talvez já tenha dito: necessito de alegria ao
meu redor.
- Vida. E como sempre que tirei de meu ateliê algum quadro
tive tanta aceitação... Pensou que mostrar uma nova obra sua
poderia devolver as pessoas às ruas - aplaudiu Bernardino.
- Exato. E, apesar do frio, parece que conseguirei. E então? –
O toscano mudou de parede, apontando agora para sua
composição. – Que lhes parece?
Os três fixaram o olhar na parede assinalada. O óleo era
sensacional. Uma mulher jovem, com um vestido vermelho a que
Leonardo exprimira não só os tons do veludo, mas também, os
pontos do tecido da gola, olhava-os serena à mesma altura deles.
Tinha o cabelo recolhido numa longa trança e um fino diadema
cingia a testa com infinita ternura. Era um retrato incrível.
Outra obra do apogeu do mestre. Se em vez de uma moldura
estivesse rodeada por uma janela, ninguém poderia dizer que
aquela senhora não estava realmente ali, observando-os.*
*[Trata-se do quadro conhecido pelos críticos como La belle
Ferronière atualmente no Louvre.]
- Elena e Bernardino se olharam perplexos, sem saber o que
dizer.
- Acreditávamos... - balbuciou Luini. - Acreditávamos que ia
mostrar um retrato de donna Beatrice, mestre.
- E por que haveria de mostrar? - sorriu. - A princesa d'Este
nunca teve tempo de posar para mim.
Os olhos de Elena se umedeceram de emoção.
- Mas é... é...
- É sua mãe, donna Lucrezia. Sim - disse o toscano,
enrugando seu enorme nariz. - Sem dúvida uma das mulheres mais
belas que conheci. E beleza, harmonia, é justamente o que
precisamos neste momento de luto, não lhe parece?
A jovem Elena não podia afastar o olhar do retrato.
- Jamais mostraria em público este trabalho se não fosse
necessário. Deve acreditar em mim.
- É?... - hesitou. - É acaso por sua teoria da luz? Bernardino
me explicou como é importante para o senhor.
- Deveras?
Um brilho de malícia faiscou nos olhos do toscano.
- Para o senhor, a luz é a essência do divino. Sua presença ou
sua ausência num quadro revela tudo sobre o objetivo final do
artista. Não é certo?
- Pode ser... Surpreende-me, Elena. E me diga: que espécie de
propósito oculto adivinha neste retrato?
A condessinha examinou a tela mais uma vez. O rosto
resplandecente de sua mãe só faltava falar.
- É um sinal, mestre.
- Um sinal?
- Oh, sim. O senhor envia sinais em meio à obscuridade. Como
faria um farol na noite. Envia sinais aos homens de fé. Aos que
preferem a luz às sombras.
O mestre se sentiu embaraçado.
De repente sua surpresa se transformara em preocupação. E
Elena notou. Viu o mestre se certificar de que ninguém mais
escutava sua conversa e pediu à condessinha que lhes concedesse,
a Bernardino e a ele, um minuto para conversarem a sós. A dama,
solícita, afastou-se até uma das janelas grandes com vista para a
Porta Romana.
- Mas, pode-se saber o que fez, mestre Luini?
O sussurro de Leonardo se cravou como uma adaga nos
ouvidos de seu discípulo.
- Mestre, eu...
- Falou-lhe da luz! À uma criança!
- Mas...
- Nada de mas. Sabe também que a luz é um dos atributos de
sua família? O que mais revelou a ela, insensato?
Luini estava paralisado de terror. De repente compreendeu o
terrível equívoco que pressupunha o fato de que Elena o
acompanhou àquele ato. Sufocado, abaixou a cabeça sem saber o
que dizer.
- Já vi - prosseguiu Leonardo. - Agora compreendo tudo.
- O que compreende, mestre?
Um nó apertou-lhe a garganta, como se fosse estrangulá-lo.
- Dormiu com ela. Não é certo?
- Dormi?
- Responda-me!
- Eu... Sinto, mestre.
- Sente? Não se dá conta do que fez?
Leonardo tentou abafar suas palavras para não chamar a
atenção da condessinha.
- Deitou-se com uma Madalena! Você! Um fiel da causa de
João!
O mestre engoliu saliva. Necessitava de tempo para pensar.
Sua mente tratava de absorver aquela situação da mesma maneira
como buscava que as peças de suas máquinas se ajustassem umas
às outras. Que outra coisa podia fazer? O gigante acabaria por
absorvê-la como um sinal a mais da Providência. Outra indicação
de que os tempos estavam mudando em grande velocidade, e de
que logo seu segredo lhe escaparia das mãos.
Como pudera ser tão ingênuo? Como não previra a
eventualidade de que o jovem discípulo encarregado de vigiar de
perto a filha de donna Lucrezia acabasse em seus braços?
Leonardo, que repudiava o amor carnal, devia se apressar. Creio
que foi nesse dia que o mestre decidiu a conveniência de iniciar
Elena nos mistérios de seu apostolado, antes que outros amantes a
desviassem de seu caminho.
Sim. Foi então que exigiu a presença da condessinha a seu
lado e fez algo que ninguém lhe vira fazer antes: falou-lhe de suas
preocupações.
- Desculpe-me esta interrupção - desculpou-se. - Quero dizer
que sua visita não podia ser mais oportuna. Necessitava falar com
alguém de confiança. Creio que me espionam. Que vigiam meus
movimentos e os de meus ajudantes.
- O senhor, mestre? - Luini estremeceu.
- Você verá - prosseguiu. - Estou suspeitando há anos. Você
sabe, Bernardino, que sempre suspeitei das pessoas. Há anos que
escrevo em cifra toda minha correspondência, anoto minhas idéias
de maneira que poucos possam lê-las e desconfio daqueles que se
aproximam só para farejar minhas coisas. No entanto, domingo, dia
em que enterramos a princesa, esses velhos temores se
confirmaram de maneira dramática. Naquele dia, perto daqui,
morreram dois homens de Deus em estranhas circunstâncias.
Bernardino e Elena abanaram a cabeça incrédulos. Não
sabiam daquilo.
- Um apareceu enforcado na praça do Comércio. Estava com
uma carta que você, mestre Luini, conhece tão bem como eu.
Pertence a um baralho desenhado para os Visconti em meado do
século, e mostra uma irmã franciscana com a cruz do Batista numa
mão e o Livro de João na outra.
- A Madalena!...
- É uma de suas muitas representações, de fato - prosseguiu.
– Os nós na corda que circunda seu ventre inchado evidenciam
isso. Mas são poucos, pouquíssimos, os que conhecem o código.
- Continue, por favor - insistiu Bernardino.
- Como você pode imaginar, Mestre Luini, interpretei o
achado da carta como um sinal. Um aviso de que alguém tratava de
me assediar. Tentei convencer os soldados do duque de que o frade
se suicidara. Queria ganhar tempo para fazer minhas averiguações,
mas a segunda morte confirmou meus temores.
- Que temores? - Elena não pestanejou.
- Você saberá, Elena. O outro também era um velho amigo
meu.
A condessinha estremeceu.
- O senhor o conhecia?
- Conhecia. Os dois. Giulio, a segunda vítima, morreu
sangrando diante da Maestà. Alguém atravessou seu coração com
uma espada. Não roubou dinheiro, nem qualquer pertence, a não
ser...
- A não ser?
- ...a não ser a carta da franciscana que depois foi encontrada
junto ao frade. Tenho a desagradável sensação de que o assassino
queria que eu estivesse a par de seus crimes. No fim das contas, a
Maestà é uma obra minha e o frade enforcado pertencia ao
convento de Santa Maria.
Mesmo com receio de ser importuna, Elena falou de novo.
- Mestre, e isso se relaciona com seu desejo de mostrar agora
o trato de minha mãe? Tem algo a ver com estas horríveis notícias?
- Já compreenderá, Elena - respondeu o mestre. - Sua mãe
não posou para mim apenas para este retrato. Quando era mais
jovem, serviu de modelo para a Virgem da Maestà. Voltei a
recorrer a ela quando pintei de novo há apenas alguns meses.
Quando entreguei a encomenda, há dez dias, os franciscanos a
substituíram pela velha versão. Tudo foi tão rápido que não tive
tempo de avisar os Irmãos da substituição.
"Os Irmãos?" Desta vez Elena não o interrompeu.
- Vejo que o mestre Luini ainda não contou tudo - sussurrou
Leonardo. - Este quadro é como um evangelho para eles. Era seu
conforto espiritual, sobretudo depois que a Inquisição os despojou
de seus livros sagrados. Vinham vê-lo às dezenas. No entanto,
quando os franciscanos se deram conta e começaram a brigar
comigo me vi forçado a apresentar-lhes uma nova versão,
desprovida dos símbolos que a tornavam tão especial. Demorei dez
anos para completar a encomenda, mas já não pude atrasá-la mais.
Por desgraça não avisei os Irmãos para que deixassem de ir a San
Francesco em busca de iluminação, e o último deles, meu querido
Giulio, pagou o desacerto com a vida. Alguém o esperava.
- Tem idéia de quem possa ser?
- Não, Bernardino. Mas, seu móbil foi o de sempre; o mesmo
que levou São Domingos a criar a Inquisição: acabar com os
últimos cristãos puros. Pretendem sufocar pela força o que não
conseguiram sufocar em Montségur aniquilando os albigenses.
- Então, Mestre, aonde irão agora os Irmãos para satisfazer
sua fé?
- Ao Cenacolo, naturalmente. Mas só acontecerá quando
estiver pronto. Por que acham que pinto na parede e não na
madeira? Pensam por acaso que é pelo tamanho? Nada disso -
levantou o indicador em sinal de negação. - É para que ninguém
possa arrancá-lo e me obrigar a refazê-lo. Só assim os Irmãos
encontrarão um local para seu consolo definitivo. Não ocorrerá a
ninguém procurar nas barbas dos inquisidores.
- É engenhoso, mestre... mas arriscado.
Leonardo sorriu de novo:
- Entre os cristãos de Roma e nós há uma grande diferença,
Bernardino. Eles necessitam de sacramentos palpáveis para se
sentir abençoados por Deus. Ingerem pão, ungem-se com azeites
ou submergem em águas bentas. Porém, nossos sacramentos são
invisíveis. Sua força reside na abstração. Quem os nota dentro de
si percebe um golpe no peito e uma alegria que o inunda todo.
Alguém sabe que está salvo quando sente este paço. Minha Última
ceia os dispensará de semelhante obrigação. Por que acreditam
que Cristo não ostenta ali a hóstia dos romanos? Porque seu
sacramento é outro...
- Mestre - Luini o interrompeu. - O senhor fala diante de
Elena como se ela já conhecesse sua fé. E o certo é que ainda não
tem informação sobre o alcance do que o senhor está dizendo.
- E então?
- Espero que me faça uma concessão: que me permita levá-la
ao Cenacolo e iniciá-la ali em seu idioma. Em seus símbolos. Talvez
assim... - Bernardino duvidou, como se medisse as palavras - ambos
possamos nos purificar e merecer um novo lugar junto ao senhor.
Ela assim o deseja.
O toscano não pareceu muito surpreso.
- Isso está certo, Elena?
A jovem assentiu.
- Pois, deve saber, que a única maneira de conhecer minha
obra é participar dela. Você sabe melhor do que ninguém,
Bernardino - resmungou. - Eu sou o único Ômega a quem deverá
doravante se dirigir.
- Se sua intenção é atraí-la, mestre, então por que não a toma
como modelo? A mãe dela serviu para seu evangelho da Maestà.
Por que a filha não serviria para o mural que está ultimando?
Leonardo titubeou.
- Para o Cenacolo?
- E por que não? - respondeu Luini. - Por acaso não necessita
um modelo para o apóstolo amado? Acredita que encontrará um
rosto mais angelical do que este para concluir o João?
Elena baixou o olhar, deleitada. Aquele asceta de roupa
branca acariciou pensativo as barbas espessas, enquanto
examinava de novo a jovem Crivelli. Depois soltou uma gargalhada
que ecoou por toda a sala.
- Sim - trovejou. - E por que não? No fim das contas, não
imagino ninguém melhor do que ela para esse destino.
28
- Oliverio Jacarandá? Uma expressão de desgosto se desenhou
no rosto do prior logo que pronunciou aquele nome. Frei Vicenzo
mandou me chamar quando soube que eu regressara ao convento.
Ao que parecia, a comunidade ficara horas em alerta por causa de
minha inesperada ausência. Alguns padres, armados com cajados e
tochas, saíram à minha procura ao cair da noite. Por isso, quando
Maria Jacarandá me devolveu à porta do convento, ileso embora
com a mente algo perturbada, o prior se apressou a reclamar
minha presença junto a ele.
- E o senhor diz, irmão Leyre, que passou o serão em
companhia de Oliverio Jacarandá, na casa dele?
Seu tom era de franca preocupação.
- Vejo que o conhece, prior.
- Claro que sim.-respondeu. - Toda Milão sabe quem é esse
parasita. Comercializa objetos litúrgicos, compra e vende
igualmente retratos de santos e Vênus nuas, e manipula mais
dinheiro e recursos do que muitos nobres da casa do duque. O que
não entendo – acrescentou entrecerrando os olhos com uma
expressão astuta - é o que poderia querer do senhor.
- Desejava me falar sobre frei Alessandro, prior.
- Do padre Trivulzio?
Concordei. Bandello parecia perturbado.
- Ao que parece, ambos mantinham uma espécie de relação
comercial. Estavam, digamos assim, associados. Isso é uma
estupidez! Que poderia interessar o padre Trivulzio; descanse em
paz, num homem imoral e depravado como esse?
- Se o que o senhor Jacarandá me disse é certo, frei
Alessandro tinha a vida dupla. Diante do senhor era um homem
temente a Deus, amante das letras e do estudo; mas longe de seu
olhar protetor se converte num traficante de antigüidades.
A mente de Bandello fervia como uma panela de sopa.
- Custa acreditar no senhor - resmungou. - Embora, olhando
talvez isso explique certas coisas...
- Certas coisas? A que se refere, prior?
- Falei com a polícia do Mouro sobre as circunstâncias da
morte de frei Alessandro. Há um ponto obscuro que não soubemos
interpretar. Uma contradição suprema, que nos mantém
desconcertados.
- Explique, peço-lhe.
Veja, a polícia não encontrou sinais de violência, ou
resistência no corpo do padre Trivulzio. No entanto, tudo indica
que não se enforcou sozinho. Alguém mais esteve com ele naquele
momento. Alguém deixou um estranho cartão de visita preso a um
dos pés descalços do bibliotecário.
O prior remexeu no bolso, estendendo-me um pedaço de
pergaminho cheio de garatujas e linhas de aspecto
incompreensível. Foram traçadas sobre uma espécie de cartão
oblongo, de bordas finas, muito deteriorado pelo uso.
- Olhe - disse, estendendo-me o cartão.
Minha expressão devia ser de espanto, porque o prior me
observou satisfeito por atrair toda minha atenção. Como não ia me
espantar? Parte daqueles traços correspondia à adivinhação que
me levara até ali. O fato: Óculos ejus dinumera, a estranha
assinatura do Augure, ocupava o centro do cartão. Seus sete versos
foram escritos com letra trêmula davam a impressão de passar por
uma intensa investigação, como as anotações que os rodeavam
fizessem parte dos esforços de um ser para encontrar o sentido.
- É a minha adivinhação! - admiti.
- "Conte-lhe os olhos, mas não olhe para a cara. A cifra de um
nome e achará em suas costas..."
- Sim, eu sei. O senhor confiou-a a mim antes da morte de frei
Alessandro. Recorda-se?
- Mas, estas notas - descrevendo, com o dedo, um círculo ao
redor do escrito - não são minhas, padre Leyre.
A malícia brilhou em seus olhos.
- E isso não é tudo. Olhe.
O padre Bandello virou o cartão. A inconfundível estampa de
uma franciscana segurando na mão direita uma cruz e na esquerda
um livro me paralisou.
- Santo Cristo! - exclamei. - A carta... Sua carta!
- Não. A carta de Leonardo - corrigiu-me. - Ninguém sabe
quem colocou esta carta no corpo de frei Alessandro depois de
morto, mas é óbvio que significa algo. Lembro-lhe que o toscano
nos desafiou com esse mesmo desenho. E agora este aparece junto
à sua adivinhação, no pé do bibliotecário. Que pensa disto?
Respirei fundo.
- Há algo que ainda não contei, prior.
Bandello enrugou a testa.
- Não sei como interpretar à luz de suas revelações, mas o
senhor Jacarandá e eu estivemos falando precisamente dessa carta.
Ou, para ser mais exato, do livro que essa mulher está segurando.
- O livro?
- Não é um livro qualquer, prior. Jacarandá quis encontrá-lo
para satisfazer uma importante encomenda, e confiou o trabalho a
frei Alessandro. Ao que consta, quem possui tão importante volume
é o mestre Leonardo, portanto, pensou que ao nosso bibliotecário
seria mais fácil do que qualquer outro chegar até ele e fazer-lhe
uma oferta. Uma simples operação comercial que já custou a vida
de duas pessoas.
- Duas pessoas, está dizendo?
- Ainda não disse, prior, mas a cliente que desejava comprar
livro era Beatrice D'Este, que descanse em paz.
- Deus do céu.
O prior me convidou a prosseguir:
- Jacarandá não sabe por que motivo a condessa contratou
seus serviços para localizar o livro e não o pediu diretamente ao
mestre Leonardo. Mas, está convencido de que, de uma maneira ou
outra, Leonardo está implicado nestas mortes.
- E o senhor, o que pensa, padre Leyre?
- Resisto a acreditar. Leonardo é um artista, não um soldado.
Frei Vicenzo baixou a vista, preocupado.
- Concordo, por pensar igual, mas pelo que vejo as mortes se
acumulam de maneira insólita ao redor do mestre.
- O que deseja dizer?
- Ontem mesmo ocorreu algo estranho não muito longe daqui,
igreja de São Francisco foi profanada com o assassínio de um
peregrino.
- Um crime? - a notícia me sobressaltou. - Em solo sagrado?
- Isso mesmo. Atravessaram o coração do infeliz justamente
diante do altar-mor, sob o novo retábulo de Leonardo, poucas
horas antes da morte de frei Alessandro. E quer saber mais?
O prior respirou fundo antes de prosseguir:
- A polícia encontrou entre seus haveres o baralho a que esta
pertencia. A pessoa que matou esse homem lhe roubou a carta,
anotou sua adivinhação no reverso e depois a depositou junto ao
corpo de nosso bibliotecário. O senhor deve me ajudar a encontrá-
lo. - Ou muito engano ou nosso assassino, seja quem for, também
está à procura do maldito livro de Leonardo.
29
- Necessito que me entreguem seu prisioneiro.
Maria Jacarandá me olhou estupefata. Já não vestia as roupas
masculinas da noite anterior e sim um vestido pouco ajustado, de
mangas branco-azuis e corpete listrado. A cabeleira loura estava
recolhida numa simpática redezinha, e seu aspecto era radiante.
Era evidente que a jovem Jacarandá não esperava voltar a me
ver tão rapidamente, e muito menos que regressasse ao seu
palácio por um motivo tão... peculiar. O que ignorava, no fundo,
era que não restava a este inquisidor outra escolha. Mário
Forzetta, o espadachim que seu pai derrotara em duelo era, ao que
se soubesse, a última pessoa que lidara com o "livro azul" da carta
de Leonardo. E a única que ainda continuava com vida. Como não
ia querer falar com ele?
- Não creio que esta idéia agrade meu pai - disse sem escutar
minhas explicações desajeitadas.
- Nisso se equivoca, Maria. Estava presente quando dom
Oliverio me pediu que o ajudasse a encontrar o livro de Leonardo.
É, exatamente, por isso, que estou aqui.
- E o que pensa fazer com Mário?
- Primeiro, colocá-lo sob minha custódia, que é a do Santo
Ofício. E depois levá-lo para interrogatório.
A menção da Santa Inquisição foi o que minou as escassas
reticências da jovem. A bela Maria, impressionada pelo meu ar
sério, reprimiu seus receios e concordou em me acompanhar até o
sótão do palácio, para evitar um conflito com os dominicanos na
ausência de seu pai. Explicou-me que ele partiu em viagem logo
depois de nossa entrega e era previsível que não regressasse a
Milão por uma semana.
Enquanto estivesse fora, ela era responsável pelo bom
funcionamento da casa e a custódia de todas suas posses, entre
elas, naturalmente, jovem Forzetta.
- É violento? - perguntei.
- Oh, não. Nada disso. Creio que seria incapaz de matar uma
mosca. Mas é astuto. Tenha cuidado com ele.
- Astuto?
- É uma qualidade que adquiriu com Leonardo - acrescentou
Maria.
- Todos os discípulos dele são astutos.
O rapaz fora recolhido a uma parte do palácio que
antigamente servira de cárcere. Paredes grossas e escadas
profundas davam acesso a um estranho mundo subterrâneo
impossível de imaginar se só se conhecia o jardim da superfície. A
indulgência de Jacarandá lançara o ousado servidor a uma das
prisões murus strictus, isto é, a uma cela de dimensões justas para
que pudesse se sentar, pôr-se de pé e dar um par de passos de uma
parede a outra. Sem janela, sem outra visão que a mais
impenetrável obscuridade, Mário Forzetta ainda assim podia se
sentir afortunado. A poucos metros dali Maria me mostrou as celas
murus strictissimi onde não se podia nem levantar nem deitar ao
comprido, e da qual todos saíam loucos ou mortos.
Quando me deixou em frente à porta de sua cela, uma
sensação de sufoco se apoderou de mim. Não queria que a filha de
Jacarandá me visse vacilar. Detestava visitar prisões. Os lugares
fechados me deixava doente. De fato, o único trabalho de
inquisidor que jamais recusara o administrativo. Preferia a
esmagadora carga dos dossiês àquele cheiro de umidade e o pingar
das goteiras sobre a pedra. Esse ambiente cortava minha
respiração. Quando fiquei sozinho, segurando entre as mãos o
candeeiro e um molho de pesadas chaves de ferro, ainda demorei
algum tempo para articular palavra.
- Mário Forzetta?
Ninguém respondeu. Do outro lado da aldrava comida pelo
óxido só se poderia esperar a morte. Introduzi uma das chaves na
fechadura abri caminho em direção ao interior. Forzetta, de fato,
estava ali dentro de pé, apoiado numa das paredes, com o olhar
perdido. O pobre cobriu os olhos quando percebeu a presença da
lâmpada. Ainda vestia a casaca cheia de manchas de sangue. A
ferida da face adquirira um tom preocupante. A cabeleira estava
coberta de poeira e seu aspecto, apesar do pouco tempo de
reclusão, era deplorável.
- Então você é de Ferrara, como donna Beatrice... - eu disse
enquanto me sentava em seu estrado e lhe dava tempo de se
acostumar à luz. Ele concordou, confuso. Nunca ouvira minha voz,
nem sabia exatamente quem eu era.
- Que idade você tem, filho?
- Dezessete anos.
"Dezessete anos!", pensei. "Nem sequer é um homem." Mário
não deixava de olhar minhas vestes, e de se maravilhar por tão
estranha visita. Devo dizer, para ser sincero, que uma corrente de
simpatia se estabeleceu entre nós. Decidi tirar partido:
- Está bem, Mário Forzetta. Direi a que vim. Tenho permissão
para tirar você daqui e deixá-lo em liberdade, se chegarmos a um
acordo - menti. - Só terá de me responder algumas perguntas. Se
responder com a verdade, poderá ir embora.
- Sempre digo a verdade, padre.
O jovem se afastou da parede e concordou em se sentar ao
meu lado. Visto de perto não parecia, de fato, um rapaz perigoso.
Algo doentio e de ombros largos, era evidente que era pouco
dotado para os trabalhos físicos. Não estranhei que Jacarandá o
abatesse com tanta facilidade.
- Sei que foi discípulo do mestre Leonardo, verdade? -
perguntei-lhe.
- Sim. É verdade.
- O que se passou? Por que deixou seu ateliê?
- Não fui digno dele. O mestre é muito exigente com seus
discípulos.
- O que deseja dizer?
- Que não superei as provas a que me submeteu. Só isso.
- Provas? Que tipo de provas?
Mário respirou fundo, enquanto contemplava as mãos presas
por grilhetas. À luz de minha lâmpada descobriu que tinha os
pulsos arroxeados.
- Eram provas de inteligência. O mestre não se contenta com
que seus discípulos saibam misturar tintas ou esboçar o perfil
sobre um papelão. Exige mentes despertas...
- E as provas? - insisti.
- Um dia me levou para ver algumas de suas pinturas e me
pediu que as interpretasse. Estivemos no Cenacolo, quando quase
não começara a pintá-lo, mas também, no castelo do duque,
admirando alguns seus retratos. Suponho que interpretei mal,
porque pouco depois ele pediu que abandonasse o ateliê.
- Entendo. E, por isso, você decidiu se vingar e roubá-lo, não é
assim?
- Não! Nada disso - agitou-se. - Nunca roubaria o mestre. Ele
foi um pai para mim. Levava-nos a todas as partes para nos ensinar
a olhar e até nos dava comida. Quando o dinheiro escasseava,
lembro que nos reunia no refeitório dos dominicanos de Santa
Maria; sentavamo-nos como os apóstolos, ao redor de uma grande
mesa, e nos contemplava a uma certa distância enquanto
comíamos...
- Então você foi testemunha da evolução do Cenacolo.
- Claro. É a grande obra do mestre. Leva-se anos estudando
para poder completá-la.
- Estudando em livros como aquele que você roubou,
verdade?
Mário voltou a protestar:
- Não roubei nada, padre! Foi dom Oliverio quem me pediu
que fosse à bottega e conseguisse de sua biblioteca um livro antigo
de capa azul.
- Isso é roubar.
- Não, não é. A última vez que estive no ateliê pedi-o ao
mestre. Quando lhe expliquei para que o queria, e lhe disse que era
para contar a meu novo senhor, entregou-me o volume que mais
tarde pus na estante de dom Oliverio. Foi como um presente. Algo
que me deu em reconhecimento dos velhos tempos. Disse-me que
já não precisava mais dele.
- E você quis vendê-lo ao senhor Jacarandá.
- Foi mestre Leonardo quem me ensinou que aos que vivem
do ouro se deve pedir-lhes. Por isso estabeleci um preço. Nada
mais. Dom Oliverio não escutou minhas súplicas. Fora de si,
entregou-me uma espada e me obrigou a defender a honra num
duelo. Depois me trancou aqui.
Aquele rapaz me pareceu sincero. Sem dúvida muito mais
Jacarandá, um ser mesquinho, capaz de traficar com frades e
adolescentes para conseguir uma antigüidade com que extrair uma
boa quantia dos ducados. E se eu pusesse Marco a meu serviço? E
se aproveitasse os conhecimentos daquele antigo aluno de
Leonardo, mestre de adivinhações, e o tentasse com meus
problemas? Decidi experimentar a sorte:
- O que sabe de um baralho em que aparece uma mulher
vestida de franciscana, com um livro no colo?
Mário me olhou surpreso.
- Sabe do que estou falando? - insisti.
- Dom Oliverio me mostrou essa carta antes de me enviar
para buscar o livro do mestre.
- Continue.
- Quando fui pedi-lo a Mestre Leonardo, mostrei a carta e ele
riu. Disse que continha um grande enigma, e que a menos que eu
fosse capaz de decifrá-lo por mim mesmo, jamais me falaria dele.
Sempre age assim. Nunca revela nada, a menos que alguém
investigue antes.
- E disse a você como poderia investigar?
- O mestre educa todos os discípulos na arte da leitura oculta
das coisas. Foi ele quem nos doutrinou na Ars Memoriae dos
gregos, os códigos numéricos dos judeus, as letras que formam
figuras dos árabes, a matemática oculta de Pitágoras... Mas como
lhe disse, fui um aluno vil que não absorveu muitos ensinamentos
com perspicácia.
- Você trabalharia numa adivinhação para mim, se eu
pedisse?
Mário titubeou um segundo, antes de assentir com a cabeça.
- É uma adivinhação digna de seu antigo mestre - expliquei
enquanto buscava um pedaço de papel com o que poderia me fazer
entender. - Contém o nome de uma pessoa a quem procuro. Olhe o
texto com cuidado e o estude. - disse, estendendo-o. - Faça por
mim. É um padecimento por um dom que hoje lhe concederei.
O rapaz se aproximou da luz da lâmpada para vê-lo melhor.
- “Óculos ejus dínumera"... Está em latim.
- Pois sim.
- Então me libertará?
- Depois de perguntar uma última coisa, Mário. Entendi que
você disse a dom Oliverio que Leonardo utilizou o livro para dar
forma a um discípulos do Cenacolo.
- É certo.
30
— Que discípulo era esse, Mário?
— O apóstolo Mateus.
— E sabe por que usou o livro para dar-lhe a forma?
— Creio que sim... Mateus foi o autor do evangelho mais
popular do Novo Testamento, e ele queria que o homem que lhe
emprestasse o rosto tivesse pelo menos sua mesma dignidade.
— E que homem era esse? Platão?
— Não. Platão, não — sorriu. — É alguém vivo. Talvez o
senhor ouviu falar dele: traduziu a Diviri Platonis Opera Omnia e o
chamam de Marsilio Ficino. Uma vez ouvi o mestre dizer que,
quando o retratasse numa de suas obras, seria o sinal.
— Sinal? Que sinal?
Forzetta hesitou um instante antes de responder.
— Há muito não falo com o mestre, padre. Mas se o senhor
cumprir sua promessa e me libertar, investigarei. Tem minha
palavra. Da mesma maneira que essa adivinhação que me confiou.
Não falharei.
— Você deve saber que se compromete diante de um
inquisidor.
— Repito minha palavra. Dê-me a liberdade e serei fiel a ela.
O que podia perder? Naquela mesma tarde, antes da nona
hora Mário e eu abandonamos o palácio dos Jacarandá, ante o
olhar desconfiado de Maria. Do lado de fora, na rua, o rapaz de
cabelos pretos e cicatriz no rosto beijou minha mão, acariciou os
pulsos livres e deitou correr em direção ao centro da cidade. Foi
interessante: nunca me perguntei se tornaria a vê-lo. No fundo,
pouco me importava. Já sabia do Cenacolo do que muitos dos
frades que partilhavam o mesmo teto a primeira hora da manhã de
sexta-feira, 19 de janeiro, Matteo Bandelio, sobrinho adolescente
do prior, entrou com ímpeto no refeitório de Santa Maria delle
Grazie. Tinha o olhar descomposto e os olhos úmidos. Chegou
arquejando, com a alma em suspenso e o demo estampado no
rosto. Necessitava falar com o tio. Encontrá-lo ali, diante do
enigmático mural de Leonardo, reconfortou-o e estremeceu-o em
doses iguais. Se o que lhe disseram na Praça do Comércio era
certo, permanecer muito tempo naquele lugar, observando os
progressos daquela obra diabólica, podia levá-los todos ao túmulo.
Matteo se aproximou com cautela, tentando não interromper
a conversa que o abade mantinha com seu inseparável secretário, o
padre Benedetto.
— Diga-me uma coisa, prior — escutou. — Quando mestre
Leonardo pintou os retratos de São Simão e São Tadeu no
refeitório, o senhor notou algo extraordinário em seu
comportamento?
— Extraordinário? O que entende por extraordinário, padre?
- Vamos, prior! Sabe exatamente o que desejo dizer! Viu se
ele consultou algum apontamento ou esboço para dotar esses
discípulos com suas feições características? Ou talvez se lembre se
foi visitado por alguma pessoa de quem pudesse receber instruções
para terminar os retratos?
- É uma pergunta estranha, padre Benedetto. Ignoro aonde
quer chegar.
— Bem... — pigarreou o caolho. — O senhor me pediu para
averiguar tudo o que pudesse sobre a adivinhação que frei
Alessandro e o padre traziam nas mãos. E, na verdade, a falta de
notícia me distraiu averiguando o que fizeram ambos durante os
dias precedentes à morte do bibliotecário.
Matteo bateu os dentes de terror.
- O prior e seu secretário falavam do mesmo assunto que o
trouxera até ali.
- E então? - insistiu o tio, alheio ao seu espanto.
- O padre Leyre passava aqui suas horas mortas, graças à
chave que o senhor deu. - O normal. E frei Alessandro?
- Isso é o estranho, prior Bandello. O sacristão o surpreendeu
várias vezes falando com Marco d'Oggiono e Andrea Salaino, os
discípulos prediletos de Leonardo. Reuniam-se no Claustro dos
Mortos e conversavam durante muito tempo. Aqueles que
cruzaram por eles coincidem em tê-los ouvido falar da enorme
preocupação do toscano pelo retrato de São Simão.
- E isso despertou-lhes a atenção? - Matteo viu seu tio
grunhir, encolhendo o nariz e enrugando a testa, como fazia tantas
vezes. - O mestre é um doente do detalhe, do pormenor, do
minúsculo... O senhor deveria saber. Não conheço outro artista que
reveja tantas vezes o que produz.
- É como diz, prior. No entanto, naqueles dias frei Alessandro
atendeu mais do que o costume os caprichos de Leonardo.
Procurou livros e gravuras para ele. Trabalhou fora de seu
expediente na biblioteca. Visitou até a fortaleza do duque para
garantir o transporte de um pacote pesado que ainda não descobri
o que era.
O prior encolheu os ombros:
- Talvez não seja tão extraordinário como parece, padre. Frei
Alessandro não posou para ele? E ele não o escolheu entre muitos
para lhe dar o rosto a Judas? Está claro que puderam desenvolver
uma amizade, e pode ter-lhe pedido que o ajudasse nos dias que
precederam sua morte.
- O senhor acredita em casualidade? Creio que o padre Leyre
falou-lhe já de suas suspeitas, não é?
- O padre Leyre, o padre Leyre - resmungou. - Esse homem
não esconde algum segredo. Posso ver na cara dele sempre que
falamos..
Matteo hesitava em interrompê-los. Quanto mais os escutava
divagar sobre o Cenacolo e seus segredos, mais se impacientava.
Ele sabia de algo importante daquele mural!
- Mas ele acredita que Leonardo poderia ter participado do
assassínio de frei Alessandro, não é verdade?
- Engana-se. Isso foi o que disse Oliverio Jacarandá, velho
inimigo do mestre. O fato de Leonardo ser um homem
extravagante, de gostos insólitos, não ser visto muito na missa e
presumivelmente encerrou um mistério neste mural não o converte
num assassino.
- Humm... - o caolho vacilou. - Isso é verdade. Converte-o em
herege. Quem senão um homem de sua vaidade se retrataria na
Última ceia? E nada menos do que como Tadeu! É uma
ambiguidade interessante. Ele se pinta a si próprio como o Judas
(Tadeu) "bom", e a frei Alessandro como o Judas "mau".
- Com todo o respeito, prior: já percebeu como se colocou
Leonardo na Última ceia?
- Imediatamente - respondeu enquanto o localizava na parede.
- Está de costas para Nosso Senhor.
- Exato! Leonardo, ou o Tadeu, como desejar, conversa com
São Simão em vez de prestar atenção ao anúncio da traição que
Cristo acaba de fazer a eles. Por quê? Por que para Leonardo São
Simão é mais importante do que Nosso Senhor? E levando a dúvida
ainda mais longe: se sabemos que cada discípulo representa uma
pessoa significativa para o mestre, quem é concretamente esse
apóstolo?
- Não vejo para onde deseja me levar.
- É fácil - respondeu Benedetto. - Se os personagens de A
última ceia não são o que parecem, e o próprio Mestre Leonardo
mostra mais sua predileção por São Simão do que pelo Messias,
esse São Simão tem, forçosamente, de ser alguém fundamental
para ele. E isso frei Alessandro sabia...
- São Simão... São Simão, o Cananeu...
O prior esfregou a testa como se tentasse encaixar no mural a
peça que frei Benedetto acabara de lhe presentear. Matteo, em
silêncio, impacientava-se. Sua mensagem era urgente!
- Agora que insiste, irmão, lembro que algo estranho
aconteceu quando Leonardo completou essa parte do Cenacolo -
disse por fim o tio, que continuava ignorando sua presença no
refeitório.
- Deveras?
O único olho de Benedetto se iluminou.
- Foi bastante peculiar. Leonardo levou três anos
entrevistando candidatos para encarnar os apóstolos. Fez-nos
todos posar, lembra-se? Depois mandou vir a guarda do duque, os
jardineiros, os ourives, pagens... De todos tirava algum proveito:
um gesto, um perfil, o dedo de uma mão, um braço. Mas quando
chegou a hora de pintar a ponta direita, Leonardo interrompeu
suas entrevistas e deixou de guiar por modelos humanos... O
caolho encolheu os ombros.
- O que desejo explicar, padre Benedetto, é que para pintar
São Simão mestre Leonardo não usou nenhum daqueles indivíduos.
- Inventou-o, então?
- Não. Utilizou um busto. Uma escultura que mandou trazer
do castelo do Mouro.
- É mesmo! A caixa de frei Alessandro!
- Lembro bem do dia em que trouxeram aquela peça de
mármore ao convento - prosseguiu sem se mexer. - Fazia um Sol de
rachar e a dupla de cavalos fez um esforço memorável para subir
até aqui a caixa que protegia a peça. A verdade é que não sei por
que se empenhou tanto naquela manobra, mas quando já a
desciam chegou donna Beatrice.
- Donna Beatrice?
- Oh, sim! Estava radiante, com um daqueles trajes enfeitados
rendinhas que tanto lhe agradavam, e com as bochechas
avermelhadas de calor. Chegou escoltada, como sempre, mas
rompeu o protocolo ao se aproximar dos operários que manejavam
o busto. E sabe de uma coisa ? Gritou com eles.
- Gritou? A princesa deu uma ordem direta a alguns
carregadores?
- Mais do que isso, irmão. Perdeu sua compostura régia.
Insultou-os, humilhou-os com palavras rudes e ameaçou enforcá-los
se fizessem algum dano ao seu filósofo.
- Ao seu... filósofo. Mas não era um busto de São Simão?
- Você me perguntou se eu me lembrava de algo
extraordinário não? Pois isso é o mais extraordinário de que
recordo.
- Perdoe-me, prior. Prossiga, peço-lhe.
- Leonardo instalou aquele busto perto da entrada do
refeitório sobre uma pilha de sacos de areia. Era um busto velho,
uma antigüidade. Movia-o de vez era quando para estudar como
influíam nele as aparentes luzes do dia, e quando memorizou tudo,
se apressou a desenhar sua expressão na parede. Sua técnica era
prodigiosa...
- E de onde surgiu esse busto?
- Isso é o mais curioso: segundo soube depois, donna Beatrice
o mandou trazer de Florença só para agradar o mestre.
Matteo já não podia mais. Necessitava interrompê-los, mas
continuava sem se atrever.
- Donna Beatrice sempre foi tão complacente com o mestre? -
perguntou o caolho.
- Sempre. Leonardo era seu artista favorito.
- E pode me esclarecer o porquê desse interesse de Leonardo
por um São Simão de Florença?
- Também estranhei. Que fossem a Florença trazer um
Batista, que enfim é o padroeiro da cidade, teria certo sentido. Mas
um Simão...
- Esse não é Simão, tio! Não é!
Matteo, vermelho de desespero, surpreendeu os frades. Sabia
que não devia interromper as conversas dos mais velhos, mas não
foi capaz de morder a língua por mais tempo.
- Matteo! - O prior ficou atônito. Seu sobrinho de doze anos
estava plantado ali, balançando-se de um lado para outro, o rosto
manchado de lágrimas e o olhar descomposto. - O que aconteceu?
- Sei quem é esse apóstolo, tio - murmurou, enquanto tentava
dissimular seu tremor. Depois desmaiou.
31
Frei Benedetto e o prior Bandello demoraram um bocado para
reanimar Matteo. Ele despertou nervoso. Tinha dificuldade de
articular as palavras e, quando falava, o corpo estremecia de frio e
de medo. Toda sua obsessão era que saíssem do refeitório o quanto
antes. "É uma obra de Satanás", balbuciou entre soluços para
assombro de seu tio e do caolho. Como era impossível acalmá-lo,
aceitaram suas súplicas se refugiando na biblioteca. Ali, ao calor
da calefação, o menino foi voltando a si pouco a pouco.
No início não quis falar. Agarrava-se ao braço do prior com
toda força, e negava com a cabeça cada vez que lhe dirigiam a
palavra. O menino não apresentava feridas nem hematomas
visíveis; embora sujo com a roupa manchada de barro, não parecia
ter sido agredido. E então Benedetto desceu à cozinha para buscar
um pouco de leite quente e alguma marzipã de Siena guardado
para ocasiões especiais. Com o estômago reconfortado e o calor de
volta ao corpo, Matteo foi soltando a língua. O que contou deixou-
os mudos de espanto. Como era seu costume, o noviço fora naquele
dia à praça do Comércio comprar alguns mantimentos para a
despensa do convento. Quinta-feira era o melhor dia para se
abastecer de grãos e verduras; portanto, apanhou algumas moedas
da bolsa de frei Guglielmo e se dispôs realizar sua missão o mais
rapidamente possível. Ao passar pela frente do palácio da Razão, o
solene imóvel de pedra e azulejo de três andares que preside a
praça do Comércio, esbarrou num ajuntamento enorme de pessoas.
Pareciam extasiadas. Escutavam sem pestanejar a um orador que
improvisara um palco sob o pórtico do palácio. No início, o palco
não lhe chamou muito a atenção. No entanto, quando estava
prestes a dar as costas à multidão, algo acabou por chamar a sua
atenção. Matteo conhecia aquele pregador.
- Aqui mesmo, neste passadio, deu a vida por Deus um
verdadeiro crente! - ouviu-o vociferar. - Um bonhomme que se
sacrificou por sua fé e por vocês! Como Cristo! E para quê? Para
nada! Vocês sequer se mexem quando o lembro! Não se dão conta
que cada vez nos parecemos mais com os animais? Não vêem que
com sua atitude passiva estão dando as costas a Deus?
O prior e o caolho contiveram seu espanto. Sob aquele pórtico
que Matteo descrevia encontraram enforcado frei Alessandro.
Entre uma e outra golada de leite, o noviço continuou seu relato.
Quando revelou a identidade daquele orador, ficaram ainda mais
perplexos. Matteo titubeou. O homem que acusava os passantes de
perder a alma por não reconhecer os enviados do Altíssimo era frei
Giberto. O sacristão germano, o do cabelo cor de abóbora que
guardava as portas de Santa Maria, largou naquela mesma manhã
sua função para pregar bem onde o bibliotecário pôs fim a seus
dias. Por quê?
Porém o mais extraordinário de sua descrição ainda estava
por aparecer:
- Serão todos condenados senão renunciarem à Igreja de
Satanás e regressarem à autêntica religião! - clamava o sacristão,
fora de si. – Nada comam que proceda do coito! Repudiem a carne
de animais! Abominem os ovos e o leite! Preservem-se dos falsos
sacramentos. Não comunguem nem batizem em falso!
Desobedeçam a Roma e revisem sua fé se ainda querem ser salvos!
O caolho sacudiu a cabeça. "Frei Giberto disse isso?" O prior
animou-o a continuar. Matteo, mais calmo, contou-lhes que quando
o sacristão o descobriu entre a multidão baixou como um raio de
seu improvisado altar e o agarrou pelo pescoço, mostrando-o a
todo mundo.
- Estão vendo bem? - disse, sacudindo-o como um saco. - É o
sobrinho do prior de Santa Maria delle Grazie. O que será dele se
agora que é uma criança ninguém o educa na verdadeira fé? Eu
direi - bufou.- Vai se converter em servidor de Satanás como seu
tio! Um verdadeiro renegado de Deus! E arrastará centenas de
cordeiros como vocês à condenação eterna!
O rosto do prior se enrugou, severo.
- Disse isso? Está seguro, filho?
O noviço assentiu.
- E logo me desnudou.
- Desnudou você?
- E me levantou e me agitou para que todo mundo pudesse me
ver.
- E por que, Matteo? Por quê?
Os olhos do menino se umedeceram ao recordar aquela parte.
- Não sei, tio. Eu... Só o ouvia gritar à multidão que não
acreditava que uma criança é pura só porque não perdeu sua
inocência. E que todos viemos a este mundo para purgar nossos
pecados e se não os purgarmos nesta existência regressaremos de
novo a este vale de lágrimas de matéria ruim para uma vida ainda
pior do que a primeira.
- A reencarnação não é uma doutrina cristã! - protestou o
caolho.
- E sim albigense - interrompeu-o o prior. - Deixe-o continuar!
- irmão.
Matteo enxugou os olhos e prosseguiu:
- Logo... logo disse que embora os frades deste convento
vivam a Igreja de Satã e obedeçam a um papa que adora os deuses
antigos, prometeu que esta casa não tardará a se converter num
farol que guiará mundo até a salvação.
- Disse isso? - O caolho franziu o rosto. - E explicou por quê?
- Não o perturbe, irmão.
O noviço se agarrou outra vez ao tio.
- Não é certo, verdade? - choramingou. - Não é certo que
somente é a Igreja de Satã.
- Claro que não, Matteo. - Bandello acariciou-lhe a cabeça. -
que você diz isso?
- É que... é que frei Giberto se aborreceu muito quando eu
disse que isso não era verdade. Esbofeteou-me e gritou que só
quando os expuserem do Cenacolo e permitirem que este seja
contemplado por todo mundo, poderia voltar a brilhar a verdadeira
Igreja.
Uma sensação crescente de raiva invadiu o prior.
- Colocou a mão em você! - concluiu indignado.
Matteo não fez caso.
- Frei Giberto dizia que quanto mais contemplarmos o
Cenacolo mais nos aproximaremos de sua Igreja. E que o mural do
mestre Leonardo escondia o segredo da salvação eterna. E por isso
tanto ele como frei Alessandro aceitaram que os retratasse junto
de Cristo.
- Disse isso?
- Sim... - conteve um soluço. - Pintados ali já haviam merecido
a glória.
O menino observou os sérios semblantes de seus dois
superiores. O caolho o tirou da dúvida: não fora apenas o
bibliotecário que posara para o Judas. Outros frades, como Giberto,
deixaram-se retratar por ele fazendo as vezes de apóstolos. O
alemão encarnou Filipe, mas também Bartolomeu, os dois Tiagos
ou André tinham rostos cedidos pelos monges. O próprio Benedetto
se prestou a se deixar retratar como Tomé.
- Estou de perfil para que não vejam o olho perdido - explicou.
O caolho afagou o impressionado Matteo. - Você é um rapaz
valente - disse. - Fez bem em nos tirar dali de dentro. O mal pode
nos fazer perder a razão, como a serpente de Eva.
Algo devia desconfiar sobre a verdadeira identidade dos
apóstolos, porque quase sem pensar na consequência, Benedetto
interpelou Matteo com uma pergunta que surpreendeu até o
próprio prior.
- Há pouco você disse que sabia quem era de verdade o
apóstolo Simão. Ouviu o sacristão dizer?
O noviço desviou os olhos em direção às carteiras vazias do
scríptoríum e assentiu.
- Enquanto me detinha ali nu, pendurado para que todos me
vissem, contou a história de um homem que viveu antes de Cristo e
pregou sobre a imortalidade da alma.
- Deveras?
- Disse que esse homem aprendeu dos sábios mais antigos do
mundo. Também pregou coisas sobre o jejum, a oração e o frio.
- O que disse exatamente? - insistiu Benedetto.
- Que essas três coisas nos ajudam a abandonar o corpo, onde
vivem todos os pecados e ruindades, e a nos identificar só com a
alma... E também disse que no Cenacolo esse varão continua ainda
a distribuir seus ensinamentos vestido de branco imaculado.
- Só um dos treze se veste assim no mural - observou
Bandello. – E é Simão.
- E deu o nome do sábio tão grande? - insistiu o caolho.
- Sim. Chamou-o de Platão.
- Platão! - Benedetto deu um salto. - Claro! O filósofo de
donna Beatrice. O busto que mandou trazer de Florença era o
seu!... *
*[Existe nos Uffizi de Florença um busto de Platão atribuído ao
escultor grego Silanião, que foi, ao que se sabe, o único que
retratou em vida o filósofo, por ordem do rei Mitrídates, em 325
a.C. É provável que o busto florentino a que se alude neste texto
seja esse ou uma cópia, já que apresenta uma assombrosa seme-
lhança com o apóstolo Simão da Última ceia.]
O prior esfregou a testa, perplexo:
- E por que haveria Leonardo de se retratar prestando
atenção em Platão em vez de Cristo?
- Como? Ainda não percebeu, padre? É claríssimo! Leonardo
nos indica em seu mural de onde vêm seus conhecimentos.
Leonardo, prior, como frei Giberto e frei Alessandro, é albigense. O
senhor já disse antes.
- E tinha razão. Platão, como os albigenses depois, afirmou
que o verdadeiro conhecimento humano é obtido diretamente do
mundo espiritual, sem mediadores, sem igrejas, nem missas.
Chamava isso de gnosis, prior, a pior das heresias possíveis.
- Como pode estar tão seguro? Um testemunho assim não
bastará para acusá-lo de heresia.
- Ah, não? Não vê que Leonardo sempre se veste de branco,
como Simão no Cenacolo? Não sabe que se recusa a comer carne e
pratica o celibato? Por acaso conheceu alguma mulher dele?
- Nós também vestimos roupas claras e jejuamos, padre
Benedetto. Além disso, dizem que ele gosta de homens, que não é
tão celibatário como você afirma - assinalou frei Vicenzo diante do
desconcertado olhar do jovem Matteo.
- Dizem! E quem diz, prior?
- Não passam de falatórios. Leonardo é uma pessoa solitária.
Recusa a idéia de se unir como se fosse a peste.
- Aposto que é celibatário como os da heresia albigense...
Tudo se encaixa!
O prior não ocultou seu desprazer.
- Suponhamos que você esteja certo. Nesse caso, o que
devemos fazer?
- A primeira coisa - prosseguiu Benedetto - é convencer o
padre Leyre da heresia dele. Ele é inquisidor, está aqui quase por
milagre de Deus, e seguramente saberá mais sobre os albigenses
do que nós.
- E depois?
- Deter frei Gilberto e interrogá-lo, certamente - respondeu.
- Isso não é possível...
Matteo sussurrou aquela frase temendo importunar. Embora
já se sentisse mais reconfortado, ainda não terminara de contar o
que vira na praça do Comércio.
- Como diz?
- Que já não poderão detê-lo.
- E por que, Matteo?
- Porque... - titubeou - depois de terminar o sermão, o irmão
Giberto tocou fogo na roupa e se queimou à vista de todos.
- Santo Deus! - o caolho tapou a boca horrorizado. - E então,
prior? Já não há dúvida. O sacristão preferiu se submeter à endura
do que ao nosso julgamento...
- A endura?
A dúvida do jovem Matteo ficou sem resposta, flutuando na
atmosfera rarefeita da biblioteca. Benedetto pediu permissão para
se retirar e meditar sobre aquilo e deixou o recinto às pressas.
Naquela manhã, impressionado pelas informações de Matteo, não
tardou a me contar que em Santa Maria delle Grazie viveram pelo
menos dois bonhommes, que era como os antigos albigenses se
chamavam a si mesmos.
Um inquisidor devia saber. Mas o caolho pôs a ênfase numa
segunda descoberta que acreditou mais de minha
responsabilidade: enfim conseguiu identificar o interlocutor do
mestre Leonardo na mesa pascal do Cenacolo. Já sabia quem era
realmente o homem do manto branco e as mãos oferecidas com
que distraía a atenção de pelo menos dois discípulos de Cristo:
Platão. Esta oportuna confidência preencheu uma lacuna que eu
não conseguia compreender desde que me reuni com Oliverio
Jacarandá. A presença do filósofo no refeitório esclarecia por que o
mestre Da Vinci conservava em sua biblioteca as obras completas
do ateniense. Livros que, por certo, a esta hora deviam estar em
algum canto do palácio de Jacarandá sem que ninguém prestasse a
atenção que mereciam. O círculo, portanto, ia se fechando.
32
Roma, três dias depois
O guarda pontifício apontou para a frente, tenso como uma
balestra, mostrando ao mestre geral dos dominicanos o caminho
que devia percorrer. As medidas de segurança pareceram
exageradas até para o padre Torriani, a quem os homens do papa
conheciam de sobra. Mas suas ordens eram estritas: acabara de
morrer de indigestão o terceiro cardeal em apenas seis meses, e o
pontífice, a quem muitos responsabilizavam por aquelas mortes
repentinas, ordenara um simulacro de investigação que incluía o
rigoroso controle dos acessos ao palácio pontifício.
O ambiente não era bom. Roma tinha motivos suficientes para
tremer quando Alexandre VI nomeava cardeal algum homem probo
de sua comunidade. Todos sabiam que se o Santo Padre
ambicionasse suas posses, tudo o que tinha a fazer era nomeá-lo
cardeal primeiro e assassiná-lo discretamente depois. As leis
garantiam-no: o papa era o único e legítimo herdeiro dos bens de
sua cúria. E com Sua Eminência o cardeal Michieli, riquíssimo
patriarca de Veneza cujo corpo já esfriava na antecâmara
pontifícia, a lei voltou a ser executada com absoluta precisão.
Torriani se submeteu às novas normas de acesso aos
aposentos do Bórgias sem reclamar. Ao cabo de uns minutos, logo
ao deixar para trás a porta de ouro da capela do Santo
Sacramento, divisou-os claramente: estavam na terceira sala, com
os olhos cravados no teto e um estranho gesto de triunfo
desenhado em seus rostos. Ali, junto às janelas da ala leste,
protegidos dos rigores do inverno romano, o mestre Annio de
Viterbo e Sua Santidade conversavam animadamente sob uns
afrescos que pareciam recém-acabados. De fato, ainda cheiravam a
verniz e resina.
O pontífice, barbeado e com o cabelo metade castanho
metade branco, dissimulava a barriga sob uma sotaina cor vinho
que o cobria da cabeça aos pés. Annio, ao contrário, tinha o
aspecto de uma doninha, rosto pontiagudo de onde saía um
montículo de pelinhos pretos eriçados e mãos grandes e ossudas,
quase de espantalho, com que fazia pomposos movimentos em
direção às pinturas.
O verbo inflamado de Nanni, que era como todos chamavam
aquele sábio, ecoava como os trovões de uma tormenta de verão:
- A arte é mais necessária do que suas armas, Santo Padre!
Mantenha-a sempre ao seu serviço e dominará a cristandade!
Perca-a e fracassará em sua tarefa pastoral!
Torriani viu Alexandre VI concordar sem articular palavra,
enquanto notava como seu estômago se alterava pouco a pouco.
Escutara aquele discurso muitas vezes. Essa idéia peregrina
invadira Roma e, com ela, a flor e a nata das artes florentinas. O
papa em pessoa atraíra um verdadeiro exército de artistas de
Lorenzo de Médicis, o Magnífico, só para satisfazer os desejos
ocultos de Annio. E isso para não falar dos sofrimentos de Torriani
diante da irresistível promoção dos privilégios de pintores e
escultores, sempre em detrimento dos frades e cardeais. Inco-
modado, ciumento da influência que aquele pernicioso monge De
Viterbo exercia sobre o Santo Padre, o geral dos dominicanos se
fez de desatento e se dirigiu ao chefe da guarda para que
anunciasse sua chegada. O grande responsável pela Ordem de São
Domingos estava ali tal e como Alexandre VI solicitara. O papa
sorriu:
- Alegro-me de vê-lo enfim, querido Gioacchino! - exclamou
estendendo o anel ao visitante, que o beijou com respeito. - Chega
no momento oportuno. Nanni e eu falávamos há pouco desse
assunto que tanto o preocupa...
O dominicano encarou o papa.
- O que... sabe disso?
- Oh, vamos, mestre Torriani! Não é necessária tanta
discrição comigo. Sei praticamente tudo: até que enviou um espião
em meu nome à Milão para comprovar certos rumores que falam
de uma heresia que toma conta da corte do Mouro.
- Eu... - o velho pregador titubeou. - Exatamente vinha para
colocá-lo em dia sobre o que nosso homem descobriu.
- Alegro-me - riu. - Sou todo ouvidos.
Annio de Viterbo e o Santo Padre abandonaram a
contemplação dos afrescos para se sentarem em duas grandes
cadeiras que os camareiros acabavam de dispor para eles. Torriani,
nervoso, preferiu permanecer de pé. Levava uma pasta sob o braço
em que guardava uma extensa carta que eu próprio escrevera ao
descobrir uma ramificação albigense no coração de Milão.
- Há alguns meses - começou a se explicar Torriani, ainda
impressionado por minhas averiguações - recebíamos informes que
insinuavam que o duque de Milão utiliza um célebre mestre
florentino, Leonardo da Vinci, para difundir idéias heréticas numa
obra majestosa que prepara sobre a Última Ceia de Cristo.
- Leonardo, está dizendo?
O papa olhou para Nanni, aguardando algum de seus sábios
comentários.
- Leonardo, Santidade - repetiu Nanni. - Não se lembra dele?
- Vagamente.
- É natural - a doninha o desculpou. - Seu nome não figurava
na lista de artistas recomendados pela casa Médicis para
embelezar Roma quando o senhor era ainda cardeal. Pelo que
sabemos dele, trata-se de um homem orgulhoso, irascível e,
certamente, pouco amigo de nossa Santa Mãe Igreja. Os Médicis
sabiam disso e, com bom critério, evitaram recomendá-lo.
O papa suspirou:
- Outro homem problemático, não?
- Sem dúvida, Santidade. Leonardo se sentiu desmerecido por
não ter sido recomendado para trabalhar em Roma, e em 1482
abandonou Florença, deu as costas aos Médicis e se instalou em
Milão para trabalhar como inventor, cozinheiro e, se fosse possível,
não como pintor.
- Em Milão? E como acolheram um homem assim? - o gesto do
papa se tornou caricato, antes de prosseguir. - É isso. Já entendo...
Por isso, você dizia que o duque não me é fiel, não é, Nanni?
- Isso deve perguntar ao mestre dominicano, Santidade! -
respondeu secamente. - Ao que parece, traz as provas para
demonstrá-lo.
Torriani, ainda de pé, protestou:
- Ainda não são provas; só indícios, Santidade. Leonardo,
guiado e protegido pelo Mouro, partiu para a elaboração de uma
obra de proporções colossais e tema cristão, mas cheia de
irregularidades que preocupam o prior de nosso convento de Santa
Maria delle Grazie.
- Irregularidades?
- Sim, Santidade. Trata-se de uma Última Ceia.
- E o que há de extraordinário numa obra assim?
- Verá, Santidade: sabemos que seus doze apóstolos não são
apóstolos, e sim retratos de personagens pagãos ou de fé duvidosa,
cuja secreta disposição parece querer transmitir uma informação
que não é cristã.
O papa e Nanni se olharam. Quando o sábio De Viterbo
requereu mais detalhes, o dominicano abriu sua pasta:
- Acabamos de receber o primeiro informe de nosso homem
na cidade - disse, esgrimindo minha carta. - É um erudito de
Betânia, um especialista em idiomas cifrados e códigos secretos,
que neste momento estuda tanto a obra como Mestre Leonardo.
Examinou retrato por retrato dessa Última Ceia e buscou uma
relação entre eles. Nosso especialista comprovou quase tudo:
desde a comparação de cada apóstolo com um signo do zodíaco até
a busca de equivalências entre a posição de suas mãos e as notas
musicais. As conclusões não tardarão a chegar e o que hoje são
indícios, amanhã, talvez, sejam provas.
Nanni se exasperou.
- Mas descobriu ou não algo concreto?
- Sem dúvida, padre Annio. A verdadeira identidade de três
dos apóstolos foi totalmente revelada. Sabemos que o rosto de
Judas Iscariotes, por exemplo, corresponde ao de certo Alessandro
Trivulzio, um dominicano que morreu pouco depois do Dia de Reis,
enforcado no centro de Milão...
- Que coisa! Como o autêntico Judas - sussurrou o pontífice.
- Pois não, Santidade. Ainda não pudemos determinar se se
suicidou ou foi assassinado, mas nosso informante acredita que
pertencia a uma comunidade de albigenses infiltrada em nosso
convento.
- Albigenses?
O Santo Padre dilatou as pupilas de espanto.
- Albigenses, Santidade. Acreditam ser a verdadeira Igreja de
Deus, e aceitam o Pai-Nosso como oração e repudiam o sacerdócio,
ou a figura do Vigário de Cristo, como único representante de Deus
na Terra.
- Conheço os albigenses, mestre Torriani! - disse o papa,
colérico. - Mas acreditávamos que os últimos arderam em
Carcassonne e Toulouse em 1325. O bispo de Pamiers não acabou
com eles?
Torriani conhecia aquela história. Nem todos pereceram.
Depois do triunfo da cruzada contra os albigenses do sul da França
e da queda de Montségur em 1244, produziu-se uma debandada de
famílias hereges para Aragão, Lombardia e Alemanha. Os que
cruzaram os Alpes se estabeleceram nas imediações de Milão, onde
forças mais frouxas, como as dos Visconti, deixaram-nos viver em
paz. Suas idéias extremistas, no entanto, foram caindo em desuso e
muitos acabaram por desaparecer, sem perpetuar seus ritos e
idéias heterodoxas.
- A situação pode ser grave, Santidade - prosseguiu Torriani,
muito sério. - Frei Alessandro Trivulzio não era o único suspeito de
professar a heresia albigense em nosso mosteiro milanês. Há três
dias, outro frade declarou, abertamente, sua heresia e depois se
suicidou.
- Endura? - os olhos da doninha faiscaram.
- É assim.
- Por todos os santos! - bramiu. - A endura foi uma das
práticas mais extremas dos albigenses. Há duzentos anos ninguém
recorria a ela.
O assessor olhou para o pontífice, que parecia não ter
entendido bem o que era essa coisa da endura. Annio lhe explicou.
- Em sua versão passiva - disse -, consistia no voto solene de
não ingerir alimentos, nem nada que contaminasse o corpo do
albigense que aspirava à perfeição. Se morria puro, aquele
desgraçado acreditava que salvava sua alma e se integrava em
Deus. Mas existiu também uma versão ativa, a do suicídio pelo
fogo, que só se consumou durante o cerco de Montségur. Os
habitantes daquele último bastião militar albigense preferiram se
lançar numa grande pira de troncos à se entregar às tropas
pontifícias.
- Este frade de que falo se imolou pelo fogo, padre.
Nanni não saía de seu espanto.
- Custa-me acreditar que alguém ressuscitou essa velha
fórmula, mestre Torriani. Suponho que tem outras notícias que
fundamentam seu alarme.
- Desgraçadamente tenho. De fato, temos razões para pensar
que as provas da existência de uma comunidade albigense ativa em
Milão estão no mural A Última Ceia que Leonardo da Vinci está
acabando neste momento. Ele mesmo se retratou em sua obra
conversando com um apóstolo que na realidade mascara Platão. Já
sabe que é a referência antiga desses malditos hereges.
A doninha deu um pulo de sua cadeira dobrável.
- Platão? Está seguro do que diz?
- Completamente. O pior, padre Annio, é que esse vínculo não
está isento de uma lógica perversa. Como sabe, Leonardo se
formou em Florença sob as ordens de Andrea del Verocchio, um
artista poderoso, bem considerado entre os Médicis e muito
próximo da Academia que Cosme, o Velho, instalou sob a direção
de certo Marsilio Ficino. E, como também sabe, essa Academia foi
criada para imitar a de Platão em Atenas.
- E então? - o assessor de Alexandre VI repuxou o rosto,
receando tanta erudição.
- Nossa conclusão não pode ser mais óbvia, padre: se os
albigenses têm em comum muitas de suas doutrinas mais
duvidosas, sendo que a Academia de Ficino ainda pratica costumes
albigenses como não ingerir carne de animal, o que nos impede de
pensar que Leonardo esteja utilizando sua obra para transmitir
doutrinas contrárias à Roma?
- O que nos pede? Que o excomunguemos?
- Ainda não. Necessitamos provar sem margem de dúvida que
Leonardo introduziu suas idéias nesse mural. Nosso homem em
Milão trabalha para reunir essas evidências. Depois agiremos.
- Mas mestre Torriani- cortou-o De Viterbo antes que seu
discurso se inflamasse-, muitos artistas como Botticelli ou
Pinturicchio se formaram na Academia e, no entanto, são
excelentes cristãos.
- Só parecem, mestre Annio. Deve desconfiar. Os dominicanos
sempre são tão suspicazes! Olhe ao redor.
- Pinturicchio pintou estes afrescos maravilhosos para Sua
Santidade - respondeu, apontando para o teto. - Acaso vê neles
sombra de heresia? Vamos! Vê?
O dominicano conhecia bem aquela decoração. Betânia abrira
em segredo um expediente sobre ela que nunca chegou a
prosperar.
- Não convém se exaltar, mestre Annio. Sobretudo porque,
sem querer, está dando-me a razão. Examine bem a obra desse
Pinturicchio; deuses pagãos, ninfas, animais exóticos e cenas
jamais encontradas na Bíblia. Só um seguidor de Platão, imbuído
das doutrinas pagãs, pintaria, algo assim.
- É a história de Isis e Osíris! - protestou a doninha, quase
fora de si.
- Osíris, se não sabe, ressuscitou dentre os mortos como
Nosso Senhor. E sua lembrança, ainda que pagã na forma, renova
nossa esperança na salvação da carne. Osíris aparece aqui como
um touro, como touro é nosso Santo Pai. Nunca viu o brasão dos
Bórgias? Não é óbvia a relação entre essa figura mitológica,
símbolo de força e valor, e o soldado romano que brilha em seu
escudo de armas? Os símbolos não são heresias, mestre?
Quando frei Gioacchino Torriani ia responder, a voz
aveludada e cansada do pontífice abreviou a discussão:
- O que não entendo bem - disse, arrastando as palavras,
como se aquela discussão o aborrecesse - é onde vê o pecado do
Mouro em tudo isto...
- É porque não examinou a obra de Leonardo, Santidade! –
garantiu Torriani. - O duque de Milão a financia totalmente e
protege o artista das recomendações de nossos frades. O prior de
Santa Maria há meses, tenta reconduzir o esquema do mural a uma
estética mais piedosa, mas é impossível. É o Mouro quem permitiu
a Leonardo que se retratasse a si próprio de costas para Cristo,
entregue a uma conversa com Platão.
- Já, já... - bocejou o pontífice. - Mencionou também Ficino,
não Torriani assentiu com a cabeça.
- E não é esse o homem de quem tantas vezes me falou, caro
Nanni.
- É assim, Santidade - concordou Nanni com um sorriso
forçado. - Trata-se de um personagem extraordinário. Único. Não
creio que um herege, como o mestre Torriani pretende pintar. É
cônego da catedral de Florença e agora deve andar pelos sessenta
e quatro, ou sessenta e cinco anos. Seu espírito iluminado o
encantaria.
- Espírito iluminado? - o pontífice tossiu. - Seria outro conde
Savonarola? Ou acaso não são ambos cônegos da mesma catedral?
O papa piscou um olho para Torriani, que tremeu ao escutar o
nome do exaltado dominicano que pregava a chegada do fim da
Igreja rica.
- É verdade que dividem o templo, Santidade- desculpou-se
doninha, perturbado-mas, são varões de personalidades opostas.
Ficino é um estudioso que merece todo nosso respeito. Um sábio
que traduz para o latim incontáveis textos antigos, como os
tratados egípcios que serviram à Pinturicchio para decorar estes
tetos.
- Deveras?
- Antes de trabalhar nos afrescos, Pinturicchio leu as obras de
Hermes que Ficino acabara de traduzir do grego. Nelas se narram
estas belas cenas de amor entre Isis e Osíris...
- E Leonardo? - grunhiu o pontífice para Nanni. - Ele também
leu Ficino?
- E tratou com ele, Santidade. Pinturicchio sabe. Ambos foram
seus discípulos no ateliê de Verocchio e ambos ouviram suas
explicações sobre Platão; e sua crença na imortalidade da alma.
Pode haver algo mais profundamente cristão do que essa idéia?
Nanni pronunciou aquela última frase em desafio às críticas
do mestre Torriani. Sabia de sobra que a maioria dos dominicanos
era tomista, defensora da teologia de Tomás de Aquino inspirada
em Aristóteles, e inimiga de tudo o que significasse resgatar Platão
do esquecimento. Meu mestre geral percebeu que só tinha a
perder contra aquele interlocutor porque, logo em seguida, baixou
o olhar e anunciou, submisso, sua despedida:
- Santidade. Venerável Annio - saudou-os cortesmente. - É
inútil que continuemos a especular sobre as fontes de inspiração
dessa Última Ceia, de Milão, enquanto, não concluirmos nossas
averiguações. Se me der sua bênção, a investigação prosseguirá
como até agora, e determinará a espécie de pecado que Leonardo
está cometendo contra nossa doutrina.
- Se estiver - contemporizou De Viterbo.
O papa devolveu a saudação à Torriani e, fazendo o sinal da
cruz no ar, acrescentou:
- Dou-lhe um conselho antes que se retire, padre Torriani: de
agora em diante, avalie bem o terreno em que pisa.
33
Nunca vi rostos tão compridos como os dos monges de Santa
Maria naquela manhã de domingo. Antes do toque de matinas, o
prior em pessoa percorreu o convento, cela por cela, despertando-
nos todos. Aos gritos ordenou que nos lavássemos o quanto antes
e que preparássemos nossas consciências para um capítulo
extraordinário na história da comunidade.
Certamente ninguém resmungou. Não havia frade que não
soubesse que a morte do sacristão lhes seria cobrada, cedo ou
tarde. Talvez, isso explicasse por que todos começaram a
desconfiar de todos de um dia para o outro. Aos olhos de um
forasteiro como eu, a situação se tornou insustentável. Os frades se
juntavam em pequenos grupos de acordo com sua origem. Os do
sul de Milão não falavam com os do norte, que, por sua vez,
evitavam se relacionar com os dos lagos, como se tivessem algo a
ver com o desgraçado fim de frei Giberto. Santa Maria estava
dividida... e eu ignorava o porquê.
Nessa madrugada, depois de me lavar e me vestir na
penumbra, compreendi como a crise era profunda. Embora, fosse
certo, que não havia frade que não falasse mal de outro, todos
pareciam estar de acordo em algo: deviam me manter o mais
afastado possível de suas aflições, havia algo que os atormentasse
era que, em virtude de meus poderes como inquisidor, poderia
abrir um processo contra sua comunidade. O rumor de que frei
Giberto morrera pregando como um albigense os aterrorizava.
Ninguém por certo se atreveu a manifestá-lo abertamente.
Olhavam-me como se eu tivesse obrigado frei Alessandro a se
enforcar e conseguido que o sacristão perdesse o juízo. Tal era o
poder demoníaco que me atribuíam.
Porém, o que mais me chamou a atenção, foi ver a maneira
como Vicenzo Bandello tirou proveito daqueles medos.
Depois de nos despertar, o prior nos conduziu a uma grande
mesa vazia, que ele mesmo preparou, num salão perto das
cavalariças. Fazia frio e o aposento era ainda pior iluminado do
que nossas celas. Mas, foi assim, quase às apalpadelas, que
Bandello nos tornou participantes do intenso programa que nos
reservou. Das matinas às completas, disse, nós nos entregaríamos
à exercícios espirituais, revisão dos pecados, atos de contrição e
confissão pública. E, quando acabasse o dia, um grupo de irmãos
designado por ele próprio se ocuparia de ir ao Claustro dos Mortos
e exumar os restos de frei Alessandro Trivulzio. Não só se arranca-
riam seus pobres despojos do abraço da terra, mas também, os
levariam para além dos muros da cidade para exorcizá-los. E, com
eles, também os ossos do irmão Giberto.
Bandello queria que seu mosteiro ficasse limpo de heresia
antes do anoitecer. Ele, que acreditara na inocência do irmão
bibliotecário e defendera até a existência de um complô contra sua
vida, sabia já que frei Alessandro vivera de costas para Cristo,
pondo em sério perigo a integridade moral de seu priorado.
Vi Mauro Sforza, o coveiro, benzer-se nervoso num extremo
da mesa.
Deparamos com o padre Vicenzo mais sério e taciturno do
que nunca. Não dormira bem. As bolsas de seus olhos caíam como
chumbo sobre as maçãs do rosto, conferindo-lhe um aspecto
desolador. Em parte, a culpa por aquele deplorável estado era
minha. Na tarde anterior, enquanto o mestre Torriani e o papa
Alexandre se entrevistavam em Roma nas minhas costas, Bandello
e este humilde servo de Deus conversamos sobre o que implicava
ter dois albigenses infiltrados na comunidade.
- Milão - expliquei - estava sendo atacada pelas forças do mal
como nunca nos últimos cem anos. Todas as minhas fontes
confirmavam.
No começo, o prior me olhou incrédulo, como se duvidasse
que um recém-chegado pudesse compreender os problemas de sua
diocese, mas, à medida que expunha meus argumentos mudava de
atitude.
Argumentei acreditar que a estranha cadeia de mortes que
sofremos não obedecia à simples acasos. Até expliquei a ligação
dos dois peregrinos assassinados na igreja de São Francisco. A
própria polícia do Mouro me dava razão. Os oficiais concluíram que
também esses desgraçados morreram sem opor resistência, da
mesma maneira que frei Alessandro. Ainda mais: o local exato dos
crimes em São Francisco fora o altar-mor, bem abaixo de um
quadro do mestre Leonardo a que chamavam de Maestà. Esse
detalhe, e mais o de que junto a seus pertences só se encontraram
um pedaço de pão e um maço de cartas ilustradas, fez-me recear.
Todos os mortos tinham sobre eles os mesmos objetos, como se
formassem parte de um obscuro ritual. Talvez, admiti, de um
cerimonial albigense até então desconhecido.
Era estranho. Leonardo, tal como sugeri ao prior, era uma
fonte singular de problemas. Frei Alessandro morrera depois de
posar como Judas Iscariotes e eu sabia que o sacristão também
estava entre os frades que mais simpatizavam com ele. E isso para
não falar de donna Beatrice: desapossada da vida depois de lhe ter
dado toda sua proteção. Como era possível não ver o fio sutil que
ligava aqueles acontecimentos? Não resultava evidente que
Leonardo da Vinci estava cercado de poderosos inimigos, talvez tão
desconfiados da heterodoxia dele como nós próprios, mas capazes
de chegar às armas para acabar com ele e os seus?
Foram as vítimas, e a ameaça de que a elas pudessem se
somar outras pessoas, as que me obrigaram a falar com Bandello
sobre o Augure. E creio que fiz bem.
Olhou-me incrédulo, no início, quando expliquei que Roma já
fora advertida sobre este acúmulo de desgraças. De fato, altas
instâncias políticas já há tempo recebiam notícias de um misterioso
informante que anunciara o que aconteceria com todos aqueles
que não detivessem os trabalhos do Cenacolo.
- O perfil daquele homem - expliquei - era o de, um indivíduo
sagaz, inteligente, de provável formação dominicana, que, escondia
a identidade por temor de sofrer represálias do duque. Um homem
que, sem dúvida, atuava por despeito contra o mestre e cuja
obsessão parecia ser a de levá-lo à ruína e ao descrédito. Um
varão, em suma, que devia ser localizado, imediatamente, se
quiséssemos deter aquele incessante gotejamento de mortes e
chegar às claríssimas provas incriminatórias contra Leonardo que
ele garantia possuir.
- Se não me engano, padre, a passividade de Roma diante das
ameaças o obrigou a fazer justiça com as próprias mãos.
- E por que, padre Leyre? O que pode ter esse homem contra
os pintores? - perguntou o prior, espantado.
- Pensei muito nisso e, creia-me, só encontro uma explicação
possível - Bandello me olhou intrigado, convidando-me a
prosseguir. - Minha hipótese é que em algum momento do passado
recente o Augure foi cúmplice de Leonardo da Vinci, e até chegou
a comungar profundamente de suas crenças heterodoxas. Pode ser
que por alguma razão obscura, que deveremos determinar, nosso
homem se sinta defraudado pelo pintor, e decidiu delatá-lo.
Primeiro escreveu cartas obsessivas à Roma, informando-nos sobre
seus delitos contra a fé e as maldades que escondia no Cenacolo,
mas diante de nosso ceticismo ficou desesperado e decidiu passar
à ação.
- À ação? Não entendo.
- Não posso reprová-lo, prior. Também não tenho todas as
chaves. No entanto, minha hipótese ganha sentido se concluirmos
que o Augure é tão albigense como Alessandro ou Giberto. Durante
um tempo, deveu-se acreditar herdeiro dos autênticos apóstolos de
Cristo e, como os albigenses, aguardou com paciência a chegada
do dia da Segunda Vinda do Messias. É o sonho de todo
bonhomme. Acreditam que nesse dia se confirmará sua "verdadeira
religião" aos olhos da cristandade - aproveitei a atenção do padre
Vicenzo para arrematar minha idéia em tom solene. - Acredito que
depois de longa e vã espera, alterado por algum sério contratempo,
o Augure perdeu a paciência, renegou seus votos de não-violência
e se dispôs a cobrar com sangue o tempo perdido com os "homens
puros".
- É uma acusação horrível, padre.
- Estudemos os fatos, prior - convidei. - Os albigenses
conhecem o Novo Testamento e quando o Augure matou frei
Alessandro, preparou tudo para que parecesse suicídio. Leonardo
se deu logo conta disso e embora tratasse de desviar a atenção da
polícia, naquele dia, deu-me uma pista fundamental: Alessandro
morreu da mesma maneira como Judas Iscariotes depois de delatar
Jesus.
- E que importância isso pode ter?
- Muita, prior. O universo albigense se movimenta graças ao
poder dos símbolos. Se o Augure conseguisse fazer a comunidade
dos perfeitos acreditar que se reproduziam os acontecimentos que
precederam a morte de Jesus, poderia fazê-los ver que a Segunda
Vinda estava perto. Entende? O "suicídio" do bibliotecário lhes
anunciava que estavam a ponto de surgir tempos proféticos: Cristo
ia regressar à Terra em breve e sua fé ressurgiria triunfante por
entre as sombras.
- A Parúsia...
- Com efeito. Por isso Giberto, impressionado pela revelação,
deixou o medo para trás e saiu a pregar como albigense, dando a
vida sem temor, na certeza de que, quando o Senhor regressasse,
ressuscitaria salvo dentre os mortos. O Augure consuma sua
vingança com uma inteligência demoníaca.
- Parece seguro de sua hipótese.
- E estou - concordei. - Já disse antes que nosso informante
tem uma personalidade complexa: é brilhante e não deixa nada ao
acaso, nem mesmo o lugar que escolheu para enforcar Alessandro.
- Ah, não?
- Pensei que se dera conta - sorri, cínico. - Quando visitei o
pórtico do palácio da Razão e inspecionei a viga onde nosso
bibliotecário estava pendurado, vi um baixo-relevo curioso.
Pertence a um certo Orlando de Tressano, antigo carrasco de
hereges a quem a inscrição descreve como "spada e tutore Della
fede per aver fatto bruciare como si doveva i catari".*["Espada e
mestre da fé por ter queimado os albigenses como mereciam."]
- Curiosa zombaria, não acredita?
Vicenzo Bandello estava surpreso. A peste da heresia
infectara seu convento além do imaginável.
- Diga-me, padre Leyre - perguntou consternado -, até que
ponto imagina que o Augure engana os seus?
- O suficiente para convencer esses peregrinos de São
Francisco abandonar seus esconderijos nas montanhas e se
apresentar na cidade em busca da salvação. Entregaram a vida
docilmente ante a aproximação da Parúsia. O Augure conseguiu
assim que a comunidade albigensse denuncie sozinha. E deve
acreditar que é apenas uma questão de tempo que o mestre
Leonardo dê um passo em falso.
- Então... - titubeou o prior - acredita que o Augure vive ainda
entre nós.
- Sim, estou convencido - sorri. - E se esconde porque sabe
que tarde para conseguir seu perdão. Não apenas pecou contra a
doutrina da igreja, mas infringiu o quinto mandamento: não
matarás.
- Como o identificaremos?
- Por sorte cometeu um pequeno erro.
- Um erro?
- Nas primeiras cartas, quando ainda tinha esperança na
intervenção de Roma, deu-nos uma pista para que pudéssemos
localizá-lo.
A fronte enrugada do prior se retesou pela surpresa.
- Claro! - exclamou, levando as mãos à cabeça. - É essa sua
adivinhação! A assinatura do Augure! Por isso estava escrita na
carta que contramos junto com o bibliotecário!
- Frei Alessandro quis decifrar o mistério por sua conta.
Incauto, eu próprio lhe entreguei o texto e talvez foi a curiosidade
o que acelerou sua morte.
- Nesse caso, padre Leyre, já o temos. Basta decifrar o
hieróglifo para chegar a ele.
- Tomara que fosse tão fácil.
34
O bom prior não pregou o olho toda a noite. Mal o vi diante
dos monges, de pé, com os olhos avermelhados e olheiras, supus
que passara a noite dando voltas ao molesto Óculos ejus dinumera.
Quase lastimei tê-lo encarregado daquela nova responsabilidade. À
sua obrigação de desmascarar aqueles que entre seus monges
professavam crenças heréticas, ou de determinar que espécie de
mensagem provocadora se escondia na decoração de seu próprio
refeitório, acrescenta-se nesse momento a de localizar o frade que
provocara já várias mortes, convencido de agir por uma causa
justa. Seus irmãos o olhavam desconcertados. O capítulo ia
começar:
- Irmãos - o prior abriu solene, de pé, com a voz dura e os
punhos apertados sobre a mesa -, há quase trinta anos vivemos
entre estas paredes e nunca, até agora, enfrentamos uma situação
como esta. Deus Nosso Senhor pôs à prova nossa temperança,
permitindo-nos ser testemunhas da morte de dois de nossos irmãos
mais queridos e revelando-nos que suas almas estavam
enegrecidas pelo fedor da heresia. Como acreditam que se sente o
Pai Eterno diante de nossa fraqueza? Com que disposição! Vamos
fazer súplicas se nós próprios, com nossa atitude, não fomos
capazes de perceber nossos erros e permitimos que morressem em
pecado? Os mortos que hoje repudiamos comiam nosso pão e
bebiam nosso vinho. Isso não nos torna cúmplices de suas faltas?
Bandello respirou fundo:
- Mas Deus, caros irmãos, não nos abandonou neste transe
terrível. Em sua infinita misericórdia, quis que esteja entre nós um
de seus mais sábios doutores.
Um murmúrio percorreu os presentes, enquanto o prior me
apontava com seu indicador.
- Por isso ele está aqui - disse. - Pedi ao nosso ilustre padre
Agustín Levre, do Santo Ofício romano, que nos ajude a
compreender as tortuosas veredas que percorremos nestes
momentos de dor.
Levantei-me para que pudessem me ver, e saudei com uma
ligeira reverência. Em tom conciliador, o prior continuou o sermão,
fazendo verdadeiro esforço para não intimidar seus frades:
- Todos conviveram com frei Giberto e frei Alessandro - disse.
- Conheciam-nos bem. E, no entanto, ninguém percebeu
irregularidades em seu comportamento, nem soube ver sua funesta
submissão à heresia albigense. Dormíamos tranqüilos acreditando
que essa doutrina deixara de existir há mais de cinquenta anos, e
pecamos pela arrogância ao crer que nunca mais voltaríamos a
enfrentá-la. E não aconteceu assim. O mal, caros irmãos, é
renitente em desaparecer. Aproveita-se de nossa ignorância.
Nutre-se de nossa estupidez. Por isso, para nos prevenirmos de
novos ataques, pedi ao padre Leyre que nos ilumine sobre o mais
pérfido dos desvios cristãos. É provável que em suas palavras
identifiquem usos e costumes que talvez praticaram sem conhecer
a origem. Não temam: muitos se originam de famílias lombardas,
cujos antepassados tiveram algum contato com os hereges. Meu
firme propósito é que antes de que o Sol se ponha, antes que
abandonem esta sala, abjurem de tudo isso e se reconciliem com a
Santa Igreja de Roma. Escutem nosso irmão, meditem sobre suas
palavras, arrependam-se e peçam confissão. Quero saber se nossos
defuntos irmãos foram os únicos infectados pela peste albigense e
tomar as providências oportunas.
O prior me cedeu a palavra, fazendo-me um gesto para que
me aproximasse da cabeceira da mesa. Ninguém pestanejou. Os
frades mais antigos, Luca, Jorge e Estêvão, velhos demais para
assumir alguma tarefa ativa no convento, espicharam os pescoços
para me escutar. Os demais escutaram minhas palavras com
autêntico pavor. Não tive mais que olhar em seus olhos.
- Estimados irmãos, hudetur Jesus Christus.
- Amém - responderam em coro.
- Ignoro, irmãos, até que ponto vocês têm presente a vida de
São Domingos de Guzmán - um murmúrio se propagou na platéia. –
Não importa. Hoje será um dia excelente para que juntos
relembremos sua obra.
Um suspiro de alívio percorreu a mesa.
- Deixem-me contar-lhes uma coisa. No início do ano de mil e
duzentos, os primeiros albigenses se estenderam por boa parte do
Mediterrâneo ocidental. Pregavam a pobreza, o retorno aos
costumes dos cristãos primitivos e advogavam uma religião simples
que não requeria igrejas nem dízimos ou privilégios para os
ministros do Senhor. Seus seguidores repudiavam o culto aos
santos e à Virgem, como se fossem selvagens ou, pior ainda,
muçulmanos. Renegavam o batismo. E esses animais não
titubeavam em afirmar que o criador deste mundo não foi Deus e
sim Satã. Que perversão da doutrina! Podem imaginar? Para eles,
Javé, o Deus Pai do Antigo Testamento, foi na realidade um espírito
demoníaco que expulsou Adão e Eva do paraíso e destroçou
exércitos à passagem de Moisés. Em suas mãos, nós, os homens,
éramos apenas marionetes incapazes de diferenciar o bem do mal.
O povo simples acolheu aquelas calúnias com entusiasmo. Via
nelas uma fé que os perdoava do pecado e os fazia entender por
que havia tanto sofrimento num mundo criado pelo Maligno. Que
anátema! Situavam Deus e o Diabo, o bem e o mal, na mesma
altura, com incumbências e poderes idênticos!
"A Igreja", continuei, "quis corrigir aqueles bastardos do
púlpito, mas o remédio não funcionou. Seus, cada vez mais
numerosos, simpatizantes se deram conta da desproporção de sua
luta e a maioria acabou tendo piedade dos hereges, a quem muitos
consideravam vizinhos exemplares. Argumentavam que os
albigenses pregavam com o exemplo, dando mostras de humildade
e pobreza, enquanto os clérigos se revestiam de finas casulas e
ouro para condená-los de altares cobertos de adornos custosos.
Assim, longe de desterrar a heresia, o que a Igreja conseguiu foi
espalhá-la como a peste. São Domingos foi o único a compreender
o erro e decidiu descer ao terreno dos 'puros', que significa
katharosi em grego, para pregar-lhes com a mesma pobreza
apostólica que admiravam. O Espírito Santo o tornou forte. Deu-lhe
coragem para entrar nos bastidores hereges da França, lá onde os
albigenses eram multidão, onde respondeu a eles um a um.
Domingos desmontou suas teses absurdas e proclamou Deus como
único Senhor da criação. Mas, até semelhante esforço foi inútil. O
mal estava muito espalhado."
Bandello me interrompeu: também ele estudara essa história
durante seus anos de preparação teológica e sabia que os
albigenses não ganharam adeptos entre camponeses e artesãos,
mas também, entre reis e nobres que os consideraram a fórmula
perfeita para evitar o pagamento de impostos e as cessões de
privilégios aos eclesiásticos.
- Isso é certo - admiti. - Não contribuir com o dízimo que a
Bíblia* estabeleceu para os sacerdotes era depreciar as leis de
Deus. Roma não podia ficar com os braços cruzados.
* [Gênisis 14, 20. Amos, 4, 4. Macabeus 3, 49.]
Levantei a vista até a mesa antes de continuar. Meu silêncio
devia intimidá-los.
- Irmãos - prossegui -, aquela foi nossa primeira cruzada.
Parece incrível que ocorresse há menos de duzentos anos e tão
perto daqui. Então não duvidamos em levantar as espadas contra
nossas próprias famílias. Os exércitos ministraram a justiça das
armas, dividiram os "puros", acabaram com muitos de seus líderes
e obrigaram centenas de hereges a se exilarem longe das terras
que um dia dominaram.
- E foi assim, fugindo das tropas do Santo Padre, que os
últimos albigenses chegaram à Lombardia - acrescentou Bandello.
- Chegaram enfraquecidos à estas terras. E, embora tudo
apontasse para sua extinção, tiveram sorte: a situação política
favoreceu a reorganização dos hereges. Lembro que essa foi a
época de lutas entre guelfos e gibelinos. Os guelfos afirmavam que
o papa estava investido de uma autoridade superior à de qualquer
rei. Para eles, o Santo Padre era o representante de Deus na Terra
e, portanto, tinha direito a exército próprio e a grandes recursos
materiais. Os gibelinos, em compensação, com o capitão Matteo
Visconti à frente, repudiavam essa idéia e defendiam a separação
do poder temporal e o divino. Roma, diziam, devia se ocupar só do
espírito. O restante era tarefa dos reis. Por isso, ninguém
estranhou que os gibelinos acolhessem os últimos albigenses na
Lombardia. Era outra forma de desafiar o papa. Os Visconti os
apoiaram em segredo, e mais tarde os Sforza continuaram com
essa política. É quase certo que Ludovico, o Mouro, ainda segue
essas diretrizes, e por isso, esta casa que hoje descansa sob sua
proteção se converteu em refúgio desses malditos.
Nicola di Piadena se levantou e pediu a palavra:
- Então, padre Leyre, acusa nosso duque de ser gibelino?
- Formalmente, não posso acusá-lo, irmão - respondi,
esquivando-me de sua pergunta venenosa. - Não sem provas.
Mesmo suspeitando que alguns de vocês as ocultam não hesitarei
em recorrer a um tribunal de ofício, ou ao tormento se for
necessário, para obtê-las. Estou decidido a ir às últimas
conseqüências.
- E como pensa demonstrar que existem "homens puros"
nesta comunidade? - perguntou frei Jorge, o encarregado das
esmolas, escudado em seus invejáveis oitenta anos. - Pensa
torturar o senhor mesmo a todos estes irmãos, padre Leyre?
- Explico como farei. Nosso amado Domingos ficou tão
preocupado com aquele desvio que decidiu pôr mãos à obra. Por
isso, fundou um grupo de pregadores para voltar a evangelizar
amplos territórios como o Languedoc francês. Hoje somos os
herdeiros dessa ordem e de sua divina missão. No entanto, com
sua morte, vendo que era impossível combater o mal só com a
palavra, o papa e as coroas fiéis à Roma decidiram pôr em marcha
uma repressão militar em grande escala que acabou com os
amaldiçoados. Sangue e morte, cidades inteiras passadas a fogo e
espada, perseguição e dor sacudiram durante anos os alicerces do
povo de Deus. Quando as tropas do papa entravam numa cidade
em que se instalara a heresia, matavam todos sem distinguir entre
albigenses e cristãos. Deus, diziam, reconheceria os seus quando
chegassem ao céu.
Fiz um gesto para que Matteo, o sobrinho do prior,
aproximasse da mesa uma gaiola contendo um frango. Pedi-o
poucos minutos antes do início do capítulo. O animalzinho,
desconcertado, olhava para todos os lados.
- Como sabem, os albigenses não comem carne e se recusam
a matar qualquer ser vivo. Se você fosse um bonhomme e eu lhe
pedisse que o sacrificasse diante de mim, se negaria a matá-lo.
Jorge enrubesceu ao ver-me apanhar uma faca e levantá-la
sobre a ave.
- Se um de vocês se negar a matá-la saberá, que o reconheci.
Os albigenses acreditam que nos animais habitam as almas dos
humanos que morreram em pecado e regressam assim à vida para
purgá-los. Temem que ao sacrificá-los estejam tirando a vida de um
de seus companheiros.
Segurei o frango com força sobre a mesa, estirei o pescoço
para que todos pudessem vê-lo, e cedi a faca à Giuseppe Boltraffio,
o monge que estava mais perto. A um gesto meu, o gume ceifou em
dois o pescoço do animal, salpicando de sangue nossos hábitos.
- Já se vê. Frei Giuseppe - sorri com ironia - está livre da
suspeita.
- E não conhece um método mais sutil de detectar um
albigense, padre Leyre? - protestou Jorge, horrorizado pelo
espetáculo.
- Claro que sim, irmão. Há muitas maneiras de identificá-los,
mas todas são menos convincentes. Por exemplo, se lhes mostrar
uma cruz, não a beijarão. Acreditam que só uma Igreja demoníaca
como a nossa é capaz de adotar o instrumento de tortura em que
pereceu Nosso Senhor. Também não veneram relíquias, nem
mentem, nem temem a morte. Embora, é claro, isso seja apenas
para o caso dos parfaits.
- Os parfaitâ - alguns frades repetiram a expressão francesa
com surpresa.
- Os perfeitos - esclareci. - São os que dirigem a vida
espiritual dos albigenses. Acreditam que imitam a vida dos
apóstolos como nenhum de nós. Rejeitam qualquer espécie de
propriedade, porque nem Cristo nem seus discípulos a tiveram.
São os encarregados de iniciar os aspirantes no melioramentum,
uma genuflexão que deve ser realizada cada vez que se encontrem
com um parfait. Só eles dirigem os apparellamentum, confissões
gerais em que os pecados de cada herege são expostos, debatidos
e perdoados publicamente. E, como se fosse pouco, só eles podem
administrar o único sacramento que os albigenses reconhecem: o
consolamentum.
- Consolamentum? - voltaram os murmúrios.
- Servia ao mesmo tempo de batismo, comunhão e
extremunção - expliquei. - Administrava-se mediante a colocação
de um livro sagrado sobre a cabeça do neófito. Nunca era a Bíblia.
Esse ato era considerado um "batismo do espírito" e quem merecia
recebê-lo se convertia em "verdadeiro" cristão. Um consolado.
- E o que o fez pensar que o sacristão e o bibliotecário foram
consolados? - perguntou frei Stefano Petri, o risonho tesoureiro da
comunidade, sempre satisfeito por lidar com êxito sobre os
assuntos materiais de Santa Maria. - Se me permite a observação,
jamais os vi abjurar a cruz, nem creio que foram batizados
mediante a imposição de um livro sobre suas cabeças.
Alguns frades, ao redor, concordaram.
- Em compensação, irmão Stefano, você os viu fazer jejuns
extremos, não é verdade?
- Todos vimos. O jejum eleva o espírito.
- Não no caso deles. Para um albigense, os jejuns extremos
são um caminho para ganhar o consolamentum. Quanto à cruz,
convém não confundir. Aos albigenses basta limar as extremidades
de qualquer crucifixo latino, tornando-o menos aguçado, para
poder carregá-lo no pescoço sem problema. Se a cruz é grega, ou
até com as extremidades largas, toleram-nas. Seguramente, irmão
Petri, também os viu rezar o Pater Noster com vocês. Pois bem: é a
única oração que admitem.
- Só dá argumentos circunstanciais, padre Leyre - respondeu
Stefano antes de se sentar.
- É possível. Estou disposto a admitir que frei Alessandro e
frei Giberto eram apenas simpatizantes à espera do batismo. Mas,
isso não os exime do pecado. Não esqueço também que o irmão
bibliotecário colaborou com o mestre Leonardo na sua Última ceia.
Quis ser retratado como Judas no centro de uma obra suspeita, e
acredito saber por quê.
- Diga - murmuraram.
- Porque para os albigenses Judas Iscariotes foi um servo do
plano de Deus. Acreditam que trabalhou bem. Delatou Jesus para
que se cumprisse a profecia e pudesse dar sua vida por nós.
- Então, sugere acaso que Leonardo também é um herege?
A nova pergunta de frei Nicola di Piadena fez sorrir de
satisfação o padre Benedetto, que pouco depois se ausentou da
mesa para esvaziar a bexiga no pátio.
- Julgue você mesmo, irmão: Leonardo se veste de branco,
não come carne, jamais mataria um animal, não se sabe de
nenhuma relação carnal dele e, se ainda fosse pouco, no Cenacolo
omitiu o pão da comunhão e colocou uma adaga, uma arma, na
mão de São Pedro, indicando onde acredita que está a Igreja de
Satã. Para um albigense, só um servo do Maligno empunharia uma
arma branca na mesa pascal.
- Mas o mestre Da Vinci respeitou o vinho - observou o prior.
- Porque os albigenses bebem vinho! Mas, observe, padre
Bandello em lugar do cordeiro pascal que segundo os Evangelhos
era o alimento consumido naquele serão, o mestre pintou pescado.
E sabe por quê?
O prior negou com a cabeça. Dirigi-me a ele:
- Recorde o que o seu sobrinho escutou da boca do sacristão
antes de morrer: os albigenses não aceitam qualquer alimento que
proceda do coito. Para eles, os peixes não copulam e então podem
comê-los.
Um murmúrio de admiração se estendeu pela sala. Os
monges seguiam boquiabertos minhas explicações, espantados por
não ter detectado antes aquelas heresias na parede de seu futuro
refeitório.
- Agora, irmãos, necessito que um a um responda minha
pergunta - eu disse, mudando meu tom descritivo por outro mais
severo. - Façam um exame de consciência e respondam diante de
sua comunidade: algum de vocês seguiu, por vontade própria ou
alheia, algum tipo de comportamento que acabei de descrever?
Percebi que os frades continham a respiração.
- A Santa Mãe Igreja será misericordiosa com aquele que
abjurar suas práticas antes de abandonar esta reunião. Depois, o
peso da justiça cairá sobre ele.
35
O Augure atuou com precisão prodigiosa. Se alguém tivesse a
má sorte de cruzar por ele concluiria que se movia como se
conhecesse até o último recanto do convento. Envolvido numa capa
preta que o cobria da cabeça aos pés, atravessou as fileiras vazias
de bancos da igreja, virou à esquerda rumo à capela da Madonna
delle Grazie e entrou na sacristia. Ninguém lhe interrompeu a
caminhada. Os frades estavam nessa hora reunidos no capítulo
extraordinário, alheios à chegada do intruso.
Satisfeito, abandonou o oratório atravessando o arco que dá
para o pequeno claustro do prior; rodeou-o com passo rápido e
uma vez dentro do Claustro dos Mortos deixou por trás o refeitório
para subir de três em três os degraus que davam para a biblioteca.
O Augure - homem ou espírito; anjo ou demônio, e o que mais
fosse - deslocou-se com aprumo. Depois de inspecionar com olho
profissional a sala do scriptoríum, dirigiu os passos até a carteira
de frei Alessandro. Não tinha tempo a perder. Sabia que Marco
d'Oggiono e um pintor cúmplice do toscano a quem chamavam
Bernardino Luini, acabaram de abandonar a casa de Leonardo,
bem em frente ao convento de Santa Maria delle Grazie, e não
demorariam a chegar ao refeitório. Ignorava o que os trazia ali, e
muito menos que eram acompanhado por uma rapariguinha por
expresso desejo do toscano.
Com cuidado, o Augure depositou a capa na mesa do
bibliotecário e, tomando precaução para não fazer muito barulho,
bateu no lajeado solo. Encaixadas umas junto às outras, só duas
lajes se mexeram ao serem golpeadas. Era o que buscava.
Agachou-se para examiná-las e viu que não estavam unidas com
argamassa: tinham as beiradas polidas e o reverso limpo, sinal
inequívoco de uso freqüente. Ao levantá-las, reconheceu o conduto
da calefação a vapor. Observou-o satisfeito. O Augure sabia que
essa minúscula abertura de alvenaria percorria de lado a lado o
teto do refeitório e que, dali, um ouvido bem treinado nada
perderia de qualquer coisa que se falasse debaixo.
Com precaução, deitou-se o mais esticado possível para colar
o ouvido ao lajeado e fechou os olhos em busca de concentração.
Um minuto depois escutou um forte rangido. Era a aldrava do
refeitório. Os convidados de Leonardo estavam prestes a entrar na
sala da Última ceia.
- O que nos quis dizer o mestre com o ômega?
A pergunta da bela Elena subiu diáfana pelo canal até o andar
de cima. O Augure se surpreendeu ao perceber o timbre de uma
mulher.
- A primeira vez que o ouvi falar disso foi na presença de
soror Verônica, no dia de sua morte - respondeu Marco d'Oggiono,
cuja voz reconheceu logo.
- Você esteve com soror Verônica da Binasco no dia em que se
cumpriu a profecia?
Elena não cabia em si de admiração.
Passara a última noite acordada, boquiaberta diante das
explicações de Leonardo e as brincadeiras de seus discípulos,
preparando-se para sua pose. Leonardo concordou em retratá-la
como o discípulo João se antes demonstrasse, com a ajuda de seus
acompanhantes, que era capaz de compreender a importância
daquele mural.
O mestre, seduzido pela beleza da primogênita dos Crivelli,
não podia tirá-la da cabeça desde que a conhecera no Palazzo
Vecchio. Era um "João" perfeito. Mas, não queria se precipitar.
Convidara-a num par de ocasiões, sempre com o mestre Luini ao
lado, aos seus célebres serões de música, poesia e trovadores com
que obsequiava seus hóspedes. Queria acompanhar de perto a
evolução daquele inesperado par. A jovem se sentia embriagada.
Ver-se freqüentando um círculo que só conhecia pela mãe era
como entrar no mundo dos sonhos. E não queria acordar. Desde
que Lucrezia Crivelli iluminara suas noites infantis com contos de
Príncipes e menestréis, cerimônias cavalheirescas e reuniões de
magos, Elena quisera estar ali.
- Soror Verônica? Ai! A monja se irritava com facilidade –
recordou Marco, esfregando as mãos enquanto soprava nelas. O
refeitório estava frio. Chegara a hora de aguçar a inteligência.
- Deveras?
- Oh, sim. Sempre recriminava os gostos excêntricos do
mestre e criticava por conhecer melhor os livros dos filósofos
gregos do que a Sagrada Escritura. A verdade é que não
costumavam falar de arte e muito menos dos trabalhos do mestre,
mas, no dia em que morreu, a irmã Verônica perguntou por este
refeitório.
- E o que isso tem a ver com o ômega? - protestou Elena.
- Deixe-me contar. Naquele dia Leonardo se sentiu ofendido.
Soror Verônica o acusou de minimizar a importância de Cristo no
Cenacolo. O mestre se aborreceu. Respondeu que Jesus era o único
alfa desta composição.
- Disse isso? Que Jesus era o alfa do mural?
- Jesus, disse, é o princípio. O centro. O eixo deste trabalho.
- De fato - observou Luini, esforçando-se por atinar com a
silhueta de Cristo na penumbra -, é certo que Jesus ocupa o lugar
dominante, mas, sabemos que o ponto de fuga da perspectiva de
toda a composição se encontra exatamente sobre sua orelha
esquerda, sob a cabeleira. Leonardo cravou seu compasso no
primeiro dia. Eu mesmo vi. E a par deste ponto sagrado traçou o
resto.
O Augure se surpreendeu ao escutar Luini. Era a primeira vez
que escutava. Sabia que partilhava a trama herética de Leonardo
pelos de seus quadros. Também ele pintava obsessivamente cenas
da vida de João. Seu encontro de menino com Jesus a caminho do
Egito, seu batismo no Jordão, ou sua cabeça servida numa bandeja
de prata à Salomé! repetiam em seus quadros uma e outra vez.
Todos os peregrinos que veneravam a Maestà de Leonardo o
conheciam bem. "Os lobos", deduziu inquieto ao confirmar sua
presença no sanctum sanctorium toscano, "sempre andam em
bandos."
- Sua observação é correta, mestre Bernardino - disse Marco
sem perder de vista sua bela acompanhante, que já começava a
distinguir as silhuetas dos apóstolos iluminadas pela claridade do
amanhecer. - Se você se fixar no corpo, assim, com os braços
estendidos para a freira verá que tem a forma de um "A" enorme.
Trata-se de um enorme que nasce no centro exato dos Doze.
Percebe?
- Estou vendo, mas e o ômega? - insistiu Elena.
- Bem. Creio que o mestre disse isso porque se considera o
último de seus discípulos.
- Quem? Leonardo?
- Sim, Elena. Alfa e ômega, princípio e fim. Tem sentido, não?
Luini e a condessinha encolheram os ombros. O corpulento
aluno intuía, como Marco, que aquela parede ocultava mensagem
iniciática de grande proporção. Era evidente que se o mestre os
deixara chegar até ali sem lhes dar a chave para a leitura se devia
a que, de alguma maneira, estava pondo-os à prova. Estavam, pois,
diante do maior hieróglifo jamais desenhado pelo toscano, e de sua
habilidade para conseguir algum resultado ia depender do acesso a
segredos maiores. E, sobretudo, a salvação de sua alma.
- Talvez Marco esteja certo e o Cenacolo esconda uma espécie
de alfabeto visual.
Aquilo sobressaltou o Augure.
- Um alfabeto visual?
- Sei que o mestre estudou com os dominicanos de Florença a
"arte da memória". Seu mestre, Verocchio, também a praticou e a
ensinou a Leonardo quando ele era ainda criança.
- Nunca nos falou disso - disse Marco, algo decepcionado.
- Talvez não considerasse importante para sua formação.
Afinal de contas, trata-se apenas de artifícios mentais para
recordar grande quantidade de informação ou armazená-las em
construções ou obras de arte. Esta informação fica à vista de todos,
mas é invisível aos olhos dos não iniciados em sua leitura.
- E onde está vendo aqui esse alfabeto? - insistiu, intrigado,
d'Oggiono.
- Você disse que o corpo de Jesus tem o aspecto de um "A" e
que para Leonardo é o alfa da composição. Se ele disse de si
próprio que é o ômega, conviria que não é despropositado procurar
no retrato de Tadeu o que lembre um "O".
Os três se olharam com cumplicidade e, sem interpor
palavras, aproximaram os pés da mesa pascal. A figura de Tadeu
era inconfundível.
Olhava para o lado oposto de onde se desenrolava a ação.
Inclinado para a frente, tinha os braços cruzados em forma de X,
com as palmas erguidas para o céu. Vestia uma túnica
avermelhada, sem fecho, e nada havia em sua figura que
permitisse imaginar um ômega.
- Alfa e ômega também podem ter a ver com São João e
Madalena - murmurou Bernardino, escondendo a decepção.
- O que você quer dizer?
- É simples, Marco. Você e eu sabemos que o mural é
secretamente consagrado à Maria Madalena.
- O nó! - recordou. - É certo! O nó corrediço na extremidade
do mantel. Creio que Leonardo quis nos despistar. O mestre levou
tempo fazendo correr o boato de que o nó é sua particular maneira
de assinar a obra. Em língua românica, Vinci provém da palavra
latina vincoli, isto é, laço ou cadeia. No entanto, o significado
oculto não pode ser tão grosseiro. Obrigatoriamente, se relaciona
com a favorita de Jesus.
O Augure se mexeu incômodo em seu esconderijo.
- Um momento! - protestou Elena. - E o que isso tem a ver
com o alfa e o ômega?
- Está na Escritura. Lendo os evangelhos você verá que João
Batista desempenhou um papel fundamental no início da vida
pública do Messias. João batizou Jesus no Jordão. De fato, de
alguma maneira serviu de ponto de partida, de alfa, à sua missão
na Terra. Madalena, em compensacão, foi determinante no
momento oportuno. Estava presente quando ressuscitou do túmulo.
E, à sua maneira, também ela o batizou, ungindo-o poucos dias
antes da Última Ceia na presença dos discípulos. Ou não se lembra
de Maria Betânia no episódio em que lhe lava os pés? Ela atuou
nesse momento como um verdadeiro ômega.
*[Marcos 14, 3-9. Até o século XIX, a Igreja considerava boa a
interpretação identificava Maria Betânia como Madalena, e que,
portanto, tinha parentesco com Marta e Lázaro, protagonista do
episódio da ressurreição narrada por João em seu evangelho.]
- Madalena, ômega...
A explicação ainda não convencera a rapariga. Em princípio
João e Tadeu não se relacionavam, a não ser pelo fato de que
nenhum dos dois olhava para Cristo. Elena demorou algum tempo
elaborando uma interpretação opcional para aquele "O" tão fora de
lugar. Olhava de um para outro do muro estucado, tentando
encontrar sentido para o enigma. Logo amanheceria e deveriam se
apressar se quisessem completar a prova antes da chegada dos
monges. Se havia, no Cenacolo, algo para "ler", deviam encontrar
com rapidez.
- Creio que vocês propõem interpretações rebuscadas - disse
por fim. - E o mestre, pelo pouco que conheço dele, é grande
amante da simplicidade.
Marco e Bernardino se voltaram para a condessinha.
- Se atou de forma tão evidente num dos extremos do mantel,
deixando o outro liso, é porque deseja chamar a atenção do
espectador para este recanto da mesa. Há algo ali, onde ele
próprio se retratou, que quer que vejamos.
Luini levantou o braço até o nó, acariciando-o com as pontas
dos dedos. Aquele laço estava desenhado com grande mestria.
Cada prega do tecido lhe conferia uma maravilhosa sensação de
realidade.
- Acho que Elena tem razão - admitiu.
- Razão? Que razão?
- Olhe bem, Marco: a zona que marca o nó é a área em que a
luz da composição é mais forte do que no resto. Intensa. Observe
aqui as sombras no rosto dos apóstolo. Está vendo? São mais
duras. O perfil grego de d'Oggiono explorou longitudinalmente a
parede, comparando o amplo leque de claros-escuros nas roupas e
nos rostos dos Doze.
- Talvez tenha sentido - continuou Luini, como se pensasse em
voz alta. - Essa zona aparece mais iluminada do que as demais
porque para Leonardo o conhecimento parte de Platão. Ele é como
o Sol que ilumina a razão. E o discípulo mais brilhante de todo o
conjunto é São Simão, o que tem o rosto do grego e o único manto
branco da cena...
Aquela nuance devolveu à Luini uma recordação importante:
- E Mateus, o discípulo que está cotovelo a cotovelo com o
mestre é Marsilio Ficino... Claro! - exclamou em voz alta, de
repente. – Ficino confiou ao mestre os textos de João antes que
saíssemos de Florença. Aí está a chave!
Elena o olhou perplexa.
- A chave? Que chave?
- Agora entendo. Os antigos faziam a iniciação de seus
adeptos colocando um evangelho inédito de João sobre a cabeça
deles. Acreditavam que assim se transmitia pelo contato a essência
espiritual da obra à mente e ao coração do candidato a verdadeiro
cristão. Esse livro de João continha grandes revelações sobre a
missão de Cristo na Terra e mostrava o caminho que devíamos
seguir para alcançar um lugar no céu. Leonardo... - Luini respirou
fundo - substituiu esse texto por uma obra pictórica que contivesse
seus símbolos fundamentais. Por isso, enviou você aqui para ser
iniciada, Elena! Para iniciar você com o segredo místico de João.
- E vocês podem me iniciar sem saber exatamente o que o
mestre inscreveu aqui?
O tom da jovem soou incrédulo.
- À falta de mais pistas, sim. Antigamente os noviços não
chegavam sequer a abrir o livro perdido de João. Muitos nem
sabiam ler. Por que não haverá o mural de atuar da mesma
maneira conosco? Além disso, olhem para Cristo. Está a uma altura
suficiente na parede para que se possa ficar debaixo, e receber sua
mística imposição de mãos, com uma palma protegendo a cabeça e
a outra invocando o céu.
A condessinha olhou de novo para o alfa. Bernardino tinha
razão. A cena do banquete estava colocada em altura suficiente
para receber uma pessoa de certa envergadura sob o mantel. Era
um bom lugar para se localizar e receber o espírito do quadro,
mas, contudo, a mente pragmática de Elena a forçava a buscar
uma interpretação mais racional.
- Leonardo era um homem prático, pouco dado a velhas
lucubrações místicas.
- Pois eu acredito saber como podemos ler a mensagem do
Cenacolo...
Elena titubeou. Uma intuição súbita a iluminou e ela se pôs
sob a proteção do alfa.
- Lembram-se das atribuições que o mestre mandou-os
memorizar para quando chegasse o momento de retratar os Doze?
Bernardino concordou perplexo. As imagens do dia em que a
condensinha lhe arrebatou aquela lista ainda continuavam vivas
em sua memória. Enrubesceu.
- E sabem me dizer que virtude atribuía a Tadeu? - insistiu.
- A Tadeu?
- Sim, a Tadeu - exortou Elena, enquanto Luini procurava o
dado entre suas recordações.
- É Occultator. O que oculta.
- Exato - sorriu. - Um "O". Está vendo? Aqui temos de novo
nosso ômega. E isso não pode ser por acaso.
36
- Por todos os diabos! O júbilo de Bernardino Luini ressoou
nas quatro paredes do refeitório.
- Não pode ser tão fácil!
Concentrado na descoberta da condessinha, o mestre
começou a repassar a distribuição dos apóstolos. Teve de
retroceder três passos para garantir uma visão panorâmica.
Somente se colocando a uns metros da parede norte era possível
avistá-los por inteiro, de Bartolomeu a João e de Tomé a Simão.
Estavam agrupados de três em três, todos com o rosto dirigido
para Cristo, menos o discípulo amado, Mateus e Tadeu, que
fechavam os olhos ou olhavam para outra parte.
Luini rasgou um dos papelões que Leonardo tinha espalhado
pelo chão e, com um carvão, começou a rabiscar os perfis da cena
no rever de Marco e Elena que seguiram seus movimentos com
curiosidade. Enquanto isso, o Augure, um andar acima,
impacientava-se por nada escutar.
- Já sei como ler a mensagem do Cenacolo - anunciou por fim.
Estava todo o tempo diante de nossos narizes e não soubemos vê-
la.
O pintor se colocou então numa das extremidades perto de
Bartolomeu, recordou-lhes sob a efígie encurvada e absorta, era
Mirabill, o prodigioso. Leonardo o retratara com o cabelo
encaracolado e vermelho, confirmando o que Jacopo da Varazze
escreveu sobre ele em sua Lenda dourada: era sírio e de índole
inflamada, como corresponde : peles-vermelhas. Luini anotou um
"M" no papelão, junto com sua silhueta. Depois fez o mesmo com
Tiago Menor, o cheio de graça Venustus, aquele a quem amiúde
confundiam com o próprio Cristo que por suas obras mereceu esse
cognome. Um "V" se somou ao André, Temperator, o que previne,
retratado com as mãos para a frente como corresponde a tal
atributo, logo ficou reduzido a um simples "T".
- Estão vendo?
Marco, Elena e o jovem mestre sorriram. Aquilo começava a
ganhar sentido. "M-V-T" para o início de uma palavra. O frenesi
disparou ao comprovar que o grupo seguinte de apóstolos dava
lugar a outra sílaba pronunciável. Judas se converteu em "N" de
Nefandus, o abominável traidor de Cristo. Sua posição, no entanto,
era algo ambígua: embora Judas fosse a quarta cabeça a aparecer
a partir da esquerda, a peculiar posição de São Pedro - com o
braço armado nas costas do traidor, poderia dar lugar a um erro de
contabilidade. Em qualquer caso, Luini explicou que o "N"
continuava sendo válido já que Pedro foi o único dos Doze que
negou três vezes Cristo. "N", pois de Negado.
Elena protestou. O mais lógico era se guiar pela ordem das
cabeças dos personagens e pelos atributos da lição de Leonardo.
Nada mais.
Seguindo essa ordem, o seguinte era Pedro. Encurvado para o
centro da cena, merecia tanto o "E" de Eclesia como o de Exosus,
que o toscano lhe atribuiu. O primeiro agradaria Roma; o segundo,
que significa "o que odeia", refletia o temperamento daquele
sujeito de cabelo branco e olhar ameaçador, disposto a executar
sua vingança armado com uma faca de folha larga. E João,
abstraído, com a cabeça inclinada e as mãos unidas como as damas
retratadas por Leonardo, fazia jus ao seu "M" de Mysticus. "N-E-
M", pois, era o desconcertante resultado do trio.
- Jesus é o "A" - lembrou Elena ao chegar ao centro do mural.
- Continuemos. - Tomé, com o dedo para cima, como que
assinalando qual dos presentes era o primeiro a merecer o
privilégio da vida eterna, passou para o esboço de Luini como o "L"
de Litator, o que aplaca os deuses. Seu atributo provocou uma
breve discussão. No Evangelho de João, foi Tomé quem pôs o dedo
na ferida de Cristo. E também quem caiu de joelhos gritando
"Senhor meu e Deus meu!" (João, 20, 28), aplacando assim a
possível ira do ressuscitado por não ser reconhecido de imediato.
- Além disso - insistiu Bernardino, enfatizando sua teoria -,
estamos diante do único retrato que confirma sua letra no perfil do
apóstolo.
- Você se esquece do alfa de Jesus - especificou a
condessinha. Só que nesta ocasião a letra não se esconde no corpo
de Tomé, mas nesse dedo levantado para o céu. Estão vendo? O
dedo indicador estirado forma, junto com a base do punho e o
polegar saliente, um claro "L" maiúsculo.
Os acompanhantes de Luini concordaram maravilhados.
Contemplaram com cuidado Tiago Maior, mas foram incapazes de
encontrar nele algum indício que reproduzisse o "O" que o
representava.
- No entanto - esclareceu Bernardino -, quem estudou a vida
deste apóstolo concluirá que o "O" de Oboedíens, o obediente,
ajusta-se nele como uma luva.
De fato. Do filho de Zebedeu escreveu Jacopo da Varazze que
foi o irmão carnal de João e que "ambos pretendiam ocupar no
reino do céu os postos mais próximos ao Senhor e sentar-se, um
deles, à Sua direita e o outro à esquerda". Leonardo, portanto,
recriou no Cenacolo uma mesa divina, extraída do mundo da
perfeição habitado pelas almas puras. E João e Tiago Maior
ocupavam nela os lugares prometidos por Cristo.
Assim, junto à Filipe, Sapiens entre os Doze, o único que se
assinalava a si próprio, indicando-nos onde devemos buscar nossa
salvação, Luini conseguiu armar uma terceira e desconcertante
sílaba: "L-O-S".
O grupo restante de apóstolos se resolveu com idêntica
rapidez. Mateus, o discípulo cujo nome, segundo o bispo da
Varazze, significava: "dom da presteza", já previa desenlace rápido.
Luini sorriu ao recordar! como Leonardo o batizou de Navus, o
diligente. Sua letra e o ômega de Tadeu formavam já uma sílaba
legível, "N-O". Ao acrescentar o "C" de Simão, por Confector, “o
que leva adiante”, o panorama resultante lhe pareceu promissor:
quatro grupos de três letras, com uma vogal ao centro, e um
enorme "A" presidindo a cena, deixavam-se ler como se fossem
uma estranha e esquecida fórmula mágica:
MUT NEM A LOS NOC
Bartolomeu Mirabilis O Prodigioso
Tiago Menor Venustus O cheio de graça
André Temperator O que previne
Judas Iscariotes Nefandus O abominável
Pedro Exosus O que odeia
João Mysticus O que conhece o
mistério
Tomé Litator O que aplaca
os deuses
Tiago Maior Oboediens O que obedece
Filipe Sapiens O amante das
coisas elevadas
Mateus Navus O diligente
Tadeu Occultator O que oculta
Simão Confector O que leva adiante
- E agora o quê? - Elena encolheu os ombros. - Significa algo?
Os dois homens repassaram de novo a frase sem encontrar
outro sentido que uma sucessão de monossílabos pronunciáveis
com aspecto de velha litania. Tampouco os surpreendeu. Era
próprio do mestre que uma adivinhação conduzisse a outra maior.
Leonardo se divertia desenhando essa espécie de passatempo.
- Mut, Nem, A, Los, Noc...
Alguns metros acima de suas cabeças aqueles sons
percorreram a garganta do Augure. Murmurou-os várias vezes
antes de abandonar eufórico seu observatório clandestino. "Que
zombaria astuta", pensou. E, satisfeito, conjeturou como faria
chegar seu achado à Roma.
37
Roma, dias mais tarde
Devemos nos apressar. Logo serão doze horas. Giovanni
Annio de Viterbo jamais abandonava seu palacete da margem oeste
do Tiber sem seu coche e o fiel secretário Guglielmo Ponte. Era
mais um dos privilégios que a doninha merecera de Sua Santidade
Alexandre VI. No entanto, tamanha ostentação lhe nublava a razão.
Annio de Viterbo era incapaz de suspeitar que o jovem Guglielmo,
além de culto e refinado, era sobrinho do padre Torriani. E muito
menos que eram seus olhos que iluminavam a Betânia sobre as
atividades de um dos personagens mais ambíguos e embusteiros
em séculos.
- As doze! - repetiu. - Você me ouviu? As doze!
- Não se preocupe - respondeu Guglielmo, cortês. -
Chegaremos a tempo. Seu cocheiro é muito rápido.
Nunca vira a doninha tão nervosa. A pressa era coisa rara em
alguém como ele. Desde que se estabelecera nas imediações da
mansão dos Bórgias, por expresso desejo de Sua Santidade, Annio
circulava em Roma como se a cidade fosse sua. Não devia
explicações a ninguém. Suas horas de entrada e saída não feriam
qualquer protocolo; tudo o que ele fazia era considerado bom. As
más línguas diziam que suas prerrogativas foram ganhas graças à
ânsia do pontífice de ilustrar sua antiquíssima, nobilíssima e
diviníssima estirpe familial com histórias que justificassem sua
grandeza. E era certo que Annio sabia inventar como nenhum
outro. Do papa valenciano chegou a inventar coisas incríveis.
Descobriu que era descendente do deus Osíris que visitou a Itália
na noite dos tempos para ensinar aos habitantes a cultivar suas
terras, a fabricar cerveja e até a podar as árvores. Sempre apoiava
suas mentiras em textos clássicos, e amiúde recitava passagens
inteiras de Diodoro de Sicília para justificar sua estranha obsessão
pela mitologia dos faraós.
Nem Betânia, nem o Santo Ofício jamais puderam conter tais
fantasias. O papa adorava aquele charlatão. Partilhava até seu ódio
visceral contra o esplendor das cultas cortes de Florença ou Milão,
em cujas bibliotecas a doninha via séria ameaça às suas idéias
despropositadas. Sabia que as traduções de Marsilio Ficino de
textos atribuídos ao grande deus egípcio Hermes Trismegisto,
também conhecido como Tot, o deus da Sabedoria, jogavam por
terra a maior parte de suas invenções. Nem falavam da visita de
Osíris à Itália, nem vinculavam os montes Apeninos a Ápis, nem a
cidade de Osiricella a uma remotíssima visita desse deus aos
arredores de Treviso.
Até aquele dia Guglielmo imaginava que só a recordação de
Ficino era capaz de tirar o mestre Annio de seu juízo. Mas, era
evidente que estava enganado.
- Você viu a decoração dos apartamentos do papa?
Guglielmo negou com a cabeça. Estava há tempo absorto no
repique dos cascos dos cavalos nos paralelepípedos, tentando
imaginar aonde a doninha ia com tanta pressa.
- Vou mostrá-la a você - disse entusiasmado. - Hoje,
Guglielmo, você conhecerá o grande artífice dessas pinturas.
- Deveras?
- Acaso menti para você alguma vez? Se você visse as cenas
de que estou falando, entenderia como são importantes. Mostram o
deus Ápis, o touro sagrado dos egípcios, como o ícone profético dos
tempos que vivemos. Ou você não percebeu que no escudo de
nosso papa também há um boi?
- Um touro.
- Qual a diferença? O importante é o símbolo, Guglielmo!
Junto com Ápis também está representada a deusa Isis. É solene
como a rainha católica da Espanha, e aparece sentada em seu
trono celeste com um livro aberto no colo, ensinando a Hermes e a
Moisés as leis e as ciências.
- Pode imaginar?
Guglielmo fechou os olhos, como se se concentrasse nas
palavras de seu mestre.
- O que dizem esses afrescos, caro, é que Moisés recebeu do
Egito todo seu saber, e que dele nós cristãos o herdamos.
Compreende a genialidade da arte? Entende agora o sublime
ensinamento do que estou dizendo? Nossa fé, caro Guglielmo,
procede dali, do remoto Egito. Da mesma forma que a família de
nosso papa. Até os evangelhos dizem que Jesus fugiu para lá, para
se livrar de Herodes. Não entende? Tudo procede do Nilo!
— E também a pessoa de quem está falando, mestre?
— Não. Ela não. Mas sabe muito do lugar. Conseguiu-me
muitas coisas desse paraíso de sabedoria.
Annio emudeceu. Falar das origens egípcias do cristianismo
provocava-lhe sensações contraditórias. Por um lado, reconfortava-
o saber que cada dia havia mais sábios que, como aquele Leonardo
de Milão, conheciam o segredo e o plasmavam em obras como a
Maestà, que narrava um encontro plausível entre João e Jesus
durante a fuga para o país dos faraós; por outro, uma divulgação
imprudente dessas verdades poderia pôr em perigo a estabilidade
moral da Igreja e fazê-la perder alguns de seus privilégios. Como
reagiria o povo quando soubesse que Cristo não foi o único homem-
deus a voltar dentre os mortos? Acaso formulariam perguntas
incômodas ao saber das enormes simetrias entre sua vida e a de
Osíris? Interrogariam o papa com acusações incômodas, apontando
os padres da igreja como vulgares copiadores de uma história
sagrada que não lhes pertencia?
Nanni se mexeu no assento.
— Você sabe, Guglielmo? Toda a sabedoria oculta nos
afrescos do palácio nada é comparada com a que espero receber
hoje.
O assistente baixou o olhar, temendo que o mestre
descobrisse a curiosidade que suas palavras despertavam nele.
— Se me entregar o que espero, terei a chave de tudo o que
falei. Saberei tudo...
Annio se calou ao notar que o coche perdia velocidade.
Lançou um olhar através da cortina e viu que estavam fora de
Roma, bem perto de sua destinação.
— Creio que estamos chegando, padre Annio — anunciou o
assistente. — Magnífico. Você percebe alguém nos esperando?
Guglielmo pôs a cabeça para fora do coche e examinou a
enorme fachada caiada de El Gigante Verde, uma pousada das
cercanias famosa por ser ponto de encontro tanto de peregrinos
como de fugitivos da Justiça. De fato, um cavaleiro solitário metido
numa capa marrom os saudava da porta do estabelecimento.
— Há um homem que parece tê-lo reconhecido — disse.
— Então deve ser ele. Oliverio Jacarandá. Passou-se muito
tempo desde a última vez que nos vimos.
— Jacarandá? — o jovem assistente titubeou. — O senhor o
conhece, mestre?
— Oh, sim. É um velho amigo. Você não precisa se preocupar.
— Com o devido respeito, mestre: este não é um lugar
especialmente seguro para alguém como o senhor. Se o
reconhecessem, poderíamos ser assaltados ou quem sabe
seqüestrados...
Annio sorriu divertido. Guglielmo ignorava quantas vezes
estivera fechando negócios nesse mesmo lugar. É que, muitos
antes de ocupar seu cargo protocolar junto a Alexandre VI, El
Gigante Verde, fora um de seus “despachos” favoritos. Os donos o
conheciam e o respeitavam. Nada tinha a temer. Em suas mesas,
estátuas, pinturas, estrelas antigas, escritos, roupas, perfumes e
até paramentos funerários completos foram trocados por
suculentas bolsas de ouro dos tesouros pontifícios. Jacarandá era
um de seus melhores provedores. As peças que comprara dele o
fizeram escalar mais de um degrau em sua carreira. Por isso, se o
espanhol regressara a Roma e pedira para vê-lo com urgência era
porque tinha algo importante para oferecer.
Ao pôr o pé no chão, Annio tremeu de emoção: conseguiria
enfim o velho tesouro? Traria a peça final que tanto ambicionara?
A fértil imaginação do mestre se desencadeou. Enquanto
Guglielmo fechava atrás de si a porta do coche, a doninha se
regozijava pensando como estava perto do maior de seus êxitos.
Jacarandá chegava num momento mais do que oportuno. Na
tarde anterior, Nanni voltara a se reunir com o geral dos
dominicanos, o irritável Gioacchino Torriani, para ouvir de seus
lábios as últimas novidades sobre o assunto de A última ceia. Em
audiência privada com Sua Santidade, Alexandre VI admitiu ter
encontrado a mensagem oculta por trás daquele impressionante
mural. “Leonardo”, disse, “escondeu entre seus personagens uma
frase, uma invocação escrita numa linguagem estranha que agora
nos propomos decifrar. Uma carta recebida de Milão nos resolveu
o mistério."
Torriani entoou aquela sentença diante do papa e da doninha.
Ninguém entendeu uma palavra. No entanto, para Nanni, a oração
escondida no Cenacolo era indiscutivelmente egípcia.
- Mut-nem-a-los-noc - sussurrou.
Acaso não era clara sua origem? Não citava porventura a
deusa Mut, mulher de Amon, rainha de Tebas? Não era
providencial que Oliverio Jacarandá, autêntico especialista em
hieróglifos, chegasse quase ao mesmo tempo que aquela
mensagem? Acaso não o mandara o próprio Deus para ajudá-lo a
resolver aquela adivinhação e ganhar assim o respeito eterno do
papa?
Sim. A providência, pensou, estava de seu lado.
Diante das cavalariças do El Gigante Verde, Jacarandá beijou
o anel de Annio e o convidou a entrar no estabelecimento. Falaram
do velho tesouro e do hieróglifo.
Guiado até o ventre da pousada, a doninha sentou-se num dos
pequenos reservados. Foi uma sorte inesperada para Betânia que
Guglielmo tivesse acesso ao que se falou ali dentro.
- Meu caro Nanni - disse o espanhol, já acomodado em seu
assento enquanto era servida uma generosa jarra de cerveja. -
Espero não tê-lo assustado com esta repentina visita.
- Pelo contrário. Sabe que sempre as aguardo com
impaciência.
- Lástima que não faça mais por esta corte, onde é tanto
valorizado.
- É melhor assim.
- Melhor?
Oliverio decidiu eliminar os rodeios:
- Desta vez trago notícias que não o agradarão - disse.
- Sua visita já me agrada. Que mais posso pedir?
- O velho tesouro, naturalmente.
- E então?
- Resiste a cair em minhas mãos.
Annio forçou a expressão do rosto. Sabia que conseguir
aquele, não ia ser fácil. No final das contas, seu tesouro chegara à
Itália há mais de cem anos e circulara de mão em mão,
desaparecendo nos momentos mais inesperados. Não era jóia, nem
relíquia venerável, nem algo que satisfizesse os custosos gostos de
um rei. O tesouro era um livro. Um velho tratado oriental,
encadernado em marroquim e atado com tiras de couro, com que
esperava encontrar a verdade sobre a ressurreição do Messias e
seu vínculo com a poderosa e ancestral magia egípcia.* E Leonardo
era, ao que ambos sabiam, seu último possuidor. E a melhor prova
estava na misteriosa frase que o padre Torriani encontrara no
Cenacolo. Uma invocação egípcia que não poderia proceder de
outra fonte.
*[ Javier Sierra levou anos investigando esta peculiar conexão
entre as ressurreições de Jesus e Osíris. Parte de seus achados
foram expostos em seu romance anterior, O segredo egípcio de
Napoleão. (N. do editor espanhol.)]
- Você me decepciona, Oliverio - bufou a doninha. - Se não o
traz consigo, para que me chamou?
- Vou explicar: o senhor não é o único que ambiciona esse
tesouro, mestre Annio. A princesa d'Este o desejou antes de perder
a vida.
- Isso é água passada! - protestou. - Sei que a muito ingênua
recorreu a você, mas agora está morta. O que o impede, então?
- Há alguém mais, mestre.
- Outro competidor? - a doninha se inflamou. O mercador
parecia amedrontado. - O que deseja, Jacarandá? Mais
dinheiro? É isso? Ofereceu-lhe mais dinheiro e você vem aumentar
seus honorários?
O espanhol sacudiu a cabeça. Seu rosto redondo e os olhos
arroxeados exprimiam uma gravidade raramente vista nele.
- Não. Não se trata de dinheiro.
- Então o quê?
- Necessito saber quem estou enfrentando. Aquele que busca
o seu tesouro está disposto a matar para consegui-lo.
- A matar, está dizendo?
- Há quase dez dias acabou com a vida de um de meus
intermediários: o bibliotecário do mosteiro de Santa Maria delle
Grazie. Sabe mais?
- O mui bastardo continuou eliminando todos os que
mostraram interesse por sua obra. Por isso vim vê-lo: para que me
esclareça quem estou enfrentando.
- Um assassino... - a doninha fez um movimento violento com
o corpo.
- Não é um criminoso qualquer. É um homem que assina seus
crimes; zomba de nós. Na igreja de São Francisco acabou com a
vida de vários peregrinos e sempre deixou com o cadáver um
baralho de Taro Visconti-Sforza a que faltava uma única carta.
- Uma carta?
- A sacerdotisa. Entende agora?
Annio emudeceu.
- É assim, Nanni. O mesmo naipe que tanto donna Beatrice
como o senhor me entregaram para chegar até seu tesouro.
Oliverio bebeu um novo trago de sua cerveja, que desceu
veloz pela garganta, umedecendo-a. Logo prosseguiu:
- Sabe o que penso? Que o assassino conhece nosso interesse
pelo livro da sacerdotisa. Creio que a escolha dessa carta não é
casual. Conhece-nos e nos eliminará também se atravessarmos seu
caminho.
- Está bem, está bem - a doninha parecia perturbada.
- Diga-me, Oliverio, esses peregrinos assassinados em São
Francisco também buscavam meu tesouro?
- Fiz algumas averiguações com a polícia do Mouro e posso
garantir que não eram peregrinos comuns.
- Ah, não?
- O último foi identificado como o irmão Giulio, um antigo
albigense perfeito. Soube antes de viajar, para encontrá-lo, a
polícia de Milão está desconcertada. Ao que parece, esse Giulio foi
reabilitado pelo Santo Ofício há alguns anos, depois de dirigir uma
importante comunidade de perfeitos em Concorezzo.
- Concorezzo? Está seguro?
Jacarandá assentiu.
O antiquário não percebeu o calafrio que percorreu a coluna
dorsal do velho mestre. O mercador ignorava que aquela aldeia
situada nos arredores de Milão, a nordeste da capital, fora um dos
principais redutos albigenses da Lombardia e o local em que,
segundo todas as fontes, guardara-se durante mais de duzentos
anos o livro que Annio ambicionava. Tudo se encaixava: as
suspeitas de Torriani sobre a filiação albigense de Leonardo, os
perfeitos assassinados em Milão, a frase egípcia no Cenacolo. Se
não se enganava, a origem de tudo tinha de ser procurada naquele
tesouro: um texto de enorme valor teológico e mágico, prenhe de
referências ocultas aos ensinamentos que Cristo entregou a
Madalena depois da ressurreição. Um legado que evidenciava a
impressionante simetria entre Jesus e Osíris, que ressuscitou
graças à magia de sua consorte Isis , a única que esteve perto dele
no momento de seu retorno à vida.
O Santo Ofício investiu decênios investigando semelhante
tratado. O máximo que pôde determinar foi que uma cópia, talvez
até a única existente, saiu de Concorezzo e acabou nas mãos de
Cosme, o Velho, durante o Concílio de Florença em 1439. E jamais
regressou. De fato, só uma oportuna indiscrição de Isabella d'Este,
a irmã de donna Beatrice, durante as comemorações de coroação
do papa Alexandre em 1492, a fez saber que o livro estivera em
Florença em poder de Marsilio Ficino, tradutor oficial dos Médicis,
e que ele o deu de presente a Leonardo da Vinci pouco antes de
partir para Milão. Não era pois improvável que os concorezzanos
soubessem também dessas notícias e quisessem recuperar seu
livro.
- Diga-me então, padre Annio - perguntou Jacarandá, tirando
o prelado de suas reflexões -, por que não me explica o que torna
esse livro tão perigoso?
Annio viu o desespero impresso nas rugas de seu velho amigo
e compreendeu que não tinha escolha.
- É uma obra extraordinária - disse por fim. - Recolhe o
diálogo mantido por João e Cristo no céu sobre a origem do mundo,
a queda dos anjos, a criação do homem e os caminhos dos mortais
para conseguir a salvação de nossa alma. Foi escrito logo depois da
última visão do discípulo amado antes de morrer. Dizem que é uma
narrativa lúcida, intensa, que mostra detalhes da vida além da
Terra e a ordem da criação a que nenhum outro mortal teve.
- E por que acredita que um livro assim interessou Leonardo?
Esse homem é pouco amigo da teologia...
A doninha levantou o dedo indicador para calar Jacarandá:
- O verdadeiro título do "livro azul", caro Oliverio, dirá tudo.
Só precisa me escutar. Há trezentos anos, Anselmo de Alexandria o
revelou em seus escritos: chamou-o Interrogado Johannis ou A
ceia secreta. E pelo que sabemos, Leonardo utilizou os mistérios
contidos nas primeiras páginas para ilustrar a parede do refeitório
dos dominicanos. Nem mais nem menos.
- E esse é o livro que aparece na carta da sacerdotisa?
Nanni concordou.
- E seu segredo foi sintetizado por Leonardo numa única frase
que desejo que me traduza.
- Uma frase?
- Em egípcio antigo. Diz: Mut-nem-a-los-noc. Conhece-a? -
Oliverio sacudiu a cabeça.
- Não. Mas traduzirei para você. Fique tranqüilo.
38
De manhã à noite. Assim foram os interrogatórios do vigésimo
segundo dia de janeiro.
Lembro-me de que o prior Bandello, frei Benedetto e eu, nos
entrevistamos com os frades de Santa Maria delle Grazie um por
um, esforçando-nos por encontrar em suas palavras pistas que
resolvessem nossas adivinhações. Vivemos momentos
surpreendentes. Todos tinham algo a confessar. Tremendo,
suplicavam a absolvição de suas faltas e juravam que jamais
voltariam a duvidar da natureza divina de Cristo. Pobrezinhos.
Quase todas as revelações eram fruto de paupérrima educação
teológica: confundiam fatos não-substanciais com pecados
gravíssimos, e vice-versa. No entanto, foi assim, pouco a pouco, à
força de pacientes interrogatórios, que os padres, Alessandro e
Giberto, foram se alinhando como a ponta de lança de uma
peculiar tentativa de controlar, por dentro, o local onde ia
descansar o Cenacolo. Os quatro religiosos que apareceram como
os mais implicados nos confessaram, em separado, a poderosa
razão que os movia: aquela gigantesca obra do toscano encerrava o
que definiram como "imagem talismânica". Isto é: um traçado
geométrico sutil, desenhado para seduzir as mentes desprevenidas
e gravar em sua memória uma informação que, por desgraça,
nenhum deles podia precisar com palavras. "É a terceira revelação
de Deus", atreveu-se a dizer um deles.
Aquilo me chamou a atenção.
Nossos quatro hereges procediam de pequenos povoados do
norte de Milão, da região dos lagos e ainda mais acima, que se
uniram aos dominicanos pouco depois da fundação do novo
convento. Fizeram-no quando conheceram as intenções do Mouro
de convertê-lo em seu mausoléu de família. É que, à diferença do
resto, eram homens de boa formação, admiradores da célebre
máxima de São Bernardo que diz "Deus é comprimento, largura,
altura e profundidade". Conheciam Pitágoras, leram Platão e o
estimavam mais do que Aristóteles, o inspirador de nosso sistema
teológico. Logo se destacou entre eles frei Guglielmo Arno, o
cozinheiro. Não só foi o único a se negar a confessar seus pecados
diante de nosso tribunal, mas também nos tratou com desdém por
militar na "Igreja falsa".
O pouco que, até então, sabia dele era a grande amizade que
o unia a Leonardo. Frei Alessandro foi o primeiro a me falar dele.
Ambos eram tentados pelos mesmos prazeres: depreciavam entre
risadinhas as comidas excessivas do Mouro, opondo à carne assada
os brotos de couve, ameixas, rodelas de cenoura crua ou os pastéis
fermentados. Soube também que Guglielmo e ele alcançaram seu
momento de glória no Natal de 1495, quando inventaram um
biscoito com o formato da cúpula projetada por Bramante para
Santa Maria e o apresentaram no banquete ducal de 25 de
dezembro.* Foi um sucesso tal que até donna Beatrice implorou
que revelassem o segredo da massa para fazê-la crescer daquela
maneira. Frei Guglielmo fez caso omisso. A duquesa insistiu. E
muitos se lembram ainda do grosseiro atrevimento do frade, que
lhe valeu cinco semanas de prisão em sua própria cozinha e uma
severa admoestação da casa Sforza.
* [Hoje é célebre em todo o mundo o panettone, que alguns
acreditam ter sido invenção de Leonardo da Vinci naquela data. (N.
do editor espanhol.)]
Frei Guglielmo nada mudou desde então. Seu temperamento
excessivo e o encontro conosco demonstravam que preferia antes
morrer do que se retratar de seus atos. Bandello ordenou que o
encerrassem, enquanto murmurava entredentes o que pensava de
seu cozinheiro:
- É incapaz de controlar seu mau gênio - disse. - Não tem
remédio. Quando posou de Tiago Maior para o Cenacolo até
Leonardo era incapaz de controlá-lo.
Sacudi a cabeça incrédulo.
- Oh! - exclamou. - Também não lhe disse? Talvez a cabeleira
comprida do apóstolo o distraiu, padre Leyre, mas se olhar bem
para os traços do cozinheiro o reconhecerá. Eu o autorizei a posar.
Leonardo pediu que lhe indicasse um varão temperamental que
gesticulasse como Tiago Maior na mesa, e pensei nele.
- E por que queria o mestre incluir alguém assim entre os
Doze?
- Perguntei isso mesmo ao mestre, e sabe o que me
respondeu? "Geometria", disse. "Tudo é geometria!" Explicou-me
que num nu, media a beleza, igualando a distância entre os
mamilos com a que separa o peito do umbigo, e por sua vez entre o
umbigo e as pernas. Quanto à ira, garantiu que era capaz de
representá-la só esboçando um olhar. Quando voltar ao Cenacolo,
contemple o olhar de Tiago. Evita o rosto de Cristo, baixando-o
com horror até a mesa, como se ali descobrisse algo terrível.
- Que um de seus companheiros vai trair o Messias - eu disse.
- Não! - O caolho rompeu seu silêncio, como se eu tivesse dito
algo inadequado. - Isso é o que quis nos fazer crer. Acaso nossos
frades não lhe disseram que estamos diante de um talismã? Numa
peça assim os símbolos, ou a ausência deles, são fundamentais
para seu funcionamento. E neste caso, o que Tiago Maior olha
horrorizado é o gesto de Judas
- Iscariotes e Jesus competindo para conseguir o mesmo
pedaço de pão...
- Ou talvez a ausência do cálice de Cristo. O Graal.
Sua observação era oportuna.
- E pense em algo mais: Tiago Maior, o irascível, está no lado
do Cenacolo em que a luz é mais brilhante. Está junto dos justos.
Frei Benedetto nos explicou como assistiu a algumas
palestras do mestre sobre distribuição do espaço e da luz, no
claustro do hospital. Seus discursos eram ao mesmo tempo
estranhos e embriagadores. Ensinava como a matéria inerte,
distribuída de modo harmonioso, poderia ganhar vida própria.
Amiúde comparava esse prodígio com o que ocorria com as notas
de uma partitura: escritas sobre papel não eram mais do que uma
sucessão de rabiscos estáticos sem outro valor que o ideográfico.
No entanto, depuradas pela mente de um músico e transferidas
para seus dedos ou pulmões, seus riscos vibravam, enchiam o ar de
sensações novas e até alteravam nosso ânimo. Pode existir algo
mais vivo do que a música? Para Leonardo, não.
O magister pictorum via sua obra de modo semelhante. Na
aparência eram natureza morta, pouco mais do que estuques ou
madeiras cobertas de pigmentos e cola. No entanto, interpretadas
por um observador iniciado ganhavam força desmedida.
- E como acredita que Leonardo possa dar vida a algo que não
tem?- perguntei.
- Mediante magia astral. Creio que já sabe que esse herege,
Leonardo, estudou os textos de Ficino, não é verdade?
A pergunta de frei Benedetto soou à armadilha. O caolho
devia conhecer minhas suspeitas graças ao padre Bandello e assim,
prudente, inclinei a cabeça em sinal de aprovação.
- Pois bem - continuou. - Ficino traduziu do grego antigo o
Asclepios, uma obra atribuída a Hermes Trismegisto, em que se
ensinava como os sacerdotes dos faraós davam vida às estátuas de
seus templos.
- Deveras?
- Dominavam o spiritus, uma ciência obscura mediante a qual
desenhavam sobre as imagens signos cósmicos que as conectavam
às estrelas. Signos astrológicos, para nos entendermos. E o mestre
aplicou essas técnicas no Cenacolo.*
* [O estudo mais recente e profundo sobre a equivalência entre os
signos do zodíaco e as figuras dos doze apóstolos é de Nicola
Sementovsky-Kurilo. Ele assegura que os discípulos do Cenacolo
estão distribuídos em quatro grupos de três para representar os
quatro elementos da Natureza, e até atribui a cada um deles um
signo zodiacal específico. Assim, a Simão - que está na extrema
direita da mesa, corresponde o primeiro signo zodiacal, Áries. A
Tadeu, Touro. A Mateus, Gêmeos. O signo de Câncer é para Filipe;
Leã, para Tiago Maior; Virgem, para Tomé. E a balança da Libra,
para João, o que, para Sementovsky, tem uma leitura simbólica
importante, ao considerar o jovem João o elemento estabilizador da
futura Igreja. O restante dos signos são Escorpião, para Judas
Iscariotes; Sagitário, para Pedro; Capricórnio, para André;
Aquário, para Tiago Menor; e Peixes para Bartolomeu.]
O prior e eu nos olhamos perturbados.
- Não enxergam, irmãos? Doze apóstolos, doze signos do
zodíaco. Cada discípulo corresponde a uma constelação, e Jesus, no
centro, encarna o ideal de Sol. É uma pintura talismânica!
- Acalme-se, padre Benedetto. Isso não passa de suposição...
- Nada disso! Olhe bem o Cenacolo, porque ser um mural vivo
não é sua pior característica. Visto a partir de nosso conhecimento
das idéias albigenses, este mural recolhe com perfeição a mais
profunda das teses dos hereges. É uma espécie de "Bíblia negra". E
em nosso refeitório!
- A que idéia se refere, Benedetto? - interpelei-o.
- Ao dualismo, padre. Se o entendi bem esta manhã, todo o
sistema de crenças dos bonhommes se baseia na existência de um
combate permanente entre um Deus bom e um mau.
- É assim.
- Então, quando retornar ao refeitório, olhe se a luta entre o
bem e o mal está ou não retratada no Cenacolo. Cristo figura no
centro, como o fiel de uma balança a meio caminho entre o mundo
do espírito e o da carne. À sua direita - que é nossa esquerda - está
a zona de sombra, do mal. Vá e olhe a parede de sua esquerda:
está escurecida, sem luz. Não é por acaso que nesse lado se
encontre Judas Iscariotes, mas também Pedro com a adaga. Com a
arma que, segundo o senhor, confere-lhe um caráter satânico.
O ancião mal-humorado respirou fundo antes de arrematar o
discurso:
- Ao contrário - acrescentou-, no lado oposto estão aqueles
que Leonardo considera a luz. É a zona iluminada da mesa, e nela
não só se retratou a si mesmo, mas também Platão, o antigo
inspirador de muitas das doutrinas heréticas dos albigenses.
De repente me lembrei de algo:
- E também os irmãos Guglielmo e Giberto, os dois albigenses
confessos - acrescentei. - Ou não foi você quem me disse que
Giberto posou para o perfil do apóstolo Filipe?
O caolho concordou.
- Certamente - argumentei, recordando a disposição
geométrica dos apóstolos-, também você está ali. Dando vida a São
Tomé.
Benedetto resmungou alguma coisa, incomodado, e protestou
com energia depois.
- Deixemos de histórias. É bom que nos esforcemos para
interpretar o mural de Leonardo, mas o que de fato deveria
importar é decidir o que vamos fazer com ele. Direi uma única vez,
irmãos: ou cortamos pela raiz este assunto e emparedamos essa
pintura ou o conteúdo dele será um farol para os hereges que só
nos trará problemas.
39
- Não o entendo. Ficará aí parado, esperando que o
condenem?
O espanto de Bernardino Luini, em absoluto, não comoveu o
mestre Leonardo. Estava há tempo a céu descoberto, concentrado
no desenvolvimento de sua próxima máquina, e mal prestara
atenção ao regresso de seus discípulos. Para quê? No fundo
alimentava pouca esperança de que Elena, Marco e Luini
regressassem do Cenacolo iluminados pela sabedoria que tão
cuidadosamente imprimira ao local. O mestre estava cansado de
esperar. Aborrecia-o contemplar aquele ir e vir de seguidores
incapazes de entender sua maneira particular de elaborar sua arte.
Além disso, como de costume, seus pupilos só traziam
notícias desoladoras do convento. Diziam que Santa Maria estava
em pé de guerra. Que o padre Bandello decidira interrogar os
frades em busca de hereges e ordenara o isolamento de seu caro
frei Guglielmo, o cozinheiro, acusando-o de conspiração contra a
Igreja.
O mestre escutou aquelas explicações com pesar, sem saber o
que dizer.
- Tampouco entendo o senhor, mestre - interveio d'Oggiono. -
Acaso fica satisfeito com o que acontece? Não teme pela sorte de
seu amigo? Está ficando tão insensível, Mestre?
Leonardo levantou o olhar azul da caixa de ferramentas,
fixando-se em seu caro Marco:
- Frei Guglielmo aguentará - disse por fim. - Ninguém poderá
romper o círculo que ele representa.
- Deixe de alegorias! Não vê o perigo? Não se dá conta de que
em breve virão pelo senhor?
- Do único que me dou conta, Marco, é que vocês não me
escutam... - respondeu com secura. - Ninguém me escuta.
- Um momento! - a jovem Elena, que até então permanecera
calada atrás de Luini e d'Oggiono, deu um passo à frente,
interpondo-se entre os três homens. - Já sei o que deseja nos
ensinar, mestre! Agora entendo. Tudo está no Cenacolo.
As espessas sobrancelhas de Leonardo se arquearam diante
daquela inesperada reação. A condessinha prosseguiu:
- O senhor usou frei Guglielmo para representar Tiago Maior.
Disso não há dúvida. E no Cenacolo ele encarna a letra "O". O
ômega. Igual o senhor.
Luini encolheu os ombros, olhando o mestre com rubor. Afinal
de contas, fora ele quem desenhara aquilo para a rapariguinha dos
Crivelli.
- Isso só pode querer dizer uma coisa - acrescentou. - Frei
Guglielmo e o senhor são os únicos que estão de posse do segredo
que querem que encontremos. E também, que está tão seguro de
sua discrição, como ele da sua. Enfim, representam o mesmo
plano.
- Admirável - aplaudiu Leonardo. - Vejo que você é tão esperta
como sua mãe. E sabe também por que escolhi a letra "O"?
- Sim... Creio que sim – titubeou. - Porque o ômega é o fim, ao
contrário de alfa, que é o princípio -disse. - Desse modo, situou-os
no extremo final de um projeto que começou com Cristo, que é o
único "A" do mural.
- Admirável - repetiu o mestre. - Admirável.
- Claro! Frei Guglielmo e o senhor são aqueles que vão nos
revelar a Igreja de João! - pulou Luini.
- Esse é o segredo!
O sábio se inclinou de novo sobre a estranha máquina que
acabara de desenhar, negando com a cabeça.
- Há mais, Bernardino. Há mais.
O que Leonardo tinha diante de si era um tremendo
mecanismo artificioso. Concentrara-se nele depois de fracassar em
seu intento de automatizar a cozinha da fortaleza dos Sforza. Seus
espetos automáticos, a máquina de picar carne, aqueles enormes
foles que avivavam uma onda gigantesca de água fervendo e a
cortadora de pão acionada por ar, causaram vários ferimentos e
resultaram ineficazes para satisfazer os bárbaros gostos
gastronômicos do Mouro. Mas, sua nova máquina ia ser diferente.
Se tudo corresse bem, o duque não voltaria a zombar de sua
colheitadeira gigante de rabanetes e a proporia como sua futura
arma de guerra contra os franceses. Era certo que seu primeiro
ensaio na herdade de Porta Vercellina custara três vítimas, mas
depois de alguns ajustes oportunos a máquina deixaria de ser letal.
- Mestre... - protestou Luino diante da dispersão do toscano. -
Demos um passo enorme na compreensão do seu Cenacolo, e o
senhor não parece se interessar por isso, em absoluto. Não
percebe que chegou a hora de transmitir o seu segredo? A
Inquisição está fechando o cerco em torno do senhor. Talvez
amanhã queira detê-lo e interrogá-lo. Se o detiverem, todo o seu
projeto se perderá.
- Escutei-os, Bernardino. E com atenção - disse sem desviar o
olhar do engenho.- E ainda que dê valor ao fato de que
encontraram as letras ocultas no Cenacolo, também vejo que não
são capazes de interpretá-las. E se vocês, que sabem onde
procurar, parecem crianças que não aprenderam a ler, mais
estarão perdidos esses frades que dizem que me perseguem.
- Um livro. A chave está ali, não é verdade, mestre? É num
livro que o senhor aprendeu tudo.
O novo comentário de Luini soou a desafio.
- O que quer dizer com isso?
- Vamos, Mestre. O tempo das adivinhações passou. E o
senhor sabe. Vi no Cenacolo o rosto de seu velho amigo Ficino, o
tradutor. Não foi com ele que o senhor concordou que um retrato
assim assinalaria a chegada da Igreja de João? Ele não lhe
entregou um livro destinado a ser a nova Bíblia dessa Igreja?
Leonardo deixou cair as ferramentas junto à colheitadeira de
rabanetes, levantando uma poeirada no jardim.
- E o que sabe você disso! - protestou.
- O que o senhor me ensinou: que desde os tempos de Jesus
duas igrejas lutam pelo controle de nossas almas. Uma, a de Pedro,
foi pensada como Igreja temporal. Útil para ensinar aos homens o
caminho do despertar da consciência, mas é só a precursora de
outra construção mais gloriosa que alimentará nosso espírito
quando estivermos abertos para recebê-la. Pedro é a Igreja do
passado, a que aplainou o caminho à que há de vir: a Igreja de
João. A sua.
O toscano quis intervir, mas seu antigo discípulo ainda não
terminara de falar:
- Esse homem, que o senhor pintou como Mateus no
Cenacolo, chamado Ficino, confiou-lhe um livro com textos de João,
para que o estudasse. Lembro-me bem. Eu estava presente no dia
em que o entregou eu era, então, criança. E se agora o senhor o
retrata, até para oferecer à outros, como nós, o acesso à sua obra,
é porque acredita que chegou o momento da mudança de guarda,
não é verdade? Isso é o que significa Cenacolo. Admita-o. O
anúncio da nova Igreja.
Marco e Elena sequer se atreveram a pestanejar. Leonardo
pediu silêncio à Luini com um gesto que usava amiúde: apontar
para o céu com o indicador levantado, como se pedisse
autorização à Deus para falar.
- Meu caro Bernardino - disse, tentando controlar o mau
gênio que se desencadeava no interior. - É certo que Ficino me fez
depositário, deu uns textos valiosíssimos, logo antes que eu me
mudasse para Milão. E também, são exatas suas apreciações sobre
as duas igrejas. Nada disso negarei. Há anos pinto João Batista em
meus quadros, esperando a chegada de um momento como este. E
creio que de fato já chegou.
- O que o faz acreditar, mestre?
- O quê? - respondeu a Elena, muito mais tranqüila. - Não vê
em todo o mundo? O papa conduziu a Igreja temporal a um grau de
depravação difícil de igualar. Seus próprios clérigos, como esse
Savonarola, voltaram-se contra ele. Chegou o momento de que a
Igreja do espírito, do Batista, substitua a de Pedro e nos conduza à
salvação verdadeira.
- Mas, o Batista não está no Cenacolo, mestre.
- Batista, não. - Sorriu à Marco d'Oggiono, sempre atento aos
pequenos detalhes.- Mas, João sim.
- Não entendo...
- Quase tudo está nas Escrituras. Relendo os Evangelhos com
atenção verá que, Jesus não começou sua vida pública até que o
Batista o banhou nas águas do Jordão. Os quatro evangelistas
necessitaram justificar a missão de Jesus se referindo a ele como
parte de sua preparação como Messias. Por isso, sempre o pinto
com o dedo erguido para o céu é minha maneira de dizer que ele, o
Batista, chegou primeiro.
- Então por que adoramos Jesus e não João?
- Tudo era parte de um plano cuidadosamente elaborado. João
foi incapaz de transmitir àquele punhado de homens toscos e
incultos seus ensinamentos espirituais. Como fazer pescadores
entenderem que Deus está dentro de nós e não num templo? Jesus
o ajudaria a doutrinar esses selvagens. Conceberam uma Igreja
temporal imitada da judaica, e outra espiritual, secreta, como
jamais se vira na Terra. E esses ensinamentos foram confiados a
uma mulher inteligente, Maria Madalena, e a um jovem sagaz a
quem também chamavam João... E esse João, caro Marco, está no
Cenacolo. - E Madalena também!
O toscano não pôde ocultar sua admiração por aquela jovem
impetuosa. Luini, ruborizado, viu-se forçado a esclarecer sua
reação: foi ele quem lhe ensinara que ali onde estava pintado um
nó grande e visível se encontraria uma obra vinculada à Madalena.
A Última Ceia tinha o nó.
- Deixem-me explicar algo mais - acrescentou o mestre, já um
tanto cansado. - João é mais do que um nome. Assim, foram
conhecidos em seu tempo, tanto o Batista, como o Evangelista.
João, de fato, é um título. Trata-se do nome mysticum atribuído à
todos os depositários da Igreja espiritual. Como a papisa Joana, a
das cartas dos Visconti.
- A papisa Joana? Não era um mito? Uma fábula para
ingênuos?
- E que fábula não esconde fatos reais, Bernardino?
- Então...
- Você precisa saber que o homem que desenhou essas cartas
foi Bonifácio Bembo, de Cremona. Um perfeito. Ele, vendo perigar
o destino de nossos irmãos, decidiu esconder, nesse maço de
cartas para os Visconti, alguns símbolos fundamentais de nossa fé.
Como a crença de que somos descendência mística de Jesus Cristo.
E que melhor símbolo dessa certeza do que pintar uma papisa
grávida, segurando na mão a cruz do Batista, indicando, a quem
souber ler, que da velha Igreja nascerá logo a nova? Essa carta -
acrescentou o mestre em tom reverente - é a profecia exata do que
está por acontecer...
40
Não atino a razão pela qual o padre Bandello decidiu me
enviar para semelhante missão. Se tivesse o dom da profecia e
visse o que estava prestes a acontecer comigo é certo que me teria
retido ao seu lado. Mas, o destino é imprevisível, e Deus, naquele
dia de janeiro, lançou os dados de meu devir fiel ao seu insondável
proceder.
No início, confesso, deu-me asco.
Desenterrar, junto com Benedetto, o caolho; Mauro, o
coveiro; e frei Jorge, o embrulho funerário do padre Trivulzio,
revolveu-me as entranhas. Há mais de cinquenta anos o Santo
Ofício não exumava cadáver de réu para fazer a queima, e, embora
tivesse rogado ao prior que deixasse os mortos em paz, não pude
evitar que frei Alessandro voltasse a ver a luz do dia. O cadáver,
saponáceo e pálido, desprendia um fedor insuportável. Por mais
que meus companheiros e eu tomássemos a precaução de envolvê-
lo em novo sudário e o atássemos como uma salsicha, o mau cheiro
não deixou de nos acompanhar durante toda a viagem. Por sorte
nem tudo era desagradável. Chamou-me a atenção que embora não
se pudesse respirar perto do corpo de frei Alessandro, não
acontecia a mesma coisa com o do sacristão. Frei Giberto não
cheirava a nada. A nada em absoluto. O coveiro atribuiu o
fenômeno, a que o fogo que o consumiu na praça do Comércio,
acabou com suas partes corruptíveis, conferindo-lhe esse estranho
dom. Mas, o caolho defendeu com veemência outra teoria. Para
ele, o fato de permanecer a céu aberto num pátio do hospital da
ordem, suportando temperatura de vários graus abaixo de zero,
evaporara os piores eflúvios do sacristão. Nunca soube em qual dos
dois acreditar.
- Com os animais acontece o mesmo - o caolho tentou me
convencer. - Ou fede a algo o corpo de um cavalo abandonado num
caminho coberto de neve?
Chegamos à planície de Santo Estêvão sem concluir nossa
discussão e quando faltava apenas uma hora e meia para às
vésperas. Atravessamos o controle militar da Porta Della Corte e,
deixamos para trás, a sede do Capitano di Giustizia sem dar muitas
explicações à guarda. A polícia sabia de nossa desventura e
concordava em que levássemos os hereges para longe da cidade. A
carroça que conduzíamos, carregada de utensílios agrícolas e
cordas, passou em todas as vistorias. E assim, chegamos à Santo
Estêvão, uma clareira em meio ao bosque, solitária e silenciosa,
com solo de rocha firme, na qual não nos seria difícil empilhar os
fardos de lenha que transportamos e prender com eles nossos
defuntos.
Jorge, solícito, dirigiu os trabalhos.
Foi ele quem organizou a montanha de troncos que os
reduziria à cinzas, e quem nos ensinou a melhor maneira de erguer
uma pira sólida e calorífera. Para alguém como eu, que presenciara
tantos autos-de-fé, sem sequer, levantar um pedaço de madeira,
aquela foi uma sensação nova. Jorge nos mostrou como colocá-los
seguindo uma ordem inversa ao seu tamanho. Vira muitas vezes
como se fazia. Foi ele que nos ensinou que a madeira mais fina
devia ser posta na base, para que ao arder enredasse com eficácia
as peças mais grossas. Uma vez terminada a tarefa, nos obrigou a
estender uma grande corda ao redor da montanha, firmá-la e
levantar com uma das extremidades restantes os corpos de nossos
irmãos até o cume. Cumpriríamos assim, as ordens de nosso prior
e regressaríamos antes que a noite se fechasse e os soldados do
Mouro trancassem as portas de entrada do burgo.
- Sabe qual é a melhor parte deste trabalho? - ofegou frei
Benedetto, ao terminar de colocar o corpo de Giberto no cimo dos
troncos. O caolho se encarapitara ao lado do coveiro até o alto para
assim puxar com força o fardo de frei Alessandro e depositá-lo em
seu lugar.
- E tem algo bom?
- O bom, irmão Mauro - ouvi frei Benedetto grunhir -, é que,
com um pouco de sorte, as cinzas destes desgraçados cairão sobre
os albigenses que se escondem nestas montanhas.
- Albigenses aqui? - protestou. - Você os vê em todos os
lugares, irmão.
- E, além disso, você supõe que eles são muito perspicazes -
intervim, do chão, enquanto ajustava a corda ao redor de frei
Alessandro. -Você acredita que são capazes de distinguir essas
cinzas das de suas próprias fogueiras? Permita-me duvidar.
O caolho não respondeu. Esperei que a corda se retesasse e
começasse a içar o bibliotecário, mas tampouco, adverti nada.
Mauro Sforza não aproveitou a ocasião para arrematar os sempre
amargos comentários do assistente do prior, e um incômodo e
prolongado silêncio se instalou de repente na clareira.
Surpreso, dei um passo atrás para ver o que acontecia no
alto. Frei Benedetto estava imóvel como uma estátua de sal, o rosto
voltado para trás e o olhar perdido em algum ponto do limite do
bosque; soltara a corda. Mauro não podia vê-lo; o máximo que
consegui discernir foi o ligeiro tremor de sua barbicha branca.
Sorvia o ar com angústia, como faria um desses místicos diante de
suas visões em êxtase do céu. Não pestanejava, nem parecia capaz
de articular qualquer movimento. Logo compreendi: o caolho,
paralisado por alguma impressão, parecia querer me apontar algo
com a barbicha, alçando-a em espasmos irregulares e dando
pequenos golpes no ar com o nariz. Por isso, quando me voltei de
todo e olhei para o lugar em que ele olhava, quase caí de costas
com o choque.
Não estou exagerando.
Bem na entrada do bosque, a uns vinte metros de onde nos
encontrávamos, um grupo de quinze encapuzados observava em
silêncio nossos movimentos. Ninguém os vira antes. Vestiam-se de
preto da cabeça aos pés, tinham as mãos recolhidas dentro das
mangas e pareciam estar ali há tempo, vigiando a clareira de Santo
Estêvão. Não que parecessem hostis - de fato, não portavam armas,
nem bordões, nada com que pudessem nos agredir -, mas,
reconheço que sua atitude não nos tranqüilizou: olhavam-nos pela
abertura de seus capuzes, sem nada dizer, ou fazer, a intenção de
se aproximar. De onde saíram? Que soubéssemos não existia
convento, nem eremitério nos arredores, nem aquele era um dia
litúrgico que justificasse a presença de monges em campo aberto.
E então? O quer queriam? Acaso vieram presenciar a
execução post mortem de nossos hereges?
Mauro Sforza foi o primeiro a descer da pira e se dirigir aos
encapuzados com os braços abertos, mas seu gesto foi recebido
com indiferença. Nenhum dos visitantes moveu um músculo.
- Santo Deus - conseguiu por fim exclamar o caolho. - Mas são
revestidos!
- Revestidos?
- Não está vendo, padre Leyre? - balbuciou, entre a
perplexidade e o mal-estar. - É o que eu dizia. Vão envolvidos em
hábitos pretos, sem cordas, nem ornamentos, como os albigenses
que aspiram pela perfeição.
- Albigenses?
- Não estão armados - acrescentou. - Sua fé os proíbe.
Mauro, que escutara aquilo, deu mais um passo em direção
aos desconhecidos.
- Adiante, irmão - animou-o o caolho. - Nada perderá se tocar
neles. Se não são capazes de matar um pinto, como pensarão em
lhe fazer dano?
- Laudetur Iesus Christus. Estão aqui por seus mortos! –
exclamou Jorge, que se agarrara ao meu hábito tremendo de medo
ao perceber o que se passava. - Querem que os devolvamos!
- E isso o amedronta? Não ouviu frei Benedetto? - sussurrei,
pedindo-lhe que se acalmasse. - Estas pessoas são incapazes de
usar a violência contra nós.
Jamais fiquei sabendo se o irmão Giorgio chegou a me
responder, porque quando devia responder os intrusos entoaram
um plangente Pater Noster que estremeceu a clareira. Os timbres
enérgicos encheram Santo Estêvão, deixando-nos sem palavras.
Mas Jorge se equivocou. Os bonhommes não vieram resgatar o
corpo dos correligionários. Jamais fariam algo assim. Eles odiavam
os corpos. Consideravam-nos a prisão da alma, um obstáculo
diabólico que os distanciava da pureza do espírito. Se se
deslocaram até ali, arriscando-se a ser detidos e levados para a
prisão, era porque decidiram orar pelas almas dos correligionários
mortos.
- Sejam todos amaldiçoados! - imprecou frei Benedetto,
levantando os punhos do alto da pira. - Amaldiçoados uma e mil
vezes!
A reação do caolho nos surpreendeu. Frei Jorge e o irmão
Mauro ficaram imóveis ao vê-lo pular ao chão e sair correndo em
direção aos revestidos, como se estivesse fora de si. Estava
vermelho de ira, com o rosto a ponto de estalar e as veias do
pescoço inchadas. Benedetto investiu com violência contra o
primeiro encapuzado que atravessou seu caminho. O homem caiu
de bruços no chão. E o caolho, enlouquecido, caiu de joelhos sobre
ele, empunhando uma faca que tirou sabe Deus de onde.
- Deveriam estar mortos! Todos! Não têm direito de estar
aqui! - gritou.
Antes que pudéssemos detê-lo, nosso irmão cravou a arma até
o cabo nas costas do revestido. Um alarido de dor estremeceu o
local.
- Vão para o inferno! - bramiu.
O que aconteceu depois ainda é confuso para mim.
Os encapuzados se olharam entre si antes de se jogar sobre
Benedetto. Separaram-no das costas feridas de seu irmão, cujo
sangue jorrava aos borbotões, e o subjugaram contra um dos
pinheiros. O caolho, que continuava proferindo maldições contra
seus captores, tinha seu único olho injetado de ira.
Quanto aos demais, é o que menos recordo. Jorge, o
octogenário, fugiu correndo para a cidade. Nunca pensei que
pudesse correr com tanta agilidade. Em compensação, perdi
Mauro de vista, enquanto um daqueles homens me aplicou um saco
na cabeça, atando-o ao meu pescoço com uma correia. Algo devia
conter naquele taleigo, porque logo depois que me caiu em cima,
notei que fui perdendo os sentidos lentamente. Em questão de
segundos deixei de ouvir os lamentos do encapuzado ferido, e uma
extraordinária sensação de leveza se apoderou de meus membros
de maneira inexorável.
Antes de desfalecer, no entanto, ainda tive tempo de escutar uma
voz que murmurou algo que não consegui compreender:
- Agora, padre, por fim poderei esclarecer suas dúvidas.
Depois, aturdido e confuso, desmaiei.
41
Despertei com náusea e uma forte dor de cabeça, sem saber
quanto tempo permaneci inconsciente. Tudo girava ao meu redor e
minha mente estava mais confusa do que nunca. A culpa era
daquela pressão constante sobre a fronte. Era uma dor cíclica,
circular, que a cada tempo percorria meu crânio da esquerda para
a direita, perturbando meus sentidos. Eram tão fortes as pontadas,
que durante bom momento, sequer tentei abrir os olhos. Lembro-
me até que apalpei a cabeça buscando alguma ferida, mas fui
incapaz de encontrar algo. O dano era interno.
- Não se preocupe, padre. Está inteiro. Descanse. Logo se
recuperará.
Uma voz amável, a mesma que me falou antes de perder os
sentidos, sobressaltou-me antes que pudesse me reanimar
completamente. Voltou a se dirigir a mim em tom sereno, afetuoso,
como se me conhecesse há muito tempo.
- O efeito de nosso óleo durará só mais algumas horas. Depois
voltará a se sentir bem.
- O seu... óleo?
Desorientado, fraco, com as pernas e os braços fortemente
apertados e estendido num chão irregular, consegui reunir forças
para começar a falar. Deduzi que me levaram para algum lugar
coberto, porque sentia a roupa seca e o frio não era tão intenso
como na clareira de Santo Estêvão.
- O pano que lhe colocamos em cima estava embebido num
óleo que provoca o sono, padre. É uma fórmula antiga. Um segredo
dos bruxos destes pagos.
- Veneno... - murmurei.
- Não exatamente - respondeu. - Trata-se de um unguento
extraído da cizânia, meimendro, cicuta e dormideira. Nunca falha.
Basta absorvê-lo em pequenas doses através da pele para que seu
efeito letárgico seja imediato. Mas, passará logo. Relaxe.
- Onde estou?
- A salvo.
- Dê-me de beber, peço-lhe.
- Em seguida, padre.
Às apalpadelas agarrei a vasilha que o desconhecido colocou
entre minhas mãos. Era vinho quente. Um caldo amargo, que
ajudou meu corpo maltratado a se recompor. Agarrei-me ao
recipiente com ânsia, juntando as forças antes de girar os olhos e
lançar uma olhadela ao meu redor.
Meu instinto não errara. Já não estava em Santo Estêvão.
Fossem quem fossem meus captores, separaram-me de Jorge,
Mauro e Benedetto, e isolado numa peça fechada, sem janela, que
devia ser uma espécie de cela improvisada, em alguma remota
casa de campo. Supus que passara uma eternidade estendido sobre
aquela esteira de palha. Minha barba crescera, e alguém se
atrevera a me despir do hábito de São Domingos; em seu lugar, eu
vestia um burel tosco de lã. Mas, era impossível calcular quanto
tempo estava ali. E para onde foram levados meus irmãos? Quem
era o responsável por me levar a esse lugar? E para quê?
Uma sensação de angústia se apoderou de minha garganta.
- Onde... estou? - repeti.
- A salvo. Este lugar se chama Concorezzo, padre Leyre. E me
alegra vê-lo recuperado. Temos muito, muito do que falar. Lembra-
se de mim?
- Co... como? - titubeei.
Quis girar para procurar meu interlocutor, mas uma nova
pontada me deteve.
- Vamos, padre! Nosso óleo o adormeceu; mas, não apagou a
memória. Sou um homem que sempre disse a verdade, não se
lembra? Aquele que jurou resolver certa adivinhação que o
atormentava.
Um estalo me sacudiu o cérebro. Era certo. Por Deus bendito.
Era certo que já escutara aquele timbre de voz em algum lugar.
Mas onde? Tive de fazer um grande esforço para terminar de me
recompor e achar o rosto de quem me falava. E, Santo Cristo, por
fim o vi. Estava bem nas minhas costas. Redondo e ruborizado
como sempre. Com aqueles olhos de esmeralda, claros e espertos.
Era Mário Forzetta. Não havia dúvida.
- Lembra-se de mim?
Concordei.
- Lamento ter recorrido a este método para trazê-lo aqui,
padre. Mas, acredite-me, era a única opção que tínhamos. Por bem
não nos teria acompanhado - sorriu.
Aquele plural me desconcertou.
- Quem tínhamos? Quem, Mário?
O rosto de Forzetta se iluminou ao me ouvir pronunciar seu
nome.
- Os homens puros de Concorezzo, padre. Nossa fé nos
impede de usar a violência, mas não o engenho.
- Bonhommes... Você?
- Ficará horrorizado, sei. Libertou um herege da prisão que
merecia. Mas, antes que forme opinião sobre o assunto, peço-lhe
que me escute. Tenho muito a dizer-lhe.
- E meus irmãos?
- Nós os fizemos dormir em São Estêvão, como o senhor. A
estas horas, se não congelaram, já terão regressado à Milão e terão
sua mesma dor de cabeça.
Mário ostentava um aspecto razoavelmente bom. Notava-se
nele ainda a cicatriz que lhe dividira a cara dias atrás, mas deixara
crescer a barba e sua tez estava morena do Sol. Distara muito do
espectro que conversou comigo na prisão do palácio dos Jacarandá.
Ganhara peso e o rosto irradiava felicidade. Saber-se fora do
alcance de dom Oliverio lhe caíra bem. O que eu não conseguia
compreender, era por que decidira me reter. E porque,
precisamente eu, que lhe dei a liberdade.
- Meus irmãos e eu hesitamos muito antes de dar este passo -
explicou-se Mário, que se sentou ao meu lado, no chão. - Sei que o
senhor, padre, é inquisidor, e que sua ordem há mais de duzentos
anos persegue famílias que, como as nossas, têm outra maneira de
se aproximar de Deus.
- Mas...
- Mas, ao vê-lo ontem em Santo Estêvão compreendi que era
um sinal enviado por Deus. Apareceu ali bem quando eu já tinha as
respostas que jurei dar. Lembra-se? Acaso não é um milagre?
Convenci nosso prefeito para que o trouxéssemos aqui e eu
pudesse saldar minha dívida.
- Não há tal dívida.
- Há sim, padre. Deus cruzou nossos caminhos por alguma
razão que só Ele sabe. Talvez não seja para que o ajude a resolver
suas adivinhações, e sim para que juntos enfrentemos o inimigo
que temos em comum.
Aquela afirmação me desconcertou.
- Como diz?
- Lembra-se da adivinhação que me confiou no dia em que me
libertou?
Concordei. Óculos ejus dinumera continuava desafiando
minha inteligência. Quase me esquecera que também Forzetta a
tinha em seu poder.
- Depois de me despedir do senhor, refugiei-me no ateliê de
Leonardo. Sabia que sua casa era o único lugar de Milão que me
daria abrigo, como aconteceu. E, naturalmente, falei com o mestre.
Contei-lhe meu encontro consigo, falei de sua infinita generosidade
e pedi que me auxiliasse. Não só queria que me protegesse da ira
de Jacarandá, mas desejava agradecer ao senhor o muito que fez
por mim ao tirar-me de sua prisão.
- Mas você já não era discípulo do mestre... não é verdade?
- Não era. Mas, na realidade nunca deixei de ser. Leonardo
sempre trata seus pupilos como filhos, e, apesar de que alguns de
nós não demonstramos estatura para seguir na pintura, sempre
nos reserva seu afeto. Enfim, seus ensinamentos transcendem o
mero ofício de artista.
- Entendo. Assim você foi se refugiar sob a asa protetora de
mestre Leonardo. E o que ele disse?
- Entreguei-lhe sua adivinhação. Disse que continha o nome
de uma pessoa que o senhor buscava e o mestre o resolveu para
mim.
Aquilo me pareceu irônico. Leonardo decifrara a assinatura
de quem escreveu a Betânia para provocar sua ruína? Cheio de
curiosidade, tentei sobrepujar meu enjôo e peguei as mãos de
Mário para dar ênfase à minha pergunta:
- Diga-me, ele conseguiu?
- Sim, padre. Até posso confirmar que nome encerra.
Mário então depositou a carta da sacerdotisa no chão, bem
entre nossas pernas.
- Mestre estranhou muito quando lhe mostrei a sua
adivinhação - continuou. - De fato, disse-me que a conhecia bem.
Que um irmão de Santa Maria a mostrara algum tempo antes e que
já a resolvera para ele.
- Frei Alessandro!
A lembrança de Óculos ejus dinumera escrito atrás de uma
carta como aquela achada junto ao cadáver do bibliotecário me
provocou um estremecimento. De repente tudo fazia sentido: o
Augure assassinou frei Alessandro ao se saber desmascarado por
ele, e teve então de urdir um plano para desacreditar Leonardo.
Assassinar um obscuro religioso era fácil, mas não acabar com o
pintor favorito da corte. Assim optou por tentar incriminá-lo por
heresia. Daí as cartas à Betânia.
Antes que minha imaginação disparasse, Mário prosseguiu:
- Sim, padre. Frei Alessandro. Lembro muito bem as palavras
do mestre: ambas as adivinhações, naipe e versos, estavam
intimamente unidas. Os versos eram incompreensíveis sem a carta
da sacerdotisa e, sem ela, não se podia encontrar a chave do nome
que o senhor procura. São como as duas faces de uma mesma
moeda.
Pedi a Mário que se explicasse melhor. O jovem apanhou
então a frase latina que estava escrita no mesmo papel que lhe
entreguei em Milão, e a colocou junto do arcano do Jogo dos
Visconti-Sforza. Mais uma vez, voltei a ter aquelas incômodas sete
linhas diante de mim:
Óculos èjus dinumera, sednoli voltum kdspicere.
In latere nomini
mei notam rin venies.
Contemplar et contemplata
aliis iradere.
Ventas
- Na realidade, é uma simples adivinhação em três níveis -
disse. - O primeiro busca a identificação da carta que ajudará a
resolver o enigma. "Conte-lhe os olhos, mas não olhe para a cara."
Tem um significado muito simples. Olhando bem, nesta carta só
existe um olho possível fora do rosto da mulher.
- Um olho? Onde?
Mário parecia se divertir.
- Está no cinto, padre. Não está vendo? É o olho do nó por
onde passa a corda que ata a cintura da mulher. Trata-se de uma
metáfora utilizada com grande habilidade pelo seu homem.
Detalhe do "olho"no cinto.
- Mas isso não é tudo - prosseguiu. - Fixando bem, não
sabemos em que costa buscar a cifra do nome que o senhor busca.
"A cifra de meu nome achará em suas costas" deixa em aberto uma
grande incógnita. É no lado direito, ou no esquerdo, que devemos
buscar essa cifra? Já vou dizer: deve olhar na direita da mulher.
- Como pode estar tão seguro?
- O mestre esbarrou na resposta graças a um detalhe
esteganográfico.
- Esteganográfico?
- Os gregos, padre, foram mestres na arte de ocultar
mensagens secretas em escritos ou obras que estavam à vista de
todos. No idioma deles steganos significa "escrita oculta" e aqui
salta à vista que há algo oculto. Uma errata nos dá a chave:
rinvenies se escreve sem "r". Um homem tão meticuloso como o
autor desta mensagem não podia passar por alto semelhante
detalhe, e, portanto, revisei com cuidado os versos e descobri que
além dos "r" existiam outras cinco letras marcadas. Desta feita com
um ponto. Elas passaram despercebidas, mas ali estão: ejus,
dinumera, sed, adspicere e tradere. Estranho que ninguém se
deteve diante delas.
Inclinei-me incrédulo sobre a assinatura do Augure para ver o
que Mário me mostrava e descobri, de fato, que as letras “e”, “d”,
“s”, “a” e “t” tinham esse ponto fora do lugar.
— Está vendo agora? — insistiu. — Com elas, mais o “r” fora
de lugar, pode-se compor a palavra “destra”. Direita. É o
esclarecimento que nos faltava.
Era admirável. Leonardo fizera o que a ninguém ocorreu
antes: cotejar a carta da sacerdotisa com a adivinhação das cartas
à Roma. Intuição ou visão genial, o certo é que senti vertigem ao
saber que estava tão perto da solução.
— O resto é bem simples, padre. Segundo as lições da Ars
Meinoriae, são as mãos que dão sempre as cifras em qualquer
composição. E nesta carta, como o senhor verá, há duas mãos que
mostram diferentes números de dedos. Se o seu homem nos diz
que devemos escolher a mão direita é porque a cifra de seu nome é
um cinco.
— Ars Memoríae? Você também a conhece?
— É uma das disciplinas favoritas de Leonardo.
— Suponho então, que agora deveria procurar um frade,
cujas letras contenham esse número, não é verdade?
— Não é necessário — disse Mário mais orgulhoso do que
nunca. — Mestre Leonardo já o encontrou. Chama-se Benedetto.* É
o único em Santa Maria cujo nome tem este valor.
*[A numerologia desse nome se obtém com a soma entre si dos
valores numéricos das letras do alfabeto latino com as quais está
composto. Deve-se levar em conta a peculiaridade de que o
alfabeto latino carece de certas letras como J, U, W ou Z, e assim a
tábua de correspondência fica como se segue:
A E F G H 1 K L MN O P Q R S TV X
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21
Desta forma, Benedetto soma 86, cifra que por sua vez se
reduz somando seus números entre si: 8 + 6 = 14. Por sua vez 1 +
4 = 5. Se for pouco, existe outro 14 (outro 5, portanto) na carta da
papisa. Está nas 14 voltas que somam os quatro nós que se
sobressaem no cinto. Um número atípico, pois nestes casos o
lógico seria 13, em correspondência com as treze feridas que
segundo a tradição o Salvador recebeu na cruz.]
- Benedetto?
Suponho que a revelação me transformou o rosto, por que
Mário ficou me olhando absorto.
- Benedetto? O homem de um olho só, como o olho do cinto da
sacerdotisa.
A ironia me desarmou.
Como não fui capaz de perceber? Como não me dei conta de
que o caolho, como homem de confiança do prior, tivera acesso à
todos os segredos do convento e era o único, suficientemente,
violento para arremeter contra Leonardo? Acaso essa revelação
não se ajustava como uma luva ao perfil que eu tinha do Augure,
que o situava como um discípulo renegado do toscano? Ou não
estava acaso seu rosto desenhado no Cenacolo, encarnando o
apóstolo Tomé, como prova irrefutável de sua antiga filiação à
organização do mestre?
Abracei Mário sem saber ainda a quem perseguiria primeiro:
se o assassino de frei Alessandro, ou aquele reduto de cristãos
desviados.
42
Frei Benedetto, escarrou outra vez no urinol, novo coágulo de
sangue. Tinha um mau aspecto. Muito mau.
Desde que ficara seis horas a céu aberto na planície de Santo
Estêvão, deitado, sem sentidos e descalço sobre a neve, o caolho
não voltara a respirar com normalidade. Tossia. Seus pulmões
estavam encharcados e lhe era cada vez mais difícil se mover.
O prior determinou que o levassem ao hospital. Ali o deitaram
na cama e o isolaram do resto dos doentes, receitaram vapores
aromáticos, sangrias diárias e rezaram com fervor por sua
recuperação. Mas, Benedetto dormia mal. A febre subia de maneira
inexorável e temia-se por sua vida.
No último dia de janeiro, exausto, o mais carrancudo dos
frades de Santa Maria pediu que lhe administrassem a extrema-
unção. Passara a tarde delirando, proferindo frases ininteligíveis
em línguas estranhas e instigando os irmãos a botar fogo no
refeitório se ainda quisessem salvar a alma.
Frei Nicola Zessatti, deão com cinquenta anos de serviço na
comunidade, velho amigo de Benedetto, foi quem lhe impôs os
santos óleos. Antes lhe pediu que se confessasse, mas o caolho se
negou. Não queria dizer uma só palavra do que acontecera em
Santo Estêvão. Todas as tentativas foram inúteis. Nem ele e nem o
prior puderam arrancar-lhe informação sobre meu paradeiro, e
menos ainda sobre os homens que nos assaltaram.
Sei que foram dias de incerteza. Por estranho que pareça,
tampouco frei Jorge serviu de grande ajuda. O encarregado das
contribuições, mal recordava aqueles estranhos monges de preto
que apareceram para nós.
Tinha vista fraca e a idade o traía. Por isso, quando contou
que o caolho atingira à facadas um deles, tomaram-no por louco.
Jorge ingressou no hospital de Santa Maria, na mesma ala de
Benedetto, com as mãos queimadas pelo gelo e um resfriado de
que se recuperou aos poucos por milagre.
Quanto ao meu terceiro irmão, frei Mauro, ficava dias inteiros
agulhado em mutismo. Sua juventude resistiu bem ao choque, mas,
desde seu retorno à Santa Maria ninguém o vira fora de sua cela,
quem o visitara ficara horrorizado ante seu olhar perdido. Mal
ingeria alimento e era incapaz de prestar atenção quando falavam
com ele. Perdera o juízo.
Foi frei Jorge quem alertou o prior sobre a piora do padre
Benedetto. Ocorreu em 31 de janeiro, terça-feira. O recolhedor de
contribuições encontrou Bandello no refeitório, revisando com
Leonardo os últimos traços no Cenacolo.
Depois do enterro de donna Beatrice e de meu
desaparecimento, o toscano retomara com ímpeto desusado seu
trabalho. De repente, parecia ter pressa de concluir o mural. Sem
ir mais longe, naquele dia, acabara de dar as derradeiras
pinceladas no rosto adolescente de São João, mostrava orgulhoso
ao prior que olhava tudo com desconfiança.
O apóstolo ficara magnífico. Brilhava sua comprida cabeleira
que lhe caía nos ombros, um olhar lânguido, olhos semicerrados,
cabeça descaída para sua direita, em atitude de submissão. O rosto
prendia luz. Um brilho sobrenatural, mágico, que convidava à
contemplação e à vida mística.
- Disseram-me que usou uma rapariga como modelo para
rosto.
A recriminação do prior foi a primeira coisa que Jorge ouvi
entrar no refeitório. Da sua posição não viu o mestre sorrir.
- Os boatos voam - ironizou.
- E chegam mais longe do que seus pássaros de madeira.
- Está bem, prior. Não negarei. Mas, antes que se aborreça,
como deve saber, que só empreguei a rapariga para certos
retoques no discípulo amado.
Jorge reconheceu o humor ácido do mestre no ato.
- Então é certo.
- João foi uma criatura doce, padre Bandello - prosseguiu. –
Sabe que era o mais moço dos discípulos, e Jesus gostava dele
como irmão. Ou melhor ainda: como filho. E também sabe, que não
fui capaz de encontrar entre seus frades alguém que me inspirasse
essa candidez com que ele é descrito nos evangelhos. Que
importância existe por ter recorrido a uma rapariguinha inocente
para completar seu retrato? Que vê de mau nele, em face do
resultado?
- E quem é essa donzela, pode-se saber?
- Claro que se pode saber. - Leonardo se inclinou cortês em
direção ao prior. - Mas, duvido que a conheça. Chama-se Elena
Crivelli. É de nobre família lombarda. Visitou minha bottega em
companhia do mestre Luini há poucos dias. Quando a vi pela
primeira vez soube que me fora enviada por Deus para me ajudar a
concluir o Cenacolo.
O prior olhou-o de soslaio.
- Ah, se a visse! - prosseguiu. - Sua beleza é sedutora, pura,
perfeita para o rosto de João. Ela me brindou essa aura de
beatitude que agora se desprende de nosso João.
- Mas, não havia donzelas na ceia pascal, mestre.
- E quem pode estar seguro? Além disso, de Elena só tomei as
mãos, o olhar, a expressão abandonada dos lábios e as maçãs do
rosto. Seus atributos mais inocentes. - Reverendo padre...
A entrada de frei Jorge, que esperava impaciente uma pausa
na conversa, não deu oportunidade de resposta à Bandello. Depois
de uma genuflexão apressada, o monge aproximou-se de seu
ouvido e lhe transmitiu a má notícia sobre a saúde do caolho.
- Deve me acompanhar - sussurrou. - Os médicos dizem que já
não lhe resta muito tempo de vida.
- O que se passa com ele?
- Mal pode respirar, e a pele, às vezes, perde a cor, prior.
Leonardo observou com curiosidade as mãos atadas de Jorge,
e deduziu que devia se tratar de um dos frades assaltados dias
atrás fora dos muros de Milão.
- Se lhes interessar minha opinião - confidenciou -, creio que o
que aflige seu irmão é tuberculose. Uma doença mortal, sem cura.
- Como diz?
- Os sintomas descritos são os da tuberculose. Se desejarem,
irmãos, podem dispor de meus conhecimentos médicos para aliviar
seu sofrimento. Conheço, suficientemente, o corpo humano para
propor um tratamento eficaz.
- O senhor? - respondeu Bandello. - Pensei que o odiasse...
- Vamos, prior. Como vou desejar o mal a alguém com quem
estou em dívida? Recorde que frei Benedetto posou como São
Tomé no Cenacolo. Eu, por acaso, odiaria Elena, que me iluminou
ao pintar João? Ao bibliotecário, que emprestou seu rosto à Judas
Iscariotes? Não. Ao seu irmão devo o rosto de um dos apóstolos
mais importantes do Cenacolo.
O prior agradeceu a cortesia inclinando a cabeça, sem
perceber a ironia daquelas palavras. Era certo que São Tomé
reunia todas as características de um frei Benedetto rejuvenescido.
O toscano se dera até o incômodo de pintá-lo de perfil para
esconder sua grave deformidade. Mas, não era menos certo, que
há algum tempo Benedetto e o mestre não se davam bem.
Com a bênção de Bandello, Leonardo recolheu às pressas
seus pincéis, fechou os frascos com as últimas misturas de cores e
se dirigiu com o passo rápido para o vizinho hospital. No caminho,
apanharam frei Nicola, que portava num recipiente a água benta,
uma vasilha com os santos óleos e um hissope de prata.
Encontraram frei Benedetto deitado num catre do segundo
andar, num dos limitados quartos independentes do recinto,
sozinho, coberto com um grande pano de linho que descia do teto.
Ao chegar à porta, o mestre pediu aos frades que o aguardassem
no jardim. Explicou-lhes que a primeira fase de seu tratamento
requeria certa intimidade, e que eram poucos os homens que,
como ele, estavam a salvo dos eflúvios mortais da tuberculose.
Quando Leonardo ficou sozinho diante da cama do caolho,
afastou o pano que os separava e contemplou o velho resmungão.
"Por que não inventara ainda uma máquina que o livrasse de seus
inimigos?", pensou. Fazendo das tripas coração, o gigante se
esforçou por despertá-lo.
- O senhor?
Frei Benedetto se refez da surpresa.
- Mas, que diabos está fazendo aqui?
Leonardo observou o moribundo com curiosidade. O aspecto
era pior do que esperava. A sombra azulada que se instalara nas
maçãs do rosto nada de bom pressagiava.
- Disseram-me que foram atacados no monte, irmão. Lamento
deveras.
- Não seja fariseu, Mestre Leonardo! - Tossiu, expulsando um
novo escarro. - Sabe tão bem como eu o que aconteceu.
- Se é o que acredita...
- Foram os seus irmãos de Concorezzo, não é verdade? Esses
bastardos que negam Deus e renegam a natureza divina do Filho
do Homem... Saia daqui! Deixe-me morrer em paz!
- Vim apenas para saber de sua saúde, Benedetto. Creio que
está precipitando seu julgamento. Sempre agiu assim. Essas
pessoas a quem se refere não negam Deus. São cristãos puros, que
veneram o Salvador da mesma maneira que os primeiros apóstolos.
- Basta! Não quero escutar! Não me fales disso! Vá!
O caolho estava vermelho de ira.
- Se meditasse por um momento, padre, perdoando-os, esses
"bastardos" demonstraram infinita misericórdia em relação ao
senhor. Sobretudo, sabendo que matou a sangue-frio vários dos
seus.
A ira do frade se transformou em espanto num piscar de
olhos.
- Como se atreve, Leonardo?
- Porque sei em que se converteu. E sei também que fez todo
o possível para me expulsar deste lugar e deixar na escuridão a fé
de todas essas pessoas. Primeiro matou frei Alessandro. Logo
atravessou o coração do irmão Giulio. Atordoou com suas histórias
os irmãos que estavam a caminho da pureza...
- Da heresia, melhor dito - graduou com seu único olho aberto
como uma lua.
- E mandou mensagens apocalípticas à Roma, anônimas,
assinadas como Augur dixit, unicamente, para provocar uma
investigação secreta contra mim, que o deixei à margem. Não é
certo?
- Maldito seja, Leonardo! - O peito do monge estalou num
novo estertor. - Seja maldito para sempre.
O pintor, impassível, desatou do cinto sua inseparável bolsa
de lona branca e a depositou sobre a cama. Parecia mais cheia do
que de costume. O mestre a desabotoou cerimonioso e tirou dela
um pequeno livro de capa azul que deixou cair sobre o colchão.
- Reconhece? - sorriu, astuto. - Ainda que agora me
amaldiçoe, padre, vim perdoá-lo. E oferecer-lhe a salvação. Todos
somos almas de Deus e a merecemos.
A pupila do caolho se expandiu de excitação ao ver aquele
volume a dois palmos dele.
- Era isto o que buscava, não é verdade?
- "Inte... rrogatio Johan... nis" - decifrou Benedetto o título
gravado na lombada. - O testamento final de João! O livro com as
respostas que o Senhor deu ao discípulo amado em sua ceia
secreta, já no reino dos céus.
- A ceia secreta, é assim. Justamente o livro que decidi expor
ao mundo.
Benedetto espichou um de seus magros braços para tocar a
capa.
- Se o fizer vai acabar com a cristandade - disse, detendo-se
para respirar fundo. - Este livro é maldito. Ninguém neste mundo
merece lê-lo... E no outro mundo, ao lado do Pai Eterno, ninguém
necessita dele. Queime-o.
- E, no entanto, houve um tempo em que queria possuí-lo.
- Houve, sim - resmungou. - Mas, me dei conta do pecado da
soberba que ele implicava. Por isso, abandonei sua companhia. Por
isso, deixei de trabalhar para o senhor. Encheu-me a cabeça de
pássaros, como os irmãos Alessandro e Giberto, mas me dei conta
a tempo de seu estratagema... - expirou agônico - ... e consegui
escapar.
O caolho, pálido, levou a mão ao peito antes de prosseguir
com voz desafiadora:
- Sei o que quer, Leonardo. Chegou à Milão católica cheio de
idéias extravagantes... Seus amigos, Botticelli, Rafaello, Ficino,
encheram sua cabeça de idéias vãs sobre Deus. E agora quer dar
ao mundo a fórmula para se comunicar diretamente com Deus, sem
necessidade de intermediários, nem da Igreja.
- Como João.
- Se o povo acreditasse neste livro, se soubesse que João falou
com o Senhor no Reino dos Céus e regressou dele para escrevê-lo,
por que alguém necessitaria dos ministros de Pedro?
- Vejo que compreendeu.
- E entendo que o Mouro o apoiou durante todo este tempo
por que... - tossiu - porque enfraquecendo Roma ele se tornará
mais forte. Quer mudar a fé dos bons cristãos com sua obra. É o
diabo. Um filho de Lúcifer.
O mestre sorriu. Aquele frade moribundo mal imaginava a
meticulosidade de seu plano: Leonardo levara meses permitindo
que artistas da França e Itália se aproximassem do Cenacolo para
copiá-lo. Maravilhados por sua técnica e pela disposição inédita
das figuras, mestres como Andrea Solário, Giampietrino,
Bonsignori, Buganza e tantos outros, já duplicaram seu desenho e
começavam a difundi-lo por meia Europa. Além disso, sua técnica
discutível de pintura a secco, pouco durável, convertia o projeto de
copiar a obra em algo urgente. A maravilha do Cenacolo estava
destinada a desaparecer por desejo expresso do mestre, e só um
esforço continuado, meticuloso e planificado para reproduzi-lo e
difundi-lo em toda parte, conseguiria salvar o verdadeiro projeto...
E de passagem disseminar seu segredo, mais do que foi conseguido
por qualquer outra obra de arte na História.
Leonardo não respondeu. Por que ia responder?
Suas mãos ainda cheiravam a verniz e a solvente, o mesmo
que acabara de aplicar nos pincéis com que arrematara o rosto de
João; o homem que escrevera o Evangelho que agora jazia aberto
sobre o leito do caolho. O mesmo texto que os Visconti-Sforza,
duques de Milão, representaram apertado nas mãos da sacerdotisa
de seu baralho, o que aparece no regaço de Santa Maria delle
Fiore logo na entrada da catedral de Florença. Em suma, um livro
hermético que agora Leonardo pretendia revelar ao mundo.
Sem medir palavras, Leonardo pegou o volume e o abriu na
primeira página. Pediu a Benedetto que recordasse a cena da ceia
do Senhor no refeitório e que se dispusesse a compreender seu
plano. Depois, solene, colocou o volume sob suas barbas e leu:
- Eu, João, que sou seu irmão e tenho parte na aflição para ter
acesso ao reino dos céus, enquanto repousava sobre o peito de
nosso Senhor Jesus Cristo, disse-lhe: "Senhor, quem é o que o
trairá?" "Aquele que põe a mão comigo no prato. Então, Satã
entrou nele, e ele já buscava a maneira de me entregar."
Benedetto se sobressaltou:
- Isso é o que pintou no Cenacolo... Deus bendito.
Leonardo assentiu.
- Maldita víbora! - tossiu Benedetto.
- Não se engane, padre. Meu mural é muito mais do que uma
cena deste Evangelho. João formulou nove perguntas ao Senhor.
Duas eram sobre Satã, três sobre a criação da matéria e o espírito,
mais três sobre o Batismo de João e uma última sobre os signos
que precederam o regresso de Cristo. Perguntas de luz e de
sombras, do bem e do mal, dos pólos opostos que movem o
mundo...
- E tudo isso contém um sortilégio, sei.
- Sabe?
A surpresa brilhou no rosto do mestre. Aquele ancião que se
recusava a morrer ainda tinha a inteligência desperta.
- Sim... - ofegou. - Mut-nem-a-los-noc... E em Roma as pessoas
também sabem. Eu transmiti à eles. Pronto, Leonardo, cairão sobre
o senhor e destruirão tudo o que armou com tanta paciência. Nesse
dia, mestre, morrerei satisfeito.
43
Doze dias mais tarde
Milão, 22 de fevereiro de 1497
mut-nem-a-los-noc...
J. VJ.
Escutei pela primeira vez aquela estranha frase no dia da dig-
nidade do Sumo Pontífice. Passaram-se quase duas semanas, desde
que frei Benedetto entregou a alma a Deus no hospital de Santa
Maria, em meio a um daqueles terríveis ataques de tosse. Deus
castigou sua soberbia. O Augure não teve tempo de ver Roma
descarregando sua ira contra o mestre Leonardo e demolindo seu
projeto. Teve uma decadência física rápida. Os médicos que o
atendiam dia e noite se renderam quando o ancião perdeu a voz e
as pústulas se apossaram de seu corpo.
Benedetto faleceu no entardecer da Quarta-feira de Cinzas,
sozinho, febril, murmurando, obsessivamente, meu nome num
desesperado intento de me atrair à sua cabeceira e me jogar
contra o toscano. Por desgraça para ele, ainda demorei muitos dias
a retornar de minha reclusão entre os "homens puros".
Agora acredito que Mário Forzetta aguardou aquele preciso
momento antes de me devolver à Milão. Nunca, nas semanas em
que permaneci em Concorezzo, Mário me 2falou da doença do
caolho; sequer me predispôs a atuar contra ele, ou que informasse
ao Santo Ofício de seus pecados contra o quinto mandamento, e
muito menos avivou o fogo do ódio contra ele. Sua atitude me
encantou. Seu conhecimento sobre os segredos da escritura oculta
conseguiram desmascarar o padre Benedetto e sua complexa
assinatura, mas uma estranha moral o impedia de cobrar vingança
pelo assassínio de seus correligionários. Que fé estranha era essa.
Cheguei a acreditar que os concorezzanos me reteriam para
sempre. Compreendi que seu respeito extremo pela vida os
impedia de acabar comigo, mas não ignorava que todos naquele
povoado estavam conscientes de que se me libertassem suas vidas
correriam perigo.
Esse debate se prolongou por dias inteiros. Um tempo que
aproveitei para me misturar a eles e aprender sobre seus costumes
de vida. Surpreendeu-me saber que jamais entravam numa igreja
para suas orações. Preferiam uma gruta ou o campo aberto.
Confirmei muitas das coisas que já sabia sobre eles como, por
exemplo, que renegavam a cruz ou repudiavam as relíquias, por 2 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
considerá-las recordações impuras do corpo material, satânicas
portanto, que um dia acolheu a alma de grandes santos. Mas
descobri coisas que me encantaram. Por exemplo, sua alegria
diante da morte. A cada dia que passava, comemoravam que já
estavam mais perto do momento em que se desprenderiam de sua
envoltura carnal e se aproximariam do espírito luminoso de Deus.
Eles que, entre si, chamavam-se "verdadeiros cristãos", olhavam-
me misericordiosos e se esforçavam para me integrar aos seus
ritos.
Um belo dia, Mário entrou em meu quarto e me despertou
agitado; pediu-me que me vestisse depressa e me conduziu
montanha abaixo, até o caminho empedrado que levava à Porta
Vercellina. Eu estava atônito. O jovem perfeito tomara uma decisão
que comprometia toda sua comunidade: ia devolver ao mundo um
inquisidor que vira por dentro uma comunidade de albigenses,
presenciara suas orações e conhecia os pontos fracos dos últimos
"homens puros" da cristandade. E, apesar de tudo, arriscava-se a
me libertar. Por quê? E porque nesse dia, e tão depressa?
Ia logo descobrir.
Ao nos aproximarmos do caminho que me levaria aos
domínios do duque, Mário mudou o tom de sua conversação pela
primeira e última vez. Vestira-se de branco imaculado, com um
burel que o cobria até os joelhos e uma faixa na cabeça que
segurava o cabelo eriçado. Parecia me conduzir a um último e
estranho ritual.
- Padre Leyre - disse solene -, já conheceu os verdadeiros
discípulos de Cristo. Viu com os próprios olhos que não
empunhamos armas nem ofendemos a natureza. Por esse mesmo
motivo, e porque os seguidores originais de Jesus jamais
aceitariam que os privássemos, da liberdade, não podemos retê-lo
por mais tempo. O senhor pertence a um mundo diferente. Um
lugar de ferro e ouro em que os homens vivem de costas a Deus...
Quis replicar, mas Mário não me deixou. Olhava-me com
tristeza, como se se despedisse de um amigo.
- A partir de agora - prosseguiu -, nosso destino está em suas
mãos. Os seus cruzados não teriam dito melhor: Deus Io volt!,
como dispôs o Pai. Ou nos perdoa e integra nossas fileiras
convertendo-se num parfait, ou nos delata e busca nossa morte e a
ruína de nossos filhos. Mas será o senhor, em liberdade, quem
elegerá o caminho. Nós, por desgraça, estamos acostumados a ser
perseguidos. É nosso destino.
- Está me libertando?
- Na realidade, padre, nunca esteve preso.
Olhei-o, sem saber o que dizer.
- Só peço que reflita sobre uma coisa antes de nos entregar
ao Santo Ofício: não se esqueça que Jesus foi também um fugitivo
da Justiça.
Mário se atirou então em meus braços e me apertou contra
ele. Depois, observando a tépida claridade que pressagiava o
amanhecer, entregou-me um saquinho com pão e alguma fruta, e
me deixou sozinho no caminho de Milão.
- Vá ao refeitório - ordenou antes de se embrenhar no bosque.
– Ao seu refeitório. Durante sua permanência fora, aconteceram
muitas coisas que o afetam. Medite sobre elas e decida então seu
caminho. Tomara voltemos a nos ver algum dia e possamos olhar-
nos nos olhos, como irmãos da única fé.
Caminhei durante quatro horas antes de divisar no horizonte
a silhueta fortificada de Milão. Que estranha provação era aquela a
que a Divina Providência me submetia? Mário me devolvia à corte
do duque para que eliminasse seu inimigo, frei Benedetto, ou por
alguma outra obscura razão?
Ao me aproximar do posto da guarda me dei conta do muito
que o quarto de Concorezzo me mudara. Na entrada, o guarda do
duque sequer me saudou. Aos seus olhos eu já não era o
respeitável dominicano engolido pelo bosque de Santo Estêvão
quase um mês antes. Não pude recriminá-lo. A cidade acreditava
que esse homem morrera numa emboscada. Ninguém me
esperava. Meu aspecto era vulgar, sujo, e me vestia como um
camponês. Tinha calções pretos e um tosco casaco de pele de
ovelha que me fazia parecer um pastor. Meu rosto estava coberto
por uma barba espessa e preta. E até minha tonsura se enchera de
novo, obscurecendo, definitivamente, minha filiação sacerdotal.
Cruzei o posto de guarda sem olhar para ninguém e
enveredei pelas ruelas que me levariam até o convento de Santa
Maria. Apesar de não ser um sábado ensolarado, respirava-se certo
ambiente festivo. As redondezas do mosteiro foram engalanadas
com bandeirinhas, vasos de flores e faixas de tecido, e havia muita
gente conversando na rua. Ao que parecia, o duque acabara de
passar por ali a caminho de alguma celebração importante.
Foi então que escutei dos lábios de uma mulher a razão de
tanto alvoroço:
- Leonardo concluíra o Cenacolo e Sua Excelência Ludovico, o
Mouro, se apressara a visitá-lo para o admirar em todo seu
esplendor.
- O Cenacolo.
A mulher me olhou divertida.
- Mas em que mundo vive? - riu. - Toda a cidade desfilará para
vê-lo. Toda! Dizem que é um milagre. Que parece real. Os frades
abrirão o convento durante um mês para que todos possam admirá-
lo.
Uma estranha indisposição se apoderou de meu estômago. O
toscano concluíra um empreendimento que lhe custara mais de
três anos de trabalho, mas completara também o terrível programa
iconográfico que o Augure pretendia deter a qualquer preço? E o
prior? Sucumbira também ao feitiço daquela obra? Dera-se conta
da verdadeira identidade de seu secretário pessoal? E como me
apresentaria diante dele? O que diria de meus sequestradores?
Quando terminei a subida até o corso Magenta e consegui
evitar a enorme fila que rodeava o convento, fiquei imóvel. A casa
do duque colocara um enorme estrado no qual um esplêndido
duque de Milão, enfeitado com uma túnica preta de veludo e um
chapéu de aba baixa com uma faixa dourada, conversava com
alguns homens probos da cidade. Entre eles distingui Luca Pacioli,
o matemático, que se sobressaía com a expressão descansada.
Alguém disse que há poucos dias entregara ao Mouro seu livro De
divina proportione, no qual revelava os mistérios matemáticos da
Criação. Ou Antonio Billi, cronista da corte, que parecia
deslumbrado pela beleza que seus olhos acabavam de contemplar.
Localizei também o mestre Leonardo, retirado para um
segundo plano, comentando algo com um pequeno grupo de
admiradores. Todos estavam elegantemente enfeitados, mas
pareciam algo nervosos. Olhavam para um lado e outro, como se
aguardassem a chegada de alguém ou soubessem que alguma
coisa naquela cerimônia não funcionava segundo o previsto.
Tão distraído estava, tentando ler nos lábios daquela comitiva
o que acontecia, que não percebi que alguém abria caminho por
entre a multidão e se dirigia diretamente a mim.
— Valha-me o céu! — exclamou quando chegou perto de mim
e conseguiu tocar-me o ombro. — Mas todos o davam por morto,
padre Leyre!
Aquele homem robusto, coberto por um barrete violeta com
pena de ganso, espada à cintura e botas de montaria, era Oliverio
Jacarandá. Seu sotaque estrangeiro o diferenciava entre tantos
lombardos.
— Nunca esqueço um rosto. E muito menos o seu!
— Dom Oliverio...
O espanhol me olhou de cima para baixo, sem compreender
por que eu não vestia o hábito branco e preto de São Domingos.
Acudira à Praça de Santa Maria para visitar a obra de Leonardo.
Sua condição de mercador de objetos preciosos garantia acesso
privilegiado ao recinto e permitia estar no centro do maior ato
social da cidade desde o enterro de donna Beatrice.
— Padre... — titubeou. — Explique-me o que aconteceu.
Parece enfraquecido. Por que está vestido assim?
Tratei de compor uma explicação crível que não revelasse
minha singular situação. Não podia dizer-lhe que estivera mais de
duas semanas sob o mesmo teto de quem fora seu prisioneiro.
Consideraria uma deslealdade, e só Deus sabia como reagiria o
espanhol diante de tal revelação.
— Lembra-se de meu empenho em resolver enigmas em
latim?
Jacarandá assentiu.
— Vim à Milão resolver um deles, por encargo de meu
superior na ordem. Para conseguir, me vi obrigado a desaparecer
durante um tempo. Agora retorno incógnito para continuar minhas
indagações. Por isso lhe peço discrição.
— Ah, os frades! Sempre com seus segredos! — sorriu. —
Então fingiu desaparecer para continuar investigando os crimes de
San Francesco, o Grande, não é?
— E o que o faz pensar em semelhante coisa? — eu disse
assombrado -.
— Seu aspecto, naturalmente. Já lhe disse que são poucas as
coisas que me escapam nesta cidade. Essa sua indumentária me
lembra dois desgraçados que apareceram mortos sob a Maestà dos
franciscanos.
— Mas..
— Nada de mas! — cortou. — Admiro seu método, padre.
Nunca me ocorreria me fazer passar por vítima para chegar ao
assassino...
Calei-me.
Imaginei tantas vezes que se o reencontrasse teríamos uma
conversa agradável que me surpreendeu vê-lo, de repente,
preocupar-se por mim. No fim das contas me imiscuí em seus
negócios, libertei um prisioneiro seu e não prestei atenção a suas
tentativas de culpar Leonardo da Vinci pelo assassínio de frei
Alessandro. Era óbvio que dom Oliverio tinha coisas mais
importantes para pensar. O antiquário me pareceu preocupado.
Quase nem comentou a fuga de Forzetta, que se apressou a
desculpar acreditando que era parte de minha estratégia para
investigar as mortes de frei Alessandro e os peregrinos de São
Francisco. Era como se meu aparato de parfait lhe chamasse mais
atenção do que o resto.
— Regressou a Milão há muito tempo? — quis desviar nossa
conversa.
— Uns dez dias. E, na verdade, estive procurando-o desde
então. Disseram-me que morreu numa emboscada...
— Alegra-me que não seja verdade.
— A mim também, padre.
— Diga-me, então, para que precisa de mim.
— Preciso de sua ajuda — deixou escapar, lastimoso. —
Lembra-se do que eu disse do mestre Leonardo no dia em que nos
conhecemos?
— De Leonardo?
Olhei para trás, ali onde vira o toscano pela última vez. Não
gostaria que ele escutasse uma falsa acusação de assassínio como
a que Jacarandá estava a ponto de lembrar. Assenti logo.
— Bem. Já sabe que estive em Roma e ali um confidente
próximo do papa me entregou o segredo final que Da Vinci quis
esconder no Cenacolo.
- O segredo final?
A fronte larga do espanhol se enrugou ante minha
desconfiança.
- O segredo que o seu bibliotecário levou para o túmulo,
padre Leyre. Aquele que extraiu do "livro azul" que donna Beatrice
d'Este me encarregou de obter para ela, e que nunca pude
depositar em suas mãos. Lembra-se?
- Sim.
- Esse segredo, padre, talvez esteja em meu poder. E é outra
dessas adivinhações incômodas do toscano. Como é especialista em
resolver enigmas e, por sua posição, não é suspeito de
cumplicidade com alguém, pensei que me ajudaria a decifrá-lo.
Oliverio disse aquilo com raiva contida. Ainda podia adivinhar
em sua voz o desejo de vingar seu amigo Alessandro. E ainda que
se enganasse de objetivo não deixava de me intrigar que revelação
recebera de seu confidente. Mal podia imaginar que Betânia
também dispusesse daquele segredo e também que fizera há dias o
impossível para me encontrar.
- Vai me mostrar o segredo, então?
- Só diante do Cenacolo, padre.
44
Que sensação estranha. Vestido com os trapos que foram
dados por Mário Forzetta antes de me devolver à Milão, cruzei o
umbral da igreja de Santa Maria sem que qualquer dos frades
encontrados me reconhecesse. O cheiro de incenso me fez hesitar.
Senti-me como se pusesse pela primeira vez os pés numa igreja.
Aquela profusão de motivos florais, losangos vermelhos e azuis e
desenhos geométricos que enfeitavam o teto, pareceram-me ex-
cesso impróprio na casa de Deus. Nunca reparara neles, mas
agora, de repente, incomodavam-me.
Oliverio não percebeu meu desgosto e me puxou até a abside,
obrigando-me a girar depois para a esquerda e passando à frente
da enorme fila de fiéis que rezavam e cantavam à espera da
permissão de acesso ao refeitório.
Frei Adriano de Treviglio, com quem cruzara algumas vezes
durante minha estadia no convento, saudou o espanhol e se
mostrou satisfeito com a moeda que ele depositou em sua mão.
Embora me lançasse um olhar penetrante tampouco me
reconheceu. Melhor assim. Aquele refeitório que eu recordava
como frio e inerte fervia agora de atividade. Continuava desprovido
de móveis, como sempre, mas os frades o deixaram decente,
ventilado e limpo em profundidade. Não havia mais cheiro de
pintura, e o mural recém-terminado pelo mestre brilhava em todo
seu esplendor.
- A ceia secreta... - murmurei.
Oliverio não me escutou. Empurrou-me até o centro da sala,
e, quando se abriu caminho entre a multidão, disse algo, meio em
espanhol, meio em lombardo, que então eu não soube valorizar:
- O mistério deste lugar tem a ver com os antigos egípcios. Os
discípulos se distribuem de três em três como as tríades dos
deuses do Nilo. Está vendo? Mas seu autêntico segredo é que cada
personagem desta cena representa uma letra.
- Uma letra? - as velhas lições da Ars Memoriae voltaram à
minha mente. - Que tipo de letras?
- Só uma delas é clara, padre. Olhe bem o grande "A" formado
pela figura de Nosso Senhor. Essa é a primeira pista. Ela e as
outras, ocultas nos atributos dos Doze recolhidos por frei Jacopo da
Varazze, formam um hino estranho, escrito em egípcio antigo, que
espero que o saiba decifrar...
- Um hino?
Oliverio assentiu, deleitado com meu espanto.
- É assim. Juntando as letras que Leonardo atribuiu a cada
discípulo, e que me foram mostradas em Roma, forma-se uma
frase: Mut-nem-a-los-noc.
- Mut. Nem. A. Los. Noc.
Repeti uma a uma aquelas sílabas, tratando de memorizá-las.
- E afirma que é um texto egípcio?
- E seria o quê? Mut é uma divindade dessa civilização,
esposa de Amon "o Oculto", o grande deus dos faraós.
Seguramente Leonardo ouviu falar dela por Marsilio Ficino. Ou não
se lembra que o mestre tinha os livros dele em sua bottega.
Como ia esquecer? Ficino, Platão, frei Alessandro, o caolho,
todos estavam ali mesmo! Diante de meus olhos! Olhando-se entre
si, como se confabulassem para preservar o mistério daqueles que
não merecessem penetrá-lo. Todos foram representados como
verdadeiros discípulos de Cristo. Bonhommes, em suma.
- E se o idioma desta frase não for egípcio?
Minha dúvida exasperou o espanhol. Aproximou-se de meu
ouvido e, tentando fazer-se entender entre a multidão de curiosos e
o rumor das orações, esforçou-se por me explicar o que aprendera
daqueles homens reduzidos as letras pela mão de Annio de Viterbo.
Contemplei um por um aqueles discípulos tão vivos. Bartolomeu,
com as mãos apoiadas na mesa, observava a cena como uma
sentinela. Tiago Menor, tentava acalmar o ânimo de Pedro. André,
impressionado pela revelação de que havia um traidor entre eles,
mostrava as palmas das mãos em sinal de inocência. E Judas
Iscariotes. João. Tomé apontando para o céu. O maior dos Tiagos,
com os braços em cruz anunciando o futuro suplício do Messias.
Filipe, Mateus. Tadeu dando as costas a Cristo. E Simão, com as
mãos estendidas, como que convidando a contemplar a cena mais
uma vez, do seu canto na mesa.
Contemplá-la mais uma vez.
Cristo!
Foi como um relâmpago na noite.
Como se de repente uma daquelas línguas de fogo que
iluminaram os discípulos no dia de Pentecostes caísse sobre mim.
Santo Deus! Ali não havia enigma. Leonardo não pôs qualquer
segredo no Cenacolo. Absolutamente nada.
Uma emoção singular, como a que poucas vezes sentira em
meus anos de Betânia, golpeou com força minhas entranhas.
- Lembra-se do que me disse um dia sobre os usos peculiares
de escrita de Leonardo?
Oliverio me olhou sem saber o que tinha a ver minha
pergunta com sua revelação.
- Refere-se à mania dele de escrever ao contrário?
- É outra de suas excentricidades. Os discípulos precisam de
um espelho para ler o que o maestro lhes escreve. Faz assim com
tudo: anotações, relações, recibos, cartas pessoais, até as listas de
compra!... É um louco.
- Talvez.
A ingenuidade de Oliverio me fez sorrir. Nem ele, nem Annio
de Viterbo se deram conta de algo, apesar de chegar tão perto da
resposta.
- Diga-me, Oliverio: por onde começou a ler sua ladainha
egípcia?
- Pela esquerda. O "M" é Bartolomeu, o "U" Tiago Menor, o
"T"...
De repente emudeceu.
Girou a cabeça até o extremo direito do mural e esbarrou em
Simão, que, com seus braços estendidos, parecia convidá-lo a
entrar na cena. Se fosse pouco, também ali estava o nó do mantel,
assinalando qual era o lado da mesa por onde se devia começar a
"ler".
- Santo Deus. Lê-se ao contrário!
- E o que lê, Oliverio?
O espanhol, duvidando do que estava vendo e sem conseguir
compreender, pronunciou pela primeira vez o verdadeiro segredo
do Cenacolo. Bastou-lhe silabar sua ladainha, aquele misterioso
Mut-nem-a-los-noc, como o mestre Da Vinci fazia há três anos:
Con-sol-a-men-tum.
Post Scriptum:
Nota final do padre Leyre:
Aquela revelação mudou minha vida. Não foi algo brusco, mas
uma alteração pausada e não estancável, semelhante à que vive um
bosque quando se aproxima a primavera. No início não me dei
conta, e quando quis reagir já era tarde. Suponho que minhas
conversas tranquilas em Concorezzo e a confusão em que mer-
gulhei durante os primeiros dias em Milão operaram o milagre.
Aguardei que se passassem aqueles dias de portas abertas em
Santa Maria delle Grazie para retornar ao Cenacolo e me colocar
sob as mãos de Cristo. Desejava receber a bênção dessa obra viva,
que palpitava e eu vira se desenvolver quase imperceptivelmente.
Ainda não sei bem por que fiz isso. Nem por que não me apresentei
ao prior e lhe disse onde estivera e que coisas descobrira durante
meu cativeiro. Mas como disse, algo mudara dentro de mim. Algo
que acabaria enterrando para sempre aquele Agustín Leyre,
pregador e irmão da Secretaria de Chaves dos Estados pontifícios,
funcionário do Santo Ofício e teólogo.
Iluminação? Chamado divino? Ou talvez loucura? É provável
que morra neste penhasco de Yabal al-Tarif sem saber como
chamar aquela atitude.
Agora pouco importa.
O certo é que a descoberta do núcleo de albigenses no centro
mesmo da casa dos dominicanos, dirigentes da Inquisição e
guardiões da ortodoxia da fé, teve um efeito ofuscante sobre minha
alma. Descobri que a verdade evangélica abrira caminho por entre
as trevas de nossa ordem, lançando âncora no refeitório como um
poderoso farol na noite. Era uma verdade diferente da que eu
acreditei durante quarenta e cinco anos: Jesus nunca, jamais,
instaurou a eucaristia como único caminho para nos comunicarmos
com Ele. Pelo contrário. Seu ensinamento a João e a Maria
Madalena foi mostrar como encontrar Deus em nosso interior, sem
necessidade de recorrer a artifícios exteriores. Ele era judeu.
Vivenciou o controle que os sacerdotes do templo faziam de Deus
ao encerrá-lo no tabernáculo. E lutou contra isso. Quinze séculos
mais tarde, Leonardo se convertera no secreto responsável por
essa revelação, e a confiou ao Cenacolo.
Talvez ficasse louco nesse instante, admito. Mas, tudo
aconteceu como foi relatado aqui.
Passaram-se já três decênios daqueles fatos e Abdul, que
subiu a ceia até minha gruta como de costume, trouxe também
uma estranha notícia: um grupo de ermitões seguidores de Santo
Antônio chegou à sua aldeia com a intenção de se estabelecer por
aqui. Sondei as margens do Nilo tentando localizá-los, mas meus
olhos castigados não conseguiram distinguir o acampamento deles.
Poderiam ser minha última esperança. Se algum deles merecesse
minhas confidências nesta reta final da vida, depositaria em suas
mãos estes papéis e o faria compreender a importância de
conservá-los em lugar adequado até que chegasse o tempo de dá-
los a conhecer. Mas, minhas forças fraquejam e não sei se serei
sequer capaz de descer o penhasco e me aproximar deles.
Além disso, mesmo que descesse, tampouco seria fácil que
me entendessem.
Oliverio Jacarandá, por exemplo, jamais compreendeu o
segredo do Cenacolo apesar de tê-lo diante do nariz. Que os treze
protagonistas encarnassem as treze letras do Consolamentum, o
único sacramento admitido pelos homens puros de Concorezzo -
um sacramento espiritual, invisível, íntimo - não lhe dizia grande
coisa. Ignorava a ligação daquele símbolo ao seu desejado "livro
azul", que jamais chegaria a ter entre as mãos. E também, nunca
suspeitou de que seu servidor Mário Forzetta o traiu por culpa
daquele volume. Um livro que durante gerações fora utilizado em
cerimônias albigenses para mergulhar os neófitos na Igreja do
espírito, a de João, e iniciá-los na busca do Pai por conta própria.
Sei que Oliverio regressou à Espanha, instalou-se perto das
ruínas de Tarraco e continuou tirando partido de seus negócios
com o papa Alexandre. Naquela época Leonardo confiou A ceia
secreta ao seu discípulo Bernardino Luini, que por sua vez a
confiou a um artista do Languedoc, que acabou por levá-la a
Carcassonne, onde foi interceptada pelo Santo Ofício gaulês, que
nunca soube interpretá-la. Luini jamais pintou uma hóstia, nem
Marco d'Oggiono, nem qualquer de seus caros discípulos.
Outro destino curioso foi o de Elena, a quem nunca conheci
pessoalmente. Depois de posar para o mestre, a inteligente
condessinha compreendeu que talvez a Igreja de João nunca
chegaria a se instaurar. Por isso, se afastou da bottega, deixou de
perseguir o infortunado Bernardino e ingressou num convento de
irmãs clarissas perto da fronteira com a França. Leonardo,
surpreendido por sua inteligência sagaz, acabou revelando-lhe o
grande segredo a que estava vinculada sua estirpe: Maria
Madalena, remota antepassada, viu Jesus ressuscitado, feito luz,
fora do túmulo que José de Arimatéia preparara para Ele. Durante
séculos, a Igreja se negou a escutar seu relato completo, coisa que
Leonardo fez. Afinal de contas, naquele remoto dia de há quinze
séculos Madalena viu Jesus vivo, mas não em corpo mortal. Seu
cadáver - inerte e frio - descansava ainda no túmulo quando ela
esbarrou em seu "corpo de luz". Impressionada, decidiu roubar os
restos do galileu, ocultou-os em sua casa, onde os embalsamou
com esmero, e os levou à França quando começaram as
perseguições do sinédrio.
Esse, e não outro, era o segredo: Cristo não ressuscitou em
corpo mortal. Ressuscitou na luz, mostrando-nos o caminho para
nossa própria transmutação quando chegar nosso dia.
Soube que Elena, impressionada por esta revelação, ficou
com as clarissas só mais cinco anos, até que um bom dia
desapareceu da cela sem que não se voltasse a vê-la. Dizem que
acompanhou Leonardo em seu exílio na França, instalou-se na
corte de Francisco I, como dama de companhia da rainha e,
ocasionalmente, continuou posando para o mestre. Parece que o
toscano usou-a como modelo até o dia de sua morte e pediu
emprestados seu rosto e as mãos para retocar o retrato inacabado
de uma donzela que todos conheciam por Gioconda. De fato, os
que viram as duas obras dizem que as semelhanças entre o João do
Cenacolo e a mulher desta tela pequena são mais que eloquentes.
Eu, por desgraça, não pude julgar.
Mas, se Elena teve ou não mais acesso aos segredos dessa
Igreja de João e Madalena que Leonardo planejou restaurar, o
certo é que os levou para o túmulo. Pois, antes que eu viesse ao
Egito para viver meus últimos dias, Elena faleceu de febre.
Só me resta, pois, explicar por que aportei aqui, no Egito,
para escrever estas linhas. E por que jamais denunciei a existência
de uma comunidade de perfeitos em Concorezzo, ligada ao mestre
Leonardo.
A culpa, mais uma vez, foi desse gigante de olhos azuis e
roupas brancas.
Não voltei a vê-lo após a apresentação do Cenacolo. Depois
de descobrir seu significado oculto, regressei a Roma e cruzei a
porta da Casa da Verdade, em Betânia, onde reassumi meu
trabalho sem que alguém fizesse muitas perguntas. Foi ali que
fiquei sabendo que Leonardo fugiu de Milão no ano seguinte,
enquanto as tropas francesas venceram as defesas do duque e
assumiram o controle da cidade. Refugiou-se em Mântua, depois
em Veneza e finalmente em Roma, onde trabalhou a serviço de
César Bórgias, o filho do papa Alexandre VI. Para Bórgias foi
architecto e ingegnere generale, desperdiçando suas outras
virtudes. Tampouco, essa ocupação durou muito, mas o suficiente
para se encontrar com o responsável pelo Palazzo Sacro, Annio de
Viterbo.
Annio ficou muito influenciado por aquele encontro. Seu
secretário, Guglielmo Ponte, informou regularmente Betânia sobre
a reunião que tiveram na primavera de 1502. Falaram da função
suprema da arte, de suas aplicações para preservar a memória e
de sua todo-poderosa influência na mente do povo. Mas, foram
duas frases do toscano as que, segundo o próprio frei Guglielmo,
mais o impressionaram:
- Tudo o que descobri sobre a verdadeira mensagem de Jesus
não é nada em comparação com o que resta para ser revelado -
respondeu, solene, a uma pergunta da doninha. - E da mesma
maneira que para minha arte me abeberei em fontes egípcias, e
cheguei aos segredos geométricos traduzidos por Ficino ou Pacioli,
afirmo que à Igreja ainda resta muito para se abeberar nos
Evangelhos que ainda repousam nas margens do Nilo.
Giovanni Annio de Viterbo morreu cinco dias mais tarde,
provavelmente envenenado por César Bórgia.
Um mês depois, abalado e suspeitando que logo sofreria
represálias daqueles que temiam o retorno dessa Igreja de João,
abandonei Betânia para sempre em busca desses Evangelhos.
Sei que estão perto, mas ainda não os encontrei. Juro que os
buscarei até o fim de meus dias.
***
Em 1945, num lugar perto da aldeia egípcia de Nag
Hammadi, no Alto Nilo, apareceram treze evangelhos perdidos,
encadernados em couro. Estavam redigidos em copta e
apresentavam alguns ensinamentos de Jesus inéditos no Ocidente.
Sua descoberta, muito mais importante do que a dos Manuscritos
do Mar Morto, em Qumran, demonstra a existência de uma
importante corrente de cristãos primitivos que esperavam o
advento de uma Igreja baseada na comunicação direta com Deus e
os valores do espírito. Hoje são conhecidos como Evangelhos
Gnósticos, e é certo que cópias deles chegaram à Europa no fim da
Alta Idade Média, influindo em certos ambientes intelectuais.
A gruta de Yabal el-Tarif onde morreu o padre Leyre em
agosto de 1526 estava a apenas trinta metros da cavidade onde se
encontraram estes livros.
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