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A CIDADE COMO ESPAÇO TEÓRICO Para o Congresso Imagem, Imaginação, Fantasia. Vinte anos sem Vilém Flusser. Ouro Preto, 2011. Silke Kapp Minha proposta aqui é lembrar algumas das concepções de Flusser acerca da cidade e da sua relação com a teoria. Não recolhi sistematicamente todas as passagens em que Flusser toca esse tema, mas, entre textos publicados e alguns textos do arquivo de Berlin, penso ter indícios suficientes para arriscar uma interpretação. Um de seus ponto-chave é que o modo como Flusser pensa a cidade se modifica substancialmente depois da década de 70. Alguns conceitos e imagens desse percurso se somam, outros se contrapõem e até se contradizem. Então, tentarei delinear cinco concepções flusserianas, numa ordem aproximadamente mas não estritamente cronológica. Quero também apontar em cada uma delas o lugar ocupado por aquilo que Marx chamava de ‘troca material com a natureza’, em contraposição à teoria, pois outro ponto-chave da interpretação aqui ensaiada é que estaria nisso a maior fragilidade das reflexões de Flusser sobre a cidade. A cidade como objeto (da teoria) Do filme The Belly of an Architect (Peter Greenaway, 1987). O arquiteto pisa no mapa de Roma de Giambattista Nolli (1748), que representa os espaços de acesso público na cidade. Textos desta seção: “Coisas que me cercam” [1970], “Projetos superpostos” [s/d.a], “A volta” [s/d.b]. Quero começar por uma concepção que penso ser característica de textos mais antigos de Flusser, numa fase em que ele se diz filósofo das ‘coisas que o cercam’. “Coisas que me cercam” é, de fato, o título de um breve prefácio de 1970 (escrito para uma coletânea de artigos de jornais que não foi publicada), em que ele explica suas intenções filosófica e chama o seu próprio trabalho de “poesia jornalística”. Ele diz que, à semelhança dos jornais, trata de coisas próximas, efêmeras, cotidianas.

A cidade como espaço teórico - mom.arq.ufmg.br · “Coisas que me cercam” é, de fato, ... Um segundo exemplo dessa concepção de cidade-objeto está numa tentativa de analisar

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A CIDADE COMO ESPAÇO TEÓRICO

Para o Congresso Imagem, Imaginação, Fantasia. Vinte anos sem Vilém Flusser. Ouro Preto, 2011.

Silke Kapp

Minha proposta aqui é lembrar algumas das concepções de Flusser acerca da cidade e da sua

relação com a teoria. Não recolhi sistematicamente todas as passagens em que Flusser toca

esse tema, mas, entre textos publicados e alguns textos do arquivo de Berlin, penso ter indícios

suficientes para arriscar uma interpretação. Um de seus ponto-chave é que o modo como

Flusser pensa a cidade se modifica substancialmente depois da década de 70. Alguns conceitos

e imagens desse percurso se somam, outros se contrapõem e até se contradizem. Então,

tentarei delinear cinco concepções flusserianas, numa ordem aproximadamente mas não

estritamente cronológica. Quero também apontar em cada uma delas o lugar ocupado por aquilo

que Marx chamava de ‘troca material com a natureza’, em contraposição à teoria, pois outro

ponto-chave da interpretação aqui ensaiada é que estaria nisso a maior fragilidade das reflexões

de Flusser sobre a cidade.

A cidade como objeto (da teoria)

Do filme The Belly of an Architect (Peter Greenaway, 1987). O arquiteto pisa no mapa de Roma de Giambattista Nolli (1748), que representa os espaços de acesso público na cidade. Textos desta seção: “Coisas que me cercam” [1970], “Projetos superpostos” [s/d.a], “A volta” [s/d.b].

Quero começar por uma concepção que penso ser característica de textos mais antigos de

Flusser, numa fase em que ele se diz filósofo das ‘coisas que o cercam’. “Coisas que me

cercam” é, de fato, o título de um breve prefácio de 1970 (escrito para uma coletânea de artigos

de jornais que não foi publicada), em que ele explica suas intenções filosófica e chama o seu

próprio trabalho de “poesia jornalística”. Ele diz que, à semelhança dos jornais, trata de coisas

próximas, efêmeras, cotidianas.

Há pois um clima fenomenológico numa praxis filosófica como a minha. É

toda ela voltada para as coisas da minha circunstância, e disposta a

conceder a palavra a elas. (Flusser, 1970, p.2)

Seguindo essa matriz, Flusser aborda a cidade também em analogia às coisas do cotidiano. Mas

isso o leva necessariamente a subtrair sua complexidade, a ponto fazer desaparecer o objeto em

questão. Um exemplo:

São Paulo é coisa do tipo ‘instrumento’. Foi produzida para ser útil. Camas

servem para dormir (ou guardar dinheiro), canetas servem para escrever (ou

coçar as costas). [...] Para que serve o instrumento São Paulo? Qual a sua

utilidade? (s/d.b, p.2)

Flusser não formula respostas a essas perguntas, e apenas aponta que a “enormidade

transhumana” de São Paulo torna isso “possível apenas por diálogo com os outros” (A volta, p.

2). Porém, a meu ver, justamente essa enormidade ou complexidade põe limites a uma prática

filosófica com “clima fenomenológico”, mesmo se ela recorrer ao diálogo. Tentar precisar os

propósitos de São Paulo me parece tão sem sentido quanto tentar definir os propósitos da língua

portuguesa, pois a cidade, assim como a língua, é ao mesmo tempo instrumento, cenário,

produtora e produto de um processo social.

Um segundo exemplo dessa concepção de cidade-objeto está numa tentativa de analisar

Brasília como obra de arte (s/d.a). Flusser parte do princípio de que obras devem ser criticadas

mediante a comparação com seu projeto, “a fim de constatar o grau de realização alcançado”.

Ele nota então que Brasília seria fruto de pelo menos dois projetos: um geopolítico e um

antropológico. Como eles são contraditórios entre si, o crítico – isto é, o próprio Flusser – se vê

incapaz de comparar projeto e obra, incapaz de criticar. Ou seja, mesmo uma cidade que,

diferentemente da maioria, tem projeto e autoria se furta à análise que Flusser tenta empreender.

A analogia de cidade e obra não procede, e menos ainda, a de cidade e obra produzida via

design ou projeto autoral. Repito: falta uma concepção do processo social que produz a cidade e

no qual, necessariamente, infinitos projetos se sobrepõem. Assim, tampouco comparece na

noção da cidade-objeto (instrumento ou obra de arte) o trabalho material que a constituiria. No

exemplo de São Paulo, importam os habitantes, usuários do instrumento; no de Brasília,

importam os autores intelectuais da obra.

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A cidade como produtora (de teoria)

Academia de Platão, num mosaico em Pompeia. Textos desta seção: “Private und öffentliche Räume” [1979a], “Espaços públicos e espaços privados” [1979b].

Numa segunda concepção, já bem mais elaborada, Flusser preenche essa lacuna, considerando

tanto a produção material, quanto a interdependência de cidade e produção teórica. Tal

concepção, que chamei de “cidade como produtora (de teoria)” se encontra sobretudo num texto

de 1979, intitulado “Espaço públicos e espaços privados”.

Em discussão explícita com Hannah Arendt, Flusser começa pela categorização platônica de

três “espaços existenciais” urbanos: a vida privada, restrita ao oikos, à necessidade, aos

escravos e às mulheres; a vida ativa que se faz na liberdade do espaço público da ágora e que

reúne arte e política (nessa junção Flusser difere Arendt); e, por fim, a vida contemplativa,

teórica, em espaços de ócio, preservados da economia e da política. O esquema histórico que

Flusser constrói a partir disso é o seguinte:

homo sapienssabedoria

homo faberliberdade

homo oeconomicusconsumo

↑teoria

política, arte

economia, trabalho, escravos

política, arteciência, teoria

economia, trabalho, máquinas

economiapolítica, arte, técnica

ciência, teoria

Antiguidade e Idade Média Revolução burguesa Segunda revolução industrial

Na pólis grega, escravos e mulheres dão conta das necessidades elementares e permitem a

constituição de uma esfera político-artística, que dá conta da organização social e, por sua vez,

possibilita a constituição de uma esfera teórica. A escravidão é um meio para a liberdade, a

liberdade é um meio para a sabedoria. Flusser acentua que esse construto urbano se funda no

oikos, no trabalho material doméstico: “se os escravos fossem libertados, a política e a teoria se

desmantelariam e todos seriam escravos”.

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A revolução burguesa (a partir do Renascimento) teria então, segundo essa concepção

flusseriana, invertido a hierarquia: a busca da verdade deixa de ser o fim último e é posta a

serviço da liberdade política e artistica; o espaço do ócio e da contemplação teórica deixa de

existir; o trabalho começa a sair do oikos para a fábrica. Na segunda revolução industrial (aqui

correspondente ao século XX), Flusser situa uma nova inversão: a economia se torna o valor

mais elevado, e todos nós vivemos como escravos entre um espaço privado de trabalho e outro

espaço privado de consumo, sem conhecer nenhum verdadeiro espaço público, nem muito

menos um verdadeiro espaço de ócio teórico. Esse totalitarismo não é relativizado pela entrada

de informações ditas públicas no espaço privado (via televisão, por exemplo), porque tais

informações servem apenas à massificação, não à politização. Assim, num futuro próximo...

A cidade toda será Auschwitz aperfeiçoada: os seus habitantes funcionarão

em função da função, absurdamente, e colaborarão com o aparelho no seu

próprio aniquilamento. (1979b, p.4)

A última parte desse texto (“Espaços públicos e espaços privados”) é dedicada à desmontagem

desse prognóstico e das categorias platônicas que o fundamentam. Em primeiro lugar, diz

Flusser, não precisamos seguir a antropologia de Platão de homens caídos do mundo das ideias

imutáveis que só se salvam pela sua rememoração. A própria cidade seria um argumento contra

essa antropologia, porque...

Toda cidade é empresa que visa superar a solidão humana pela

comunicação [...] A cidade, a comunicação, é método para tornar vivível a

consciência da solidão da morte. [...] Somos imortais na medida em que

publicamos. O espaço público nos torna memoráveis. [...] A nossa

consciência da historicidade do homem (da sua mortalidade natural e

imortalidade cultural), nos permite tentar reconstruir a cidade. (1979b, p.5)

Podemos, portanto, transcender o automatismo do aparelho e empreender a reconstrução

emancipatória da cidade. Ela começa por uma radicalização da privacidade dos próprios

espaços privados. Flusser diz que esses, de fato, já não têm qualquer autosuficiência porque

estão inteiramente predeterminados pelo aparelho. Radicalizar a privacidade significaria retirá-

los dessa predeterminação, como que criando recortes ou refúgios nos quais os indivíduos

podem dar as costas ao aparelho e se dedicar novamente a ideias. Já não se trataria da

contemplação de ideias platônicas imutáveis, mas de um jogo de ideias históricas, elaboradas e

reelaboradas na experiência e no diálogo. Por isso, elas gerariam um mercado de troca (de

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ideias), também ele inacessível ao aparelho totalitário e constituído pela “rede de comunicações

dialógicas” que as novas tecnologias possibilitam. Por fim, esse “espaço público pós-industrial

projetaria, de si, um novo tipo de escola [...] lugar de um novo tipo de ‘theoria’” (1979b, p.8-9) e

centro da nova cidade do homo ludens. A partir disso, o aparelho seria reprogramado para

funcionar, tão somente, como escravo para a troca material com a natureza.

Essa visão de uma resistência como que ‘por dentro’, a partir dos indivíduos em comunicação,

parece inspirada pelos movimentos sociais urbanos, bastante intensos no Brasil e em outros

lugares na década de 1970. Flusser os imagina providos de uma estutura de comunicação

semelhante à usada nas recentes revoltas no mundo árabe. Mas Flusser também imagina um

amadurecimento da reflexão dialógica até o ponto em que a revolta política se tornaria

desnecessária. Nas revoltas recentes, a comunicação parece, ao contrário, ter sido capaz de

abalar estruturas existentes, mas não de sustentar uma reflexão sobre o que fazer depois.

A cidade como palco da teoria

Martin Heidegger e seu irmão indo até a cidade. Textos desta seção: “Der städtische Raum und die neuen Technologien” [1985a] “Espaço urbano e as novas tecnologias” [1985b]; a concepção é evidente também em “Vermassung und Vernetzung” [1991].

Uma terceira concepção da cidade aparece em textos que Flusser escreve em meados da

década de 1980. Ela lembra o grande esquema histórico que acabei de esboçar, mas, na

realidade, usa outra categorização: em vez de cidade antiga, burguesa, pós-industrial e utópica,

Flusser passa a atribuir à cidade a distinção entre pré-história, história e pós-história.

A fase pré-histórica é pouco relevante nesse contexto, porque, na concepção de Flusser, ela não

conhece espaços públicos nem cidades propriamente ditas. Já a fase histórica se caracteriza

justamente pela exposição e acumulação de informações em espaços públicos, e pelo seu

processamento em espaços privados. A cidade histórica é o palco da teoria, não sua produtora.

O indivíduo vive num movimento pendular entre esse palco, onde emite ou recebe informações,

e o espaço privado, onde reelabora tais informações para depois publicizá-las novamente. A

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consciência (da cidade) histórica é a consciência de que todo processamento privado é

destinado ao espaço público e, portanto, político. Por isso mesmo, diz Flusser, trata-se de uma

“consciência infeliz”, tal como Hegel a compreende: nunca se pode ter as duas coisas – quem

encontra o mundo perde a si mesmo, quem encontra a si mesmo perde o mundo.

Para representar essa concepção e, sobretudo, a consciência infeliz que ela implica, usei a

imagem de Heidegger caminhando com seu irmão rumo à cidade, depois de filosofar naquela

sua célebre cabana na Floresta Negra (que, aliás, ele toma por modelo para a vida humana em

geral). A cidade é o lugar onde ele expõe e vende filosofia em discursos e livros, que ali serão

guardados, admirados e até discutidos, mas não elaborados. Não importa que a cabana esteja

fora ou dentro da malha urbana; importa que espaço privado e público estão estritamente

apartados e que o filósofo tenta derivar o mundo de um pensamento, em última análise,

solipsista.

Flusser usa essa concepção não para mitificá-la, mas para lhe contrapor a cidade pós-histórica,

apoiada nas tecnologias que transportam informações diretamente entre espaços privados. Se

no texto de 1979 essa conexão ainda parecia tênue ou até utópica, os texto do final da década

de 1980 descrevem o espaço privado como algo perfurado de todos os lados por conexões das

quais as tecnologias clássicas do século XX (rádio, telefone, tv) seriam meras precursoras. A

chamada telemática teria de fato tornado obsoleto o espaço público e, com ele, a pólis, a

política. E, agora, Flusser não quer mais recuperar esse espaço urbano político. Ele propõe, em

vez disso, o engajamento no caráter dialógico das conexões, de modo que cada indivíduo seja

tanto receptor quanto emissor. “Devemos aprender a pensar ciberneticamente, em vez de

politicamente.” (1985b, p.2). Heidegger poderia então ficar sentado na sua cabana, diante do seu

MacBook, escrevendo um blog...

Quanto ao trabalho material, ele desaparece novamente do cenário; coisa que, aliás, já fica bem

evidente no simples fato de constelações tão diversas quanto a cidade medieval, a renascentista

e a industrial pertencerem à mesma categoria geral de “cidade histórica”.

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A cidade como espaço imaterial

Campo magnético. Textos desta seção: “Die Stadt als Wellental in der Bilderflut” [1988a], “Raum und Zeit aus städtischer Sicht” [1991]

Uma quarta abordagem da cidade na obra de Flusser, mais ou menos da mesma época da

anterior e não incompatível com ela, procura ir além das dimensões de tempo e espaço que

Flusser interpreta como especificamente urbanas, isto é, ir além do tempo histórico e do espaço

geométrico.

Ele argumenta que aquele velho mundo das ‘coisas que nos cercam’, o mundo da vida, perdeu

sua evidência. No espaço sideral e no espaço quântico, nossas categorias convencionais de

espaço e tempo não têm validade, da mesma maneira que a noção de indivíduo. Se as novas

tecnologias abrem possibilidades que, convencionalmente, parecem oxímoros, tais como a

telepresença, isso prova que o mundo da vida está se dissolvendo em redes e nós de relações.

Quando os nós são desatados não sobra nada.

Em outras palavras, a cidade, que Flusser anteriormente havia procurado compreender como

objeto (instrumento ou obra de arte) é agora entendida como não-coisa, ou, na sua própria

tradução de Unding, como “inobjeto”. Flusser faz então o pleito de que deveríamos conceber a

cidade não geometricamente, como uma superfície delimitada, mas topologicamente, como

dobra ou distorção num campo, semelhante a um campo gravitacional ou a uma rede. Nela, “as

relações inter-humanas são tecidas com maior ou menor densidade em diferentes

lugares” (1988a, p.179). Lugares mais densos formam dobras em que os nós se aproximam

entre si e que funcionam como atratores em relação ao campo adjacente, tornando-se cada vez

mais densos. Com a maior proximidade, os nós se atualizam uns aos outros – a cidade é o lugar

da atualização de virtualidades intra-humanas.

Chama a atenção, segundo Flusser, a ‘imaterialidade’ (ele põe o termo entre aspas) dessa

cidade, que não teria casas, nem praças, nem templos, mas apenas emaranhados de fios.

Deixaríamos de ser sujeitos para nos tornarmos projetos (emancipados da sujeição, portanto) ,e

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a cidade seria a projeção intra-humana desses projetos. Flusser menciona que à rede intra-

humana se misturariam outras redes, inclusive a rede ecológica e a rede material, mas ele

apenas comenta que teremos que aprender a conviver com caos daí resultante, sem esperar por

uma teoria geral que sintetize as conjunções numa nova totalidade.

O que considero particularmente problemático nessa concepção, para além da irrelevância a que

Flusser relega a troca material com a natureza e o trabalho a ela relacionado, é o fato de ele

pressupor que a imagem convencional da cidade, aquela do mundo da vida, seria a de um

espaço geométrico. Na realidade, a geometrização da cidade corresponde muito mais à

ideologia do espaço urbano com a qual planejadores costumam operar, do que à percepção

sensível e ao imaginário dos habitantes urbanos (ou àquilo que Lefebvre chamou de espaço

percebido e espaço vivido). Ninguém percebe ou vive a cidade como malha geométrica; todos

sabem que ela não é superfície neutra, que há adensamentos de significados e relações, que

um mesmo evento em pontos urbanos diferentes se torna diferente, que os mapas mentais ou

imaginarios que construímos para nos orientar e nos perder na cidade não são esquemas de

casinhas e ruas como num jogo de tabuleiro.

A cidade como espaço teórico

Figura da edição original de: Thomas Moore. On the Best State of a Republic and on the New Island of Utopia. 1516. Texto desta seção: “Städte entwerfen” [1988b].

A última concepção flusseriana da cidade que quero apontar aqui é de um texto de 1988,

intitulado “Projetar cidades”. Seu ponto de partida é radicalização da “liberdade do migrante” e

do “nomadismo”, em busca de uma alternativa à civilização, isto é, à vida urbana que

conhecemos.

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Flusser passa aqui por várias das concepções que esbocei anteriormente – incluindo algumas

estranhas contradições – , mas o que me interessa especificamente é a contraposição entre

aldeia e cidade, cultura e civilização. A aldeia, nessa equação, corresponderia à conjunção

relativamente simples daqueles que semeam, esperam a colheita e a protegem dos inimigos.

Todos os aldeões são lobos vegetarianos, próximos da natureza, com uma diferenciação

relativamente restrita de papéis. Já as cidades são conjunções complexas de muitos papéis,

inclusive aqueles que já não têm nenhuma relação com a materialidade da sobrevivência. Mas

ambos, a cultura (da aldeia) e a civilização (da cidade) são “formas de conexão ao campo

relacional intersubjetivo, duas estratégias de geração, armazenagem e distribuição de

informações por meio dos fios de relações intrahumanas” (1988b, p.214).

Flusser propõe construir novas cidades, não novas aldeias (nem muito menos uma aldeia

global). A razão disso é, simples: “porque a aldeia não abre espaço teórico” ou, inversamente,

porque “assim que os aldeões teorizam, a vida da aldeia se urbaniza” (1988b, p.215). O tempo

livre que a aldeia tem a oferecer não é de um lazer teórico, mas apenas de uma espécie de

pausa na luta com a natureza e com os outros. Já a cidade cria uma divisão de classes entre

escravos que laboram, executivos que supervisionam e fazem política, e alguns poucos que, por

isso mesmo, podem se retirar da luta e fazer teoria. Então Flusser pergunta: porque seria

desejável abrir esse espaço teórico, projetando cidades em vez de aldeias? Ele rejeita a

resposta platônica de que a teoria leva à verdade, ao belo e ao bem, e põe em seu lugar uma

teoria entendida como projeção de sentido:

A teoria é a força de conexão das relações intra-humanas, à qual devemos a

produção de informações. [...] Portanto, se a rede intra-humana tem a

tendência [...] de produzir informações à revelia da entropia universal, o

espaço teórico é seu alfa e ômega. [...] O projeto de cidades alternativas

deve se concentrar no projeto de espaços teóricos. (1988b, p.176)

E aqui Flusser pergunta claramente se isso não significaria negligenciar os fundamentos

econômicos e políticos sobre os quais essa torre de marfim seria construída. A resposta é que:

desde os tempos dos faraós (e de Platão) algumas coisas mudaram,

sobretudo essa: tornou-se minimamente possível pensar que o mercado e as

residências privadas poderiam ser entregues a simulacros de humanos, e

que então todos os cidadãos humanos poderiam ser acomodados no templo.

(1988b, p.177)

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Autômatos trabalhariam para nós, computadores inteligentes comandariam os autômatos e

todos nós produziríamos informações num ambiente pacífico de lazer dialógico, apenas

programando o mercado e as residências privadas.

O desenho dessa cidade seguiria a concepção do espaço imaterial que explicitei anteriormente,

isto é, uma topologia de campos em vez de uma geometria de superfícies. A cidade seria uma

dobra no campo de forças que atrai as relações intra-humanas, sustentada por um espaço

teórico mais abrangente e não, como na utopia platônica, tendo um restrito espaço teórico por

parasita.

E Flusser também descreve o período de transição entre as nossas cidades e essa nova cidade

ou nova civilização. Num primeiro momento, ele diz, apenas algumas pessoas estarão

conectadas teoricamente, enquanto a maioria ainda estará conectada economica e

politicamente. Mas com o tempo todos entrarão no espaço teórico.

O espaço teórico a ser projetado dessa maneira é uma escola (um lugar de

lazer), porque todo o trabalho (toda transformação de campos relacionais)

será mecanizado e relegado a subumanos. (1988b, p.180)

Flusser admite que no estado de coisas atual (de 1988) tudo isso parece um sonho fantástico,

mas que, por outro lado, há tendências concretas nessa direção. Se elas parecem desastrosas a

alguns, são, para Flusser, “mais realistas do que o cenário oferecidos pelos pessimistas – entre

outras coisas pela curiosa razão de que a realidade agora pode ser reconhecida como

fantasia” (1988b, p.180).

Não quero concluir nada a respeito de tudo isso. Apenas gostaria de deixar uma pergunta. Será

que, por mais que sejamos adeptos e simpático à teoria, a utopia de Flusser, como todas as

utopias assim pintadas em cores (ausgemalt, como diria Adorno), não perpetua as mesmas

estruturas de dominação existentes, sobretudo a dominação do trabalho material pelo trabalho

intelectual, do corpo pela alma? E de resto, num mundo de espaço quânticos e siderais, onde

todos os conceitos se relativizam e a realidade é fantasia, como exatamente definiríamos o limite

entre os humanos e esses pobres subumanos que trabalhariam para nós? Sabemos todos, por

experiência histórica, o quanto essas definições são perigosas...

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Referências

Referências de arquivo não podem ser usadas em publicação sem a numeração correta que têm no arquivo.

FLUSSER, V. [1970] “Coisas que me cercam”. Texto do arquivo.

FLUSSER, V. [s/d.a] “Projetos superpostos”. Texto do arquivo sem indicação da publicação.

[Conteúdo faz supor que é do início da década de 1970.]

FLUSSER, V. [s/d.b] “A volta”. Texto do arquivo. [Conteúdo faz supor que é da década de 1970.]

FLUSSER, V. [1979a] “Private und öffentliche Räume”. Texto do arquivo para palestra no Institut

Européen d’Ecologie, Metz, em 03/05/1979. Tradução de Flusser:

FLUSSER, V. “Espaços públicos e espaços privados” [1979b]. Texto do arquivo.

FLUSSER, V. [1985a] “Der städtische Raum und die neuen Technologien”. In: Medienkultur.

Frankfurt/M: Fischer, 1997.

FLUSSER, V. [1985b] “Espaço urbano e as novas tecnologias”. Texto do arquivo para Festival de

Arles, mesa redonda Passage Mejan, 10/07/1985).

FLUSSER, V. [1988a] “Die Stadt als Wellental in der Bilderflut”. In: Medienkultur. Frankfurt/M:

Fischer, 1997.

FLUSSER, V. [1988b] “Städte entwerfen”. In: Vom Subjekt zum Projekt: Menschwerdung. Ed.

Stefan Bollmann, Bensheim/ Düsseldorf: Bollmann, 1994. [Usei a tradução: “Designing Cities” In:

Writings. Ed. Andreas Ströhl, Minneapolis/ London: University of Minnesota Press, 2002.]

FLUSSER, V. [1991] “Vermassung und Vernetzung”. In: John Pattillo-Hess, Michael Benedikt

(eds). Der Stachel des Befehls. Wien: Löcker, 1992, p.117-121.

FLUSSER, V. [1991] “Raum und Zeit aus städtischer Sicht”. In: Martin Wentz (ed.) Stadt-Räume,

Die Zukunft des Städtischen, Frankfurt a. M./ New York: Campus, 1991, p.19-24.

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