À coisa ela mesma, a Fenomenologia? (anotações amadoras)

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Usualmente entendemos por fenômeno algo ou alguém, cujo ser ou atuação aparece num aspecto extraordinário. A esse aspecto, gostamos de chamar de fantástico.

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coisa 02

coisa ela mesma, a Fenomenologia?

(anotaes amadoras)

Introduo

O que segue algo como caderno de anotaes particulares de um amador na Filosofia. Daqueles cadernos que, como estudantes, trocamos para a prpria e mtua ajuda, recordando o que se ouve nas prelees, nos seminrios e leituras, de autores, professores e especialistas abalizados, e que bem ou mal conseguimos assimilar e anotar, dentro das limitaes de estudantes diletantes, amadores nas coisas de filosofia.

O amador aquele que ama, o amante. Ocasionalmente. No oficial nem publicamente, mas s escondidas, sorrateiramente. Por isso, as seguintes observaes amadoras so reflexes diletantes, avulsas e ocasionais, bem ou mal ajuntadas em forma de um volume. Anotaes desse tipo so entendidas somente por quem as rabiscou, e quem, ao l-las, tem o mesmo tipo de complexo e paixo. Complexo e paixo de busca da coisa ela mesma da fenomenologia e do seu fascnio, sofridos pelo principiante e ou amador. De que complicao de paixo se trata? Trata-se de um rolo oculto no anelo de fundo da busca amadora. O que h ali, enrolado, no fundo da busca amadora algo como medo de pouco saber, uma espcie de complexo do aprendiz que no especialista, complexo de ser apenas iniciante e diletante. Mas, ao mesmo tempo, h tambm ali algo como mpeto da inocncia ignorante de um ingnuo desejo, ganas de se adentrar, sim de estar por dentro, em casa, naquilo que a sua alma ama, a saber, naquilo que a fenomenologia lhe tem de mais prprio e fascinante, sem conhecer bem a complexidade e exigncia de exatido objetiva e informativa que o empenho e o desempenho de tal empreendimento do saber exigem. E a tudo isso se acrescente o receio de iludir-se a si mesmo, contentando-se com saber particular, subjetivo, trocando verdade, acuidade e claridade da teoria, com paixo e sentimento, camuflados como intuio. Trata-se de um humor enrolado que toma conta de todo e qualquer estudante de Filosofia que ama a Filosofia, que se lana cata de informaes. Estas, cada vez mais numerosas, asseguradas, lhe parecem proporcionar o poder do saber dominante. Mas ao mesmo tempo o tornam inquieto, como que tocado por um outro hlito de fascnio. Fascnio e prazer de concentrao no pouco essencial, de afundamento para a interioridade de uma intuio da verdade originria. Intuio que por instante aparece como vislumbre de algo como vivncia aventureira e singularmente venturosa, sim altamente pessoal de uma dimenso inominvel. As exposies que se seguem sofrem da ambiguidade desse humor do amador, permanente iniciante, jamais iniciado; do estudante inacabado, sempre temeroso de estar expondo a sua alienao. Mas, talvez, mesmo nessa perplexidade, possa estar atuando, por menor que seja, um hlito do pensamento da busca da verdade, o toque do vislumbre do sentido do ser, operante nas diversas problemticas tratadas nas reflexes, no desengono e na impreciso, caractersticos de trabalhos de amador.O interesse dos termos fenomenolgico e fenomenologia, aqui na nossa exposio, refere-se corrente filosfica que historicamente teve incio com Edmund Husserl, sob a denominao de fenomenologia, e que se manifestou em diversas escolas e inmeros movimentos de fenomenologia. Na infindvel srie de nomes de filsofos e pensadores, de tendncias filosfico-fenomenolgicas, o nosso inter-esse gostaria de achar-se, por pouco que seja, dentro do que pensaram Edmund Husserl, Martin Heidegger e Eugen Fink, Bernard Welte, Heinrich Rombach etc. que usualmente so classificados como pertencentes escola fenomenolgica de Freiburg i. Br. Isto significa: ao usarmos termos como fenomenologia ou fenomenolgico no se fala tanto sobre esses autores e seus pensamentos, mas as reflexes que seguem gostariam de estar falando como que a partir do mdium em que se acha essa corrente fenomenolgica friburguense, na medida em que, bem ou mal foi assimilada e compreendida pelas nossas reflexes. Com outras palavras, os pensamentos vlidos que ocorrem nas nossas reflexes foram tirados desses autores, certamente quase sempre mal assimilados ou simplificados de modo diletante, ou mesmo falsificados por causa da desinformao e/ou do pouco volume do pensar. Em vrias das partes das nossas anotaes, h trechos que so reprodues dos textos dos autores acima mencionados. No so citaes, nem cpias, mas reprodues a modo de repetio com prprias palavras e formulaes dos pensamentos dos textos. Embora todas elas estejam rigorosamente assinaladas como referentes aos textos dos autores, so muitas vezes parfrases dos textos ou simples tradues. Na coisa da fenomenologia, hoje, principalmente em referncia fenomenologia de Martin Heidegger, h autores que classificam os estudantes atinentes ao seu pensamento em trs tipos: os fs, que em tudo repetem o seu pensamento, como os fiis ao seu guru espiritual; os que dele no querem saber de nada, i. , os preconceituosos; e os que do valor de destaque a suas teses e interpretaes. Mas isso, sempre com atitude crtica de um acadmico. De um especialista, afeito e engajado na vastido do saber crtico-cientfico, a partir de uma tomada de posio, objetiva e universal, que jamais permanece num pensador, mas sempre tenta super-lo, num crescer progressivo que tem a plena conscincia de necessidade de atualizao. As nossas anotaes gostariam de pertencer a essa ltima classificao. Mas s conseguem ser, no tanto fiis ou fs, mas como alunos incipientes; e dentro da busca denominada Filosofia, querem de alguma forma entender, intuir, i. , ir para dentro do pensamento pensado por esses autores da Fenomenologia. que para ser fiel, f ou contra, no caso pre-conceituosos, ser crtico clarividente, necessrio primeiro ter entendido de alguma forma de que se trata quando se fala de fenomenologia. E experincia grata, embora apoucada e iniciante de amadores na fenomenologia, que, se a gente de alguma forma comear a entender por pouco que seja algo da causa da fenomenologia, esse pouco j grande demais como material inicial da tarefa de assimilao. Para quem est nesse nvel, repetir, reproduzir, parafrasear, imitar um recurso incoativo de quem quer realmente crescer na intuio da coisa ela mesma da fenomenologia.

Assim, as interpretaes de algumas poucas e ocasionais citaes dos textos desses autores, que por acaso se encontrem nessa apostila-caderno de anotaes, as reprodues parafraseadas e tradues, devem ser controladas na sua exatido e na sua validade, pois em sua maioria so chutaes e simplificaes de um amador. Se, porm, nessas chutaes amadoras e amantes da causa da fenomenologia, houver alguns pensamentos vlidos, eles apenas acenam para o que jaz depositado nos textos clssicos da fenomenologia e podem, quem sabe, ser teis para os que sofrem das mesmas dificuldades e, no entanto, querem intuir, i. , ir para dentro daquilo que do fascnio e prazer da fenomenologia. Nessa perspectiva, as reflexes, nos seus dados informativos, limitam ao mnimo a exposio dos conhecimentos e do saber usual acadmico sobre a fenomenologia.

I. Anotao: Fenmeno, fenomenologia e seu lgos

O ttulo desse trabalho soa Coisas da fenomenologia. Como tal, nada tem a ver propriamente com a palavra de ordem do movimento fenomenolgico coisa ela mesma. Zur Sache selbst, coisa ela mesma, a divisa sob a qual a fenomenologia ficou conhecida, enquanto movimento filosfico. coisa ela mesma evoca um retorno. Retorno a qu? coisa ela mesma. O que , pois, a coisa ela mesma? De que coisa se trata, quando a coisa, ela mesma, o ponto de partida, do qual nos afastamos e ao qual somos convocados a retornar? Essa pergunta, assim formulada, precipitada. Pois a divisa fenomenolgica apenas insinua que a coisa ela mesma a que tende a fenomenologia a coisa, i. , a causa dela mesma. coisa ela mesma a fenomenologia. Isto por sua vez significa que falar da fenomenologia o mesmo que falar de que se trata, quando dizemos coisa ela mesma.

O ttulo indica o tema. No nosso caso, porm, o ttulo coisa ela mesma, a fenomenologia? no indica propriamente um tema, mas antes uma hiptese. Alis, hypothese na sua significao literal grega o que est posto debaixo de, a base sobre a qual se ergue o que quer que seja. , pois, o pr-jacente, que sustenta, e d firmeza e concreo ao andamento, srie de reflexes que seguem. No entanto, no nosso caso, o que deveria ser a base para dar firmeza e concreo ao andamento das nossas anotaes, est acompanhado de uma interrogao. Isto significa que, em todas as nossas anotaes, nos ficamos interrogando acerca do que o ttulo insinua, a saber, que fenomenologia no outra coisa a no ser a volta coisa ela mesma. Na Introduo foi dito que essas nossas anotaes so chutaes. O que o ttulo insinua como tema, com uma interrogao ao final, uma hiptese, na acepo hodierna da palavra hiptese, ou seja, uma suspeita. S que, no nosso caso, a suspeita est no nvel de chutao. Chutao o modo de abordar uma coisa, jogando verde para colher maduro. Assim, o teor que toca propriamente as nossas anotaes conjetura, cujo modo o do provrbio latino stat pro ratione voluntas.

A seguir, o lance prvio nas nossas prximas anotaes a suspeita de que, nos termos que compem a palavra fenomenologia, esteja dito o que quer dizer coisa ela mesma. As palavras que compem a palavra fenomenologia so: fenmeno e logia. Assim, falemos do fenmeno, lgos, do qual vem a logia e fenomenologia.1. Fenmeno e sua implicao

Usualmente entendemos por fenmeno algo ou algum, cujo ser ou atuao aparece num aspecto extraordinrio. A esse aspecto, gostamos de chamar de fantstico. Nas palavras fenmeno e fantstico aparece o verbo grego phainsthai, que significa aparecer. Aparecer mostrar-se, vir luz.

1.1. Fenmeno

comum representar o aparecer como movimento de algo que estava escondido, atrs ou dentro de uma outra coisa, dela sair e vir para frente ou para fora.O aparecer do fenmeno, no entanto, no diz respeito ao relacionamento entre duas coisas: entre a fachada e o que se oculta atrs dela. Refere-se antes autoapresentao ou autopresentao ou intensificao de uma presena. Nesse sentido algo como luzir, incandescer. tomar corpo, crescer no sentido da expresso cresa e aparea. , pois, surgir, crescer e consumar-se, vindo a si, tornando-se presena. Para podermos ver melhor de que se trata quando falamos do fenmeno como autopresena ou intensificao de uma presena, examinemos brevemente o que Ser e Tempo nos diz da expresso grega phainmenon:

A expresso grega phainmenon, qual remonta o termo fenmeno, vem do verbo phanesthai, que significa: mostrar-se; assim, phainmenon quer dizer: o que se mostra, o se mostrando, o aberto; o prprio phanesthai uma forma medial do phano, trazer ao dia, colocar s claras; phano pertence raiz pha- como phs, a luz, a claridade, a saber, isto, no qual algo pode se abrir, tornar-se nele mesmo visvel. Portanto, devemos constatar como a significao da expresso fenmeno: o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Os phainmena, fenmenos so ento a totalidade disso que jaz ao dia ou pode ser trazido luz, o que os gregos entrementes identificavam simplesmente com ta nta (o ente).O verbo do qual deriva a expresso fenmeno medial. Como em portugus no h a forma medial; phainmenon traduzido ou no sentido passivo ou reflexivo: o mostrado, ou o que se mostra ou o em se mostrando. O modo de ser da ao do verbo medial no nem ativo nem passivo. No seria, porm, um meio termo, uma mistura meio a meio, neutra. Seria antes uma dinmica toda prpria, um mdium atuante, anterior diviso em disjuno ativa e passiva. Usualmente, quando falamos de ao e atuao, representamos algum ou algo causando uma fora sobre um algum ou um algo. Assim quem causa uma ao e a prpria fora atuante so ativas; quem ou o que recebe, padece ou sofre a ao passivo. Quando quem age (o ativo) atua sobre si mesmo (o passivo), se d o reflexivo: o agente ao mesmo tempo o paciente, mas, aqui, o agente enquanto ativo e o paciente enquanto passivo no coincidem. Aqui o ser da iterao entre ativo e passivo e reflexivo de tal feitio que sempre unidirecional, uma linha reta a modo de flecha. O modo de ser da ao do verbo medial no pode ser captado, reduzindo-o unidirecionalidade de flecha na iterao ativo-passivo-reflexivo, mas captando-o, vendo-o a ele mesmo, de imediato. O que ali aparece de imediato o que est dito na expresso: fenmeno, i. , o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Outros modos de dizer esse imediato so: em vindo ao dia, luz, em colocando-se s claras, em aparecendo ou aparente, em se abrindo, mostrando-se. O abuso do gerndio, na forma em ndo, aqui, de propsito. Tenta insistir na considerao de que necessrio captar esse modo de ser da ao medial sui generis nele mesmo. Esse captar imediato de ser da ao medial seria muito simples, por ser imediato e, imediato por ser simples. S que o imediato e o simples no pode ser percebidos no seu ser, a no ser que a percepo, ou melhor, a recepo seja imediata e simples, a saber, pele a pele, de todo em todo, cada vez de uma vez. O modo medial de ser ao pede a captao imediata da realidade, antes da sua diviso e classificao em sujeito, objeto, ato, em ativo, passivo e reflexivo, de tal sorte que a ao ou ato anterior ao sujeito e objeto, a dinmica do todo, em sendo. Ademais, aqui, o que nos pode dificultar a perceber de que se trata, a conotao que todas essas expresses trazem consigo de visualizao. Aparecer, mostrar-se luz, vir claridade do dia, no entanto, no tem primariamente muito a ver com visualizao. Aperceber o manifesto, o mostrado, a recepo do que em se mostrando a ele mesmo, anterior a toda e qualquer visualizao. Visualizao a maneira projetiva da objetivao interpelativa, pela qual colocamos o fenmeno dentro de uma determinada perspectiva do inter-esse do ponto de vista.

Hoje, sujeitos e agentes operativos do modo de ser da objetivao interpelativa, no percebemos que o que nos vem ao encontro como objeto, coisa em si, real, no coincide com o que se mostra, ele mesmo, mas algo como espectro do projeto do inter-esse de pontos de vista. Esse modo de ser chamado objetivao interpelativa uma das modalidades da objetivao. Aqui, para percebermos de que se trata, quando falamos do fenmeno como o que se mostra, a ele mesmo, anteriormente a toda e qualquer visualizao da objetivao interpelativa, hodierna, reflitamos um texto acerca do que seja objetivao.

1.2. Objetivao

O que objetivao, objetivar? A esse respeito responde Heidegger numa carta de 11.03.1964, endereada aos participantes de um dilogo teolgico sobre O problema de um pensar e falar no objetivantes na teologia, hoje: Objetivar

fazer algo objeto, p-lo como objeto e somente assim o representar. E o que significa objeto? Na Idade Mdia obiectum significava o que lanado e mantido de encontro, em face do aperceber, da imaginao, do julgar, desejar e mirar. Em contraste com isso, subiectum significava o hipokemenon, o prejacente a partir de si (no o que levado de encontro atravs de um representar), o presente, p. ex. as coisas. A significao das palavras subiectum e obiectum em comparao com a nossa usual hoje, justamente a inversa: subiectum o para si (objetivamente) existente, obiectum, o apenas (subjetivamente) representado.

Em conseqncia da transformao do conceito de subiectum por Descartes (cf. Holzwege, p. 98ss), tambm o conceito de objeto veio a se transformar. Para Kant, objeto significa: o contra-posto existente da experincia das cincias naturais. Cada objeto o contra-posto, mas nem todo contra-posto (p. ex. a coisa em si) um possvel objeto. O imperativo categrico, o ter que ser tico, o dever no so objetos da experincia das cincias naturais. Pelo fato de se pensar sobre eles, de no agir serem eles intencionados, eles no se tornam por isso objetivados.

Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, no fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contra-posto, i. , um algo tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro no nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa est no jardim, balana talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porm, no est nem no jardim, nem pode balanar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso em que eu o nomeio. Assim, se d um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-pe.

Eu posso considerar esta esttua de Apolo no museu em Olmpia, qui, como um objeto das cincias naturais no seu representar. Posso calcular fisicamente o mrmore em vista do seu peso; posso pesquisar o mrmore em referncia sua propriedade qumica. Mas esse pensar e falar objetivantes no miram o Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus .

Objetivar fazer algo objeto, p-lo como objeto e somente assim o representar. Algo aqui ente, no sentido o mais abrangente possvel; indica todos os entes atuais e possveis.

Fazer exercer uma ao de efetuao, de efetivao, de tal sorte que ente se torne objeto. E coloc-lo, posicion-lo como objeto. Assim, ente se pe de p e se firma como objeto, e somente como tal se torna de novo presente, representado, apresentado. Aqui a palavra do texto original alemo vorstellen. Vorstellen usualmente significa representar, apresentar. Literalmente, porm, diz: colocar em frente, para frente, diante de. E stellen colocar, mas pode conotar ao de pr algum ou algo sob a coao de uma determinao. No uso corrente, objetivar pode significar tambm tornar objetivo, i. , tornar real ou existente objetivamente, materializar ou efetivar, ou tambm ter por fim, pretender.

Diante dessas determinaes acerca da objetivao, muitos de ns, tentaramos entend-las mais ou menos assim. Na realidade em si, diante, ao lado, ao redor de ns h coisas, produtos da natureza. Mas, usando essas coisas dadas pela natureza como materiais, o homem fabrica objetos, ou tambm, as posiciona, transformando-as em objetos para determinados fins do interesse humano. Objetivar aqui significa, ento, objetificao, fazer do ente objeto, para um determinado fim, meta ou objetivo, dado pelo homem. Essa nossa compreenso da objetivao, embora esteja includa na explicao do texto, no diz bem, o que ele quer dizer com objetivao e seu objeto.

Segundo o texto, o termo objeto (obiectum) se d em dois modos diferentes. A diferena no modo de ser do obiectum tambm diferencia o que se deve entender por subiectum. O texto fala, pois da compreenso do obiectum e subiectum uma vez na Idade Mdia, e outra vez na nossa poca Moderna.

a) Na Idade Mdia obiectum significava o que lanado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginao, do julgar, desejar e mirar. Em contraste com isso subiectum significava o hipokemenon, o prejacente a partir de si (no o que levado de encontro atravs de um representar), o presente, p. ex. as coisas.

b) Na nossa poca Moderna a objetivao se caracteriza, num sentido inverso ao da Idade Mdia, em significar subiectum como o para si (objetivamente) existente, e obiectum como o apenas (subjetivamente) representado. Esse modo de entender tanto subiectum como obiectum conseqncia da transformao do conceito de subiectum operada por Descartes. Na seqncia dessa transformao para Kant objeto significa: o contra-posto existente da experincia das cincias naturais.1.3. Objeto

Segundo o texto de Heidegger h uma grande diferena na significao entre o que na Idade Mdia se entendia por subiectum e obiectum e o que depois da transformao operada na compreenso do subiectum atravs de Descartes, se entende por obiectum. Aquele pode se chamar coisa-substncia e este objeto-representao. Aqui, examinemos mais o obiectum medieval, a coisa-substncia e o seu modo de ser, e deixemos para mais tarde o exame do objeto-representao. O tema coisa-substncia e o objeto-representao e seus modos de ser retornaro mais tarde nas nossas anotaes.Na Idade Mdia uma das categorias fundamentais para a compreenso do ente no todo era substncia. A palavra substncia traduo latina do hypokemenon grego. Aqui, objeto significava o que lanado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginao, do julgar, desejar e mirar. E correspondendo a essa compreenso do objeto, sujeito significava coisa-substncia. A dinmica de efetuao da coisa-substncia, o subiectum medieval, com o correspondente obiectum medieval, a coisa, no poderia ser chamada propriamente de objetivao. Pois se reserva a palavra objetivao e objeto de preferncia para a dinmica de efetivao do subiectum do representar como sujeito e obiectum como o representado, na nossa poca moderna. A efetivao coisa-substncia tem como resultado coisa, ou substncia. A coisa diferente do objeto. E o homem, enquanto recepo dessa efetivao coisa-substncia e sua coisa, diferente do homem, sujeito e agente da objetivao do objeto-representao. Desta ltima se diz portanto: objetivar fazer algo objeto, p-lo como objeto e somente assim o representar.

Para ns hoje, sujeito indica o ente humano. Na gria, juntamente com o cara, sujeito significa um indivduo humano determinado, mas numa denominao neutra. Na Idade Mdia sujeito, subiectum era equivalente substantia, substncia, coisa, e significava o hipokemenon, o prejacente a partir de si (no o que levado de encontro atravs de um representar), o presente, p. ex., as coisas.

O sujeito medieval, i. , a substncia, a saber, a coisa, quando lanado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginao, do julgar, desejar e mirar, se chamava obiectum, objeto.

1.4. Coisa no objeto

Ns temos dificuldade de entender de que se trata, quando o texto chama o subiectum, i. , a substncia de hypokemenon. Pois, hoje, entendemos tanto o subiectum como tambm o obiectum medieval (substncia-coisa) no a partir da substantia, da hypokemenon, da pre-jacncia, mas a partir da compreenso da substncia como objeto da representao do homem como sujeito, no sentido da nossa poca moderna. Tentemos brevemente nos livrar desse pr-conceito moderno da compreenso da substncia, pois compreender bem, com mais preciso de que se trata quando o medieval dizia subiectum, substantia a modo do hypolemenon, pode nos facilitar a ver um tipo de objetivao diferente da nossa, e compreender melhor o que na fenomenologia quer dizer essa coisa que descrita como fenmeno ou o em se mostrando a ele mesmo, o aberto, que os gregos chamavam tambm de n, i. ente.

A nossa compreenso usual da coisa como substncia e acidente, mesmo em certos manuais de filosofia medieval, parece ser uma mistura de uma compreenso, bastante defasada, da substncia medieval como hypokimenon e da compreenso defasada do objeto-representao, no nvel de o contra-posto existente de experincia das cincias naturais. Pois entendemos substncia como um qu permanente, imutvel, ncleo, cerne, que est sob (substncia), debaixo de um conjunto de acidentes, que vm e vo, que so propriedades no essenciais, passageiras e mutveis. Esse qu ncleo algo como um ponto, duro, compacto, o atmico. Essa compreenso o ltimo resqucio da compreenso da substncia j deficiente como essa ou aquela coisa macia, o bloco, algo espesso, denso, substancial.

Se, porm, tentarmos compreender o subiectum e o obiectum, a partir da substncia medieval sem a pr-conceituosa mistura do antigo e do moderno, ambos defasados, ouvindo o que a palavra grega hypokemenon nos quer dizer, percebemos que coisas no so blocos, ncleos, isto, aquilo, ali, l, acol, mas sim prejacncia.

A palavra prejacncia no existe em portugus. O verbo jazer vem do latim iacere, assim, possvel formar o verbo prejazer, e dali prejacncia. E significaria mais ou menos o que o verbo grego hypokeisthai significa, a saber, estar assentado, bem repousado, fundado e ajustado em si mesmo. Esse sentido ainda est vigente no adjetivo substancial em portugus. Exemplos de substncia (hypokemenon) nesse sentido seriam, por exemplo, montanha, imensido que se estende como plancie, um filhote de porco que nasceu redondinho, perfeito, uma obra bem acabada, perfeita, uma pessoa bem assentada em si, madura, confivel, justa e reta. Portanto indica o assentamento, a integrao, o ajustamento bem feito dentro de um todo, como atinncia e pertena totalidade prejacente da realidade ali estendida, imensa, profunda e bem consumada. Substancial , pois, contrrio do avoado, do por a caso. Substncia, a prejacncia no algo projetado por um sujeito-homem como um caso da sua realizao, mas coisa(s) destacada(s) de toda uma paisagem de um mundo que se abre e sustentado como ddiva. E o homem aqui no um sujeito a quem dada a coisa como objeto, a partir e dentro da jogada do seu projeto de realizao, no como ddiva, mas como produto da sua representao, mas ele mesmo tambm substncia, bem ou mal integrada e assentada dentro da imensa paisagem da prejacncia. O seu destaque consiste justamente em ser uma coisa, integrada e assentada junto de e com outras coisas, mas de modo todo prprio e seu; modo ao qual se abre num lance toda a paisagem do ente no todo, sendo-lhe mantida uma imensa e profunda tarefa de ser concreativo junto do ente no todo da vigncia da prejacncia. A grande dificuldade de compreendermos a substncia como obiectum no sentido medieval porque objetivamos, representando, a substncia homem como sujeito ou como objeto, a partir e dentro do nosso modo atual da metafsica da subjetividade.

1.5. Objeto e fenmeno

No texto acima de Heidegger, poderamos perguntar: o ser rubro da rosa, o Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus, seriam fenmenos, enquanto o mostrar-se a partir de si neles mesmos? A tentao de responder: sim, o fenmeno o que est alm ou aqum de toda e qualquer objetivao. Seria ento: Isto, esse algo que no nem isto nem aquilo, isto que no , e nem est em nenhum algo, a saber, nem no jardim, nem na rosa que balana de l para c e de c para l, nem na esttua de mrmore. isto a manifestao, o aparecer, a mira, a maravilha, o transluzir, que est insinuado, quando Heidegger formula o aparecer do Apolo, o fenmeno Apolo, dizendo: como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus?Na obra de arte, beleza fenmeno. Mas em que sentido insinuado? que a palavra alem para dizer a beleza Schnheit. Schnheit vem do verbo scheinen. Scheinen significa parecer. Mas essa acepo j um tanto derivada. Originalmente significa luzir, esplender, brilhar. Por isso, phanesthai dito como trazer ao dia, vir luz, colocar-se s claras. Da, a referncia do fenmeno claridade, luz. S que no fenmeno, a referncia luz, claridade, s diz respeito ao modo de ser da luz, i. , ao mostrar-se a partir e dentro de si mesmo. Por isso, essa referncia luz e claridade deve ser captada de modo todo prprio e no grosso modo ou ao modo de de-mostrao berrante, extrovertida da exibio luz non, fria, branca, escancarada, sem nuances de sombra. No se trata tambm de uma iluminao, feita de fora sobre uma coisa. O modo de mostrao do scheinen algo como transluzir a modo de incandescncia. uma aclarao, o tomar corpo como claridade. o modo de aparecer do luar. Mas no no sentido de a lua como uma lmpada a brilhar aparecer, saindo de trs de um monte e iluminar. Antes, como clarear. Para ver o clarear como transluzir, como incandescncia, necessrio, por assim dizer, suspender a tendncia do nosso saber de tudo enfocar a partir e dentro de uma explicao causal. Nessa ltima perspectiva da explicao, a lua, o satlite do planeta terra, ao refletir a luz do sol, causa de iluminao de uma rea escura da terra. Em vez desse modo de ver, real e objetivo, tentemos ver a coisa de imediato, digamos ingenuamente, atentos ao crescer da claridade de toda a paisagem enluarada, a que chamaremos de luar. Reina escurido. A escurido antes do luar a clarear, p. ex. numa floresta, no simplesmente o fato de tudo estar preto; no apenas ocorrncia da falta de luz!... Ela uma paisagem. Sim um pas, um reino, prenhe de perspectivas, planos de presenas de fundo e de superfcie, nuances da intensidade e das modalidades de escurido. A nossa representao da escurido achata essa paisagem de implicaes da multi-diversidade da escurido numa chapa preta homognea sem nuance e diferenciao ou como superfcie de cor preta ou simples ausncia da luz. Assim a nossa representao da escurido como a primeira impresso de algum que entra de dia, numa sala de cinema, e capta o choque da ausncia da luz, de sorte que v tudo preto. Na medida em que o nosso olho vai se adaptando escurido, comeam a surgir e nos vir ao encontro perspectivas, profundidades, silhuetas, perfis, assombreamentos, constelaes de diversas pessoas e coisas, em fim toda uma paisagem. Se permanecermos na fixao da representao, por mais que multipliquemos as representaes na sua diversidade, jamais percebemos o surgir, crescer e firmar-se na dinmica do todo de tal paisagem da escurido. No aclarar do luar o modo de ser e a lgica de sua estruturao so os desse surgir, crescer e consumar-se. Nesse sentido, toda a paisagem que se torna cada vez mais clara emerge da escurido, que por sua vez possui a sua emergncia a partir e dentro da sua prpria paisagem da escurido como acima foi insinuado. Esse movimento do vir a si e o tomar corpo desse e nesse crescimento ou aumento o fenmeno, o aparecer, o se mostrar ele mesmo. A dinmica desse aparecer, o tomar corpo do aumento desse crescer se diz em latim atravs do verbo latino: evideri. Deste verbo deriva a palavra evidentia, a evidncia. O fenmeno o que se evidencia, a partir de si, a ele mesmo.

Depois dessa descrio do que seja fenmeno, aparecimento, perguntemos: o que significa objeto e objetivao em referncia ao fenmeno?

Acima, mo do texto de Heidegger, ao falarmos da objetivao e do objeto, distinguimos suas diferentes significaes e percebemos diferentes nveis de colocao da questo.

Na Idade Mdia, obiectum significa o que lanado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginao, do julgar, desejar e mirar.

Na Idade Moderna, Objekt o contra-posto como tema do enfoque das cincias naturais. E Gegenstand algo tematicamente representado (Vollgestellte). Haveria uma diferena decisiva entre o contra-posto tematicamente representado e o lanado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginao, do julgar, desejar e mirar?"

Usualmente no vemos nenhuma diferena essencial entre esses dois tipos de contra-postos. Pois, entendemos a contra-postatizao (Vergegenstndlichung) num sentido geral de oposio entre Sujeito-Objeto, no esquema do juzo S - P da Teoria do conhecimento. Segundo Heidegger, no entanto, a grande diferena que advm compreenso do que seja obiectum, na passagem da Idade Mdia para a Idade Moderna, causada pela transformao operada na poca moderna (Descartes) na compreenso do que seja subiectum. Subiectum na Idade Mdia substncia. Subiectum na Idade Moderna sujeito. A diferena entre a compreenso do obiectum enquanto coisa-substncia (Idade Mdia) e obiectum, enquanto objeto-representao, se torna cada vez mais ntida, na medida em que recolocamos a compreenso da coisa-substncia na sua compreenso originria da totalidade impregnada da vigncia do ser da prejacncia-hypokemenon. A diferena se torna mais ntida ainda, se colocarmos a compreenso do obiectum como objeto-representao de um sujeito. Essa ltima tarefa deixemos para mais tarde, numa anotao especial.

Aqui vamos apenas aprofundar um pouco mais a compreenso da objetivao e do objeto na acepo do objeto-representao, caracterizado como a nossa compreenso usual moderna do objeto, examinando a ambigidade da palavra alem para representar, que vorstellen. 1.6. Objeto e o representado

Heidegger, no texto acima mencionado, diz do obiectum medieval: o que lanado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginao, do julgar, desejar e mirar. E do subiectum medieval significava o hipokemenon, o prejacente a partir de si (no o que levado de encontro atravs de um representar), o presente, p. ex. as coisas. Aqui o subiectum (substantia, hypokemenon) e obiectum coincidem como prejacncia substancial e sua configurao perfilante enquanto destaque-concreo, como foi explicitado acima. Por isso segundo a mencionada explicitao, o lanado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginao, do julgar, desejar e mirar deve ser entendido correspondentemente, como o surgir e firmar-se da vigncia de estruturao substancial prejacente na clareira e claridade da recepo obediente ao vir da fala da concreo das coisas. Nessa nossa interpretao aperceber, imaginar, julgar, desejar e mirar no possuem a acepo dessas palavras no uso da psicologia como atos especficos de determinadas faculdades da alma, mas modulaes da recepo no sentido j explicitado. Por isso as palavras alems para lanado e mantido de encontro em face de so: entgegegeworfen e entgegengehalten. Ent-gegen-geworfen (lanado de encontro em face de); ent-gegen-gehalten (mantido de encontro em face de) segunda nossa interpretao (chutao?) evocaria mais ou menos o que experimentamos quando na caminhada na regio montanhosa, ao alcanar o cume de uma montanha, ao dobara a ltima curva da estrada, abre-se de uma vez toda a paisagem do vale que se estende magnfica diante de mim. O diante, aqui, no localizao geomtrica na minha frente, mas sim o aberto da paisagem, de todo, de uma vez, dentro da qual me acho como uma coisa junto das outras coisas que partilham plena e vivamente da imensido prejacente: esse o aberto o que queremos dizer: de encontro em face de: entgegen; lanado, geworfen (werfen, lanar) no indica somente jogar alguma coisa de um lugar para outro, mas conota principalmente o lance, a jogada, no sentido de de todo , de uma vez, algo como um salto do qual surge o todo, o eclodir, que no somente surge e faz surgir, mas mantido na e mantm a dinmica do surgir e se consumar. O ent do ent-gegen poderia ser o movimento de vir, abrir-se de l para c, ab em latim. Mas, como esse l, de onde se vem e se abre, gegen, o movimento de vir, de se abrir de l para c movimento contra-posto ao movimento de abrir-se e soerguer-se de uma paisagem. Assim, o ent-gegen indica o eclodir, o surgir do abrir-se da cercania, da regio como paisagem que se entende, envolvendo-me na imensido da sua proximidade e longitude. Parece que, o termo alemo gegen um variante do gen, que conota o erguer-se de uma paisagem que se abre: o erguer-se e se constituir de uma paisagem Gegend, palavra para dizer regio, e compe a palavra Gegenstand que na falta de outra palavra traduzimos por Objeto, sem poder distinguir do Objekt alemo que indica o objeto das cincias naturais.

Por isso o texto determina com maior diferenciao o uso da palavra Gegenstand e Objekt, dizendo:

Para Kant objeto (Objekt) significa: o contra-posto (Gegenstand) existente da experincia das cincias naturais. Cada objeto (Objekt) o contra-posto (Gegenstand), mas nem todo contra-posto (Gegenstand) (p. ex. a coisa em si) um possvel objeto (Objekt). O imperativo categrico, o ter que ser tico, o dever no so objetos da experincia das cincias naturais. Pelo fato de se pensar sobre eles, de no agir serem eles intencionados, eles no se tornam por isso objetivados. Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, no fazemos da rosa um objeto (Objekt), nem sequer um contra-posto (Gegenstand), i. , um algo tematicamente representado.

Gegenstand aqui indica objeto no sentido bem lato, tudo quanto contra-posto diante do sujeito-homem como algo. Nesse sentido Gegenstand seria o conceito o mais geral que indicaria abstrata e formalmente apenas o carter de contra-posio, i. , de ser algo que aparece como posto a partir e dentro do inter-esse do projeto do sujeito eu. Objekt seria ento um caso mais especial de Gegenstand, a saber, contraposto existente na experincia das cincias naturais. A palavra Gegenstand, ao rejeitar o seu uso para indicar as rosas floridas junto das quais nos regozijamos sentados no jardim, caracterizado por Heidegger como um algo tematicamente representado (etwas thematisch Vorgestelltem). O advrbio tematicamente oposto do operativamente. Operativo quer dizer o que se , em operando, em fazendo, em sendo. Temtico significa, o que, em operando, em fazendo, em sendo, se traz conscincia. Ou o que se destaca com ateno, com plena conscincia. A palavra representar em alemo vorstellen. Pode significar um ato semelhante ao aperceber, imaginar, julgar, desejar e mirar, mas tambm pode ter a acepo da palavra lida literalmente como vor + stellen, sugerindo todo um modo de ser. Mas em que sentido? Vorstellen, literalmente no significa propriamente re-presentar, mas antes uma modalidade toda prpria de contra-pr. que vor significa diante, em frente de, para frente, avanando para frente. E stellen pr, colocar na acepo da expresso: pr na parede, interpelar, colocar a algum debaixo de uma exigncia, intimar a algum a um interrogatrio. nesse sentido do stellen que se diz: o policial colocou o criminoso diante de si, na parede, em nome da lei, lhe intimou: ests preso!. o contra-posto, o Vor-gestellte. o produto do que poderamos denominar de ao da pro-duco interpelativa, entendendo-se a produo como trazer, conduzir para frente, pro-ducere: projetar. E objetivar no sentido da pro-duco do Objekt tem o modo de ser do vor-stellen todo prprio das cincias naturais, fsico-matemticas.

Como j foi dito acima, acerca do objeto e objetivao no sentido do vorstellen como interpelao produtiva, vamos refletir mais tarde numa das anotaes. A seguir fixemos para o nosso uso a acepo dos diversos termos alemes que indicam o objeto, seguindo o que viemos refletindo at agora nesse excurso 2.

a) Usamos a palavra coisa para indicar a substncia, o subiectum medieval e tambm o hypokemenon. Em alemo seria ento die Sache. Aqui poder-se-ia tambm usar a palavra alem das Ding.

b) Usamos a palavra objeto para indicar o obiectum do representar (vorstellen) do homem enquanto sujeito. Aqui usamos em alemo duas palavras Objekt (objektivieren) e Gegenstand (vergegenstndlichen). Objekt significa o producto contra-posto ao vorstellen das cincias naturais. Gegenstand o producto contra-posto ao vorstellen num sentido mais geral e vasto.

c) Deixamos suspenso, se no se poderia usar a palavra Gegenstand e vergegenstndlichen para indicar num sentido bem originrio e vivo o vir concreo do modo de ser da substncia-prejacncia como configurao perfilante da dinmica do abrir-se da paisagem da prejacncia, como foi tentado descrever ao analisarmos o significado do Gegen, do Gegend. Deixamos tambm suspenso, se no poderamos tambm usar o termo Gegenstand e vergegenstndlichen agora num sentido deficiente, para indicar a mistura hbrida entre a coisa no sentido medieval e o objeto no sentido da experincia das cincias naturais, ambos os sentidos defasados e esquecidos da sua acepo originaria.

d) Seja como for, sejam quais forem significaes que damos s palavras como substncia, coisa, objeto-Gegenstand, objeto-Objekt, no fundo de todas elas est o sentido do ente, do n como fenmeno, a saber: o que se mostra a si, a partir de si, nele mesmo.

1.7. Fenmeno, coisa e objeto: diferena de impostao na realizao da realidade

Depois dessas anotaes interrogativas do excurso, observamos a diferena de impostao na compreenso da realidade entre a Idade Mdia e Idade Moderna. A diferena provinha da realizao da realidade, a partir, dentro e atravs da pr-compreenso do que seja o ente na sua totalidade ou melhor o ente no seu ser, fundamentada na categoria de fundo, chamada substncia (originariamente, i. , em grego, hypokemenon) na Idade Mdia e a sua substituio, ou melhor, transmutao dessa categoria de fundo-substncia em sujeito da subjetividade, cuja objetividade produz o objeto. Essa nova realizao da realidade, essa nova pr-compreenso do ente na sua totalidade, abriu a possibilidade da exigncia de colocar a pergunta acerca da coisa e sua coisalidade, portanto, da questo da coisa ela mesma dentro de uma nova perspectiva, na qual a coisa na sua coisalidade entendida dentro da objetivao e sua objetividade, como coisa, i. , causa da produo da realidade, enquanto objeto, i. , enquanto o que vem de encontro como resultado do lance do projeto do homem, sujeito e agente e medida de todas as coisas. Nesse sentido hoje, quando usamos o termo coisa e seus similares como algo, objeto, ente, ser, em alemo Gegenstand, Ding, Sache, de imediato e na maioria dos casos, pensamos objeto, segundo o projeto da interpelao produtiva impregnada da dinmica das cincias naturais sob o poder da tecnologia, portanto pensamos Objekt, e a partir dali nos indagamos: como , o que , a realizao da realidade p. ex. dos medievais, onde a realistas significava substncia e seus acidentes, em cuja coisalidade ainda podemos ouvir a tonncia do hypokemenon da antiga Grcia, cuja percusso originria tenha sido talvez bem diferente da que ouvimos hoje na repercusso medieval e repercusso dessa na nossa modernidade na perspectiva da objetividade do Objekt da Subjetividade cientfico-tecnolgico. Essa questo ento no texto de Heidegger aparece formulada no aceno, atravs do qual nos surgem as perguntas: em que consiste a realizao da realidade, que anterior a todas essas objetivaes epocais? Como se deve entender essa anterioridade e a sua temporalidade, se o tempo da histria dessa transmutao da causa da coisa ela mesma medida e produzida, pela interpelao produtiva presente de modo quase totalitrio na impostao da predominncia das cincias e tecnologias historiograficas, produtos da mesma interpelao produtiva acima mencionada, como objetos do projeto da subjetividade moderna?

1.8. Emaranhados na questo, chamada coisa da fenomenologia

Repetindo resumidamente o que dissemos da coisa como do objeto, temos: 1. obiectum e subiectum da Idade Mdia; 2. a transformao do conceito subiectum enquanto substncia para sujeito; 3. Objekt; e 4. Gegenstand como contra-postos de tipos tematicamente diferentes do representar, que em alemo se diz vorstellen; 5. coisas, cujo ser no nem a modo de Objekt, nem a de Gegenstand, mas do aparecer, do se mostrar, do fenmeno.

Resumindo o que at agora dissemos em nossas anotaes, podemos distinguir trs coisas ou causas:

O fenmeno: o que se mostra nele mesmo, sem nenhuma objetivao. Exemplo: o esplendor rubro da rosa e a beleza do Apolo como a maravilha divina.

A coisa: a substncia como hypokimenon: o que se perfila em configurao concreta do assentar-se na integrao e pertena ao todo da paisagem da prejacncia. Exemplo: extenso aberta, bem assentada de uma chapada, no seu peso e na profundidade, e os elementos que esto integrados nessa paisagem, como rochas, rvores, vales, casas, camponeses, pastores, riacho, cascata etc.

O objeto: o representado, a partir e dentro do projeto do interesse do sujeito e agente do projeto. Exemplo: as peas de um computador, o ser humano considerado como uma pea integrante no mecanismo de produo; molculas e tomos; formulas matemticas; os elementos qumicos com sua terminologia; o corpo humano, seja do varo ou da mulher, como objeto ertico; os vasos sagrados como mercadoria de lucro.

Introduzimos aqui uma anotao-excurso acerca de: o que nos importa nas anotaes que at agora viemos fazendo mo do assunto objetivao, ao falarmos de fenmeno, o seguinte:

Fenmeno, coisa e objeto podem ser considerados individualmente como este, aquele, isto, aquilo, e na generalizao comum abstrata como algo, um qu, objeto como tal.

Nas nossas anotaes, fenmeno, coisa e objeto so considerados, cada qual correspondentemente, como categoria fundamental (que pode ser resultado de um conjunto de categorias fundamentais) que perfaz o horizonte, cada vez prprio, a partir e dentro do qual se constitui o ente no todo como mundo. Na perspectiva historiogrfica poder-se-ia dizer que fenmeno (n) se refere ao mundo grego; substncia ao mundo medieval, e objeto ao nosso mundo moderno. Assim colocada a proposta de interpretao, pode se estabelecer uma escalao crescente ou descrescente; originria ou derivada; a partir de um modo eficiente e prprio ou de modo deficiente e imprprio, e isto conforme onde se coloca ponto de partida a partir do qual se mede a escalao. Se o grego o ponto inicial, originrio, de vigncia ainda intata, rica, plena de vida, o fenmeno a excelncia, da qual se decai na substcia, e se esvai numa total entropia no objeto. Para muitos, essa posio seria a da fenomenologia. Se o atual moderno o ponto alto do progresso no processo de evoluo, objeto e o seu sujeito e agente, a subjetividade objetivista das cincias do tipo cincias naturais fsico-matemticas a excelncia, e substncia e fenmeno, deficincia, atraso, fundamentalismo, obscurantismo, superstio e mito. Nessa perspectiva, fenmeno estaria no estgio irracional, mtico, religioso, carente da racionalidade. Sendo o seu saber algo indeterminado, vago, de imediatismo animal, sensorial. A substncia medieval nessa perspectiva a idade mdia, ou do meio, entre o irracionalismo vital dos primitivos antigos e a nossa clareza do iluminismo progressista da razo, cada vez mais vigorosa e esclarecida, que alcana o seu triunfo nas cincias, principalmente as cincias de tipo fsico-matemticas. Essa colocao seria a dos assim chamados neo-positivistas lgicos cientificistas. Certamente, o que aqui foi colocado a modo caricatural e num simplismo inteiramente diletante no pode ser aceito como uma informao sria na coisa da filosofia. Aqui foi apenas mencionado por que muitas vezes a opinio que se tem da fenomenologia, mesmo dentro do ensino universitrio de filosofia, bem deficiente. A fenomenologia encarada sob uma precompreenso, cujo nvel demasiadamente de vulgar acepo. Seguindo o que foi dito, voltando ao tema das nossas anotaes, o que no texto de Heidegger denominado de pensar e falar no objetivante, portanto, no exemplo dado, o esplendor rubro da rosa, a beleza e a mira divina da esttua de Apolo, ou melhor, o modo de ser do pahanesthai, o imediato e simples, seria o estado originrio e puro do ser da realidade e da sua recepo, ao passo que a objetivao, quer ao modo de perfilao-coisa como ao modo de objeto da representao, consistiria na decadncia do originrio, do qual se deve retornar ao ponto originrio grego do incio. Este seria assim o significado da convocao: fenomenologia voltar coisa ela mesma, de volta ao fenmeno (grego).

Embora, as nossas anotaes quando falam da fenomenologia, na sua fala se ressinta bastante dessa ltima colocao que poderamos caracterizar como pieguice fenomenolgica, no sua inteno interpretar a fenomenologia como volta ao primitivo no sentido da acima inventada caricatura. Por isso, o que se disse do fenmeno como o mostrado e o mostra-se nele mesmo, o medial, e na II. Anotao, o que se denominou de ver ou captar simples e imediato, no pertence ao grego no sentido historiogrfico, como o contedo elementar da constituio do mundo grego e antigo. Ele algo prprio, to prprio que no est localizado na antiguidade grega, na Idade Mdia ou na poca moderna, como o esplendor rubro no est no jardim nem se move ao sopro do vento, nem a beleza e a maravilha divina est no mrmore, nem no estilo da escultura jnica, mas sempre de novo se torna presente e ausente a seu modo em todas as pocas, digamos em todas as coisas e causas, como a aberta da gnese, do crescimento e da cosumao da estruturao do mundo. Esse lugar sem lugar o que est dito no prefixo Da, do termo Da-sein. Mas sobre isso numa anotao posterior. Aqui se falou de tudo isso, para de alguma forma dar um fio condutor para as nossas anotaes, nas quais a modo de hiptese que mais chutao do que uma boa observao, tentamos interpretar os elementos principais que perfazem a compreenso da fenomenologia como fenmeno, intencionalidade, reduo, ideao e constituio, e principalmente Da-sein, existncia, ou presena e suas implicaes como tentando dizer o mesmo, sempre de novo, de modo sempre insuficiente e inadequado, o que j desde as duas anotaes iniciais se tentou formular de modo certamente muito insuficiente como a mostrao, o mostrar-se nele mesmo, o ver simples e imediato.

2. Fenomenologia, logos e logia, suas traduesO ttulo Fenomenologia se compe de duas palavras fenmeno e logia. Esta vem da palavra grega lgos. Mencionemos brevemente o que e como se deve entender por logia, da palavra fenomenologia, segundo o que Heidegger expe. Resumamos assim o 7. B (O conceito de Logos) do Ser e Tempo, p. 32-34:

2.1. O que quer dizer logos?

O conceito de logos mltiplo, no qual as diversas significaes parecem tender para diversas direes sem congruncia, enquanto no conseguirmos captar de modo prprio o seu sentido fundamental, uno no seu contedo primrio, originrio grego. usual dizer que logos significa fala. Essa traduo somente vlida na medida em que, nessa traduo literal, a nossa compreenso atual consiga ouvir e entoar a tonncia disso que logos ele mesmo como fala propriamente quer dizer. As mltiplas e arbitrrias tradues provenientes de uma interpretao das filosofias posteriores entulham e encobrem o sentido prprio do que seja a fala, que nos gregos est luz do dia, simples e claramente. Essas tradues defasadas e imprprias seriam p.ex., razo, juzo, conceito, definio, fundamento, relao. Traduz-se logos tambm como sentena, enunciao, discurso. Mas se entendermos todos esses termos como juzo, e o juzo como ligao (entre S e P ou S e O) ou tomada de posio (o reconhecer e o rejeitar da ligao), tudo isso dentro da assim chamada teoria do juzo na teoria de conhecimento, falseamos o sentido prprio e fundamental da palavra logos.

Assim, segundo Heidegger, lgos como fala diz antes de tudo delun, fazer patente, isto do qual na fala vem fala. Aristteles explicitou essa funo da fala com maior acuidade como apophanesthai. Logos deixa ver (phanesthai) algo, a saber, isto, sobre o qual a fala e qui para o falante (Mdium), respectivamente, para os falantes uns com outros mutuamente. A fala deixa ver ap... a partir disso mesmo, do qual a fala. Na fala (apphansis), na medida em que ela autntica, isto que falado deve ser exaurido, a partir disso sobre o qual falado, de tal modo que a transmisso falante no seu falado, faz patente isso, sobre o qual fala e assim o faz acessvel ao outro. Esta a estrutura do logos como apphansis. No se apropria a cada fala esse modo do fazer patente no sentido do deixar ver manifestante. O pedido (euch) p. ex. faz tambm patente, mas num outro modo.

Na sua realizao concreta esse deixar ver acontece como sonorizao em palavras. Assim, logos phon met phantasie, i. , sonorizao vocal, na qual cada vez algo se mostra. essa funo de apphansis, o logos que faz com que ele tenha a estrutura de snthesis. Sntese no tem aqui o significado de ligar e atar representaes, lidar com ocorrncias psquicas, fazer com que haja concordncia da vivncia psquica interna com o seu corresponde exterior etc. O syn aqui tem a significao apophntica e quer dizer: deixar ver algo no seu ser-junto-com algo como algo. Como deixar-ver, logos pode ser verdadeiro ou falso, no porm, na acepo da verdade como adequao, concordncia, do juzo como o lugar da verdade. A definio da verdade como adaequatio rei et intellectus no nos conduz intuio originria da captao do que seja primariamente a verdade, que em grego se diz altheia.

O ser verdadeiro do logos como aletheein diz: recolher do seu velamento o ente, do qual a fala, no lgein como apophanesthai e deix-lo ver como desvelado (aleths), descobrir. Verdadeiro nesse sentido grego originrio, e qui num sentido mais originrio do que o mencionado logos, a asthesis, o singelo colher sensvel de algo. Na medida em que uma asthesis cada vez afim sua dia, i. , ao ente cada vez genuinamente apenas acessvel atravs dela e para ela, p. ex. o ver s cores, assim o colher sempre verdadeiro. Isto quer dizer: ver descobre sempre cores, ouvir descobre sempre tons. No mais puro e no mais originrio sentido verdadeiro i. , apenas em descobrindo, assim que jamais pode encobrir, o puro noin, o colher singelamente mirante das tonncias do ser, as mais simples do ente como tal. Esse noin jamais pode ser encobrir, jamais ser falso, pode alis permanecer um no-colher, agnoin, um no suficiente para um singelo, apropriado acesso.

E explicando porque dessa compreenso direta e simples do logos, surgiram tradues de logos como mente (Vernunft), ratio (razo), fundamento, relao, Heidegger conclui a sua exposio, dizendo: E porque a funo do logos est no singelo deixar ver de algo, no deixar colher (Vernehmen) do ente, logos pode significar mente (Vernunft). E porque de novo logos usado no somente na significao de lgein, mas ao mesmo tempo na do legmenon, a saber, o mostrado como tal, e porque este no outra coisa do que o hypokemenon, a saber o que jaz no fundo ocorrendo para toda abordagem e toda considerao, logos enquanto legmenon diz tambm fundo, fundamento, ratio. E finalmente, porque logos enquanto legmenon pode significar: isto que como algo abordado se tornou visvel na sua relao para com outro, no seu ser relacionado logos recebe a significao de Relao e referncia.

No vamos agora comentar nem analisar mais a fundo esse texto acima exposto. Tudo isso o faremos no decorrer das seguintes anotaes, mais indiretamente do que tematicamente, embora examinemos tambm tematicamente o texto em questo.

2.2. Logos e aisthesis: a WahrnehmungAqui, por enquanto, apenas destaquemos um ponto que ser de importncia para mais tarde. O ponto a ser destacado se resume na seguinte frase acima citada: Verdadeiro nesse sentido grego originrio, e qui num sentido mais originrio do que o mencionado logos a asthesis, o recolher e acolher singelo sensvel de algo. Na medida em que uma asthesis cada vez afim sua dia, i. , ao ente cada vez genuinamente apenas acessvel atravs dela e para ela, p. ex. o ver s cores, assim o colher sempre verdadeiro. Isto quer dizer: ver descobre sempre cores, ouvir descobre sempre tons. No mais puro e no mais originrio sentido verdadeiro i. , apenas em descobrindo, assim que jamais pode encobrir, o puro noin, o colher singelamente mirante das tonncias do ser, as mais simples do ente como tal. Esse noin jamais pode ser encobrir, jamais ser falso, pode alis permanecer um no-colher, agnoin, um no suficiente para um singelo, apropriado acesso. A importncia desse texto destacado para a nossa compreenso da fenomenologia que nesse texto breve est dito o que e como devemos entender aquilo que constitui a essncia da mostrao, o ser da presena corpo a corpo da coisa ela mesma, da evidncia do ser que recebeu o nome de Wahr-nehmung, e que muitas vezes em certas exposies ligeiras da fenomenologia de alguma forma identificada com a apreenso sensvel dentro do esquema de oposio, tradicional: mundo sensvel e mundo inteligvel. O nosso inter-esse jaz na identificao que insinuada no texto acima mencionado entre aisthesis, lgos e nus como o lmpido, puro deixar ver, como o colhimento do alethuein.

2.3. Fenomenologia

Depois de tudo isso, concluamos essas anotaes, citando como uma compreenso ainda provisria, o significado da fenomenologia no Ser e tempo:

Tornando concretamente presente o que resultou da interpretao de fenmeno e logos, salta aos olhos uma referncia interna entre o que pensado com essas palavras. A expresso Fenomenologia deixa-se formular gregamente: lgein ta phainmena; lgein diz, porm apophanesthai. Assim Fenomenologia diz: apophanesthai t phainmena: deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo. Este o sentido formal da pesquisa, que se d a si mesma o nome de fenomenologia. Com isso, porm, expressa nada mais, a no ser a mxima, acima formulado como: Zur Sache selbst, i. , coisa ela mesma.

Assim chegamos concluso, ainda que provisria: a convocao que est na palavra fenomenologia, enquanto deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo expresso numa outra formulao: coisa ela mesma (Zur Sache selbst!). Diante dessa convocao, porm, segundo o ttulo da nossa reflexo perguntemos, em repetio: O que deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo? Dito com outras palavras: O que fenomenologia? Ou ainda numa outra formulao: O que coisa ela mesma?

E porque como acima foi mencionado, coisa ela mesma o mesmo que fenomenologia; e porque fenomenologia diz deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo, a interrogao o que fenomenologia agora pergunta: O que deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo?

A pergunta tem por objeto deixar ver, portanto um ato do sujeito homem. E formula o seu interrogatrio: o que ? ... A pergunta cujo feitio tem a forma de o que ? chama-se pergunta essencial ou pela essncia, ou pelo ser do ente e pelo ente do ser que est em jogo. Assim a pergunta ao submeter um objeto ao seu interrogar, o coloca como um que e indaga acerca do seu ser. Assim a pergunta tem diante de si um qu, um ente, interrogado pelo seu ser. Ente e Ser, ente no Ser e Ser no ente. E a pergunta ela mesma, pode se virar sobre si mesma e tambm se colocar como um qu, como um ente e se interrogar no seu ser.

Isto significa, porm que ao iniciarmos a reflexo intitulando-a coisa ela mesma, a Fenomenologia?, a prpria colocao inicial j estava determinada a posicionar seja o que for, tudo que ela tocasse, na sua interrogao, como ente, interrogando-o no seu ser.

2.4. Fenomenologia como questo do sentido do ser

A pergunta que interroga o ente no seu ser se chama questo do sentido do ser. Questo significa busca.

Segundo Ser e Tempo, 2 (A estrutura formal da pergunta pelo ser), numa busca temos o que buscamos. O que buscamos o ser, ou melhor, o sentido do ser. No encontramos o sentido do ser como isso ou aquilo, no como algo, como ente, como objeto, como o contra-posto, seja ele de que feitio for, no como coisa-Ding, coisa-Sache. Tudo isso que nomeamos como termos indicativos afins ao ente, que aparecem como coisas de infinitas variaes, nuances e diferenciaes, so como que lugares, situaes, a partir e dentro das quais a busca procura o seu buscado, o Ser, submetendo o respectivo ente sob o interrogatrio acerca do seu ser. Essa situao da busca se perfaz numa estruturao de colocao bipolar, na qual num dos polos se acha o interrogante com o seu interrogatrio e no outro o interrogado como ente-objeto, contraposto ao quem interroga. Surge assim uma interao, um intercmbio de dois tipos de ente, denominados usualmente como sujeito e objeto. Esta estruturao pode se dar em diferentes complexidades de interao, e em interpretaes diferenciadas, mas como tal, por assim dizer, estatui o modo de agir e ser do que denominamos conhecimento, cuja estruturao est baseada na definio tradicional da verdade como adequao da coisa e do intelecto, cuja esquematizao se fixa como relao S O, refletido na fala lgica como S-P, i. , conhecimento como juzo. Essa fixao algo como reduo da questo do sentido do ser estrutura da teoria do conhecimento, insuficiente para levar consumao a busca, na sua radicalidade. Assim, substitui-se por doutrina e teoria dogmatizada do conhecimento, a questo do sentido do ser que se perfaz como busca do sentido do ser na situao do ente submetido ao interrogatrio acerca do seu ser, a partir e dentro do qual pode emergir o vir fala do ser no seu sentido, no como ente, como algo, no como algo-sujeito, nem como algo-objeto, nem como algo comum de dois, mas como pregnncia de uma presena toda prpria como ente-no-ser e ser-no-ente.

A fenomenologia, como deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo a tentativa de fazer retornar a busca da verdade enquanto questo do sentido do ser, libertando-a desse aprisionamento imprprio da sua essncia dentro da camisa de fora da teoria do conhecimento, a convocando volta para a coisa ela mesma, i. , causa ela mesma da sua dinmica, evocada na prpria expresso fenomenologia , i., deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo: o delun.

II. Anotao: Fenomenologia, um resumo

Essa definio da fenomenologia deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo: o delun. Se a observarmos bem, estranha. Pois embora na formulao gramatical haja sujeito para os verbos p. ex. deixar ver, mostrar-se, na sua inteno parece estar pouco se interessando em dizer o que e quem esse sujeito do deixar ver e mostrar-se nele mesmo; antes, est apenas com muita insistncia tentando nos dizer o modo de ser prprio do mostrar-se nele mesmo, que um puro ato no sentido todo prprio, digamos, anterior objetivao sujeito-ato-objeto na acepo usual do conhecimento, dentro da teoria de conhecimento. Assim, a definio parece nos convidar: favor no se desviar, na plena ateno de receber o que se mostra nele mesmo, com a preocupao de perguntar o que aparece, o que se mostra, quem que faz ver, mas acolher em cheio o modo de ser do mostrar-se e do captar esse mostrar-se simples e imediatamente, to simples e imediatamente que no h aqui nenhuma outra mediao a no ser o prprio mostrar-se e o captar, e nada mais. Trata-se de algo como autopresena pura e lmpida, simples e imediata. Aqui, mediao significa o mdium do evento: phanesthai, o fenmeno. Tudo o que segue nas anotaes seguintes, gostaria de permanecer sempre de novo nesse ponto nevrlgico da compreenso do que seja a coisa ela mesma da fenomenologia.

Como manifestao filosfico-cultural, fenomenologia uma das correntes, escolas e movimentos filosficos do fim do sculo XX. O iniciador, fundador da fenomenologia Edmund Husserl. Mas quem trouxe luz a essncia da fenomenologia como repetio e retomada da questo do sentido do ser Martin Heidegger. Falando da fenomenologia, na considerao, intitulada O meu caminho na fenomenologia, escrita por ocasio do 80 aniversrio de Hermann Niemeyer, em 16 de Abril de 1963, respondendo a pergunta, feita por ele mesmo acerca da fenomenologia, diz Heidegger: E hoje? O tempo da filosofia fenomenolgica parece que se foi. Ela j vale como algo passado, assinalado apenas ainda historicamente ao lado de outras correntes da filosofia. S que a fenomenologia no que o seu, o mais prprio, no nenhuma corrente. Ela de tempos a tempos possibilidade mutante e somente assim permanente do pensar, de corresponder demanda do que digno de ser pensado. Se a fenomenologia assim experienciada e conservada, ela pode ento como ttulo desaparecer, a favor da coisa do pensar, cuja clareira permanece um mistrio. Fenomenologia, no que h nela de mais prprio, a causa, o mago, o corao, a saber, o mistrio, i. , o que h de mais ntimo e prximo ao pensar. Como tal, ela cada vez atinncia ntima aberta da ecloso do mundo, de tal modo que o seu surgir, crescer e se consumar se perfaz cada vez como historiar-se na in-sistncia na factualidade do tempo de sua situao histrica, de tempos a tempos. O lugar, a situao histrica onde se d o surgir iniciante da questo chamada fenomenologia pode ser expresso, formulado em termos de alguns problemas filosficos, ocorrentes no fim do sculo XX, como p.ex. problema do psicologismo; da possibilidade do conhecimento verdadeiro; o problema do realismo e idealismo ou do objetivismo e subjetivismo na teoria do conhecimento; problema da diferena existente entre cincias naturais e humanas; o naturalismo e o historicismo; a Histria como Geschichte e Historie etc. Todos esses problemas, no entanto possuem no fundo uma implicao profunda com a mesma questo: o que afinal a verdade? E a verdade definida nessa implicao, tradicionalmente, como adaequatio rei et intellectus, da qual numa simplificao formal muito grande, surge o esquema do S O, e na sua projeo no nvel lgico como esquema do juzo S- P. E dentro desse esquema se discute ento o problema do realismo e do idealismo na teoria do conhecimento, na manualstica da filosofia.

A seguir na nossa breve exposio simplificada do que seja fenomenologia, num modo mais temtico e explcito do que j ocorreu acima, tomemos no incio como fio condutor o problema do realismo e idealismo na corrente da teoria do conhecimento, mas que p. ex., no incio da pesquisa fenomenolgica de Husserl, tomou a forma do confronto com o assim chamado psicologismo. O que estava em questo nesse inicial confronto da fenomenologia com o psicologismo?

Trata-se de uma questo todo especial, surgida bem nos incios da fenomenologia. Questo essa que, longe de estar resolvida, hoje at caiu no esquecimento como questo e aparece nas diversas disputas acadmicas, como nas existentes entre as correntes filosficas de orientao fenomenolgica tradicional e assim chamada filosofia analtica da linguagem.

No confronto da fenomenologia iniciante com o psicologismo, estava em jogo a questo da fundamentao das cincias modernas e do papel exercido pela psicologia nos incios da fenomenologia nesse problema da fundamentao, e ao mesmo tempo, trata-se da questo implcita nessa fundamentao das cincias, a saber, a questo da essncia ou ser das cincias.

As cincias modernas, na sua acribia crtica, sempre de novo examinam e reexaminam sua prpria fundamentao. O interesse e a preocupao para a necessidade de fundamentar e revisar as cincias a partir dos seus posicionamentos bsicos comearam a se avivar intensamente no incio do sculo XX, mobilizados pelo progresso da psicologia experimental. E na perspectiva desse interesse da refundao das cincias, o nome Psicologia no somente indicava essa inquietao pela busca da limpidez da cientificidade do ser cientfico, mas tambm uma autointerpretao da psicologia dela mesma como a cincia primeira e ltima, i. , como cincia bsica, a meta-cincia, que fundamenta todas as outras cincias, quer naturais, quer humanas, no seu ser cientfico. Essa autointerpretao da psicologia de si mesma como cincia fundamental de todas as cincias formou uma filosofia que recebeu na poca o nome de psicologismo, que em breve comeou a se des-almar, des-animando a alma para ser o bios da biologia, e des-vitalizar o bios para ser energia da cincia fsico-matemtica, recebendo sucessivamente o nome de biologismo e naturalismo ou fisicismo. Portanto, repetindo, o psicologismo uma corrente filosfica que coloca a psicologia moderna experimental como cincia bsica que fundamenta todas as outras cincias.

Fenomenologia surge, de incio, como confronto com o psicologismo.

1. O problema do psicologismo

De uma forma bastante simplificada e talvez at ingnua, podemos caracterizar o problema do psicologismo mais ou menos da seguinte maneira: as cincias, sejam elas naturais ou humanas, so conjuntos sistemticos de conhecimentos. Enquanto conhecimentos so atos de inteleco, juntamente ao lado dos atos de volio e de sentimento. Esses atos, na poca tambm chamados de vivncias, so fenmenos psquicos, fenmenos inerentes e provenientes da psique humana. Toda cincia tem o seu objeto prprio e o ato da inteleco que constitui o(s) conhecimento(s) desse mesmo objeto. Embora as cincias sejam diferentes entre si no seu objeto, elas todas tm em comum serem sistematizao de conhecimentos, de produtos dos atos de inteleco. Sem referncia inteleco, ao ato do intelecto, que num sentido mais vago e geral tambm pode se chamar de atos psquicos do sujeito-homem ou de atos da conscincia, no haveria nenhuma cincia. P.ex. um objeto enquanto coisa, ali simplesmente dada, que exista em si, sem nenhuma referncia ao sujeito humano ou conscincia humana, no teria nenhum sentido, pois algo em si, sem nenhuma referncia ao homem j uma referncia. Ora, entre as cincias, existe uma que tem por objeto os atos psquicos em geral e em particular: a psicologia. Portanto, a psicologia tem por objeto os atos psquicos, i. , o elemento constitutivo do conhecimento, do saber humano, portanto das cincias. Assim, a psicologia, como cincias dos fenmenos psquicos a cincia primeira e bsica que fundamenta todas as cincias.

No ano 1900 saiu publicado o I volume das Investigaes lgicas de Edmund Husserl, fundador da fenomenologia. O livro causou um grande impacto no mundo acadmico da poca. Pois, ali, Husserl se confronta de um modo contundente com a tese do psicologismo. Mostra que p. ex. objetos-ideais como as estruturas matemticas, lgicas etc. no podem ser reduzidos na sua objetividade a atos psquicos da inteleco, os quais tm propriedade de serem atos passageiros, mutveis, sujeitos evoluo psicossomtica do ser humano. Se for assim que estruturas lgico-matemticas como p. ex. 2+2=4 possam ser reduzidas em ltima anlise ao ato psquico da sua inteleco, poderia no futuro acontecer que, elas, pela mudana p. ex. do crebro humano pela evoluo, no mais fossem verdadeiras. A tese de que as estruturas lgico-matemticas que regem os atos do pensar so na realidade momentos do prprio ato, e que por isso mesmo esto sujeitas s mutaes biolgicas constitui a posio fundamental da filosofia que agora no mais se chama psicologismo, mas sim biologismo. E dando mais um passo adiante, a tese de que as mesmas estruturas ideais esto sujeitas s leis de transmutaes fsicas puramente corporais materiais recebeu a qualificao de serem naturalistas, da o naturalismo ou de serem fisicistas, da o fisicismo. Assim, psicologismo, biologismo, naturalismo e fisicismo indicam uma mesma e nica tendncia, na qual se processa a reduo de diferentes dimenses da realidade s estruturas psquicas, destas s psicossomticas, depois destas s biolgicas, e por fim s fsico-energticas da fsica nuclear.

A reao de Husserl ao psicologismo no I volume das investigaes lgicas foi saudada com simpatia e entusiasmo pelos que na questo da verdade pertenciam ao realismo na teoria do conhecimento. O I volume das Investigaes lgicas parecia ter retomado a posio do realismo atravs da doutrina da intencionalidade. Em distinguindo claramente o conhecimento, entendido enquanto o contedo objetivo e o conhecimento enquanto o ato do conhecer e resgatando o aspecto objetivo da referncia do conhecimento realidade, existente em si, independente do ato de conhecer, a fenomenologia das Investigaes lgicas, ao mesmo tempo que combatia o relativismo do psicologismo, mostrando-lhe a impossibilidade de identificar o contedo objetivo simplesmente com o ato fugaz e passageiro do ato de conhecer, parecia ter re-introduzido o conceito da intencionalidade da escolstica medieval no mundo acadmico-filosfico, dominado pela teoria do conhecimento de cunho subjetivo-idealista. Essa recepo da fenomenologia, feita a modo do realismo, fomentou a busca cada vez mais diferenciada na descoberta de diferentes tipos ou classes de objetos. Comeou-se assim a distinguir objetos-coisas, objetos-valores, objetos-ideais, objetos-etiolgicos, estticos etc. e tudo isso em acentuando a ocorrncia de todos esses tipos de objetos como realidades em si, cada qual a seu modo, entendendo-se a palavra realidade num sentido bem lato, no restrito ao modo de ser em si das coisas fsico-corporais. Abre-se assim a possibilidade de uma fenomenologia realista, na qual se aprimora na descrio detalhada do objeto dado, sob diferentes ngulos. A fenomenologia que permaneceu nesse nvel de colocao realista recebeu muitas vezes o nome de fenomenologia descritiva.

Entrementes, na autocompreenso da fenomenologia comeou-se a perceber que essa maneira de entender a intencionalidade no correspondia grande descoberta de Husserl, a qual chamou de intencionalidade. Com a descoberta da intencionalidade, no sentido todo prprio de Husserl, a fenomenologia rompe com a camisa de fora em que ela foi colocada na autointerpretao inicial, como sendo uma nova teoria de conhecimento. Com a descoberta da intencionalidade, Husserl inaugura uma abordagem do conhecimento, no mais a partir da teoria do conhecimento, inteiramente dentro da bitola da definio tradicional da verdade como adaequatio rei et intellectus, mas a partir e dentro da questo do sentido do ser, a partir da ontologia toda prpria e nova na indagao mais vasta e mais radical do ser do prprio ato, no mais entendido usualmente como referido ao sujeito, conscincia, ao intelecto, mas como o modo de ser sui generis: como intencionalidade.2. A intencionalidade

sempre difcil entender e dizer adequadamente o que a fenomenologia convencionou chamar de intecionalidade, livre inteiramente da tendncia realista da teoria do conhecimento. Na tentativa de compreender a intencionalidade fenomenolgica da melhor forma possvel, mais condizente com ela, voltemos obra de Franz Brentano, intitulada Psicologia sob o ponto de vista emprico, donde Husserl intuiu a ideia da intencionalidade.

Na p. 115 da acima mencionada obra diz Brentano: Todo o fenmeno psquico contm algo como objeto em si, embora no cada um de igual modo. Na representao algo representado, no juzo algo reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no dio, odiado, na cobia, cobiado. Uma afirmao banal em que, se no a captarmos com preciso, nada encontramos de novo, nada que denote uma descoberta importante, a no ser o bvio de uma constatao, conhecido por todos, na teoria de conhecimento. Conforme essa compreenso bvia h, de um lado, a coisa em si, e de outro lado o sujeito humano com seus atos psquicos, i. , fenmenos psquicos, de diversos tipos como representao, juzo, volio, apreenso etc. Esses atos psquicos se caracterizam como intenes, i. , o ato de tender em direo a (in-tendere). Cada uma dessas in-tenes se dirige a, e tem na ponta da sua tendncia um objeto, cada vez seu, para o qual est apontando. Assim compreendida, a intencionalidade no nos revela realmente de imediato, o que digamos, corpo a corpo, em carne e osso, i. , como a coisa ela mesma, experienciamos no nosso vivenciar. que no modo usual de descrever a intencionalidade, no percebemos que todos os elementos que constituem o esquema sujeito-ato-objeto j esto prefixados como: duas substncias-coisas ocorrentes e enfileiradas uma ao lado da outra, ligadas por uma relao, que por sua vez, no passa de uma representao vaga e sem contedo de ligao, i. , de relao, como uma linha geomtrica, reta entre dois pontos. Talvez seja por isso que Brentano no diz: cada sujeito com o seu ato, mas sim, cada fenmeno psquico.

Como entender, pois, a afirmao de Brentano: Todo o fenmeno psquico contm algo como objeto em si, embora no cada um de igual modo. Na representao algo representado, no juzo algo reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no dio, odiado, na cobia, cobiado? No se pode perceber o que intuiu Husserl nessas frases se continuarmos a interpretar a colocao de Brentano dentro do esquema usual da intencionalidade como tender do homem-sujeito sobre o objeto, existente em si, diante dele, atravs do ato de conhecer, representar, julgar, amar, odiar, cobiar etc. Mas, por qu? Porque o indicado, o apontado pela frase tender do homem-sujeito sobre o objeto, existente em si, diante de dele atravs do ato no vivncia do ato, mas sim produtos, i. , resultados constitudos num processo de objetivao. Se somos assim que no percebemos tratar-se aqui de produtos de objetivao, e nos representarmos esses produtos simplesmente como entes reais em si, acontece ento conosco o seguinte processo: primeiro, isolamos os produtos da objetivao, separando-os do processo de objetivao, hipostatizando-os ora como coisas em si (substncias), ora como coisas aderentes (acidentes) a outra coisa. A seguir tentamos ligar entre si essas coisas assim hipostatizadas, dizendo-nos mais ou menos com os nossos botes: aqui estou, eu, uma substncia existente em e por si mesma, diante da qual est uma coisa chamada objeto, que tambm uma substncia em e por si mesma (ou se no o for realmente existente como coisa fsica, ao menos tida como algo em si a modo de coisa ideal, coisa psquica, coisa esttica, coisa-valor, coisa supra-sensvel etc.), sobre a qual a substncia-eu se dirige numa ao, i. , numa coisa chamada intencionar (conhecer, representar, julgar, amar, odiar, cobiar etc.), que no propriamente uma substncia, mas algo que adere como seu acidente a uma substncia. E se algum nos chama ateno de que todas essas coisas (substncias: res in se) e semi-coisas (acidentes: res in alio) so como que produtos da ao chamada objetivao, representamos a prpria objetivao como acidente inerente a uma substncia, chamada sujeito-homem, que por sua vez, atravs do acidente-ao, se dirige aos objetos, no nosso caso p. ex. sujeito eu, o ato da intencionalidade, a saber, representar, julgar, amar, odiar, cobiar etc. E esse processo, cujo esquema o do sujeito-ato-objeto, pode se repetir indefinidamente.

Mas, ento, como entender a frase de Brentano, onde Husserl intuiu a essncia da intencionalidade? Devemos entend-la como acenando para vivncia. Antes de percebermos a colocao de Brentano como indicativo da vivncia, uma rpida observao sobre o ttulo do livro de Brentano, onde Husserl leu a definio do que seja propriamente intencionalidade. O ttulo do livro de Brentano soa Psicologia do ponto de vista emprico. O ttulo pode nos enganar se entendermos a palavra emprico na acepo usual hodierna do modo de ser experimental das cincias positivas do estilo das cincias naturais, fsico-matemticas. O emprico assim compreendido o oposto do especulativo, do no-real, do fantasiado, apenas fenomenal. O emprico, aqui, deve ser tomado no sentido mais abrangente possvel de captao imediata, simples, pele a pele a tentao de dizer , anterior a toda e qualquer elaborao. S que esse acrscimo desvia a compreenso do carter emprico que Husserl reivindicava para a sua fenomenologia. Pois dizer anterior a toda e qualquer elaborao d a entender que no incio h o material informe, vago, indeterminado que depois toma forma e concreo; e que o emprico significa captar a realidade elementar ainda intacta, no seu estado material. Ao passo que o emprico na fenomenologia significa s e simplesmente o captar, ou melhor, o colher simples e imediato, sem mais nem menos que est expresso no slogan: coisa ela mesma. Isto significa que, se acaso houver, aqui, apenas dado como suposto, esse processo de elaborao do material indeterminado, vago e informe para a gradual coisificao at o processo se consumar numa hipostatizao, a modo de coisa ali presente em si, o captar simples e imediato acolhe cada etapa, cada ligao das etapas, cada crescimento das etapas, cada vez de novo, cada vez simples e imediatamente, sem mais sem menos, assim como tudo isso aparece sempre novo e de novo na sua totalidade. Trata-se da claridade e distino do tornar-se da e-videnciao, algo como o contnuo e renovado abrir-se da claridade, i. , da clarificao, um surgir incessante, o vir fala, o vir luz. Essa claridade dinmica da e-videnciao, da presenciao o ponto de vista emprico. Aqui o ponto de vista no um ponto fixo, a partir do qual se encaixem todas as coisas na perspectiva desse visual pressuposto, mas sim como que ponto nevrlgico, ponto de toque, o fundo do salto, dentro e a partir do qual continuamente brota o vigor elementar do e-videri, a clareira, o olho da luz que, enquanto condio da possibilidade, e enquanto espao de jogo impregna todos os entes, i. , cada ente, cada em sendo, cada vez na sua totalidade dinmica. Todo o segredo da compreenso adequada do que seja a intencionalidade fenomenolgica est em compreender com preciso essa evidenciao, i. , como o puro ato chamado captar simples e imediato. Como j foi mencionado, para isso devemos fazer o processo de entender o modo de ser do conhecimento como vivncia.

Como, porm nos reconduzir vivncia, a partir da representao que fazemos da intencionalidade como relacionamento do sujeito sobre o objeto, atravs do ato chamado intencionalidade?

Repetindo, diz Brentano: Todo o fenmeno psquico contm algo como objeto em si, embora no cada um de igual modo. Na representao algo representado, no juzo algo reconhecido ou rejeitado, no amor, amado, no dio, odiado, na cobia, cobiado. Brentano no diz: eu, o sujeito-homem, dirijo-me ao objeto atravs do fenmeno psquico, do ato. Diz simplesmente: Todo fenmeno psquico. Em vez de fenmeno psquico, digamos vivncia. Sem definir logo o que seja vivncia, deixando vago de que se trata, ouamos: vivncia contm em si algo como objeto. Se a vivncia se chama representao, algo representado; se juzo, ajuizado ou julgado (reconhecido ou rejeitado); se amor, amado etc. Usualmente no esquema sujeito-ato-objeto temos primeiro o objeto como coisa em si fora, diante, independente de ns, existente em si, ali presente na sua ocorrncia, pronto para ser representado, julgado, amado, odiado, cobiado. O objeto, a coisa em si por assim dizer, enfocada vrias vezes, de modos diferentes pelos atos subjetivos, i. , do sujeito, denominados representar, julgar, amar, odiar, cobiar. Na colocao de Brentano, o estado da coisa no mais assim. Cada fenmeno psquico cada vez, por assim dizer um todo chamado representao, juzo, amor, dio, cobia que cada vez contm o seu objeto que tem cada vez o modo de ser que ele, o fenmeno psquico tem. como o fundo, o horizonte, o mbito aberto, que se estrutura como uma paisagem, no qual esto contidas as coisas, ordenadas como mundo. As coisas da paisagem assim abertas em leques como mundo so impregnadas, so coloridas, segundo o matiz, segundo o modo de ser de cada uma dessas aberturas. Chamemos esse mbito aberto como mundo, a modo de uma paisagem, de intencionalidade. E ouamos dentro dessa compreenso o que Brentano diz: cada fenmeno psquico contm algo como objeto em si, visualizando o modo de ser da abertura da paisagem acima mencionada. Talvez, assim, possamos adivinhar de alguma forma o que Husserl poderia ter intudo ao ler esse trecho do texto de Brentano. Se assim a intencionalidade, ento no se trata do ato de um sujeito-homem dirigindo-se ao objeto, existente em si, fora dele. Mas para que a nossa compreenso tenha maior preciso, devemos agora completar a nossa descrio dizendo: o que denominamos acima como mbito aberto a modo de uma paisagem que se abre em leques de ordenaes de detalhes concretos da mesma paisagem como mundo no algo que est diante de mim como uma paisagem da realidade fora de mim. Antes, esse mbito aberto com todos os seus ingredientes em mnimos detalhes de implicaes e explicitaes sou eu mesmo, eu mesmo no como esta substncia-homem, mas sim como o mbito aberto vivido na sua concretude, intensidade, no seu desvelamento e velamento, em todas as suas camadas dinmicas de estruturaes como totalidade do mundo, diante de mim, ao redor de mim, fora de mim, dentro de mim, enfim, essa totalidade, esse mundo que me envolve e envolve todas as coisas. Portanto essa abertura, essa presena a minha essncia, eu sou todo inteiro, tout court, de imediato, esse ser-no-mundo, dito de outro modo: eu sou essa vivncia. O que aqui denominamos de vivncia coincide com o que acima, ao tentarmos dizer em que consiste o significado do ponto de vista emprico caracterizamos como captar simples e imediato.

A tentativa de dizer o que seja propriamente fenomenologia na nossa exposio se concentra apenas em compreender com preciso esse captar simples e imediato. Para isso, a seguir falaremos brevemente do que se convencionou chamar na fenomenologia de reduo, ideao e constituio. Elas so trs momentos da intencionalidade, ou melhor, so processos pelos quais e nos quais se d a intencionalidade.

Antes, porm, de modo provisrio e sempre interrogativo, repitamos o que seria Psicologia sob o ponto de vista emprico, se entendermos a empiria como foi insinuado h pouco. A alma (psych) agora no seria mais aquela da acepo usual, na qual um dos componentes do ser humano como substncia: corpo, alma e esprito. Mas, ento, seria a vida como vitalidade biolgica no sentido somtico-vegeto-animal? Ou Vida simplesmente na sua compreenso, a mais vasta, a mais profunda e dinmica possvel? Seria Ser, no seu sentido ainda originrio como presena do abismo de possibilidade, como plenitude inefvel e inesgotvel do poder ser, sempre novo e renovado, sempre e cada vez mais origem, arch, ou melhor, hyparch, o nada, tinindo na potncia da generosidade de ser?

Sem podermos nem querermos dizer o que , deixemos abertas todas essas e outras perguntas, no como interrogaes que tentam ter respostas que fecham, facilitam e satisfazem a busca, mas que a abrem e a mantm como questo, portanto como busca que se adentra cada vez mais cordial, generosa e crtica na jovialidade atnita do no saber que se adensa como o tinir do silncio de ausculta como a espera do inesperado... De repente, talvez, possamos vislumbrar num in-stante o que significa: captar simples, e-videri, ver simples da coisa ela mesma, a imediao do sem mais nem menos. A concentrao, a densidade da ausculta que integra essa abertura da espera do inesperado um dos elementos que constitui o significado da palavra logia ((((((), que expressa o carter cientfico da psicologia. Lgos (-logia) vem do verbo ((((((, que significa usualmente falar, discursar, mas tambm no seu significado radical arcaico, ajuntar, colher, recolher. Re-colher-nos na atnita ausculta de um jovial no-saber, na total disposio da ausculta do inesperado, seja talvez o significado, o mais interessante do saber que recebe o nome de psicologia. Se tivermos como pano de fundo tal compreenso da psicologia sob o ponto de vista emprico, podemos talvez melhor compreender o que Husserl dizia, em criticando a empiria dos filsofos ingleses (Locke, Hume), a saber, que o emprico e o experimental dos antigos positivistas ingleses ainda sofria de fixao e da bitola do dogmatismo filosfico, no superado; e que somente com a fenomenologia se alcanou a compreenso legtima e autntica do que seria realmente o emprico e o experimental.

3. Reduo

Repetindo, o nosso objetivo entender de que se trata quando falamos de fenomenologia. Na tentativa acima, ensaiamos dizer de que se trata na fenomenologia, em definindo em que consiste a essncia da intencionalidade. E dissemos que aqui se trata de um captar simples a coisa ela mesma de modo imediato na evidncia. E advertimos que no nada simples ver de que se trata, quando falamos de captar simples e imediato, i. , na evidncia. Para vermos cada vez melhor e com maior preciso em que consiste esse captar simples e imediato na evidncia, examinemos a intencionalidade enquanto reduo, ideao e constituio.

Reduo ao de reduzir. Reduzir pode significar restringir, diminuir, mas tambm reconduzir. o que mostra o latim reducere. Na fenomenologia reduo significa reconduzir, propriamente, reconduzir coisa ela mesma. Isso significa que ns estamos afastados, longe da coisa ela mesma?! O que isso, do qual estamos longe, para o qual devemos ou queremos ser reconduzidos? A coisa ela mesma!? O que na fenomenologia coisa ela mesma? Em vez de reduo, usamos tambm expresses como pr entre parnteses, suspender a crena na existncia, voltar e permanecer na atitude do espectador sem pressuposies.Alguns autores explicam o que a reduo fenomenolgica, referindo-se s expresses acima mencionadas, como sendo ao de neutralizar o posicionamento da realidade como existindo em e por si, fora do sujeito conhecedor, i. , pr entre parntese; no ter nenhuma pressuposio prvia, apenas ver a coisa ela mesma. Hoje teramos a tentao de dizer: transformar a realidade real em realidade virtual. Percebe-se imediatamente que essa explicao expe o que seja fenomenologia, j partindo da posio de que na fenomenologia trata-se da teoria de conhecimento e de suas problemticas, principalmente do problema do realismo e do idealismo. Assim, j representamos p. ex. o ato de ver uma floresta de quaresmeiras floridas, pondo incontveis pressuposies, quais como ver um ato psico-fsico, dentro de mim, captar atravs dos nervos pticos os estmulos fsico-ondulatrios provenientes de um organismo vegetal da espcie herbiflios etc. E a mais abrangente, tenaz e persistente pressuposio a de que a coisa chamada quaresmeira florida est ali diante de mim, ocorrente em si, dada de antemo como realidade objetiva incontestvel, independente da referncia a mim. Segundo esses autores, reduo fenomenolgica seria des-coisificar, sim, des-substancializar as coisas assim dadas como se fossem coisa ela mesma, denunciando esses dados como no dados imediatamente, como no aparecendo, no vindo luz eles neles mesmos. Esse processo de des-materializao da coisa hipostatizada como esse bloco-coisa, libera o aparecimento do conjunto como totalidade, dentro e a partir da qual isto ou aquilo tem o seu sentido. Assim, no lado da realidade em si, abre-se toda uma paisagem de infindas regies, sub-regies, setores, reas de conjunto de coisas, constituindo o aparecimento do mundo objetivo diante e ao redor de mim: temos assim paisagem ou mundo denominado noema; o mesmo processo pode ser feito, agora tendo como tema o sujeito conhecedor, que uma vez des-substancializado se abre como todo um mundo de realidades sui generis prprias com seus variegados atos, noemas e egoidades: temos assim a paisagem denominada: noesis. Mas tanto a paisagem noema como a paisagem noesis so ainda de alguma forma colocadas como realidades diante ou ao redor de quem as percebe. Assim, de alguma forma, agora de modo menos coisificado e mais sutil se reitera o esquema do sujeito ( objeto, postulando-se um sujeito, no mais emprico (sujeito do subjetivismo ingnuo), mas inteiramente des-cosificado, como que pairando sobre todos os sujeitos, a modo de uma imensa rea de possibilidade de surgimento de infindas paisagens noemticas (mundo de noema) e noticas (mundo de nesis) que ento recebe a denominao de subjetividade transcendental. Surge assim uma interpretao da fenomenologia que de alguma forma identifica a fenomenologia com o modo de ser do idealismo alemo, dando-lhe um cunho metafsico-transcendental. Nessa perspectiva, reduo sig