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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A CONSTRUÇÃO DA IDEIA DE ‘HUMANIDADE’ EM DOCUMENTOS
INTERNACIONAIS: COMO MULHERES NEGRAS SÃO (IN)VISIBILIZADAS NESSES
DISCURSOS
Simone Braz Batista1
Elisângela de Jesus Santos2
Resumo: Entre as décadas de 1940 e 1960 três documentos internacionais foram criados para pensar
sobre os Direitos Humanos: Carta das Nações Unidas (1945), Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948) e Convenção Americana Direitos Humanos São José (1969). Os pontos traçados por
ambos os documentos dizem respeito a cooperação internacional entre os países membros, no esforço
contra qualquer tipo de discriminação e desigualdade sustentadas por raça, cor, sexo, religião e outras
naturezas. Em suas redações afirmam condições necessárias ao desenvolvimento social, cultural,
econômico e outras formas que concretizem a dignidade humana sem distinções. A partir da
perspectiva discursiva sobre humanidade trabalhada nos documentos esta proposta de artigo
questiona como esses direitos contemplam ou não as mulheres negras, a partir das categorias de
gênero e raça, considerando as diferentes opressões que as atingem. Para tal análise iremos nos
apropriar do conceito de interseccionalidade trabalhado por Kimberlé Creshaw (2002) teórica que
discute como diferentes estruturas de poder atuam sob a vida de grupos marginalizados socialmente.
E da concepção de sistema mundo moderno/colonial analisado por Aníbal Quijano (2000) como
colonialidade do poder a partir da dominação, exploração e conflito da população mundial
classificados socialmente a partir da categoria de raça.
Palavras Chaves: Direitos Humanos. Interseccionalidades. Colonialidade do Poder.
Introdução
Diante dos catastróficos eventos que atingem sociedades contemporâneas em âmbitos
nacionais e mundial, tais como: aumento dos casos de feminicídio de mulheres negras, genocídio da
juventude negra masculina, diminuição dos direitos trabalhistas e previdenciários, (i)mobilidade
territorial de diferentes grupos humanos entre os territórios/ países do globo e situação indigna de
imigrantes no mundo todo constituem exemplos importantes da forma como distintas categorias
discursivas forjam classificações étnico-raciais utilizadas ideologicamente para justificar e/ou para
atuar como combustível (re)produtor de situações desumanizadoras na materialidade das relações de
poder cotidianas.
De que formas estados, organizações não governamentais e movimentos sociais podem
refletir e agir perante as constantes violações de direitos aos grupos humanos, considerando as
especificações (identitárias, étnico-raciais, de gênero e/ou sexualidade, classe social) que carregam
1 Mestranda e bolsista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais (PPRER) do CEFET/RJ, Rio de
Janeiro, Brasil. 2 Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais e do Bacharelado em Línguas
Estrangeiras Aplicadas às Negociações Internacionais (LEANI) ambos do CEFET/RJ, Rio de Janeiro, Brasil.
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consigo e que os fazem, por isso mesmo, alvo de opressões que se tornam, ao invés de únicas,
múltiplas?
Pensando nessas opressões à ‘Humanidade’ em seu sentido pretensamente universal, muitos
documentos foram criados como reguladores e orientadores para que os direitos humanos fossem
garantidos. Parte deles surge como demanda internacional, em especial como resposta às duas grandes
guerras mundiais.
Entre as décadas de 1940 e 1960, três documentos internacionais foram criados para “pensar”
Direitos Humanos: Carta das Nações Unidas (1945), Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948) e Convenção Americana de Direitos Humanos São José (1969). Os pontos traçados por eles
dizem respeito a cooperação internacional entre os países membros, no esforço contra qualquer tipo
de discriminação e desigualdade sustentadas por raça, cor, sexo, religião, entre outras. Em suas
redações, os textos afirmam condições necessárias ao desenvolvimento social, cultural, econômico e
outras formas que concretizem a dignidade humana sem distinções desqualificatórias entre os grupos.
Entretanto, as premissas civilizatórias que permeiam a noção de ‘humanidade’ prescritas pelos
saberes etnocêntricos, de branquidade e do gênero masculino implícitos nestes documentos
perpassam, necessariamente, uma perspectiva da colonialidade. No contexto latinoamericano,
implica questionar tais narrativas pensando as imposições materiais e teóricas que a própria
colonialidade insere em nossas relações sociohistóricas.
O local e o global na perspectiva dos direitos humanos
Pensar em Direitos Humanos nos faz imaginar em como diferentes grupos possam se
relacionar socialmente, deixando de lado os preconceitos, o racismo e outros tipos específicos de
discriminações que se sustentam em meio e através de categorias raciais, de gênero, de classe,
classificações territoriais, religiosas e tantas outras.
Nessa relação percebe-se a presença de grupos hegemônicos que muitas vezes impõem
diretrizes sociais às ações sob cor/pos e territórios dos grupos vistos como subalternos. Estas relações
de imposição implicam também a presença de práticas de resistência, que autores como Boaventura
de Sousa Santos (2001) e Joaquín Herrera Flores (2002) discutem sobre os direitos humanos e seus
deslocamentos a partir das concepções e contraposições espaciais entre o local e global.
A fluidez na constituição de uma ideia de humanidade e a consideração de quem a compõe
tem se acirrado com a configuração social contemporânea, que podemos chamar de uma sociedade
globalizada. Essa “globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que
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começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um
novo padrão de poder mundial” (Quijano, 2005, p. 227).
Sobre essa sociedade globalizada Santos traz uma reflexão afirmando que a “globalização é o
processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo globo e,
ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival”
(Santos, p.10, 2001). A globalização, neste sentido, está situada e definida no deslocamento entre o
macro (universal) e o micro (local).
A partir dessa colocação, como podemos pensar a ‘humanidade’/humanidades e seus direitos
atribuídos num plano global sem cair na armadilha universal, acionando com isso a globalização
hegemônica via um “localismo globalizado e um globalismo localizado”3, ou enxergar as nuances
dos direitos humanos e “reconceitualizá-los como multiculturais” acionando a “globalização de baixo
para cima” (Santos, 2001, p.15).
Segundo o autor, uma das possíveis saídas é pensar os direitos humanos por uma perspectiva
multicultural, considerando as fissuras, necessidades locais, universalizando o que fosse inerente a
qualquer indivíduo, como o direito ao nascimento, a partilha dos patrimônios da humanidade,
materiais e naturais. O multiculturalismo se mostraria como “precondição de uma relação equilibrada
e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem dois
atributos de uma política contra hegemônica de direitos humanos no nosso tempo” (Santos, 2001,
p.16).
Seguindo essa perspectiva ampliada de direitos humanos com seus devidos cuidados ao macro
e micro, Flores (2002) traz em sua reflexão duas visões sobre o assunto: abstrata e localista. A
primeira se propõe “vazia de conteúdo, referenciada nas circunstâncias reais das pessoas e centrada
na concepção ocidental de direito e do valor da identidade”. Já a segunda abarca “o “próprio”, o
nosso, com respeito ao dos outros centrado na ideia particular de cultura e de valor da diferença”
(Flores, 2002, p.09).
A visão abstrata preza por uma totalidade, porém, apenas partes desta são detentoras de
direito. Há uma multiplicidade de identidades que se conectam e se distanciam, mas compõem o todo.
A questão a se avaliar é como socialmente certos grupos e identidades são protegidos e identificados
3 Para Boaventura de Sousa Santos o localismo globalizado e o globalismo localizado são globalizações de-cima-para
baixo. Ver mais em Santos, Boaventura de Sousa. CONTEXTO INTERNACIONAL, vol.23, n. 1, janeiro/junho 2001,
pp.7-34, Rio de Janeiro-RJ
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como sujeitos de direito em contraposição a outras parcelas desprotegidas, não vistas em plenitude, e
sim como fragmentos de vida.
Indo na contramão dessa concepção parcial de direitos, a visão localista tem o cuidado no
detalhe, nas dinâmicas e práticas sociais oriundas de cada território. Mesmo com interferências
externas, isto é, globais, o local está ali pulsante e com tensões, dialogando com a esfera macro.
Partilha-se nesses ambientes o diferente, que pode ou não ser denominado como o outro.
Ambas as visões podem ser usadas para beneficiar parcelas da sociedade e promover a
manutenção dos antigos e atuais impérios em seus privilégios econômicos, políticos, socioculturais.
Pensar os direitos enquanto universais deve ser necessário quando a diversidade é colocada na arena.
E a que se potencializar o local quando este não se transforma na norma, em detrimento do que se
costuma chamar de ‘outro’.
Pensando nesses deslocamentos que Flores (2003) propõe uma racionalidade de resistência,
que seria para ele uma visão complexa dos direitos:
[...] não nega que é possível chegar a uma síntese universal das diferentes opções
relativas aos direitos. E tampouco descarta a virtualidade das lutas pelo
reconhecimento das diferenças étnicas ou de gênero. O que negamos é considerar o
universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal há
de se chegar – universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes) de
um processo conflitivo, discursivo de diálogo ou de confrontação no qual cheguem
a romper-se os prejuízos e as linhas paralelas (FLORES, 2003, p.21).
O autor defende o universalismo, mas não como algo romantizado e sim, conflituoso. Que
não seja sobreposto mas que atue como uma encruzilhada, com várias entradas e saídas. Por isso, sua
proposta para os direitos humanos envolve práticas interculturais que são para ele:
[...] em primeiro lugar, um sistema de superposições entrelaçadas, não meramente
superpostas. Esse entrecruzamento nos conduz até uma prática dos direitos,
inserindo-os em seus contextos, vinculando-os aos espaços e às possibilidades de
luta pela hegemonia e em estrita conexão com outras formas culturais, de vida, de
ação, etc. Em segundo lugar, induz-nos a uma prática social nômade, que não busque
“pontos finais” ao acúmulo extenso e plural de interpretações e narrações, e que nos
discipline na atitude de mobilidade intelectual absolutamente necessária, em uma
época de institucionalização, regimentação e cooptação globais (FLORES, 2003, p.
23).
Seja pelo filtro multicultural em Santos (2001) ou intercultural de Flores (2003) o que se torna
evidente é a complexidade da concepção e aplicação dos direitos humanos. Percebe-se então que a
construção de direitos para a ‘humanidade’ não deve ser liderada por parte dos países do globo em
detrimento dos demais. Além disso, também notamos como a lógica do capital se fortalece ao se
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apropriar da jurisprudência e administrar a legalidade aplicando-a aos interesses individuais posto em
cima dos coletivos, considerados de maneira mais ampla, justa e de equidade possível.
A quem são destinados direitos garantidos por documentos internacionais?
A Carta das Nações Unidas (1945) tem em sua origem a motivação na paz e ordem mundial
após as duas grandes guerras que alteraram algumas das cartografias do globo. Em seu texto reforça
a preocupação dos países envolvidos no trabalho pela “tolerância” e respeito mútuo entre as nações,
além deliberar a criação da Organização das Nações Unidas.
Três anos após seu surgimento, a ONU apresenta aos seus membros e ao mundo a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948) que tem como proposta a difusão universal de direitos
orientados a partir do respeito, educação, liberdade e progresso social entre países e povos. Algo a
ser seguido como um trajeto comum entre Estados membros e aos territórios administrados por estes,
isto é, suas colônias.
Passadas exatamente duas décadas teremos, em nível continental, um documento que orienta
a constituição e aplicação de direitos nos países americanos. Trata-se da Convenção Americana
Direitos Humanos São José (1969) que somente em 1992 teve a adesão do Brasil. Assim como os
documentos citados anteriormente, o Pacto de San José da Costa Rica tem como base a ideia do
respeito e dignidade da pessoa humana:
Reafirmando seu propósito de consolidar neste Continente, dentro do quadro das
instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social,
fundado no respeito dos direitos essenciais do homem; Reconhecendo que os direitos
essenciais do homem não derivam do fato de ser ele nacional de determinado Estado,
mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por
que justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante
ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos (BRASIL.
Decreto n.º 678, 1992, s/p).
A partir das redações dos documentos separamos alguns trechos em que os termos “homens”,
“mulheres”, “raça”, “cor”, “gênero”, “sexo”, “humano”/“humanidade”, “pessoa(s)” são citados por
eles.
No início da Carta das Nações, temos os seguintes trechos:
[...] a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no
espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade; a
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reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da
pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como
das nações, grandes e pequenas; a estabelecer as condições necessárias à manutenção
da justiça e do respeito das obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do
direito internacional; a promover o progresso social e melhores condições de vida
dentro de um conceito mais amplo de liberdade [...] Realizar a cooperação
internacional, resolvendo os problemas internacionais de carácter económico, social,
cultural ou humanitário, promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do
homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo,
língua ou religião (ONU,1945, s/p, grifos nossos).
Já na Declaração Universal dos Direitos Humanos temos a seguinte mensagem:
Artigo 1. Todas os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com
espírito de fraternidade. Artigo 2. 1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os
direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo [...] Artigo 6. Todo ser humano tem o direito de ser,
em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.” (ONU, 1948, p.02,
grifos nossos).
E por último, a Convenção Americana Direitos Humanos São José que diz:
Artigo 1. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano. Artigo 5. Toda
pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral;
Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou
degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito
devido à dignidade inerente ao ser humano. (BRASIL. Decreto n.º 678, 1992, s/p,
grifos nossos).
Em todos os textos é determinante a abrangência e generalidade da definição de “ser humano”.
Sabemos, pelas estatísticas brasileiras por exemplo, como a ideia de ‘humano’ e de ‘humanidade’ se
desloca a todo tempo. Percebemos isso ao nos depararmos com pesquisas atreladas à violência
doméstica, níveis de desemprego, déficit de moradia e tantos outros dados materiais que distribuem
de maneira discrepante as opressões sofridas por grande parcela da população que, diga-se de
passagem, é empobrecida, negra e feminina.
Em entrevista concedida à Bianca Santana, publicada recentemente na Revista Cult edição
223, Sueli Carneiro observa que o conflito racial permanece vivo na sociedade brasileira e marca sua
estrutura de classe. Tal conflito “permanece aqui hoje, estruturando a sociedade brasileira,
organizando a própria estrutura de classes sociais. Porque no topo da pirâmide temos uma hegemonia
absolutamente branca e nas bases uma maioria absolutamente negra” (Carneiro, 2017, p.15).
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Essa visão generalista da ‘humanidade’ presente em grupos tão diversos em nossa sociedade
refletiu em todo o pensamento social brasileiro, (re)produzido nos e através dos parâmetros da
colonialidade. Ainda segundo a percepção de Sueli, foi a própria condição diversa dos movimentos
negros brasileiros que conseguiu tencionar a inserção do debate racial até mesmo nos meios
hegemônicos, bem como nos alternativos. “E todos ainda sem muita clareza, de como lidar com a
preeminência de que a racialidade tem na constituição dos problemas de toda natureza, sobretudo nas
violações de direitos humanos” (Carneiro, 2017, p, 15).
Logo, de forma muito imprecisa, os discursos internacionais trazem como conceito de
‘humano’, ‘humanidade’ e ‘humanitário’, concepções menos complexas e mais superficiais, sem
especificações, colocando no mesmo pacote violações que não são equiparadas, nem relacionadas a
determinados grupos sociais.
Essas violações que atingem a dignidade humana, retiram sua liberdade e são contrárias à
fraternidade; não são filtradas por categorias de raça, classe e gênero, por exemplo. Não adianta
apontar que não se admite nenhum tipo de distinção entre homens e mulheres, brancos e negros, ou
entre ricos e pobres. As violações e discriminações não acontecem de forma bipolarizada, mas sim
articulada a várias categorias.
Além de ampliar a concepção de direitos humanos, não os restringindo a uma perspectiva
ocidental hegemônica, à luz das reflexões de Santos (2001) e Flores (2002) é preciso articular de
forma multi e intercultural, não se pode simplesmente atuar no campo genérico, precisam partir para
uma teia de ramificações e identificar perda de direitos e ganho de deveres a determinados sujeitos
sociohistóricos.
Por isso, o trabalho sobre interseccionalidade desenvolvido por Kimberlé Crenshaw, escritora
e professora norte americana, vem ganhando mais espaço na agenda política contemporânea4.
Crenshaw aponta como as estruturas de raça e gênero atuam de forma integrada e percebe como as
discriminações, quando combinadas, atuam e se transformam em infrações específicas voltadas a
determinados segmentos sociais, mulheres negras por exemplo. Tal abordagem acaba por questionar
as convenções genéricas sobre direitos humanos, convocando-as para novas e específicas reflexões a
fim de provocar mudanças que considerem as violações de direitos nas suas particularidades e
entrecruzamentos.
4 Djamila Ribeiro, em artigo publicado na Revista Cult de outubro de 2016, observa que o conceito de interseccionalidade
foi cunhado em 1989 por Crenshaw, mas que Angela Davis já cerca o assunto em 1981 ao constatar que as opressões se
dão de forma entrecruzada, conforme sinaliza o título de “Mulheres: raça e classe”.
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Em parte dos seus textos traz relatos de situações em que mulheres negras sofreram algum
tipo de abuso e que muitos organismos voltados à defesa dos direitos humanos não consideraram
como algo que violasse os direitos humanos. Para ela:
A questão é reconhecer que as experiências das mulheres negras não podem ser
enquadradas separadamente nas categorias da discriminação racial ou da
discriminação de gênero. Ambas as categorias precisam ser ampliadas para que
possamos abordar as questões de interseccionalidade que as mulheres negras
enfrentam (CRENSHAW, 2004, p.08).
Nos casos em que não houve distinções entre homens e mulheres, esses documentos incluíam
as mulheres como detentoras de direitos humanos. Porém, quando opressões específicas atingem as
mulheres, muitas organizações não souberam como atuar. Atitudes políticas como essas resultam
ataques à dignidade humana de mulheres negras. Logo, trabalhar a interseccionalidade nas diretrizes
propostas por Crenshaw é avaliar os contextos em que as infrações são cometidas e perceber quais
outros fatores estão operando, seja em termos de gênero, raça ou tal como aponta Sueli Carneiro:
classe social.
Considerando os documentos analisados percebemos atenção ao gênero quando propõem que
não haja distinção entre homens e mulheres. No entanto, tal diferenciação não se faz presente quando
a categoria de raça vem a tona, colocada como uma não-distinção geral. Na perspectiva generalista
não se faz menção às diferenças entre homens e mulheres e a raça, quando abordada, pode remeter a
não-diferença entre brancos e negros. Na prática, sabemos que existem tensões e distanciamentos
estruturantes entre as categorias sociohistóricas: homens brancos versus mulheres negras, mulheres
brancas versus mulheres negras e homens negros versus mulheres negras.
No que toca a proteção às mulheres negras, segmento populacional alvo principal de muitas
violações, é necessário entender que:
[...] Quando somos protegidas contra a discriminação racial, somos protegidas contra
todas as formas de discriminação racial, não apenas contra as que ocorrem para os
homens. E quando somos protegidas da discriminação de gênero, somos protegidas
de todas as formas de discriminação de gênero e não apenas das formas que afetam
as mulheres da elite que estão protegidas das formas que ocorrem com as mulheres
pobres e negras (CRENSHAW, 2004, p.15).
O racismo atua de forma múltipla e os documentos aqui citados não reconheceram essa
dinâmica ao pensar direitos humanos e as formas de proteção não-universais que variados segmentos
sociais precisam ter para que não fiquem destituídos de direitos. Não adianta considerar somente a
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desigualdade salarial entre homens e mulheres se não for considerado que socialmente e no conjunto
“mulheres”, as mulheres brancas e negras ocupam posições e rendas também desiguais. As
convenções internacionais aqui analisadas só consideraram o desequilíbrio na renda entre homens e
mulheres, generalizando-os.
Por isso seja pela discriminação de gênero ou de raça, ambas devem garantir as proteções
necessárias ao considerar que o machismo, sexismo, racismo e outras infrações atingem as mulheres,
porém mulheres negras e brancas os sofrem de forma diferentes. Logo “tanto os aspectos de gênero
da discriminação racial quanto os aspectos raciais da discriminação de gênero não são totalmente
apreendidos pelos discursos dos direitos humanos” (Crenshaw, 2002, p.171).
No texto intitulado “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da
discriminação racial relativos ao gênero” Crenshaw (2002) faz críticas a dois documentos em especial
sobre direitos humanos, a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Para ela esses documentos recorrem ao “princípio da igualdade de gênero” quando referem-se aos
direitos humanos e concebem como experiências de referência vivências dos homens para alcançarem
uma visão universal. Logo tais documentos não podem ser negligentes ao considerar perda de direitos
as mulheres quando estas sofrem demandas específicas, enquanto mulheres e mulheres não negras,
algo que os homens não irão sofrer por serem simplesmente homens ou homens brancos.
A partir dessa consideração é que Crenshaw nos provoca problematizando como a
superinclusão e subinclusão atuam ao considerar a interseccionalidade nos direitos humanos. E seus
perigos aos organismos de direitos humanos quando estes não percebem que dentro do grupo de
mulheres, superinclusão, algumas violações são impulsionadas por categorias de raça, subinclusão.
Considerações Finais
Refletimos aqui sobre a concepção de Direitos Humanos sob a ótica de documentos oriundos
de um pensamento etnocêntrico-racial específico e datado historicamente. Pautados pelas diferentes
formas de colonialidade (Quijano, 2005) e pensados a partir de uma lógica econômica e
pretensamente universal difundiram formas padrões para agir diante da perda de direitos sociais
identificando, de modo genérico, o que fere ou não a dignidade humana.
A racialização das relações sociais pautadas na colonialidade, conforme verifica Aníbal
Quijano configurou relações de dominação onde identidades se tornam constitutivas das “hierarquias,
lugares e papéis sociais correspondentes” [...] “ao padrão de dominação que se impunha” (Quijano,
2005, p. 228). Sob a perspectiva dos colonizadores, a classificação racial tornou-se modo de “outorgar
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legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista” (idem, p. 229). Isto é, racialização
correspondia a re-produção do racismo.
Na perspectiva contemporânea pautada e protagonizada por grupos que se auto-identificam
afirmativamente sob viés étnico-racial, a racialização ganha novos contornos e ressignificações. A
atuação dos movimentos negros formularam propostas para corrigir as desigualdades produzidas pelo
racismo através de políticas de ações afirmativas (Carneiro, 2017, p.16) que se contrapõem às
categorizações binárias, com homens e mulheres tratados sob perspectivas excludentes, desiguais e
não articuladas entre raça e gênero implicando violação de direitos e consequente irresponsabilização,
ao tratar direitos humanos sob o prisma da diversidade não como direito, mas como forma de
“beneficiar” determinados grupos étnico-raciais sem considerar a especificidade das violências
sofridas.
Raça e gênero ganharam, ao longo desses anos, movimentos, organizações e setores de
governo que tratam de forma particularizada as discriminações oriundas dessas categorias. No
entanto, tais práticas nem sempre são filtradas por um pensamento interseccional e acabam por ser
distribuídas de modo restrito, localizadas em seus respectivos setores.
Por muito tempo, a condução das políticas de direitos humanos foi pautada por parte dos
países do globo, protagonizada por hegemonias político-econômicas, geográficas e socioculturais que
se tornaram referência para discussão.
Diante de muita pressão da sociedade civil notamos que algumas narrativas, antes silenciadas
e agora mais ativas, estão se organizando e denunciando violações direcionadas a grupos sociais
específicos, como é o caso de mulheres e mulheres negras. Podemos perceber reflexos dessas
mobilizações quando observamos a operacionalização das políticas de Estado nos âmbitos federal,
estaduais e municipais, criando secretarias/diretorias com pastas voltadas exclusivamente para
mulheres e suas demandas.
A limitação desse avanço está no fato de não se identificar o particular na “superinclusão”
(Crenshaw, 2002). Muitas particularidades de algumas mulheres que são englobadas pelo viés de
gênero, podem ser renegadas no âmbito da raça o que resulta em ações que não as contemplam
plenamente. Logo, as instâncias voltadas às mulheres, de modo geral, não necessariamente resultam
em equidade intragrupo, mas continuam a reproduzir desigualdades de tratamento por manter
invisibilizadas as diferenças identitárias.
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E é por conta dessas invisibilidades que a pretensão universal dos direitos humanos torna-se
limitada resultando no apagamento dos direitos que não são vistos, pois estão escondidos em
discursos genéricos e rasos, sem passar por reflexões complexas, densas e estruturais.
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Latinoamericano de Ciencias Sociales - CLACSO, 2005. pp. 227-278).
THE CONSTRUCTION OF THE IDEA OF HUMANITY IN INTERNACIONAL
DOCUMENTS: HOW BLACK WOMEN ARE HINDERED IN THESE DISCOURSES
Abstract: Between the 1940s and 1960s, three international documents were created to think about
Human Rights: the United Nations Charter (1945), the Universal Declaration of Human Rights
(1948), and the American Convention on Human Rights (1969). The points designated by both
documents concern international cooperation among member countries in the effort against any kind
of discrimination and inequality supported by race, color, sex, religion and other natures. In their
essays they affirm the necessary conditions for the social, cultural, economic development and other
forms that concretize the human dignity without distinction. From the discursive perspective on
humanity, worked on in the documents, this article questions the way in which these rights documents
contemplate black women. It is fundamental to start from the categories of gender and race,
considering the differences and specificities of the oppressions that affect such women. For this
analysis we will take the concept of worked by the theoretician, Kimberlé Creshaw (2002), that
discusses how different structures of power act in the life of socially marginalized groups. Before, we
will work with Boaventura de Sousa Santos (2001) and Joaquín Herrera Flores (2003) to problematize
conflicts around the rights in the global and local plans. We intend to carry out such theoretical
movements in articulation with Anibal Quijano's (2005) conception of the modern/colonial world
system, thinking the coloniality of power to perceive how the race category, when triggered, imprints
relations based on different forms of domination, Black groups under a world perspective. Thus, we
note the fundamental contradiction that permeates the substance of the aforementioned documents
since, in the perspective of coloniality, the construction of discourses and narratives about the other
necessarily pass through the 'race' as a construction that underlies ethnocentrism.
Key Words: Human Rights. Coloniality of Power. Intersectionalities.